ORIGEM DE MANOEL NETO – A QUESTÃO DO SABIUCÁ

COM EXCLUSIVIDADE O BLOG TOK DE HISTÓRIA TRÁS PARA SEUS LEITORES O RESUMO DE UM LIVRO QUE EM BREVE SERÁ LANÇADO PELO PESQUISADOR PERNAMBUCANO GIOVANE GOMES, SOBRE AS ORIGENS E A SAGA DO MAIOR PERSEGUIDOR DE LAMPIÃO NOS SERTÕES NORDESTINOS

Sebastião Giovane Gomes De Sá*

Em Ibimirim-PE, existe um povoado chamado Poço da Cruz, localizado a 6km da sede do município. É um lugarejo típico do sertão nordestino, cuja origem é cercada por lendas locais.

Uma das lendas diz que na bacia do açude havia um poço antigo que, mesmo nos períodos de estiagem, não secava e abastecia a população local. Certo dia o maior de todos os chefes de cangaceiros, Lampião, e seu bando chegaram próximo ao poço, onde encontraram um jovem enchendo sua cabaça com água. Por pura malvadeza, o facínora perguntou a seus cabras quem acertaria aquele pobre infeliz. Atingido, o jovem caiu dentro do poço.

A população colocou uma cruz no local da morte do jovem, prática muito comum no Nordeste para homenagear entes queridos, principalmente quando a vítima é assassinada. O local passou a ser chamado de Poço da Cruz. Quando se construiu o açude no mesmo lugar deste poço, a antiga cruz foi retirada e colocada na parte alta, em uma pedreira.

Há outra lenda que reza que um romeiro a caminho de Juazeiro do Norte-CE, carregando uma cruz muito grande como penitência, caiu dentro de um poço e morreu afogado. Sua cruz foi colocada para marcar o local da tragédia, próximo à fazenda Casa Nova.

Porém, segundo Júlio Calado, o nome Poço da Cruz surgiu da demarcação de terras do português mestre de campo Pantaleão de Siqueira Barbosa, que foi o fundador do Povoado Jeritacó, um vilarejo que pertencia à freguesia de Alagoa de Baixo. Pantaleão era um homem muito rico, dono de uma imensidão de terras no sertão do Moxotó, adquiridas em 1738 dos padres da Congregação de São Felipe Nery.

A construção da barragem do Poço da Cruz começou na década de 1930, no governo de Getúlio Vargas, criando uma pequena vila. Houve vários empecilhos na construção do empreendimento: Revolução de 30, Segunda Guerra Mundial e o medo de ataque de cangaceiros. Fato interessante é que as autoridades da época, ao visitarem a obra, muitas vezes eram acompanhadas de um forte esquema de segurança, por causa de cangaceiros. A sua inauguração aconteceu em 1957.

Na vila do Poço da Cruz existia a Bodega de Zé Rocha, um lugar bastante visitado pelos moradores da região que vinham fazer a feira. Era um comércio popular, vendia de tudo um pouco, era o ponto de encontro de amigos, onde se colocava o papo em dia.

No dia 9 de janeiro de 1974, seu Zé Rocha estava no balcão da sua bodega ouvindo seu velho rádio ABC, modelo Canarinho. Tocava as canções da época, em especial do cantor Luiz Gonzaga. Do outro lado do balcão, encontrava-se em pé um senhor magro, alto, com aproximadamente 1,80m. Usava calça de linho preta, uma camisa cáqui de mangas longas. Percebia-se que ele era calvo, mas usava chapéu de massa preto, alpercata “xô boi”, um relógio grande. Sua voz era suave, pois falava pausadamente, sempre gentil com todos os presentes. O que mais chamava a atenção de Zé Rocha era um revólver calibre 38, que estava no coldre, à mostra em sua cintura, denunciando que ele deveria ser alguma autoridade ali presente. Seu semblante forte era fruto de muitos traumas adquiridos na vida; um olhar firme, daquelas pessoas que sempre falam mirando no fundo dos olhos quando dirige a palavra a alguém.

Aparentava ter 70 anos; mesmo com a idade avançada, percebia-se que tinha uma ótima coordenação motora, sempre pronto para uma ação rápida de defesa. Ficava em uma posição privilegiada, assim poderia ver todos que estavam dentro da bodega, quem entrava e saia. Nesse dia ele estava calado, com o seu pensamento lutando com os traumas do passado.

Seu Zé Rocha perguntou-lhe:

O que o senhor tem?

O outro respondeu:

– Nada!

Nesse exato momento, começou a tocar no rádio um clássico da MPB, a canção “A triste Partida”, música do poeta Patativa do Assaré, um ícone de nossa cultura.

Logo seu Zé Rocha foi baixar o som; ele sabia que seu amigo ali presente não gostava de som alto. Mas esse, do outro lado do balcão, sussurrou:

Deixe a música passar!

Seu Zé Rocha respondeu:

Sim, senhor coroné!

Nesse momento, o velho militar deixou-se viajar em pensamentos, como se estivesse em um passado distante.

Então o velho Coronel falou:

Amigo, nunca vi tanto tiro na minha vida! Naquele dia pensei que era meu fim.

Seu Zé Rocha perguntou:

Aonde foi isso, Coroné?

Em Maranduba, Estado de Sergipe.

Seu Zé Rocha, curioso, fez outra pergunta:

Com quem, coroné?

O coronel respondeu:

Com o cego!

O cego? – Perguntou seu Zé Rocha.

O coronel respondeu:

Dei uma brigada com Lampião.

O anfitrião tomou a bebida que estava no seu copo, colocando-o bem devagar em cima do balcão. Olhou para seu Zé Rocha e disse-lhe:

– Vou lhe contar.

E começou a narrativa:

Recebi um telegrama avisando que Lampião havia invadido o povoado de Canindé do São Francisco, no estado de Sergipe. Havia dias que nós não encontrávamos Lampião e seu bando. Alguns de nós nazarenos tínhamos vindo visitar nossos familiares em Pernambuco, era início de ano, e passamos o Ano Novo em Nazaré, distrito de Floresta-PE.

Quando recebemos a notícia, fomos para a Estação de Jatobá de Tacaratu (Petrolândia-PE), e de lá pegamos um trem com destino a Piranhas-AL. Encontramos a volante do Tenente Liberato de Carvalho na Estação de Pedra, atual Delmiro Gouveia. O contingente de policiais era muito grande. Então, uma parte da força do Tenente Liberato foi de caminhão, chegando ao destino antes de nós, que fomos de locomotiva.

Assim que chegamos a Piranhas, ficamos sabendo das maldades que o bando de Lampião havia feito com as moças de Canindé. A nossa força reunida era mais de 70 homens. Fomos para as margens do rio e conseguimos uma canoa grande que estava carregada de couro. Atravessamos a correnteza para o lado sergipano, desembarcamos na fazenda Jerimum, de um senhor da família Brito. Lampião e seu bando haviam passado nesse lugar. Então decidimos pernoitar na fazenda. Logo de manhã o meu rastejador pegou o rasto dos cangaceiros. Lampião queria dar uma brigada, os bandoleiros não faziam questão de esconder as pegadas.

No lugar chamado Cajueiro, os cangaceiros entraram de caatinga adentro, e eu e minha força ficamos no encalço deles. Logo ficou de noite. Arreamos nossas coisas ali mesmo, montamos guarda, a força estava cansada. No dia seguinte, pegamos o rasto deles de novo. Um soldado amostrou-me que os cangaceiros à noite haviam andado muito perto do nosso rancho, isso era um sinal de que eles estavam próximos. Ao chegar meio-dia, paramos para descansar.

Meu primo Hercílio Nogueira era um dos mais afoitos, sempre dizendo que na hora em que se encontrasse com Lampião iria amostrar para ele como brigava com um cabra de Nazaré. Hercílio estava debaixo de um pé de umbuzeiro, esperando o restante da tropa chegar, quando um soldado se aproximou correndo. Não lembro se aquele soldado era da minha força ou da volante do Tenente Liberato de Carvalho. O praça foi logo dizendo:

– Os Cangaceiros estão aqui pertinho! Beberam água agorinha.

A Força estava toda espalhada, uma parte andando por uma moita de macambira. Ouvimos um tiro e o mundo se fechou em bala. Era tiro para todos os lados, tinha hora em que não se sabia para onde atirar, a fumaça de pólvora, os gritos no meio do mundo.

Seu Zé Rocha perguntou:

– Quem deu o primeiro tiro?

– Foi meu primo Hercílio Nogueira. Quando o rastejador da Força avistou os cangaceiros, gritou: “Olhe os cabras! Afaste, vamos voltar.” Hercílio, homem valente que era, gritou: “Tá com medo cabra?” E atirou para o lado dos cangaceiros.

Mas a força estava em cima do banco de macambira. A gente atirava um por cima do outro. Estávamos perto dos cangaceiros, a fumaça tomou conta do lugar, ninguém sabia para que lado atirar, muita bala. Os cangaceiros se entrincheiraram nos pés de umbuzeiro e nos caldeirões d’água.

Teve um cabra de Lampião que estava em cima de um serrote e pulou para me pegar a mão. Atirei nele à queima-roupa. Caiu pronto! Peguei a cabaça dele e bebi a água. Estava com sede!

Naquele dia Lampião estava com vontade de brigar; os cangaceiros diziam todo tipo de pilhéria feia com nossa força.

O narrador fez uma pausa. Aproveitando o silêncio, seu interlocutor perguntou:

Coroné, a brigada foi demorada?

Manoel Neto e Luiz Mariano. Acervo: Giovane Gomes – Essa fotografia pertencia ao acervo pessoal de Manoel Neto, no verso da foto existe uma dedicatória a um amigo.

O coronel retomou:

– Foi a tarde toda! Quase cinco horas de fogo. Depois os cangaceiros correram. Fui atrás deles, cheguei ao seu rancho, onde estavam uns soldados pegando os pertences dos cangaceiros mortos. Gritei: Lampião vai correndo com cangaceiros mortos e feridos!

Vi quando alguns soldados me seguiram. Fui ao rastro dele, havia sinal de sangue. Perto de um serrote, a uns 500 metros, trocamos tiro de novo. Desci por um riacho pequeno, tentando atalhar os cangaceiros. Achei que era o grupo do Corisco que ia levando os feridos. Depois soube que ele não participou do fogo da Maranduba.

Um cangaceiro gritou: “Eu brigo com qual força agora?”

Eu respondi: Briga com a Força do Tenente Mané Neto, seu cachorro!

Jornal “A Noite, Recife-PE, edição de 13/11/1926, comentando sobre as ações das volantes de Manoel Neto e José Saturnino.

Eles deram uma rajada de tiro contra nós e sumiram na caatinga. Então voltei à procura dos companheiros.

Chegando de volta ao local do tiroteio, encontrei a pior desgraça da minha vida. Eram muitos mortos e feridos. Logo procurei meus parentes. De nossas Forças, perdemos 7 homens, que foram estes: Sargento Hercílio Nogueira e seu irmão Adalgiso Nogueira; Sargento João Cavalcanti, Antônio Benedito, Elias Barbosa, Pedrinho de Paripiranga e Manoel Boa Ventura. Este último faleceu no hospital de Penedo-AL, devido aos ferimentos.

Faço aqui, leitor, uma pausa na narrativa do nosso ilustre Coronel para explicitar umas informações sobre os episódios, as quais corroboram para a versão apresentada pelo personagem.

Em entrevista concedida em 2008, o ex-volante Manoel Cavalcante de Souza, conhecido como Neco de Pautília, narrou que, ao chegar com o Tenente Manoel Neto, encontrou o Sargento Hercílio Nogueira morto com um tiro no ombro e outro no peito. O irmão dele, Adalgiso, estava atirando de ponto com um joelho no chão, quando foi atingido com um tiro no joelho. A bala transfixou, dilacerando sua canela. Provavelmente foi tiro de fuzil. O segundo ferimento em Adalgiso era um pequeno orifício na sua testa. O projétil saiu na parte de trás de sua cabeça, fazendo um estrago grande, a massa encefálica foi jogada longe.

O Sargento João Cavalcanti tombou ao lado de seus parentes, foram certamente alvejados em seguida. Antônio Benedito veio em socorro dos companheiros e foi atingido por fogo amigo, pois apresentava uma perfuração na parte traseira da cabeça. A bala saiu na parte dianteira, fazendo um enorme estrago na testa. Ele foi alvejado pelas costas, estava caído de busto. Isso deve ter acontecido porque no campo de batalha os dois lados da luta estavam muito próximos.

Elias Barbosa era baiano, da cidade de Santa Brígida. Segundo seu Neco de Pau-tília, os dois estavam lutando lado a lado, deitados no chão, próximo ao banco de macambira, quando Elias foi atingido por um tiro no braço, causando uma hemorragia, perdendo muito sangue. Deu o último suspiro e morreu de olhos abertos, uma cena triste.

Pedrinho de Paripiranga era natural de Conceição do Coité, Bahia. Entrou no cangaço para se vingar de uma surra que levou dos cangaceiros. Morreu neste combate sem concluir sua vingança.

O último a morrer foi Manoel Boa Ventura, natural de Floresta, da região da Barra do Silva. Ele não resistiu aos ferimentos graves. Entrou nas volantes para se vingar das atrocidades causadas pelos cangaceiros em sua região.

O saldo foi sete mortes e onze feridos, umas das maiores derrotas das Forças Nazarenas pela quantidade de filhos da terra que tombaram em solo sergipano.

De fato, Em Maranduba, dois homens valentes lutavam feitos dois titãs: do lado dos cangaceiros, Lampião, o rei do cangaço, o maior guerrilheiro do sertão nordestino; do outro lado, o Tenente Manoel Neto, o Mané Fumaça, o Cachorro Azedo, o maior perseguidor de cangaceiro, cuja coragem beirava a loucura. Porém, seu ódio pessoal acarretou-lhe várias derrotas.

Lampião era um mestre na arte da guerrilha das caatingas, mostrou superioridade na fazenda Maranduba.

A estratégia dos cangaceiros foi a seguinte: fizeram os volantes ficarem em fogo cruzado. Os policiais ficaram em cima da macambira, sem qualquer chance de defesa. A favor dos cangaceiros existiam alguns umbuzeiros frondosos, assim as reservas de água ficaram sob o domínio dos facínoras, que lutavam em campo aberto, em posições vantajosas, enquanto os volantes estavam presos em uma arapuca. Lampião sempre usou o elemento surpresa e a natureza estava a seu favor, era um grande estrategista.

Essa edificação na cidade de Floresta-PE foi a sede do batalhão da Força Pública . Fotografia de 2016 e autoria deRostand Medeiros.

As baixas dos Cangaceiros foram três mortes. Caíram em batalha os cangaceiros Sabonete II, secretário de Maria Bonita; Quina-quina e Catingueira.

Na historiografia do cangaço, no bando de Lampião existiram três cangaceiros de alcunha Sabonete.

O primeiro cangaceiro com esse nome está biografado no livro As Cruzes do Cangaço – dos escritores florestanos Marcos Antônio de Sá (Marcos de Carmelita) e Cristiano Luiz Feitosa Ferraz (Cristiano Ferraz). No capítulo Tiroteio e Mortes na Favela, há a informação que o Cangaceiro sabonete I, do bando de Lampião, chamava-se Pedro Celestino, mas era apelidado de Pedro Ramiro. Era natural de Floresta- PE, da região do Riacho do Navio. Ao envolver-se em intrigas de famílias, muda-se para a vila de Santa Maria “Tupanaci”, município de Mirandiba- PE. Este facínora presenciou o combate entre Lampião e o Nego Tibúrcio em 19 de fevereiro de 1924, sábado de carnaval. Pedro Celestino ingressou no bando de Lampião no ano de 1926, na vila de Santa Maria. Seu pai, o velho Ramiro do Riacho do Navio, tentou impedir. Porém, Lampião já havia o aceitado no grupo. No tiroteio da fazenda Favela, Floresta- PE, Sabonete tombou em combate contra as volantes do Anspeçada Manoel Neto e do Sargento Zé Saturnino.

O segundo elemento de mesmo nome, O Sabonete II, foi morto na Fazenda Maranduba. Ao tentar assassinar o Tenente Manoel Neto com um punhal, recebeu um único tiro, tendo morte imediata. É esse que participou dos fatos que narramos acima.

Diz seu Neco de Pautília que estava pegando os espólios de guerra do cangaceiro Sabonete II quando Manoel Neto apareceu e gritou: “Vamos atrás dos cangaceiros, eles estão fugindo!” Seu Neco respondeu: “Bora!”

O terceiro cangaceiro de mesmo nome, Sabonete III, morreu em 1937 pela volante de Zé Rufino no estado de Sergipe.

Agora, vamos voltar à conversa de Manoel Neto com seu Zé Rocha na bodega.

Seu Zé Rocha perguntou:

– Coroné, e os mortos?

Ele respondeu:

– Eram muitos! Já estava anoitecendo. Juntamos os restos das Volantes. Era um desespero só!

No dia seguinte, carregamos os mortos em um burro que os cangaceiros tinham abandonado. Fizemos uma carga, colocamos dois mortos de cada lado e um atravessado no meio da carga do animal. Abrimos uma cova rasa, com as próprias mãos, com pedaços de madeira e a ponta de facão, cobrimos os mortos com um resto de uma casa velha. Todas as vítimas de nossa volante foram enterradas em uma cova coletiva.

Jornal “A Batalha, Rio de Janeiro, 13/10/1932, narra um combate envolvendo Manoel Neto e Lampião após o combate de Maranduba. Apesar da informação divulgada não ser exata, mostra que nessa época o nome de Manoel Neto se consolidava para a imprensa brasileira como um dos principais perseguidores de Lampião.

– Coroné, e depois da luta?

– Fiquei doido! Só pensava em matar Lampião.

Seu Zé Rocha perguntou novamente:

– Foi quando esse tiroteio?

O velho militar parou por um instante, voltando o pensamento ao passado, respondeu:

– Dia 09 de janeiro de 1932.

Oxe! Coroné! É a data de hoje! Dia 9 de janeiro de 1974 – afirmou o bodegueiro.

Com um olhar sereno, respondeu o Coronel.

– Hoje faz 42 anos que perdi meus primos em Maranduba.

Os dois amigos ficaram em silêncio por alguns segundos. Nesse intervalo, a música “A Triste Partida”, na voz de Luiz Gonzaga, era a trilha sonora da narrativa emocionante que todos acabaram de escutar. Foi quando Zé Rocha entendeu a tristeza no rosto do velho amigo, que tanto admirava. As pessoas ali presentes ouviram atentamente a história contada por aquele homem. Muitos não imaginavam estar na frente do Coronel Manoel de Souza Neto, o lendário caçador de cangaceiro, um homem temido e respeitado por todos, protagonista de histórias que ajudaram a criar um imaginário popular.

O coronel Manoel Neto em silêncio ficou; colocou a mão no bolso da calça, puxou uma cédula amassada, pagou a bebida.

Seu Zé Rocha, passando-lhe o tronco, agradeceu e perguntou:

– Já vai, meu amigo?

Ele balançou a cabeça, gesticulando que sim.

Antigo comércio de Zé Rocha, no povoado Poço da Cruz. Percebe-se que a sua Bodega tinha duas portas, a última casa da foto. Foto: Cortesia da Família de Zé Rocha, acervo pessoal.

Atento a tudo que estava ao seu redor, ajeitou seu velho revólver no coldre, saiu a caminho da porta e, como costumava fazer sempre que deixava algum estabelecimento, deu uma olhada para trás e, devagar, dirigiu-se para a porta, olhando os dois lados da rua antes de sair. Era uma questão de precaução. O Cel. Manoel Neto tinha muitos inimigos, jamais poderia baixar a guarda. Ao descer da calçada, andou em passo largo para seu velho Jeep, entrou nele, deu partida, e foi embora. Todos ali presentes observavam com admiração e espanto aquele senhor, sem entender como ele, que se aparentava frágil, era tão valente.

O automóvel aos poucos foi desaparecendo naquela estrada empoeirada. Sua silhueta sumiu na linha do horizonte, levando embora uma parte importante da história do cangaço, naquele dia 9 de janeiro 1974, ao som da música do Rei do Baião, Luiz Gonzaga. O destino conduzia um dos maiores perseguidores de Lampião, o Rei do Cangaço.

Simples e bela Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Floresta-PE, cuja construção se iniciou em 1776 – Foto Rostand Medeiros.

A origem de Mané Neto

Manoel Neto nasceu nas terras da Fazenda Algodões, distrito de Floresta, em 1º de novembro de 1901. Era filho de Maria Mendes de Sá e Gregório de Nogueira Nascimento. Sua mãe era descendente de Antônio Mendes de Sá, um dos envolvidos na Questão do Sabiucá. Por isso, antes de pormenorizar detalhes da vida deste personagem, apresento ao leitor o que foi a referida questão.

O estopim de toda a Questão do Sabiucá, entre 1866-1876, deveu-se a uma personagem chamada Florência Leite da Alcunha ou Florência Leite Freire, conhecida como Flor do Ambrósio “da Volta”, de origem indígena da região da Serra Negra, município de Floresta.

Flor do Ambrósio foi casada com Francisco David Gomes de Sá, “Chico David”, nascido provavelmente em 1799. Ela nutria um ódio por Zacarias Gomes de Sá, seu cunhado (irmão de seu marido), o patriarca do clã dos Gomes de Sá.

Esses dois personagens – Flor e Zacarias – se envolveram em disputas de terra, alegando ela que fora enganada na divisão da herança pelo cunhado. Seu Zacarias criava uma neta chamada Antônia Nunes da Conceição, uma moça muito bonita, que vai participar da intriga da narrativa que se segue. No período em questão, Flor passava uma temporada na fazenda Volta, embora morasse na Fazenda Ambrósio, às margens do Rio São Francisco.

Então Flor do Ambrósio arquitetou um plano para se vingar de seu cunhado Zacarias. Para isso envolveu a jovem Antônia Nunes, neta de Zacarias, e Manoel Leite de Sá.

Desta forma, Flor procurou Manoel Leite e disse que Antônia estava apaixonada por ele, que a moça teria coragem de fugir com seu amor, não fazia isso porque seu avô não aprovava o relacionamento dos dois. Disse também que Manoel não era homem suficiente para raptá-la, pois, caso tivesse coragem de fazer isso, Zacarias não permitiria e lavaria sua honra com sangue.

Manoel Leite, mesmo não tendo nenhum romance com a moça, ficou enfurecido ao saber que Zacarias não aceitava o namoro. De início, não tentou raptá-la, mas Flor do Ambrósio começou a incentivar o jovem, dizendo que daria abrigo aos dois na fuga.

Insistentemente, Flor do Ambrósio passou a dizer:

– Você não tem coragem! Não é homem.

Em face da insistência, Manoel aceitou roubar a moça.

Dias depois, Flor do Ambrósio procurou novamente Manoel e disse que estava tudo preparado, Antônia havia aceitado fugir com ele. O local da fuga seria na fazenda Sabiucá.

Ao contrário do que imaginava, o jovem Manoel cairia em uma arapuca montada por Flor, que estava ciente de que aquela história traria uma guerra entre as famílias, porém continuou seu plano de vingança contra o cunhado.

Com tudo premeditado, Flor procurou Zacarias (avô da moça) e contou o plano de Manoel Leite, relatando data, dia e hora do rapto. O velho Zacarias ficou furioso e jurou lavar sua honra, pois neta de homem não era raptada. O Patriarca chamou seu filho José Gomes de Sá, seus irmãos e seus homens de confiança, muitos deles escravos cometeram crimes a mando de seus senhores. Zacarias também procurou seu sobrinho José Deodato de Sá e o filho deste, Laurindo Deodato de Sá, que eram conhecidos como homens que viviam das espingardas. De imediato, esses aceitaram o serviço de dar cabo à vida de Manoel Leite. No dia marcado, Zacarias e seus homens foram ao encontro do jovem Manoel, que esperava, inocentemente, raptar Antônia.

Era dia 9 de fevereiro de 1866, Manoel e seu primo Francisco Xavier Moura seguiram para a Fazenda Sabiucá (ou Mendes Moura), acompanhados de mais 4 homens da família. Ao chegarem ao local marcado para a fuga, um frondoso pé de Juazeiro, foram avistados pelos inimigos. O grupo de Manoel caiu em uma emboscada, travando um violento tiroteio. Os bacamartes inimigos foram descarregados sobre eles. Logo, Francisco caiu atingido, agonizando, sem entender o porquê de sua morte. Mesmo ferido, Manoel Leite conseguiu fugir com seus outros parentes, deixando seu primo baleado.

Abaixo se encontra a matéria do jornal do Recife que versa sobre o evento que desencadearia os fatos de Sabiucá.

Jornal do Recife, edição 03-04-1866

Rapto – Na Fazenda do Sabiocá no Rio São Francisco, distritto da villa da Flo-resta, comarca de Tacaratú, em a noite de 9 de fevereiro do proximo findo, 6 individuos tentaram raptar uma moça. Sendo avisados os parentes desta, reunirão 6 homens e foram ao encontro dos raptores, travando-se um conflito do qual resultou a morte de Francisco Xavier de Moura e o ferimento grave do primo deste, Manoel Leite de Sá.

Zacarias e seus homens, percebendo que os sequestradores de sua neta haviam abandonado o campo de luta, aproximaram-se do pé de juazeiro. Ao encontrar o Francisco Leite de Moura caído, gritou:

– Vamos acabar de matar essa desgraça! Vou sangrar esse infeliz.

Porém, foi impedido por seu filho José Gomes de Sá:

– Pai! Francisco está quase morto!

A notícia espalhou-se com fogo em capim seco. O sangue de Francisco Leite foi derramado em vão e agora tinha de ser vingado. A honra da família Mendes precisava ser lavada.

Foto de setembro de 1932, região de Jeremoabo, Bahia, onde vemos da esquerda para direita Manoel Neto, o engenheiro Holanda Cavalcanti, os volantes Euclides e Manoel Flor e por último o ajudante de estradas Raimundo Rocha. Os policiais estavam nessa ocasião dando proteção a esses civis que, junto com uma turma de trabalhadores, abriam uma estrada, situação que os tornavam alvos da ira de Lampião. Fonte  Marilourdes Ferraz.

Antônio Mendes de Sá, pai de Francisco (que morreu inocentemente), jurou vingança. Logo, mandou chamar, através de Hermínio Ferraz, dois Cangaceiros da região do Caldeirão em Floresta, para se vingar de seus inimigos. Os cangaceiros aceitaram fazer o serviço. A vingança era a única forma de lavar sua honra. Tudo já estava planejado, José Deodato de Sá, sobrinho de Zacarias, deveria ser assassinado, o que aconteceria dias depois em emboscada.

A emboscada deu-se da seguinte forma: estava José Deodato em sua fazenda. Logo cedo, indo para a roça com seu filho Laurindo, foram surpreendidos pelos vingadores, que saíram de trás de uma moita e gritaram: – Homem que é homem não mata outro de emboscada! – Disse isso fazendo alusão à cilada sofrida pelos primos Manoel Leite Moura e Francisco Moura.

Assim, começou um violento tiroteio à queima-roupa. José Deodato conseguiu atingir um dos agressores, que caiu ferido; porém foi baleado e ficou com sua arma desmuniciada, morrendo a seguir.

O outro cangaceiro e Laurindo travaram um combate. Como reza as regras da arte da briga sertaneja, quando a munição acaba, os dois soltam as armas no chão e pegam seus punhais. Assim foi feito. Começaram um duelo, uma luta de corpo a corpo. O cangaceiro do Caldeirão era destro, desferiu um golpe de punhal em Laurindo, mas não acertou. O filho de José Deodato – Laurindo – era canhoto e, rindo, conseguiu acertar um golpe no cangaceiro. Percebendo que fora ferido, este saiu, correu, adentrou na caatinga, foi morrer na fazenda Roque, sendo encontrado dias depois.

A esposa de José Deodato – Dona Zefinha – que presenciava a tudo aflita, vendo um dos assassinos do seu marido caído no chão, partiu enfurecida com sua sandália nas mãos para bater na cara do cangaceiro. Mesmo ferido, com a espinha dorsal quebrada a tiro de espingarda, ele puxou seu facão da bainha e disse:

– Afaste-se, dona! Não chegue perto não!

Zefinha grita:

– Seu miserável! Ainda vem matar homem por dinheiro?

Mesmo ferido, ele respondeu:

– Vim por amizade, Dona, não por dinheiro!

Zefinha Gomes de Sá falou:

– Você ainda fala isso, desgraçado!

Logo chegou Laurindo, filho de Zefinha, que saíra vitorioso no combate com o adversário fujão. Então carregou seu bacamarte, pediu para sua mãe afastar-se do cangaceiro que estava ferido no chão e deu um tiro certeiro na cabeça dele.

Segundo Zé Yoyô (grande genealogista e conhecedor das histórias de Floresta, PE), com a morte de José Deodato de Sá, outros membros do Clã dos Gomes de Sá envolveram-se na intriga. Foram eles João Deodato Pereira, Rufino Deodato Pereira. Os Martins: Jovino Martins, José Martins – alcunha Cazé Martins. Como vingança, eles foram assassinar o velho Mariano José de Moura, pai de Manoel Leite de Moura, o jovem que tentou raptar Antônia Nunes, neta de Zacarias.

O velho Mariano foi emboscado, assassinado friamente, sem nenhuma chance de defesa, causando mais revolta nos seus familiares. Os assassinos sumiram no meio da caatinga.

Agora, vejamos os entrelaçamentos consanguíneos dos envolvidos nesta série de assassinatos.

Mariano José de Moura era irmão de Antônio Mendes de Sá (pai de Francisco Xavier Moura, o jovem que fora morto inocentemente no primeiro embate, quando aconteceria o rapto da moça). O mandante do assassinato de José Deodato (Antônio Mendes de Sá) era sobrinho de Zacarias (patriarca do clã dos Gomes de Sá). Assim, em vingança pela morte de seu irmão Mariano, Antônio Mendes incentivou seus sobrinhos – Joaquim Mariano de Sá e José Mariano de Sá – a assassinar Antônio Martins.

A morte de Antônio Martins deu-se da seguinte forma: ele estava na vila de Floresta, no dia 07 de julho de 1866, com o objetivo de compor um júri popular. Por volta das 16h, pediu licença ao juiz da comarca, pois precisava ir à casa em que estava hospedado. Ao se dirigir à residência, foi alvejado por tiros, sendo atingido em seu braço direito. Quando a fumaça da pólvora baixou, as testemunhas, que dizem ter escutado dois disparos, viram dois indivíduos correndo para destinos ignorados. Eram eles Joaquim Mariano de Sá e José Mariano de Sá. Antônio Martins faleceu devido ao ferimento.

Zacarias – o patriarca – reuniu os homens da família e ordenou uma nova vingança. Dessa vez, Antônio Mendes (pai de Francisco Xavier, que já fora morto anteriormente) deveria morrer. Assim foi feito. Seu carrasco seria Laurindo Deodato, com seu bando.

Com o assassinato de Antônio Martins na vila de Floresta, os criminosos Joaquim e José Mariano fugiram. Seu tio Antônio Mendes (o mandante) foi preso e pronunciado pelo crime de morte de José Deodato e Antônio Martins, sendo conduzido à cadeia pública. Então Laurindo, enfurecido com a morte do pai, manda um recado para Antônio Mendes:

– Ti prepara cabra! Eu vou lhe retirar da cadeia e sangrar você no meio da rua.

O recado tinha dia e hora marcados para a vingança. As autoridades foram informadas das intenções de Laurindo e seu bando de invadir a cadeia e assassinar Antônio Mendes. A polícia, tendo um efetivo pequeno, autorizou que Antônio Mendes ficasse com suas armas, um bacamarte e um punhal, dentro da cela. Mas isso não o impediria de ser assassinado friamente. Porém, a ameaça era apenas uma distração, pois Laurindo havia arquitetado todo o esquema.

Antônio Laurindo pagou a um preso para auxiliar na sua trama maquiavélica. Assim, ele prometeu que no dia da invasão o detento aliciado seria resgatado com vida e poderia fazer parte de seu bando. Então o preso, altas horas da noite, urinou na caixa da culatra do bacamarte (também chamado de “ouvido, carregador”), e quebrou o punhal de Antônio Mendes, colocando-o com defeito na bainha. Agora, Antônio Mendes estava sem nenhuma chance de defesa. A guarnição não esperava um ataque surpresa de Laurindo, pois ele havia prometido e não tinha aparecido.

Para essa empreitada de assalto à delegacia, Laurindo havia criado um grupo de cangaceiros composto por familiares, malfeitores e escravos. Na noite da invasão, 25 de julho de 1868, eles saíram da fazenda Gravatá em direção a Floresta. Próximo da vila, Laurindo esperou anoitecer e mandou um dos seus homens disfarçados observar o contingente policial ali existente.

Na madrugada do dia seguinte, dia 26, o lugarejo foi atacado e as saídas da vila foram bloqueadas. A cadeia pública ficava na mesma rua da igreja de Nossa Senhora do Rosário, a aproximadamente 200 metros. A maioria dos integrantes do bando de Laurindo usaram o templo como trincheira. O cangaceiro Asa Branca e seus homens travaram um forte tiroteio com a guarnição ali presente. Houve uma pequena resistência. Logo um soldado tombou sem vida e os outros militares que estavam de sentinela fugiram.

Laurindo e o cangaceiro Asa Branca foram em direção à cadeia Pública. Antônio Mendes pegou suas armas, mas logo percebeu que estavam inutilizadas. Rapidamente compreendeu que havia caído em uma armadilha.

Os tiros pareciam rojão de festa junina, a fuzilaria era grande. Os assaltantes quebraram a porta da cadeia a machado. Então soltaram os presos, menos um, Antônio Mendes. Arrastaram a vítima à força para fora da cela, num ato de pura selvageria.

Laurindo disse:

Eu mandei o recado que lhe sangrava, cabra. Agora tu vai morrer!

A sangria era uma prática de introduzir um punhal na cavidade do pescoço da vítima, conhecida como saboneteira, causando-lhe a morte por hemorragia. O punhal entrava, perfurando vários órgãos como coração, pulmão. Quando o executor tira o punhal do pescoço da vítima, às vezes jorrava longe o sangue. Esse estilo de crime era uma forma de humilhar seus inimigos. É um crime bárbaro. Por isso há um ditado: morreu igual a um bode sangrado.

Coronel Manoel Neto. Fonte: Marilourdes Ferraz

O corpo de Antônio Martins ficou estendido no chão. Depois que concluiu sua vingança, Laurindo e seus homens saíram para as bodegas, foram beber cachaça e comemorar a morte de seu inimigo. Seu bando saqueou o comércio, pegou 3 mulheres da vida e fugiu logo em seguida.

No dia 26 de julho, pela manhã, havia um cenário de guerra na vila. As autoridades locais pediram providência. Então a polícia e alguns paisanos foram em perseguição ao bando de Laurindo. Tiveram notícias que eles estavam no riacho do Angico e partiram para lá, encontrando-os. A força efetuou um cerco, envolvendo o grupo de Laurindo e do cangaceiro Asa Branca.

O grupo foi pego de surpresa, muitos estavam deitados no chão, descansando, outros estavam bêbados. Houve um forte tiroteio, sendo abatido o criminoso de nome João Deodato de Sá Pereira. O restante do grupo fugiu em debandada.

Em vingança à morte de João Deodato, Laurindo e Asa Branca, dias depois do cerco, tentaram emboscar um membro da família Mendes. Não tendo êxito, mataram seu escravo de nome José. O bando de Asa Branca e Laurindo era perigoso, atuava na região do Sabiucá, Ambrósio e Gravatá, com o apoio de Zacarias Gomes de Sá.

Como represália e tentativa de se proteger, os filhos e sobrinhos de Antônio Mendes também formaram seus próprios bandos, indo morar nas caatingas.

O bando de Benedito Moura e Pedro voltou para cumprir sua vingança, cometendo uma série de mortes. Na Fazenda Tapera foram emboscados Miguel Lima e seu irmão. Os escravos e vaqueiros das famílias envolvidas também entraram na questão, os primeiros com a promessa de seus senhores de que teriam a liberdade, caso assassinassem os inimigos de seus donos. Como ganharia a carta de alforria, muitos escravos pegaram em armas. O mais famoso deles foi o cangaceiro João Raposo, que obteve sua liberdade no manejo do Bacamarte. Passou de escravo para cangaceiro, deixou o cativeiro para viver da espingarda.

Em represálias às mortes dos irmãos Lima, um vaqueiro da família Moura foi assassinado quando campeava o gado. Da mesma forma, o Cangaceiro Benedito Moura assassinou o vaqueiro de Zacarias Gomes de Sá e ocultou seu corpo em plena caatinga, soltando seu animal, levando os arreios do vaqueiro como troféu. Um escravo de Zacarias foi morto em uma emboscada.

O esposo de Felismina Gomes foi morto, a viúva achou melhor ir embora da região, com medo de seus filhos serem assassinados ou querer vingar a morte do pai. Ela fez seus filhos mais velhos jurarem que nunca vingaria a morte de seu genitor. Dias depois, Valentim, seu filho caçula, voltou à região e vingou a morte de seu pai, despertando uma onda de violência, dando reinício à questão.

A mãe do jovem, Felismina, falou:

– Meu filho, eu não queria vingança.

Ele respondeu:

– A senhora só exigiu a promessa dos filhos mais velhos.

Durante as santas Missões, o Frei Ibiapina chegou no ano de 1869 na região de Floresta. Logo foi informado da Questão do Sabiucá, da intriga de várias famílias e do derramamento de sangue que estava acontecendo. O Frei convidou os envolvidos para fazer um acordo de paz. Foi chamado o patriarca da Família Gomes de Sá, Zacarias. Ele foi ao encontro de Frei, na calçada da igrejinha do Rosário, e o reverendo colocou-lhe a mão na cabeça, dizendo:

– Tudo isso por causa dessa cabeça pelada! Muito sangue derramado. Vamos acabar essa intriga.

O sacerdote fez um acordo entre os líderes de cada família. Ordenou que todos ali presentes colocassem suas armas em frente à igreja. Assim eles fizeram! E o Frei falou: – Ali estão suas armas, a causa de todas as desgraças entre vocês. Eu quero que todos cuspam nelas, e depois todos apertem as mãos e deem um abraço! Vocês são todos da mesma família. Que toda essa soberba, todo esse ódio de vocês acabe hoje!

Em seguida, o Frei Ibiapina mandou cavar um buraco bem fundo na frente da igreja e ordenou que colocassem todas as armas dentro. Mandou enterrá-las. Por último o Frei proferiu as seguintes palavras:

– Vocês prometem nunca mais pegar em armas uns contra os outros?

– Prometemos!

Se algum de vocês tentar voltar à questão será amaldiçoado. De hoje em diante, quem derramar o sangue do próximo terá seu sangue derramado.

Após esse dia, foi construído um cruzeiro em cima do local onde foram enterradas as armas.

O acordo estabelecido pelo missionário e as famílias ficou assim definido: os envolvidos na questão que pertenciam às famílias Mendes e Mouras teriam que ir embora do Sabiucá. Assim, eles foram morar na região do Riacho São Domingos, São João do Barro Vermelho e Fazenda Ema, município de Floresta. Foram eles: Mariano José Moura e sua esposa Clara Gomes de Sá; José Mariano de Moura, que era casado com uma filha de Antônio Mendes – que foi sangrado na frente da cadeia pública – cujo nome era Pastora; Francisco Leite, seus filhos e genros, um dele era Santos Correia do Tigre; os filhos de Manoel José de Moura, David Gomes Jurubeba, Florência, Chico Cabeça de Pau; Florência Mendes, que, quando chegou na região, se casou com Manuel de Souza Ferraz, conhecido como Manoelzinho. Todos foram recomeçar uma nova vida longe do Sabiucá, como prometeram ao Frei Ibiapina. Estas informações estão no manuscrito de José Gomes Correia, Zé Yoyô do Tigre.

Porém, no ano de 1870, Laurindo quebrou o acordo e tentou matar Francisco Leite. O ódio que Laurindo nutria por seus inimigos era tão grande que o fez quebrar a promessa que seu tio Zacarias havia feito ao frei Ibiapina. Assim, ele contratou o famoso cangaceiro João Raposo para eliminar seu inimigo Francisco Leite.

De início, esses cangaceiros foram assassinar Joaquim, irmão de Francisco. Logo após praticar o crime, fugiram para uma cidade do Agreste.

Posteriormente, deu-se a tentativa da morte de Francisco Leite, a qual aconteceu da seguinte forma: o Cangaceiro Raposo, à frente do seu bando, saiu da Fazenda Sabiucá. No outro dia, logo cedo, chegaram à região do São Gonçalo, onde residia Francisco Leite, o qual vivia da agricultura e da criação de animais, caprinos e bovinos. Como era de costume, acordava cedo para sua labuta diária. No dia em questão, o agricultor se encontrava próximo de uma cacimba que ficava ao lado de um curral, a poucos metros de sua casa. Estava apenas armado com um estoque, um tipo de faca. Logo foi surpreendido por Laurindo e o bando do cangaceiro Raposo.

O cangaceiro chegou perto da cerca e gritou:

– Ei, boi velho, perdeu a fama! Você hoje vira couro de espichar vara!

As filhas de Francisco Leite perceberam o movimento dos cangaceiros cercando seu pobre pai. Elas saíram correndo em socorro ao seu genitor. Inaciana pegou um velho bacamarte e foi ao encontro de Francisco Leite, mas esqueceu de pegar a vareta de carregar a arma, levando-a desmuniciada. Aninha, sua irmã, agarrou em uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, levantando-a acima da cabeça, indo ao encontro do seu pai. Ela gritou:

-Valha-me, Nossa Senhora, salve meu pai.

Vendo o desespero das filhas, principalmente de Aninha, o cangaceiro Raposo bradou:

– Hoje não tem milagre! Nossa Senhora não vai livrar desse boi velho de ser sangrado igual a um bode!

Inacinha conseguiu, no meio de todo aquele alvoroço, entregar o bacamarte a seu pai, embora a arma estivesse descarregada. As filhas de Francisco entraram no curral, vendo a morte em sua frente, sem nenhuma chance de defesa. Francisco Leite percebeu que a arma estava descarregada e jogou-a no chão, puxando o estoque em seguida. O cangaceiro Raposo foi logo pulando a cerca do curral para pegar o Velho Chico Leite à mão.

Um milagre aconteceu: ouviram-se uns estampidos. Eram disparos de bacamartes. No meio do curral caiu o famoso cangaceiro João Raposo, com um tiro no joelho. O projétil foi disparado por um filho de Francisco Leite, acompanhado de seu primo Chico Cabeça de Pau, sobrinho do velho que estava em perigo. Eles salvaram o velho Chico Leite de ser sangrado.

O bando de Raposo – vendo o desenrolar da peleja, sem acreditar no que via e imaginando ser aquilo tudo um castigo pelas blasfêmias que seu chefe havia falado com a santa – saiu correndo para a caatinga, abandonando seu líder. Mesmo caído no chão, o cangaceiro João Raposo demonstrou ser valente, mas logo foi sangrado ali mesmo. Ele teve o mesmo destino de morte de Antônio Mendes de Sá. É importante lembrar que o Criminoso João Raposo havia participado da invasão da Cadeia Pública de Floresta. Logo que a notícia se espalhou na região, muitos moradores foram ver a imagem da santa milagrosa. Muitos atribuíram o acontecido com Francisco Leite a uma intercessão divina, pois ele escapara com vida das mãos dos facínoras.

O cangaceiro João Raposo, segundo pesquisa documental, provavelmente era um ex-escravo. Ele respondia por inúmeros crimes de morte, furto de cavalo, roubo a almocreve e pistolagem.

Após esse acontecimento, Laurindo fugiu sem concluir sua vingança contra Francisco Leite. Assim, ele e seu bando sofreram grande perseguição das autoridades, alguns homens seus foram presos e mortos.

Abaixo segue uma notícia do Jornal de Recife que trata da prisão do cangaceiro Bernardo.

JORNAL DO RECIFE

Sexta-Feira, 11 de junho de 1869

Por officio de 20 do dito mez, participou-me o delegado do termo de Floresta, que no dia 30 de abril último, foi preso pelo Subdelegado do distrito do Navio, a acha recolhido a cadeia de Flores, que offerece maior segurança, o criminoso de differentes mortes, de nome Bernardo conhecido por Praieiro, tendo sido os últimos crimes de morte pelo mesmo e outros que foram perpetrados, os de que foram victimas o preso Antônio Mendes de Sá e um soldado.

Transcrevi o texto com a grafia da época. O Criminoso Bernardo, alcunha de Praieiro, participou da Revolução Praieira ou Rebelião da Serra Negra no sertão de Pernambuco, na vila de Floresta, PE. Autor de vários crimes, vivia do seu Bacamarte. Ele fez parte do grupo de cangaceiros liderado por Laurindo Deodato de Sá, que invadiu a Cadeia Pública da vila de Floresta e assassinou Antônio Mendes de Sá.

Após isso, Laurindo teve que ir embora da região, indo morar em Remanso, no estado da Bahia. Ao chegar a solo baiano, praticou um homicídio e teve de fugir novamente, agora para o estado de Minas Gerais, mais precisamente para a região de Rio Correntes.

Porém, como falou o Frei Ibiapina “quem ferir com ferro, com ele será ferido”. Assim, Laurindo encontrou a morte no ano 1884, vítima de assassinato. No último suspiro, ele disse:

– Não quero vingança da minha parte. Estou pagando pelos crimes que fiz. Isso é a justiça divina!

Entretanto, seus filhos Joca e José Laurindo Deodato, movidos pelo ódio e sede de vingança, saíram em perseguição aos autores da morte do seu pai, conseguindo assassinar o mandante a golpe de faca. Em seguida fugiram.

Não aceitando o acordo de paz, Jovino Martins, Rufino Deodato e o cangaceiro Asa Branca, com seu bando de malfeitores, passaram a praticar diversos crimes: assassinatos, furtos de animais, roubos a tropeiros e estupros.

Em 1871, retornou à vila de Floresta Frei Ibiapina. Em conversa com o sacerdote da Paróquia de Bom Jesus do Aflito, Padre Felipe Samambaia, o missionário soube das notícias: Laurindo e seus primos haviam quebrado o acordo. A Questão do Sabiucá estava de volta.

O Frei Ibiapina solicitou providências das autoridades da Vila de Floresta para dar cabo desse grupo de cangaceiros que aterrorizava a região. Deveria ser punido imediatamente. A população da vila de Floresta, revoltada, juntou-se à polícia. Fizeram um numeroso contingente e foram à procura dos criminosos. Nesse dia, uma forte tempestade caiu na região e o rio Pajeú estava cheio. Frei Ibiapina falou:

– Essa grande tempestade era porque hoje estão entrando almas no inferno.

A Polícia entrou na caatinga em perseguição ao bando de cangaceiros de Laurindo. Encontraram-nos, houve forte tiroteio, o cheiro de pólvora dos bacamartes, a luta de punhal nas mãos. Esse embate resultou em várias mortes, o bando foi destroçado. No mesmo dia entraram na vila de Floresta 03 corpos no lombo de burros. Todos ali presentes ficaram impressionados com a premonição do Frei.

Era o fim da Questão do Sabiucá, uma das maiores intrigas de Família de Floresta, PE, no Brasil Império, segundo a história oral. Foram assassinadas 32 pessoas.

Zacarias, o patriarca do Clã dos Gomes de Sá, não foi assassinado. Usou de toda sua influência, ficou na região do Sabiucá. Alegou que estava certo: entrou em questão para lavar sua honra. Ele foi processado, indo ao tribunal do júri por duas vezes, no dia 08 de julho de 1867. Seu advogado foi o Capitão José Paulino Rodrigues Barros. Apesar de tudo, foi absolvido pelo assassinato de Manoel Leite de Moura.

No auge da Questão do Sabiucá, ciente de que poderia ser morto a qualquer hora por seus inimigos, Zacarias juntou todos seus objetos de valor – como joias, moedas de ouro e prata -, e os colocou dentro de um baú. Feito isso, chamou seu filho José Gomes de Sá e um dos seus escravos para transportar a mercadoria. O cativo não imaginava que carregava uma verdadeira fortuna.

Em certo local, Zacarias ordenou que seu escravo cavasse um buraco, colocasse o baú dentro e o enterrasse. Depois de realizada a tarefa, o ancião pegou seu bacamarte e atirou nas costas do serviçal. Quando foi indagado por seu filho, José, o porquê dessa barbaridade, respondeu:

– Esse infeliz é um traidor! Traiu a minha confiança. Ele é um dos responsáveis pela morte do meu genro. Esse negro levava informação para nossos inimigos. Nunca mais ajudará a matar genro de homem.

Essa afirmação do Patriarca se deve ao fato de que, durante os eventos da questão acima, Zacarias perdeu um dos seus genros em uma emboscada que seria para o próprio Zacarias.

Quando voltou para a fazenda, após o esconderijo do baú e da morte do escravo, Zacarias e José contaram que o cativo havia fugido. Assim, sua fortuna estava bem guardada. Naquele tempo, banco no Sertão era coisa rara. Quem tinha objetos de valor guardava em baús, potes de barros, ocos de árvores. Essa prática era conhecida como botija.

Por causa da ocultação de seus bens no baú, existia uma lenda na Fazenda Ambrósio em que se afirmava que a assombração de Zacarias aparecia gritando:

– Oh! Que agonia, meu Deus! Eu mandei matar muita gente. Estou penando. Cadê minha Botija!

Assim, Zacarias vaga lamentando seus pecados, arrependido dos seus crimes, pedindo para que se encontre a botija e o liberte da maldição. Mas, na verdade, José, seu filho, depois que a questão acabou, voltou ao local em que estava enterrado o baú com os objetos de valor e o trouxe de volta.

Antônio Mendes, que continuava preso durante o desenrolar da questão das mortes por vingança, foi julgado pela morte do pai de Laurindo. Foi absolvido, mas houve a apelação e ficou preso de novo. O julgamento ocorreu dois dias após o atentado contra a vida de Antônio Martins, que era pai de Jovino e José Martins, que participaram do assassinato de Mariano, irmão de Antônio Mendes.

Antônia Nunes – neta de Zacarias, a moça que seria raptada no início da história, mesmo não tendo culpa de tanto derramamento de sangue, nunca se casou com ninguém, não saía de casa. O único lugar em que andava era a igreja do Cemitério do Sabiucá. Tornou-se uma mulher amarga, carregou essa angústia pelo resto da vida.

É importante lembrar que, na cultura sertaneja, quando um jovem raptava uma moça, a honra da família teria que ser lavada. O raptor era obrigado a casar. Caso isso não acontecesse, o pai da raptada teria que lavar sua honra com sangue. Se os jovens se arrependessem, teriam que voltar casados ou, ao chegar, se casavam logo. Tal atitude era uma forma de honrar os homens da família da moça. Houve caso de rapto em que a jovem era devolvida sem casamento, começando uma guerra entre as famílias envolvidas.

O que se sabe é que Antônia Nunes nunca foi namorada de Manoel Leite. Foi apenas objeto de vingança de Flor do Ambrósio contra seu cunhado Zacarias. Apesar disso, a moça levou a culpa dos familiares de Francisco Leite por seu assassinato, e, como forma de lidar com suas angústias, colocou luto pelo resto de sua vida.

Antônia era filha de Joana Maria de Sá e Manoel Nunes da Conceição. No seu inventário está escrito que a referida morreu solteira, sem descendentes, em 1909, deixando uma parte de seus bens para seus sobrinhos – os filhos de seus irmãos, Josefa Gomes de Sá e Boaventura Nunes da Conceição; a outra parte ficou para a Igreja do Cemitério do Sabiucá.

Antônia Nunes presenteou com uma imagem de Nossa Senhora da Conceição seu sobrinho e afilhado, Macário Gomes de Sá, meu bisavô paterno. Ele nasceu em 1880. A imagem faz parte do meu acervo.

Antônio Mendes de Sá foi assassinado barbaramente, deixando todos seus familiares em luto. Com o acordo entre as famílias, seu povo deixou a região do Sabiucá, Roque, Gravatá, Ambrósio e Tapera dos Valentões. Antônio Mendes deixou vários filhos. Sua filha Ana Mendes de Sá, “Aninha Brava”, era casada com José Vitoriano de Sá, conhecido como Cazuzinha do Roque. Eles também tiveram vários filhos. Uma filha de nome Maria Mendes de Sá se casou com Gregório Nogueira Nascimento e tiveram os seguintes filhos:

1 – Filomena Maria de Sá, nascida em 1894, falecida em 20.06.1973.

2 – Amerida Maria de Sá, nascida em 1896, falecida em 06.05.1975.

3 – Arcôncio de Souza Ferraz, em 1921, que entrou para as fileiras militares, viajando para Recife, sendo o primeiro filho do solo sagrado de Nazaré do Pico a ser militar.

4 – Altina Souza Ferraz, nascida no dia 07.08.1897 e falecida no dia 17.11.1980.

5 – Manoel de Souza Neto, nascido em 01.11.1901, falecido em 03.11.1979.

6 – Ancilon Nogueira do Nascimento.

7 – Afonso Nogueira.

Do amor entre Maria Mendes e Gregório Nogueira nasceria o maior perseguidor de Lampião e seu bando. Seu nome ficará gravado na historiografia do cangaço. Símbolo de resistência, sua coragem, muitas vezes, beirava a loucura. Seu nome é uma homenagem ao seu avô paterno, Manoel de Souza Neto. Nasceu no dia 01 de novembro de 1901, na fazenda Algodões, Município de Floresta, PE, no Sertão de Pernambuco. Cresceu no meio de sua família, na vila de Nazaré do Pico. Frequentou a escola do professor Domingos Soriano. Seu nome: Manoel Neto.

Manoel Neto nunca imaginou que sua vida seria marcada por violência, mortes e vários combates com um grupo de cangaceiros. Seu destino seria igual ao do seu bisavô Antônio Mendes de Sá, que teve de lidar com afrontas e ódios. Assim, Manoel travou uma guerra sem fim com Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, seu amigo de infância. Dessa forma, o Rio São Francisco – que foi testemunha da Questão do Sabiucá, onde imperou o fogo do bacamarte, vitimando vários inocentes – testemunharia os embates entre o volante mais valente e o maior de todos os facínoras.

Manoel Neto era nazareno, descendente de Antônio Mendes, morto na lendária Questão do Sabiucá. Deixaria um rastro de pólvora, violência e dor no Sertão devido a seu ódio pelos irmãos Ferreira. A caatinga seria seu palco de luta até o dia que Lampião tombou sem vida no dia 28 de julho de 1938, na grota do Angico, município de Poço Redondo, Sergipe.

A Questão do Sabiucá e a diáspora da família de Antônio Mendes deu origem a Manoel Neto e a outros bravos nazarenos. Sua história é muito intrigante. Ele saiu do povoado de Nazaré do Pico, distrito de Floresta, em 1922, com destino a Rio Branco, atual Arcoverde, PE. Nesta empreitada, foi acompanhado do almocreve Adão Feitosa para vender peles de bode, uma viagem cansativa e perigosa, com risco alto de um encontro com cangaceiros, pois esses criminosos estavam em toda parte do sertão de Pernambuco. A região de Pajeú de Flores e Riacho do Navio eram berços de grandes cangaceiros. O percurso de Nazaré do Pico a Rio Branco era feito a cavalo ou a pé, tangendo frotas de jumentos carregados de produtos.

Aos 20 anos, Manoel Neto pega um vapor em Rio Branco com destino a Recife. Alistado, seu primeiro posto foi soldado ‘‘praça”, tendo uma brilhante carreira militar. Após, passou para a reserva remunerada no Posto de Tenente Coronel da Polícia Militar de Pernambuco.

O seu ingresso na Polícia de Pernambuco aconteceu no dia 23 de janeiro de 1923. Infelizmente, sua pasta no arquivo desta corporação está incompleta, segundo o pesquisador Cel. André Carneiro de Albuquerque. Isso se deve porque, provavelmente, ele viajou no segundo semestre de 1922 e sua incorporação na fileira militar aconteceria apenas no ano seguinte.

Manoel Neto teve que pegar em armas para defender a honra de seu povo quando a paz do povoado de Nazaré do Pico foi ameaçada por Lampião, futuro Rei do Cangaço. Muitos pesquisadores consideram-no como o mais implacável dos militares no combate ao banditismo rural. Foram mais de quarenta tiroteios com grupos de cangaceiros e mais de 16 anos de perseguição em plena caatinga.

Jornal carioca “A Batalha, edição de 3 de agosto de 1938, quando Manoel Neto deu uma entrevista após a morte de Lampião.

Assim foi a vida de Manoel Neto. Ele se entregou de corpo e alma à luta contra Lampião e seu bando. Foi um militar muito corajoso. Sua coragem beirava a loucura humana. Por causa de suas imprudências no campo de batalha, foi ferido diversas vezes. Alguns ferimentos foram graves, como o sofrido no Fogo das Caraíbas, quando foi ferido no braço, causando-lhe uma fratura exposta. Foi socorrido e levado para o Povoado de Betânia, na época, sendo cuidado por um curandeiro. Seu tratamento foi feito à base de plantas medicinais.

No Combate da Serra Grande, em Calumbi, PE, Manoel Neto foi atingido nas pernas, e uma delas chegou a ser fraturada. Nesse combate quase foi abatido pelos Cangaceiros. Esse ferimento lhe deixaria um pouco manco da perna pelo resto da vida. Houve muitos outros ferimentos adquiridos, diversas vezes ele enfrentou a morte.

Sua carreira militar também foi manchada por inúmeros atos de violência contra a população. No estado da Bahia, suas forças foram responsáveis por vários espancamentos, torturas e assassinatos. Ele foi denunciado por crimes de abuso de autoridade, sendo convidado a deixar as terras baianas.

Quando entrou para a reserva remunerada em 27 de outubro de 1947, Manoel Neto optou por uma vida tranquila no interior de Pernambuco. Foi morar na Vila de Espírito Santo, atual Inajá, PE, onde foi prefeito.

Logo que deixou o cargo de Prefeito de Inajá, decidiu ir morar no Distrito de Ibimirim, que era do município de Inajá. Segundo alguns pesquisadores do tema cangaço, Manoel Neto foi o primeiro Prefeito de Ibimirim, mas outros discordam dessa afirmativa. O Cel. Manoel Neto não foi o primeiro chefe de governo de Ibimirim, ele foi o prefeito de Inajá. Como Ibimirim era apenas um distrito de Inajá, ele também era Prefeito do Povoado.

Segundo Josinaldo André de Souza, em 1928 Ibimirim era uma vila pequena, com aproximadamente 20 casas e uma Capela dedicada a Santo Antônio de Paula. Pertencia ao município de Moxotó, era uma rota para Rio Branco, atual Arcoverde. Nas sextas-feiras existia uma pequena feira embaixo de uma frondosa árvore. Seu Zeca Moura e Dona Rosa eram donos de comércio na vila, para onde viam pessoas de muitas regiões; era o ponto de encontro dos moradores do povoado Poço da Cruz, Jeritacó, Campos e Puiú. O Cel. João Inocêncio elevou a vila de Ibimirim a cidade no dia 20 de novembro de 1963. Foi nessa cidade que Manoel Neto decidiu morar e viver seus últimos dias de vida.

Combatentes contra os cangaceiros – Da esquerda para a direita vemos um volante desconhecido, Odilon Flor e Manoel Neto.

Quando Manoel Neto foi morar em Ibimirim, fez logo amizade com Antônio Sebastião Clemente (Antônio Cambista) e a esposa desse, Eutália Teixeira de Carvalho. Essa amizade perpetuaria até sua morte.

Certo dia, de costume, o Cel. Manoel Neto parou seu velho Jipe em frente ao restaurante de dona Chiquinha. Um jovem se aproximou e disse:

– Coroné, queria ser volante para brigar com Lampião igual ao senhor.

O Coronel sorrindo disse:

– Já vi muito cabra frouxo igual a você correr no primeiro tiro. Vá estudar e deixe de falar besteira.

O velho militar evitava falar de suas proezas no tempo do cangaço, principalmente na frente dos jovens. Ele não tocava nesse assunto para não incentivá-los. Dizia:

– Não sou exemplo para nenhum jovem.

Quando alguém falava em valentia ou sobre o cangaço, ele ficava calado e logo ia embora do local.

Em entrevista a Dona Ana, filha de seu Antônio Cambista, residente em Caruaru- PE, ela me relatou:

– Ele era alto, magro, bonito, adorava azul. Sempre usava roupa combinando. Não tirava o chapéu de massa da cabeça. Ele era um homem muito educado, falava manso, de olhar firme, muito respeitador com as moças. Minha mãe dizia: “Coronel, o senhor está bonito hoje”. Ele dava uma gargalhada, os olhos brilhavam e dizia: “Em Nazaré tem cabra bonito, é porque a senhora não viu o primo Manoel Flor. Aquele andava equipado!” Ainda rindo, acrescentou: “Manoel Flor era arrumado até nas brigadas!”

O coronel usava camisa azul, cáqui, preta, calça de linho e alparcata “xô boi” feita pela família Enoque, de Floresta. O artesão Antônio Enoque de Marcelino era responsável pela fabricação de suas sandálias de couro, a tradicional alpercata de couro, a famosa “Xô Boi de Floresta”.

Segundo seu Moacir, o Cel. Manoel Neto tinha o hábito de todas as tardes ir aos postos de combustível de Guido, filho do Cel. João Inocêncio. Às vezes ele fazia o percurso a pé, lembrado o tempo do cangaço.

No universo da volante, Manoel Neto sabia que pegar o rasto de cangaceiros era arriscado e perigoso. Por isso, quando se estava andando e se percebia que alguém vinha se aproximando, logo se afastava para o outro lado da estrada. Ele não pegava na mão de estranho e não conversava com ninguém de muito próximo; era muito precavido o Coronel.

Muitas pessoas tinham o hábito de lhe pedir a bênção. O coronel dava a benção de longe. Ele dizia:

– Deus lhe abençoe, mas pode ficar aí.

O coronel não permitia aproximação, pois poderia ser surpreendido por alguém que, pedindo-lhe a bênção, viesse a pegar em sua mão e tentar lhe assassinar com uma faca peixeira. Quando alguém tentava conversar com ele sobre algum remédio caseiro, ele dizia:

– Meu filho, eu converso com você no Posto de Guido de João Inocêncio.

E mandava a pessoa ir à frente dele, nunca deixando sua retaguarda desprotegida. Assim muitas pessoas fizeram, andavam na frente e ele atrás. Os moradores do povoado Lage diziam:

– Lá vem o Cel. Manoel Neto com um preso.

Todos davam uma gargalhada; a população sabia que ele não consultava ninguém em lugar deserto. Muitos falavam:

– Eita velho desconfiado!

Outras vezes o coronel Manoel Neto fazia o mesmo percurso no seu jipe velho azul. Logo era reconhecido pelos moradores da região; ele só andava no carro na primeira ou segunda marchas, forçando o motor do automóvel. De longe a população gritava:

– Lá vem o coroné! Passa a marcha, coroné.

Todos davam gargalhadas.

Certo dia, o Coronel, em sua rotina habitual, chegou ao Povoado Lage. A população ficou apreensiva. De óculos escuros, camisa cáqui, calça preta e seu velho revólver calibre 38 na cintura. Os moradores perceberam que o visitante estava estranho. Naquele dia ele se envolveu em briga com o Jovem Severino Brusco, motorista do coronel João Inocêncio. Dias Depois o jovem viria a ser assassinado por Manoel em um duelo de cabra macho. Existem duas versões da causa desse desentendimento.

A primeira versão é de que o coronel entrou em um estabelecimento e o motorista chegou logo em seguida, dizendo:

– Coloque um Coronel; hoje quero beber; hoje quero beber.

Era costume dos sertanejos colocar um copo americano de cachaça e tomar de uma só vez. Essa prática era chamada de “sargento”. O significado disso era que, muitas vezes, em perseguição aos cangaceiros, os soldados tomavam um corpo cheio de cachaça em um único gole para aumentar a adrenalina no corpo, atenuando o estresse emocional em que viviam os militares. Então, muitos sertanejos chegavam nas bodegas e falavam: “Coloque um Sargento!”

Nesse dia Severino gritou:

– Coloque um “coroné”!

O Cel. Manoel Neto perguntou:

– Como é, cabra?!

O jovem repetiu:

– Hoje eu quero beber, coloque um “coroné!

Sentindo-se humilhado, Manoel Neto puxou seu revólver 38 e desferiu um golpe certeiro na testa do jovem com o cabo da arma, fazendo um enorme sangramento. Assim, começou uma verdadeira confusão, as pessoas ali presentes entraram no meio da briga para acalmar os ânimos dos dois. Severino jurou vingança contra a vida de Manoel Neto. O jovem motorista falou:

– O senhor pode ter certeza de que não vai ficar assim.

O coronel Manoel Neto disse:

– Não vou mudar de cidade por causa de você.

A segunda versão diz que o desentendimento foi por motivo político: Severino andava difamando o coronel Manoel Neto. Chateado com a atitude do jovem, o velho militar pensou em dar um basta nessa situação. Certo dia, chegando ao Povoado Lages em seu jipe, presenciou o jovem Severino correndo atrás de uma moça; estavam brincando. Manoel Neto, incomodado com aquela atitude, gritou:

Manoel Neto caçando cangaceiros na Bahia. Acervo Giovane Gomes.

– Deixe disso, cabra safado. Parece um tarado!

A moça falou:

– Estamos brincando, Coronel!

Severino, revidou à altura:

– Cabra safado é o senhor.

O coronel ficou de orelha vermelha quando ouviu a resposta de Severino. Desceu imediatamente do jipe, partiu para o jovem, dando-lhe um tapa na cara, sacou de sua arma para atirar no jovem, sendo impedido por populares.

Severino disse:

– Coronel, em cara de homem não se bate!

O outro falou:

– Não estou dando em cara de homem, mas na cara de cabra safado. Homem não corre atrás de mulher!

Severino respondeu:

– Coronel, eu sou pobre, mas sou homem. Era melhor o senhor ter me matado. Em cara de homem não se bate.

Várias pessoas já estavam envolvidas na confusão, o coronel de arma em punho. Os amigos do militar chegaram, tiraram-no do local. Severino, que foi desmoralizado, estava com os ânimos exaltados, jurando vingança.

Indo embora, o Cel. Manoel Neto contou sobre a confusão ao seu amigo, Antônio Cambista. Esse advertiu:

– Aquele rapaz tem coragem!

O Cel. Mané Neto falou:

– Pode vir. Estou acostumado com cabra safado.

Seu Antônio Cambista, dizia:

– Não se bate na cara de homem, Coronel!

Manoel Neto ficou calado como se nada houvesse acontecido.

Severino era um homem valente, foi humilhado com um tapa na cara. Com sede de vingança, começou logo a beber, chorar e jurar vingança. Ele conhecia os hábitos do militar, pois seu patrão morava perto do Coronel. Assim, arquitetou um plano para sua vingança: matar o algoz em sua casa.

Seu Antônio Cambista alertava:

– Coronel, Severino é genioso como o senhor. Ele vai querer vingança. O homem humilhado quer lavar sua honra.

O Cel. Manoel Neto respondeu:

– Pode vir. Nunca tive foi medo de macho!

No dia seguinte, Severino colocou seu plano em ação. O Coronel morava em uma casa de jardim com um muro pequeno na frente e um corredor lateral. Foi nesse local que o jovem Severino se escondeu, sem ninguém perceber, esperando surpreender o velho militar, acreditando que sua força juvenil era superior à idade de seu adversário. Ele nunca imaginou que estava emboscando Manoel de Souza Neto, o lendário Mané Fumaça, o homem que muitas vezes enfrentou Lampião e tinha a força dos cabras de Nazaré.

O coronel vinha tranquilamente na rua principal de Ibimirim, usando sua camisa de brim azul, sua calça de linho preta e chapéu de massa na cabeça. A única coisa que lhe denunciava ser militar era seu velho revólver calibre 38 no coldre, à mostra.

Aproximando-se de sua casa, entrou pelo velho portão, fazendo um estalo. Um vulto apareceu com uma faca peixeira na mão e partiu para cima do coronel. Sem entender nada, mas sempre precavido, Manoel Neto sacou sua arma, dando um tiro por reflexo, não acertando o alvo. Ouviu-se uma voz:

– Perdeu a fama, velho safado? Nunca mais você bate em cara de homem.

Com uma agilidade espetacular para um homem de mais de setenta anos, ele pula o pequeno muro de sua casa. Deu o segundo tiro, acertou o peito de Severino, que se afastou com o impacto do projétil, mas logo voltou ao campo de luta. As pessoas presentes à peleja ficaram impressionadas com a velocidade do velho coronel. No terceiro tiro, ele gritou:

– Cabra Safado, você está brigando é com o Cel. Mané Neto!

O terceiro tiro acertou o abdômen de Severino.

Mesmo alvejado à queima-roupa, Severino continuou caminhando para cima do Coronel, tentando acertar um golpe com sua faca peixeira. Não acertou nenhuma facada. No momento de fúria, baleado com dois tiros, ele tentou desesperadamente matar o algoz. Sentindo seu corpo perdendo as forças, sangrando muito, Severino começou a cair lentamente no chão.

O quarto tiro acertou-lhe de raspão. Os dois últimos tiros o velho militar errou. Quem presenciava o duelo tinha certeza de que a hora do velho militar havia chegado. Mas, por incrível que pareça, ele saiu ileso, sem nenhum arranhão. Mais uma vez Manoel Neto enfrenta a morte e sai vitorioso.

Severino estava caído no chão, mas conseguiu se levantar e, cambaleando, saiu caminhando, todo ensanguentado, da casa do Cel. Mané Neto que estava de arma na mão e novamente carregada. Porém, não desferiu mais tiros contra seu agressor. O jovem motorista baleado conseguiu chegar até a casa de seu patrão, caindo em seguida. O Cel. João Inocêncio falou:

– Que desgraça foi essa, homem?!

Severino respondeu:

– Foi o Cel. Mané Neto. O Senhor está vendo o que ele fez comigo?!

O patrão respondeu:

– Eu não disse a você que não mexesse com aquele cascavel!?

Logo em seguida, uma multidão se aglomerou em frente à casa do cel. Manoel Neto. Um rastro de sangue estava presente, a fumaça da pólvora ainda estava no local e, de arma em punho, estava o maior perseguidor de cangaceiros. A experiência de combate com facínoras foi decisiva para reagir a mais uma emboscada sofrida. Quem presenciou a última peleja do Cel. Manoel Neto concluiu que ele era valente ao extremo, que ele fazia jus ao apelido de Mané Fumaça. Logo chegou a notícia que Severino estava morto próximo à casa de seu patrão.

João Florentino de Carvalho era de Floresta, estava no dia da tragédia que abalou Ibimirim. Ele era funcionário público dos Correios. Na hora do episódio ele ouviu os primeiros tiros. Então, saiu para ver o que estava acontecendo, percebendo que vinha do lado da casa do Coronel Manoel Neto. Assim, correu em direção à residência do velho militar ao seu socorro. Quando lá chegou encontrou o Cel. Manoel Neto e falou:

O que foi isso, Coronel?

O coronel respondeu: – Dei cabo de um infeliz agora.

João Florentino insistiu:

Coronel! O que o senhor vai fazer agora?

Ele respondeu energicamente:

– Nada. Não sou homem de me assombrar com pouca coisa.

Com muita tranquilidade, o Coronel aconselhou a seu amigo que tentava lhe ajudar:

– João, vá para casa, você é de Floresta, você é casado e tem filhos. Pode ser que alguém queira vir atrás de mim querendo vingança.

João, que se encontrava desarmado quando chegou à tragédia, mesmo exposto a tudo e a todos, disse:

Não vou Coronel. Não deixarei o senhor sozinho. Um florestano não deixa outro para trás.

João Florentino permaneceu com o Coronel e o recomendou que deixasse Ibimirim por enquanto, coisa que o Coronel não se mostrou interessado. Porém, em seguida, mesmo relutante, entrou em sua casa, pegou suas outras armas, colocou no carro e saiu. Todos ali presentes ficaram impressionados com a sua frieza no meio daquela desgraça; não parecia que há poucos minutos sua vida estava correndo perigo. João Florentino só saiu da frente da casa quando Manoel Neto foi embora para a residência de Antônio Cambista, o qual foi logo perguntando:

– O que faz aqui, meu amigo?

O coronel respondeu:

– Acabei de fazer uma desgraça.

– O que foi aquele tiro? – Antônio perguntou. JOÃO FLORENTINO DE CARVALHO

Ele respondeu:

Acabei de matar Severino.

Qual Severino? – perguntou Antônio.

Severino, motorista de João Inocêncio.

O senhor é doido? O senhor vai ser preso!

O Cel. Manoel Neto disse:

Nunca. Não admito um volante colocar as mãos em mim.

Antônio cambista continuou:

Coronel, o senhor tem que sair da cidade.

Logo em seguida chegou à esposa de Seu Antônio, Dona Eutália, desesperada com o acontecido. Disse:

Coronel, pelo amor de Deus, vá embora.

Ele disse:

Estou saindo da cidade, não por medo, mas por respeito ao oficial de justiça, que é meu amigo e a vocês que estão me pedindo. A quem perguntar por mim pode dizer que daqui a oito dias estarei de volta.

O coronel começou a assobiar; isso era comum quando ele estava nervoso ou calmo. Logo em seguida, entrou no seu jipe e partiu para a fazenda Baixa da Imburana. Quando voltou para Ibimirim, logo tratou de vender a residência; não quis mais morar nela. Alugou uma pequena casa e foi residir próximo de seu amigo Antônio Cambista.

Outro fato interessante aconteceu no período de eleições municipais em Ibimirim. O coronel apoiava Cajá para prefeito e apareceu uma conversa que existia um famoso pistoleiro para assassinar Cajá e o Coronel Manoel Neto. Avisados dessa história, o Coronel, Cajá, Audálio e outros familiares do candidato a prefeito se dirigiram para o povoado Lages. Chegando ao local, o coronel desceu de seu jipe, caminhou em direção à casa e atirou na porta, gritando:

– Podem tomar a porta traseira, que a dianteira é minha. Saia para fora, cabra. Você está brigando com o Cel. Mané Neto.

Quando entraram na casa, não tinha ninguém. Os moradores evadiram-se pela porta da cozinha, encontraram apenas uma rede velha, resto de bebida e comida. Todos ali presentes ficaram impressionados com a valentia do coronel.

Em 1973, os repórteres Fernando Portela e Cláudio Bojunga entrevistaram o velho militar. Eles narram:

“Magro, alto, elegante, vestido de azul-celeste, lá está o coronel Mané Neto, se não fosse aquele Taurus 38, cano médio na cintura, ele poderia ser definido como um velhinho simpático e indefeso. Indefeso, jamais: quando me aproximei dele, um tanto bruscamente, brecando o carro a poucos metros, a mão (fina, delicada) do coronel ameaçou puxar o Taurus da cartucheira, mas… um grito – É jornal, coronel! É do jornal – guardou os reflexos do coronel para outra ocasião. Mas ele, o Coronel, ainda desconfiado: – Abra a porta do carro, meu filho. Vamos, desça, venha cá. Devagar.”

Esse era o perfil do coronel, um homem sempre precavido. Conversou por horas com o repórter Fernando Portela, mas evitou falar do tempo do Cangaço. De voz calma, sempre educado com as pessoas, ele não deixava transbordar o homem valente que existia dentro de si. Fernando estava em frente ao maior caçador de cangaceiros. O próprio Lampião respeitava a coragem de Manoel Neto. Com a mão no queixo, ouvia atentamente a conversa de Fernando Portela. O coronel não falava do seu passado, não dava palestra sobre a campanha contra o banditismo rural, não aceitava ser exemplo de valentia para os jovens.

Outro episódio interessante nessa entrevista é que o coronel se manifestou muito incomodado com o fato de os caminheiros levarem as moças da cidade embora. Veja que na fotografia se percebe seu revólver calibre 38 à amostra e pronto para sua defesa.

Em 1979, ano do seu falecimento, o coronel começou uma crise renal. Ele dizia que as fortes dores eram devidas a muita sede porque passou quando andava na caatinga perseguindo Lampião e seu bando. Segundo ele, os volantes sofriam muita privação, e a falta de água era uma delas.

Ibimirim, 1973, Cel. Manoel Neto e o repórter Fernando Portela (Foto de Josenildo Tenório). Nesse registro, Manoel Neto, já com idade avançada, ao lado de seu Jipe e na rua principal da cidade.

Quando surgiam as crises renais, ele fazia remédio de ervas medicinais. Um dia avisaram a dona Eutália que o coronel estava andando na rua todo urinado e com o semblante diferente. Logo ela foi buscar seu velho amigo, encontrou-o desorientado e o levou para sua casa. Começou a cuidar dele, colocou-o em um dos quartos de sua residência. Seu marido e suas filhas auxiliavam nos seus cuidados. O Coronel apresentava um quadro de demência.

O Coronel Manoel Neto não gostava de ficar sozinho. Dizia ter medo de alma. Mesmo sendo um grande Volante, tinha pavor de fantasma; quando vinham as crises nervosas, seu Antônio Cambista dormia na casa dele, pois o ancião não ficava sozinho.

Certa noite chegou uma mulher com sua filha ardendo em febre na casa de seu Antônio. Dona Eutália pediu que seu marido fosse chamar o Coronel para fazer uma consulta na pobre criança que estava à beira da morte. Seu Antônio, chegando à casa do amigo, bateu na porta e falou:

– Coronel, sou eu, Antônio cambista!

O coronel respondeu:

– Quem é?

Antônio fala novamente:

– Sou eu! Antônio Cambista, seu amigo.

Reconhecendo a voz de seu amigo, o Coronel fala de dentro da casa:

– Estou saindo.

A casa em que o velho militar morava tinha uma porta e uma janela de lado. Ele acendeu o candeeiro e veio para a sala da casa. Seu Antônio, que esperava o amigo abrir a porta da frente, vê o Coronel abrir a janela com sua arma na mão a perguntar:

– O que o Antônio quer nessa hora da noite?

Então Antônio narrou o fato e o coronel disse:

– Espere aí.

Entrou no seu quarto, trocou de roupa e partiu para a casa de seu Antônio. Chegando lá, colocou o menino em cima da mesa e começou a examiná-lo. A mãe aflita começou a chorar, e a criança também. Ela, em pranto, dizia:

– Coronel, salve minha filha, pelo amor de Deus!

Logo o coronel gritou:

– Cale a boca. Deixe de choro, seu filho não vai morrer. Não gosto de choro perto dos meus ouvidos. Faz-me lembrar dos meus companheiros em Maranduba.

Dona Eutália acalmou a mulher. O Coronel mandou trazer uma bacia com água, colocou a criança dentro e deu o banho, fazendo baixar a febre. Após isso, medicou-a e a deixou em observação. Ele era um mestre raizeiro, desenvolveu medicina popular quando foi chefe de Volante. A criança sobreviveu, e sua mãe, no outro dia, agradeceu muito ao velho militar.

Mas, agora, quem estava doente era o Coronel, cuja saúde a cada dia piorava. Seu Antônio Cambista e dona Eutália decidiram procurar as autoridades. Entrou em contato com o Comando Geral da Polícia Militar. O coronel João Lessa mandou uma viatura buscar o doente e levá-lo para o Hospital do Derby, onde ele ficou internado 14 dias.

Em entrevista, Ana, filha de seu Antônio Cambista e Dona Eutália, narrou que seu pai, quando viu o automóvel transferindo o coronel Manoel Neto, começou a chorar, pois ele sabia que o grande dia havia chegado para aquele homem valente.

Quando o carro partiu de Ibimirim para Recife, o automóvel estava levando parte da história: Manoel de Souza Neto, um homem valente que deixou seu nome gravado para sempre na historiografia do cangaço.

No dia 3 de novembro de 1979, às sete horas e quarenta e cinco minutos, faleceu de causas naturais, em decorrência de problemas renais, o temível coronel Manoel de Souza Neto que, desta vez, havia perdido a batalha para a morte que tantas vezes ele olhou nos olhos dela. Seu corpo foi trasladado para a vila de Nazaré do Pico, Floresta, sendo sepultado com honras militares. Sua amiga dona Eutália cuidou de seu amigo até a hora de sua morte. Ela o acompanhou e, com seu esposo Antônio Cambista, foram exemplos de uma verdadeira amizade com o Cel. Manoel Neto.

Estas fotos faziam parte do acervo pessoal de Manoel Neto. Acervo: Giovane Gomes.

NOTA DO AUTOR: É importante comentar que esse artigo é um resumo de um livro que estou escrevendo sobre a história desse valente e intitulado “A Origem de Manoel Neto”, uma lenda na história do Ciclo do Cangaço no Nordeste do Brasil, onde trarei fatos novos de sua vida com base em uma extensa pesquisa de campo.

Mas é importante frisar que quando ele viveu na pequena cidade de Ibimirim, na década de 1970, muitos pesquisadores cometeram uma grande injustiça em suas obras: afirmaram que o Coronel Manoel Neto morreu pobre e abandonado num pequeno quarto de hotel. Estavam todos completamente errados.

Nos seus últimos dias de vida, o Coronel foi bem cuidado pelos amigos Antônio Cambista e sua esposa Dona Eutália. Cuidaram dele com muito amor e carinho. Dona Eutália acompanhou seu velho amigo a Recife, ficando a seu lado até sua morte. E seu grande amigo Antônio Cambista chorou, ao saber de seu falecimento. Manoel Neto era oficial da Polícia Militar de Pernambuco, era aposentado, possuía casa e uma fazenda próximo da cidade de Ibimirim e seu soldo (salário) lhe garantiu um padrão de vida muito bom para a época.

Em conversa com o amigo e Pesquisador Rostand Medeiros, responsável pelo Blog TOK DE HISTÓRIA, aceitou publicar em primeira mão esse artigo, que é um resumo do meu livro.

FONTES BIBLIOGRÁFICAS

Agradeço à professora Anair Elisabete, que conseguiu para mim livros raros da cidade de Ibimirim.

Coletânea de inventário da família Gomes de Sá.

Entrevista com Ângelo Gomes de Sá, meu pai, em 2009, neto de Macário Gomes de Sá, filho de José Gomes de Sá, um dos envolvidos na Questão do Sabiucá.

Entrevista com familiares de Antônio Cambista e Dona Eutália. Suas filhas dona Ana e a Professora Socorro. Agradecer à Alyson, filho de Dona Ana e Neto de Seu Antônio Cambista pelo apoio.

Entrevista com Manoel Cavalcanti de Souza, o ex-volante Neco de Pautília, em 2009.

Entrevista com seu João de Ibimirim.

Entrevista com Seu Moacir.

Entrevista com João Florentino de carvalho, em 2009

Entrevista gravada com o genealogista Nivaldo Carvalho, em 2009.

FERRAZ, Marilourdes. O canto do Acauã.

GOMINNHO, Leonardo Ferraz. Floresta, Uma terra, um povo.

Manuscrito de José Yoyô.

PORTELA, Fernando e BOJUNGA, Cláudio. Lampião, O cangaceiro e o outro.

SOUZA, Josinaldo André de. Ibimirim: Sua origem.

O escritor e pesquisador Rostand Medeiros, responsável pelo Blog TOK DE HISTÓRIA, gentilmente cedeu vários jornais sobre A Questão do Sabiúca.

*SEBASTIÃO GIOVANE GOMES DE SÁ

Nasceu em Floresta, Pernambuco, no dia 2 de novembro de 1982, filho da agricultora Francisca Maria Frutuoso e do Funcionário Público, Agente Penitenciário, Agropecuarista e ex-vereador de Floresta Ângelo Gomes de Sá. Aos 18 anos, ingressou nas Forças Armadas no 10º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, Recife, PE. Vindo de escola pública, cursou História na Urca – Universidade Regional do Cariri, Crato-CE. É formado em Técnico em Agropecuária pelo IF – Campus Crato-CE. É graduado em Gestão Ambiental pela Universidade Estácio de Sá, Campus Juazeiro do Norte – CE, pós-graduado em Gestão Ambiental e Arqueologia Patrimonial pela FAVENI. Seu gosto por história do cangaço vem do fato de ser bisneto de Macário Gomes de Sá, sequestrado por Lampião em 1930. Cresceu ouvindo as histórias do cangaço. Pai de Giovanna e Julia, atualmente é funcionário da Loja Central de Adubos, filial Petrolândia, PE e Produtor Rural. Em sua coleção particular tem cartas, fotos, documentos e objetos do cangaço, e no seu acervo tem objetos que pertenceram ao Cel. Manoel Neto, forte de sua pesquisa. Logo lançará dois livros: O cangaço, A   origem de Manoel Neto, e o livro Lampião, A Última Travessia, em que narrará fatos de 1928, quando o rei do cangaço, com o pequeno grupo, atravessou para o estado da Bahia.

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