COMO FOI A “CONFERÊNCIA DO POTENGI”, QUE REUNIU OS PRESIDENTES ROOSEVELT E VARGAS EM NATAL EM 1943 – OS DETALHES DAS REUNIÕES

Recentemente um amigo me perguntou como ocorreram as reuniões entre os presidentes Franklin Delano Roosevelt (Estados Unidos) e Getúlio Dorneles Vargas (Brasil), ocorridas no dia 28 de janeiro de 1943, a bordo do navio de guerra USS Humboldt, ancorado no rio Potengi em Natal?

Esse fato, conhecido como “Conferencia do Potengi”, é um episódio até que bastante comentado pelos natalenses. Mas sobre os detalhes do que aconteceu a bordo dessa nave da US Navy pouco é divulgado.

Visando sanar a dúvida desse dileto amigo, estou reproduzindo no nosso blog TOK DE HISTÓRIA as páginas de número 252 a 262 do livro “Brasil – A Segunda Guerra Mundial e a Construção do Brasil Moderno” (Editorial Presença, Lisboa, Portugal, 2014), escrito pelo escocês Neill Lochery, que trata com extremo detalhismo sobre esta questão. Vale a leitura para conhecer o que se passou no que ficou conhecido como “Conferência do Potengi”.

O autor é um importante historiador, dedicado aos temas da da história moderna da Europa e do Oriente Médio e Mediterrâneo, além de ser um colaborador frequente de jornais e publicações de periódicos em todo o mundo. Lochery também é professor na University College, de Londres. É autor de uma série de livros aclamados pela crítica. Vários de seus livros enfocam a Segunda Guerra Mundial. Lochery tem mestrado pela Exeter University e doutorado pela Durham University (Centro de Estudos do Oriente Médio e Islâmicos), ingressou na University College em 1997 e é professor de Estudos do Oriente Médio e do Mediterrâneo na Faculdade de Artes e Humanidades. 

Procurei evitar ao máximo realizar alterações e acrescentar notas, apenas onde foi mais do que necessário para o melhor entendimento dos leitores. Acrescentei fotografias da nossa coleção, de modo a criar um melhor entendimento daquele momento histórico. Vale ressaltar que esse livro foi publicado no Brasil com o título “Brasil – Os Frutos da Guerra” (Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2015). 

Acredito que o texto de Neill Lochery é extremamente interessante para o conhecimento dos natalenses e potiguares para um dos momentos mais importantes da História do Rio Grande do Norte.    

Getúlio Vargas junto a oficiais da marinha dos Estados Unidos, provavelmente conversando em francês.

Vargas também se preparava para uma reunião secreta que teria enormes consequências para o Brasil e para a guerra à qual o país se unira havia pouco tempo. Em uma nota para Cordell Hull[1], na terça-feira, 26 janeiro de 1943, Jefferson Caffery[2] escreveu de forma enigmática: “Eu saio pela manhã com o chefe de Oswaldo para encontrar você sabe quem. Devo voltar na sexta-feira”.[3] 

No dia seguinte, Caffery, o almirante Ingram e um adido naval embarcaram num avião, juntamente com o presidente Vargas e dois assessores.[4] 

Vargas com seu charuto Corona, seu preferido, despachando no Palácio do Catete.

Assim que todos os seis passageiros subiram a bordo, o avião decolou e rumou para Natal. Ao chegar, o grupo foi transferido para um contratorpedeiro, o USS Jouett, onde seus integrantes jantaram e passaram a noite se preparando para as reuniões do dia seguinte. 

Vargas estava muito ansioso. Ele participara havia pouco de celebrações em São Paulo por ocasião do aniversário da fundação da cidade. Seu filho, Getulinho[5], tinha contraído poliomielite nesse período, e todos presumiam nos círculos políticos da capital que o presidente continuava em São Paulo com ele[6]

Vargas e Jefferson Caffery, embaixador dos Estados Unidos no Brasil.

Vargas, porém, decidiu que o dever o chamava e, com efeito, deixou a cabeceira do filho moribundo para participar da reunião em Natal. No entanto, apesar da ansiedade, estava bem preparado para as reuniões vindouras. Aranha elaborara um memorando de dez páginas com conselhos para o chefe que delineavam as prioridades brasileiras. Em um sinal da forte confiança entre Aranha e Caffery, o ministro das Relações Exteriores brasileiro mostrou o documento ao seu colega americano. 

Às oito da manhã de 28 de janeiro de 1943, o hidroavião que transportava o presidente Roosevelt amerissou em Natal. Roosevelt estivera na Conferência de Casablanca, no Marrocos, na qual se reunira com o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e com os generais franceses Charles de Gaulle e Henri Giraud a fim de discutir as táticas e estratégias para o restante da guerra. Na conferência, os líderes também formalizaram seu compromisso para acabar com a guerra por meio da derrota total das potências do Eixo. Essa política, que seria conhecida como a doutrina da “rendição incondicional”, marcaria a Conferência de Casablanca como uma das mais importantes de toda a Segunda Guerra. 

Ao chegar a Natal, Roosevelt foi imediatamente transferido para o navio de apoio a hidroaviões USS Humboldt, onde permaneceria durante aquele dia e aquela noite. 

Mais tarde, na manhã da chegada do presidente americano, Caffery reuniu-se com ele e seu assessor especial, Harry Hopkins. Os três concordaram que Roosevelt levaria “com tato” a questão da adesão do Brasil às Nações Unidas, que era um dos principais objetivos dos americanos para a reunião[7]. A ONU seria estabelecida pelos Aliados como a instituição internacional central na ordem do pós-guerra e substituiria a Liga das Nações. Caffery comentou que Vargas muito provavelmente concordaria com tal pedido — o memorando de dez páginas com os conselhos de Aranha confirmara isso[8]

Getúlio Vargas no seu trabalho.

Roosevelt, Caffery e Hopkins discutiram então a oferta feita pelo Brasil de mandar tropas ao exterior. O presidente explicou que os líderes militares americanos “não estavam muito interessados em enviar tropas brasileiras ao Norte da África.” No entanto, Roosevelt queria convencer Vargas de que suas tropas seriam necessárias em outros lugares do outro lado do Atlântico, sobretudo em alguns territórios de importância estratégica com os quais o Brasil compartilhava um passado colonial. 

No dia após sua chegada, Roosevelt ofereceu um almoço em homenagem ao colega brasileiro na sala de jantar do comandante do Humboldt. Os dois presidentes conversaram em francês, tal como haviam feito durante a primeira reunião que tiveram no Rio de Janeiro, em 1936. Vargas vestia um terno de linho branco e camisa de algodão com sua gravata de seda listrada favorita, enquanto Roosevelt usava um terno de algodão bege-claro ligeiramente surrado e camisa branca. Contudo, a gravata e a braçadeira negras do presidente americano, mais do que qualquer outro elemento de seu vestuário, expressavam seu estado interior. Roosevelt estava de luto pela morte de filhos americanos na Segunda Guerra Mundial — fato que, sem dúvida, ressoou profundamente no presidente brasileiro, cujo filho estava à beira da morte. 

Vargas e Roosevelt no Rioi de Janeiro em 1936.

Roosevelt e Vargas haviam envelhecido bastante desde a reunião em 1936. Embora aparentassem descontração na única fotografia publicada daquele encontro no Rio de Janeiro, em 1943 os dois pareciam cansados. As olheiras de Roosevelt ficavam bem visíveis quando ele tirava os óculos; Vargas ainda

O Uss Humbold (AVP-21), onde aconteceu a “Conferência do Potengi”. Essa nave já foi classificada como “cruzador”, destróier”, “contratorpedeiro”, mas na verdade era uma nave de apoio de hidroaviões, que ficava em Natal para ajudar hidroaviões americanos de busca e destruição de submarinos que ficavam na base da Rampa.

mancava perceptivelmente em decorrência do acidente e levara sua bengala na viagem a Natal. Apenas Jefferson Caffery parecia remotamente saudável — ainda bronzeado após as férias nos Estados Unidos no ano anterior e pelos banhos de sol que tomara na praia no início do mês, no verão carioca. 

Refeição a bordo do Uss Humboldt, vendo da esquerda para direita Vargas, Roosevelt e Caffery.

O clima durante o almoço era de profissionalismo, e o ambiente estava um pouco silencioso. Os dois presidentes viam a reunião como um encontro individual. Sentado à cabeceira da mesa, com Vargas à direita, Roosevelt dirigiu-se diretamente ao presidente brasileiro. Durante todo o almoço, Roosevelt quase não tirou os olhos de seu convidado, mal percebendo a presença de qualquer outra pessoa na sala. Ele falava em voz baixa, mas, embora o tom suave conferisse um ar mais intimista à reunião, o motivo era, na realidade, um resfriado que o presidente americano contraíra com as mudanças drásticas na temperatura às quais fora exposto nos dias anteriores à viagem. Vargas ouviu o colega americano com atenção e interveio de vez em quando, mas apenas de forma breve — quando Roosevelt solicitava uma resposta, por exemplo, ou quando fazia uma pausa para deixar o brasileiro falar. Caffery, sentado à esquerda de Roosevelt, disse muito pouco. Ele ouviu atentamente e algumas vezes inclinou-se para a frente a fim de se certificar de que conseguia ouvir a voz cada vez mais rouca de seu líder. 

Foto clássica dos líderes dos Estados Unidos e Brasil na “Conferência do Potengi”.

Roosevelt começou a conversa informando Vargas do que acontecera em Casablanca na reunião com Churchill e os líderes franceses. Então descreveu o progresso da guerra sob uma perspectiva americana, contando a Vargas como a produção dos Estados Unidos estava evoluindo, como iam as relações anglo-americanas, qual era a situação na União Soviética e quais eram suas esperanças e planos para o período pós-guerra. 

Vargas, Roosevelt e Caffery no USS Humboldt.

Em seguida, o presidente americano falou sobre o Brasil e, de uma maneira geral, sobre o desenvolvimento econômico do país e seus problemas com a imigração. Ele deixou a primeira pergunta para o final dos comentários de abertura, mas então, como era do seu feitio, foi direto ao ponto. — À luz da evolução da situação na guerra — perguntou a Vargas —, o Brasil está disposto a se tornar um membro das Nações Unidas?[9] 

Vargas, que estudara com cuidado o memorando de dez páginas de Aranha no avião, não ficou surpreso com a pergunta. Olhando bem nos olhos de Roosevelt, respondeu que (como Caffery mais tarde relataria numa mensagem para Cordell Hull) “tomaria as providências para se tornar um membro da Organização das Nações Unidas”. Vargas então fez uma pausa que pareceu eterna, mas que durou apenas um ou dois segundos antes de qualificar sua resposta. 

Primeira página do jornal natalense “A República”, noticiando a “Conferência do Potengi”.

— No entanto — continuou ele —, esse pode ser um momento oportuno para dizer mais uma vez que precisamos de equipamentos dos Estados Unidos para nossas forças armadas: Marinha e Aeronáutica[10]

Vargas deixou Roosevelt com poucas dúvidas quanto ao que seria necessário para levar o Brasil a se engajar 100% no campo dos Aliados: os Estados Unidos teriam de aumentar seu fornecimento de armas ao Brasil. 

O navio de guerra norte-americano Uss Jouett, que também ficou ancorado no rio Potengi hospedou Vargas antes do encontro com Roosevelt no Uss Humboldt.

Deixando de lado os envios adicionais de armas americanas para o Brasil, Roosevelt voltou à questão de Portugal. Ele fez um breve resumo sobre a importância da ilha da Madeira para a causa dos Aliados no Atlântico, mas focou, em particular, nos Açores, que eram vitais para as operações dos Aliados no Atlântico Sul. Roosevelt confessou um interesse pessoal pelos Açores, que o faziam lembrar-se da Primeira Guerra Mundial, quando, em 1918, na condição de secretário assistente da Marinha, visitou as ilhas para inspecionar a base naval americana que havia acabado de ser construída. Agora ele confidenciava a Vargas uma conversa que tivera com Churchill, na qual os dois concordaram em fazer da implantação de bases aéreas no Açores uma prioridade estratégica para 1943.[11] A segurança da rota comercial do Atlântico Sul para o continente europeu dependia de ganharem a batalha contra os submarinos alemães, e uma base nos Açores permitiria a operação de aviões antissubmarino dos Aliados ali. A base aérea também seria um ponto de escala vital para a invasão da Europa pelos Aliados, prevista para ocorrer no ano seguinte. 

Os presidentes no jipe, na área da Rampa.

O único fator complicador era que Portugal controlava o arquipélago. Para ter acesso às bases, os britânicos pensavam em abrir negociações com António de Oliveira Salazar, o ditador de Portugal, na primavera de 1943, e os americanos iniciariam as conversas com ele logo depois. “Salazar é um sujeito complicado”, descreveu Roosevelt. Este já começara a tentar tranquilizar o ditador de que uma presença dos Aliados nas ilhas duraria apenas o prazo da guerra, como ocorrera na Primeira Guerra Mundial. Mas Salazar suspeitava que tanto a Inglaterra quanto os Estados Unidos conspiravam para estabelecer uma presença permanente nas ilhas. Como se comprovou mais tarde, o astuto líder português previa a ascensão da Guerra Fria e o confronto ideológico entre a democracia e o comunismo e entendia que as ilhas seriam de grande utilidade para uma potência — como a americana — que desejasse estabelecer domínio na Europa Ocidental. Salazar temia que os Estados Unidos relutassem em deixar os Açores após estabelecer uma posição por lá. 

No entanto, Roosevelt também sabia — ou ao menos suspeitava — que o ditador português estava tão preocupado com as ambições alemãs quanto com as dos Estados Unidos. A Vargas, o presidente americano sugeriu que Salazar temia uma invasão alemã de Portugal e dos Açores, ou uma simples invasão das ilhas. Contudo, essa era uma espécie de cortina de fumaça, uma vez que a ameaça real de uma invasão alemã em Portugal já passara. Com as forças de Hitler envolvidas em combates ferrenhos na União Soviética e com as forças dos Aliados no Norte da África, a possibilidade de um ataque do Eixo a Portugal ou a suas possessões no Atlântico parecia remota. 

Na verdade, Hitler perdera a oportunidade de invadir os Açores. No início da guerra, seus comandantes navais tinham-no instigado a invadir as ilhas portuguesas antes dos britânicos, mas ele optou por ignorar os conselhos. O que preocupava Roosevelt mais do que uma invasão alemã era a perspectiva de Salazar não permitir o acesso dos Aliados às ilhas. Em reuniões reservadas com Sir Ronald Campbell, o embaixador britânico em Lisboa, Salazar indicara que, quando chegasse a hora, ele faria a coisa certa para os britânicos. No entanto, não chegou a prometer aos americanos uma presença nas ilhas. Tanto Churchill quanto o ministro das Relações Exteriores do Foreign Office, Anthony Eden, prometeram tentar mudar a opinião do ditador português quando a Grã-Bretanha abrisse as negociações com ele. Roosevelt e os Estados Unidos, porém, haviam começado os preparativos para talvez tomar as ilhas à força, caso não conseguissem pela diplomacia. 

Roosevelt esperava que seus amigos brasileiros o apoiassem na questão dos Açores. Contudo, quando ele abordou o assunto com Vargas, descreveu o pedido como se fosse uma ajuda aos portugueses, com quem ele sabia que o Brasil ainda mantinha laços estreitos. 

— Você pode nos ajudar enviando tropas para substituir os portugueses, que são mais necessários no continente? — pediu Roosevelt a Vargas.[12]

O líder brasileiro foi pego de surpresa pela franqueza na abordagem de Roosevelt e ficou preocupado com as implicações. Os Estados Unidos pediam ao Brasil, uma ex-colônia de Portugal, para de fato ocupar território soberano

português. Depois de alguns segundos de silêncio, Vargas respondeu de forma lenta, quase mecânica: — Estou disposto a levar esse assunto a Salazar. No entanto, não podemos enviar tropas para as ilhas portuguesas [Açores], a menos que vocês forneçam equipamentos adequados para elas.[13] — Era a diretiva brasileira, e Vargas estava agarrando-se a ela.

Uma revista mexicana, que divulgou o encontro de Roosevelt e Vargas em Natal.

Os dois passaram o resto do almoço elaborando os detalhes de como os Estados Unidos poderiam enviar peças sobressalentes e outros equipamentos muito necessários à Marinha do Brasil. O presidente americano prometeu tentar enviar o máximo de material militar, o mais rápido possível. Esse foi o fim das

conversas sérias, e Roosevelt e Vargas compartilharam uma piada interna com o almirante Ingram, que, por sua vez, disse aos presidentes que a base aérea estava pronta para inspeção. 

Terminada a refeição, os dois chefes de Estado partiram num jipe para ver a base de Natal. A notícia da reunião começara a correr apenas no início do almoço; por isso, quando os presidentes visitaram a base, surpreenderam muitos militares, que não tinham ideia de que os dois líderes iam visitar as instalações. Roosevelt sentou-se no banco dianteiro do jipe; Vargas, no banco traseiro com o almirante Ingram. A excursão foi registrada em uma das fotografias mais emblemáticas desse período de cooperação Estados Unidos-Brasil. Ao mostrar os três homens rindo, a imagem dá a impressão de Roosevelt e Vargas despreocupados, fazendo um passeio. Uma fotografia tirada alguns momentos após a primeira, no entanto, revela um quadro muito diferente. Tanto Vargas quanto Roosevelt parecem quase melancólicos e cansados, como dois idosos que carregam um fardo pesado demais, e cujos dias estão contados. Na verdade, essa segunda fotografia representa melhor os eventos daquele dia do que a primeira imagem mais feliz. 

Naquela noite, Roosevelt e Vargas jantaram com suas equipes no Humboldt. Ao contrário do almoço, o jantar foi menos formal; a conversa, menos empolada e sem dúvida menos comprometedora. Roosevelt prometeu cumprir as promessas de acelerar o fluxo de armas para o Brasil, mas alertou Vargas de que — como o presidente brasileiro com certeza estava cansado de saber — elas estavam em falta. Os dois falaram sobre a possibilidade do envio de uma força brasileira ao exterior, mas apenas em termos gerais. Vargas ainda não conseguira estudar e discutir a fundo o memorando de Dutra em defesa de um grande contingente brasileiro, porém, os comentários e as insinuações de Roosevelt deixavam claro que as forças armadas americanas não estavam muito entusiasmadas com a possibilidade de ter forças brasileiras no Norte da África. Treinar e armar os brasileiros levaria tempo e seria caro demais, pois as novas tropas teriam de estar fortemente armadas e equipadas para participar daquela operação. Contudo, Vargas ainda não tinha como saber qual papel alternativo as tropas brasileiras poderiam desempenhar na guerra além de potencialmente ocupar os Açores. 

Vargas deixou a reunião otimista, em contraste marcante com sua aparência soturna no jipe algumas horas antes. Naquela mesma noite, ele voou de volta para o Rio de Janeiro com Caffery. Aranha se encontrou com o presidente logo após seu retorno e, mais tarde, disse maravilhado a Caffery: “Raramente o vi tão satisfeito com tudo.” Sem dúvida um pouco da alegria que o presidente sentia era pessoal: Caffery mencionara na reunião da manhã com Roosevelt que seu filho estava doente e, durante o jantar, Roosevelt oferecera ajuda ao jovem Getulinho com toda a assistência médica que os Estados Unidos poderiam proporcionar. Mas a reunião também tinha marcado uma importante vitória para o Brasil, e Vargas sabia disso. 

Famoso quadro baseado nas fotos dos presidentes na Rampa, realizado Raymond Neilson.

Na noite de 30 de janeiro de 1943, logo depois da viagem a Natal, Vargas concedeu uma coletiva de imprensa no Palácio Guanabara, na qual descreveu como e quando se dera o encontro secreto com o presidente Roosevelt. O Brasil estava entusiasmado com a notícia de que o líder dos Estados Unidos decidira fazer escala no Brasil — no caminho de volta de nada menos do que uma das conferências mais importantes da guerra — para demonstrar apoio ao país e ressaltar a importância dele para os Estados Unidos. No momento da coletiva, Roosevelt ainda não chegara a Washington; assim, a imprensa internacional se baseou no relato de Vargas para extrair informações sobre a reunião. Vargas ainda estava de muito bom humor para um homem cujo filho permanecia gravemente enfermo. Ele foi elogioso sobretudo a Roosevelt, assegurando aos brasileiros que o presidente americano “ainda demonstrava a firme decisão de levar adiante essa cruzada na qual estamos todos comprometidos”.[14]

O encontro recebeu uma enorme cobertura na imprensa brasileira. O Jornal do Brasil lhe dedicou duas colunas na primeira página, chamando a presença de Roosevelt em Natal de “uma demonstração sincera de elogio ao esforço de guerra brasileiro”. O encontro também recebeu ampla cobertura internacional. A Associated Press divulgou a manchete “Presidente Roosevelt e presidente Vargas, em declaração conjunta, afirmam intenção de tornar o Atlântico seguro para a navegação de todas as nações”. A manchete da primeira página do New York Times em 29 de janeiro de 1943 proclamava simplesmente: “Roosevelt faz escala no Brasil.”[15]

Vargas desembarcando no Rio de Janeiro, após o encontro em Natal.

Na mesma página do anúncio da visita de Roosevelt a Natal, o New York Times publicou uma grande fotografia de uma tripulação em pé na frente de um bombardeiro da Força Aérea dos Estados Unidos com a legenda “De volta do primeiro bombardeio americano contra a Alemanha”[16]. Como a legenda sugeria, a guerra — embora longe de terminada — entrava em uma fase nova e potencialmente decisiva. Vargas continuava a trabalhar sem parar para maximizar os ganhos do Brasil com o conflito, mas o tempo estava passando, e o Brasil precisava agir depressa para garantir o que já conseguira obter.

Vargas e o então Ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha no Rio, quando do seu retorno de Natal.

 O encontro de Vargas com Roosevelt e os acordos resultantes seriam talvez o auge da carreira política de Vargas e da era do Estado Novo. Embora seja simplista sugerir que Vargas entraria em decadência daquele ponto em diante, ele nunca ascenderia àquelas alturas vertiginosas de novo. E o primeiro sinal de mudança em sua sorte veio na forma de uma perda pessoal devastadora.

 Poucos dias depois da reunião de Vargas com Roosevelt, Getulinho morreu. A perda do filho bonito e talentoso mudou Vargas para sempre. Sua esposa, Darci, retirou-se da esfera política e concentrou-se apenas em seus trabalhos de caridade. O próprio presidente demonstrava ter perdido a confiança e o foco; parecia envelhecido, se movimentava mais devagar e passou a confiar cada vez mais em Alzira e em Aranha para receber orientação política. À medida que sua capacidade de avaliação política o abandonava, seu humor tornava-se mais sombrio, e seu afastamento da elite política, mais pronunciado.

 Essas transformações não tiveram um impacto imediato ou óbvio na capacidade de Vargas de governar, mas a morte do filho sem dúvida afetou sua capacidade de julgamento, tanto em temas políticos quanto pessoais. Durante anos após a morte de Getulinho, Vargas viveu um luto muito particular — embora se esforçasse para encobrir esse fato enquanto trabalhava para guiar o Brasil pela guerra cada vez mais global.


NOTAS

[1] Cordel Hull nessa época era o Secretário de Estado Norte-americano, cargo equivalente ao de Ministro das Relações Exteriores no Brasil. O Oswaldo em questão era o gaúcho Oswaldo Aranha, Ministro das relações Exteriores do Brasil e seu chefe era, evidentemente, Getúlio Vargas.

[2] Jefferson Caffery era o então Embaixador dos Estados Unidos no Brasil.

[3] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943.

[4] O almirante Jonas Howard Ingram era o comandante da 4ª Frota da Marinha dos Estados Unidos, com sede em Recife, Pernambuco.

[5] Getúlio Vargas Filho, ou Getulinho, foi o segundo filho do Ex-presidente da República Getúlio Vargas e de dona Darcy Lima Sarmanho. Teve mais quatro irmãos, Lutero Vargas, Alzira Vargas, Jandira e Manuel Sarmanho Vargas, o Maneco. Faleceu ainda jovem, aos 23 anos de idade, devido à paralisia infantil, no dia 5 de fevereiro de 1943. Foi casado e teve um filho.

[6] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943. 

[7] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943.

[8] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943. 

[9] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943.  

[10] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943.

[11] NARA/RG84/304, Registros do Departamento de Guerra, Divisão dos Serviços Militares, Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro para o Departamento de Guerra, 18 de novembro de 1943.

[12] Frank D. McCann, “Brazil and Wolrd War II: The Forgotten Ally. What Did You Do In The War, Zé Carioca?”, Tel Aviv University, 1987, pág. 20.

[13] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943.

[14] Frank D. McCann, “Brazil and Wolrd War II: The Forgotten Ally. What Did You Do In The War, Zé Carioca?”, Tel Aviv University, 1987, pág. 20.

[15] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943.

[16] NARA/RG84/177, Registros Gerais da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Caffery para o Secretário de Estado Cordell Hull e o Presidente Roosevelt, 31 de janeiro de 1943. 

PROJETO “AQUI JÁ EXISTIU UM CINEMA” BUSCA RESGATAR A MEMÓRIA DOS CINEMAS DE RUA DE NATAL


Tádzio França – Repórter – Tribuna do Norte – Natal/RN – 5 de dezembro de 2023 – https://tribunadonorte.com.br/viver/projeto-aqui-ja-existiu-um-cinema-busca-resgatar-a-memoria-dos-cinemas-de-rua-de-natal/
 
A arquiteta Wire Lima se indignou com processo de abandono – FOTO: ALEX RÉGIS

Houve um tempo em que as ruas de Natal projetavam lazer, fantasia e cultura. Foi um longo período no qual os cinemas de rua reinaram na área urbana natalense – boa parte entre a Ribeira, Cidade Alta e bairros adjacentes. São espaços que tiveram seu auge na metade do século XX, e decadência no começo do XXI, tornando-se hoje só uma lembrança de gerações passadas. Para resgatar essa memória entre prédios abandonados ou alterados, jovens arquitetos e cineastas foram às ruas para tocar o projeto “Aqui já existiu um cinema”, ação que busca informação, resgate, e novas conexões.

Notícia da primeira apresentação cinematográffica em Natal, no dia 16 de abril de 1898. Ocorreu em um depósito de açúcar na Rua do Comércio, atual Rua Chile – Foto – Rostand Medeiros.

A primeira projeção cinematográfica em Natal foi realizada em abril de 1898, num depósito de açúcar na Rua do Comércio, futura Rua Chile, Ribeira. Mais de 100 anos depois, a arquiteta Wire Lima não chegou a viver essa experiência em um cinema de rua natalense. É algo que ela só ouve falar pelos avós, pais, e amigos mais velhos. “Meu primeiro contato com cinema de rua só aconteceu em 2020, em Belo Horizonte (MG). Foi muito marcante, e me fez sentir ainda mais falta disso em Natal”, diz.

Frequentadora do centro histórico, Wire já admirava o prédio onde funcionou o Cine Nordeste (de 1958 a 2003), na rua João Pessoa. Foi ele que inspirou seu TCC “Quando o cinema vai à rua, a rua vai ao cinema: projeto de reuso de edifício de valor patrimonial em cinema de rua e centro audiovisual”, que propunha um novo uso arquitetônico para o velho prédio, abandonado desde o fechamento da loja de departamentos que funcionava nele.

O Cinema Rio Grande foi um dos principais da capital potiguar – Foto: Arquivo TN

Para realizar seu projeto acadêmico, a estudante de arquitetura precisava de informações básicas sobre o prédio, como planta baixa, cortes ou imagens. No entanto, apesar do velho cinema ter sua fachada tombada pelo patrimônio histórico, a procura de Wire não foi das mais frutíferas. “Foi uma saga de seis meses passando pelo IPHAN, Fundação José Augusto, e todos os órgãos e secretarias possíveis, mas não havia nada sobre o prédio”, conta.

Wire tentou localizar o proprietário do prédio através de cartório, mas também não deu certo. Ela já tinha atrasado seu semestre em seis meses devido à procura, então desistiu do velho Cine Nordeste como objeto do seu TCC – mas não do desejo de resgatar as histórias cinematográficas do centro histórico. A desventura se tornou outro projeto, o “Aqui já existiu um cinema”.

O Cine Panorama, nas Rocas, está fechado, mas em bom estado – Foto: Arquivo TN

Lambes do passado

No começo de 2023, a arquiteta juntou forças com o estudante de audiovisual Anthony Rodrigues e outros colegas para sair às ruas e demarcar os territórios históricos da Cidade Alta e adjacências. “Eu fiquei indignada com o processo de abandono. O prédio está lá, é possível fazer algo com ele, mas nada acontece. O projeto foi uma forma de expôr essa situação pelo qual o centro passa, de uma forma acessível”, afirma.

O “Aqui já existiu um cinema” consiste na colagem de lambes (tipo de pôster) na parede de determinados prédios. O cartaz tem a foto antiga do local, alguns dados sobre seu funcionamento, e a frase que dá nome ao projeto. “O lambe é uma forma de intervenção urbana, efêmera, com papel, água e cola, que não danifica a construção. Juntamos aos cartazes falas, com textos informando e levantando questionamentos”, explica.

A repercussão das primeiras ações surpreendeu a arquiteta. “Pessoas mais velhas passavam por nós e diziam que já viram muito filme por ali, que adoravam frequentar aquele lugar. Isso deu muita força pra gente continuar nossas pesquisas pelo centro e além”, diz. Os lambes seguiram então para o Cine Rio Grande (atualmente, um templo evangélico), igrejas, e outros prédios.

Foto: Reprodução

O primeiro cinema antigo que Wire e Anthony conseguiram entrar foi o Cine Panorama, nas Rocas. “Foi impactante, porque ele está muito bem conservado. As poltronas do cinema estão intactas, todas originais. Também há uma escadaria belíssima”, lista. No Panorama, Wire conta que foi atendida por um senhor que trabalhou por lá desde que era cinema. Qualquer semelhança com “Retratos Fantasmas”, o elogiado filme documental de Kleber Mendonça Filho sobre os velhos cinemas de Recife, é mera coincidência – ou não.

O Panorama fechou no começo dos 2000, e durante anos foi uma igreja evangélica. Atualmente está com placa de ‘aluga-se’ na fachada. Wire continua pensando nas propostas de reuso que poderiam ser feitas nesses espaços. “Eles poderiam ter usos diversos, como ser espaço cultural para eventos, teatro, dança, e audiovisual, porque ser só cinema hoje em dia não é muito viável comercialmente. Mas há muitas possibilidades”.

Há também uma perspectiva sentimental nas ações do projeto, segundo Wire. Ela vê muitas diferenças entre a experiência do cinema de rua e a do shopping. “Na rua há mais sociabilidade, desde a fila para entrar até a saída. Quantos casais não se conheceram no cinema? Já no shopping, sinto algo mais árido e impessoal. Após a sessão somos jogados direto para o estacionamento. E tem o preço da entrada cada vez mais caro, o que torna o cinema cada vez mais elitista”, analisa.

Os cinemas de rua são hoje peças raras no Brasil e no mundo. “Os cinemas foram grandes pontos de encontro da cidade, o máximo da vida social urbana. O centro perde muito com a ausência desses lugares, que foram muito importantes para a construção do imaginário sobre a vida urbana antiga”, diz. A arquiteta ressalta que continuará as ações no mestrado, e planeja a produção de um documentário. Os registros estão no perfil @aquijaexistiucinema.

O Cinema Nordeste, no auge, reunindo um grande público para assistir aos filmes – Foto: Arquivo TN

Velhas telas

A velha anedota de que “Natal em cada esquina um jornal” poderia ser também para os cinemas. Pelo menos assim foi durante boa parte do século XX. Há estimativas que apontam cerca de 40 cinemas na capital potiguar. A maior parte das salas ficavam entre a Ribeira e Cidade Alta, entre outras no Alecrim, Quintas, Rocas, Tirol, Candelária, Lagoa Seca, Petrópolis, Lagoa Nova, e estrada de Ponta Negra.

Após a primeira projeção improvisada em 1898, as sessões retornaram em ambiente mais requintado no recém-inaugurado Teatro Carlos Gomes (futuro Alberto Maranhão), a partir de 1906. Mas o primeiro cinema de rua de Natal foi o Polytheama, inaugurado na Ribeira em dezembro de 1911. Em 1913 vieram o Phaté Cinema, na Tavares de Lira, e o Royal Cinema, o primeiro da Cidade Alta.

Propaganda publicada no jornal A República, edição de 8 de abril de 1931, quarta-feira, sobre a primeira apresentação de cinema falado em Natal. O Cine-Teatro São Pedro ficava na rua Amaro Barreto, Alecrim, havia sido inaugurado em 1930, sendo considerada o maior e mais confortável cinema do Rio Grande do Norte. Possuia 700 cadeiras e pertencia a empresa Medeiros & Cia., de Louro Medeiros – Foto – Rostand Medeiros.

A primeira sessão de cinema falado em Natal ocorreu em 1931, no Cineteatro São Pedro, rua Amaro Barreto, no Alecrim. Este tinha 700 lugares e era o maior de Natal até então. Mas a Cidade Alta voltaria à primazia cinematográfica com as aberturas do Cinema Rio Grande, em 1949, e Cine Nordeste, em 1958. Até os anos 90, os cinemas de rua tornaram a vida social e as calçadas mais animadas na capital potiguar. Até que os shoppings e seus multiplex mudaram esse cenário para sempre.

A FAZENDA RIBEIRO DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU E SUAS HISTÓRIAS

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Muitas das antigas e tradicionais fazendas do interior do Nordeste vem sofrendo de intenso abandono e destruição, fazendo com que suas histórias caiam no puro e simples esquecimento.

Alguns acham que isso é até uma coisa boa, pois muitos desses locais foram antros de intensas opressões, iniquidades, perseguições, mortes e outras mazelas. O problema dessa ideia é que várias dessas antigas estruturas possuem enorme importância histórica, com informações que ampliam o conhecimento sobre o passado da nossa região e a perda destes locais é algo bastante complicado e irreversível. 

Casa Grande da Fazeneda Ribeiro, em São José de Mipibu – Foto – Rostand Medeiros

Por isso é sempre positivo encontrar uma antiga propriedade rural bem preservada e com muitas histórias. Esse é o caso da Fazenda Ribeiro, a cerca de seis quilômetros da cidade potiguar de São José de Mipibu.

A casa sede está, pelo menos para que a vê de fora, muito bem conservada, pintada de branco e detalhes azuis.

Foto – Rostand Medeiros

Segundo o pesquisador e blogueiro Daltro Emerenciano, em um artigo sobre a história da Fazenda Ribeiro (https://www.blogdedaltroemerenciano.com.br/2012/10/pedacos-do-nosso-rio-grande-do-norte/), informou que o agricultor Francisco Sales e Silva foi o patriarca da família Ribeiro Dantas e Duarte e teria construído uma primeira casa grande na área da propriedade Ribeiro entre o final do século XVIII e o início do seguinte. Nesse mesmo período foi “erguida uma capela em estilo colonial barroco, em homenagem a São João e também montada em separado uma primitiva engenhoca movida à tração animal e destinada a fabricação de açúcar bruto e seus derivados e, por conseguinte, aquele local passou a ser a primeira sede da Fazenda Ribeiro”.

Foto – Rostand Medeiros

Emerenciano comentou que essa propriedade esteve envolvida nos acontecimentos ligados a chamada Revolução Pernambucana de 1817. Ele publicou que “Pelo relato que se tem daqueles que pesquisaram sobre o movimento em prol da independência do Brasil e que culminou com a eclosão da revolução de 1817, as reuniões para a divulgação das ideias liberais e adesão do maior número de simpatizantes, eram realizadas em pontos afastados da capital, inclusive na cômoda e espaçosa Casa Grande do SÍTIO RIBEIRO. Ali o Coronel de Milícias, André de Albuquerque, mentor do movimento em nossa província, conferenciava com os homens de influência de Natal e vilas do interior, ocasião em que era oferecido aos convivas um farto banquete servido em baixelas de prata”.

Necrológico de Horácio Cândido Sales e Silva, publicado em 28 de setembro de 1903.

Foi um neto de Francisco Sales e Silva, chamado Horácio Cândido Sales e Silva (26/09/1838 – 27/09/1903), bacharel em direito, que transferiu a sede da propriedade para um local mais apropriado, onde construiu a nova sede, a casa destinada ao engenho e uma capela, cujos padroeiros são Santa Ana e São Joaquim. Infelizmente não conseguimos apurar as datas dessas construções, mas soubemos que Horácio Sales importou da Europa o maquinário e acessórios necessários a montagem da moenda do engenho movida a vapor, em substituição a antiga engenhoca movida à tração animal.

Capela da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Sobre a capela existente ela tem uma característica muito interessante que é o seu alpendre, algo que não vejo com frequência nas antigas capelas do Rio Grande do Norte.

Horácio casou duas vezes. A sua primeira esposa, Anna Vivina de Sales e Silva, nasceu em 17 de dezembro de 1845, teve oito filhos e faleceu em 6 de junho de 1877. Já a segunda, Joaquina Marcolina Ribeiro Dantas (27/01/1854 – 27/02/1941), teve cinco filhos, sendo o terceiro um menino que se chamou Celso Dantas Sales e nasceu na Fazenda Ribeiro em 4 de julho de 1884.

Lápides de Horácio Sales e suas esposas – Foto – https://www.familysearch.org/

Esse jovem ingressou na Faculdade de Direito do Recife, bacharelando-se em 10 de dezembro de 1904. Um ano depois foi nomeado promotor público de Acari, onde conheceu Josefa Leonila de Araújo (16/04/1903 – 22/11/1959), conhecida como Teca, com quem casaria no ano de 1918. Essa jovem era filha dos acarienses Manoel Ubaldo da Silva Neto e Leonila Sérvulo de Araújo.

Celso Dantas Sales, pai de Dom Eugênio, em 1904 – Foto – Fundação Joaqiuim Nabuco.

Depois o Doutor Celso foi transferido para o estado Amazonas, onde exerceu o cargo de juiz de direito nas cidades de Lábrea, Benjamin Constant e outros municípios. Voltando ao Rio Grande do Norte em 1914, atuou como juiz em Acari. Em 8 de novembro de 1920, ainda em Acari, nasceu o segundo filho do juiz Celso e Dona Teca, que foi batizado como Eugênio de Araújo Sales.

No mesmo ano do nascimento do segundo filho, o juiz Celso foi designado para a cidade potiguar de Nova Cruz, sendo depois transferido, a pedido, para a Comarca de São José do Mipibu. Nessa cidade nasceram outros filhos do casal, inclusive Dom Heitor de Araújo Sales.

O pequeno Eugênio, ao centro, com os pais e o irmão Sílvio – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%AAnio_Sales

Na sequência veio trabalhar em Natal, onde foi membro das Juntas de Sanções, depois foi nomeado desembargador por decreto em 30 de novembro de 1926 e atuou como Procurador Geral do Estado, conforme está descrito em seu necrológico no jornal natalense “A República”, publicado em 16 de outubro de 1934, quatro dias após o seu falecimento em Fortaleza, Ceará, devido a tuberculose.

Infelizmente sobre a vivência e convivência da família do Doutor Celso, Dona Teca e seus filhos na Fazenda Ribeiro eu não consegui maiores informações, mas seguramente o jovem Eugênio se tornou o potiguar com a mais expressiva história de atuação na Igreja Católica.

Depois de fazer estudos humanísticos no Colégio Santo Antônio em Natal, ingressou no seminário em 1937. Foi ordenado por Dom Marcolino Dantas sacerdote em 21 de novembro de 1943. Em seguida passou a exercer o ministério pastoral em Nova Cruz e na sequência foi chamado ao Seminário de Natal, onde atuou como encarregado de suprimentos, professor e diretor espiritual. Entre muitas outras atividades, o Padre Eugênio foi capelão da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte, no posto de Capitão.

Sino da capela da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Em 1 de junho de 1954, aos 33 anos, foi nomeado bispo auxiliar de Natal pelo Papa Pio XII e ordenado bispo no dia 15 de agosto de 1954, pelas mãos de Dom José de Medeiros Delgado, Dom Eliseu Simões Mendes e de Dom José Adelino Dantas. Posteriormente, em outubro de 1962, foi designado administrador apostólico da Arquidiocese de Natal. Aqui promoveu uma série de iniciativas que rapidamente se espalharam por todo o Nordeste do Brasil: fundou o serviço de assistência social aos trabalhadores rurais, centros educacionais e transmissões de rádio para ensino fundamental e médio.

Região rural da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Em 6 de julho de 1964 foi nomeado Administrador Apostólico em Salvador, Bahia, e em 29 de outubro de 1968 tornou-se Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, pelo Papa Paulo VI. Nesta Arquidiocese iniciou novas iniciativas pastorais e promoções sociais para os menos favorecidos. Também dirigiu o departamento de ação social do Conselho Episcopal Latino-Americano e participou do Concílio Vaticano II.

Foi proclamado Cardeal pelo Papa Paulo VI no consistório de 28 de abril de 1969. Em 29 de outubro de 1971, Paulo VI nomeou-o Arcebispo do Rio de Janeiro. Dom Eugênio de Araújo Sales faleceu em 9 de julho de 2012.

UMA PEQUENA HISTÓRIA DOS RESTAURANTES DE NATAL E O “ACAPULCO” DE RÔMULO MAIORANA

Rostand Medeiros – Escritor e Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Quando a Segunda Guerra terminou os comerciantes de Natal perceberam que logo os tempos de fartura proporcionado pela presença das tropas norte-americanas na cidade, com muitos dólares nos bolsos e nas mãos, chegaria ao fim. Fato que efetivamente aconteceu quando os últimos gringos partiram em 1947.

Oficiais militares brasileiros e possíveis técnicos americanos norte-americanos, no restaurante do Grande Hotel – Foto – Life Magazine

Mas muitos setores da cadeia produtiva da cidade aproveitaram a circulação dessa gente por aqui, principalmente o de bares e restaurantes. Que nutria expectativas positivas em relação ao futuro, pois nessa época Natal havia chegando aos 100.000 habitantes.

Apesar de todo esse movimento e otimismo, ao analisarmos os antigos jornais percebemos um elevado número de reclamações dos frequentadores dos restaurantes locais.

Lugares Para se Comer, dar Tiros e Brigar

No velho bairro da Ribeira existia um local que para alguns era apenas um café, para outros um restaurante, mas o certo é que no final da década de 1940 o “Cova da Onça” era um dos pontos mais tradicionais da cidade. Com bons quinze anos de funcionamento, ficava localizado na Avenida Tavares de Lira, bem próximo ao Rio Potengi, sendo um ambiente muito ligado às questões políticas da cidade. Basicamente era frequentado por homens, sendo também “um ponto de intercâmbio da grei intelectual da terra”, como certa vez comentou o escritor natalense Francisco Amorim.

Mas na década de 1930, como muita coisa que se relacionava com a política local era motivo para extremas violências, o “Cova da Onça” também teve seu momento de medo e tensão.

Na manhã do dia 29 de outubro de 1935 estava deixando Natal o bacharel em Direito Mário Leopoldo Pereira da Câmara, que desde 2 de agosto de 1933 exercia a interventoria federal no Poder Executivo do Rio Grande do Norte. Seu governo foi marcado por muitas obras, mas também por despotismo, radicalismo, extremismo e violência, até que a oposição local manobrou para lhe apear do poder e Getúlio Vargas o chamou de volta ao Rio de Janeiro.

Nesse dia Mário Câmara se dirigiu ao cais da Avenida Tavares de Lira para embarcar em um hidroavião da empresa aérea Sindicato Condor, sendo seu carro acompanhado por um grande número de membros da Guarda Civil, órgão de segurança pública criado por ele anos antes. Justamente ao passar em frente ao “Cova da Onça”, os adversários cobriram na vaia o ex-interventor e os membros dessa força policial. Diante da afronta esse pessoal armado não contou conversa e, em meio a tensão reinante, sacaram de suas armas e mandaram bala em direção ao restaurante. Na confusão teve até padre de Parabélum na mão, que abriu fogo contra outros cristãos. Por milagre, só quatro ficaram feridos.

Não está acreditando que na bela e tão decantada Natal do passado existiam esses arroubos de violência política? Então veja essa foto acima, de uma das páginas do processo aberto sobre os fatos ocorridos naquele dia, com o depoimento do comerciante José Mesquita.

Voltando aos restaurantes…

Nesse final da década de 1940, quando a Ribeira era muito frequentada e o transporte ferroviário tinha uma atuação muito intensa, com linhas de trens chegando ao distante interior potiguar, dentro da Estação Ferroviária da Central, na Praça Augusto Severo, existia o “Restaurante Café-Central”, com serviço de bar e restaurante, onde se destacava um farto almoço e um gostoso “Café Expresso” para o público que embarcava e desembarcava dos vagões.

Área do Grande Ponto, no centro de Natal, em 1941 – Foto – Life Magazine

Nesse período o principal restaurante da cidade ficava na esquina das ruas João Pessoa e Princesa Isabel, no centro da cidade e pertinho da área conhecida pelos natalenses como Grande Ponto. O local se dividia entre restaurante e sorveteria e se chamava “Cruzeiro”, pertencendo a Afonso China, tendo a parte operacional ficado a cargo de Francisco de Assis Bezerra. Essa casa abriu em fevereiro de 1945, onde ali aconteceram muitos eventos importantes do “Grand Monde” da cidade.

Pertinho dali existia o “Bar e Restaurante Grande Ponto”, do qual consegui poucas informações. As mais relevantes foram duas e que nada comentaram sobre questões gastronômicas. Em maio de 1947, provavelmente por razões ligadas à política, os bacharéis de Direito Romildo Fernandes Gurgel e João Medeiros Filho saíram no bofete dentro desse local. Um ano depois estavam respondendo ao competente processo, que seguia tendo à frente o promotor Aderson Dutra Lisboa. A bronca judicial, como era normal, não deu em nada, mas o restaurante palco do pugilato de tão nobres figuras foi logo posto à venda [1].

Tempos depois um articulista desconhecido reclamou que esse local deixou de ser um restaurante para se tornar um salão de bilhar e sinuca e que tal fato também tinha acontecido anteriormente com uma popular sorveteria chamada “Rio Branco”, na avenida homônima, que deixou de vender gelados para se tornar um salão de esporte de tacos e bolas [2].

Havia o “Restaurante Rinder Bar”, também conhecido como “Restaurante de Areia Preta”, localizado na praia do mesmo nome, que tinha boa comida, principalmente frutos do mar. Mas naquela época o lugar era considerado tão longe da cidade que em maio de 1946, quando ali foi organizado um jantar para homenagear o Sr. José Anselmo, novo diretor dos Correios e Telégrafos, foi necessário disponibilizarem um ônibus no Grande Ponto para levar os convidados [3].

Na Rua João Pessoa, número 118, funcionava o “Restaurante Dois Amigos”, vizinho ao “Taco de Ouro” (outro bilhar), creio que na área da atual Praça Kennedy, antiga Praça das Cocadas. Era pequeno, mas muito conceituado e tinha ótima comida, sendo muito bem frequentado.

Segundo me informou o amigo Vidalvo Silvino da Costa, o querido Dadá, empresário de sucesso, proprietário da renomada Cachaça Samanaú e grande referência da cidade seridoense de Caicó, seu irmão Ridalvo Costa, Desembargador Federal da 5ª Região, frequentou quando jovem o Restaurante Dois Amigos e lembrou algumas coisas interessantes sobre esse local.

Apesar do nome do estabelecimento, havia uma sociedade que envolvia três seridoenses. Dois deles eram os irmãos Neo e Eustáquio, donos da camisaria União e naturais da cidade de Parelhas, e Antônio Alves da Costa, cunhado dos dois irmãos e tio de Ridalvo e Dadá. Para Ridalvo o Restaurante Dois Amigos foi o primeiro que ele conheceu. Possuía mesas pequenas com toalhas brancas, serviam pães em rodelas, acompanhados de manteiga em pequenos recipientes de vidro. Ele comentou que nunca tinha visto manteiga de lata e nem camarão, mas viu e degustou essas novidades no Dois Amigos.

Foto – Coleção Eduardo Alexandre Garcia.

Na antiga Praça Pio X, onde hoje se ergue a Catedral de Natal, existia um restaurante, ou uma peixada, bem no meio da praça e que tinha uma arquitetura bem peculiar, sendo o prédio conhecido como “avião”. Era pequeno e aparentemente muito simples, mas existem inúmeras referências de encontros sociais e recepção de ilustres visitantes neste local. Como não tinha nada melhor pelo preço cobrado, levavam para esse mesmo. O lugar era conhecido nessa época como “Restaurante da Praça Pio X”, ou “Restaurante Noturno”, pois como a praça não tinha árvores e o calor era grande durante o dia, ele só abria a noite. Também encontrei referências que chamavam o local como “Peixada do Gabriel”. E como tudo nesse estabelecimento se ligava a Igreja, ele deixou a Pio X em 1955 e abriu suas portas na Praça Padre João Maria [4].

Muitas Reclamações

De maneira geral era isso que havia para degustar em Natal, com certo nível de qualidade. Mas quando lemos a quantidade de críticas sobre os restaurantes na urbe, percebemos que a situação era um tanto complicada nesse setor.

E críticas sobre essa questão vinham de todos os lados!

Começamos pelo Mestre Luís da Câmara Cascudo, que em uma “Acta Diurna” denominada “Natal precisa de cardápio…”, afirmava que Natal precisava “ter o direito de conquistar um cardápio brasileiro” e que era “preciso estabelecer dias certos para os pratos nacionais e divulgar na imprensa quais são esses dias”. O ilustre escritor, no alto dos seus conhecimentos sobre a alimentação no Brasil, afirmou que essa ideia não se tratava de “modificar o paladar, mas de ampliar os conhecimentos culinários e degustativos do cidadão natalense”.

Ele não reclamava de uma alguma possível invasão de comida yankee nos pratos natalenses, mas da “uniformização dos cardápios” existente nos restaurantes locais. Para ele isso era uma “catástrofe”. O interessante é que o exemplo que Cascudo apresenta para essa uniformização, ainda vemos a rodo nos “PFs” da vida. – “Fatalmente encontramos os mesmos pratos, com o mesmo arroz embolado e o mesmo falso churrasco com farinha amarela”.

Foto atual do restaurante “Farrta Brutus”, em Lisboa, comentado em 1948 por Câmara Cascudo como um exemplo de restaurante a ser seguido em Natal – Fonte – https://www.tripadvisor.com.br/Restaurant_Review-g189158-d983771-Reviews-Farta_Brutos-Lisbon_Lisbon_District_Central_Portugal.html.

Como referência do que poderia ser feito em Natal, Cascudo comentou que, através de informações que recebeu de oficiais norte-americanos servindo na capital potiguar, conheceu em Lisboa um restaurante maravilhoso. O lugar se chamava “Farta Brutus”, era muito bem recomendado por não abrir mão da tradicional culinária lusitana, com muita variedade e alta qualidade do que era oferecido [5].

O interessante é que o “Farta Brutus” ainda funciona no mesmo local desde 1904, mais precisamente no Bairro Alto, Travessa da Espera, número 20. Atende com a mesma proposta do passado, mantendo a mesma qualidade e atraindo uma clientela fiel. Entre estes o escritor português José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e falecido em 2010, que tinha até uma mesa preferida no salão principal da casa [6].

Uns dois meses antes de Cascudo publicar essa “Acta Diurna”, no mesmo texto que um autor desconhecido reclamou da transformação do restaurante “Grande Ponto” em salão de sinuca, ele realizou uma severa crítica sobre os restaurantes de Natal. E o cidadão “rasgou o verbo”.

Afirmou que apesar de existirem muitos bares e restaurantes na cidade, nenhum deles “estava à altura do nosso progresso”. Reclamou da apresentação de pratos e talheres nesses estabelecimentos, onde existiam “xícaras de beira tiradas” e lamentava o “descuido” com a conservação desses lugares. Já as cozinhas normalmente estavam abertas, mas não primavam pela limpeza. Com uma péssima impressão em relação ao asseio [7].

Um outro articulista, sem declinar o nome, não reclamou da questão do estilo dos pratos preparados, ou da conservação e limpeza dos restaurantes, mas chiou com os preços altos e o péssimo atendimento. Afirmou que comer fora em Natal no ano de 1948 era caro, talvez “a cidade no Brasil onde se paga muito pela alimentação e a que pior serve”.

Essa pessoa comentou essa questão no momento em que Natal perdia alguns voos internacionais que aqui realizavam suas paradas para reabastecimento, embarque e desembarque de passageiros. Como nessa época a questão da autonomia e velocidade dos aviões de transporte não contava com as vantagens tecnológicas dos dias atuais, muitas das aeronaves dessas empresas realizavam paradas de algumas horas em Parnamirim e seus passageiros pernoitavam em Natal. Pernoitavam mal e comiam pior! [8].

Uma charge publicada no Diário de Natal em 1949, sobre a situação dos restaurantes em Natal.

Em meio a essas situações, a cidade oferecia a possibilidade de sucesso para um empreendedor que tivesse a iniciativa de abrir um bom restaurante.

Uma Família de Italianos Que Aprendeu Que em Natal “Se Paga 20, Para não Ver o Outro Ganhar 10”

Provavelmente após o fim da Segunda Guerra, talvez em 1946, foi quando Francisco Maiorana veio junto com sua família para a capital potiguar, oriundos de Recife, Pernambuco. Na realidade seu nome era Francesco, mas aqui teve o nome abrasileirado para Francisco. Acredito que nasceu no final do Século XIX, ou nos primeiros anos do Século XX. Era oriundo do sul da Itália, da cidade de Totora, região da Calábria, província de Cosenza [9].

Em Recife ele era conhecido como “comerciante”, sendo casado com Angelina Chiappetta Miorana, que provavelmente também nasceu no sul da Itália. Eles tinham um filho de nome Rômulo Elégio Dario Severo Miorana Chiappetta, nascido em Recife no dia 20 de outubro de 1922. Sabemos que Rômulo tinha um irmão chamado Francisco (ou Francesco?), que se formou em economia, mas dele não obtive maiores informações.

Descobrimos também que esse casal de italianos morava na região da Várzea, zona oeste de Recife [10]. Inclusive para corroborar a localização onde vivia essa família, existe uma notícia de 1928 informando que Rômulo Maiorana, quando tinha apenas seis anos de idade, se destacou nos quesitos de “comportamento e aplicação”, no curso infantil do Colégio Oratório da Divina Providência, no bairro da Várzea, comandado na época pelas irmãs Magdalena e Veronica [11].

Os jornais não esclarecem qual era a atividade comercial que Francisco realizava, mas trazem bastante informações sobre a movimentada e respeitada “Escola de Corte e Alta Costura de Mademoiselle Angelina Maiorana”, que funcionava no primeiro andar do número 76, na Praça do Mercado São José, também conhecida como Praça Dom Vital, vizinho a Basílica da Penha [12]. E o negócio andava tão bem que encontrei a informação que Dona Angelina e o jovem Rômulo, então com 16 anos, partiram de Recife no transatlântico Oceania, em direção ao porto de Nápoles, Itália [13].

Provavelmente foi nesse momento que Rômulo ficou na Itália para estudar e foi envolvido pela participação desse país na Segunda Guerra. Ele foi incorporado ao exército de Mussolini, mas ficou na retaguarda, com a função de datilógrafo. Já sua família passou por dificuldades no Brasil.

Segundo uma notícia do jornal recifense Diário da Manhã, de 21 de agosto de 1942, Francisco Maiorana foi preso em Maceió, Alagoas, juntamente com outros oito homens, todos acusados de serem “Súditos do Eixo”, ou seja, simpatizantes do nazifascismo. Não sei se pesou nessa decisão o fato do seu filho se encontrar na Itália, envergando o uniforme do exército desse país.  

O certo é que em agosto de 1942 Francisco Maiorana esbarrou com o bacharel em Direito Ari Boto Pitombo, um dos mais severos e duros homens da lei em Alagoas durante o período da Ditadura Vargas.

Consta que após os afundamentos dos navios brasileiros nas costas dos estados de Sergipe e da Bahia, que levaram à morte de mais de 500 pessoas, o Dr. Pitombo mandou encarcerar mais de 30 “súditos dos países totalitários” e colocou esse pessoal todo para trabalhar de enxada na mão, abrindo valas nos bairros de Maceió para o “Serviço da Malária” e sob guarda fortemente armada [14].

Alemães e italianos presos e no trabalho forçado em Maceió.

Não sabemos a razão de Francisco Maiorana ficar preso na “Terra dos Marechais”, mas é importante ressaltar que em nossa pesquisa nos jornais disponíveis no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, não encontrei a menor referência que ele tenha atentado contra a integridade da nação brasileira em Estado de Guerra.

Tudo indica que para ele e sua família a situação foi muito pesada. Com o fim da Segunda Guerra e o retorno do seu filho Rômulo da Europa, eles decidiram se mudar para Natal.

Na capital potiguar Francisco Maiorana abriu as portas de um comércio na Rua Princesa Isabel e o batizou de “Casa Vesúvio”. O nome era em alusão ao Monte Vesúvio, um dos mais ativos e perigosos vulcões do mundo, que fascina os italianos do sul, fica a poucos quilômetros do centro da cidade de Nápoles e a cerca de 200 km ao norte de Totora.

Os Maiorana trabalhavam bastante no seu comércio, vendendo roupas, perfumarias, miudezas, bicicletas, plásticos, rádios valvulados, brinquedos e muito mais. Era uma típica loja daquelas “tem de tudo” e por preços em conta. Mas eu percebi que conforme os Maiorana cresciam, aqueles italianos começaram a incomodar.

Foto – Coleção Eduardo Alexandre Garcia.

Infelizmente Natal é uma cidade conhecida pela inveja e mau-caratismo para com os comerciantes que crescem trabalhando. Tanto que por aqui se criou uma expressão onde se diz que “fulano paga 20, para não ver o outro ganhar 10”. E logo os Maiorana aprenderam essa lição!

Uma pessoa que se identificou apenas como “Um leitor”, escreveu no jornal católico natalense A Ordem, que os proprietários da “Casa Vesúvio” não respeitavam do descanso dominical, trabalhando nesses dias e que durante a semana só fechavam o estabelecimento após as 19 horas e assim desrespeitavam a “legislação municipal” [15].

Eu não descobri se os Maiorana pagavam corretamente aos seus funcionários por horários extras, mas não encontrei reclamações desses trabalhadores junto ao Sindicato dos Comerciários, que era bem ativo e forte nesse período. E vale frisar que a reclamação desse dito “Um leitor”, em nenhum momento comentou qualquer preocupação com a situação dos trabalhadores de Francisco Maiorana.

Centro de NatalFoto – Coleção Eduardo Alexandre Garcia.

O certo é que um ano depois esse mesmo jornal divulgava, até com destaque, que a “Casa Vesúvio” havia ofertado “10 saquinhos de pipocas” para um sorteio do “Suplemento do Boletim Católico”, a página infantil publicada semanalmente pelo jornal. Não sei se os Maiorana continuaram abrindo nos horários e dias que geraram a reclamação, mas o certo é que não surgiram mais publicações negativas para a “Casa Vesúvio” nesse jornal [16].

É fácil perceber que a firma dos Maiorana teve um crescimento e ascensão muito rápido na capital potiguar no final da década de 1940. Daí, quem começa a surgir nas páginas dos jornais é Rômulo, que se aproximava dos 30 anos de idade.

Esquina das ruas João Pessoa e Princesa Isabel, no centro de Natal, onde funcionou o restaurante “Acapulco” – Foto – Google Street Wiel

Três situações parecem ficar patentes em relação a Rômulo e sua convivência com Natal e sua gente – A sua paixão pelo carnaval, pelo América Futebol Clube e por cultivar bons relacionamentos e amizades. Talvez por essas razões (e outras que desconheço) ele decidiu abrir nos primeiros meses de 1950 um tipo de negócio que estava bastante carente em Natal – Um restaurante com um elevado padrão de qualidade.

O “Acapulco”

Aproveitando que o restaurante “O Cruzeiro” havia fechado na esquina das ruas Princesa Isabel com João Pessoa, Rômulo Maiorana negociou o ponto. No dia 30 de março de 1950, uma quinta-feira, abriu um novo restaurante que ele denominou “Acapulco”.

Consta que ele se aliou com um húngaro chamado Zoltan Fried, que havia deixado a cidade de Kisvárda em 1946, certamente quando começou a perceber que o seu país caminhava para se transformar na República Popular da Hungria, fato que efetivamente aconteceu em 18 de agosto de 1949. Aparentemente ele procurou refúgio na Itália, pois morava na cidade de Florença, na Via Pandolfini, número 27. Em 21 de outubro de 1946 conseguiu o visto no Consulado do Brasil em Livorno e veio para o nosso país. Certamente esse húngaro chegou em Natal após ter tido algum nível de contato com Rômulo na Itália.

Em Natal já existiam locais que ofereciam um “chá das cinco”, até bombonieres e charutarias bem sortidas. O que aparentemente o “Acapulco” trouxe de diferente foi reunir tudo isso em um único local junto ao atendimento implementado pelo húngaro Zoltan.

Os dois sócios começaram a oferecer sistema de “delivery”, além de quase 50 pratos diferentes, com destaque para o “Filé Acapulco”, e mais de 30 tipos de sobremesas. Eles tinham uma adega bem sortida com vinhos portugueses, franceses, italianos, chilenos e nacionais. Logo a classe política se fez presente no restaurante “Acapulco”, conforme podemos ver na nota abaixo.

Além dos políticos, os jornalistas eram frequentadores habituais do local. Uma noite Aderbal de França, o conhecido cronista “Danilo”, chegou acompanhado de Veríssimo de Melo e Waldemar Araújo. Gostaram do que viram, do que comeram e “Danilo não economizou nos comentários positivos ao restaurante – “Convenhamos que numa cidade onde praticamente não existem hotéis e as casas de pasto primam sempre pelo péssimo serviço que oferecem e pela mais absoluta falta de higiene, um restaurante e quem se esforça por servir bem a clientela tem o direito de sobrevivência”.

“Danilo” também comentou que no “Acapulco” foram todos muito bem atendidos por Rômulo Maiorana, que colocou um garçom chamado Menezes, que os frequentes fregueses do meio político acharam de chamá-lo de “Senador” [17]. 

O “Acapulco” se tornou a nova coqueluche de Natal e começou a ser frequentado até pelos artistas de renome nacional e internacional que vinham se apresentar na cidade.

Um ano depois de inaugurado chegaram ao restaurante as cantoras paulistas Hebe Camargo e Lolita Rodrigues, acompanhadas do cantor italiano Ernesto Pietro Bonino. Esse trio realizou três noites de apresentações no palco da Rádio Poti de Natal, a ZYB-5, com grande sucesso de público [18]. Mas, segundo os jornais locais, foi a cantora Ademilde Fonseca, potiguar de São Gonçalo do Amarante e conhecida como “Rainha do Chorinho”, que verdadeiramente roubou a cena. Ademilde morava no Rio de Janeiro desde 1941, sendo a primeira cantora nordestina a encantar o país com esse gênero gracioso, brejeiro e bastante difícil de ser cantado.

Logo o “Acapulco” se tornou o ponto de referência dos artistas locais. Em 28 de janeiro 1952 o teatrólogo Inácio de Meira Pires lançou uma peça chamada “Alguém chorou a perdida“, escrita por Jaime dos G. Wanderley. Meira Pires se apresentou sozinho, interpretando os dramas do personagem “Evaldo”, que ele apontou como sendo “um homem só, com o seu desespero”. A apresentação foi um sucesso, sendo o cenário e o cartaz criações do pintor Newton Navarro.

Depois da apresentação Meira Pires, Wanderley, Navarro e Celso da Silveira, que contribuiu para a apresentação teatral, chegaram por volta das 23 horas no “Acapulco” para comemorar. O jantar contou com a participação de várias personalidades, como Aldo Cavet, Diretor do Serviço Nacional de Teatro, que veio do Rio de Janeiro para o lançamento. Além dele políticos da terra como Aluízio Alves e seu irmão Garibaldi estiveram presentes. Otoniel Menezes, apresentado pelos jornais como “príncipe da poesia potiguar”, declamou versos no “Acapulco” que foram apreciados por todos.

No Pará

Apesar do sucesso do empreendimento, ainda em 1952 Rômulo Maiorana deixou a sociedade desse restaurante e logo se mudou para o norte do país, para a cidade de Belém, no Pará. Não descobri a razão para isso!

Rômulo Maiorana

Lá ele esteve envolvido em vários negócios comerciais e se tornou dono de um jornal chamado “O Liberal” e anos depois criou o “Grupo Liberal”, que atualmente é o maior grupo de comunicação do estado do Pará e o 9.º maior grupo de comunicação do Brasil.

Nos jornais potiguares estão registradas várias visitas de Rômulo Maiorana a Natal e em várias ocasiões ele recebeu os muitos amigos natalenses que estiveram em Belém. Como foi o caso de Aderbal de França, que lá esteve em 1957 e lembrou essa visita anos depois [19]. 

Apesar de Rômulo Maiorana ser um homem de jornalismo muito respeitado no norte do país, ter muitos amigos em Natal e manter boas relações com os órgãos de imprensa do Rio Grande do Norte, quando ele faleceu aos 63 anos, no dia 22 de abril de 1986, me causou estranheza ter sido publicado praticamente nada sobre esse fato. 

Rômulo Maiorana conseguiu muito sucesso na área de comunicação no Pará.

Se não fosse seu amigo Mozart de Almeida Romano ter mandado rezar uma missa de sétimo dia pelo seu falecimento e o jornalista Vicente Serejo ter publicado uma nota sobre essa missa na sua coluna “Cena Urbana”, do jornal dominical O Poti (ed. 27/04/1986), muita gente em Natal desconheceria sobre o seu passamento. 

Atualmente uma rua no Conjunto Morada Nova, no bairro de Felipe Camarão, homenageia o jornalista Rômulo Maiorana.

NOTAS


[1] Ver Diário de Natal, edições de 14/03/1948, domingo, p. 12 e 11/04/1948, domingo, p. 7.

[2] Ver Diário de Natal, ed. 05/08/1948, sexta-feira, p. 3.

[3] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 01/03/1946, terça-feira, p. 4.

[4] Ver Diário de Natal, edição de 17/02/1950, sexta-feira, p. 6. e o jornal O Poti, 02/12/1955, sexta-feira, p. 3.

[5] Ver Diário de Natal, ed. 02/07/1948, sexta-feira, p. 2.

[6] Sobre o Restaurante “Farta Brutus” de Lisboa, ver – https://www.tripadvisor.com.br/Restaurant_Review-g189158-d983771-Reviews-Farta_Brutos-Lisbon_Lisbon_District_Central_Portugal.html

[7] Ver Diário de Natal, ed. 05/08/1948, sexta-feira, p. 3.

[8] Ver Diário de Natal, ed. 10/08/1948, terça-feira, p. 4. 

[9] Ver Diário de Natal, ed. 21/11/1972, terça-feira, p. 8. Existe uma outra informação, não confirmada, de que Francisco seria da cidade de Aieta, ao sul de Totora.

[10] Ver Diário de Pernambuco, ed. 31/12/1930, quarta-feira, p. 3.

[11] Ver Diário de Pernambuco, ed. 05/12/1928, quarta-feira, p. 4.

[12] Ver Diário da Manhã, Recife-PE, ed. 07/02/1937, domingo, p. 3.

[13] Ver Diário da Manhã, Recife-PE, ed. 09/01/1938, domingo, p. 4.

[14] Ver jornal Diretrizes, Rio de Janeiro, ed. 14/01/1943, quinta-feira, pág. 9 e https://www.historiadealagoas.com.br/ari-pitombo-getulista-e-lider-trabalhista.html

[15] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 21/03/1947, sexta-feira, p. 4.

[16] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 13/04/1948, terça-feira, p. 3.

[17] Ver Diário de Natal, ed. 23/15/1950, terça-feira, p. 5.

[18] Ver Diário de Natal, ed. 17/04/1951, terça-feira, p. 6.

[19] Ver Diário de Natal, ed. 13/09/1963, sexta-feira, p. 4.

1937 – O DIA EM QUE UM VIOLINISTA RUSSO E UM FORD V8 ESTIVERAM NO PALCO DO PRINCIPAL TEATRO DE NATAL

Dizem que Natal é uma cidade onde seu povo tem uma adoração intensa pelos veículos motorizados. Se observarmos nos dias atuais o número de carros de passeio bastante novos circulando pelas nossas atravancadas ruas, provavelmente deve ser verdade. Fala-se que por mês mais de 2.000 veículos novos, 0 km, são desovados nas congestionadas vias de circulação da capital potiguar.

Harry Brounstein, gerente da Ford no Rio, no palco do Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, abrindo o recital ao lado de um Ford V 8.

Ainda se comenta que este gosto surgiu durante a Segunda Guerra Mundial, com a presença de tropas estadunidenses em nossas terras.

Existe a ideia que após o conflito, as tropas de Tio Sam despejaram nas nossas ruas potentes e reluzentes Lincons e Studebakers que não quiseram levar de volta para casa e isso ficou nas mentes dos natalenses. Até já tratei disso em nosso TOK DE HISTÓRIA (Ver em – https://tokdehistoria.com.br/2013/11/30/o-prazer-nosso-pelo-carro-novo-sao-os-militares-americanos-os-responsaveis-por-isso/ ).

Na época da visita da trupe, Natal tinha uma população com pouco mais de 30.000 habitantes. Na foto vemos o então Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

Provavelmente a intensa adoração dos natalenses por veículos movidos a gasolina surgiu bem antes da Segunda Guerra e tudo aponta que se deveu muito mais a bem planejadas ações de propaganda desenvolvidas pelos fabricantes de veículos, do que uma pretensa ação das tropas americanas por aqui. 

Nova Forma de Propagandas 

Na segunda metade da década de 1930 os dois principais agentes que vendiam veículos em Natal eram a M. Martins & Cia., pela Ford, cujo um dos seus sócios era José Alves dos Santos e pela Chevrolet a empresa de Severino Alves Bila.

José Alves dos Santos, da M. Martins e Cia.

Como a Natal daquele tempo tinha pouco mais de 50.000 habitantes, onde praticamente toda elite se conhecia, é provável que os proprietários destas firmas tivessem amizade (ou quem sabe até parentesco pelo sobrenome comum). Mas nas páginas amareladas dos velhos periódicos temos uma verdadeira “guerra” de propagandas destes fabricantes de veículos sendo apresentada ao público natalense.

Não é incomum encontrarmos anúncios de página inteira, que eram publicadas por semanas, com maravilhosos desenhos de novos e potentes veículos. E vale ressaltar que a propaganda de carros nos jornais era bem diferente das atuais. Enquanto hoje não faltam produções suntuosas para gerar fotos fantásticas, muita imagem trabalhada no computador, participação de modelos fenomenais e pouca informação prática (normalmente só umas letrinhas miudinhas no final da propaganda), naquelas priscas eras a coisa era muito mais informativa.

Mas em 1937 houve uma mudança nesta estratégia de propaganda que chamou muita atenção em Natal.

The Cherniavsky Trio 

Em fins de 1936 o experiente violinista Leo Cherniavsky estava realizando concertos em Nova York, no prestigiado Carnegie Hall, quando foi contratado pela Ford Motors Company para se apresentar no início de abril de 1937 em Fortaleza, Natal, Recife e Salvador. A ideia destes recitais era comemorar 25 milhões de veículos da marca Ford manufaturados.

Leo Cherniavsky teria durante suas apresentações na região a companhia do pianista pernambucano Alberto Figueiredo, do Conservatório de Recife. Já quem comandava o grupo era Harry Brounstein, da Associação Comercial do Rio de Janeiro, membro do Touring Club do Brasil e gerente da Ford no Rio.

Leo Cherniavsky nasceu em 1890, na grande comunidade judaica da cidade de Odessa, na época parte do Império Russo (atualmente pertencente à Ucrânia). Sua família possuía uma grande tradição musical e junto com seus irmãos Jan (piano) e Mischel (violoncelo) formaram um trio de jovens músicos e realizaram sua primeira apresentação em 1901, quando o mais jovem do grupo tinha apenas dez anos de idade.

Mischel, Jan e Leo, “The Cherniavsky Trio”.

O primeiro show fora da Rússia foi realizado três anos depois em Berlim, Alemanha, onde os garotos receberam críticas mistas. Ainda naquele ano, sob o patrocínio das abastardas famílias judaicas Rothchild e Sassoon, o trio fez sua estreia britânica no Aeolian Hall, em Londres, onde as opiniões dos críticos foram mais animadoras. Chegaram a realizar uma turnê por outros países da Europa com relativo sucesso e tiveram proveitosos encontros com personalidades musicais famosas e respeitadas da época (além de serem pessoas bem mais velhas que os três garotos) – incluindo o russo Misha Elman, o francês Eugène Ysaÿe, o tcheco David Popper e o húngaro Joseph Joachim.

Em 1905, diante das tensões contra os judeus em Odessa, que levou a realização de uma perseguição que resultou na morte de 400 pessoas, a família Cherniavsky se mudou para a Áustria e de lá os jovens seguiram para o Canadá, onde conseguiram a cidadania neste país. Depois começaram a atuar nos Estados Unidos, onde o grupo ficou conhecido como “The Cherniavsky Trio”.

Os jovens músicos ganharam experiência, desenvolveram um conjunto musical de primeira classe e se apresentaram em cinco continentes. Continuaram realizando apresentações e produzindo discos até 1934, quando cada um seguiu seu rumo. Assim Leo Cherniavsky chegou a Natal em abril de 1937. 

Um Gringo Tocar Rabeca 

O paquete “Pará” veio de Fortaleza trazendo a Caravana Ford para a Natal. Na capital cearense o músico estrangeiro e o pianista pernambucano se apresentaram no Teatro José de Alencar. Cherniavsky foi recebido no desembarque no cais da Tavares de Lira pelo maestro Valdemar de Almeida, diretor do Instituto de Música, Edgar Barbosa, então diretor da Imprensa Oficial, José Alves dos Santos, da M. Martins e Cia., Moyses Wanistain, representando a comunidade judaica que então existia em Natal, Carlos Lamas, Cônsul do Chile na cidade, além de Luís da Câmara Cascudo, Sérgio Severo e outros membros da comunidade natalense.

Propagando sobre o recita de Lei Cherniavsky publicado em jornais natalenses.

Como era comum na época, apesar de existirem hotéis, algumas pessoas ilustres que visitavam Natal, principalmente estrangeiros, normalmente ficavam hospedados no palacete da rica comerciante Amélia Duarte Machado, a conhecida Viúva Machado. Com Leo Cherniavsky não foi diferente e ele estava ali acomodado junto com os outros membros da Caravana Ford.

O palco escolhido foi o melhor que Natal poderia oferecer – o Teatro Carlos Gomes, no bairro da Ribeira e atual Teatro Alberto Maranhão. Os jornais da época informam que desde o momento do anúncio do recital do violinista de Odessa, a elite local buscou avidamente a agência M. Martins e Cia. atrás dos 300 ingressos postos a disposição dos futuros compradores de carros novos.

Certamente deve ter chamado atenção dos trabalhadores braçais do cais do porto, dos comerciários da Ribeira, dos que trabalhavam nos depósitos de algodão da Rua Chile, dos pescadores das Rocas e outras pessoas do povo, a intensa movimentação na Rua Frei Miguelinho, nº 133, sede da M. Martins e Cia. Eram muitas “pessoas gradas”, da mais fina flor da sociedade potiguar, com sobrenomes consagrados, agitados atrás de conseguirem um ingresso para ver “um gringo tocar rabeca”. 

Quem Não foi ao Recital Não Era Gente em Natal! 

E o tradicional teatro ficou lotado na noite de 2 de abril de 1937, uma sexta-feira. Natal, por não possuir uma rádio ativa na época, foi a única das capitais nordestinas que não transmitiu o recital pelas ondas do éter.

Leo Cherniavsky, Alberto Figueiredo e o Ford V 8, modelo Tudor sedam de luxo, de quatro portas no palco do principal teatro de Natal.

Uma situação interessante e peculiar ocorreu nesta apresentação – eu não sei como foi feito, mas as fotos aqui apresentadas (apesar da baixa qualidade) provam que, de alguma forma, os organizadores colocaram no palco do tradicional Carlos Gomes um veículo Ford V 8, modelo Tudor sedam de luxo, de quatro portas. Os músicos teriam de tocar ao lado da possante máquina e não foram registrados problemas no teatro. Mas eu duvido que hoje isso acontecesse novamente!

Quando foi exatamente as 21:00, quem subiu ao palco foi Harry Brounstein, seguido de várias personalidades locais com seus longos discursos, situação essa que nunca deixava de acontecer nestes eventos. Depois o violinista nascido em Odessa e o pianista pernambucano subiram no palco do Teatro Carlos Gomes e iniciaram a sessão musical.

Público natalense no recital de 2 de abril de 1937

Infelizmente os jornais da época aos quais tive acesso, tanto o A República de Natal, quanto o Diário de Pernambuco de Recife, nada informaram do que foi apresentado nos recitais apresentados no Teatro Alberto Maranhão e nem no principal teatro da capital pernambucana, o Santa Izabel.

Mas é inegável o evento foi um grande sucesso. Vamos encontrar varias referências sobre o recital de Leo Cherniavsky e de Alberto Figueiredo no jornal A República durante vários dias. Causou enorme impressão a versatilidade dos músicos, da participação da sociedade no evento e, evidentemente, da beleza do novo Ford V 8 no palco.

Foto de um modelo Ford V 8 de 1937 e preservado na Alemanha

O burburinho foi tanto que parece até que quem não foi ao recital não era gente em Natal!

Pessoalmente nunca acreditei que esta dita “adoração por carros” seja uma exclusividade dos natalenses. Como o texto e as fotos apontam, certamente foram as ações de propaganda como as apresentadas em 2 de abril de 1937 que ajudaram a criar na mente da maioria dos brasileiros o gosto pelo carro.

E é um gosto bem estranho e um prazer bem esquisito. Já que até hoje a maioria dos brasileiros não se importa de pagar financiamentos exorbitantes e nem reclamam de impostos gigantescos que são cobrados por um bem que se desvaloriza em até 30% após sair da loja.

1910 – A MISTERIOSA NOITE DOS HOLOFOTES EM NATAL

Quando a Pequena e Provinciana Natal Foi Iluminada Por Poderosas Luzes Desconhecidas – Causou Medo e Preocupação no Povo – As Portas da Igreja de Bom Jesus foram Arrombadas Para as Pessoas Rezarem por Proteção  – O Fenômeno Foi Testemunhado Por Câmara Cascudo – Diferente do Que se Pensou na época, Não Foi o Encouraçado Minas Gerais Que Iluminou a Capital Potiguar

Rostand Medeiros – IHGRN

Estamos na capital potiguar em uma quarta-feira, dia 29 de março do ano de 1910, então uma bucólica cidade com pouco mais de 27.000 habitantes, que naqueles dias acordava em meio a muito frio para a sua realidade, com temperaturas que variavam entre 22 e 23 graus por volta das sete da manhã[1].

Além disso, de manhãzinha bateu um vento sudoeste e caiu uma chuva e ao longo do dia as temperaturas máximas nem sequer chegaram aos 29 graus[2]. Com a forte precipitação do dia anterior, onde foram testemunhados trovões e relâmpagos sobre a cidade, o pluviômetro marcou mais de 100 m.m. de chuvas em Natal[3].  

Pela manhã cedo era comum nessa antiga Natal que as pessoas seguissem para o Mercado Público na Avenida Rio Branco, o principal entreposto de vendas de alimentos. Outros locais procurados sempre pela manhã o povo natalense seguiam para orar, ascender velas, participar de missas nas igrejas de Nossa Senhora da Apresentação, do Galo, a de Nossa Senhora do Rosário, ou de Bom Jesus. Sendo as três primeiras localizadas na Cidade Alta e a última na Ribeira.

Próximo da estação da Great Western.

Nessa cidade calma e tranquila, em meio a um tempo frio e talvez bem nublado, o dia 29 de março de 1910 foi avançando e logo a noite foi chegando. 

Bom, quem estiver lendo esse texto deve imaginar que nessa noite em Natal os lampiões da Empresa de Iluminação a Gás Acetileno estariam acesos em seus postes de ferro, com os bicos de gás com potência de iluminação de apenas “15 velas”, clareando basicamente o bairro da Ribeira. Mas isso não ocorreu naquela data. Teria havido algum problema na iluminação?

Um dos lampiões de gás acetileno, que iluminavam a Rua do Comércio, atual Rua Chile, onde vivia em 1910 a família de Luís da Câmara Cascudo.

Recorremos então a Luís Câmara Cascudo para descobrir em seu livro História da Cidade do Natal, que essa iluminação ficava apagada três dias antes e três dias depois da fase em que a lua estava cheia[4]. E naquele mês de março de 1910, conforme está na primeira página do jornal A República de 26 de março, a lua cheia estava marcada para o dia 27.

Para completar a situação, na Natal de 29 de março de 1910 não existia luz elétrica nas residências. Em um mundo sem rádio, televisão, computador, aparelhos celulares, internet e outras maravilhas modernas que utilizam a energia elétrica para seu funcionamento, grande parte da população dormia bem cedo.

Feixes de Luzes Misteriosos e o Pânico em Natal

Rua Dr. Barata, na Ribeira.

Pesquisando os jornais da época vi que o jantar era servido normalmente às seis da noite e depois o que havia para fazer era se reunir com os parentes em casa, ler algo a luz de um candeeiro a base de querosene, ou simplesmente pegar uma cadeira, um tamborete e sentar nas calçadas com os vizinhos e conversar.

Mas naqueles dias a temperatura estava fria, de vez em quando chovia, e, mesmo com a pequena capital potiguar iluminada pela luz natural da lua, acredito que às nove da noite desse dia muita gente já estava em casa, se preparando para ir para cama. É possível que por volta das nove da noite a “Guarda Nocturna” já se encontrasse nas ruas com seus apitos e cassetetes realizando suas patrulhas, para uma ronda que se apresentava sem maiores alterações.

Foi quando repentinamente e de forma surpreendente, o céu foi iluminado por feixes de uma luz clara, branca, radiante e muito forte.

Luís da Câmara Cascudo, então com apenas 11 anos de idade, rememorou aquela noite inesquecível quase 32 anos depois na sua coluna “Acta Diurna”, no jornal natalense A República. Ele então morava com seus pais na Rua do Comércio (atual Rua Chile), no número 44. Eles viviam em uma casa com a parte posterior voltada para o Rio Potengi, onde certamente o jovem e sua mãe viram os feixes de luzes “cortarem os céus em súbitos safanões luminosos”, conforme descreveu em 1942.

Justino Cascudo, sua esposa e seu filho Luís.

Do seu local de visualização Cascudo comentou que as luzes iluminaram o mangue do outro lado do rio, as águas tranquilas do Potengi, coqueiros, dunas e chegavam até o Refolés, onde atualmente se encontra a Base Naval de Natal. Do seu ponto de observação Cascudo viu os feixes se elevarem no firmamento, onde depois escreveu que “Cruzavam-se, confundindo no espaço como num duelo dantesco de enormes serpentes vestidas de relâmpagos”.

Texto publicado por Luís da Câmara Cascudo no jornal natalense A República no dia 6 de fevereiro de 1942, em sua coluna “Acta Diurna”, onde detalhou o caso dos holofotes em Natal.

O pai de Cascudo, o comerciante Francisco Justiniano da Oliveira Cascudo, colocou o filho para rezar em alto e bom som um “Salve Rainha” e que fosse dito “sem errar”. Mas não foi apenas na casa da família Cascudo que a reza, embalada pelo medo do desconhecido, ecoou com força e fé. Cascudo informou que nas casas vizinhas na Rua do Comércio dava para ouvir as ladainhas dos desesperados em busca de proteção divina. Até uma das portas da Igreja do Bom Jesus das Dores da Ribeira foi arrombada (“voou em pedaços”, segundo Cascudo), para os fiéis adentrarem o templo e pedirem a salvação dos céus.

Igreja de Bom Jesus, no bairro da Ribeira.

Horas depois, certamente após tomar conhecimento com outras pessoas na cidade sobre aqueles feixes de luz, o coronel Cascudo explicou ao filho o que acreditava ser aquele fenômeno e a calma voltou na casa às margens do rio Potengi e também na cidade.

As luzes vistas no dia 29 de março repercutiram bastante, pois dois dias depois o jornal A República trazia na sua primeira página a nota que reproduzimos abaixo e que acredito ter sido a explicação aceita sem contestação sobre o estranho caso.

Não demorou e um interessante artigo assinado por Hernani Fontes apontou como a passagem do Minas Gerais por Natal chamou atenção da comunidade e era o motivo de conversas das “pessoas gradas” da comunidade[5].

Logo o medo do povo natalense se tornou coisa do passado e surgiu certo encantamento, pela capital potiguar ter sido a “Primeira cidade brasileira iluminada pelos potentes holofotes do encouraçado Minas Gerais”, considerado então o mais poderoso navio de guerra a singrar os sete mares.

Mas NÃO foi essa nave de guerra que realizou esse procedimento diante de Natal, pois na noite de 29 de março de 1910 o encouraçado Minas Gerais não se encontrava na costa brasileira!

O Encouraçado Minas Gerais e Como ele Veio Navegou Para o Brasil?

As obras de construção desse grande navio se iniciaram em abril de 1907, no estaleiro W. G. Armstrong Whitworth & Co Ltd, na cidade deNewcastle-on-Tyne, ou simplesmente Newcastle, no norte da Inglaterra.

Era uma nave verdadeiramente espetacular para seu tempo. Possuía doze canhões com calibre de 305 mm, uma verdadeira bateria de ferro e fogo. Para nível de comparação, o famoso o encouraçado russo Potemkin, muito ligado a Revolução Russa de 1917, tinha apenas quatro canhões desse mesmo calibre. Além desse armamento superpesado, o Minas Gerais tinha nos seus costados quatorze canhões de 120 mm e couraças de proteção que variavam de oito a nove polegadas de espessura e confeccionados pela empresa Krupp. O Minas Gerais e seu irmão gêmeo, o São Paulo, poderiam alcançar uma velocidade máxima de 21 nós (39 km / h) e as tripulações desses navios podiam chegar a 106 oficiais e 887 marujos. A nave deslocava quase 20.000 toneladas, sendo lançada nas águas em setembro do ano seguinte e comissionado em abril de 1910.

Batimento da quilha do encouraçado Minas Gerais.

No final de 1910, segundo o jornal The Times de Londres, em sua edição de 3 de março de 1911 (pág. 7) a Inglaterra tinha doze encouraçados e o resto das grandes potências mundiais outros treze, dos quais cinco pertenciam à Alemanha e quatro aos Estados Unidos. Mas naquele momento o Brasil tinha dois dos mais recentes e maiores poderosos encouraçados navegando e prontos para entrar em ação[6]. E na Inglaterra estava sendo construído um terceiro encouraçado, o gigantesco Rio de Janeiro[7].

O Minas Gerais descendo para água.

E qual a razão do Brasil, uma grande nação repleta de recursos naturais, mas muito pobre e quase sem indústrias, drenou milhares de libras esterlinas para os ingleses construírem aqueles três colossos dos mares?

Na virada do século XX, a Marinha do Brasil era inferior às rivais argentinas e chilenas em qualidade e tonelagem total. Em 1904, o legislativo brasileiro votou pela alocação de uma quantia significativa de recursos para resolver esse desequilíbrio naval. Os proponentes dessa estratégia acreditavam que uma marinha forte ajudaria a tornar o país uma potência internacional. Esses navios de guerra, os mais poderosos do mundo, entrariam em serviço em uma época em que os encouraçados estavam rapidamente se tornando uma medida de prestígio internacional. Eles, portanto, chamaram a atenção global para o que era percebido como um país recém-ascendente.

O Minas, como os marujos simplificavam o nome do encouraçado, era comandado pelo veterano capitão de mar e guerra João Batista das Neves, um oficial com mais de trinta anos na Marinha de Guerra. Ele tivera um papel de destaque na conhecida Revolta da Armada de 1893, comandando o cruzador Andrada. Neves assumiu o comando desde a saída do encouraçado dos estaleiros de Newcastle-on-Tyne, no dia 4 de fevereiro de 1910.

O Minas Gerais já completamente pronto.

Mas o navio brasileiro não seguiu direto para o Brasil. Primeiramente rumou para os Estados Unidos, para o porto de Norfolk, no estado da Virgínia. Antes atracou no porto de Plymouth, sudoeste da Inglaterra, onde desembarcou alguns marinheiros que estavam doentes. Partiu no dia 8. Pouco mais de 24 horas depois o navio brasileiro se viu diante de um fortíssimo temporal e seu comandante decidiu seguir para a ilha de São Miguel, nos Açores, aonde chegou em 15 de fevereiro. Nessa ilha o Minas recebeu carvão e zarpou no dia 21 para os Estados Unidos[8].

O Minas Gerais, em uma pintura do inglês Charles L. De Lacy.

Chegaram na costa americana no dia 2 de março, mas só puderam entra no canal de Hampton Roads dois dias depois devido a um pesado nevoeiro. Antes de atracar no porto de Norfolk, o encouraçado seguiu para um local chamado Old Point Confort, defronte ao Fort Monroe, uma das maiores fortificações militares americanas na época. Nesse local o Minas Gerais disparou uma salva de 21 tiros de canhão em saudação a nação anfitriã. O navio brasileiro foi então saudado pela guarnição do forte e do encouraçado USS Lousiana.

USS North Carolina

Depois de treze dias o Minas Gerais se juntou ao cruzador blindado USS North Carolina, da Marinha dos Estados Unidos (US Navy), e seguirem para o Rio de Janeiro. A missão do North Carolina era transportar o corpo de Joaquim Nabuco, então embaixador do Brasil nos Estados Unidos e falecido em janeiro de 1910. Os dois navios zarparam às dez e meia da manhã de 17 de março.

Na sequência os dois navios realizaram no dia 22 de março uma parada para abastecimento de carvão na ilha de Barbados, no Caribe, então uma colônia britânica. No outro dia as duas naves seguiram em direção ao Brasil[9].

Salva dos poderosos canhões do Minas Gerais.

E é aí onde começa o mistério da noite em que Natal foi iluminada por holofotes.

Quem Iluminou Natal?

Os primeiros brasileiros que comunicaram terem visualizado a dupla Minas Gerais e North Carolina, foi o pessoal do farol de Salinas, atualmente Salinópolis, no Pará. O caso ocorreu na tarde de 31 de março de 1910, quase dois dias depois do caso de Natal ter sido misteriosamente iluminada por luzes que aparentemente eram de holofotes[10].

É certo que esses navios passaram por Natal no começo da manhã do dia 4 de abril, onde provavelmente não foram vistos por ninguém. Sabemos disso porque nessa mesma data, às duas da tarde, eles passaram diante do porto de Recife, onde diminuíram a marcha, emitiram sinais de luz e foram vistos por muitas pessoas[11]. Dependendo da condição do mar, um navio que siga entre Natal e Recife a 21 nós de velocidade, leva cerca de sete a oito horas de navegação[12].

Se não foi nem o Minas Gerais e nem o North Carolina, quem então iluminou Natal?

Sabemos que não era incomum nessa época, anterior a criação do radar, que navios utilizassem seus holofotes. Evidentemente que a quantidade desses aparelhos por navio dependia da sua utilização, no caso do Minas Gerais, uma nave de guerra, haviam nove holofotes de 90 centímetros de diâmetros, que tinha um alcance de até seis minhas náuticas, ou cerca de onze quilômetros.

O uso desse tipo de aparelho de iluminação marítimo estava condicionado a situações variadas. Desde necessidade de navegação segura, localização de obstáculos, transmissão de sinais, busca de náufragos no mar e muito mais.

Holofotes de 90 cm em uma nave inglesa durante a Primeira Guerra Mundial, iguais aos utilizados no encouraçado Minas Gerais.

Então seria errado algum navio ligar seu farol para tentar entrar no porto de Natal e assim evitar bater nas rochas que durante séculos atrapalharam a entrada de naves no rio Potengi? Teoricamente não!

Inclusive nessa época já existia na Fortaleza dos Reis Magos um farol de sinalização que orientava os navegantes a ultrapassar a barra do rio e chegar ao porto. Mas em 1910 o procedimento normal era esses barcos entrarem no nosso porto com o apoio de um prático de navios durante o dia. Esse é tipo de profissional até hoje, mesmo com todos os avanços tecnológicos, conhece os detalhes e obstáculos de um determinado corpo de água e trabalham orientando navios a adentrarem e atracarem com segurança nos portos de todo mundo.

Uso de holofotes na Marinha do Canadá, na década de 1910.

Percebemos que um barco que utilizasse de maneira indiscriminada holofotes de alta potência e longo alcance sobre uma cidade, sem adentrar o seu porto (o que justificaria o uso dos holofotes), assustando toda uma população, não sei se é considerado algum tipo de crime. Mas certamente não é uma situação normal, pois não conheço outro caso.

Pelos dias posteriores a 29 de março de 1910, as notícias sobre o encouraçado Minas Gerais que circularam no jornal natalense A República, o principal da cidade, focaram basicamente na sua chegada ao Rio de Janeiro, então Capital Federal. Comentaram principalmente sobre a retumbante festa que aconteceu no porto da cidade, onde não faltaram manifestações patrióticas e nacionalistas. Em tempo – Afora as notícias publicadas em A República, nenhum outro jornal, ou qualquer documento oficial, trouxe novas informações sobre a passagem do encouraçado Minas Gerais diante da capital potiguar e sobre a utilização de holofotes iluminando a cidade.

Não tenho meios para dizer o que foi que iluminou Natal e assustou sua população em 29 de março de 1910.

O mistério permanece!

NOTAS————————————————————————————————————————————————————–


[1] Sobre a população de Natal na época e outros dados ver Cascudo, C. História da Cidade do Natal, 3ª ed., Natal-RN, Edição IHGRN, 1999, página 95.

[2] Nesse tempo em Natal existia uma estação pluviométrica e suas medições eram publicadas diariamente na primeira página do jornal A República, o principal jornal do Rio Grande do Norte na época. Chama atenção as temperaturas bem mais amenas que nos dias atuais.

[3] Como ocorre até hoje em uma região afetada pelas secas, a boa notícia naqueles dias frios era que no interior do Rio Grande do Norte as chuvas caiam em todo sertão e os rios Assú, Mossoró, Ceará-Mirim e Potengi estavam com grande volume de água. Como naquela época o algodão, o gado e outros produtos agropastoris eram os motores da fraca economia potiguar, aquelas chuvas eram ótimas notícias depois de dois anos de seca.

[4] Ver Cascudo, C. História da Cidade do Natal, 3ª ed., Natal-RN, Edição IHGRN, 1999, página 301.

[5] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 18/03/1910, pág. 1. Não consegui encontrar nenhuma informação sobre quem era Hernani Fontes, mas seu artigo é muito interessante e aponta com antecedência o que ocorreu na Revolta da Chibata.

[6] Pesquisadores e jornalistas do ramo de defesa nacional apontam que durante um curto período após seu lançamento e incorporação na Marinha do Brasil o encouraçado Minas Gerais, assim como seu irmão São Paulo, realmente foram os navios de guerra mais poderosos em termos de armamentos no mundo. Ver o canal https://www.youtube.com/watch?v=4tMAxMwob70

[7] Em razão de falta de dinheiro, decorrente de uma da muitas crises econômicas que atingiram o Brasil em sua História, o encouraçado Rio de Janeiro foi vendido para o Império Otomano, atual Turquia, em outubro de 1913 e rebatizado Sultân Osmân-ı Evvel. Com o início da Primeira Guerra Mundial o navio foi assumido pelos ingleses e denominado HMS Agincourt. Ver http://www.dreadnoughtproject.org/tfs/index.php/H.M.S._Agincourt_(1913)

[8] As quase 20.000 toneladas de deslocamento permitiam ao Minas Gerais enfrentar a maioria dos temporais marítimos,  mas a tripulação a bordo estava reduzida a 836 homens e, na avaliação do comandante João Batista das Neves, estes se encontravam “bastante fatigados”. Por isso a necessidade dav parada nos Açores. Ver jornal A Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, 17/04/1910, págs. 3 e 4.

[9] É possível conhecer todos os detalhes da viagem do encouraçado Minas Gerais para o Brasil em 1910 em uma grande reportagem publicada nos jornal A Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, 17/04/1910, págs. 3 e 4.

[10] Ver notas sobre essa visualização nos jornais  A Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, 17/04/1910, págs. 3 e 4. E A Província, Recife-PE, 02/04/1910, pág. 1. O farol do município de Salinas foi construído em 1852, reformado em 1916 e continua em funcionamento até nossos dias. Sobre esse farol ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Farol_de_Salin%C3%B3polis. Sobre o município de Salinópolis ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Salin%C3%B3polis.

[11] Ver Jornal de Recife, Recife-PE, 05/04/1910, pág. 1.

[12] Sobre a distância marítima entre Natal e Recife e o tempo de navegação, ver www.geografos.com.br

1924 – O CONFLITO DAS LAVADEIRAS EM NATAL

alfa-328
O Baldo mostrando as roupas lavadas e dependuradas nas cercas. Uma marca de Natal no início do século XX.

O Esquecido Confronto entre As Lavadeiras do Baldo Contra Empresários Apoiados Pela Marinha do Brasil e a Atitude do Capitão-tenente Fábio Sá Earp

Rostand Medeiros – Sócio efetivo do IHGRN – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Elas eram muitas, eram pobres, eram esforçadas, eram trabalhadoras silenciosas e dedicadas ao que faziam. Na Natal do passado eram vistas todos os dias seguindo pelas ruas da cidade, principalmente descendo com suas trouxas de roupas na cabeça as ladeiras arenosas da atual Rua Princesa Isabel e da Avenida Rio Branco em direção ao Rio do Baldo, um pequeno e limpo afluente onde elas exerciam a sua profissão.

Um dia, de forma inesperada e corajosa, uniram forças contra o mais rico homem do Rio Grande do Norte daquele tempo, que junto a militares da Marinha do Brasil tentaram expulsá-las do seu tradicional local de trabalho.

alfa-323 - Copia (2)

E o que houve com o oficial da Marinha do Brasil envolvido nesse episódio?

O Rio de Beber

Segundo nos conta o Professor Itamar de Souza, em seu livro Nova História de Natal (Departamento Estadual de Imprensa, 2008), obra indispensável para quem quer conhecer sobre o passado da cidade de Natal, desde o século XVII o Rio do Baldo é um dos pontos da cidade que mais aparecem nas documentações antigas.

Quando o conde Maurício de Nassau administrou a possessão holandesa que abrangia parte do Nordeste (1637-1644), trouxe com ele artistas e naturalistas que aqui estiveram para descrever paisagens, animais e buscar as riquezas da terra. Entre estes estava o alemão George Marcgrave, que visitou em Natal em 1643 e descreveu o Rio do Baldo, chamando-o Tiuru[1].

1650-2
Mapa holandês de 1650, mostrando o Rio Potengi, Natal e o afluente Tiuru, o Rio do Baldo.

Câmara Cascudo, tendo como base o trabalho de Marcgrave, assim escreveu sobre este afluente do Rio Potengi “Subindo o Potengi, da foz para as nascentes, logo após a cidade, está o Tiuru, Tiçuru diz a Descrição de Pernambuco em 1746, donde bebe o povo da cidade. É o Rio da Bica, o mesmo Rio do Baldo, ainda hoje existente em seus filetes humildes”.[2]

Outra descrição de Cascudo sobre o local “Tiçuru:- Rio da cidade do Natal, depois Rio do Baldo (1761), atravessando a Praça Carlos Gomes. Era a principal fonte de abastecimento d’água para os moradores durante mais de dois séculos. Em sua vizinhança ficou a Cruz da Bica, limite sul do sítio da Cidade, e que se tornou centro de devoção popular, a Santa Cruz da Bica, com festas em 3 de maio. De ti-ruçu, água grande, Alt. Tiuru”[3].

Cascudo também aponta que o primeiro branco que foi proprietário da área onde passava este rio foi o capitão Pedro da Costa Faleiro, que em 1677 recebeu uma carta de aforamento “no alagadiço da fonte desta Cidade”.

alfa-130
Grande parte da pequena Natal do início do século XX dependia do Baldo para sobreviver.

Este alagadiço era formado por fontes e vários veios de água que desciam tanto da área mais elevada do centro velho, o atual bairro da Cidade Alta, como dos aclives para os lados dos bairros do Alecrim e Barro Vermelho. Cascudo escreveu que os moradores da primitiva Natal também chamaram o Rio do Baldo como o rio de beber água, rio da cruz, rio da bica, rio da fonte e simplesmente rio[4].

Durante os séculos seguintes o pequeno e límpido Rio do Baldo teve uma grande importância para Natal e sua gente, tendo merecido atenção das autoridades. Em algum momento do passado foi construído um aterro primitivo, com um sangradouro, para acumular vários metros cúbicos de água para uso da população. Com o tempo uma parte dessa área também ficou conhecida como Oitizeiro[5].

1912, Feira do Passo da Pátria
Feira da comunidade do Passo da Pátria em 1912, próximo a região do Baldo. Era nessa comunidade onde habitavam a maioria das lavadeiras envolvidas no conflito de 1924.

Em uma cidade pobre, o Baldo se torna um local onde muitos conseguiam a subsistência, principalmente as mulheres. Certamente existiam aqueles que transportavam água pura para as casas dos natalenses de outrora, mas também existiram as escravas que seguiam para lavarem as roupas de seus amos. Depois foram as mulheres livres, mas pobres, que realizavam esse trabalho em troca de alguns tostões[6].

E viver em Natal sem lavar uma roupa, era algo um tanto difícil de conseguir conviver desde priscas eras. Pois quem tinha o privilégio de viver neste lugar maravilhoso, localizada apenas a cinco graus ao sul da Linha do Equador, vivia debaixo de um calor abrasador. Certamente ficava bem melhor está com uma roupa lavada em um rio de água cristalina e passada no ferro aquecido com carvões em brasa, para acompanhar o lindo pôr-do-sol do Rio Potengi, sentado na calçada de casa em uma relaxante cadeira de balanço.

alfa-323 - Copia
Outro detalhe da região do Baldo e Oitizeiras onde as lavadeiras trabalhavam.

Muitas Histórias no Baldo

São muitos os fatos e episódios da História da capital potiguar ocorridos no local. Alguns engraçados e outros trágicos.

Henrique Castriciano comentou que em 1845 morava na velha Natal uma mulher na faixa dos 50 anos de idade, solteira, que tinha como únicas companhias uma afilhada chamada Balbina e uma cadelinha. Era uma mulher discreta, que vivia de “pequenas vendas de preparados de milho” e diziam que ela era rica, “possuidora de occulto e cobiçado tesouro”. Seu nome era Anna Marcellina e era nativa de Hamburgo, por isso conhecida por todos como Hamburguesa[7].

I0030323-3Alt=007032Lar=004578LargOri=004578AltOri=007032
Nota publicada no Rio de janeiro, extremamente cheia de erros, sobre a execução da Hamburguesa.

Certamente para fugir do calor diurno da nossa cidade, Marcellina tinha o hábito de lavar a sua roupa a noite. Mas em 13 de fevereiro de 1845, quando seguia para o Baldo, o soldado Alexandre José Barbosa, natural do Assú, matou essa mulher a cacetadas e a asfixiou empurrando seu rosto na areia. O móvel do crime foi roubar o pretenso “tesouro” que a Hamburguesa possuía e que não foi encontrado pelo assassino. Pelo crime o soldado Alexandre foi enforcado em Natal[8].

Em um dos textos sobre o crime da Hamburguesa, Henrique Castriciano deixa entender que no Baldo ocorriam cerimônias e manifestações ligadas a religiosidade afro-brasileira. Castriciano percebeu necessidade de se estudar o que ali acontecia – “Baldo, logradouro público, onde a plebe natalense, desde tempos remotos, faz nocturnas abluções e cuja inffuencia nos costumes da mesma plebe merece ser estudada por um chronista observador”.

Johann Moritz Rugendas. Lavadeiras do Rio de Janeiro, 1835.
Johann Moritz Rugendas. Lavadeiras do Rio de Janeiro, 1835. No Baldo não era muito diferente.

Independente das histórias passadas, percebemos que a área do Baldo e Oitizeiro preocupavam os políticos e o poder público no início do século XX.

Lopes Cardozo, um candidato a deputado federal nas eleições de 1890, publicou nos jornais da cidade as suas propostas para conseguir eleitores, entre estas constava a da “drenagem do Baldo” e de “quebrar a Cabeça do negro”, que nesse caso se referia a uma pedra que atrapalhava a entrada de embarcações no porto de Natal[9].

1905
Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Prefeito de Natal, que na época tinha o título de Presidente da Intendência, apresentou um interessante relatório em janeiro de 1905 que mostra interessantes visões sobre o Baldo e Natal.

Em 1904, quando uma forte seca queimou o interior do Rio Grande do Norte, o então governador Tavares de Lira utilizou os muitos retirantes que buscaram refúgio em Natal para realizarem diversos melhoramentos na cidade e um dos locais foi no Baldo. Foram feitos trabalhos de retirada de aterros de lama, limpeza da área, construção de banheiros e de uma casa para um guarda municipal zelar para que as pessoas não tomassem “banhos despidos”.[10]

Em meio a lavagens de roupas, coletas de água, banhos, despachos e mortes, parece que as festas também faziam parte da rotina daquele ponto de Natal.

I0002440-2Alt=002014Lar=001330LargOri=003679AltOri=005571
Melhorias feitas para as lavadeiras.

Antônio José de Melo e Sousa, escritor que por duas vezes foi governador do Rio Grande do Norte, comentou utilizando o pseudônimo de Lulu Capeta o quanto havia sido fraca a festa dos Reis Magos de 1902, com “poucos grupos tirando os Reis e nem uma lapinha animada”. Para Melo e Sousa a exceção naquele ano foi um “cherém” organizado no Baldo. Apesar da reclamação do escritor pela baixa qualidade dos músicos, Melo e Sousa, que a tudo escutava na sua casa por volta da meia-noite enquanto escrevia a nota para o jornal, afirmou com certa melancolia que “Aquele povo está divertindo-se, e eu a estas horas rabiscando capetadas[11].

Também naquele mesmo ano de 1902, durante o carnaval, vários grupos de foliões brincaram no Baldo em meio a muita chuva. A animação era total, quando por volta das nove e meia da noite da terça-feira gorda estourou uma briga entre os organizadores de um “Maracatu”. Não fosse a intervenção enérgica do oficial de polícia Francisco Cascudo e sua tropa, quase que um dos desordeiros foi furado a punhal. Para completar a nota os arruaceiros acabaram entrando no xadrez vestindo saias e dormiram na antiga cadeia da cidade, chamada jocosamente de “Chalet da Praça André de Albuquerque”[12].

alfa-323

Conflito Contra a Marinha

As lavadeiras do Baldo e Oitizeiro, juntamente com o seu pesado trabalho faziam parte do cotidiano e da paisagem de Natal.

Em 1924 a cidade evoluía e quem chegava de Recife no trem da Great Western, tinha o primeiro vislumbre da cidade ao passar na região do Baldo e via a labuta daquelas mulheres.

Um dia, aos primeiros raios do sol, as lavadeiras que chegavam ao seu local de trabalho encontraram alguns homens munidos de materiais para a construção de uma cerca, fechando o acesso para a área de trabalho delas e derrubando os banheiros. Além dos trabalhadores, oficiais de justiça estavam munidos de documentos para sacramentar a ordem judicial.

alfa-335
A região do Baldo e Oitizeiro visto a partir da linha do trem da Great Western. Quem vinha nesta composição de Recife tinha o primeiro vislumbre da cidade ao passar na região do Baldo e via a labuta daquelas mulheres.

O fato se deu em uma sexta-feira, 14 de março e, segundo o matutino natalense O Jornal do Norte, cujo redator era o advogado e jornalista João Café Filho, as mulheres não aceitaram a realização do trabalho daqueles homens e logo estalou um conflito. Não existem detalhes de como se deu os atos de violência, mas Café Filho aponta que as mulheres partiram para cima, derrubaram a cerca recém-colocada e não deixaram o serviço continuar. Na sequência o encarregado ameaçou chamar os homens da Armada, um nome comum na época para designar a Marinha do Brasil.

Hoje Natal é o porto de alguns navios de guerra da Marinha, sedia o Comando do 3° Distrito Naval, a grande Base Naval Ari Parreira, o Grupamento de Fuzileiros Navais e outras unidades menores. Mas em 1924 as unidades militares da Marinha na capital potiguar se restringiam a Escola de Aprendizes Marinheiros, hoje extinta, e a Capitania dos Portos do Rio Grande do Norte[13]. Logo os marinheiros e o comandante da Capitania chegaram ao Baldo.

AN-Sa-Earp
Fábio Sá Earp na Inglaterra.

O oficial comandante era o capitão-tenente Fábio Sá Earp, que informou ter os trabalhadores direito de realizarem seu serviço, pois o terreno era da Marinha e fora aforado pelo empresário Manoel Machado.

Provavelmente o homem mais rico do Rio Grande do Norte no seu tempo, Manoel Duarte Machado era natural de Portugal, mas já morava há alguns anos em Natal onde fez fortuna. Aqui casou com a nativa Amélia Duarte Machado, que lhe proporcionou uma longa união, mas que não deixou filhos. Aparentemente são os investimentos em terras, onde ele tinha muita visão na hora das aquisições, que fez aumentar seus rendimentos.

I0024628-17(02113x02908)

A prática do aforamento em si nada tinha de errado e este é como se chama até nossos dias o contrato entre um órgão público que é dono de alguma área, ao qual um particular adquire de forma perpétua o direito à posse, uso e gozo daquele bem. Diz-se, portanto, que o particular, chamado foreiro, é o titular do domínio útil, obrigando-o ao pagamento anual do foro.

Apesar de legal, para o jornalista Café Filho o rico empresário Manoel Machado desejava aquele terreno para “plantar capim”. Junto a Manoel Machado, contava como interessado no aforamento o comerciante Thomaz da Costa Filho.[14]

O capitão Sá Earp buscou argumentar com as lavadeiras que realmente o terreno onde trabalhavam pertencia à Marinha, cujo domínio útil estava sendo cedido através do aforamento a Manoel Machado e Thomaz da Costa. Evidentemente que aquelas mulheres simples não sabiam e não entendiam nada daquilo. Mas elas sabiam o valor do seu trabalho e unidas disseram não ao oficial naval.

Recuo Inusitado dos Militares

antigas (40)
Membros do Esquadrão de Cavalaria da Força Pública, a atual Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte na década de 1920.

Para piorar a já frágil situação daquelas mulheres, surgiu da Cidade Alta uma tropa do Esquadrão de Cavalaria da Força Pública, a atual Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte. Eram vinte homens montados em cavalos, armados com cassetetes e comandados pelo tenente Francisco Barbosa. Na cola dos policiais e de suas alimárias começou a juntar muita gente e a tensão reinante só cresceu.

A notícia da época conta que as duas partes, as lavadeiras e os membros do Estado, se encaravam. Uma das partes com paus, pedras, machados, foices, mãos de pilão e a outra com armas de fogo e cassetetes. As lavadeiras tinham até mesmo uma posição que Café Filho chamou de “ar de sarcasmo” diante da tropa fardada.

x (35)
Fábio Sá Earp em 1918

O carioca Fábio Sá Earp, como oficial militar de uma força federal era, sob todos os aspectos vigentes do seu tempo, um homem com muito poder. Não dá nem para comparar com os dias atuais a força que os militares da década de 1920, tanto na teoria quanto na prática, possuíam sobre os brasileiros. O nosso país era então uma nação convulsionada, com várias revoltas e que vivia quase que permanentemente debaixo de Estado de sítio[15].

Bastava o oficial naval dá uma simples ordem para que seus comandados, bem como a força policial estadual, passasse por cima das lavadeiras e de quem mais se opusesse. Quem ficasse no meio que aguentasse as consequências.

CapitaniadasArtes01
Antiga sede da Capitania dos Portos de Natal, atual Capitania das Artes.

Então houve algo inesperado para a maioria dos espectadores presentes – O capitão-tenente Fábio Sá Earp e o tenente Francisco Barbosa entraram em um entendimento e decidiram recuar suas tropas. Além disso, segundo relata Café Filho, estes oficiais mandaram suspender os serviços, ficando estabelecido que as lavadeiras fossem ressarcidas dos seus prejuízos, com a polícia garantindo o cumprimento das ordens e o direito do trabalho das mulheres.

Consta que em 1924 a causa das lavadeiras era de extrema aceitação positiva por parte da população de Natal. Até porque, quem é que iria lavar a roupa suja do povo dessa terra?

g
Um pouco de como a mídia da época viu o conflito.

Bem, poderíamos concluir este texto com a alma lavada pela sensação de vitória das mais fracas diante dos gladiadores fardados e do poder do capital.

Mas, novamente utilizando os escritos de Café Filho, sabemos que bastou o clima de tensão esfriar, a multidão se dispersar, a noite cair e os policiais saírem da área de litígio, para os trabalhadores de Manoel Machado e Thomaz da Costa Filho refazerem a cerca no meio da madrugada. Mas nem bem o dia amanheceu as lavadeiras derrubaram todo serviço feito na calada da noite e ainda sobraram cacetadas para os construtores da cerca. As mulheres então buscaram a ajuda profissional de um advogado para impetrar um habeas corpus.

alfa-328 - Copia

O caso então desaparece do matutino Jornal do Norte. Entretanto, de uma forma ou de outra, as lavadeiras do Baldo continuaram por lá por um bom tempo. Acredito que o que acabou com seu trabalho foram as mudanças dos costumes, as mudanças laborais, a poluição no velho Rio do Baldo e os avanços tecnológicos[16].

Ao realizar esse texto ficou uma curiosidade – O porquê do capitão-tenente Fábio Sá Earp recuar diante de frágeis e pobres lavadeiras?

Esse militar naval, carioca oriundo de uma nobre família da região serrana do Rio de Janeiro, com forte tradição de participação de seus membros junto a Marinha do Brasil, era antes de tudo um grande profissional, possuía um forte caráter pessoal e, por ser como era, pagou um alto preço profissional na Força Naval pelo seu pensamento e atitudes.

Um Alto Preço

Durante a Primeira Guerra Mundial o Brasil teve uma participação muito mais simbólica do que efetiva. Mesmo assim enviou para a Inglaterra um grupo de oficiais navais para se formarem como pilotos, treinando em hidroaviões da Royal Navy. Esse grupo de brasileiros, que chegou até mesmo a realizar missões de patrulha, era comandado pelo capitão-tenente Manoel Augusto P. de Vasconcellos, potiguar de Natal, e entre seus comandados estava o então primeiro-tenente Fábio Sá Earp. 

1
Militares brasileiros enviado a Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. Da esquerda para direita vemos Lauro de Araújo, Heitor Varady, Eugênio Possolo, Virgínius B. Delamare, Olavo Araújo, o potiguar Manoel Augusto P. de Vasconcelos e Fábio Sá Earp.

Além de oficial naval e piloto de avião Sá Earp era querido pelos seus colegas e comandados. Estava sempre participando de atividades aéreas sobre o Rio de Janeiro, então Capital Federal, voando aeronaves “Machi 9”, de fabricação italiana, ou “MF”, de fabricação norte-americana[17].

I0010673-3Alt=006584Lar=004917LargOri=004917AltOri=006584

Mas um dia em 1922, em meio às muitas crises políticas ocorridas durante o governo do Presidente Artur Bernardes, ele e outros oficiais navais se recusaram a realizar uma passagem a baixa altitude na Avenida Rio Branco, centro do Rio, saudando o Presidente da República. Para entender um pouco melhor esse fato, leia abaixo a nota do jornal carioca A Noite, de 28 de abril de 1922, na 1ª página.

A Noite 28-4-1922 (1) - Copia

Fábio Sá Earp e seus companheiros pagaram um preço muito, muito alto, por não desfilar para o despótico Bernardes. De saída ele perdeu suas “asas” de piloto, sendo excluído da Aviação Naval. Perdeu também a oportunidade de ir para os Estados Unidos para acompanhar a construção de aeronaves destinadas a nossa Marinha[18].

Apesar de ter sido promovido por antiguidade a capitão-tenente, recebeu como punição maior a transferência para Natal, então uma cidade distante de tudo e de todos. Aqui chegou com sua esposa no início de julho de 1923 e assumiu o cargo de Capitão do Porto.

x (23)

Mesmo passando por tantos problemas, na capital potiguar Sá Earp não se tornou uma pessoa rancorosa e nem complicada. Pelo contrário, era operativo e laborioso. O próprio jornalista Café Filho comentou na notícia do caso das lavadeiras, que após o capitão Sá Earp desembarcar em terras potiguares ele deu continuidade ao trabalho do seu antecessor no melhoramento das colônias de pescadores da região, tendo recebido elogios da sociedade local.

Mas logo depois do problema das lavadeiras, mais precisamente em dezembro de 1924, um ano e meio após chegar a Natal, Fábio Sá Earp foi transferido para ser o segundo em comando da Escola de Aprendizes de Marinheiros de Recife.

Não sei nessa época como era o tempo de rotatividade dos comandantes na direção da Capitania dos Portos de Natal, mas fico com o pensamento que as ações do capitão Sá Earp nesta cidade parece que não foram bem vistas pela elite local. Talvez algum pesquisador com maior capacidade do que a minha possa dizer que estou equivocado, mas percebo que  sua permanência a frente da nossa Capitania rápida e a ele, um piloto naval formado na Inglaterra, coube uma transferência para assumir uma função secundária, em uma escola naval no distante Nordeste do país.

DP=18-12-1924-2
Diário de Pernambuco, 18 de dezembro de 11924, pág. – 2

Mesmo nessa situação o capitão-tenente Fábio Sá Earp continuou a realizar o seu trabalho de forma correta e positiva. Ele chegou a participar de uma interessante pesquisa sobre a questão da pesca no Atol das Rocas[19].

Com o tempo e as mudanças no curso da política do país, o oficial naval Fábio Sá Earp voltou a Aviação Naval e em 1942 se incorporou a recém-criada Força Aérea Brasileira (FAB). Ainda durante a Segunda Guerra Mundial comandou uma representação da FAB na Inglaterra e depois chegou ao posto de brigadeiro [20].

Mas aqueles eram outros tempos, onde talvez a ponderação já não estivesse mais presente na mente e nem no coração do velho aviador!

NEMFOTO145_17
Fábio Sá Earp na FAB na década de 1950 – Fonte – FGV

Pois foi Fábio Sá Earp quem deu voz de prisão ao mítico Nero Moura, antigo comandante do 1° Grupo de Aviação de Caça da FAB que combateu na Itália durante a Segunda Guerra. O fato se deu no final de outubro de 1945, quando os militares derrubaram Getúlio Vargas e Nero Moura se posicionou contrariamente ao golpe. Sá Earp era seu superior hierárquico e o deteve nas dependências do quartel-general da III Zona Aérea[21].

NOTAS


[1] Segundo a etimologia o Tiuru é de origem tupi, possivelmente correlacionado a tyuru, a bexiga, termo este está no dicionário do Padre Manoel Moraes, (Marcgrave, 1648), pg.276.

[2] Ver Câmara Cascudo, Luís da: GEOGRAFIA DO BRASIL HOLANDES, Livraria José Olímpio Editora, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1ª Edição, 1956.

[3] Ver Câmara Cascudo, Luís da: NOMES DA TERRA, Fundação José Augusto, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 1ª Edição, 1968.

[4] Ver Câmara Cascudo, Luís da: História da cidade do Natal, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2ª Edição, 1980.

[5] Sobre a questão das denominações envolvendo a área do Rio do Baldo, esta parece ser a denominação mais tradicional e antiga. Entretanto a partir de certa época os textos antigos colocam na mesma região o local “Oitizeiro”. Inclusive a primeira usina de fornecimento de energia elétrica da Natal, cujos motores ficavam na esta área, era chamado de Usina do Oitizeiro. Procurei os conhecimentos dos amigos Manoel Medeiros de Britto, advogado e ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grand do Norte, e do Professor Claudio Pinto Galvão, para tirar esta dúvida. Ambos não me souberam dizer onde começava uma e terminava outra. Os dois acreditam que ambas as denominações apontavam para a mesma área.

[6] Certamente a existência dessas várias mulheres lavando roupas determinou que, em algum momento da História de Natal, alguém tratou o sebo e fabricou sabões primitivos.

[7] Hamburgo atualmente é uma grande cidade na Alemanha, mas em 1814 era uma Cidade Estado, com o título oficial de “Cidade Livre e Hanseática de Hamburgo”, junto com outros 38 estados soberanos que faziam parte da federação alemã.

[8] Ver jornal A República, edições de 26 e 27 de fevereiro de 1907, respectivamente terça e quarta feira, sempre na página 2.

[9] Ver jornal A República, edição de 16 de julho de 1890, quarta feira, página 3.

[10] Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Prefeito de Natal, na época tinha o título de Presidente da Intendência. Ver jornal A República, edições em várias datas no mês de janeiro de 1905. O relatório é apresentado sempre com o título “Relatorio apresentado a intendencia eleita para o triennio 1904 a 1907 por ocasião de sua posse em 1 de janeiro de 1905”.

[11] Ver jornal A República, edição de 16 de julho de 1890, quarta feira, página 3.

[12] Ver edições do jornal A República, de 12 e 13 de fevereiro de 1902, respectivamente quarta e quinta feira, sempre nas 1ª páginas.

[13] Naquele tempo, até mesmo pela ausência do transporte aéreo, tudo que se referia ao tráfego marítimo de cargas e passageiros chamava muito a atenção de toda nação, consequentemente a Capitania dos Portos era uma instituição militar de uma importância bem mais intensa que nos dias atuais. Sempre que havia mudança de seus comandantes, os novos oficiais que aqui chegavam eram saudados com toda pompa e circunstância pelos Presidentes de Província e depois pelos Governadores potiguares. Criada pelo Imperador Dom Pedro II, através do Decreto n.º 539, de 3 de outubro de 1847, certamente esse é um dos órgãos mais antigos da administração pública federal no Rio Grande do Norte.

[14] Consta que o aforamento se confunde até nosso dias com a enfiteuse. Antes, o aforamento tinha feição própria, distinta da enfiteuse. O aforamento recaía sobre toda sorte de bens, solo e superfície, prédios incultos ou cultivados, chãos vazios ou edificados. A enfiteuse só incidia sobre terrenos incultos ou chãos vazios. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Enfiteuse

[15] Nessa época o presidente brasileiro era o advogado mineiro Artur da Silva Bernardes, que governou o Brasil entre 15 de novembro de 1922 e 15 de novembro de 1926 e governou utilizando o Estado de sítio durante quase todo seu governo. O Estado de sítio é um estado de exceção, instaurado como uma medida provisória de proteção do Estado, quando este está sob uma determinada ameaça, como uma guerra ou uma calamidade pública. Esta situação de exceção tem algumas semelhanças com o estado de emergência, porque também implica a suspensão do exercício dos direitos, liberdades e garantias. Ver https://www.significados.com.br/estado-de-sitio/

[16] Não encontrei uma única vírgula sobre o tema publicado pelo jornal natalense “A República”, o jornal oficial do governo estadual potiguar.

[17] Ver Revista Marítima Brasileira, pág. 902, edição 86, 1920, Imprensa Naval, Rio de Janeiro-RJ.

[18] Sobre este episódio ver, considerado uma rebelião na época, pode ser lido no jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edições de 28 de abril (pág.1), 4 de maio (pág.2), 8 de maio (pág.2), 29 de maio (pág.3), 14 de junho (pág.3), 16 de junho (pág.2) e 12 de setembro (pág.5), todas as edições do ano de 1922. Fabio Sá Earp tinha nessa época como um dos seus colegas o aviador naval Djalma Petit, que ficaria muito conhecido no Rio Grande do Norte como instrutor aéreo e um dos fundadores do Aeroclube local.

[19] Ver Revista Marítima Brasileira, respectivamente na pág. 846, edição 124, 1932 e na pág. 264 e 265, edição 125, 1933, ambas publicadas pela Imprensa Naval, Rio de Janeiro-RJ.

[20] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta-feira, 4 de novembro de 1943, pág. 1.

[21] Ver http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/moura-nero

 

LOURIVAL AÇUCENA – O GRANDE ARTISTA DE NATAL

t2ec16z8e9s4l8dbrcrpi9gw60_58
A Provinciana Natal dos tempos de Lourival Açucena.

Rostand Medeiros – Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

Seu nome de batismo era Joaquim Eduvirges de Mello Açucena, nascido em Natal no dia 17 de outubro de 1827, quando a Independência do Brasil havia sido proclamada apenas cinco anos antes. Quando aquele jovem veio ao mundo a sua cidade era então muito acanhada, de população reduzidíssima, provinciana, longe de tudo e de todos e sem nenhuma importância. Tão sem importância que só recebia uma vez por mês um navio de cargas e passageiros.

Esse seria a imagem de Lourival Açucena – Fonte – https://nuhtaradahab.wordpress.com/2013/12/22/lourival-acucena-1827-1907/

Ele era filho de Manoel Joaquim Açucena, homem robusto, um nacionalista exaltado e grande tocador de violão. Aventuroso, consta que para se encontrar com sua futuras esposa, Maria Pacífica de Melo, o pai de Lourival Açucena atravessava o rio Potengi a nado e com a roupa na cabeça, depois andava léguas até a região de São Gonçalo do Amarante para se encontrar com a jovem Maria[1].

alfa-1

De sua mãe Lourival Açucena herdou o gosto pela leitura dos clássicos do nosso idioma, o instintivo rigor gramatical e as frases apuradas. Do pai ficou a voz forte, o gosto pelo violão e uma fidelidade romântica pelas noites enluaradas.

Consta que Lourival Açucena estudou francês, latim, retórica, filosofia, mas não foi um estudante exemplar destas matérias. Exemplar mesmo o jovem foi com o violão nas mãos, que aprendeu com seu pai.

Em 1839, no final do Período Regencial, a Província do Rio Grande do Norte era governada pelo goiano Manuel de Assis Mascarenhas (veja imagem acima), que tinha inclusive o título de “Dom”[2]. Por esta época o jovem Lourival Açucena já era um exímio cantador e foi levado até o fidalgo Presidente por seu pai. Ao invés de declamar versos clássicos, como seria a praxe na época, o garoto atacou com um animado lundu e o então mandatário potiguar gostou bastante.[3]

Um Funcionário Público de Voz e Violão

Os que conhecem do tema, que não é o meu caso, afirmam que a sua poesia era ligada ao Romantismo, mas tinha forte relação tardia com o Arcadismo.

Jovem de espirito alegre, que fazia amizades de maneira muito fácil, amante das serestas, das noitadas, teve uma vida agitada e participava ativamente dos serões boêmios de Natal. Apesar disso, segundo Luís da Câmara Cascudo, não era chegado a bebidas. Isso talvez explique como alguém que gostava de cantorias e da noite chegou aos 80 anos, em um tempo onde a medicina era bastante limitada.

matriz-corpo-santo-recife
Antiga matriz do Corpo Santo em Recife, atualmente demolida. Local da apresentação de Lourival Açucena na capital pernambucana em 1848 – Fonte – https://patrimonioespiritual.org/2016/03/02/matriz-do-santissimo-sacramento-e-santo-antonio-recife-pe/

Já como cantor alcançou fama nos festejos religiosos, sendo considerado um cantante de grande qualidade e que se acompanhava ao violão. Na semana santa de 1848 realizou a sua única viagem para fora do seu estado natal, onde apresentou “As lamentações de Jeremias” em Recife. O fato se deu na imponente igreja do Corpo Santo, que atualmente não existe mais[4]. O padre local, conhecido tenor sacro, ficou impressionado com a apresentação do natalense[5].

Artista praticamente completo, Joaquim Eduvirges de Melo Açucena também participou de peças teatrais. Em 1853 representou o personagem capitão Lourival na peça O Desertor Francês, aparentemente uma adaptação da peça Le Desérteur, um drama de cinco atos do francês Louis Sèbastien Mercier[6]. Sabemos que a sua apresentação foi tão marcante, que até a sua morte todos em Natal passaram a lhe chamar pelo nome do personagem que interpretou.

kgrhqiokioe5dtwdpqboflutjg60_57
A pequena Natal da época de Lourival.

Joaquim Açucena logo estará no funcionalismo público estadual como “Praticante dos Correios”, ganhando dezesseis mil réis. Depois passou para a Tesouraria e em 1859 chegou a Oficial-Maior. Câmara Cascudo comenta que esta última promoção se deu neste ano pela sua voz. Mas não foi na base do grito. Mas cantando!

Nesse tempo as festas na igreja de São Miguel, em Extremoz, que então estava em construção, eram muito populares e Joaquim Açucena arranjou um jeito de fugir do trabalho para cantar nas missas. Ocorre que naquele ano o baiano João José de Oliveira Junqueira[7], então recém-empossado Presidente da Província do Rio Grande do Norte, assistiu a festa religiosa em Extremoz, onde o bardo Açucena tocou e cantou.

alfa-35

A autoridade gostou do que ouviu e perguntou quem era o ilustre trovador. Ao responder o questionamento de Oliveira Junqueira, um dos acompanhantes aproveitou e contou a história da tal fugida de Lourival Açucena da sua repartição. Este foi então chamado diante do Presidente e se apresentou bastante trêmulo, certamente imaginando algum tipo de castigo. Mas para sua surpresa e do bajulador safado e extremamente invejoso que o denunciou, o Presidente Oliveira Junqueira pediu ao cantador para tocar alguns lunduns, modinhas[8], xácaras[9] e realizar alguns solos de violão. A autoridade ouviu tudo extasiado e ao final declarou “Gostei muito! Você é um artista Seu Açucena. Está nomeado Oficial Maior da Tesouraria”.

É provável que com este gesto o Presidente Oliveira Junqueira quisesse mostrar sua indignação com a denúncia destinada a prejudicar o cantador. Ou talvez desejasse ter por perto alguém com a capacidade que Lourival Açucena tinha com a viola nas mãos, para lhe distrair nas horas de folga[10].

alfa-34

Se para entrar no serviço público nos dias atuais as pessoas tem de “queimar as pestanas” estudando muito, Lourival Açucena, sem demérito algum já que era a realidade do seu tempo, subiu no funcionalismo publico de viola na mão e declamando versos.

O Bardo No Xilindró Da Fortaleza Dos Reis Magos

Se em Recife foi onde Lourival Açucena se apresentou com galhardia e sucesso na igreja do Corpo Santo, foi igualmente na capital pernambucana que em 1861 ele teve seus textos publicados pela primeira vez em um pequeno jornal chamado “O Recreio”.

Mas no ano de 1888 houve muita dor de cabeça para Lourival Açucena, inclusive ele passou um período atrás das grades.

alfa-36

Consegui uma cópia do periódico “Gazeta de Natal”, edição de sábado, 21 de janeiro de 1888, onde na primeira página dá conta que o então Presidente da Província potiguar, o pernambucano João Capistrano Bandeira de Melo Filho, do Partido Conservador, abriu um inquérito para apurar desvios de recursos na coletoria de impostos da cidade potiguar de Macau, onde o titular era Lourival Açucena.

O periódico natalense não explica detalhes do caso, afirmando que Bandeira de Melo usava de muita rigidez das leis existentes para punir Lourival, entretanto era extremamente brando com um caso semelhante ocorrido em Nova Cruz, com o funcionário publico A. Lopes Pessoa da Costa, seu correligionário. Aquela velha história, ainda bem atual, de se utilizar a lei para os inimigos e abrandar tudo para os amigos!

Forte dos Reis Magos
Fachada da Capelinha do Forte dos Reis Magos e parte do pátio interno. Foi nesta fortaleza que Lourival Açucena passou alguns meses preso.

Mas como na história potiguar tudo que envolveu Lourival Açucena terminava em festa, consta que a sua passagem pelos cárceres da Fortaleza dos Reis Magos foi marcado pela pouca rigidez do seu aprisionamento. Sabemos que através da anuência do comandante da fortaleza, amigo do cantador de longa data, a farra foi tanta e tão boa que Lourival Açucena passou mais alguns dias na fortaleza por vontade própria.

Percebi que os biógrafos de Lourival Açucena focaram muito mais no burlesco do caso, do que na ideia de entender o que realmente aconteceu. Mas não sei o quanto Lourival Açucena estava envolvido em desvios na coletoria de Macau, pois os dados são limitados e o meu conhecimento das leis da época é restrito. Mas lendo a edição de “Gazeta de Natal” fica nítido que seus amigos desejavam protegê-lo do rígido Bandeira de Melo, tanto assim que passou pouco tempo preso.

Muitos Filhos E Um Deles Morreu Pelo Uso de Morfina

Lourival ascendeu muito no funcionalismo público da sua época. Certamente por ser um homem competente no seu trabalho, mas sem dúvida ajudou bastante o fato dele ser bom de viola, de conversa e de amizades.

1880-10-06 (2) - Copia

Joaquim Açucena foi comandante de um dos destacamentos da Guarda Nacional do Rio Grande do Norte, onde recebeu a patente de capitão. Foi também delegado de polícia, 2° juiz de paz da paróquia de Natal, chefe de seção da Secretaria de Governo e exerceu a função de oficial de gabinete do Presidente Gustavo Adolfo de Sá. Ele se aposentou com um salário nada irrelevante de 1:300$000 (Um mil e trezentos réis)[11].

Mas se seu salário não era tão módico assim, ficou registrado que levava uma vida frugal, espartana e que quase passava necessidades, embora não lhe faltasse nada devido às inúmeras amizades que fez ao longo dos seus 80 anos de vida.

É provável que a sua remediada situação financeira fosse uma consequência de outra “atividade” na qual o bardo natalense foi extremamente atuante – Fazer filhos. Lourival Açucena foi pai de dezenove filhos legítimos e treze rebentos bastardos. Trinta e dois no total.

1889-SD - Copia
Versos da lavra de Lourival Açucena, em honra ao marechal Deodoro da Fonseca.

Sabemos que ele teve três esposas que podemos enquadrar como “oficiais”. Estas foram Antônia Cândida de Albuquerque, cuja união aconteceu em 1852, com Flora Carlinda de Vasconcelos, em 1865, e a última, já no limiar da vida, com Silvânia, a quem carinhosamente denominou de “gentil porangaba”. Não é a toa que foi chamado por um jornal local de “O rouxinol das saias”[12].

Entre seus filhos, ao menos três deles seguiram a carreira militar no Exército. Foi o caso do tenente-coronel Reinaldo Lourival, que passou a residir no Rio de Janeiro, e do major Pedro Lourival, que passou a residir em Pelotas, Rio Grande do Sul[13].

Já  o cadete Carlos Lourival, outro filho de Lourival Açucena que seguiu a carreira das armas, morreu com 21 anos em decorrência do “uso imoderado de morfina”. Este jovem nascido em Natal era fruto do seu segundo casamento, morava em São Paulo e estava lotado no 10° Regimento de Cavalaria, onde e faleceu na madrugada de 4 para 5 de julho de 1889[14].

1889-29-07 - Copia
Texto sobre a morte do cadete Carlos Lourival.

Segundo um jornal do Rio Grande do Sul, devido a sua ausência no quartel os seus companheiros de farda arrombaram as dependências do seu alojamento e encontraram seu corpo prostrado em sua cama ás onze da manhã de 5 de julho. O jornal informou ainda que o cadete Carlos Lourival sofria de insônia e utilizava morfina para conciliar o sono, mas na noite de 4 de julho tomou uma dose mais elevada que o normal e isso ocasionou a sua morte[15].

Cantor de Modinhas

DSCF0386 - Copia
Terceira sede da redação do jornal A República, na Rua Dr. Barata, na Ribeira, Natal. Lourival Açucena escreveu em vários jornais da cidade.

Lourival Açucena escreveu em muitos jornais da cidade, mas não chegou a publicar nenhum livro durante a sua vida, preferindo a viola e a cantoria. Foram seus muitos amigos que publicaram um pequeno texto com alguns de seus poemas trinta dias após a sua morte.

Foi Luís da Câmara Cascudo, com a ajuda de Joaquim Lourival, filho do poeta, que recolheu o que foi possível de seus poemas, publicando um volume em 1927. Este filho do bardo foi igualmente uma figura muito conhecido em Natal, sendo proprietário de uma escola particular e chamado por todos de “Professor Panqueca”.

1939-12-01 - Copia
Manchete do interessante texto produzido por Câmara Cascudo sobre Lourival Açucena em 1939, no jornal “A República”.

Câmara Cascudo, nascido em 1886, ainda teve oportunidade de assistir uma cantoria do então septuagenário Lourival Açucena na festa de Nossa Senhora da Apresentação. O bardo glosava os motes dados pela multidão de forma atenta e chamava atenção pela prontidão da rima e do vocabulário. Cascudo comentou em 1939 que o nosso artista era muito orgulhoso e vaidoso. Pois se em uma apresentação ele não fosse o primeiro a subir no palco, batia o pé e não cantava mais. E que ninguém falasse alto durante sua apresentação, pois ele parava e não recomeçava mais. Ainda bem que no tempo de Lourival Açucena não existiam os celulares![16]

Conhecido como o “Cantor de Modinhas”, Lourival Açucena teve durante 60 anos a primazia da voz nas festas e solenidades natalenses. Segundo Câmara Cascudo ele foi a alma alegre da cidade. Improvisador de festanças, marcador de quadrilha, artista dramático, fazedor de brindes, compadre de meio mundo de gente, respeitado e cortejador, era ainda aquele que conhecia “Os tristes desvios das altivosas criaturas”[17].



NOTAS

[1] Algumas fontes apontam que esta peripécia no rio Potengi teria sido realizada pelo próprio Lourival Açucena, mas em um interessante texto de Luís da Câmara Cascudo publicado em 1939 ele aponta o fato ligado ao pai do poeta. Ver o periódico A República, Natal-RN, edição de quinta-feira, 12 de janeiro de 1939, pág. 3.

[2] Manuel de Assis Mascarenhas nasceu em Goiás Velho no dia 28 de agosto de 1806, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 30 de janeiro de 1867. Filho de Francisco de Assis Mascarenhas, conde e marquês de São João da Palma, no Brasil, e 6º conde da Palma, em Portugal.

Proprietário rural em Campos (RJ) formou-se em leis pela Universidade de Coimbra e tornou-se condestável e diplomata do Império. Foi nomeado pelo Governo Imperial adido de 1ª classe na legação brasileira em Berlim e, em seguida, secretário da legação em Viena. Em 1830, deixou definitivamente a diplomacia e voltou ao Brasil, atendendo urgente chamado de seu pai, para ajudá-lo a gerir a propriedade da família em Campos. Nesta atividade, demorou-se, no interior fluminense, por três anos, para depois ingressar na magistratura. Foi juiz em Vassouras e desembargador da Relação da Corte. Filiado ao Partido Conservador, presidiu as províncias do Rio Grande do Norte (1838-43) e Espírito Santo, (1843). Eleito deputado-geral pelo Rio Grande do Norte à 4ª legislatura e, na seguinte, por Goiás. Em 1850, foi escolhido, em lista tríplice, senador pelo Rio Grande do Norte. Embora conservador, em várias oportunidades aprovou os liberais, tornando-se, por fim, conselheiro-chefe do Partido Liberal. Em 1º de junho de 1839, ingressou no Instituto Histórico e Geográfico do Brasileiro (IHGB) como sócio correspondente. Ver – https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/MAMascarenhas.html

[3] O lundu, ou lundum, chegou ao Brasil através de escravos Bantu de Angola e áreas circundantes, sendo uma dança de casal muito sensual, voluptuosa e considerada bastante lasciva. Foi altamente popular em todo o Brasil no século XVII e início do século XVIII. Posteriormente substituído pelo maxixe (que também foi considerado escandaloso …) e, segundo alguns autores, em seguida pelo samba. Ver TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha à lambada. São Paulo-SP: Art, 1991, p. 41. Sobre o encontro de Açucena com esta autoridade ver A República, Natal-RN, edição de quinta-feira, 12 de janeiro de 1939, pág. 3.

[4] O conjunto arquitetônico da igreja do Corpo Santo foi demolido para a construção da Avenida Marquês de Olinda em 1913.

[5] Ver http://adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria_de_cultura/DOC/DOC000000000113068.PDF

[6] Louis Sèbastien Mercier (1740-1814) foi um escritor francês, autor dramático da época revolucionária, membro da Convenção. Autor do romance de costumes Tableau de Paris, conhecido documento de caráter histórico e sociológico sobre a situação da sociedade francesa na véspera da Grande Revolução.

[7] João José de Oliveira Junqueira (Salvador, 10 de março de 1832 – 9 de novembro de 1887) foi um magistrado e político. Era filho do senador João José de Oliveira Junqueira, ministro do Supremo Tribunal de Justiça. Foi deputado provincial, deputado geral, ministro da Guerra e senador do Império do Brasil de 1873 a 1887. Antes disso foi presidente das províncias do Piauí (1857 a 1858), Rio Grande do Norte (1859 a 1860) e de Pernambuco (1871 a 1872). Ver http://www.wikiwand.com/pt/Jo%C3%A3o_Jos%C3%A9_de_Oliveira_Junqueira_J%C3%BAnior

[8] A modinha era uma canção de origem portuguesa leve, sentimental e muito popular nos séculos XVIII e XIX. Alguns dos primeiros exemplos de modinhas estão nas Óperas Portuguesas (1733-41). Originalmente melodias simples, as modinhas costumavam serem abrilhantados com intrincados e elaborados efeitos musicais quando executados para a nobreza. Elas foram introduzidas no Brasil no final do século XIX onde permaneceram como expressões simples da vida urbana. Ver TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha à lambada. São Paulo-SP: Art, 1991, p. 47.

[9] A xácara é uma narrativa popular cantada em versos também denominada romance, em que acontece algum episódio trágico, oriundas de Portugal e Espanha ainda encontradas no Brasil do século XIX. Ver FARIA, Edméia. Folclore Poético em Pompéu. Belo Horizonte-MG: Maza Edições, 2000, p. 59.

[10] Ver o periódico A República, Natal-RN, edição de quinta-feira, 12 de janeiro de 1939, pág. 3.

[11] Para se ter uma ideia podemos comparar os vencimentos da aposentadoria que Lourival Açucena ganhava com os vencimentos da aposentadoria de um juiz de direito na mesma época, que era de 4:800$000 (Quatro mil e oitocentos réis). Ver Mensagem lida pelo Governador Augusto Tavares de Lyra em 14 de julho de 1904, na abertura do Congresso Legislativo do Estado do Rio Grande do Norte, na página 114. Em 1904 Lourival Açucena tinha 77 anos.

[12] Sobre este apelido jocoso ver o periódico O Caixeiro, Natal-RN, edição de quinta-feira, 10 de agosto de 1893, pág. 4. Aparentemente as suas duas primeiras esposas faleceram em decorrência de partos mal assistidos.

[13] Ver o periódico A República, Natal-RN, edição de quinta-feira, 19 de outubro de 1927, pág. 1, na reportagem comemorativa dos 100 anos de nascimento de Lourival Açucena.

[14] Atualmente o local onde se situava o 10° Regimento de Cavalaria do Exército Brasileiro é a sede da Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB), da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Ver CERQUEIRA, Homero De Giorgi. A disciplina militar em sala de aula. São Paulo-SP: Ed. Biblioteca 24 horas, 2009, p. 51.

[15] Sobre a morte de Carlos Lourival ver os periódicos A Gazeta de Natal, edição de sábado, 27 de julho de 1889, pág. 2 e A Federação, Porto Alegre-RS, edição de segunda-feira, 29 de julho de 1889, pág. 1. A razão do falecimento do cadete Carlos Lourival ter sido estampada na primeira página deste jornal gaúcho deve-se ao fato dele ter vivido alguns anos naquele estado, onde fez muitos amigos, serviu em alguns quartéis e chegou a cursar a Escola Militar.

[16] Ver A República, Natal-RN, edição de quinta-feira, 12 de janeiro de 1939, pág. 3.

[17] Ver CASCUDO, Luís da Câmara. Introdução. In: AÇUCENA, Lourival. (Joaquim Eduvirges de Melo Açucena). Versos reunidos por Luís da Câmara Cascudo. 2. ed. Natal: Editora Universitária, 1986, p. 25-26

NOSSA NOVA ENTREVISTA SOBRE A SEGUNDA GUERRA EM NATAL

20170409_160853

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Recentemente eu tive a grata oportunidade de conceder uma entrevista a revista BZZZ (número 45, edição de março de 2017) sobre minhas opiniões a cerca De certos aspectos da história de Natal durante a Segunda Guerra Mundial.

Foi uma entrevista muito boa, muito positiva, conduzida pelo competente jornalista Rafael Barbosa, que para os esquecidos de plantão é o coautor, junto com o também jornalista Paulo Nascimento, do livro “Valdetário Carneiro: A essência da bala”. Trabalho que considero muito bom e informativo sobre os aspectos da violência recente no Rio Grande do Norte.

20170409_160910

Eu já era fã do Rafael e isso só ajudou muito o nosso contato. Basicamente nessa nova entrevista da BZZZ o Rafael procurou trazer para o leitor o que ficou deste contato entre os potiguares e os militares dos Estados Unidos que aqui estiveram.

Expressões novas, alterações no modo de falar do pessoal local, novos gestos introduzidos por este contato e muito mais. Quem também foi entrevistada foi a professora Flavia de Sá Pedreira, da UFRN, que deu um verdadeiro show de informações sobre o tema.  

Minha participação foi mais limitada, mas nem por isso deixei de gostar do resultado final. Valeu mesmo grande Rafael.

20170409_160824
Capa da revista BZZZ número 45, edição de março de 2017.

DORIAN GRAY CALDAS, UM HOMEM MUITO SIMPLES E MUITO DINÂMICO!

 

2ebe94226396430f019db50f6c27b725
Foto – Novo Jornal

Rostand Medeiros – Membro do IHGRN

Ele foi pintor, escultor, tapeceiro, poeta, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras e muitas outras coisas. Mas para mim, pelo pouco que o conheci, guardo na minha memória a visão de uma homem muito simples, tranquilo, trabalhador e que sempre se apresentou como alguém de bem com a vida!

Na minha adolescência, na época que a minha família possuía uma casa de veraneio na praia de Búzios, muitas vezes vi “Seu Dorian” percorrendo a praia pela manhã, bem cedinho, acompanhando os pescadores que traziam suas redes do mar. Guardo a imagem do artista circulando descalço, de bermudas cáqui, camisa azul clara de botão, cabelos brancos desalinhados pelo vento do litoral, com um bloquinho e um lápis na mão. Sem alardes e nem estrelismos Seu Dorian circulava entre os homens do mar e seus troféus, enquanto sua mente desenvolvia alguns esboços.

dorian-caldas-3

Eu vi uma vez alguns destes desenhos e na mesma hora eu respeitei muito a sua capacidade de reproduzir artisticamente o que ele via. Sabia que ele era um conhecido e respeitado pintor, mas naquele momento me pareceu que era apenas alguém que queria registrar as cenas do cotidiano de uma tranquila praia ao sul de Natal.

Em outra ocasião, por alguma razão que não me recordo, eu estava na sua casa em Búzios e vi três belíssimas e coloridas pinturas. Eram feitas em pequenos cartões retangulares e Seu Dorian percebeu que aquele belo material chamou a minha atenção. Com uma calma e tranquilidade magníficas, me explicou como ele pintou aqueles cartões e que eram esboços para um possível grande painel, que talvez fosse realizar em Fortaleza em uma instituição bancária. Nunca soube se Seu Dorian realmente conseguiu pintar este painel, mas pelo colorido e pelas formas magnificas existentes naquelas pinturas, aquilo nunca saiu da minha memória.

dg

Para algo assim me chamar atenção naquela época, tinha de ser realmente muito belo, diferente, intenso e chamativo. E nem tente me reprimir meu caro leitor, pois eu estava em plena juventude, vivendo intensamente aqueles loucos anos 80. E estando em Búzios eu só gostava mesmo de namorar, está na beira da praia batendo bola, ou mergulhando com um arpão atrás de peixes nas transparentes águas da enseada daquela linda praia.

Dorian Gray Caldas nasceu no dia 16 de fevereiro de 1930, em Natal, sendo filho de uma família tradicional, com parentes que desenvolviam trabalhos artísticos. Sua primeira exposição foi realizada em 1950, junto com os pintores Newton Navarro e Ivon Rodrigues, todos eles organizadores do 1º Salão de Artes Plásticas de Natal.

Já como um contumaz leitor de jornais antigos eu descobri como este evento foi marcante na história da arte potiguar no Século XX.

A sua escultura na Praça das Mães foi extremamente festejada na época de sua inauguração, em 8 de maio de 1960, chamando muita atenção na cidade. A obra foi executada na gestão do prefeito José Pinto Freire, com Dorian Gray produzindo a estátua que representava a mãe potiguar. Na época já existia no local, ao lado da antiga sede do Tribunal de Justiça, uma praça, ou “square”, como se dizia na época. Ali repousou primitivamente o busto de bronze de Pedro Velho, o fundador da República no Rio Grande do Norte e obra do escultor Corbiniano Vilaça, sendo este retirado e levado para a atual Praça Pedro Velho.

dorian-caldas-1

O Rio Grande do Norte deve muito a Dorian Gray não apenas pelo desenvolvimento de sua arte, mas igualmente pela sua atuação em prol da cultura potiguar. Ele muito batalhou pela criação do Conselho Estadual de Cultura, instalado em dezembro de 1961. Dorian Gray foi, junto com o escritor Manoelito de Ornelas e o então Governador Aluízio Alves, um dos oradores na cerimônia de instalação desta instituição. Neste mesmo ano lançou seu primeiro livro, intitulado “Instrumento de Sonho”.

Participou de varias exposições individuais e coletivas, em sua cidade e pelo Brasil. Os jornais comentaram após seu falecimento que ele produziu mais de 10.000 obras entre pinturas a óleo, gravuras, bicos-de-pena, desenhos, painéis, tapeçaria e escultura. Informaram também que seu talento artístico foi reconhecido internacionalmente.

16265929_1416667288343267_1120889743562257132_n
Fonte – Lívio Oliveira

Dorian Gray atuou como assessor da secretaria estadual da cultura do Rio Grande do Norte (1967-1968) e da Fundação José Augusto (1974) e foi diretor do Teatro Alberto Maranhão (1967-1968). Em 1989 publicou o livro “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte 1920—1989”.

A cultura do Rio Grande do Norte sofre com a morte deste homem uma perda irreparável. Acredito que o exemplo de Seu Dorian como artista, o seu dinamismo, seu sentido inovador e sua humildade, é algo raro de se observar hoje em dia entre os que produzem cultura em terras potiguares.

dorian-caldas-2

NATAL, 1935: QUATRO DIAS SOVIÉTICOS

rio-grande-do-norte-comunista
A bandeira de Natal com a estrela, a foice e o martelo | Crédito: Montagem Fabio Marton

A capital do Rio Grande do Norte viveu sob um breve regime comunista

Autor – Marcus Lopes

Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/terra-brasilis/natal-1935-dois-dias-sovieticos.phtml#.WEyVPYWcHIV

Durante quatro dias, o Brasil viveu a experiência de um governo comunista. Foi em 1935, em Natal, no Rio Grande do Norte. Após um levante militar ocorrido no Batalhão do Exército, a capital potiguar caiu nas mãos dos rebeldes, que destituíram os governantes locais dos seus cargos – incluindo o governador do estado e a Assembleia – e assumiram o poder com apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), liderado por Luís Carlos Prestes. Sob o lema “pão, terra e liberdade”, os revolucionários almejavam dar o pontapé inicial para a instalação de um regime soviético no Brasil.

O levante começou na manhã de 23 de novembro, um sábado. O dia em Natal, que contava com cerca de 40 mil habitantes, começou calmo e prometia poucas novidades. A principal notícia era uma formatura no Teatro Carlos Gomes, à noite, que contaria com a presença do governador Rafael Fernandes.

alfa-285
Cais da Tavares de Lira, no bairro da Ribeira, em Natal. Uma provinciana capital do Nordeste do Brasil.

No quartel militar do 21º Batalhão de Caçadores (21º BC) o dia também corria tranquilo até que chegou a informação de que o general Manuel Rabello, comandante da 7ª Região Militar, no Recife, havia autorizado o licenciamento de alguns cabos, soldados e tenentes que estavam com tempo vencido na carreira militar e a expulsão de outros, acusados de envolvimento em incidentes de rua ocorridos dias antes em Natal, incluindo assaltos a bondes.

O documento com a ordem de expulsão precipitou um movimento que estava sendo articulado havia vários dias entre lideranças militares e sindicatos locais junto com membros do PCB estadual. O objetivo era apoiar a revolução nacional que estava sendo preparada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), no Rio.

alfa-110
O 21º Batalhão de Caçadores

“Havia uma preparação para o levante sob a direção do Partido Comunista, que atuava no 21º Batalhão de Caçadores e em vários sindicatos locais. Eles apenas aguardavam as orientações do comitê central”, afirma Homero de Oliveira Costa, professor de ciências políticas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e estudioso da insurreição de Natal. Somando-se a isso, Costa lembra que a cidade já vivia momentos de tensão política desde o ano anterior. “O Rio Grande do Norte teve uma das mais tumultuadas eleições do país, com diversos conflitos de ruas, assassinatos, prisões e repressão. Isso criou uma situação muito tensa no Estado, e em Natal em particular”, diz.

Erro de comunicação

Os acontecimentos daquele sábado se precipitaram de tal maneira que não houve tempo nem de avisar a ANL, cujos líderes (incluindo Prestes) aguardavam o melhor momento para eclodir a revolução em nível nacional. Em função das expulsões ordenadas pelo comando militar no Recife, o PCB estadual e os integrantes do Batalhão decidiu dar início ao motim naquele mesmo dia.

luis-carlos-prestes
Luís Carlos Prestes – Bundesarchiv; BArch

Por volta das 19h30, um grupo de militares rebeldes, liderados pelo sargento Quintino Clementino de Barros, rendeu os oficiais de plantão do quartel e, com fuzis apontados para a cabeça dos soldados, ordenaram: “Os senhores estão presos em nome do capitão Luís Carlos Prestes”. Não houve resistência e, a partir daí, os revolucionários, liderados por Quintino e apoiados por grupos civis organizados (como o sindicato dos estivadores, que era muito forte na cidade), tomaram o quartel e ocuparam locais estratégicos: o palácio do governo, a Vila Cincinato – residência oficial do governador -, a central elétrica, a estação ferroviária e as centrais telefônica e telegráfica.

quartel-da-salgadeira-1935
Resultado do ataque comunista ao Quartel da Salgadeira, no Centro de Natal.

Informado sobre a confusão e a organização dos amotinados ainda na cerimônia dos contabilistas, o governador e demais autoridades civis e militares fugiram e se esconderam na casa de aliados. No quartel da Força Pública, cuja sede ficava próxima ao batalhão rebelado, ensaiou-se uma resistência legalista com policiais fiéis ao governo, vencida pelos militares rebeldes, no momento mais organizados e bem armados.

1935-2
Quintino Clementino de Barros, militar e músico do 21º Batalhão de Caçadores, presidente do Comitê Popular Revolucionário, quando já preso pelas forças do governo.

Na manhã seguinte, Natal estava completamente dominada. Na residência do governador, sede dos rebelados, formou-se uma junta provisória de governo, autodenominada Comitê Popular Revolucionário, que era formada pelo sapateiro José Praxedes (secretário de Abastecimento); sargento Quintino Barros (Defesa); Lauro Lago (Interior e Justiça); estudante João Galvão (Viação); e José Macedo (Finanças), este último funcionário dos Correios e Telégrafos.

Em seguida, o Comitê Revolucionário começou a tomar medidas práticas. A primeira foi um decreto com a destituição do governador do cargo e a dissolução da Assembleia Legislativa “por não consultar mais os interesses do povo”. As tarifas de bondes foram extintas e o transporte coletivo tornou-se gratuito.

1935-3
De cigarro vemos Mário Lago, ex-diretor da Casa de Detenção de Natal e Mário Paiva, comissários do Comité Revolucionário, quando detidos.

Na segunda-feira, o comércio e os bancos não abriram. À tarde, foi ordenado o saque dos cofres da agência do Banco do Brasil e Recebedoria de Rendas. O dinheiro foi confiscado em nome do governo revolucionário e parte dele distribuído à população, que adorou a novidade, mesmo sem ter muita noção do que estava acontecendo.

Pura farra

“A população confraternizava com os rebeldes. Era mais uma festa popular ou um carnaval exaltado, do que uma revolução”, explica o historiador Hélio Silva em seu livro 1935 – A Revolta Vermelha. “Casas comerciais foram despojadas de víveres, roupas e utensílios domésticos que aquela gente não podia comprar. Houve populares que, pela primeira vez, comeram presunto”, de acordo com o historiador.

1935-5
Da esquerda para direita vemos o ex-sargento Diniz, do 21º Batalhão de Caçadores, José Macedo, ex-tesoureiro dos Correios e Telégrafos e João Baptista Galvão, considerados “figuras salientes” do governo comunista instalado em Natal em novembro de 1935.

Um dos líderes do movimento, João Galvão, relatou posteriormente o que aconteceu naqueles dias: “O povo de Natal topou a revolução de pura farra. Saquearam o depósito de material do 21º BC e todos passaram a andar fantasiados de soldado. Minha primeira providência como ‘ministro’ foi decretar que o transporte coletivo seria gratuito. O povo se esbaldou de andar de bonde sem pagar”.

foto_33_225_1938
Líderes comunistas do levante natalense presos pelas forças legalistas.

Para se comunicar com a população, um avião foi confiscado no aeroporto e sobrevoou a cidade despejando milhares de folhetos. No curto período em que se mantiveram no poder, os revolucionários também distribuíram o primeiro e único número do jornal A Liberdade, impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado. Nele, foi publicado o expediente do novo governo e um manifesto, inspirado no programa do PCB e sob o lema “todo poder à ANL”.

Cada um por si

Segundo o professor Homero Costa, o pouco tempo em que permaneceram no poder impediu que os revolucionários tomassem outras medidas práticas. “Houve boatos de que na Vila Cincinato estavam distribuindo alimentos à população, o que levou muita gente a se deslocar para lá, mas não era verdade”, diz Costa.

1935-4-copia
Foto que mostra os efeitos do arrombamento do cofre da agência do Banco do Brasil em Natal.

Mesmo assim, algumas medidas típicas de regimes de exceção foram tomadas naquele começo de semana, como salvo-condutos para circulação nas ruas e ordens para que o comércio e os bancos funcionassem normalmente, o que, claro, não aconteceu. “Os comerciantes foram orientados a negociar como de costume, sem estocarem alimentos para elevar os preços. Caso isso ocorresse, os estoques seriam confiscados pelo governo”, diz Elias Feitosa, professor de história do Brasil do Cursinho da Poli, lembrando que alguns gêneros alimentícios, como o pão, também tiveram o preço reduzido.

O levante não ficou restrito a Natal. Houve uma interiorização do movimento no Rio Grande do Norte. “Foram formadas três ‘colunas guerrilheiras’ que ocuparam 17 dos 41 municípios do estado, destituindo prefeitos e nomeando outros”, diz Homero Costa.

1935-1
“Foi bala muita” – Fachada do Quartel da Salgadeira, atingido por disparos efetuados pelos comunistas.

Pequenas localidades, como São José de Mipibu, Ceará Mirim e Baixa Verde (atual município de João Câmara) foram ocupados sem resistência e os prefeitos substituídos por simpatizantes da ANL. Agências bancárias e do governo (as coletorias de renda) foram saqueadas e o dinheiro enviado para a capital. Na terça-feira, a intentona potiguar começou a revelar sua fragilidade com a movimentação de tropas do Exército da Paraíba e de Pernambuco rumo a Natal para debelar o movimento e restabelecer a ordem.

1935-6
Sargentos legalistas do Exército Brasileiro, que ficaram prisioneiros dos comunistas no quartel do 21º Batalhão de Caçadores.

Em uma localidade chamada Serra do Doutor, um dos grupos da ANL foi preso por tropas leais a Getúlio Vargas. Informados de que tropas federais entrariam em Natal e com a possibilidade de bombardeamento aéreo, os líderes do “governo revolucionário” fugiram na base do cada um por si. Um deles, Praxedes, viveu foragido durante anos. Os demais foram capturados e enviados para o Rio de Janeiro com outros presos políticos, como o escritor Graciliano Ramos.

1935-7
De chapéu de palha vemos Dinarte Mariz, tendo ao seu lado Enoch Garcia, considerados os idealizadores da resistência ao avanço comunista no Seridó Potiguar, que se efetivou com o combate na Serra do Doutor. Certamente que politicamente Dinarte foi um dos que mais usufruiu politicamente da sua suposta ação de resistência contra as forças comunistas, chegando a se tornar governador e senador pelo Rio Grande do Norte.

O mesmo aconteceu nas cidades do interior. Com a fuga, os militares enviados pelo governo federal não tiveram dificuldades de controlar a situação. O governador Rafael Fernandes foi reconduzido ao cargo e, a partir de quarta-feira, dia 27 de novembro, a vida voltou ao normal na cidade que, durante cerca de 90 horas, abrigou, como escreveu Hélio Silva, “o primeiro, único e fugaz governo soviete na história do Brasil.”

Intentona comunista

No mesmo dia em que o “governo comunista” era encerrado no Rio Grande do Norte, o movimento tenentista deflagrava, no Rio de Janeiro, uma insurreição para derrubar o presidente Getúlio Vargas e instaurar um regime comunista no Brasil. Liderado por Luís Carlos Prestes, o levante ficou conhecido como Intentona Comunista, ou Revolta Vermelha. Os amotinados se rebelaram em vários regimentos e batalhões do Rio, mas foram rapidamente sufocados pelas forças de segurança nacional.

1935-1-2

A insurreição estava sendo preparada desde o ano anterior. No final de 1934, Prestes, que estava na União Soviética havia três anos, retornou ao Brasil para organizar a revolução comunista. Acompanhado de sua mulher, Olga Benário, militante do partido comunista alemão, eles desembarcaram clandestinamente com os nomes falsos de Antônio Villar e Maria Villar. Além do casal, vieram outros estrangeiros para ajudar na revolução. Entre eles, o argentino Rodrigo Ghioldi e sua mulher, Carmen; o casal alemão Elisa Sabarowski e Arthur Ewert; os belgas Lion Valle e sua mulher, Alphonsine; o alemão Franz Gruber e o norte-americano Victor Allen Baron.

1935-1-1
Intentona Comunista de Natal de 23 de novembro de 1935 foi notícia em todo mundo, como neste material publicado em um jornal dos Estados Unidos.

Todos, incluindo Prestes, eram militantes da Internacional Comunista, que via no Brasil um terreno fértil para a revolução. “O PCB era uma seção da Internacional Comunista e estava inserido no que a entidade chamava de ‘países coloniais e semicoloniais’, para os quais havia estratégias revolucionárias distintas. No caso, ao contrário dos países capitalistas ‘avançados’, a estratégia era a via insurrecional”, explica o cientista político Homero Costa, da UFRN, sobre a participação do Komintern no movimento de 1935, que registrou ações em Natal, Recife e no Rio. Após a rebelião em Natal, ocorreu um efeito dominó em outras praças que também estavam sendo preparadas e treinadas para a revolução.

1935-1-3

“O que ocorreu em Natal pegou todos de surpresa, inclusive o comitê central. Os levantes no Recife, no dia seguinte ao de Natal, e no Rio de Janeiro, foram em consequência dessa precipitação”, diz Costa, lembrando que a insurreição nacional estava planejada apenas para o início de 1936.

“O levante de Natal fez parte do contexto da Intentona Comunista. A ideia era que a revolução fosse em escala nacional. Porém, nem todas as guarnições envolvidas se engajaram ao mesmo tempo”, diz o historiador Elias Feitosa. A ação da Internacional serviu como justificativa para que Getúlio Vargas instaurasse o Estado Novo, em 1937.

A PRAÇA PADRE JOÃO MARIA

pe joão maria
Fonte – http://www.pitombas.blog.br/2016/03/desinformacao-turistica-parte-15-praca.html

Berilo Castro 

Recentemente, fui ao Centro da Cidade para fazer uma visita ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), do qual fui honrosamente convidado para compor o seu quadro de sócios efetivos.

Estacionei o carro na rua Vigário Bartolomeu, em um estacionamento privado. Na verdade, não existe mais local de estacionamento público em Natal. Parece até que a cidade encolheu e, sem sombra de dúvidas,  os veículos aumentaram  em proporções nunca vistas. Deixa pra lá! É o crescimento urbano já esperado. São os tempos modernos.

Sou avisado pelo funcionário do estacionamento para ter cuidado com o celular e a carteira de dinheiro.

OK! Tomei  os devidos cuidados.

pe joão maria2
Fonte – http://www.pitombas.blog.br/2016/03/desinformacao-turistica-parte-15-praca.html

Caminho lentamente em direção à Praça Padre João Maria. Vejo e relembro de anos passados a casa dos Procópio: Jario, Kerubino e Manoel Filho. Paro um pouco em frente do Mercado São Cristovão,  do meu grande amigo, meu diretor de futebol, da época de ouro do Alecrim FC-1963/1964, João Bastos Santana – Seu Basto. Sinto saudades! Chego à esquina e me defronto com o Banco do Nordeste e recordo dois grandes amigos que trabalharam lá: Jorge Alberto Motta e o meu contador Lourival (em memória). As calçadas todas semidestruídas, muito lixo nas redondezas e, ao seu redor, alguns sem tetos e sem nada, ainda deitados em bancos semidestruídos, e alguns no chão quente. Percorro um pouco mais e observo o prédio onde funcionou ou funciona ainda a Irmandade do Passos que, em seu primeiro andar, foi sede de um dos primeiros  cursinhos de pré-vestibular da cidade, o do professor/farmacêutico Luís Herculano, com sua bem dotada e eloquente voz, que chegava a chamar à atenção daqueles que circulassem pela praça.                                    

Ainda na lenta caminhada me deparo com algumas barracas (se podem ser chamadas de barracas, pela grande pobreza e abandono com que se encontram) sendo consumidas dia a dia pelos famintos cupins. Triste, muito triste, observar tudo aquilo abandonado e em ruínas.   

Procuro por um artesão por nome de Aderbal, lateral esquerdo que jogou comigo no Alecrim FC nos anos de 1960. Lamentavelmente, fui informado da sua morte por Dengue há três meses. Rezei por ele.

Caminhei um pouco mais e cheguei à sede provisória do IHGRN, um pouco atrasado, e não encontrei os meus amigos Odúlio Botelho e Augusto Coelho Leal – o Guga-, tinham saída há pouco tempo.

pe joão maria3
Fonte – http://www.pitombas.blog.br/2016/03/desinformacao-turistica-parte-15-praca.html

Imaginei: será que esse pedaço de terra tão pequeno e tão abençoado pelo Padre João Maria, vem sofrendo  essa  destruição e esse abandono por tanto tempo, sem nunca ter sido visto pelas autoridades municipais, pelos nossos representantes na Câmara Municipal? Não posso acreditar!  Fico indignado e perplexo diante de tanta falta de amor à Cidade.  Será que o Prefeito nunca foi informado da triste degradação que vem  passando aquele pequeno espaço santificado? Será?  Será que o seu  Secretário de Urbanismo nunca passou pela Praça?

Deixo aqui um apelo às autoridades municipais: Não deixem a praça Padre João Maria no abandono total, como se encontra hoje. Aquele pequeno recanto sagrado é parte rica da nossa cidade que não pode e não deve ser destruída, nem entrar  no   esquecimento da nossa história.

O PRAZER NOSSO PELO CARRO NOVO – SÃO OS MILITARES AMERICANOS OS RESPONSÁVEIS POR ISSO?

Militares americanos e brasileiros da FAB no portão da guarda da base de Parnamirim Field.
Militares americanos e brasileiros da FAB no portão da guarda da base de Parnamirim Field.

Autor – Rostand Medeiros

O natalense de maneira geral gosta de carro novo?

Ah como Gosta!

Gosta tanto que em recente pesquisa divulgada pelo setor de Estatística do Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Norte (Detran/RN), o aumento no número de veículos no estado é maior que próprio crescimento populacional.

Segundo o site Nominuto.com, a pesquisa mostra que entre 2010, até outubro de 2013, a população norte-rio-grandense cresceu 6,5%, enquanto a quantidade de veículos automotores foi ampliada para a incrível cifra de 29,99% (para ver mais detalhes desta pesquisa veja http://nominuto.com/noticias/cidades/frota-de-veiculos-no-rn-cresce-quatro-vezes-mais-que-a-populacao/104434/).

Engarrafamento em Natal - Fonte - tribunadonorte.com.br
Trânsito em Natal – Fonte – tribunadonorte.com.br

A cada mês uma média superior a 2.500 veículos novos deixam as concessionárias e passam a circular nas ruas de Natal. Logicamente que este fluxo contínuo cria sérios problemas de mobilidade urbana.

Para quem dirige em Natal isso não é nenhuma novidade. Há uns quinze anos atrás se dizia que você atravessava toda a capital potiguar em parcos 20 minutos. Hoje, se você tiver um compromisso importante, dependo da hora e onde você mora, se não sair de casa com muita antecedência vai chegar atrasado.

Mas está errado as pessoas buscarem comprar um veículo novinho?

Não, de forma alguma! Além do ditado popular comentar que “tudo que é novo é bom”, para uma cidade que tem um terrível, anacrônico e atrasado sistema de transporte urbano, um veículo automotor privado acaba sendo uma necessidade em Natal.

Carros novos em Natal - Fonte - tribunadonorte.com.br
Carros novos em Natal – Fonte – tribunadonorte.com.br

Mas a questão que eu quero abordar não está na validade de se possuir um veículo, mas na intensa rotatividade e na quantidade de veículos novos que circulam aqui.

Uma História Sobre Rodas

Não sei quando o primeiro veículo automotor circulou pelas ruas de barro de Natal, certamente nos primeiros anos do século XX.

Poucos veículos circulavam por Natal nas primeiras décadas do séc. XX.
Poucos veículos circulavam por Natal nas primeiras décadas do séc. XX.

Mas sei que 483 veículos percorriam os caminhos do Rio Grande do Norte no ano de 1924. Em 1925 a quantidade passou para 539 e em 1926 chegou a 607 veículos. Neste último ano, exclusivamente em Natal, circulavam 218 dos chamados “modelos de autopropulsão”, para uma população em torno de 40.000 habitantes. Estes dados faziam parte de uma pesquisa a nível nacional do extinto Ministério da Viação, junto aos 1.407 municípios que oficialmente existiam no Brasil (ver jornal A República, pág. 3, 10 de julho de 1928).

Publicada em 1939, a Sinopse Estatística do Estado, produzida pelo Departamento Estadual de Estatística, traz na página 53 a informação que o número de automóveis de passeio, motocicletas, caminhões e veículos especiais circulando em Natal no ano de 1938 eram de 377 veículos, para uma população que superava 50.000 habitantes. Ou seja, de certa forma o crescimento foi proporcional durante algum tempo.

Natal vazia de veículos
Natal vazia de veículos

Mas em algum momento de nossa história isso mudou e dizem que os grandes responsáveis foram os americanos na época da Guerra.

Será?

E Os Americanos Chegaram…

Natal e o Rio Grande do Norte assistiram a grande máquina militar americana construir e utilizar as instalações da grande base de Parnamirim Field. Deste ponto estratégico, um dos aeródromos mais movimentados do mundo durante o conflito, partiam e chegavam centenas de milhares de militares Aliados em direção as áreas de combate.

Parnamirim Field
Parnamirim Field

Em Parnamirim Field e na Naval Air Station Natal (NAS Natal), que conhecemos como Rampa, uma cifra muito elevada de militares estadunidenses ficaram baseados durante certo período. Eram homens que trabalhavam em várias funções, exercendo muitas responsabilidades e num ritmo frenético.

Isso tudo são fatos mais que conhecidos. Entretanto existe a ideia que os militares estrangeiros em Natal tinham um grande número de veículos a sua disposição. Havia Fords, Chevrolets, Lincolns, Buicks e Mercurys, típicos sedans americanos da década de 1940. A maioria deles ostentando uma estrela branca nas laterais, padrão do exército americano.

Tripulação de uma B-17 em seus trajes de voo, recebendo instruções. Muitos destes aviões passaram por Parnamirim Field.
Tripulação de uma B-17 em seus trajes de voo, recebendo instruções. Muitos destes aviões passaram por Parnamirim Field.

Com o fim da guerra e a saída destas tropas de nossa terra, comenta-se que os americanos deixaram uma grande quantidade de materiais excedentes e que a maior parte dos materiais que aqui ficou eram veículos seminovos. Estes seriam carros com pouco tempo de uso e que foram vendidos por preços baixíssimos. Para alguns o preço teria sido uma verdadeira “mixaria”.

Logo vários natalenses estavam dirigindo veículos de ótima qualidade, ainda “cheirando a novo” e comprados por preços baixíssimos. Pessoas que andavam a pé, de bicicleta, ou de bonde, logo estavam rodando em um reluzente carrão americano, matando de inveja a vizinhança, principalmente quando ficavam lavando e limpado o possante por horas na porta de casa.

Seria Esta a Razão?

Pessoalmente nunca acreditei nesta versão.

Jipe na pista de Parnamirim Field.
Jipe na pista de Parnamirim Field.

Ao pesquisar o tema não descobri nas páginas do jornal potiguar “A República”, nenhuma referência, que os militares americanos publicaram convites a pessoas interessadas em participar da compra de lotes de carros de passeio.

Mas vamos partir do princípio que realmente os americanos venderam muitos destes tipos de carros por aqui. Aí logo surge uma questão básica – Militares em missões utilizam quais tipos de carros?

Parnamirim Field era um aeródromo que servia como um grande ponto de apoio para tropas e aviões.
Parnamirim Field era um aeródromo que servia como um grande ponto de apoio para tropas e aviões.

Concordo, até por possuir fotos do período, que os americanos tinham os tipos de veículos que supostamente venderam em quantidade e a preços baixos na nossa cidade. Provavelmente utilizavam estes carros no trajeto entre Natal e a base aérea, transportando oficiais de alta patente, autoridades, visitantes, jornalistas e outros. Mas certamente eram poucos veículos, pois o grosso da missão deles aqui era principalmente apoiar aeronaves militares. Para isso se utiliza jipes, caminhões de transporte, camionetes, caminhões de transporte de combustíveis, carros guinchos, ambulâncias e outros veículos especializados.

Sem Resposta,,,

Na busca de uma resposta fui atrás de quem conhece muito, embora ele diga que não, sobre a presença dos americanos no Rio Grande do Norte durante a Segunda Guerra Mundial. Entrei em contato com o amigo Laélio Ferreira de Melo para debatermos sobre o tema.

Parnamirim Field em 1944, Othoniel é o primeiro, em pé, à esquerda. Trabalhava no Posto de Engenharia.
Parnamirim Field em 1944, Othoniel é o primeiro, em pé, à esquerda. Trabalhava no Posto de Engenharia. Coincidentemente um veículo de passeio de fabricação americana está atrás das pessoas na foto – Fonte – glosandoomundo.blogspot.com.br

Laélio era garoto na época da Guerra, filho de Othoniel Menezes, que trabalhava na base de Parnamirim junto aos americanos. Othoniel Menezes é uma figura mais do que conhecida e respeitada no Rio Grande do Norte. Poeta, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras e criador dos versos da canção “Praieira”, de 1922, cuja musica foi composta pelo maestro Eduardo Medeiros no ano seguinte e considerada durante muitos anos a canção tradicional da cidade de Natal.

Laélio me comentou que seu pai trabalhava no posto de engenharia de Parnamirim Field e ocasionalmente o levava para ver o movimento na base. Para ele é fantasia esta história que os americanos venderam muitos veículos de passeio para os natalenses, até porque eles tinham poucos destes carros.  Corroborando minhas suspeitas, Laélio me confirmou que os americanos tinham principalmente utilitários, veículos militares e uns poucos carros de passeio utilizados no transporte de autoridades, principalmente Chevrolets ou Mercurys. Estes tinham realmente a estrela branca nas laterais, eram pintados com uma cor fosca e possuíam nos faróis materiais próprios para veículos que circulavam em áreas em regime de blackout.

Roosevelt e Vargas em Natal e de Jipe.
Roosevelt e Vargas em Natal e de Jipe.

Laélio me comentou que mesmo existindo estes poucos veículos, muitas autoridades circulavam pela cidade em veículos militares. Assim como os presidentes Franklin Delano Roosevelt e Getúlio Dorneles Vargas transitaram por Natal de jipe, Laélio testemunhou a passagem da Sra. Soong May-ling, esposa do general Chiang Kai-shek e primeira dama da República da China, passando próximo a Rua Felipe Camarão, no centro da cidade, sentada na traseira de um simples jipe.

Quando os americanos foram embora eles levaram o que puderam e venderam (mas não doaram) veículos para nossas forças armadas. Para Laélio somente anos depois estes mesmos veículos, já bastante usados, foram revendidos a particulares. Como nunca vi uma documentação que traga os números, e os tipos dos veículos negociados pelos militares americanos ao deixarem o Rio Grande do Norte, só posso concordar com o amigo Laélio.

Natal década de 1950
Natal década de 1950

Para mim o gosto dos natalenses pela frequente compra de veículos novos está ligado a outras razões, que não sei quais são. Mas sei que esta necessidade do carro novo já afundou muita gente em dívidas e infindáveis renegociações de financiamentos com juros acachapantes.

Aqui é comum se ver um tremendo carrão na porta, diante de uma habitação simples, onde normalmente não se encontra nenhum livro dentro dela.

P.S. – Sobre as memórias do amigo Laélio Ferreira de Melo durante o período da guerra em Natal, veja este interessante artigo de sua autoria. – http://www2.uol.com.br/omossoroense/220806/conteudo/laelio_ferreira.htm

NOTA  – Todos os direitos reservados

É permitida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de
comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.

MINHA CIDADE SE CHAMA NATAL!

DSCF2010DSCF0967

DSCF1458

DSCF1963

DSCF0969

DSCF0959

DSCF1462

DSCF0975

DSCF0976

DSCF1967

DSCF0958

DSCF1961

DSCF0977

DSCF1459