1924 – O CONFLITO DAS LAVADEIRAS EM NATAL

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O Baldo mostrando as roupas lavadas e dependuradas nas cercas. Uma marca de Natal no início do século XX.

O Esquecido Confronto entre As Lavadeiras do Baldo Contra Empresários Apoiados Pela Marinha do Brasil e a Atitude do Capitão-tenente Fábio Sá Earp

Rostand Medeiros – Sócio efetivo do IHGRN – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Elas eram muitas, eram pobres, eram esforçadas, eram trabalhadoras silenciosas e dedicadas ao que faziam. Na Natal do passado eram vistas todos os dias seguindo pelas ruas da cidade, principalmente descendo com suas trouxas de roupas na cabeça as ladeiras arenosas da atual Rua Princesa Isabel e da Avenida Rio Branco em direção ao Rio do Baldo, um pequeno e limpo afluente onde elas exerciam a sua profissão.

Um dia, de forma inesperada e corajosa, uniram forças contra o mais rico homem do Rio Grande do Norte daquele tempo, que junto a militares da Marinha do Brasil tentaram expulsá-las do seu tradicional local de trabalho.

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E o que houve com o oficial da Marinha do Brasil envolvido nesse episódio?

O Rio de Beber

Segundo nos conta o Professor Itamar de Souza, em seu livro Nova História de Natal (Departamento Estadual de Imprensa, 2008), obra indispensável para quem quer conhecer sobre o passado da cidade de Natal, desde o século XVII o Rio do Baldo é um dos pontos da cidade que mais aparecem nas documentações antigas.

Quando o conde Maurício de Nassau administrou a possessão holandesa que abrangia parte do Nordeste (1637-1644), trouxe com ele artistas e naturalistas que aqui estiveram para descrever paisagens, animais e buscar as riquezas da terra. Entre estes estava o alemão George Marcgrave, que visitou em Natal em 1643 e descreveu o Rio do Baldo, chamando-o Tiuru[1].

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Mapa holandês de 1650, mostrando o Rio Potengi, Natal e o afluente Tiuru, o Rio do Baldo.

Câmara Cascudo, tendo como base o trabalho de Marcgrave, assim escreveu sobre este afluente do Rio Potengi “Subindo o Potengi, da foz para as nascentes, logo após a cidade, está o Tiuru, Tiçuru diz a Descrição de Pernambuco em 1746, donde bebe o povo da cidade. É o Rio da Bica, o mesmo Rio do Baldo, ainda hoje existente em seus filetes humildes”.[2]

Outra descrição de Cascudo sobre o local “Tiçuru:- Rio da cidade do Natal, depois Rio do Baldo (1761), atravessando a Praça Carlos Gomes. Era a principal fonte de abastecimento d’água para os moradores durante mais de dois séculos. Em sua vizinhança ficou a Cruz da Bica, limite sul do sítio da Cidade, e que se tornou centro de devoção popular, a Santa Cruz da Bica, com festas em 3 de maio. De ti-ruçu, água grande, Alt. Tiuru”[3].

Cascudo também aponta que o primeiro branco que foi proprietário da área onde passava este rio foi o capitão Pedro da Costa Faleiro, que em 1677 recebeu uma carta de aforamento “no alagadiço da fonte desta Cidade”.

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Grande parte da pequena Natal do início do século XX dependia do Baldo para sobreviver.

Este alagadiço era formado por fontes e vários veios de água que desciam tanto da área mais elevada do centro velho, o atual bairro da Cidade Alta, como dos aclives para os lados dos bairros do Alecrim e Barro Vermelho. Cascudo escreveu que os moradores da primitiva Natal também chamaram o Rio do Baldo como o rio de beber água, rio da cruz, rio da bica, rio da fonte e simplesmente rio[4].

Durante os séculos seguintes o pequeno e límpido Rio do Baldo teve uma grande importância para Natal e sua gente, tendo merecido atenção das autoridades. Em algum momento do passado foi construído um aterro primitivo, com um sangradouro, para acumular vários metros cúbicos de água para uso da população. Com o tempo uma parte dessa área também ficou conhecida como Oitizeiro[5].

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Feira da comunidade do Passo da Pátria em 1912, próximo a região do Baldo. Era nessa comunidade onde habitavam a maioria das lavadeiras envolvidas no conflito de 1924.

Em uma cidade pobre, o Baldo se torna um local onde muitos conseguiam a subsistência, principalmente as mulheres. Certamente existiam aqueles que transportavam água pura para as casas dos natalenses de outrora, mas também existiram as escravas que seguiam para lavarem as roupas de seus amos. Depois foram as mulheres livres, mas pobres, que realizavam esse trabalho em troca de alguns tostões[6].

E viver em Natal sem lavar uma roupa, era algo um tanto difícil de conseguir conviver desde priscas eras. Pois quem tinha o privilégio de viver neste lugar maravilhoso, localizada apenas a cinco graus ao sul da Linha do Equador, vivia debaixo de um calor abrasador. Certamente ficava bem melhor está com uma roupa lavada em um rio de água cristalina e passada no ferro aquecido com carvões em brasa, para acompanhar o lindo pôr-do-sol do Rio Potengi, sentado na calçada de casa em uma relaxante cadeira de balanço.

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Outro detalhe da região do Baldo e Oitizeiras onde as lavadeiras trabalhavam.

Muitas Histórias no Baldo

São muitos os fatos e episódios da História da capital potiguar ocorridos no local. Alguns engraçados e outros trágicos.

Henrique Castriciano comentou que em 1845 morava na velha Natal uma mulher na faixa dos 50 anos de idade, solteira, que tinha como únicas companhias uma afilhada chamada Balbina e uma cadelinha. Era uma mulher discreta, que vivia de “pequenas vendas de preparados de milho” e diziam que ela era rica, “possuidora de occulto e cobiçado tesouro”. Seu nome era Anna Marcellina e era nativa de Hamburgo, por isso conhecida por todos como Hamburguesa[7].

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Nota publicada no Rio de janeiro, extremamente cheia de erros, sobre a execução da Hamburguesa.

Certamente para fugir do calor diurno da nossa cidade, Marcellina tinha o hábito de lavar a sua roupa a noite. Mas em 13 de fevereiro de 1845, quando seguia para o Baldo, o soldado Alexandre José Barbosa, natural do Assú, matou essa mulher a cacetadas e a asfixiou empurrando seu rosto na areia. O móvel do crime foi roubar o pretenso “tesouro” que a Hamburguesa possuía e que não foi encontrado pelo assassino. Pelo crime o soldado Alexandre foi enforcado em Natal[8].

Em um dos textos sobre o crime da Hamburguesa, Henrique Castriciano deixa entender que no Baldo ocorriam cerimônias e manifestações ligadas a religiosidade afro-brasileira. Castriciano percebeu necessidade de se estudar o que ali acontecia – “Baldo, logradouro público, onde a plebe natalense, desde tempos remotos, faz nocturnas abluções e cuja inffuencia nos costumes da mesma plebe merece ser estudada por um chronista observador”.

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Johann Moritz Rugendas. Lavadeiras do Rio de Janeiro, 1835. No Baldo não era muito diferente.

Independente das histórias passadas, percebemos que a área do Baldo e Oitizeiro preocupavam os políticos e o poder público no início do século XX.

Lopes Cardozo, um candidato a deputado federal nas eleições de 1890, publicou nos jornais da cidade as suas propostas para conseguir eleitores, entre estas constava a da “drenagem do Baldo” e de “quebrar a Cabeça do negro”, que nesse caso se referia a uma pedra que atrapalhava a entrada de embarcações no porto de Natal[9].

1905
Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Prefeito de Natal, que na época tinha o título de Presidente da Intendência, apresentou um interessante relatório em janeiro de 1905 que mostra interessantes visões sobre o Baldo e Natal.

Em 1904, quando uma forte seca queimou o interior do Rio Grande do Norte, o então governador Tavares de Lira utilizou os muitos retirantes que buscaram refúgio em Natal para realizarem diversos melhoramentos na cidade e um dos locais foi no Baldo. Foram feitos trabalhos de retirada de aterros de lama, limpeza da área, construção de banheiros e de uma casa para um guarda municipal zelar para que as pessoas não tomassem “banhos despidos”.[10]

Em meio a lavagens de roupas, coletas de água, banhos, despachos e mortes, parece que as festas também faziam parte da rotina daquele ponto de Natal.

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Melhorias feitas para as lavadeiras.

Antônio José de Melo e Sousa, escritor que por duas vezes foi governador do Rio Grande do Norte, comentou utilizando o pseudônimo de Lulu Capeta o quanto havia sido fraca a festa dos Reis Magos de 1902, com “poucos grupos tirando os Reis e nem uma lapinha animada”. Para Melo e Sousa a exceção naquele ano foi um “cherém” organizado no Baldo. Apesar da reclamação do escritor pela baixa qualidade dos músicos, Melo e Sousa, que a tudo escutava na sua casa por volta da meia-noite enquanto escrevia a nota para o jornal, afirmou com certa melancolia que “Aquele povo está divertindo-se, e eu a estas horas rabiscando capetadas[11].

Também naquele mesmo ano de 1902, durante o carnaval, vários grupos de foliões brincaram no Baldo em meio a muita chuva. A animação era total, quando por volta das nove e meia da noite da terça-feira gorda estourou uma briga entre os organizadores de um “Maracatu”. Não fosse a intervenção enérgica do oficial de polícia Francisco Cascudo e sua tropa, quase que um dos desordeiros foi furado a punhal. Para completar a nota os arruaceiros acabaram entrando no xadrez vestindo saias e dormiram na antiga cadeia da cidade, chamada jocosamente de “Chalet da Praça André de Albuquerque”[12].

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Conflito Contra a Marinha

As lavadeiras do Baldo e Oitizeiro, juntamente com o seu pesado trabalho faziam parte do cotidiano e da paisagem de Natal.

Em 1924 a cidade evoluía e quem chegava de Recife no trem da Great Western, tinha o primeiro vislumbre da cidade ao passar na região do Baldo e via a labuta daquelas mulheres.

Um dia, aos primeiros raios do sol, as lavadeiras que chegavam ao seu local de trabalho encontraram alguns homens munidos de materiais para a construção de uma cerca, fechando o acesso para a área de trabalho delas e derrubando os banheiros. Além dos trabalhadores, oficiais de justiça estavam munidos de documentos para sacramentar a ordem judicial.

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A região do Baldo e Oitizeiro visto a partir da linha do trem da Great Western. Quem vinha nesta composição de Recife tinha o primeiro vislumbre da cidade ao passar na região do Baldo e via a labuta daquelas mulheres.

O fato se deu em uma sexta-feira, 14 de março e, segundo o matutino natalense O Jornal do Norte, cujo redator era o advogado e jornalista João Café Filho, as mulheres não aceitaram a realização do trabalho daqueles homens e logo estalou um conflito. Não existem detalhes de como se deu os atos de violência, mas Café Filho aponta que as mulheres partiram para cima, derrubaram a cerca recém-colocada e não deixaram o serviço continuar. Na sequência o encarregado ameaçou chamar os homens da Armada, um nome comum na época para designar a Marinha do Brasil.

Hoje Natal é o porto de alguns navios de guerra da Marinha, sedia o Comando do 3° Distrito Naval, a grande Base Naval Ari Parreira, o Grupamento de Fuzileiros Navais e outras unidades menores. Mas em 1924 as unidades militares da Marinha na capital potiguar se restringiam a Escola de Aprendizes Marinheiros, hoje extinta, e a Capitania dos Portos do Rio Grande do Norte[13]. Logo os marinheiros e o comandante da Capitania chegaram ao Baldo.

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Fábio Sá Earp na Inglaterra.

O oficial comandante era o capitão-tenente Fábio Sá Earp, que informou ter os trabalhadores direito de realizarem seu serviço, pois o terreno era da Marinha e fora aforado pelo empresário Manoel Machado.

Provavelmente o homem mais rico do Rio Grande do Norte no seu tempo, Manoel Duarte Machado era natural de Portugal, mas já morava há alguns anos em Natal onde fez fortuna. Aqui casou com a nativa Amélia Duarte Machado, que lhe proporcionou uma longa união, mas que não deixou filhos. Aparentemente são os investimentos em terras, onde ele tinha muita visão na hora das aquisições, que fez aumentar seus rendimentos.

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A prática do aforamento em si nada tinha de errado e este é como se chama até nossos dias o contrato entre um órgão público que é dono de alguma área, ao qual um particular adquire de forma perpétua o direito à posse, uso e gozo daquele bem. Diz-se, portanto, que o particular, chamado foreiro, é o titular do domínio útil, obrigando-o ao pagamento anual do foro.

Apesar de legal, para o jornalista Café Filho o rico empresário Manoel Machado desejava aquele terreno para “plantar capim”. Junto a Manoel Machado, contava como interessado no aforamento o comerciante Thomaz da Costa Filho.[14]

O capitão Sá Earp buscou argumentar com as lavadeiras que realmente o terreno onde trabalhavam pertencia à Marinha, cujo domínio útil estava sendo cedido através do aforamento a Manoel Machado e Thomaz da Costa. Evidentemente que aquelas mulheres simples não sabiam e não entendiam nada daquilo. Mas elas sabiam o valor do seu trabalho e unidas disseram não ao oficial naval.

Recuo Inusitado dos Militares

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Membros do Esquadrão de Cavalaria da Força Pública, a atual Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte na década de 1920.

Para piorar a já frágil situação daquelas mulheres, surgiu da Cidade Alta uma tropa do Esquadrão de Cavalaria da Força Pública, a atual Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte. Eram vinte homens montados em cavalos, armados com cassetetes e comandados pelo tenente Francisco Barbosa. Na cola dos policiais e de suas alimárias começou a juntar muita gente e a tensão reinante só cresceu.

A notícia da época conta que as duas partes, as lavadeiras e os membros do Estado, se encaravam. Uma das partes com paus, pedras, machados, foices, mãos de pilão e a outra com armas de fogo e cassetetes. As lavadeiras tinham até mesmo uma posição que Café Filho chamou de “ar de sarcasmo” diante da tropa fardada.

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Fábio Sá Earp em 1918

O carioca Fábio Sá Earp, como oficial militar de uma força federal era, sob todos os aspectos vigentes do seu tempo, um homem com muito poder. Não dá nem para comparar com os dias atuais a força que os militares da década de 1920, tanto na teoria quanto na prática, possuíam sobre os brasileiros. O nosso país era então uma nação convulsionada, com várias revoltas e que vivia quase que permanentemente debaixo de Estado de sítio[15].

Bastava o oficial naval dá uma simples ordem para que seus comandados, bem como a força policial estadual, passasse por cima das lavadeiras e de quem mais se opusesse. Quem ficasse no meio que aguentasse as consequências.

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Antiga sede da Capitania dos Portos de Natal, atual Capitania das Artes.

Então houve algo inesperado para a maioria dos espectadores presentes – O capitão-tenente Fábio Sá Earp e o tenente Francisco Barbosa entraram em um entendimento e decidiram recuar suas tropas. Além disso, segundo relata Café Filho, estes oficiais mandaram suspender os serviços, ficando estabelecido que as lavadeiras fossem ressarcidas dos seus prejuízos, com a polícia garantindo o cumprimento das ordens e o direito do trabalho das mulheres.

Consta que em 1924 a causa das lavadeiras era de extrema aceitação positiva por parte da população de Natal. Até porque, quem é que iria lavar a roupa suja do povo dessa terra?

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Um pouco de como a mídia da época viu o conflito.

Bem, poderíamos concluir este texto com a alma lavada pela sensação de vitória das mais fracas diante dos gladiadores fardados e do poder do capital.

Mas, novamente utilizando os escritos de Café Filho, sabemos que bastou o clima de tensão esfriar, a multidão se dispersar, a noite cair e os policiais saírem da área de litígio, para os trabalhadores de Manoel Machado e Thomaz da Costa Filho refazerem a cerca no meio da madrugada. Mas nem bem o dia amanheceu as lavadeiras derrubaram todo serviço feito na calada da noite e ainda sobraram cacetadas para os construtores da cerca. As mulheres então buscaram a ajuda profissional de um advogado para impetrar um habeas corpus.

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O caso então desaparece do matutino Jornal do Norte. Entretanto, de uma forma ou de outra, as lavadeiras do Baldo continuaram por lá por um bom tempo. Acredito que o que acabou com seu trabalho foram as mudanças dos costumes, as mudanças laborais, a poluição no velho Rio do Baldo e os avanços tecnológicos[16].

Ao realizar esse texto ficou uma curiosidade – O porquê do capitão-tenente Fábio Sá Earp recuar diante de frágeis e pobres lavadeiras?

Esse militar naval, carioca oriundo de uma nobre família da região serrana do Rio de Janeiro, com forte tradição de participação de seus membros junto a Marinha do Brasil, era antes de tudo um grande profissional, possuía um forte caráter pessoal e, por ser como era, pagou um alto preço profissional na Força Naval pelo seu pensamento e atitudes.

Um Alto Preço

Durante a Primeira Guerra Mundial o Brasil teve uma participação muito mais simbólica do que efetiva. Mesmo assim enviou para a Inglaterra um grupo de oficiais navais para se formarem como pilotos, treinando em hidroaviões da Royal Navy. Esse grupo de brasileiros, que chegou até mesmo a realizar missões de patrulha, era comandado pelo capitão-tenente Manoel Augusto P. de Vasconcellos, potiguar de Natal, e entre seus comandados estava o então primeiro-tenente Fábio Sá Earp. 

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Militares brasileiros enviado a Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. Da esquerda para direita vemos Lauro de Araújo, Heitor Varady, Eugênio Possolo, Virgínius B. Delamare, Olavo Araújo, o potiguar Manoel Augusto P. de Vasconcelos e Fábio Sá Earp.

Além de oficial naval e piloto de avião Sá Earp era querido pelos seus colegas e comandados. Estava sempre participando de atividades aéreas sobre o Rio de Janeiro, então Capital Federal, voando aeronaves “Machi 9”, de fabricação italiana, ou “MF”, de fabricação norte-americana[17].

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Mas um dia em 1922, em meio às muitas crises políticas ocorridas durante o governo do Presidente Artur Bernardes, ele e outros oficiais navais se recusaram a realizar uma passagem a baixa altitude na Avenida Rio Branco, centro do Rio, saudando o Presidente da República. Para entender um pouco melhor esse fato, leia abaixo a nota do jornal carioca A Noite, de 28 de abril de 1922, na 1ª página.

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Fábio Sá Earp e seus companheiros pagaram um preço muito, muito alto, por não desfilar para o despótico Bernardes. De saída ele perdeu suas “asas” de piloto, sendo excluído da Aviação Naval. Perdeu também a oportunidade de ir para os Estados Unidos para acompanhar a construção de aeronaves destinadas a nossa Marinha[18].

Apesar de ter sido promovido por antiguidade a capitão-tenente, recebeu como punição maior a transferência para Natal, então uma cidade distante de tudo e de todos. Aqui chegou com sua esposa no início de julho de 1923 e assumiu o cargo de Capitão do Porto.

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Mesmo passando por tantos problemas, na capital potiguar Sá Earp não se tornou uma pessoa rancorosa e nem complicada. Pelo contrário, era operativo e laborioso. O próprio jornalista Café Filho comentou na notícia do caso das lavadeiras, que após o capitão Sá Earp desembarcar em terras potiguares ele deu continuidade ao trabalho do seu antecessor no melhoramento das colônias de pescadores da região, tendo recebido elogios da sociedade local.

Mas logo depois do problema das lavadeiras, mais precisamente em dezembro de 1924, um ano e meio após chegar a Natal, Fábio Sá Earp foi transferido para ser o segundo em comando da Escola de Aprendizes de Marinheiros de Recife.

Não sei nessa época como era o tempo de rotatividade dos comandantes na direção da Capitania dos Portos de Natal, mas fico com o pensamento que as ações do capitão Sá Earp nesta cidade parece que não foram bem vistas pela elite local. Talvez algum pesquisador com maior capacidade do que a minha possa dizer que estou equivocado, mas percebo que  sua permanência a frente da nossa Capitania rápida e a ele, um piloto naval formado na Inglaterra, coube uma transferência para assumir uma função secundária, em uma escola naval no distante Nordeste do país.

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Diário de Pernambuco, 18 de dezembro de 11924, pág. – 2

Mesmo nessa situação o capitão-tenente Fábio Sá Earp continuou a realizar o seu trabalho de forma correta e positiva. Ele chegou a participar de uma interessante pesquisa sobre a questão da pesca no Atol das Rocas[19].

Com o tempo e as mudanças no curso da política do país, o oficial naval Fábio Sá Earp voltou a Aviação Naval e em 1942 se incorporou a recém-criada Força Aérea Brasileira (FAB). Ainda durante a Segunda Guerra Mundial comandou uma representação da FAB na Inglaterra e depois chegou ao posto de brigadeiro [20].

Mas aqueles eram outros tempos, onde talvez a ponderação já não estivesse mais presente na mente e nem no coração do velho aviador!

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Fábio Sá Earp na FAB na década de 1950 – Fonte – FGV

Pois foi Fábio Sá Earp quem deu voz de prisão ao mítico Nero Moura, antigo comandante do 1° Grupo de Aviação de Caça da FAB que combateu na Itália durante a Segunda Guerra. O fato se deu no final de outubro de 1945, quando os militares derrubaram Getúlio Vargas e Nero Moura se posicionou contrariamente ao golpe. Sá Earp era seu superior hierárquico e o deteve nas dependências do quartel-general da III Zona Aérea[21].

NOTAS


[1] Segundo a etimologia o Tiuru é de origem tupi, possivelmente correlacionado a tyuru, a bexiga, termo este está no dicionário do Padre Manoel Moraes, (Marcgrave, 1648), pg.276.

[2] Ver Câmara Cascudo, Luís da: GEOGRAFIA DO BRASIL HOLANDES, Livraria José Olímpio Editora, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1ª Edição, 1956.

[3] Ver Câmara Cascudo, Luís da: NOMES DA TERRA, Fundação José Augusto, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 1ª Edição, 1968.

[4] Ver Câmara Cascudo, Luís da: História da cidade do Natal, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2ª Edição, 1980.

[5] Sobre a questão das denominações envolvendo a área do Rio do Baldo, esta parece ser a denominação mais tradicional e antiga. Entretanto a partir de certa época os textos antigos colocam na mesma região o local “Oitizeiro”. Inclusive a primeira usina de fornecimento de energia elétrica da Natal, cujos motores ficavam na esta área, era chamado de Usina do Oitizeiro. Procurei os conhecimentos dos amigos Manoel Medeiros de Britto, advogado e ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grand do Norte, e do Professor Claudio Pinto Galvão, para tirar esta dúvida. Ambos não me souberam dizer onde começava uma e terminava outra. Os dois acreditam que ambas as denominações apontavam para a mesma área.

[6] Certamente a existência dessas várias mulheres lavando roupas determinou que, em algum momento da História de Natal, alguém tratou o sebo e fabricou sabões primitivos.

[7] Hamburgo atualmente é uma grande cidade na Alemanha, mas em 1814 era uma Cidade Estado, com o título oficial de “Cidade Livre e Hanseática de Hamburgo”, junto com outros 38 estados soberanos que faziam parte da federação alemã.

[8] Ver jornal A República, edições de 26 e 27 de fevereiro de 1907, respectivamente terça e quarta feira, sempre na página 2.

[9] Ver jornal A República, edição de 16 de julho de 1890, quarta feira, página 3.

[10] Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Prefeito de Natal, na época tinha o título de Presidente da Intendência. Ver jornal A República, edições em várias datas no mês de janeiro de 1905. O relatório é apresentado sempre com o título “Relatorio apresentado a intendencia eleita para o triennio 1904 a 1907 por ocasião de sua posse em 1 de janeiro de 1905”.

[11] Ver jornal A República, edição de 16 de julho de 1890, quarta feira, página 3.

[12] Ver edições do jornal A República, de 12 e 13 de fevereiro de 1902, respectivamente quarta e quinta feira, sempre nas 1ª páginas.

[13] Naquele tempo, até mesmo pela ausência do transporte aéreo, tudo que se referia ao tráfego marítimo de cargas e passageiros chamava muito a atenção de toda nação, consequentemente a Capitania dos Portos era uma instituição militar de uma importância bem mais intensa que nos dias atuais. Sempre que havia mudança de seus comandantes, os novos oficiais que aqui chegavam eram saudados com toda pompa e circunstância pelos Presidentes de Província e depois pelos Governadores potiguares. Criada pelo Imperador Dom Pedro II, através do Decreto n.º 539, de 3 de outubro de 1847, certamente esse é um dos órgãos mais antigos da administração pública federal no Rio Grande do Norte.

[14] Consta que o aforamento se confunde até nosso dias com a enfiteuse. Antes, o aforamento tinha feição própria, distinta da enfiteuse. O aforamento recaía sobre toda sorte de bens, solo e superfície, prédios incultos ou cultivados, chãos vazios ou edificados. A enfiteuse só incidia sobre terrenos incultos ou chãos vazios. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Enfiteuse

[15] Nessa época o presidente brasileiro era o advogado mineiro Artur da Silva Bernardes, que governou o Brasil entre 15 de novembro de 1922 e 15 de novembro de 1926 e governou utilizando o Estado de sítio durante quase todo seu governo. O Estado de sítio é um estado de exceção, instaurado como uma medida provisória de proteção do Estado, quando este está sob uma determinada ameaça, como uma guerra ou uma calamidade pública. Esta situação de exceção tem algumas semelhanças com o estado de emergência, porque também implica a suspensão do exercício dos direitos, liberdades e garantias. Ver https://www.significados.com.br/estado-de-sitio/

[16] Não encontrei uma única vírgula sobre o tema publicado pelo jornal natalense “A República”, o jornal oficial do governo estadual potiguar.

[17] Ver Revista Marítima Brasileira, pág. 902, edição 86, 1920, Imprensa Naval, Rio de Janeiro-RJ.

[18] Sobre este episódio ver, considerado uma rebelião na época, pode ser lido no jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edições de 28 de abril (pág.1), 4 de maio (pág.2), 8 de maio (pág.2), 29 de maio (pág.3), 14 de junho (pág.3), 16 de junho (pág.2) e 12 de setembro (pág.5), todas as edições do ano de 1922. Fabio Sá Earp tinha nessa época como um dos seus colegas o aviador naval Djalma Petit, que ficaria muito conhecido no Rio Grande do Norte como instrutor aéreo e um dos fundadores do Aeroclube local.

[19] Ver Revista Marítima Brasileira, respectivamente na pág. 846, edição 124, 1932 e na pág. 264 e 265, edição 125, 1933, ambas publicadas pela Imprensa Naval, Rio de Janeiro-RJ.

[20] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta-feira, 4 de novembro de 1943, pág. 1.

[21] Ver http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/moura-nero

 

AUTA DE SOUZA – SEUS VERSOS E TRAÇOS DE SUA VIDA BREVE

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Auta Henriqueta de Souza

Autor – Elfi Kürten Fenske

Fonte – http://www.elfikurten.com.br/2013/05/auta-de-souza.html

“Não vês? Minh’alma é como a pena branca

Que o vento amigo da poeira arranca

E vai com ela assim, de ramo em ramo,

Para um ninho gentil de gaturamo…

Leva-me, ó coração, como esta pena,

De dor em dor, até a paz serena.”

– Auta de Souza 

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Exemplar da 2ª ed. de “O Horto”, que pertenceu a Antônio Isidoro de Medeiros, tio-avô de Rostand Medeiros, que guarda o exemplar. 

Auta Henriqueta de Souza nasceu em Macaíba, em 12 de setembro de 1876, filha de Elói Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina Rodrigues e irmã dos políticos norte-rio-grandenses Elói de Sousa e Henrique Castriciano.

Ficou órfã aos três anos, com a morte de sua mãe por tuberculose, e no ano seguinte perdeu também o pai, pela mesma doença. Sua mãe morreu aos 27 anos e seu pai aos 38 anos.

Durante a infância, foi criada por sua avó materna, Silvina Maria da Conceição de Paula Rodrigues, conhecida como Dindinha, em uma chácara no Recife, onde foi alfabetizada por professores particulares. Sua avó, embora analfabeta, conseguiu proporcionar boa educação aos netos.

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Aos onze anos, foi matriculada no Colégio São Vicente de Paula, dirigido por freiras vincentinas francesas, e onde aprendeu Francês, Inglês, Literatura (inclusive muita literatura religiosa), Música e Desenho. Lia no original as obras de Victor Hugo, Lamartine, Chateaubriand e Fénelon.

Quando tinha doze anos, vivenciou nova tragédia: a morte acidental de seu irmão mais novo, Irineu Leão Rodrigues de Sousa, causada pela explosão de um candeeiro.

Mais tarde, aos catorze anos, recebeu o diagnóstico de tuberculose, e teve que interromper seus estudos no colégio religioso, mas deu prosseguimento à sua formação intelectual como autodidata.

Continuou participando da União Pia das Filhas de Maria, à qual se uniu na escola. Foi professora de catecismo em Macaíba e escreveu versos religiosos. Jackson Figueiredo (1914) a considera uma das mais altas expressões da poesia católica nas letras femininas brasileiras.

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Informativo sobre a venda do livro “O Horto”

Começou a escrever aos dezesseis anos, apesar da doença. Frequentava o Club do Biscoito, associação de amigos que promovia reuniões dançantes onde os convidados recitavam poemas de vários autores, como Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, Junqueira Freire e os potiguares Lourival Açucena, Areias Bajão e Segundo Wanderley.

Por volta de 1895, Auta conheceu João Leopoldo da Silva Loureiro, promotor público de sua cidade natal, com quem namorou durante um ano e de quem foi obrigada a se separar pelos irmãos, que preocupavam-se com seu estado de saúde. Pouco depois da separação, ele também morreria vítima da tuberculose. Esta frustração amorosa se tornaria o quinto fator marcante de sua obra, junto à religiosidade, à orfandade, à morte trágica de seu irmão e à tuberculose. A poetisa, então, encerrou seu primeiro livro de manuscritos, intitulado Dhálias, que mais tarde seria publicado sob o título de Horto.

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Auta de Souza

Aos dezoito anos, passou a colaborar com a revista Oásis, e aos vinte escrevia para A República, jornal de maior circulação e que lhe deu visibilidade para a imprensa de outras regiões. Seus poemas foram publicados no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro.

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Parte final do verso “Flor do Campo”, publicado inicialmente no ano de 1899 no jornal A Republica, de Natal.

No ano seguinte, passaria a escrever assiduamente para o prestigiado jornal A Tribuna, de Natal, e seus versos eram publicados junto aos de vários escritores famosos do Nordeste. Entre 1899 e 1900, assinou seus poemas com os pseudônimos de Ida Salúcio e Hilário das Neves, prática comum à época.

Também foi publicada nos jornais A Gazetinha, de Recife, e no jornal religioso Oito de Setembro, de Natal, e na Revista do Rio Grande do Norte, onde era a única mulher entre os colaboradores. 

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Henrique Castriciano, irmão de Auta

Venceu a resistência dos círculos literários masculinos e escrevia profissionalmente em uma sociedade em que este ofício era quase que exclusividade dos homens, já que a crítica ignorava as mulheres escritoras. Sua poesia passou a circular nas rodas literárias de todo o país, despertando grande interesse. Tornou-se a poetisa norte-rio-grandense mais conhecida fora do estado.

Aos 24 anos, no dia 7 de fevereiro de 1901, Auta de Souza morria tuberculosa. Foi sepultada no cemitério do Alecrim, em Natal, em 1904 seus restos mortais foram transportados para o jazigo da família, na parede da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Macaíba, sua cidade natal. No ano anterior (1900) havia publicado seu único livro de poemas sob o título de Horto, com prefácio de Olavo Bilac, que obteve significativa repercussão na crítica nacional. Em 1910 saía à segunda edição, em Paris, e, em 1936, a terceira, no Rio de janeiro, com prefácio de Alceu de Amoroso Lima.

POEMAS MUSICADOS

Outro aspecto importantíssimo da obra de Auta de Souza diz respeito a poemas seus que foram musicados por compositores regionais e transmitidos oralmente de uma geração para outra, desde o final do século XIX até hoje.

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Notícia da morte de Auta de Souza no jornal A República, em 8 de fevereiro de 1901

 

Sem considerar aqueles que foram e vêm sendo musicados mais recentemente, e que não tiveram esta vinculação com a tradição oral, tem-se conhecimento da existência de quatorze deles, somando dezesseis ao considerar-se que um deles, Caminho do sertão, conta com três versões melódicas diferentes. Algumas destas canções ficaram conhecidas de norte a sul do país, chegando também a Portugal.

Integrariam esse cancioneiro de Auta de Souza os seguintes poemas musicados: Caminho do sertão, Teus anos, Desalento, Agonia do coração, Ao cair da noite, Ao luar, Meu pai, Nunca mais, Olhos azuis, Palavras tristes, Regina Coeli, À Eugênia, Meu sonho, Rezando (Róseo Menino).

Fonte: GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Vida e obra da poeta potiguar Auta de Souza (1876-1901). Disponível no link. (acessado 14.5.2013).

POEMAS PSICOGRAFADOS E ORIENTAÇÕES ESPIRITUAIS

Além de seus poemas e de seu cancioneiro, Auta de Souza é conhecida também como uma grande mentora espiritual. Para os seguidores do espiritismo kardecista, que no Brasil hoje somam aproximadamente um milhão e meio de praticantes, a poeta é tida como um espírito superior que atuaria no “planoceleste” enquanto mentora e protetora espiritual.

Fonte: GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Vida e obra da poeta potiguar Auta de Souza (1876-1901). Disponível no link. (acessado 14.5.2013).

Homenagens

Em 1936, a Academia Norte-Riograndense de Letras dedicou-lhe a poltrona XX, como reconhecimento à sua obra.

Em 1951, foi feita uma lápide, tendo como epitáfio versos extraídos de seu poema Ao Pé do Túmulo: “Longe da mágoa, enfim no céu repousa/Quem sofreu muito e quem amou demais.” 

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Caminho do Sertão

 

(A meu irmão João Cancio)

Tão longe a casa! Nem sequer alcanço

Vê-la através da mata. Nos caminhos

A sombra desce; e, sem achar descanso,

Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos!

 

É noite já. Como em feliz remanso,

Dormem as aves nos pequenos ninhos…

Vamos mais devagar… de manso e manso,

Para não assustar os passarinhos.

 

Brilham estrelas. Todo o céu parece

Rezar de joelhos a chorosa prece

Que a Noite ensina ao desespero e a dor…

 

Ao longe, a Lua vem dourando a treva…

Turíbulo imenso para Deus eleva

O incenso agreste da jurema em flor.

– Auta de Souza, in “Horto”, 1900.

VEJA TAMBEM NO TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.com.br/2011/04/04/a-historia-do-jasmineiro-de-auta-de-souza-contada-por-palmyra-wanderley/

 

UMA VISITA AO RIO GRANDE DO NORTE

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Jornal “A República”, Natal-RN, 3 de dezembro de 1919

Manuel de Oliveira Lima foi um ilustre escritor, crítico, embaixador do Brasil em diversos países, professor-visitante na Universidade de Harvard e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL). Em novembro de 1919 ele esteve em terras potiguares e o blog TOK DE HISTÓRIA traz na íntegra o interessante relato do próprio Oliveira Lima sobre essa visita.

NOTA – Este material foi originalmente publicado no site http://www.consciencia.org/

É um ótimo sinal quando se chega a uma terra que não é uma terra de arte como a Itália ou a Grécia, ou uma terra de incomparáveis belezas naturais como o Japão ou a Suíça, e as coisas que há a mostrar ao estrangeiro são escolas e hospitais.

Quer isto dizer que essa terra acalenta as preocupações sociais sem as quais qualquer comunidade se torna improgressiva e infecunda do ponto de vista humano. Como o Rio Grande do Norte parece precisamente que nutre e dá, pelo que verifiquei, expansão a semelhantes preocupações, sendo isso tanto mais de admirar quanto é um dos Estados mais pobres da Federação.

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Manuel de Oliveira Lima – Fonte – http://www.fernandomachado.blog.br

É clássica a pilhéria de que os vencimentos dos seus empregados públicos se pagavam em parte com jerimuns, cuja abundância era notável ao lado da escassez do numerário. As circunstâncias decerto mudaram: os jerimuns devem ter diminuído ao ponto que os não vi e achei pouco delicado perguntar por eles, e o numerário, se não cresceu muito, tem sido aproveitado com tamanha felicidade que tem chegado para dotar-se o Estado de boas escolas, entre elas notáveis grupos escolares, e atender-se a serviços de assistência aos doentes, aos loucos e aos desvalidos.

Ao aproximarmo-nos de Natal, ao largo da linha negrft dos arrecifes, antes de dobrarmos a fortaleza dos Reis Magos, inofensiva hoje mas sempre pitoresca, que a patina secular embeleza e o senso da tradição faz conservar, e de subirmos o amplo Potengi, avista-se no cimo de um morro, a cavaleiro da praia onde se quebram as ondas e com um horizonte de colinas cobertas de uma vegetação escura, um grupo de construções. São o hospital, a cadeia e o asilo, o primeiro e o último já remodelados de maneira a preencherem adequadamente os seus fins.

O desvelo manifestado por semelhantes assuntos de pedagogia e de assistência honra o espírito público dos dirigentes. Mas também os dirigidos se distinguem pela sua cordura e urbanidade.

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Coleção TOK DE HISTÓRIA

Tem-se a impressão de lidar com gente boa, de sentimentos mais pacíficos, e de fato o sertão do Rio Grande do Norte destoa dos sertões vizinhos em não apresentar essa feição peculiar do banditismo. A população acusa, portanto, uma superior disposição moral. Por quê? Não saberia dizê-lo, nem me deram disso a razão. O Rio Grande do Norte tem ainda falta de sociólogos. A superior mentalidade feminina que observei deverá ser, antes do que causa, resultado daquela condição do meio.

É curioso verificar esse maior desenvolvimento intelectual da mulher, que se sente como se sente que já vem de longe o favor que merece o ensino. A primeira formação espiritual da notável escritora que foi Nísia Floresta fez-se no agreste de Papari, desabrochando das brenhas essa flor de civilização. Outras senhoras continuam e zelam semelhante tradição, que dota a inteligência do seu sexo de uma maior independência e de uma maior amplidão. A Escola Doméstica de Natal, da qual não é exagero quanto se disser de bom que não tem sua parelha no Brasil, nem mesmo noutros países, havia forçosamente de adaptar-se ao meio, nele se sentido à vontade.

Ouvi que exerceram grande influência em Natal na sua atividade de educadoras duas americanas, Miss Reed e Miss Porter, se não me engano. Miss Leora James, a diretora incomparável da Escola Doméstica, que pela organização e pela disposição parece um pedaço dos Estados Unidos encravado no Rio Grande do Norte, não faz mais do que seguir-lhes as pegadas na esfera que lhe proporcionou a lúcida iniciativa do Governo.

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Alunas da Escola Doméstica de Natal em uma aula na horta do educandário – Fonte – http://www.skyscrapercity.com

A educação americana é útil pelo seu espírito prático adequado às vicissitudes da vida, pelo bom humor que preside ao seu desenvolvimento, por uma tonalidade que não é apenas jovial mas altamente eficiente. Considero-a vantajosa para a nossa mentalidade mais formalista e mais pautada pelas convenções. Nos discursos pronunciados na festa literária pelas alunas graduadas da Escola Doméstica pode perfeitamente notar-se esse influxo americano. Nem sentimentais, nem bombásticos, esses discursos, por elas elaborados, foram todos repassados de um humour que se casa perfeitamente com a saudade descrevendo um, com a franqueza da despedida, episódios da vida escolar, esboçando outro com uma ponta de malícia mas sem maldade os perfis dos mestres com os seus cacoetes, dando outro a conhecer um testamento muito espirituoso, formulando ainda outro com graciosa ironia o programa que por magia cada uma dessas moças se traçara para a existência. Esta última produção é da aluna Isabel Dantas, que teve o prêmio de viagem.

A Escola Doméstica não tem desviado sua atenção do fim essencial da sua ação, que é ajudar o progresso social da comunidade, dando às moças, que serão amanhã mães de família, além dos conhecimentos gerais indispensáveis à vida da inteligência, o preparo necessário para desempenharem conscientemente, isto é, cientificamente, as diferentes categorias de atividade em que até aqui procediam empiricamente, quer dizer, instintivamente. Assim é que para a aula de puericultura existe anexa uma creche com seis crianças, de dois dias a cinco anos, cuja evolução fisiológica e psicológica pode, portanto, ser diretamente observada.

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Oliveira Lima assistiu uma tradicional vaquejada, com vaqueiros trajando sua característica vestimenta de couro, como apresentada nesta foto do início do século XX. Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

A essa chamada e verdadeira medicina do lar agregam-se cursos que debalde se procurariam noutras instituições: o de educação social, a cargo de Henrique Castriciano; o de educação estética, comportando a decoração da casa, uma arte simples e encantadora mas ainda rara no nosso meio; de direito usual, para que as mulheres não ignorem nem os seus direitos civis, nem o que seja uma hipoteca ou outra qualquer transação sobre propriedade, assim evitando que pela vida adiante venham a ser logradas nos seus bens.

Não há por enquanto na Escola um campo de tennis. Entretanto, o sport não é alheio ao belo sexo do Rio Grande do Norte: pela mais gentil das deferências, baixei a terra numa embarcação tripulada por adestradas remadoras do Clube Náutico feminino. Outros desportos florescem: não posso dizer se também o football entre os homens. É mais que provável, se bem que sem o furor que noutro Estado do norte divide a sociedade local em campos irreconciliáveis, sendo por exemplo vedado ao membro ou partidário de um dos dois clubes fazer negócio com o do outro clube, extremando-se o comércio nesses antagonismos e chegando não raro os desaguisados de opinião à pancadaria.

Ao sertão não alcançaram, porém, ainda esses exercícios físicos americanos e o seu desporto principal continua a ser a vaquejada nacional. Assisti a uma na Fazenda Santa Rita, em que tomaram parte oitenta e tantos artistas, na maior parte profissionais vestidos de couro — a vestia, o dianteiro, as perneiras, o chapéu de abas e as meias-luvas — alguns, porém, amadores, como um negociante da Serra Caiada que me confessou que dava a alma por essa corrida em disparada atrás do animal que o cavaleiro trata de segurar pela cauda e desse modo derrubá-lo, para o que se requer força e agilidade. Já noutras ocasiões tinha partido um braço, uma perna e uma clavícula; concertara tudo e lá estava numa das filas de cavaleiros, esperando a saída do bicho do curro.

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Antiga sede da Escola Doméstica de Natal – Fonte – tribunadonorte.com.br

Se já não tivesse quatro filhos, não perdia uma, rematou. E eu dava-lhe razão, porque a vaquejada deve ali operar como a tourada no espírito dos que se criaram assistindo a elas e interessando-se por quanto lhes diz respeito.

A Escola Doméstica de Natal representa uma soma incalculável de esforço e de tenacidade. Não faltavam preconceitos a disputar-lhe o passo. Foi ela combatida como pouco pudica por ter uma seção de puericultura, a qual entretanto é de natureza a prestar relevantes serviços, ajudando a cruzada do saneamento da população nacional, empreendida por alguns espíritos previsores e generosos. Nós sabemos quanto é avultada no país a mortalidade infantil e que a razão disto está mais que tudo na falta, não de carinho, mas de cuidados inteligentes dados à alimentação e à higiene das crianças.

Ciência ou arte, a puericultura deve adquirir-se como qualquer outra, e é como se procede hoje nos Estados Unidos, que tão grande atenção estão prestando a esse gênero de questões.

A Escola foi ainda increpada de fútil por pretender ensinar a coser, a lavar e engomar, a cozinhar, a fabricar manteiga e queijos, a tratar de galinhas, a cuidar de jardins e de hortas. Ora, um minuto de reflexão basta para indicar quanta utilidade envolve tudo isso. Ensina-se a costura e a cozinha naquele estabelecimento de instrução com o máximo do gosto e o máximo da economia. No Brasil os pobres sofrem de falta de alimentação substancial mais do que na Europa: em compensação, porém, os que podem gastar, e mesmo os remediados, comem demasiado, considerando uma mesa opípara ou pelo menos muito farta a primeira das condições do conforto. O nosso jantar comum de família compõe-se de dois e três pratos de meio, quando um bastaria, com uma sopa e uma sobremesa. E o desperdício no preparar iguala o desperdício no consumir. O banquete que me foi oferecido pela Escola Doméstica, todo de execução das alunas graduadas, auxiliadas pelas do segundo ano, consistia numa boa sopa, um peixe excelente, galinha com salada de legume e sorvete de abacaxi.

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Henrique Castriciano de Souza foi um dos que estiveram junto de Oliveira Lima na sua visita ao Rio Grande do Norte – Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

As alunas aprendem a compor o seu orçamento culinário como outro qualquer e a respeitarem esses orçamentos: assim fizessem os governos. Os vestidos das graduadas, para a festa da formatura, por elas próprias executados, custaram, fazenda e enfeites, 47$000 cada um. Também para os trajes se faz orçamento, o que constitui uma magnífica promessa de tranquilidade nos casais. A modéstia é de rigor na vestimenta escolar. Trajam todas igualmente de branco, sem sacrifício da elegância compatível com a simplicidade, e não usam joias, para não estabelecer diferenças de fortuna assinalando-as por esse meio.

Compreende-se a vantagem que o fabrico dos laticínios pode emprestar a muitas raparigas, filhas de criadores, cujas manadas de vacas dão muito mais leite do que podem consumir suas famílias e que só aproveitam as sobras em uma espécie tradicional de requeijão. A avicultura é outra ciência de grandes benefícios, como também a pomicultura e a horticultura. Tudo isso, aliás, distrai dos trabalhos puramente mentais e varia o programa escolar, contribuindo para completar uma educação feminina. A vida no internato faz-se assim tão aprazível, dada também a suavidade da direção, a qual não exclui a disciplina, apenas trata de torná-la consciente, que não há por assim dizer aluna que não deixe a escola com vivas saudades da atmosfera de bem-estar e de cordialidade que em redor delas soube criar a ótima educadora a quem em boa hora a Liga do Ensino confiou semelhante tarefa.

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Na época da visita de Oliveira Lima a Natal, a cidade tinha uma população com pouco mais de 30.000 habitantes. Na foto vemos o então Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

Nessa vivenda adrede construída, em boa parte segundo as indicações da mesma diretora, passa-se uma existência muito mais de família que de colégio, na velha acepção do termo, cumprindo cada qual seus deveres com satisfação e não se regateando as ocasiões de agradável intercurso, participando as alunas da administração comum, vivendo portanto do espírito da casa que é de método ao mesmo tempo que de liberdade, e é sobretudo de autonomia no pensar e no sentir. Pelo que pude ver, as alunas adquirem desembaraço sem contraírem desenvoltura.

A festa da Escola terminou por uma alegoria à paz, a qual expulsa do palco a guerra, enquanto os Estados Unidos e o Brasil se unem num amplexo de aliança. Os educadores norte-americanos, longe de quererem suscetibilizar o sentimento patriótico das nações da América do Sul, fazem o que está ao seu alcance para avivá-lo, no interesse mesmo da cooperação e solidariedade visadas. A sua ação redunda igualmente na disseminação do espírito associativo, que faz parte integrante do feitio americano. A seção culinária da Escola Doméstica de Natal já está ensaiando uma espécie de “extensão” entre as famílias; mediante o preparo, pelas matronas que aderem aos clubes gratuitos, de conservas de legumes e frutas com que aproveitar o produto de umas estações em outras, também de bolos e doces.

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Oliveira Lima em seu local de trabalho – Fonte – http://www.cafecolombo.com.br

De tudo quanto me foi dado observar na minha rápida visita ao Rio Grande do Norte, eu trouxe a impressão consoladora para um espírito brasileiro de que no seu governo e nos agentes que lhe personificam a ação existe mais pronunciado do que noutros pontos do território nacional o sentimento do dever cívico que se desdobra no dever humanitário para com os nossos semelhante. O fato deixará de parecer surpreendente a quem tiver em mente que o vulto histórico para quem vão todas as simpatias locais, todo o culto da comunidade, foi não um agitador ou um demagogo, mas um homem essencialmente de caráter.

O Padre Miguelinho foi um sacerdote instruído e meigo, professor querido dos seus discípulos e espírito não só ilustrado como preocupado de conciliação e de concórdia; mas o que sobretudo o torna grande entre as vítimas generosas da revolução de 1817 foi a sua inquebrantável lealdade para com os companheiros de revolução e sobretudo para com a sua fé política. Nessa figura tocante, que resistiu ao apelo à vida que lhe estendiam, é que se concentra a devoção patriótica dos rio-grandenses do norte. O influxo de tal devoção não podia deixar de ser salutar para uma sociedade.

Parnamirim, dezembro de 1919

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971. Através do link – http://www.consciencia.org/uma-visita-ao-rio-grande-do-norte

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Fonte – pt.wikipedia.org

Manuel de Oliveira Lima (Recife, 25 de dezembro de 1867 – Washington, Estados Unidos, 24 de março de 1928).

Oliveira Lima começou a trabalhar como jornalista com catorze anos de idade. Em seus artigos constantemente criticava o domínio das oligarquias sobre a recém-fundada República e por isso ganhou fama de monarquista.

Formou-se em letras na Faculdade de Lisboa em 1887, e em 1890 começou a trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Atuou como diplomata em Portugal, Bélgica, Alemanha, Japão e Estados Unidos.

Foi encarregado de negócios da primeira missão diplomática brasileira no Japão. Em 1901 deu parecer contrário ao projeto brasileiro de recebimento de imigrantes japoneses. Escreveu então ao Ministério das Relações Exteriores alertando sobre o perigo de o brasileiro se misturar com “raças inferiores”.

Chegou a ser falado para a embaixada brasileira em Londres mas o Senado não aprovou sua indicação. Oliveira Lima era malvisto pelo governo britânico por defender que o ideal de que o Brasil permanecesse neutro na Primeira Guerra Mundial e por sua proximidade intelectual com a Alemanha.

Também fez inimigos dentro do país, em parte por não aprovar a atitude expansionista da República em situações como a anexação do Acre realizada pelo Barão do Rio Branco. Ele dizia que o território nacional já era vasto e muito mal fiscalizado e que a verdadeira expansão do Brasil só viria através do comércio.

Oliveira Lima sempre gostou de ler e escrever. publicou numerosas obras de história, entre elas: Memória sobre o descobrimento do BrasilHistória do reconhecimento do ImpérioElogio de F. A. VarnhagenNo JapãoSecretário Del-ReiDom João VI no Brasil. Sobre esta última obra de história que Oliveira Lima publicou é importante destacar sua importância para o rearranjo da historiografia brasileira, pois ela é considerada como sendo um clássico da historiografia nacional segundo o Lima um intelectual que têm variadas conferências sobre a formação da nacionalidade brasileira. A ilustre obra “Dom João VI no Brasil” é considerada como sendo uma das grandes obras do autor Oliveira Lima. Essa avaliação é feita por muitos estudiosos e autores relacionados a questões significativas sobre o Brasil. Alguns autores e escritores como Gilberto Freyre, Octavio Tarquínio de Souza e Wilson Martins já tiveram a oportunidade de escrever sobre os relatos de Oliveira Lima contidos nesta obra de grande prestígio para a historiografia brasileira. 

Em 1913 quando já morava nos Estados Unidos, Oliveira Lima doou sua descomunal biblioteca à Universidade Católica de Washington por temer que a coleção não recebesse os cuidados adequados no Brasil. Impôs a condição de que ele próprio fosse o primeiro bibliotecário e organizador do acervo, função que desempenhou por quatro anos.

Em 1924 foi apontado professor honorário da Faculdade de Direito do Recife.

Morreu em 1928 e foi enterrado no cemitério Mont Olivet, Washington. Em sua lápide não consta seu nome, mas a frase “Aqui jaz um amigo dos livros“.

FONTE – https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Oliveira_Lima

MAIS SOBRE OLIVEIRA LIMA – http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Oliveira+Lima&ltr=o&id_perso=413

SOBRE O SITE http://www.consciencia.org/

Este site é um espaço virtual de estudo, pesquisa e ensino. Tradicional site de filosofia, que ampliou o leque temático para abranger outras ciências humanas: História do Brasil, História Geral, Literatura, Antropologia, Sociologia, Linguística e áreas afins. Foi criado em 1997, pelo filósofo Miguel Lobato Duclós (1978-2015). Segundo seu pai, Nei Duclós, o trabalho desenvolvido por Miguel Lobato Duclós proporcionou a criação de um vasto acerto virtual de conhecimento, um trabalho pioneiro num país onde a universidade ainda possui um forte preconceito contra a internet. O espaço virtual consciência.org atrai milhares de estudantes e é responsável pela introdução à Filosofia e atualização do conhecimento para mais de uma geração de alunos, que se mostram admirados e agradecidos, como atestam as inúmeras cartas recebidas e publicadas neste website.

O blog TOK DE HISTÓRIA homenageia Miguel Lobato Duclós como verdadeiro pioneiro da democratização da informação intelectual em espaço virtual.

 

 

O ESQUECIDO REPENTISTA POTIGUAR JOÃO DA TAPITANGA

Curitiba no início do século XX - Fonte - curitibanosdasilva.blogspot.com
Curitiba no início do século XX – Fonte – curitibanosdasilva.blogspot.com CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR

Homem de vida curta, mas que realizava sua arte com talento e fez muito sucesso no Paraná

Autor – Rostand Medeiros

Sou nascido e vivo em um pequeno estado nordestino chamado Rio Grande do Norte. Aqui é uma terra boa, onde a natureza foi muito benéfica e criou paisagens incríveis e maravilhosas. É também uma terra de gente amiga e onde não é difícil surgir pessoas com muito talento para realizar muitas coisas, principalmente para as artes.

Mas, infelizmente, como tudo na vida sempre possui dois lados, esses talentosos artistas normalmente são sempre vistos em segundo (talvez terceiro? Ou quarto? Quinto?) plano por vários setores de nossa sociedade. Estes artistas são muitas vezes marginalizados, desprezados e esquecidos em sua própria terra. Por vezes o melhor caminho para estes potiguares talentosos vencerem através de sua arte é saindo fora desta terra maravilhosa.

Dizem que na atualidade existem mais facilidades para nossos artistas conquistarem seu lugar ao sol por aqui mesmo. Não sei se esta informação é correta, sei que pesquisando sobre a nossa história em jornais antigos disponíveis na internet, não é difícil encontrar dados sobre pessoas que deixaram nosso chão para tentar vencer em terras distantes.

Um destes foi João da Tapitanga… 

No Sul

Em 1871 Natal era uma esquecida capital de província do Império do Brasil, de vida muito tranquila, onde moravam cerca de 20.000 almas (equivalente atualmente em número de habitantes a cidade potiguar de Monte Alegre). No dia 8 de março nascia João, filho de Francisco I. Emereciano China, membro de uma tradicional família que vivia em Natal, onde não faltavam renomados médicos e até um deputado estadual[1].

Curitiba início do século XX - Fonte - Wikipédia
Curitiba início do século XX – Fonte – Wikipédia

Eu nada encontrei sobre a infância de João Emereciano China, sua adolescência, detalhes sobre sua família, seus estudos e o despertar para a arte do repente. Mas podemos apontar com certa tranquilidade, principalmente através do que deixou escrito, que João China teve uma boa educação. Além disso, sobre estes primeiros anos deste repentista, existe documentação que comprova que João era empregado dos Correios e Telégrafos, na função de “praticante de 2ª classe”[2].

Em 1893, aos 22 anos, João China veio viver em Curitiba, a bela capital paranaense, aonde chegou transferido pela repartição pública que trabalhava. Logo este natalense se envolveu em um sangrento conflito de sérias proporções no Paraná, que marcou a história do Brasil.

Em Meio a Guerra

Nesta época Curitiba era uma cidade menor que Natal, com cerca de 11.500 pessoas vivendo por lá[3]. Muitos dos que ali moravam eram imigrantes alemães, italianos, poloneses e ucranianos, que influenciavam a sociedade, a cultura e a economia da capital paranaense. Mesmo convivendo entre pessoas com maneiras de falar tão distintas e aspectos bastante diferenciados aos encontrados em Natal, sabemos que João China não sentiu muitas dificuldades em se adaptar a nova localidade e logo começou a fazer várias amizades entre os curitibanos.

Maragatos em Santa Catarina Prefeitura de Braço do Norte - SC - Fonte - http://ecomoveiogente.blogspot.com.br/2012/09/a-revolucao-federalista.html
Maragatos em Santa Catarina
Prefeitura de Braço do Norte – SC – Fonte – http://ecomoveiogente.blogspot.com.br/2012/09/a-revolucao-federalista.html

Ativo politicamente, se colocou ao lado do marechal Floriano Vieira Peixoto, presidente do Brasil durante a chamada Revolução Federalista.

Este sério conflito, que se estendeu de 1893 a 1895, foi travado entre os partidários de dois oligarcas gaúchos: de um lado, os federalistas liderados por Gaspar Silveira Martins (conhecidos como maragatos e de lenço vermelho amarrado no pescoço como distintivo); de outro, os republicanos (chimangos ou pica-paus e identificados pelo lenço branco), seguidores do positivista Júlio de Castilhos.

Os federalistas defendiam a instalação de um regime parlamentarista nos moldes do que existiu no Segundo Reinado. Já os republicanos defendiam um presidencialismo forte, centralizador, no estilo do governo de Floriano Peixoto. O confronto ultrapassou as fronteiras gaúchas, estendendo-se até Santa Catarina, Paraná e até no Uruguai [4].

Fotografia de 1894 é de um prédio em ruínas, durante a Revolta da Armada no Rio - Fonte - http://www.revistadehistoria.com.br/secao/na-rhbn/ruinas-em-flashback
Fotografia de 1894 é de um prédio em ruínas, durante a Revolta da Armada no Rio – Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/na-rhbn/ruinas-em-flashback

Em setembro de 1893, paralelo aos conflitos no sul do país, estourou no Rio de Janeiro, mais precisamente na Baía de Guanabara, a Revolta da Armada. Seus principais líderes eram os almirantes Saldanha da Gama e Custódio de Mello, que comandaram a tomada de navios de guerra e bombardearam a então Capital Federal. Na sequência Custódio de Mello seguiu para o sul com seus navios, unindo-se aos revoltosos da Revolução Federalista. Na sequência foi criado um governo provisório para os revoltosos na ilha do Desterro, Santa Catarina.

Floriano Peixoto ficou em uma situação difícil, pois além de ficar impedido de deslocar tropas por mar para o sul do país, ao mesmo tempo precisava defender o Rio de um ataque por terra.

Quando ocorreu o ataque dos federalistas estes conseguiram dominar boa parte do Rio Grande do Sul e Santa Catarina e estabeleceram planos de derrotar o Paraná. A ideia era seguir depois para tomar São Paulo e alcançar o Rio. Em território paranaense os revoltosos visaram dominar por mar a cidade de Paranaguá, vindos de Santa Catarina tomariam a cidade de Tijucas do Sul e a tomada da localidade de Lapa deixaria Curitiba indefesa.

Coronel Dulcídio (militar com menor estatura) em pé, atrás de uma metralhadora Nordenfelt - Fonte - Wikipédia
Coronel Dulcídio (militar com menor estatura) em pé, atrás de uma metralhadora Nordenfelt – Fonte – Wikipédia

Desde o início do Império, a região de Curitiba, sempre se colocou ao lado do poder central, funcionando como uma barreira contra revoluções que vinham do sul e o Paraná se preparou para enfrentar este novo problema. O coronel Cândido Dulcídio Pereira, Comandante do Regimento de Segurança, atual Polícia Militar do Paraná, criou uma nova unidade militar que foi denominada Batalhão Patriótico 23 de outubro e colocou seu efetivo à disposição do Governo Federal. O comando da unidade ficou a cargo de Domingos Virgílio do Nascimento, um antigo aluno das Escolas Militares do Rio de Janeiro e Porto Alegre, mas também conhecido como jornalista, poeta e autor do hino do Paraná. Entre os civis incorporados a este batalhão, com a patente de tenente, estava o repentista potiguar João da Tapitanga.[5]

Informações apontam que o Batalhão Patriótico 23 de Novembro foi colocado à disposição das Forças Federais, sendo esta unidade reunida ao 8º Regimento de Cavalaria e o 17º Batalhão de Infantaria do Exército, todos sob o comando do general Francisco de Paula Argolo. Estas unidades militares receberam ordens para avançar sobre a ilha de Desterro, onde se concentravam os federalistas e os marinheiros sublevados da Revolta da Armada.

Devido o iminente cerco por outras colunas móveis, o general Argolo decidiu recuar as tropas para Rio Negro, no Paraná. Esse procedimento desagradou Floriano Peixoto, que ordenou a Argolo que repassasse o comando das tropas para o coronel Antônio Ernesto Gomes Carneiro, com ordens de reter ao máximo os revoltosos no Paraná, em uma linha de defensiva concentrada na cidade de Lapa, até receber reforços de São Paulo. Mas os reforços paulistas nunca chegaram.

Entrada dos federalistas em Curitiba, Alm. Custódio de Mello e Gal. Gumercindo Saraiva Acervo do Museu Paranaense
Entrada dos federalistas em Curitiba, Alm. Custódio de Mello e Gal. Gumercindo Saraiva
Acervo do Museu Paranaense

Curitiba estava sem exército e governantes, só a Lapa estava guarnecida. Carneiro e suas tropas foram cercadas na cidade, em um dos mais célebres episódios da vida militar brasileira, conhecido como Cerco da Lapa. A cidade foi continuamente bombardeada por 28 dias, entre 15 de janeiro e 11 de fevereiro de 1894 e a luta seguiu ferrenha pelas ruas da cidade, onde restavam apenas escombros. Logo após a rendição e desarmamento dos derrotados, começaram as degolas. Curitiba seria invadida pelos maragatos no dia 20 de janeiro, que permaneceram na cidade até o dia 26 de abril, num total de quase 100 dias.

Com o tempo que conseguiu com a resistência no Paraná, Floriano pôde adquirir armamentos e navios de guerra nos EUA e com eles derrotar Saldanha da Gama. Os comandantes maragatos resolveram voltar ao sul, alguns deles refugiando-se no Uruguai e Argentina. Este conflito deixou um saldo de cerca de 10.000 mortes[6].

No meio dessas movimentações militares, segundo os jornais da época, o tenente, depois promovido a capitão fiscal, João da Tapitanga esteve em ação em fins de 1893, na região de Villa Tamandaré e esteve no Cerco da Lapa, mas não teve a cabeça cortada.[7]

O Repentista Curitibano

Aparentemente a participação militar de João da Tapitanga na Revolução Federalista o colocou em um patamar extremamente positivo junto a sociedade curitibana. Este patamar se ampliou com a sua arte, seu jeito tranquilo, carisma e sua boêmia.

Cartão Postal - Setor HIstórico de Curitiba no início do século XX. Acervo Fundação Cultural de Curitiba
Cartão Postal – Setor HIstórico de Curitiba no início do século XX. Acervo Fundação Cultural de Curitiba

Um dos paranaenses de renome que conviveram com o potiguar foi Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo, então Procurador-Geral do Estado, escritor, um dos fundadores e professores da Universidade do Paraná (atual UFPR). Azevedo Macedo e sua esposa Clotilde Portugal Macedo, comentaram em 1913 que João da Tapitanga era considerado um jovem poeta talentoso, que versejava com uma espontaneidade extraordinária e era tido como um homem de maneiras simples e honesta[8].

Era conhecido simplesmente e carinhosamente pelos amigos curitibanos como “Tapi”. Boêmio, tinha no álcool um grande amigo e o seu maior inimigo, que inclusive o levou a demissão dos Correios e Telégrafos. Não era difícil encontrá-lo na Confeitaria Bube, verdadeiro areópago e centro da boemia curitibana, localizado na antiga Rua das Flores, depois Rua 15 de novembro, cujo proprietário, Roberto Bube, lhe havia presenteado com uma cadeira cativa, pois atraia os clientes.

Gostava de participar de reuniões politicas, sempre se colocando como republicano fiel e seguidor ardoroso do marechal Floriano Peixoto. Não era raro nestas reuniões que Tapitinga proferisse discursos arrebatadores com seu forte sotaque nordestino (ou nortista, como chamavam na época), repletos de entusiasmo, recebendo aplausos dos presentes e destaque na imprensa curitibana[9].

Para Azevedo Macedo, o poeta João da Tapitanga chegou ao Paraná já homem feito, com seu espirito já formado e havia estudado longe de Curitiba, mas o que ele trouxe de sua terra natal, a sua arte do repente, impressionou os curitibanos. Chamava atenção quando alguém pedia a Tapitanga um verso, ou lhe davam um mote, que ele respondia sem pestanejar cvom uma grande quantidade de versos “cheio de imagens arrojadas, em redondilha menor”, como registrou Azevedo Macedo.

Detalhe da parte inicial da reportagem produzida  por Euclides da Mota Bandeira sobre Tapitanga em 1926 e publicada em Natal.
Detalhe da parte inicial da reportagem produzida por Euclides da Mota Bandeira sobre Tapitanga em 1926 e publicada em Natal.

Vale ressaltar que nos jornais que li sobre este natalense, raramente era tratado de poeta, sendo normalmente apresentado como REPENTISTA.

Outro contemporâneo de João da Tapitanga, pessoa de renome em Curitiba, foi Euclides da Mota Bandeira e Silva, jornalista, poeta e membro da Academia Paranaense de Letras. Este considerava os repentes do potiguar algo que pelo sul era pouco conhecido e chamava atenção. João da Tapitanga deixou em Bandeira o registo de ser um “incorrigível boêmio, perdulário de rimas e de verves, o qual foi durante alguns anos o bardo popular da cidade”. Comentou também que ele era totalmente autêntico, que “não se prestava a digressões acadêmicas, recheadas de complexidades psicológicas e coisas campanudas sobre escolas literárias” e que “escreveria para gente simples”. [10]

Euclides Bandeira trás a informação que o repentista natalense trabalhava, ou como ele mesmo dizia, “ganhava dinheiro quando este lhe faltava”, em jornais curitibanos, ou passando um tempo como um barnabé que não se preocupava muito com a folha de ponto na Secretária do Interior do Paraná e ganhando uns cobres produzindo folhetins com versos de sua lavra. Um deles, intitulado “Alzira”, fez sucesso e chamou atenção dos curitibanos em 1896, cujo um dos trechos foi assim escrito;

“Alzira, fitando o espaço

Cheios de pontos de luz,

E as mãos unidas em cruz

Sobre o pequeno regaço,

 

Pede ao azul transparente,

Onde os astros ascendem,

Que guarde a alma inocente

Das flores que já morreram…”

João da Tapitanga  era um homem típico do final do século XIX, em um período de comunicações limitadas, mas não era distante dos acontecimentos que ocorriam no exterior. Fez versos e produziu folhetos sobre a Guerra de Independência Cubana de 1895, a vitória do imperador etíope Menelik II contra tropas italianas em Ádua no ano de 1896, ou sobre a Guerra dos Bôeres, na África do Sul.

Em 1897 o 39° Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro partiu de trem de Curitiba em direção ao porto de Paranaguá, seguindo depois para a Bahia de barco, com a missão de participar da Campanha de Canudos. Em meio à multidão delirante que assistia à partida dos militares, Tapitanga, com seu sotaque forte nordestino (algo que nunca perdeu e nem escondia), proferiu um inflamado discurso em prol dos soldados e foi intensamente ovacionado. 

Esquecido

O repentista natalense casou com uma jovem prendada e humilde chamada Jesuína Silva da Cunha e tiveram um filho e duas filhas, cujos nomes na época não eram nada convencionais; Jesoão, Joina e Transvalina. Morava em uma casa alugada na Rua da Assembleia, atual Alameda Dr. Muricy, centro de Curitiba[11].

Um "causo" de joão da Tapitanga em Curitiba - Gazeta de Notícias, 15 de dezembro de 1935
Um “causo” de joão da Tapitanga em Curitiba – Gazeta de Notícias, 15 de dezembro de 1935

Mesmo com informações limitadas, percebemos um João da Tapitanga batalhador e desejando melhorar de vida, mas com dificuldades. Através de pesquisas soubemos que este natalense tentou manter uma escola na chamada Colônia de Agua Verde, hoje um bairro de Curitiba. Esta área, então periférica, era pouco assistida pelas autoridades e os que ali viviam recorriam ao uso de abaixo-assinados para reclamarem, denunciarem e suplicarem pelas mais diversas melhorias na sua região. Um destes abaixo-assinados, produzido em 27 de fevereiro de 1896, foi enviado ao então govenador paranaense, José Pereira Santos Andrade, solicitando a subvenção para uma escola particular que era mantida pelo professor João da Tapitanga desde o mês de janeiro daquele ano. Na tese de doutorado “A escolarização dos imigrantes e de seus descendentes nas colônias italianas de Curitiba, entre táticas e estratégias de italianità e brasilitá (1875-1930)”, apresentada na Universidade Federal do Paraná, pela pesquisadora Elaine Cátia Falcade Maschio, temos a transcrição deste abaixo-assinado; 

“Neste sentido, Nós abaixo assignados, moradores na Colônia Água Verde, a qual não tem actualmente escola nem subvencionada pelo Estado nem pública ou contractada pelo mesmo, mas onde há um ellevadissimo número de meninos de ambos os sexos, vimos confiadamente pedir a VEª para que seja subvencionado o estabelecimento de ensino n’esta colônia dirigido pelo cidadão João da Tapitanga desde o princípio de Janeiro último a contento de todos, e onde já se vê o ellevado numero de alumnos que se verifica dos mappas junctos fornecidos pelo mesmo cidadão.”

O repentista natalense aparentemente continuou buscando melhorar sua condição financeira e o futuro de seus familiares. No primeiro semestre de 1897 ele participou de um concurso para o cargo “vitalício de ofício privativo de Escrivão de Casamentos”. Tapitanga concorria com um certo Luciano José Garcia e perdeu a vaga[12].

Pequeno trecho de um verso de João da Tapitanga sobre a sorte, ou a falta dela.
Pequeno trecho de um verso de João da Tapitanga sobre a sorte, ou a falta dela.

Jornais apontam que nos últimos anos de sua vida a sua produção em termos de poesia declinou e o nome do natalense começa a desaparecer dos jornais curitibanos.

Sobre a morte do repentista curitibano nascido em Natal
Sobre a morte do repentista curitibano nascido em Natal

João da Tapitanga faleceu de uma febre, provavelmente adquirida indiretamente das mazelas advindas do álcool, na noite de 28 de setembro de 1901, aos 31 anos de idade. Foi enterrado no cemitério municipal de Curitiba e sua morte foi extensamente noticiada na imprensa local. Na edição de 30 de setembro do jornal “A República” de Curitiba a um extenso necrológico na 1ª página sobre a vida deste repentista potiguar. Vale ressaltar que sua esposa Jesuína ficou em uma situação de extrema pobreza, que foram socorridos pelos amigos que levantaram fundos através para a compra de uma casa. Seu nome foi sendo aos poucos esquecido em Curitiba.

Sua obra ficou dispersa, não foi reunida pelos amigos e parentes. João da Tapitanga jamais retornou ao Rio Grande do Norte e, aparentemente, não voltou a manter contato com a sua família em Natal. Em uma correspondência datada de 23 de março de 1932, a pedido da família de Tapitanga em Natal, o poeta potiguar Henrique Castriciano solicita ao critico literário e ficcionista curitibano José Cândido de Andrade Muricy, alguma informação do repentista potiguar. Não sabemos se houve alguma resposta[13].

 NOTAS


[1] Ver jornal “A República”, Natal, edição de 21 de agosto de 1926, página 1.

[2] Ver jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 22 de julho de 1891, página 1. Neste jornal encontramos o parecer positivo do “Ministro da instrução pública”, referente a um pedido feito por João China para alterar oficialmente seu nome para João da Tapitanga. Sabemos que o termo em tupi para pedra vermelha é Itapitanga, ou Tapitanga, e que no atual município catarinense de Balneário Barra do Sul existe uma ilha denominada Tapitanga, mas não sabemos porque o potiguar que foi morar em Curitiba passou a assinar com esse nome indígena.

[3] Hoje Curitiba possui de 1.800.000 habitantes.

[4] Embora Floriano tivesse tropas federais nos estados sulistas, somente em 1895, no governo de Prudente de Morais é que seria assinado um acordo de paz na região. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Federalista .

[5]  Informações apontam que o tenente João da Tapitanga já pertencia ao batalhão patriótico desde maio daquele ano. Em 21 deste mês ele participou de uma celebração a um companheiro de corporação, onde proferiu um marcante discurso. Ver exemplar do jornal “A República”, Curitiba, edIções de 23 de maio de 1893 (pág. 2).

[6] A Revolução Federalista foi um exemplo de barbárie e violência de ambos os lados. Não apenas os maragatos promoveram degolas, estupros e assassinatos de prisioneiros. Os legalistas ocuparam a capital eliminando todos aqueles que acusados de haver colaborado com os federalistas, ou de haver desertado. Ver – http://www.museuparanaense.pr.gov.br/arquivos/File/a_revolucao_federalista_no_parana.pdf

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lapa_%28Paran%C3%A1%29

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Ernesto_Gomes_Carneiro

[7] Ver exemplares do jornal “A República”, Curitiba, edições de 11 de outubro de 1893 (pág. 1), 1 de dezembro de 1893 (pág. 2), 13 de dezembro de 1893 (pág. 1), 14 de dezembro de 1893 (pág. 2). Atualmente a Villa Tamandaré se denomina Almirante Tamandaré. Sobre João da Tapitanga no Cerco da Lapa, ver jornal “Gazeta de Notícias”, Rio de Janeiro, edição de 15 de dezembro de 1935.

[8] Ver jornal “Diário da tarde”, Curitiba, edição de 23 de agosto de 1913. Nesta reportagem ele é apontado erradamente como sendo natural do estado de Alagoas (pág. 3).

[9] Tapitanga também participava como um dos principais oradores de eventos comemorativos ao nascimento e morte de Floriano Peixoto. Ver jornal “A República”, Curitiba, edição de 1 de julho de 1900 (pág. 1) e “o Comércio”, Curitiba, ed. De 30 de junho de 1900 (pág. 1).

[10] Entre os dias 1 e 4 de julho de 1926, Euclides Bandeira publicou no jornal matutino curitibano “O Dia”, uma extensa reportagem biográfica sobre João da Tapitanga, que foi reproduzida no jornal natalense “A República” nas edições de 18 e 19 de agosto daquele ano, sempre nas primeiras e segundas páginas.

[11] Ver jornal “A República”, Curitiba, edição de 13 de agosto de 1898 (pág. 2).

[12] Ver http://www.ppge.ufpr.br/teses/D12_Elaine%20C%C3%A1tia%20Falcade%20Maschio.pdf

[13] Na fundação Casa Rui Barbosa, no bairro Botafogo, Rio de Janeiro, encontra-se o arquivo de José Cândido de Andrade Muricy, onde está a carta de Henrique Castriciano. Ver http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/texto/FCRB_AMLB_Arquivo-Andrade-Muricy.pdf

HENRIQUE CASTRICIANO E O CANGAÇO

Henrique Castriciano de Souza em um flagrante no almoço oferecido em honra a Rafael Fernandes, na antiga Escola Doméstica na década de 1930
Henrique Castriciano de Souza em um flagrante no almoço oferecido em honra a Rafael Fernandes, na antiga Escola Doméstica na década de 1930

Autor – Rostand Medeiros 

Henrique Castriciano de Souza é considerado uma das maiores inteligências que o Rio Grande do Norte já teve. Nascido em 15 de março de 1874, na cidade de Macaíba, exerceu durante sua vida uma enorme gama de atividades; diplomado pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro em 1904, foi jornalista, poeta, ensaísta, critico literário, secretário de governo, vice-governador, presidente da Assembléia Legislativa, deputado estadual e outras atuações que mostram um espírito que impressionam os que se debruçam sobre sua vida e sua obra. 

Jornal “A Republica”, em 25 de abril de 1908
Jornal “A Republica”, em 25 de abril de 1908

Foi um incentivador cultural, criando a primeira lei de incentivo cultural no Rio Grande do Norte. Criou escolas, adorava a pesquisa, tendo viajado a Europa buscando os caminhos por onde andou Nísia Floresta, escritora nascida em 1810 em Papary (atual município de Nísia Floresta) e falecida na França em 1885. Nísia, como Castriciano, foi uma autora de vasta obra. 

Em 1908, Castriciano frequentava quase diariamente as páginas do periódico “A Republica”, produzindo suas crônicas, com comentários sobre os mais diversos assuntos. No dia 25 de abril daquele ano publicou uma crônica dedicada exclusivamente ao cangaço. 

Antonio Silvino
Antonio Silvino

Provavelmente este trabalho foi realizado diante da repercussão negativa do ataque promovido pelo bando de Antônio Silvino ao povoado Machados, localizado a 18 quilômetros do município de Bom Jardim, Pernambuco. 

Neste ataque, ocorrido no dia 15 de fevereiro, à uma hora da tarde, em pleno dia de feira, Silvino e seus cangaceiros entraram sem alteração no lugar. O chefe quadrilheiro vinha na intenção de ir a um comércio do lugar e acertar certas contas com o proprietário. 

Silvino estava resolvendo esta situação, quando recebeu voz de prisão do Inspetor policial do lugar. Este chegou à mercearia acompanhado com um grupo de quatro paisanos, que voluntariamente se colocaram prontos a auxiliar o Inspetor para prender o bando. 

Jornal “A Republica”, em 21 de fevereiro de 1908
Jornal “A Republica”, em 21 de fevereiro de 1908

Os jornais da época e os autores que trataram da vida de crimes do cangaceiro Antônio Silvino, não detalham com clareza o que ocorreu, mas o resultado foi o extermínio da tropa voluntária e do Inspetor. Após o tiroteio, Silvino e seu bando saquearam o comércio de Machados em 400$000 réis e fugiram em direção aos Lugares Pedra Fria e Palma (O ataque a Machados foi reproduzido na primeira página do jornal “A Republica”, em 21 de fevereiro de 1908).

Diante deste fato de forte repercussão, principalmente em Pernambuco, na Paraíba e no Rio grande do Norte, Estados frequentados por Antônio Silvino, Castriciano busca mostrar aos leitores do litoral potiguar, as diferenças entre as populações do sertão e do litoral, a dureza das regiões quentes e as origens e peculiaridades do banditismo “boêmio”. 

Comenta de forma clara a figura de Jesuíno Brilhante, que a época cada vez mais se mitificava, assumindo a figura de um “Dom Quixote vermelho”, que “andava por toda a região sertaneja, distribuindo justiça a seu modo”. Observava como o tempo fazia o povo esquecer suas atitudes de um bandoleiro não tão romântico assim e apontava como “as gentes do centro”, como Castriciano designava o sertanejo e o sertão, via esta singular figura de bandido. Interessante é o comentário que Castriciano faz, quando narra sua experiência ao segurar o crânio de Jesuíno Brilhante. 

Antonio Silvino em desenho a bico de pena
Antonio Silvino em desenho a bico de pena

Já sua visão de Silvino é de um sanguinário, um terror dos sertões, tacha-o de “moralmente muitíssimo inferior”, de gostar da atenção da platéia popular e comenta a sua brutalidade. 

Em uma época em que Virgulino Ferreira da Silva, o futuro “Lampião”, ainda brincava de baladeira na região da Serra Vermelha, Castriciano já apontava as diferenças e as sutilezas entre os cangaços de Brilhante e Silvino. Da mesma forma que, anos depois, muitos apontariam as diferenças entre Silvino e Lampião, apresentando “O rifle de ouro” quase como um “gentleman” e o “cego de Vila bela”, como a encarnação do “cão do quinto livro”. 

O mais interessante da crônica de Henrique Castriciano é a sua analise sobre a popularidade do Antônio Silvino, através do livreto de cordel do cantor popular Francisco das Chagas. 

Denominando esta obra apenas de “folheto”, Castriciano aponta este material como o “melhor espelho do estado mental e moral das nossas populações”. Mostra (às vezes de forma preconceituosa) a visão dos sertanejos ante o fracasso das perseguições do aparato governamental a Silvino, destacando a “ironia, a gargalhada do povo rude em face da impotência dos governos”. 

Silvino após sua captura em 1914
Silvino após sua captura em 1914

Entre irônicas tiradas contra a justiça oficial de então, existe espaço neste cordel para “planos de governo” de Antônio Silvino, com apontamentos socialistas, divisão da terra e até criticas a atuação de estrangeiros pelo sertão afora, no caso os ingleses e suas estradas de ferro. 

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Neste maravilhoso trabalho, Henrique Castriciano utilizou como era normal no período, o pseudônimo de “Mario Valle”. Segundo Manoel Rodrigues de Melo, no livro “Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte 1909 – 1987”, página 259, Castriciano era pródigo em criar pseudônimos. Este autor narra nove deles, desde um simples “H.C.” ao interessante “Erasmo van der Does”. 

Henrique Castriciano faleceu em 26 de julho de 1947. 

CRÔNICAS – Jornal “A Republica”, sábado, 25 de abril de 1908. 

O Nosso clima, as brutas arestas do sertão, o solo escalvado que constituem grande parte da zona do Norte, todo este conjunto de fatores ásperos, gera, de quando em quando, tipos totalmente sintéticos, recapitulações da psicologia por vezes mórbida da sub-raça que se agita nessa parte do território brasileiro. 

São interessantíssimos os representantes máximos e diretos da plebe entre nós: os cantadores ambulantes, o vaqueiro heróico, e, mais do que todos, devido à agilidade perversa e a concepção anarquista que forma do mundo, os criminosos boêmios que, às vezes durante anos, percorrem léguas matando e destruindo a vontade. 

Há uma grande diferença física entre a gente do agreste e do sertão; diferença que se afirma na singular energia da população da última destas zonas, em contraste com a meiguice humilde dos habitantes da primeira. 

Todos os criminosos notáveis aparecidos nos Estados setentrionais do Brasil são gerados nas plagas sertanejas, produto agressivo de gerações e gerações em eterno combate com a natureza, casos teratológicos de uma gente até no crime forte e excepcional. 

Eles são bons filhos das terras em que nasceram. Assim como nestas, ao lado das várzeas e dos rios pródigos, existem a montanha pedregosa e a campina estéril, assim também, na sociedade que lá vive, surge de quando em quando, dentre centenas de seres educados na bondade enérgica e sofredora, as almas tingidas de vermelho, os corações golpeados de ódio que se chamam Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino, símbolos da anarquia física desse meio hostil, cardos humanos nascidos entre aquela branca seara de almas, como os espinhos do mandacaru entre os imbuzeiros carregados de frutos e ninhos. 

Henrique Castriciano
Henrique Castriciano – Fonte – blogeloydesouza.blogspot.com

E, fato singular; quaisquer dos bandidos acima citados são, como o solo sertanejo, uma perene contradição, uma extraordinária messe de coisas que se repelem. 

A vida do primeiro surpreende pelo contraste, pela diversidade dos meios postos em prática, pela serie infinita de atos profundamente maus e de ações reveladoras de profundo desprendimento. 

Jesuíno brilhante é uma figura típica do herói popular, de Dom Quixote vermelho. A existência desta singularíssima figura representa o que a de mais doce na alma humana e o que a de mais feroz. 

Alguém poderoso ou não, tentara contra a honra da desvalida moça? 

Ei-lo em campo, armado até os dentes. 

O sedutor reparava a falta ou morria. E andava por toda a região sertaneja, distribuindo justiça a seu modo, justiça absolvente de animal primitivo, girando entre o roubo e a morte. 

Para ele, como para todos que cumprem igual destino, a propriedade era da comunhão. Daí o grande ódio que votava as autoridades constituídas, especialmente aos soldados, como representantes da lei. 

Um médico do centro, o meu distinto amigo Dr. Almeida Castro, guarda o crânio deste desgraçado.  Vi-o a cerca de doze anos, estive com ele entre as mãos, como Hamlet sustentando nos dedos a caveira de Iorick e, como o desditoso príncipe, filosofei acerca do miserando ser, sentindo no intimo um frêmito de compaixão. 

Quem sabe até onde iria a coragem deste rebelado se outros fossem o meio e o tempo em que viveu? 

Os heróis não são feitos de temperamento diverso; creio que foi Victor Hugo que os chamou de uma variedade de assassino…. 

O tempo tornou a sua figura legendária; das depredações que fez já ninguém se recorda; e as gentes do centro falam dele como de um justo que, nos dias de fome, assaltava as tropas guardadoras dos comboios que conduziam a farinha destinada pelo rei ao seu povo, mas que os magnatas das aldeias queriam transformar em fortuna própria.   

Com Antonio Silvino, moralmente muitíssimo inferior, está se dando o mesmo. O celerado anda por aí quase à vontade, sentido em torno de si o respeito e a estima da plebe, com quem reparte cavalheirescamente o que recolhe dos inimigos. 

Este é brutal, sem um raio de estrela na sua alma tenebrosa, sem as crises de bondade do outro, sem penas de garça nas asas de corvo. 

Mas as multidões o acarinham, porque vem nele um forte. E sem perceber que a sua generosidade é apenas um gesto hábil, já o está glorificando pela boca dos poetas campônios. Tenho sob a vista um folheto do cantor popular Francisco das Chagas. Há muito não vejo melhor espelho do estado mental e moral das nossas populações; as 16 páginas a que me refiro, valem um compendio de psicologia. 

Quem, de futuro, quiser saber o pensamento da gente analfabeta, que povoa o nosso solo não tem mais do que abrir este livrinho; aí encontrará a ironia, a gargalhada do povo rude em face da impotência dos governos que ele vaia gostosamente, na sua qualidade de mosquito zumbidor. 

Encontrará o ódio que vota ao empregado público, aos partidos, as autoridades, colocando-se, já se vê, ao lado de Antonio Silvino, em quem contempla a síntese da anarquia que lavra no seio das sociedades incultas do centro. 

Não sei se os senhores sabem que o bandido teve por companheiro uma fera de nome Cocada. Teve. 

E um dia, desconfiado dele, expulso-o do rebanho maldito.  

A fera, perseguida pela polícia, não pode ser alcançada, vindo a morrer as mãos de um senhor Pica-pau, sequioso de vingança, e de sangue. 

O poeta Chagas narra o fato com a sua meia língua de trovador rural e, legitimo interprete do zé-povo, termina com esta gargalhada cuspida a face da justiça; 

Na povoação da Serrinha,

Aonde a morte se deu,

A polícia, por milagre,

Ao tal Pica-pau prendeu,

E encontrou as orelhas

De Cocada em poder seu,

 

Não conseguindo a polícia

Prender o ex-valentão,

Ao pegar suas orelhas

Meteu-as numa prisão:

Encarceradas num frasco

Ficaram elas então….

 

Dizem os filhos da Candinha

Que já estão processadas

As orelhas do bandido,

Que em breve serão julgadas

E que as galés perpétuas

Elas serão condenadas. 

Dificilmente um poeta culto encontraria sarcasmo tão pungente para caracterizar o seu desprezo em face de uma justiça que o não garante bem. 

O livrinho termina com a exposição da Política de Antonio Silvino: 

Há doze anos que vivo

Com o governo em questão

Sem que ele conseguisse

Vencer minha oposição:

Vou agora experimentar

Se ganho-lhe uma questão.

 

Ao meu lado tenho todos

Os chefes oposicionistas:

Já pleiteei mais vinte

Candidatos governistas,

E antes das eleições

Farei inda outras conquistas. 

O programa seria o tentado por qualquer pessoa do povo se viesse a governar; 

Mesa de rendas uma só

Não deixarei, isso eu juro!

Livros de arrecadação

Mando deitar no monturo. 

Intendência em município

Acabarei com as que houverem:

Empregado pede esmolas!

Os que assim não fizerem

Vão trabalhar alugados

Para bacalhau comerem! 

Promotores, delegados,

Inspetor de quarteirão,

Todos eu demitirei

Com uma surra de facão…. 

Inglês onde eu dominar

Não contará pabulagem;

Para o trem poder correr

Há de pedir-me homenagem,

Consentirei que o trem corra

Mas ninguém paga passagem. 

É a tendência igualitária dos vencidos, o socialismo inconsciente das classes pobres. 

A terra será comum

Todos se apossarão

Ninguém pagará mais foro

Para fazer plantação;

Não haverá nesse tempo

Nem criado, nem patrão. 

Será geral a igualdade

Todos hão de ter direitos

O que foi rico terá

Ao que foi pobre respeito

O grande senhor de engenho

Irá trabalhar no eito. 

A nota característica da poesia popular no Brasil é o sarcasmo; porém á neste livrinho alguma coisa que não é somente isto. 

E não entristece ver, em mais de um Estado e na hora presente, o povo do centro encarnando os seus ideais na pessoa de Antônio Silvino? 

Mario do Valle

 

UMA HISTÓRIA DE AUTA DE SOUZA, CONTADA POR PALMYRA WANDERLEY

Autor – Rostand Medeiros

Sempre ouvir muito falar no mítico jasmineiro plantado no horto da casa da poetisa potiguar Auta de Souza, na bela cidade de Macaíba, mas pouco sabia de sua história.

Auta de Souza

Até que um dia, pesquisando nas velhas páginas de “A Republica”, encontrei na edição do dia 3 de julho de 1930, um interessante artigo da igualmente consagrada poetisa potiguar Palmyra Wanderley, sobre esta famosa planta da família das Oleáceas.

Parte final do verso “Flor do Campo”, publicado em 1899, inicialmente em jornais no ano de 1899

Nascida em 12 de setembro 1876, na cidade de Macaíba, Auta Henriqueta de Souza foi uma mulher extremamente marcada pela morte. Perdeu a mãe quando tinha três anos e o pai pouco tempo depois. Apesar de viver em uma cidade próspera e progressista, um dos principais centros de decisões políticas no Rio Grande do Norte daquela época, ela e seus irmãos, Henrique Castriciano, Eloy de Souza e Irineu Leão, vão para o Recife, onde ficam sob a guarda da avó materna, Silvina Maria da Conceição de Paula Rodrigues, conhecida como Dindinha.

Eloy de Souza

Na capital pernambucana Auta foi primeiramente alfabetizada por professores particulares, depois foi matriculada no Colégio São Vicente de Paula, no bairro da Estância.

Mas o calvário de Auta de Souza continuou. Aos doze anos vivencia a morte de Irineu, carbonizado pelas chamas de uma lamparina que foi derrubada por acidente. Dois anos depois a tuberculose, causa da morte de seus pais, é diagnosticada em seu corpo e ela teve que interromper seus estudos.

Retorna ao Rio Grande do Norte e, em busca de cura, realiza uma longa viagem pelo interior do estado.

Segundo seus biógrafos, tempos depois Auta se enamorou pelo jovem Promotor Público de Macaíba, João Leopoldo da Silva Loureiro, onde manteve uma casta relação que durou mais de um ano. Estava decidida a unir-se a este rapaz, mas a doença seguia adiante. Seus irmãos lhe convenceram a renunciar e a separação foi cruel para a já sofrida jovem. O Promotor logo foi transferido da região e em seguida faleceu da maldita tuberculose.

Em meio às doses de sofrimento, Auta produzia seus versos, que foram publicados em jornais e revistas do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e de Natal.

Exemplar da 2ª ed. de “O Horto”, que pertenceu ao meu tio-avô Antônio Isidoro de Medeiros

Logo grande parte de seu trabalho seria reunido em um manuscrito, que primeiramente se intitulou “Dhálias”. Seus irmãos Henrique e Eloy, políticos e escritores no estado, levam o manuscrito para a Capital Federal, no Rio de janeiro, para que o amigo e poeta Olavo Bilac lesse o material. Bilac, o mais importante poeta brasileiro da época, se encanta com os escritos de Auta e prefacia os originais. A obra é então criada com seu nome definitivo; “O Horto”.

O livro foi publicado pela primeira vez em 20 de junho de 1900. Continha 114 poemas, colocados em 232 páginas e se tornou um enorme sucesso.

Informativo sobre a venda do livro “O Horto”

Em pouco tempo os jornais paraibanos “O Commercio” e “A União”, publicam no mesmo dia, 8 de julho de 1900 (um domingo), vastas e positivas matérias sobre o livro. Logo outros periódicos, de outras localidades, vão fazer o mesmo e em pouco tempo a primeira edição se esgota. No futuro outras edições de “O Horto” serão publicadas.

Mas Auta de Souza pouco aproveitaria deste momento. A doença avançou e ela faleceu aos 24 anos, no dia 7 de fevereiro de 1901. A capital do Rio Grande do Norte enterrou a jovem revelação das letras no Cemitério do Alecrim, em meio a uma forte comoção.

Palmyra Wanderley, uma grande admiradora de Auta de Souza

Na narrativa de 1930, a poetisa Palmyra Wanderley conta que estava na sua casa, quando foi mexer em velhas cartas amareladas que ficavam uma caixa de madeira, com um determinado símbolo marcado a fogo na tampa.

Esta ilustre dama das letras potiguares, então com 36 anos, acreditava que lendo velhas missivas, renovaria a sua alma. Mas estranhamente o que lhe chamou atenção não foi alguma carta, mas uma foto. Uma foto que a poetisa considerava preciosa.

Segundo sua narrativa, a imagem congelada no tempo mostrava um jasmineiro laranja, com muitas folhas e que projetava a sua sombra na areia.

Na base da simples fotografia estava escrito em uma “letra máscula”, segundo sua definição, a seguinte mensagem; “- O jasmineiro de Auta, plantado pela poetisa no pomar de sua residencia em Macahyba”.

Segundo Palmyra, o autor da mensagem não era outro senão Henrique Castriciano, irmão da brilhante Auta de Souza.

Henrique Castriciano

Henrique, considerado pelo paraibano Rodrigues de Carvalho (autor do livro Cancioneiro do Norte) como “um gênio”, havia doado a Palmyra aquele instantâneo numa clara manhã de abril. Quando contou a história do jasmineiro e o que ele significava, seus olhos ficaram marejados de saudade.

Ao longo do texto, a definição que Palmyra faz de Auta de Souza era de uma “poetisa santa”, que havia utilizado suas mãos de doente resignada, para plantar no quintal de sua casa aquele jasmineiro frondoso.

Para Palmyra, que tinha apenas sete anos quando Auta de Souza faleceu, a poetisa de Macaíba era certamente uma espécie de heroína diante de toda sua sofrida história, se não uma de suas maiores influências.

Ela informa que em certa época havia chegado aos ouvidos de Henrique Castriciano que jovens delinquentes haviam tentado destruir esta preciosa Oleácea. Indignado, o irmão da falecida Auta de Souza partiu para saber o que ocorria. Mas voltou de Macaíba com a alma e o espirito renovados, pois a população local protegia o jasmineiro. Sobre sua sombra casais de pássaros “se casam” e as crianças de Macaíba brincavam e cantavam os versos de Auta. Noivas seguiam ao local, fazendo votos para uma boa união. O texto deixa no leitor a ideia que o local seria uma espécie de “santuário”, preservado pelo povo de Macaíba em memória de sua amada e sofrida autora.

“A Republica”, 3 de julho de 1930

Palmyra finaliza o texto apontando Auta de Souza como “-A maior poetisa mística de todos os tempos. E a mais magoada de todas as aves humanas que cantaram, em lágrimas, as melodias do coração”.

O jasmineiro original já não existe. Mas outra planta, segundo dizem descendente direta da original, está plantada no mesmo local, atualmente fazendo parte da Escola Estadual Auta de Souza.

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NO NATAL DE 1923, A CAPITAL CONHECEU FABIÃO DAS QUEIMADAS

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Em 13 de dezembro de 1923, o jornalista e advogado Manoel Dantas, com o pseudônimo de “Braz Contente”, publicou no jornal “A Republica”, na sua seção intitulada “Coisas da Terra”, onde noticiou que “estava sendo organizada uma grande quermesse, que ocorreria na noite de natal e teria lugar nos jardins do Palácio do Governo. Esta era uma iniciativa de senhoras da sociedade local, que buscavam ajudar o Instituto de Proteção e Assistência a Infância a construir o Hospital das Crianças”.

O edifício estava sendo edificado na avenida Deodoro, idéia do médico Manoel Varela Santiago Sobrinho para atender às camadas mais carentes da população. Por esta época, eram altíssimos os índices de mortalidade infantil na capital, devido às precárias condições de higiene e do atendimento à saúde pública. Estes problemas incomodaram uma parte da sociedade local, que se disponibilizou a ajudar.

A liderança de Palmyra Wanderley

À frente desta iniciativa se destacou a figura da poetisa Palmyra Wanderley, que em 1923 era uma das mais conceituadas intelectuais da terra, possuía uma cultura elevada, vinha de uma família de intelectuais, sendo assídua colaboradora em jornais e revistas, tanto potiguares como de outros estados.

A poetisa Palmyra Wanderley

Junto com a liderança de Palmyra, mais de 50 mulheres se engajaram nesta obra. Não deixa de ser interessante que, em meio a uma cidade onde predominava a família patriarcal e o machismo, se observa esta participação feminina. Foi publicada uma lista com os nomes das participantes, onde se percebe que a grande maioria destas mulheres faziam parte da elite natalense. Um grupo delas chegou inclusive a sair pela Natal de 25.000 habitantes, para vender as entradas da quermesse, pelo preço módico de 2$000 réis.

Dr. Varela Santiago

Como atração principal, Palmyra decidiu não colocar algum artista declamando poesias clássicas, ou algum instrumentista tocando alguma peça européia, ou ainda artistas vindo de outras capitais. Sua decisão foi por um artista potiguar, já com uma certa idade, um poeta que declamava seus versos junto com uma rabeca, além de tudo negro e ex-escravo. Estamos falando de “Fabião das Queimadas”.

A Atração principal

Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha nasceu escravo, em 1850, na fazenda Queimadas, do coronel José Ferreira da Rocha, no atual município de Lagoa de Velhos (RN). Começou a cantar durante os trabalhos na roça. Tornou-se tocador de rabeca, tendo adquirido seu instrumento aos 15 anos, com o apoio do seu dono, que permitia e incentivava que ele cantasse nas casas dos mais abastados da região e nas feiras. Conseguiu angariar algum dinheiro que, aos 28 anos, possibilitou comprar a sua alforria. Era analfabeto, mas criava versos, como o “Romance do boi da mão de pau”, com 48 estrofes. Suas composições apresentam traços dos romances herdados da idade média.

A tranquila Natal da década de 1920

Em 1923, Fabião das Queimadas já era conhecido e respeitado no estado, onde no início do período republicano manteve ligações com políticos da terra, emprestando seus talentos ao criar versos que serviam, ora para enaltecer os amigos poderosos, ora para denegrir seus adversários. Já suas apresentações em Natal, aparentemente eram raras ou restritas a residências de particulares que gostavam da prosa sertaneja.

A Capacidade de Fabião das Queimadas

“A Republica”, de 19 de dezembro, em novo texto assinado por “Jacinto da Purificação”, trouxe uma extensa reportagem sobre o cantador, onde buscavam apresentá-lo a cidade. Foi comentado como no passado Fabião havia conquistado sua liberdade, “que a fama de Fabião corria mundo”, mas ressaltou “que o seu estrelato alcançava aquele mundo que não ultrapassava as fronteiras da nossa terra”.

Em 1923, a expectativa de vida dos mais pobres no Brasil mal chegava aos 60 anos. Fabião, então, com sessenta e dois anos, era considerado com “ótima lucidez, perfeita memória e bom timbre de voz”. Afirmou-se que era “verdadeiramente um desses milagres para os quais a ciência não encontra explicação”. Informaram que “aquilo que Fabião chama de sua obra”, certamente daria um volume com mais de 300 páginas. Algumas destas obras haviam sido criadas pelo cantador 55 anos antes, em 1868. Para recitá-los ou cantá-los, junto com sua inseparável rabeca, ele utilizava apenas sua privilegiada memória.

Uma passagem interessante comentava que certa ocasião, um amigo mais chegado lhe perguntou como ele criava e guardava seus versos. Na sua simplicidade, o cantador disse que “quando eu quero tirar uma obra, me deito na rede de papo prá riba, magino, magino e quando acabo de maginar, está maginado pru resto da vida”.

Chamou atenção do autor do texto como Fabião era um sertanejo dotado de uma imensa bondade, pois lembrava saudosamente do seu antigo senhor, José Ferreira. Em uma passagem, o autor conta uma história onde Fabião rebate uma crítica feita ao seu antigo amo, por não tê-lo mandado à escola quando jovem, ao que o cantador comentou; “meu senhor foi sempre homem de muito tino e ele bem sabia que se me tivesse mandado ler e escrever, quem o vendia era eu”.

O final do texto de “Jacinto da Purificação”, deixa transparecer um certo receio de fracasso ante a apresentação do poeta, que estava “descolado do seu meio”. Colocava entretanto que, “qualquer que seja a sorte da prova que se vai suceder, Fabião para nós será sempre o velho genial”.

A festa

A festa começou às dezoito horas do dia 24 de dezembro, uma segunda-feira. Um dos paraninfos era o então governador Antonio José de Souza, que estava presente.

Movimentação na Praça André de Albuquerque

Desde cedo começou a afluir uma grande multidão, calculada em torno de 4.000 pessoas. Com um caráter estritamente familiar, a festa mudou o quadro da principal praça da cidade, uma área que normalmente, após as oito da noite ficava deserta. Neste dia estava “exuberantemente iluminada e cheia de vida”. O Doutor Varela Santiago, sempre acompanhado de Palmyra Wanderley e de outras organizadoras, seguiam entre as barracas, agradecendo a participação de todos.

Várias barracas estavam pela praça, todas com nomes bíblicos como ”Betesda”, “Carfanaum”, “Jericó” e, apesar do caráter religioso das festividades, o local mais freqüentado foi à barraca chamada “Poço do Jacó”, por vender bebidas geladas, principalmente cerveja.

Em locais distintos tocavam as bandas marciais da Polícia Militar e da guarnição do quartel federal, o 29º Batalhão de Caçadores.

Havia várias atividades atléticas, como um torneio de “queda de braço” e um concorrido torneio de bilhar, onde se destacaram os jovens José Wanderley e Francisco Lopes, tendo este último sido o vencedor.

Em um palco armado foram se apresentando os seresteiros, cantores e tocadores da cidade, todos amadores. Uma delas foi a “senhorinha” Edith Pegado, que chamou a atenção de todos por cantar uma cantiga “roceira” chamada “Sá Zabê do Pará”.

Mas a atração principal era “Fabião das Queimadas”. Ao subir no palco com sua inseparável rabeca, o trovador foi entusiástica e longamente aplaudido e desenvolveu uma apresentação que foi classificada pela “A Republica” como “magnífica”, composta de “repentes” e “louvoures”, que fizeram o deleite do público natalense naquela noite.

Uma coluna publicada cinco anos depois, por ocasião da morte de Fabião, mostra a repercussão que esta festa teve. Um articulista que assinava simplesmente “R.S.” escreveu que “Ainda estamos bem lembrados daquela noite em que promovendo-se nesta capital uma festa, Fabião das Queimadas improvisava chistosos versos, magníficos na sua rudeza e simplicidade”. O articulista recordava alguns destes versos, que foram dirigidos aos espectadores mais ilustres, como o governador Antonio de Souza, Henrique Castriciano, Varela Santiago, Palmyra Wanderley e Eloy de Souza. A este último, devido a sua herança negra, Fabião soltou uma quadra que terminava assim; “Se o sinhô num fosse rico, era de nossa famía”.

O simbolismo deste evento

Nos outros dias, poucas notas são divulgadas pela imprensa sobre a quermesse, fazendo esta festa cair logo no esquecimento. Contudo, ao observarmos os detalhes existentes na elaboração e desenrolar desta iniciativa, vemos que as mulheres potiguares, sob o comando de Palmyra Wanderley, conseguiram muito mais do que a nobre causa de angariar fundos para o hospital do Dr. Varela Santiago. Com uma só ação, Palmyra e as outras mulheres, muitas certamente sem nem ao menos perceber o que estavam fazendo, atingiam em cheio aspectos negativos que permeavam a sociedade potiguar da sua época.

Nota no jornal “A Republca”, de 28 de dezembro de 1923, sobre o evento

Quem busca conhecer com maior profundidade o pensamento da sociedade potiguar do final da década de 10 e início dos anos 20 do século passado, encontra fortes traços de preconceito contra a mulher, machismo, racismo e a pouca referência sobre as camadas populares e suas manifestações tradicionais. Evidente que não seria esta quermesse de Natal de 1923 que mudaria uma sociedade com arraigados e antigos valores, mas iniciativas como esta ajudavam a criar mudanças.

Para Fabião, ao tocar na capital, não fez nada diferente do que estava acostumado a fazer nas casas e nas feiras dos povoados do sertão, e nem poderia ser de outra forma. Fabião cantou a sua idéia de Mundo, as coisas da sua terra, da sua gente, trazendo para Natal, através dos seus versos, o que ele conhecia do sertão e assim se perpetuando na nossa memória.

Fabião das Queimadas morreu em 1928, aos sessenta e oito anos, de tétano, em uma pequena fazendola de sua propriedade, chamada “Riacho Fundo”, próximo a Serra da Arara e ao Rio Potengi, na atual cidade de Barcelona (RN).

*Texto originalmente publicado no jornal Tribuna do Norte, em 31 de dezembro de 2007.

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