1818 – UM MATRIMÔNIO AFRO-LUSITANO NO SERIDÓ POTIGUAR

AUTOR – Antônio Luís de Medeiros – São João do Sabugi – RN

Se os portugueses discriminavam os índios, muito mais faziam com a raça negra. Então este casamento de um português com uma sua escrava foi um fato raríssimo ocorrido no nosso Seridó há mais de dois séculos.

Nosso saudoso Olavo de Medeiros Filho comentava conosco esse ineditismo. Ele fazia a comparação com o romance Iracema, de José de Alencar, sendo este a miscigenação do português com o índio enquanto o consórcio matrimonial de José Antônio da Costa com Rita Maria, sua ex-escrava seria a união de sangue ibérico com sangue africano.

Ao primeiro dia do mês de julho de mil oitocentos e dezoito, pelas oito horas da noite, nessa Matriz do Seridó, em minha presença e das testemunhas o Reverendo Manoel Teixeira da Fonseca e o Capitão Tomaz de Araújo Pereira, casado, se receberam em matrimônio por palavras de presente José Antônio Costa, europeu, natural de Santarém e Rita Maria, parda, que havia sido sua escrava. Natural da Vila de Icó, Ceará, donde justificam o estado de livre e desimpedidos e igualmente da naturalidade do contraente confinada aos banhos por faculdade do Ilustríssimo Senhor Provedor e Governador do Bispado Manoel Vieira de Lemos aos vinte e seis de maio do corrente ano, como consta dos papéis que ficam emaçados, e declarava o contratante ser filho legitimo de Antônio Pereira de Amorim e de Teresa Maria Maciel, moradores na dita Freguesia de Santarém, de Nossa Senhora das Maravilhas, no Patriarcado de Lisboa, e logo lhe dei as bênçãos  de que para tudo constar fia este assento que com as ditas testemunhas assino.

O Vigr° Francisco de Brito Guerra

                 Pe. Manoel Teixeira da Fonseca – Tomaz de Araújo Pereira

Fonte: 2º Livro de Casamento da Freguesia da Senhora Santana do Seridó, período de 1809/1821, fls. 124 / 125.

Documento de 1818.

Neste modesto trabalho, de poucas linhas, nossa intenção é comentar, superficialmente, a convivência harmoniosa de nossos antepassados com seus poucos escravos na região seridoense. Sendo a atividade pastoril a principal fonte de renda da população, poucas posses dos fazendeiros e dificuldade de sobrevivência era grande a desigualdade patrimonial entre a região litorânea e sertaneja nordestinas.

Com as agruras do meio enfrentadas tanto pelo senhor quanto pelos escravos formava-se um sentimento fraterno e mais humano entre ambos. Os escravos casavam religiosamente, moravam em suas casas, com suas esposas e os filhos, iguais aos “moradores livres”. Nunca encontramos resquícios de senzalas no Seridó. Só nos engenhos do brejo e outras regiões distantes. Nas grandes secas seus senhores passavam as mesmas privações que eles.

Casa Grande da Fazenda Dinamarca, Serra Negra do Norte – RN. Foto meramente iliustrativa – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.

João Paulino, da fazenda Pitombeira, em São João do Sabugi, parecia ter mais escravos que bois. Diziam que ele e seu irmão o Ten. Cel. José Evangelista, da fazenda Ipueira, nunca venderam um só escravo.

Coma libertação da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, os antigos escravos permaneceram morando na mesma casa, plantando o mesmo roçado de miunças (ovelhas e cabras), com terreiro de galinhas, porco no chiqueiro e um jumento cargueiro para as suas necessidades.

Contrastando com todas as dificuldades do meio e da época, encontramos a maior fortuna do Seridó do século XIX, em Serra Negra, no inventário de Maria Jesus José da Rocha, pernambucana de Pau D’alho, falecida em 1854, esposa de Manoel Pereira Monteiro (o 3º), pais de Antônio Pereira Monteiro – Cangalha. Só para citar alguns dados: 62 peças em ouro, 41 em prata, 52 escravos, 50 bois mansos, 1.338 vacas paridas, 55 touros, 1.200 bois criados, 136 cavalos, extensas fazendas nas Províncias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, 18 contos de réis em dinheiro e muitos outros bens.

Esperidião Medeiros com a família, cerca de 1918 a 1920 – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.

Em antigas fotografias aparece sempre uma negra fazendo parte da família como mostra o registro acima de Esperidião Medeiros com a sua esposa e seus 12 filhos, possivelmente entre 1918 e 1920.

Quando faleceu a preta Irene, que havia sido sua ama na infância de Manoel Bandeira ele dedicou-lhe o poema, Irene no céu.

Irene Preta.

Irene boa.

Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:

– Licença meu branco!

E São Pedro bonachão:

– Entre, Irene. Você não precisa pedir licença.

Gentilmente após a publicação desse material, recebi no Facebook, de “Literatura do Seridó”, a informação que essa senhora da foto é Aureliana Aurélia de Albuquerque, ou, como era mais conhecida, “Dedé”.Agregada à família, cuja a criançada a consideravam como uma segunda mãe. Nasceu em Caicó no dia 16 de junho de 1876, e faleceu na mesma cidade, no dia 18 de janeiro de 1953, aos 77 anos de idade. E segundo o autor do texto a criança da foto é Aldo Medeiros, que foi casado com Dona Mili, filha do casal Dinarte de Medeiros Mariz e Dona Diva. Aldo e Dona Mili casaram no ano de 1940.

UM HERÓI POTIGUAR DA FEB – A HISTÓRIA DO SARGENTO RODOVAL CABRAL DA TRINDADE E O COMBATE DE SAN QUIRICO

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Agradecimento especial ao escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira pela ajuda com informações adicionais para esse texto.

Sabemos que seis potiguares morreram na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, integrando a Força Expedicionária Brasileira, a famosa FEB. Eles eram os soldados Belarmino Ferreira da Silva, José Varela, Manoel Lino de Paiva, Cosme Fontes Lira e os sargentos Wilson Viana Barbosa e Rodoval Cabral da Trindade.

Mas quando buscamos maiores informações sobre cada um desses participantes do conflito, os resultados são bem limitados, com lacunas bastante amplas para compreender suas histórias. Um exemplo é o caso do sargento Rodoval Cabral da Trindade.

Rodoval Cabral da Trindade.

Basicamente temos as informações que ele era um sargento do Exército Brasileiro, que havia nascido na cidade de Ceará-Mirim e que morreu de um acidente de jipe no dia 6 de junho de 1945, após o final da Guerra na Europa.

Mesmo com dificuldades, conseguimos mais detalhes sobre a vida desse homem e a sua participação nesse conflito. Elas mostram interessantes informações do envolvimento de um potiguar na Segunda Guerra e aprofunda o entendimento sobre aqueles que partiram para lutar na Europa.

Tiro de Guerra 18

Rodoval era filho do funcionário público João Cândido da Trindade, casado com Emília Cabral da Trindade. Tudo indica que o casal era natural da cidade de Ceará-Mirim, onde seu filho Rodoval nasceu em 1909. Ele era um dos nove filhos do casal, sendo seis homens e três mulheres. Não sabemos a data, mas, provavelmente, em algum ano da década de 1920 a família Cabral da Trindade se mudou de Ceará-Mirim para Natal, onde moravam na Rua Laranjeira, número 26, na Cidade Alta, perto da Igreja do Galo.[1]  

A antiga e simples residência da família Cabral da Trindade em Natal.

Tudo aponta que essa família era muito católica, pois todos os anos, sempre no mês de abril, Seu João Cândido participava da tradicional e secular Procissão do Encontro. Essa tendência foi seguida pelo seu filho Rodoval, que participou da Congregação Mariana de Moços, tradicional organização católica da cidade. E Seu João tinha de ter mesmo muita fé, pois para sustentar a esposa e nove filhos só possuía os minguados salários do cargo de porteiro do Serviço de Estatística do Estado do Rio Grande do Norte.[2]

Mesmo com as limitações, sabemos também que o jovem Rodoval foi membro do tradicional Centro Náutico e remava com seus amigos no tranquilo e, na época, limpo rio Potengi, certamente competindo com os adversários do Sport Club de Remo.

Outra atividade desse jovem em Natal, que certamente marcou sua vida, foi participar do Tiro de Guerra 18, ou T. G. 18.

Rodoval Cabral da Trindade – Foto gentilmente cedida pelo escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira.

Essa era uma pequena unidade do Exército Brasileiro mantida em parceria com o município de Natal e responsável pela formação de reservistas de segunda categoria do serviço militar. Fundado em 1908, tinha sede no bairro do Alecrim, sendo normalmente comandada por um sargento, ou um tenente, com turmas que variavam anualmente de 35 a 45 rapazes. Esse pessoal fazia muita ordem unida, longas marchas, treinos de tiro ao alvo e desfilava garbosamente na Avenida Deodoro durante as comemorações do 7 de setembro. Entre os participantes ilustres do Tiro de Guerra 18 consta o maestro Waldemar de Almeida [3], que lá esteve na segunda metade da década de 1920. Outro que recebeu a sua carteira de reservista de segunda categoria foi o advogado, professor e político mossoroense Otto de Brito Guerra. Esse último foi contemporâneo do jovem Rodoval Cabral da Trindade quando esteve nessa instituição em 1928. Consta que Otto Guerra participou da marcha de 24 quilômetros, com fuzil no ombro e tudo mais.  

O Tiro de Guerra 18 era um lugar onde o esporte era intensamente praticado e incentivado.[4] Um dos feitos esportivos mais marcantes foi ter participado e vencido a primeira competição pública de basquete realizada no Rio Grande do Norte.

Arquibancada coberta do “Stadium” Juvenal Lamartine, onde aconteceu a primeira disputa pública de basquete no Rio Grande do Norte em 1931 e o Tito de Guerra 18, onde Rodoval Cabral serviu ganhou a disputa com o 29º Batalhão de Caçadores.

O fato ocorreu em 1931, em pleno estádio de futebol Juvenal Lamartine, onde improvisaram uma quadra de basquete não sei de que jeito e o Tiro de Guerra 18 venceu a poderosa equipe do 29º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro. Digo poderosa porque o pessoal do 29º treinava muito e tinha até mesmo à disposição uma quadra de basquete. Mesmo sendo de barro batido essa quadra possuía dimensões oficiais e ficava onde atualmente se encontra o SESC da Cidade Alta. A equipe do 18 era formada, entre titulares e reservas, por Humberto Nesi, Luiz Tavares de Souza, Alberto Gentile, Zacarias Cunha, José Maia Mousinho e Miguel Ferreira da Silva. Esse pessoal era treinado pelo tenente Francisco Antônio do Nascimento, o conhecido “Chicó”, por anos comandante do Tiro de Guerra, e pelo soldado Severino Estevam dos Santos, o “Jaú”. Todo esse pessoal foi contemporâneo de Rodoval.[5]

Caminho da Guerra

Após deixar o Tiro de Guerra 18 temos a informação que Rodoval Cabral da Trindade passou a ser aluno da Escola Técnica de Comércio do professor Ulisses de Góis, que na década de 1930 ficava na Rua João Pessoa, no Centro de Natal [6]. Rodoval se preparava para exercer a função de guarda-livros, ou seja, escriturar e manter em boa ordem os livros mercantis das empresas comerciais. O que hoje chamamos de contadores.

Bairro da Ribeira, na bucólica Natal das primeiras décadas do século XX. : Fonte – https://www.brechando.com/2017/09/esta-praca-parece-do-interior-do-estado-mas-fica-em-natal/

Naquela época esse era o típico trabalho desejado pelas famílias de classe média baixa de Natal. A maior parte delas formada por funcionários públicos de baixo escalão, que recebiam minguados rendimentos e que através de favores políticos entravam aos montes no serviço público estadual.

Certamente pelo tempo e pelas experiências vividas no Tiro de Guerra 18, o jovem Rodoval largou a Escola de Comércio no último ano e se alistou voluntariamente no Exército Brasileiro como soldado. Provavelmente essa sua deliberação não deve ter sido tomada sem rupturas na sua família, pois Rodoval acabava de tomar a decisão de descer voluntariamente os poucos degraus que a sua condição social lhe proporcionava naquela provinciana Natal de pouco menos de 40.000 habitantes e uma elite extremamente preconceituosa e abertamente racista.

Foto de um soldado da Forças Pública, nesse caso de Pernambuco. Nas décadas de 1920 e 1930 os uniformes militares dessas instituições militares estaduais pouco diferiam, sendo sempre na predominante cor cáqui. na imagem vemos o Soldado Heleno Tavares de Freitas – Fonte – Valdir José Nogueira de Moura.

Naqueles dias para ter prestígio como membro das Forças Armadas só sendo oficial, algo para poucos. Já ser um soldado no Exército Brasileiro não era uma situação considerada “desrespeitosa” pela sociedade, mas era o tipo de profissão que, no entendimento geral, só entrava quem não tinha maiores perspectivas, ou por pura vocação. Mas estava um patamar acima da pessoa que era soldado na Força Pública, atual Polícia Militar.

No caso de Rodoval eu acho que foi vocação mesmo, pois ser um guarda-livros em Natal, mesmo com perspectivas salariais baixas, poderia ser um caminho para conseguir através de apadrinhamento político uma sinecura em alguma repartição pública e ter a tão sonhada estabilidade.

1939 – 6º Regimento de Infantaria de Caçapava. Foto: Iris, Créditos: Nelson de Luccas – Fonte – Caçapava/SP História, Fotos e Caçapavenses

A próxima notícia que temos sobre esse potiguar é que ele foi servir bem longe do Rio Grande do Norte. Seguiu para São Paulo, onde esteve aquartelado em unidades militares existentes nas cidades de Jundiaí, Taubaté e Caçapava. Nessa parte do Brasil ele se casou com a jovem Araci Marques da Trindade, mas não tiveram filhos.[7]

Em 1941 encontramos Rodoval servindo no 6º Regimento de Infantaria de Caçapava, com a extinta patente de “primeiro cabo”, sendo promovido em 25 de julho daquele ano ao posto de terceiro sargento, conforme está descrito na notificação existente no Boletim Interno número 171 do Exército Brasileiro.[8]

Nesse meio tempo nuvens negras surgiram no horizonte do Brasil, com o intenso rufar dos tambores de guerra ecoando na Europa e na Ásia. Em 22 de agosto de 1942, após a declaração de guerra do Brasil à Alemanha Nazista e à Itália Fascista, o país entra em mobilização total.

Militares norte-americanos em Parnamirim Field – Fonte – Getty Images

Não sei se através de jornais, ou por contatos com a sua família, Rodoval soube que na cidade onde seus parentes viviam e onde passou grande parte de sua juventude, estava ocorrendo uma intensa mudança. Milhares de militares dos Estados Unidos e do sul do Brasil ocupavam a capital potiguar. Nos céus aeronaves de vários tipos partiam e chegavam diariamente, aproveitando a privilegiada posição estratégica do Rio Grande do Norte em relação ao Atlântico Sul e a costa ocidental africana.

Através de outras pesquisas realizadas pelo autor, descobri que não era raro a transferência para Natal de militares nascidos no Rio Grande do Norte e que se encontravam servindo em outras regiões do país. Isso certamente se destinava a facilitar o entrosamento dos muitos militares brasileiros que desembarcavam em Natal para reforçar as defesas na região. Mas essa situação não aconteceu com o sargento Rodoval.

No começo de 1943 ele recebeu ordens de se apresentar no Quartel General do Exército no Rio de Janeiro, para participar do C. R A. S, sigla do Curso Regional de Aperfeiçoamento de Sargentos.[9] Dois meses depois, Rodoval foi promovido a segundo sargento, junto com outros 21 colegas do 6º Regimento de Infantaria.[10] Em agosto ele concluiu o C. R. A. S. e aguardou novas ordens.[11]

Símbolo da FEB.

Certamente o sargento Rodoval e seus companheiros sentiam que se aproximava a hora de pegar em armas e partir para o front de combate, onde comandariam grupos de soldados destinados a matar o maior número de inimigos, pois era para nisso que treinavam arduamente. Logo o governo brasileiro publicou a Portaria Ministerial nº 4.744, que criava a Força Expedicionária Brasileira, que se tornaria a primeira e única força militar formada na América Latina a lutar na Europa. Rodoval recebeu o número 2-G-87320 para sua identidade militar.

No General Mann

Quase um ano depois, em uma quinta-feira, 29 de junho de 1944, o sargento Rodoval e centenas de companheiros partiram da Vila Militar, na zona oeste do Rio, em um trem da Estrada de Ferro Central do Brasil até o cais da Praça Mauá. Ali começou o embarque dos soldados da FEB no grande navio USS General William Abram Mann (AP-112), ou simplesmente General Mann, como ficou mais conhecido entre nossos soldados.

Força Expedicionária Brasileira embarcando no Rio de Janeiro. Destino – A frente italiana.

Aquela grande nave da Marinha dos Estados Unidos (US Navy) estava atracada no Píer 10 e era enorme. Pesava mais de 17.000 toneladas, tinha quase 200 metros de comprimento, navegava com a velocidade máxima de 19 nós (35 km/h) e podia transportar 5.000 homens destinados ao combate em qualquer parte do Globo. A grande nave era comandada pelo capitão Paul Sylvester Maguire.

Ao redor do porto havia muita segurança e isolamento. Gente de toda parte do país, com seus sotaques, cores, trejeitos e maneiras próprias entraram na grande nave carregando sacos de lona. O general Mascarenhas de Moraes, o comandante da FEB, embarcou para o exterior junto com 5.074 homens que formavam o 1º Escalão de combatentes.

Navio transporte de tropas USS General W. A. Mann. Em 1944 ele levou os primeiros combatentes da FEB para a Itália.

Mascarenhas de Morais listou as primeiras unidades da FEB transportadas no General Mann – Escalão Avançado do Quartel General da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE), Estado Maior da Infantaria Divisionária da 1ª DIE, 6º Regimento de Infantaria, 4ª Companhia e 1º Pelotão de Metralhadoras do 11º Regimento de Infantaria, II Grupo do 1º Regimento de Obuses Auto Rebocados, 1ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia, uma parte da Seção de Suprimento e Manutenção do 9º Batalhão de Engenharia, 1º Pelotão do Esquadrão de Reconhecimento, Seção de Exploração e elementos da Seção de Comando da 1ª Companhia de Transmissões, 1ª Companhia de Evacuação, o Pelotão de Tratamento e elementos da Seção de Comando, todos do 1º Batalhão de Saúde, Companhia de Manutenção, Pelotão de Polícia Militar, um pelotão de viaturas, uma Seção do Pelotão de Serviços e elementos da Seção de Comando da 1ª Companhia de Intendência, o Correio Regulador, o Depósito de Intendência, a Pagadoria Fixa, os jornalistas que iriam trabalhar como correspondentes de guerra, elementos do Hospital Primário, Serviço de Justiça e o pessoal do Banco do Brasil.[12]

Militar brasileiro de patente elevada passando em ordem a guarda de Fuzileiros navais (Marines) a bordo do General Mann. Eram estes fuzileiros que mantinha a ordem a bordo.

Não sabemos quantos, mas temos a certeza que o sargento Rodoval Cabral da Trindade não era o único potiguar a bordo do General Mann. Outro Norte-rio-grandense era o soldado João Alves Coelho, nascido em 1923 e que em 1940 havia seguido para o Rio de Janeiro com o intuito de aprender uma profissão para melhorar a sua vida e a de sua família. Ele estudou mecânica na então Capital Federal, quando foi convocado para a guerra como integrante da FEB. Foi incorporado na Companhia de Manutenção, onde praticou extensamente a profissão que aprendeu no Rio. Não sabemos se o sargento Rodoval e o soldado Coelho se conheceram.[13]

No domingo, 2 de julho, às cinco e quarenta e três da manhã, o General Mann desatracou e partiu. Nos próximos quatorze dias a nave seguiria pelo Oceano Atlântico e pelo Mar Mediterrâneo a velocidade média de 17 nós e sempre ziguezagueando para evitar ataques de submarinos. Inicialmente essa nave americana foi escoltada pelos destroieres brasileiros Marcílio Dias, Greenhalgh e Mariz e Barros.[14]

A chegada no Porto de Nápoles, sul da Itália, ocorreu no dia 16 de julho, às 12:20 horas, também num domingo. No cais havia um destacamento norte-americano de quarenta e cinco homens e uma banda para as honras militares.

A guerra para a FEB estava começando!

Um Líder Controverso

Desembarque da FEB em Nápoles em 1944.

Após o desembarque em Nápoles, a FEB ficou acampada no subúrbio da cidade, na região de Agnaro/Bagnoli, perto do mar. O interessante foi que eles acamparam dentro da cratera do extinto vulcão Astroni, cujas bordas possuem 70 metros de altura e atualmente é uma área de preservação. Nessa cratera a temperatura variou bastante, com picos de elevação durante o dia de 30 graus à sombra e a noite descendo para terríveis 10 graus. O contingente brasileiro logo se mudou desse local complicado e ficou aguardando receber seus equipamentos de combate e suas viaturas. 

Veículos da FEB prontos para serem entregues em 1944.

Um dia, em 19 de agosto, enquanto recebeiam seus apetrechos e mais de 220 veículos de todos os tipos, quem deu uma passadinha para dar um alô a brasileirada foi ninguém menos que Sir Winston Churchill, primeiro ministro do Reino Unido e um dos principais líderes Aliados. A ilustre figura estava inspecionando as tropas do 5º Exército dos Estados Unidos (US Army), sob o comando do tenente-general Mark Clark. O contingente da FEB fazia parte do 5º Exército e o general Mascarenhas de Morais respondia a Clark, um militar tido como controverso, planejador débil, líder fraco, além de ser considerado um “caçador de publicidade” e com extrema aversão aos seus aliados ingleses.

Mas o fato que pesou mais negativamente na biografia de Mark Clark durante a Segunda Guerra ocorreu em junho de 1944, durante a chamada Operação Diadem (Diadema).

O mais alto na foto é Mark Clark e o mais baixo Mascarenhas de Moraes.

Comandada pelo general inglês Sir Harold Alexander, líder do 8º Exército Britânico, essa operação consistia em um cerco aos alemães, com o objetivo de fazer com que as forças inimigas ficassem amarradas na Itália e não pudessem ser redistribuídas para a França. O problema foi que para muitos Clark não comandou corretamente o seu 5º Exército, o que permitiu que o 10º Exército Alemão escapasse do cerco. Para piorar a situação pesa sobre Mark Clark a acusação de que ele priorizou tomar Roma (o que realizou com relativa facilidade) em uma tentativa de ganhar a glória marcial imortal. Consta que ele desejava ser o primeiro general a “tomar Roma pelo sul em 1.500 anos”. Se assim foi, Clark recebeu apenas um dia de publicidade por dominar a “Cidade Eterna”, pois após a sua conquista ocorreu o grande desembarque Aliado na França, o famoso “Dia D”, e sua glória foi totalmente ofuscada.[15]

Para os soldados da FEB essas tricas e futricas de altos comandantes pouco importava. Importava mesmo era quando entrariam em combate e, principalmente, fazer tudo para voltarem vivos para o Brasil.

Encarando a Linha Gótica

Na noite de 15 para 16 de setembro o contingente do 6º Regimento de Infantaria, comandado pelo coronel João de Segadas Viana substituiu na frente de combate o 434th Antiaircraft Artillery Automatic Weapons Battalion (434th AAA-AW Bn), ou 434º Batalhão de Armas Automáticas de Artilharia Antiaérea, que foi convertido em batalhão de infantaria. Ficou sob a responsabilidade dos brasileiros uma frente de combate de uns 4.500 a 4.800 metros.

Símbolo da 232a Infantariedivision der Wehrmacht, ou 232º Divisão de Infantaria do exército nazista.

Os pessoal da FEB naquele setor eram inferiores a 900 homens e seus comandantes sabiam que a sua frente estavam elementos da 232a Infantariedivision der Wehrmacht, ou a 232º Divisão de Infantaria do exército nazista. Unidade comandada pelo generalleutnant (tenente-general) Eccard Freiherr von Gablenz, um veterano das campanhas da Polônia, França e da invasão da União Soviética, onde combateu nesta última área de 1941 a 43 e ele escapou por pouco do cerco realizado pelos soviéticos na Batalha de Stalingrado. Von Gablenz estava comandando a 232 na Itália desde o primeiro semestre de 1944 e junto a essa divisão estavam unidades militares formada por italianos favoráveis aos alemães.

O círculo negro mostra a área de atuação da FEB nos primeiros meses de combate na Itália.

A partir desse ponto o avanço brasileiro colidiu com um setor da chamada Linha Gótica, a última linha de defesa inimiga na Itália.[16]

Em agosto de 1944 as forças alemãs estavam há mais de dois anos travando uma guerra defensiva e se retirando para o norte da Itália. Foi quando decidiram criar a linha defensiva chamada Gótica, que atravessava o país de um lado ao outro, desde o mar da Ligúria até o mar Adriático, aproveitando o terreno montanhoso e assim deter seus inimigos. Os alemães esperavam que a defesa da cordilheira dos Apeninos negasse aos Aliados a vantagem tática que significaria a conquista do Vale do Pó, pois ali ficavam as cidades de Bolonha, Modena e Milão, além das ricas terras agrícolas que forneciam grande parte dos alimentos. Para reforçar a Linha Gótica os alemães construíram muitos baluartes de defesa.

Foto ilustrativa que mostra o terreno de luta da FEB, nesse caso na região de Montese.

Os brasileiros do 6º Regimento de Infantaria atuavam intensamente a linha de frente, onde seus homens foram gradativamente ganhando experiência. Sofriam e infligiam baixas, mas a FEB ganhava terreno. Em 16 de setembro os brasileiros conquistaram as localidades de Massarosa e no dia seguinte Camaiori.

No início de outubro, com o frio aumentando pela iminente chegada do inverno, o 6º de Infantaria foi deslocado para o vale do rio Serchio, ao norte da cidade de Lucca. Nessa área as operações começaram no dia 6 e aos soldados da FEB foi ordenado lutar e ocupar pequenas comunidades e elevações, que eram chamadas “Cotas” e recebiam um número. O 6º Regimento de Infantaria atacou um setor defendido pelos italianos da 4ª Divisione Alpina Monterosa, formada pelos batalhões Bergamo, Aosta e Bréscia e comandadas pelo general Mario Caloni, que seis meses depois se renderia aos brasileiros da FEB.[17]

Símbolo da Divisão Monterosa.

Os combatentes sul-americanos avançaram para o norte por treze quilômetros, onde atravessaram o riacho Lima em Bagni di Lucca, cerca de vinte quilômetros ao norte da cidade de Lucca. Já os italianos, mostrando pouca ânsia de se levantar e lutar, recuaram lentamente para a solidez das altas montanhas que conheciam tão bem. No dia 11 de outubro a FEB capturou as cidades de Barga e Gallicano.

Ao completar um mês da entrada do 6º Regimento na área de combate, a imprensa nacional divulgou que os soldados brasileiros haviam avançado 28 quilômetros para o norte, conquistando do inimigo uma área de 273 Km², onde viviam mais de 100.000 pessoas, em sete cidades e vinte e três vilas. Não sabemos o grau de envolvimento do sargento Rodoval nessa fase da luta, mas o seu regimento participou ativamente desses combates, como ponta de lança da FEB.[18]

A aldeia medieval de San Quirico, município de Pescia, província de Pistoia, região da Toscana. Itália.

Daí então, entre os dias 12 e 30 de outubro, os brasileiros conquistaram várias outras vilas e pequenas aglomerações urbanas italianas, entre elas um lugar chamado San Quirico, que caiu no dia 30 de outubro de 1944, no começo da tarde. O lugarejo era defendido pelos italianos do batalhão Aosta, da divisão Monterosa, mas não ofereceram muita resistência.[19]  

O Massacre na Aldeia Medieval

O sargento Rodoval Cabral da Trindade estava entre os brasileiros que ocuparam San Quirico. O correspondente de guerra Sílvio Fonseca, enviado da Agência Nacional junto a FEB, comentou que em 31 de outubro de 1944 os militares do 6º Regimento de Infantaria conquistaram “La Rochette, Lama di Soto e Pradoscello”, entre outras localidades que se localizavam nas proximidades do rio Serchio. Informou também que outros soldados “mais a oeste, apoderaram-se de San Quirico”. Era a tropa que o potiguar Rodoval fazia parte.[20]

Soldados brasileiros encarando o frio italiano com a ajuda de um aquecedor à lenha.

Ao chegar em San Quirico estava frio e chovia, com a temperatura caindo para uns 10 ou 12 graus com a chegada da noite. A tropa brasileira estava cansada após vários dias de lutas e avanços pelas elevações daquela região da Toscana. É provável que a antiga igreja e o fato da maioria das casas estarem queimadas, tenha chamado a atenção de Rodoval e seus colegas. Mas o que importava naquele momento era consolidar a conquista do lugar, comer algo, descansar e seguir adiante.

Acredito que eles então se dirigiram para uma das poucas casas que não estavam queimadas e se acomodaram. Também é provável que sobre aquela pequena comunidade e seu montanhoso entorno, o potiguar só soubesse informações militares. Enfim, a vila e a região eram muito parecidas com outras tantas vilas e montanhas que ele vinha combatendo e ocupando no último mês junto com seus companheiros. Mas talvez Rodoval se espantasse ao saber o quanto aquele lugarejo era antigo.

A igreja de San Quirico, com seus mais de 10 séculos de construida.

Quando a primeira notícia oficial e conhecida sobre San Quirico foi publicada, um pequeno texto sobre os bens da “Ecclesia S.Quirici de Arriano“, somente 520 anos depois o navegador luso Pedro Álvares Cabral colocaria seus pés nas belas praias de Porto Seguro.[21]

Atualmente San Quirico pertence ao município de Pescia, na província de Pistoia, região da Toscana. Está fincada no alto de um monte com quase 550 metros de altitude e foi um lugar que presenciou guerras, passagem de exércitos em luta, pestes, terremotos, secas, enchentes e muito mais. É um lugar conhecido por ali ter vivido famílias que se especializaram na fabricação de sinos, sendo respeitados em toda a península italiana. Sua arte remonta à Idade Média, onde em algumas casas do lugarejo ainda é possível ver lagartos esculpidos em pedra, símbolo desta arte na Itália. É um testemunho da presença de tais mestres, sendo os mais conhecidos pertencentes às famílias Angeli, Fontana e Magni.[22]

Rua em San Quirico.

Durante a Segunda Guerra Mundial, dois meses antes da FEB chegar a essa vila medieval e do potiguar Rodoval ter combatido nas suas ruas, San Quirico viveu uma tragédia, quando foi palco de um dos muitos massacres perpetrados pelos alemães contra os civis italianos.

A coisa toda começou assim – Na noite de 7 de agosto de 1944, dois oficiais alemães foram convidados para jantar em uma casa da aldeia e tudo parecia estar indo bem. Por volta das 11 da noite, quando retornavam ao seu acampamento, eles foram mortos. Para alguns foi obra de guerrilheiros italianos que lutavam contra a ocupação alemã, os chamados “Partigiani”, mas outras fontes apontam que os atiradores seriam seis soldados alemães desertores e um deles, chamado Franz, foi quem matou os oficiais. Independentemente disso, a resposta alemã não se fez esperar! 

Outra vista da vila.

Naquela época os nazistas deixaram claro que para cada alemão morto, dez italianos pagariam com a vida. Na manhã do dia 19, muitos soldados da 65º Divisão de Infantaria da Wehrmacht chegaram a San Quirico e cercaram a aldeia[23]. Aos gritos, empurrões e muita violência mandaram todos sair das casas somente com a roupa do corpo e começaram a saquear e queimar praticamente todo o pequeno burgo, deixando de incinerar umas poucas casas e a igreja milenar. Roubaram gado, objetos de valor, os melhores móveis, roupas de cama e provisões. As antigas casas da vila de ruas apertadas arderam fortemente. Às quatro da tarde os nazistas separaram da população detida um grupo de velhos, doentes e mulheres, que imaginaram o pior para eles, pois todos foram obrigados a abrir uma grande cova coletiva no cemitério local.

San Quirico e as montanhas do seu entorno.

Mas o comandante alemão informou ao pároco Dom Vicenzo del Chiaro que seriam fuzilados vinte homens detidos pela manhã, na estrada que ligava a localidade de Pietrabuona até a cidade de Pescia. Eram pessoas de várias vilas da Toscana que, depois de serem obrigadas a trabalhar para os alemães no reforço de fortificações da Linha Gótica, foram libertadas e voltavam para suas casas, quando foram novamente detidas. Esse grupo foi conduzido para perto do cemitério de San Quirico em um caminhão. No local da execução um dos presos tentou escapar, mas foi perseguido e morto. Os dezenove restantes foram divididos em três grupos e sumariamente fuzilados. Hoje um desses infelizes ainda repousa neste campo santo e, para se ter uma ideia do nível de destruição em San Quirico, provocado pelos nazistas naquele 19 de agosto de 1944, ainda na década de 1970 cerca de 50% das casas do lugar estavam destruídas e enegrecidas.[24]

Monumento existente em San Quirico para homenagear os vinte fuzilados de 19 de agosto de 1944.

Enquanto os cansados oficiais e praças brasileiros do 16º Regimento de Infantaria encontraram abrigo do frio da noite nas casas de San Quirico, na madrugada os alemães e italianos contra-atacaram os brasileiros sem dó e nem piedade!

O Duro Combate de San Quirico

Em 2012, quando se comemorou os 70 anos da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o jornalista Marcelo Godoy participou de uma série de reportagens do jornal paulista Estadão sobre a participação brasileira nesse conflito. Ele escreveu um interessante material sobre o combate de San Quirico – “Os brasileiros dormiam, quando começaram a ouvir vozes na madrugada fria. Eram do inimigo. De repente, um tiro de carabina. A bala tombou um alemão que descia a colina em direção à ravina atrás da casa dos brasileiros. Atratino Côrtes Coutinho, comandante da 1.ª Companhia de Petrechos Pesados (CPPI), foi o autor do disparo que instalou o inferno na paisagem. A resposta veio das metralhadoras alemãs. Tiros encurralaram o capitão e sua tropa. Havia uma única saída: fugir pela janela dos fundos. Todos passaram. Chegou a vez do tenente José Maria Pinto Duarte. Ao pular, balas lhe alcançaram o corpo. Uma rajada apanhou o tenente no ar. Os tiros do inimigo não permitiram que o corpo do oficial fosse resgatado e enterrado. “O Atratino tentava arrastar, mas ele (Duarte) era muito alto, pesado, era difícil… Lembro quando (Duarte) falou: “Cuidem bem da minha filha’, como uma súplica”, diz João Gonzales, de 92 anos (em 2012), na época da guerra um terceiro sargento. Atratino não se conformava. Montou duas patrulhas para encontrar o corpo. Sem sucesso. Cansado, escreveu: “O moral da tropa foi abalado pelos insucessos causados pelo contra-ataque inimigo”. A ideia de que era preciso enterrar Duarte atormentaria o capitão até o fim da guerra”.[25]

Soldados da FEB em posição de combate.

Outro oficial da FEB presente ao confronto de San Quirico foi o então capitão Moziul Moreira Lima, que deixou o seguinte registro – “O Destacamento da FEB conquistou Barga e tentou conquistar as alturas dos Montes Quíricos (SIC) e infelizmente essa tentativa terminou em revés sério e serviu-nos como um grande ensinamento. Casualmente eu estava lá, junto do comandante do 1º Batalhão do 6º RI (Regimento de Infantaria), Major João Carlos Gross, meu grande amigo. A ordem fora conquistar aquelas alturas. Era uma conquista difícil, um terreno escarpado e o Comandante do Batalhão foi comigo ao Quartel-General pedir que ficasse à disposição da Unidade, uma Companhia de muares, porque ele achava difícil levar munição e alimento quando estivéssemos lá na crista do monte.

Poder de fogo de um militar da FEB com uma submetralahdora M3  “Grease Gun” e fitas de munição. Foi apontado para o autor desse texto que o militar da foto seria o sargento Rodoval Cabral da Trindade, mas sem confirmação.

Foi prometida essa Companhia de muares, mas a mesma não nos foi fornecida e com muito sacrifício o Batalhão conquistou aquela posição. Pela experiência que tínhamos das nossas guerras, quando escurecia as operações paravam e, conquistada a posição, o pessoal se preparava apenas para passar a noite. Pois nessa noite o alemão desencadeou um contra-ataque com uma Unidade de Choque, especializada em ataques noturnos. Essa Unidade veio em cima do flanco esquerdo do nosso dispositivo e fomos tomados de surpresa, inesperadamente e sem a munição necessária. Foi uma surpresa total, o Batalhão começou a recuar pelo flanco esquerdo e foi nessa ocasião que morreu o tenente Pinto Duarte. Dois oficiais se atiraram por uma janela para não caírem prisioneiros, ele e o capitão Atratino, que era o Comandante da Companhia. O tenente foi ferido numa perna e na barriga e não conseguia se locomover, o Atratino procurou carregá-lo, mas não conseguiu e o corpo teve que ficar insepulto naquele local. Com esse revés ficou evidente que deveríamos nos reajustar muito rapidamente ao modo de combater de elementos que já tinham no mínimo cinco anos de experiência de guerra, enquanto estávamos começando a adquirir a nossa naqueles combates” [26].

Tropa do 2º Pelotão, da 8º Companhia, do 6º Regimento de Infantaria da FEB. É provável que alguns dos fotografados estiveram no combate de San Quirico – Foto devidamente cedida pelo Museu da Imagem e do Som da Associação Nacional da FEB.

O então capitão Hélio Portocarrero de Castro foi outro oficial da FEB que lutou em San Quirico naquela madrugada e deixou o seguinte registro – “Cheguei no 2º Escalão e, logo em seguida, fui designado para assumir o Comando da 7ª Companhia, 3º Batalhão do referido 6º Regimento de Infantaria. Não tive nenhuma adaptação. Segui direto, assumi o comando num ataque ao Morro de San Quirico. Foi um batismo de fogo sui-generis. Ataquei e fui contra-atacado violentamente pelos alemães. Eles avançavam gritando Heil Hitler! Portavam suas “lurdinhas” (apelido), excelentes metralhadoras de mão, com uma violenta cadência de tiro. Suas rajadas se assemelhavam a uma gargalhada. Algum soldado brasileiro colocou esse apelido nessa arma e pegou. Toda a FEB a designava pelo nome de “lurdinha”. [27]

Soldados da FEB.

O soldado José Otaviano Soares, que morava na rua Dr. Betim, 315, Vila Marieta, em Campinas, São Paulo, tempos depois comentou ao correspondente de guerra americano Henry Bagley, da Associated Press, que naquela madrugada estava com outros dezesseis companheiros da 8º Companhia, do 16º Regimento de Infantaria, quando “capturaram uma casa na aldeia de San Quirico, ao norte de Barga, no vale do rio Serchio, mas os alemães contra-atacaram pela madrugada de 31 de outubro. O inimigo concentrou um fogo de morteiro e metralhadoras contra a casa, matando um e ferindo oito, inclusive José Soares, que foi ferido por estilhaço de morteiro desde o pé ao ombro esquerdo, bem como dois fragmentos maiores na perna direita”. José Soares foi capturado bastante ferido, mas se recuperou em um campo de prisioneiros na Itália, de onde foi libertado ao final do conflito. Ao retornar ao encontro da sua tropa, concedeu essa entrevista a Henry Bagley[28].

Foto ilustrativa de soldados da FEB em uma cidade italiana e sobre um veículo de combate.

O que sabemos da participação do sargento Rodoval são informações muito limitadas, mas é certo que durante o tiroteio o seu pelotão recuou de sua posição original, talvez a mesma casa onde estava o capitão Atratino, ou alguma outra que foi “requisitada” para descanso. É provável que Rodoval tenha continuado na casa para cobrir a retirada dos seus companheiros. A vivenda foi então cercada pelos alemães. Tudo indica que o potiguar, mesmo com sua munição escasseando, ficou na casa até o último disparo. Os registros existentes não explicam como, mas Rodoval manteve a calma e de alguma forma conseguiu romper o cerco para retornar as linhas brasileiras. Sabemos que na madrugada de 31 de outubro de 1944 predominava a lua cheia no norte da Itália, o que possibilitou aos participantes daquele combate vantagens e desvantagens. Talvez o sargento potiguar tenha utilizado o luar para sair vivo daquela complicada situação. Ao sobreviver a esse combate Rodoval foi agraciado com a medalha da Cruz de Combate de 2ª Classe, destinada a participantes de feitos excepcionais praticados em conjunto por vários militares.[29]

Para Sílvio Fonseca a localidade de San Quirico era “uma importante posição dominante que os alemães tentaram inutilmente conservar em seu poder”. Tanto era importante que os nazistas e fascistas executaram o contra-ataque. O jornalista informou que os brasileiros resistiram a três investidas dos inimigos, mas na quarta recuaram.[30]

O complicado terreno de luta da FEB na Itália.

Segundo a falecida historiadora paranaense Carmen Lúcia Rigoni, na página 122 de sua interessante tese de mestrado intitulada La forza di spedizione brasiliana” (FEB) – Memória e história: Marcos na monumentalistica italiana, defendida 2003 na Universidade Federal do Paraná, informou que no momento da ocupação de San Quirico pelos membros da FEB o ambiente entre eles era de “otimismo”. Contudo a autora aponta, através de relatos de participantes, que “ninguém no comando se apercebia de que os combatentes estavam no limite e o cansaço era extremo”. A autora também conseguiu a informação que o “otimismo exacerbado e a subestimação do inimigo” estavam na ordem do dia dos brasileiros. E continua Carmen Lúcia Rigoni – “Segundo as narrativas de diversos veteranos, a frente de combate era muito extensa e o terreno criava todo o tipo de dificuldades, em razão da topografia ser acidentada, e era de difícil acesso. O transporte de víveres e munição para a tropa, debaixo de chuva, comprometia as reservas, entre outras questões afeitas ao comando” (Pág. 122).

Soldados da FEB.

Em outra parte do seu trabalho Carmen Lúcia Rigoni comentou o final da luta – “Diante das intempéries climáticas daquela jornada e da falta de munição e mais a desorganização do comando, a FEB se retira, deixando sobre o terreno mortos, feridos e muitos prisioneiros. As brigadas italianas sofreram também pesadas baixas. Os mortos e prisioneiros do efetivo de 200 homens da Companhia Aosta somaram-se mais de 80 homens” (pág. 126).  

Como um jornal dos Estados Unidos comentou as vitórias da FEB em outubro de 1944.

A Morte em Voghera

A partir desse momento da história da FEB na Itália não consegui encontrar mais nenhuma referência sobre o sargento Rodoval Cabral da Trindade.

Soldados da FEB em uma aparente comemoração, com instrumentos musicais em um caminhão de transporte. Talvez algo alusivo ao final da guerra.

Finalmente a Guerra na Europa se encerra em 8 de maio de 1945 e a Força Expedicionária Brasileira se preparava para retornar ao Brasil. É quando o sargento Rodoval morre em um acidente de jeep em Voghera, uma cidade ao norte de Gênova, no dia 6 de junho de 1945. Das causas e razões do acidente automobilístico não consegui nenhuma informação. 

Apenas descobri que Rodoval não foi o primeiro membro da FEB a morrer nessa estrada. No dia 8 de maio de 1945, no Dia da Vitória, e praticamente um mês antes da morte de Rodoval, o segundo sargento Fábio Pavani, de Capivari, São Paulo, faleceu ao cair da viatura em que estava se deslocando na mesma estrada de Voghera. Segundo a listagem de mortos da FEB, encontrada no texto intitulado Lista detalhada e ilustrada dos mortos da Força Expedicionária Brasileira na Campanha da Itália, constam os nomes de 34 militares que morreram em acidentes de veículos [31].

Para o pesquisador Durval Lourenço Pereira, essa situação ocorreu por várias razões. Desde a imperícia pura e simples dos motoristas da FEB, a complicada situação das estradas italianas, nevoeiro, fadiga, lama, neve, stress por dirigir em zona de guerra e outras mais.

Notícia da morte do sargento Rodoval em jornal de Natal.

Em Natal a notícia foi divulgada com bom espaço nos três principais jornais da cidade – A República, A Ordem e O Diário.  A única rádio da cidade, a REN – Rádio Educadora de Natal, noticiou extensivamente o falecimento do sargento Rodoval. Vários membros da comunidade foram pessoalmente até a casa da família externar os pêsames pelo ocorrido. Já o tenente coronel Edgar Alves Maia e o Dr. Jacob Wolfson, oftalmologista de renome e um dos líderes da comunidade judaica natalense, foram até a casa da família Cabral da Trindade levar o apoio da Comissão de Homenagem, Assistência e Recepção à FEB.[32]

Cemitério de Pistoia e o enterro de um combatente da FEB.

O corpo do sargento Rodoval Cabral da Trindade foi primeiramente sepultado no Cemitério Militar Brasileiro de Pistoia, na quadra D, fileira nº 1, sepultura nº 5. Depois seus restos foram transladado para o Rio de Janeiro, onde repousam no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo. No Rio Grande do Norte ele é lembrado com seu nome em uma rua em Ceará-Mirim e outra em Natal. Na capital essa artéria fica na Cidade Alta, vizinho a Igreja do Galo e perto de onde ele viveu.

Pessoalmente a história do sargento Rodoval me traz maravilhosas lembranças do meu tio-avô Luís de França Moraes, o nosso poeta e um devotado funcionário dos Correios e Telégrafos. 

Ainda garoto, foi dele que ouvi pela primeira vez os fatos ligados ao sargento Rodoval, até porque tio Luís moravam na Rua Laranjeira, número 18, a poucos metros da casa de Seu João Cândido da Trindade. Ele conheceu Rodoval, foi um dos que foram à casa de seu pai dar os pêsames pelo seu falecimento na Itália, esteve no enterro de Seu João em 1957 e chegou a trabalhar nos Correios e Telégrafos com José Augusto, Clotilde e Margarida, todos irmãos de Rodoval. Eu era muito jovem quando ouvi seu relato, mas jamais esqueci quando ele me narrou do orgulho que ele e todo o pessoal da Rua Laranjeira ficou ao saber que Rodoval tinha ido para a Guerra e da enorme tristeza que se abateu com a notícia da sua morte.

NOTAS

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[1] Ver O Poti, Natal-RN, ed. 06/07/1957, sábado, pág. 3.

[2] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 14/03/1940, quinta-feira, pág. 2. Não encontramos nenhuma outra indicação de fonte de renda desse funcionário público para sustentar sua família.

[3] Ver Galvão, Claudio. O nosso maestro: biografia de Waldemar de Almeida – Natal, EDUFRN, 2019, pág. 97.

[4] O antigo Tiro de Guerra 18 não existe mais, contudo esse tipo de organização é bastante presente em outros estados brasileiros e no Rio Grande do Norte ainda existe um em Mossoró, com mais de 120 anos de atuação.

[5] Ver O Poti, Natal-RN, ed. 09/08/1981, domingo, pág. 14.

[6] A Escola Técnica de Comércio foi fundada em 1919 pelo professor Ulysses de Góis. Em dezembro de 1950 essa escola se mudou da Rua João Pessoa para a Avenida Junqueira Aires, 390, na Ribeira e serviu de embrião para a criação da Faculdade de Ciências Contábeis e Atuariais de Natal em 1957.

[7] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 17/07/1945, quarta-feira, pág. 4.

[8] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 26/07/1941, sábado, pág. 10.

[9] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 17/01/1943, domingo, pág. 14. A ordem veio através do Boletim Interno nº 13, de 16/01/1943.

[10] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 16/03/1943, terça-feira, pág. 6. A ordem veio através do Boletim Interno nº 62, de 15/03/1943.

[11] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 14/08/1943, sábado, pág. 8.

[12] Enciclopédia da II Guerra Mundial, Editora Globo, Livro VI, páginas 285 e 286, 2ª edição, 1956.

[13] Informações transmitidas oralmente por José Renato Coelho ao autor. Renato é filho do soldado Coelho, já falecido.

[14] Diário de bordo do USS General A. W. Mann, 2 de julho de 1944, pág. 2.

[15] Sobre essa questão ver https://www.vqronline.org/essay/question-leadership-5th-army-italy (em inglês).

[16] Mais detalhes sobre a 232º Divisão, ver https://www.axishistory.com/

 [17] A divisão Monterosa nasceu em 1 de janeiro de 1944 em Pavia, mas foi mobilizada apenas em 15 de fevereiro do mesmo ano. Em 16 de julho Benito Mussolini entregou a bandeira aos regimentos em Münsingen, Alemanha, no final do período de treinamento realizado com padrões germânicos. Era composta por cerca de 20.000 homens, dos quais 20% provenientes do Exército Real Italiano, que se rendeu aos Aliados em 1943. Foi criado pelos líderes fascistas da chamada República Social para combater nas montanhas ao lado do exército alemão e suas armas vieram dos armazéns da Wehrmacht. A divisão voltou à Itália em julho de 1944 e ficou na área da Ligúria, para neutralizar um possível desembarque das forças aliadas. Posteriormente foi transferido para a Garfagnana entre o rio Serchio e os Alpes Apuanos, combatendo as unidades brasileiras da FEB e outras forças do 5º Exército.

[18] Ver A Noite, Rio de Janeiro, ed. 27/04/1946, sábado, pág. 8.

[19] Segundo o ótimo material produzido pelo escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira, que apresenta um interessante e didático roteiro do avanço da FEB, os locais e as datas das conquistas da foram as seguintes – 11/10/1944 – Ocupação de Barga e Gallicano; 24.10.1944 – Ocupação de Sommocolonia; 25.10.1944 – Ocupação de Trassilico e Verni; 28.10.1944 – Captura de Monte Facto; 29.10.1944 – Ocupação de Colomini; 30.10.1944 – Conquista de San Quirico, Lama di Sotto, Lama di Sopra, Pradoscello e Pian de Los Rios. Ver https://memorialdafeb.com/2012/05/15/roteiro-da-feb-na-italia-o-destacamento-feb2/

[20] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 02/11/1944, quinta-feira, pág. 1

[21] No entorno de San Quirico já foram encontrados marcos do Império Romano e até ferramentas do neolítico, que apontam uma antiguidade muito mais ampla.

[22] Sobre San Quirico e sua história ver https://digilander.libero.it/sanquiricovalleriana/lastoria.htm  https://www.ilturista.info/guide.php?cat1=4&cat2=8&cat3=5&cat4=142&lan=ita

[23] Na área de operações da 65ª Divisão foram identificados 26 atos separados de violência onde civis italianos foram sumariamente mortos. Em junho de 1944 aconteceram cinco massacres (18 vítimas), três em julho (22 vítimas), nove em agosto (42 vítimas, entre estas as de San Quirico), oito em setembro (125 vítimas, o pior mês) e um em outubro de 1944 (2 vítimas). Entre 28 e 30 de setembro, em Ronchidoso, na região da Emilia-Romagna, foram executados 66 civis pelos homens da 65º Divisão, que nesse caso atuaram juntos com membros da 42ª Divisão Jäger. Várias dessas execuções foram represálias precipitadas pela morte de soldados alemães por guerrilheiros do movimento de resistência italiano, que surgiu no norte da Itália para se opor ao estado fantoche fascista. Mas os revisores dessas histórias, muitos deles neonazistas disfarçados de pesquisadores, comentam que muitos dos relatórios carecem de evidências dos perpetradores específicos. Minimizam que esses relatórios apenas apontam que os assassinatos ocorreram na área de operações da 65ª Divisão. Pode até ser que esses argumentos sejam verdadeiros, mas fica difícil justificar que ao longo de cinco meses, na área de atuação dessa divisão, ocorreram 26 massacres de gente detida e desarmada, com um total de 205 vítimas. Ver – https://en.wikipedia.org/wiki/65th_Infantry_Division_(Wehrmacht)#Partisan_warfare_and_alleged_war_crimes

[24] A memória da tragédia continua presente naquela gente até hoje, onde todos os dias 19 de agosto existe uma comemoração em Pescia rememorando o que ocorreu em San Quirino e em outras comunidades da região. Ainda sobre o massacre de San Quirico ver o documento existe neste sítio da internet – http://www.straginazifasciste.it/wp-content/uploads/schede/SAN%20QUIRICO%20IN%20VALLERIANA%20PESCIA%2019.08.1944.pdf

[25] Ver https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,na-linha-de-frente-a-historia-da-primeira-tropa-a-lutar-na-italia,921569

[26] História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial / Coordenação geral de Aricildes de Moraes Motta. – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. T. 3. Págs. 56 e 57. O capitão Moziul Moreira Lima era gaúcho de Cruz Alta e alcançaria o posto de general de brigada do Exército Brasileiro.

[27] História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial / Coordenação geral de Aricildes de Moraes Motta. – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. T. 4. Págs. 70 e 71. O capitão Hélio Portocarrero de Castro era natural da cidade do Rio de Janeiro e alcançaria o posto de divisão do Exército Brasileiro.

[28] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, ed. 30/05/1945, quarta-feira, pág. 8.

[29] Sobre a atribuição dessa medalha e sobre os 68 sargentos do Exército Brasileiro mortos na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, ver o interessante trabalho Os 68 sargentos mortos em operações de guerra, do coronel Cláudio Moreira Bento, em http://www.ahimtb.org.br

[30] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 02/11/1944, quinta-feira, pág. 1

[31] Ver https://xdocs.com.br/doc/lista-detalhada-e-ilustrada-dos-mortos-da-fora-expedicionaria-brasileira-na-campanha-da-italia-4ol2mkp55ynm Infelizmente não descobri o autor desse trabalho.

[32] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 04/08/1945, sábado, pág. 2.

RACISMO À BRASILEIRA – SEMPRE CÍNICO E VENENOSO!

Rostand Medeiros

Acho sempre muito engraçado quando encontro pessoas que dizem, muitas vezes alterando o tom da voz e com ar de extrema sapiência, que “no Brasil não existe racismo”.

Quem dera fosse assim!

O racismo no Brasil existe e possui na sua gênese um cinismo miserável, que espalha um veneno terrível, além de ser algo muito antigo, conforme podemos ver na foto que abre esse texto.

É uma foto publicada em uma revista “Fon Fon” de 1908, um dos mais respeitáveis informativos brasileiros do início do século XX.

Nela vemos uma mulher muito bem trajada, com um vestido típico da alta sociedade da sua época, com o colarinho fechado, bordados, chapéu com ramos e flores, além de luvas. Ela traz uma sobrinha clara para lhe proteger do sol.

Pelos desenhos existentes na pedraria da calçada ela está em um boulevard muito bem organizado. Ao fundo vemos mesas e cadeiras, com uma cobertura para proteger do sol, apontando que no local existe um café, ou um restaurante, certamente um interessante ponto de encontro. Na rua estão estacionadas carruagens, talvez do tipo cabriolet, ou caleche. Em suma, era um local “chic”, onde provavelmente se reunia a alta sociedade do Rio de Janeiro.

A foto não é muito nítida, mas percebemos que essa mulher não parece ser tão nova em sua idade e ela tem a mão uma criança, um menino, que veste uma roupa do tipo “calça curta”, com uma pequena gravatinha contendo detalhes geométricos interessantes, que se repetem no colarinho. Nos pés o menino parece calçar botinas. Em tudo são roupas caras, típicas de uma criança da alta sociedade dessa época.

Mas a mulher olha diretamente para a câmera. Um olhar firme, sem sorriso no rosto, um olhar de quem não gosta do que está acontecendo.

Conforme podemos ver acima, a foto foi publicada com a seguinte frase: “Mme. Cecília Carvalho e seu interessante filhinho”. O “Mme.” é diminutivo de mademoiselle e essa mulher, conforme pude ver nos jornais da época, era uma pessoa cujo nome era constantemente repetido como participante de inúmeros eventos sociais. Indicando ser uma mulher da alta sociedade carioca, da elite.

A publicação foto em si não teria nada demais e certamente seria motivo para deixar Mademoiselle Cecília Carvalho feliz. Mas a criança que aparece no “instantâneo” é negra.

Diante da expressão do rosto de Mademoiselle Cecília, acredito que a frase que acompanha a foto na “Fon Fon” é uma ironia ridícula, que reserva uma espécie de reprimenda, certamente pelo fato dela estar acompanhada de uma criança negra nesse tipo de ambiente.  

Evidentemente que sem maiores dados fica difícil de compreender o que se esconde por trás da foto e da publicação da frase.

Não sei se essa criança era realmente filho de Mademoiselle Cecília. Acho que não. Talvez um filho de criação, ou de alguma empregada. Mas seja lá quem fosse a criança, aparentemente para aquela mulher não havia nenhum problema em sair na rua com ele. Não havia problema que ele fosse bem vestido, assim como ela. Mas parece que para o fotógrafo, e por extensão toda a sociedade da época, havia algo errado naquele conjunto. Tanto que valeu o click e a frase…

E assim vamos vivendo nesse país negro, repleto de ironias e hipocrisias em relação ao seu racismo antigo e ainda muito presente.

O FAMOSO DEBATE ENTRE O ESCRITOR JAMES BALDWIN E O INTELECTUAL WILLIAM F. BUCKLEY NA UNIVERSIDADE CAMBRIDGE

Em breve completará 60 anos do dia que dois grandes intelectuais norte-americanos se enfrentaram em um debate histórico, sobre a tensa situação das divisões raciais dos Estados Unidos. Passadas tantas décadas, o evento não perdeu sua relevância e a fala do escritor negro James Baldwin continua marcante.

Fonte – Baseado no texto de Gabrielle Bello, em The American – Fonte – https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/12/james-baldwin-william-f-buckley-debate/602695/

Existe na Inglaterra uma sociedade de debate e liberdade de expressão chamada Cambridge Union Society, também conhecida como Cambridge Union, sendo essa a maior sociedade de alunos da Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Brasão da Cambridge Union – Fonte – Wikipédia

Fundada em 1815, a Cambridge Union é a mais antiga sociedade de debates em funcionamento contínuo no mundo. É legalmente uma instituição de caridade autofinanciada, que possui e tem controle total sobre sua propriedade privada e edifícios no centro da cidade de Cambridge. Essa sociedade igualmente arrecada fundos para despesas de eventos e manutenção de seus edifícios por meio de taxas de associação e patrocínio, além de gozar de fortes relações com a famosa universidade, uma instituição acadêmica cuja fundação remonta ao ano de 1209.

Depois de mais de 200 anos, a Cambridge Union é mais conhecida por seus debates, que recebem atenção da mídia nacional e internacional. Em 18 de fevereiro de 1965, no seu principal auditório, completamente lotado na ocasião, houve um desses debates. E o que ali foi dito reverbera até hoje!

James Baldwin (esquerda) e William F. Buckley (direita) – Fonte – Dave Pickoff / AP / Bettmann / Getty / The Atlantic – Via – https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/12/james-baldwin-william-f-buckley-debate/602695/

Choque de Titãs

“O sonho americano está às custas do negro americano”, declarou James Arthur Baldwin (Nova Iorque, 2 de agosto de 1924 — Saint-Paul de Vence, 1 de dezembro de 1987)[1] em seu debate com William Frank Buckley Junior (Nova Iorque, 24 de novembro de 1925 – Stamford, 27 de fevereiro de 2008)[2]. Baldwin estava ecoando a moção do debate – que o sonho americano estava às custas dos negros americanos, com Baldwin a favor, Buckley contra.

A ênfase na palavra de Baldwin deixa seu ponto de vista claro. “Eu colhi o algodão e o levei para o mercado, e construí as ferrovias sob o chicote de outra pessoa para nada”, disse ele, sua voz subindo com a cadência do púlpito. “Por nada.” O auditório lotado ficou em silêncio. 

Prédio da Cambridge Union – Fonte – Wikipédia.

Aqui estava um choque de titãs diametralmente opostos: em um canto estava Baldwin, baixo, esguio, quase andrógino com seu rosto ainda jovem, a voz carregando as inflexões levemente cosmopolitas que ele tinha há anos. Ele era o radical do debate, um escritor estimado sem medo de condenar vulcanicamente a supremacia branca e o racismo antinegro de norte-americanos conservadores e liberais. No outro canto estava Buckley, alto, de pele clara, cabelo bem penteado e mandíbula rígida, suas palavras esculpidas com seu sotaque transatlântico característico, quase britânico. 

Se Baldwin – o virtuoso verbal que escreveu retratos comoventes da América negra e sobre a vida como um expatriado na Europa – defendeu a necessidade de mudança dos Estados Unidos, Buckley se posicionou como o moderado razoável que resistiu às transformações sociais que os líderes dos direitos civis pediam. principalmente o fim da segregação racial. Alguns dos alunos na plateia o conheciam como nada menos que o pai do conservadorismo americano moderno.

Um recente debate na Cambridge Union, com a presença do ator inglês Stephen Fry. Nesse mesmo local debateram Baldwin e Buckley em 1965 – Fonte – Wikipédia.

O apoio de Buckley ao direito do Sul à segregação e as condenações de Baldwin à América branca ocorreram contra o pano de fundo onde os Estados Unidos se encontrava profundamente dividido em 1965, tal como em 2022.

Mundos Diferentes

Uma pedra fundamental para o entendimento desse debate está nas diferenças marcantes em como Baldwin e Buckley foram criados. 

Enquanto Baldwin cresceu pobre no bairro do Harlem, Nova York, com predominância de residentes negros e pobres, Buckley foi cercado por privilégios. Sua mãe, Alöise Steiner Buckley, encheu sua casa com criados e tutores para seus dez filhos. Ela era profundamente católica, a semente das rígidas visões religiosas maniqueístas que seu filho adotaria. Ao longo de sua vida, Buckley se tornaria conhecido pela estrita divisão de “bem” e “mal” em sua visão de mundo, segundo a qual o catolicismo e o capitalismo eram bons, e o ateísmo e o socialismo exemplificavam o mal.

Também ficou claro para a descendência de Alöise o que ela pensava sobre quem deveria servir a quem na sociedade americana. Ela era “racista”, segundo lembrou o irmão de Buckley, o escritor e educador Fergus Reid Buckley, porque “assumia que os brancos eram intelectualmente superiores aos negros”. Mas ele acrescentou que “ela realmente amava os negros e se sentia seguramente confortável com eles desde a suposição de sua superioridade em intelecto, caráter e posição.”

Essa dinâmica peculiar e paternalista pressagiava a própria ideologia de William, em que mãe e filho acreditavam em manter as barreiras entre negros e brancos americanos como parte da cultura sulista. Quando adulto, Buckley costumava escrever que a segregação era uma necessidade, porque os americanos negros “ainda não” eram avançados o suficiente para serem iguais aos brancos, o que implica, com uma condescendência que ele talvez considerasse edificante, que eles poderiam um dia estar no mesmo nível.

Baldwin no debate de 18 de fevereiro de 1965.

Baldwin, ao contrário de Buckley, sofreu muito antes de alcançar a fama como autor. Ele deixou Nova York em 1948, quase sem um tostão, para a França, depois de decidir que não poderia mais sobreviver ao traumatizante racismo dos Estados Unidos — tanto nos estados do norte quanto do sul. Embora tenha encontrado algum descanso em Paris, ele ainda quase cometeu suicídio lá depois de ser preso pela polícia por suspeita de ter roubado o lençol de um hotel (o que não aconteceu). E ele continuou voltando para a seu país, tanto em seus livros quanto em suas viagens. Baldwin nunca se escondeu; em vez disso se colocou na linha de frente de uma batalha pelos direitos civis por nada menos que a alma dos Estados Unidos.

Pedra de Torque

Se não fosse o debate de 1965, Baldwin poderia nunca ter conhecido Buckley. Na verdade, Baldwin quase teve outro oponente. Antes de a Cambridge Union convidar Buckley, ela havia procurado políticos firmemente segregacionistas, que recusaram. Buckley parecia uma alternativa ideal: um crítico sociopolítico articulado e proeminente que evitava os epítetos racistas dos supremacistas brancos mais vocais do conservadorismo, mas que, no entanto, apoiava a segregação. Buckley viu o debate como uma chance de derrotar um de seus arqui-inimigos ideológicos em um palco público.

William F. Buckley no debate.

Para irritação de Buckley, embora não totalmente para sua surpresa, Baldwin fez uma performance empolgante. 

Baldwin declarou durante o debate que era “um grande choque por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você jurou lealdade, junto com todos os outros, não prometeu lealdade a você.” Baldwin argumentou que os males da escravidão dificilmente haviam sido exorcizados após a abolição, mas que, em vez disso, o país ainda era essencialmente o mesmo para os negros americanos como era durante os dias da escravidão legal. 

Depois que Baldwin encerrou, ele foi aplaudido de pé, em uma rara manifestação da Cambridge Union. Nas imagens desse debate no YouTube, é nítido como James Baldwin fica até mesmo desconcertado diante da plateia.

Apresentação dos debatedores.

Quando chegou a sua vez, Buckley argumentou que Baldwin estava sendo tratado com luvas de pelica, por assim dizer, porque alegava ser uma vítima. “O fato de sua pele ser negra”, ele asseverou, “é totalmente irrelevante para os argumentos que você levanta”. Baldwin, disse ele lentamente e cheio de uma raiva silenciosa, era um inimigo violento do modo de vida sulista que proferiu “flagelações de nossa civilização” e da América como um todo. Forçar o sul americano a abandonar seu modo de vida e aceitar a integração imposta pelo governo, insistiu, seria imoral. 

Em última análise, o público discordou e Baldwin venceu o debate por 540 a 160 votos.

É difícil falar sobre Baldwin ou Buckley sem fazer referência a este encontro; tornou-se uma pedra de toque na vida de ambos os homens.

Segue a transcrição da fala de James Baldwin.

Auditório lotado.

Boa noite,

Encontro-me, não pela primeira vez, na posição de uma espécie de Jeremias. Por exemplo, não discordo do Sr. Burford de que a desigualdade sofrida pela população negra americana dos Estados Unidos atrapalhou o sonho americano. Na verdade, tem. 

Discordo com algumas outras coisas que ele tem a dizer. O outro elemento, mais profundo, de uma certa estranheza que sinto tem a ver com o ponto de vista de alguém. Tenho que colocar dessa maneira – o sentido, o sistema de realidade de alguém. Parece-me que a proposição perante a Câmara, e eu colocaria dessa forma, é o sonho americano às custas do negro americano, ou o sonho americano * é* às custas do negro americano. 

A questão está terrivelmente carregada, e então a resposta de alguém a essa questão – a reação de alguém a essa questão – tem que depender do efeito e, com efeito, de onde você se encontra no mundo, qual é o seu senso de realidade, qual é o seu sistema de realidade é. Isto é, depende de suposições que sustentamos tão profundamente que mal temos consciência delas.

Sejam brancos sul-africanos ou meeiros do Mississippi, ou xerifes do Mississippi, ou um francês expulso da Argélia, todos têm, no fundo, um sistema de realidade que os obriga a, por exemplo, no caso do exílio francês da Argélia, ofender razões francesas para ter governado a Argélia. 

O xerife do Mississippi ou do Alabama, que realmente acredita, quando se depara com um menino ou uma menina negra, que essa mulher, esse homem, essa criança devem ser loucos para atacar o sistema ao qual ele deve toda a sua identidade. Claro, para tal pessoa, a proposição que estamos tentando discutir aqui esta noite não existe. 

E, por outro lado, devo falar como uma das pessoas mais atacadas pelo que agora devemos chamar de sistema de realidade ocidental ou europeu. Que pessoas brancas no mundo, o que chamamos de supremacia branca – odeio dizer isso aqui – vem da Europa. Foi assim que chegou à América. Abaixo, então, qualquer que seja a reação de alguém a esta proposição, tem que ser a questão de se as civilizações podem ou não ser consideradas, como tais, iguais, ou se a civilização de alguém tem o direito de dominar e subjugar, e, de fato, de destruir outra. 

John F. Kennedy e sua esposa Jackie desfilando na Broadway em carro aberto em Nova York. Quando foi Presidente dos Estados Unidos e até a sua morte em 1963, John Kennedy desejava que a pauta dos direitos civis e do direito ao voto livre se tornasse realidade.

Agora, o que acontece quando isso acontece. Deixando de lado todos os fatos físicos que se podem citar. Deixando de lado estupro ou assassinato. Deixando de lado o catálogo sangrento da opressão, com o qual de certa forma já estamos familiarizados, o que isso faz ao subjugado, o mais privado, a coisa mais séria que isso faz ao subjugado, é destruir seu senso de realidade. Isso destrói, por exemplo, a autoridade de seu pai sobre ele. Seu pai não pode mais dizer nada a ele, porque o passado desapareceu, e seu pai não tem poder no mundo. Isso significa, no caso de um negro americano, nascido naquela república resplandecente, e no momento em que você nasce, já que não conhece nada melhor, todo pau e pedra e todo rosto são brancos.

E como você ainda não viu um espelho, supõe que também o é. É um grande choque, por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você jurou fidelidade, junto com todas as outras pessoas, não jurou fidelidade a você. É um grande choque descobrir que Gary Cooper matou os índios, quando você estava torcendo por Gary Cooper, que os índios eram você. É um grande choque descobrir que o país que é o seu lugar de nascimento e ao qual você deve sua vida e sua identidade, não evoluiu, em todo o seu sistema de realidade, nenhum lugar para você. 

O descontentamento, a desmoralização e a distância entre uma pessoa e outra apenas com base na cor de sua pele, começa aí e acelera – acelera ao longo de uma vida inteira – até o presente quando você percebe que tem trinta anos e está passando por maus bocados para confiar em seus conterrâneos. Quando você tem trinta anos, já passou por um certo tipo de moinho. E o efeito mais sério do moinho pelo qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os policiais, os motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o que significa que você é um ser humano sem valor. Não é isso. 

É nessa época que você começa a ver isso acontecendo, em sua filha ou em seu filho, ou em sua sobrinha ou sobrinho. E o efeito mais sério do moinho pelo qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os policiais, os motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o que significa que você é um ser humano sem valor. 

Você já tem trinta anos e nada do que fez ajudou a escapar da armadilha. Mas o que é pior do que isso, é que nada do que você fez e, pelo que você pode dizer, nada do que você pode fazer, salvará seu filho ou sua filha de enfrentar o mesmo desastre e não impossivelmente chegar ao mesmo fim. 

Agora, estamos falando sobre despesas. Suponho que haja várias maneiras de nos dirigirmos a alguma tentativa de descobrir o que essa palavra significa aqui. Deixe-me colocar desta forma, que de um ponto de vista muito literal, os portos e os portos e as ferrovias do país – a economia, especialmente dos estados do Sul – não poderiam ser o que se tornou, se tivessem não teve, e ainda não tem, na verdade por muito tempo, por muitas gerações, mão de obra barata. Estou afirmando muito a sério, e isso não é um exagero: * Eu* colhi o algodão, * eu * levei-o para o mercado e * eu * construí as ferrovias sob o chicote de outra pessoa por nada. Por nada.

A oligarquia do Sul, que ainda hoje tem tanto poder em Washington, e, portanto, algum poder no mundo, foi criada pelo meu trabalho e meu suor, e pela violação de minhas mulheres e o assassinato de meus filhos. Isso, na terra dos livres e na casa dos bravos. E ninguém pode contestar essa afirmação. É uma questão de registro histórico.

De outra forma, esse sonho, e vamos chegar ao sonho em um momento, está às custas do negro americano. Você assistiu a isso no Deep South[3] com grande alívio. Mas não apenas no Deep South. No Deep South, você está lidando com um xerife ou um senhorio, ou uma senhoria ou uma garota do balcão da Western Union, e ela não sabe exatamente com quem está lidando, com isso quero dizer, se você não uma parte da cidade, e se você é um negro do norte, isso se mostra de milhões de maneiras. Então ela simplesmente sabe que é uma quantidade desconhecida, e ela não quer ter nada a ver com isso porque ela não quer falar com você, você tem que esperar um pouco para receber o seu telegrama. OK, todos nós sabemos disso. Todos nós já passamos por isso e, quando você se torna um homem, é muito fácil de lidar. Mas o que está acontecendo com a pobre mulher, a mente do pobre é o seguinte:

Bem, sugiro que, de todas as coisas terríveis que podem acontecer a um ser humano, essa é uma das piores. Eu sugiro que o que aconteceu com os sulistas brancos é, de certa forma, afinal, muito pior do que o que aconteceu com os negros lá porque o xerife Clark em Selma, Alabama, não pode ser considerado – você sabe, ninguém pode ser considerado um monstro total[4]. Tenho certeza que ele ama sua esposa, seus filhos. Tenho certeza, você sabe, ele gosta de ficar bêbado. Afinal, é preciso presumir que ele é visivelmente um homem como eu. 

Xerife Jim Clark – Fonte – Wikipédia.

Mas ele não sabe o que o leva a usar o porrete, a ameaçar com a arma e a usar o aguilhão. Algo terrível deve ter acontecido a um ser humano para poder colocar um aguilhão no peito de uma mulher, por exemplo. O que acontece com a mulher é horrível. O que acontece ao homem que o faz é, de certa forma, muito pior. Afinal, isso está sendo feito não há cem anos, mas em 1965, em um país que é abençoado com o que chamamos de prosperidade, uma palavra que não examinaremos muito de perto; com um certo tipo de coerência social, que se autodenomina uma nação civilizada e que defende a noção da liberdade do mundo. E é perfeitamente verdade do ponto de vista agora simplesmente de um negro americano. 

Qualquer negro americano que assista a isso, não importa onde esteja, do ponto de vista do Harlem, que é outro lugar terrível, tem que dizer a si mesmo, apesar do que o governo diz – o governo diz que não podemos fazer nada a respeito – mas se aquelas pessoas fossem brancas sendo assassinadas nas fazendas de trabalho do Mississippi, sendo levadas para a prisão, se aquelas fossem crianças brancas correndo para cima e para baixo nas ruas, o governo encontraria alguma maneira de fazer algo a respeito. 

Temos um projeto de lei de direitos civis agora em que uma emenda, a décima quinta emenda, quase cem anos atrás – odeio soar novamente como um profeta do Velho Testamento – mas se a emenda não fosse honrada então, eu teria qualquer razão para acreditar no projeto de lei de direitos civis será honrado agora. E depois de todos estarem lá, desde antes, sabe, muitas outras pessoas chegaram lá. Se é preciso provar o título de propriedade da terra, quatrocentos anos não bastam? Quatrocentos anos? Pelo menos três guerras? O solo americano está cheio de cadáveres de meus ancestrais. Por que é minha liberdade ou minha cidadania, ou meu direito de viver lá, como isso é concebivelmente uma questão agora? E eu sugiro ainda, e da mesma forma, a vida moral dos xerifes do Alabama e das pobres senhoras do Alabama – senhoras brancas – suas vidas morais foram destruídas pela praga chamada cor.

Correndo o risco de soar excessivo, o que sempre senti, quando finalmente deixei o país, e me encontrei no exterior, em outros lugares, e observei os americanos no exterior – e esses são meus compatriotas – e me preocupo com eles, e até mesmo se eu não fiz, há algo entre nós. Temos a mesma abreviatura, eu sei, se eu olhar para um menino ou uma menina do Tennessee, de onde eles vieram no Tennessee e o que isso significa. 

Nenhum inglês sabe disso. Nenhum francês, ninguém no mundo sabe disso, exceto outro homem negro que vem do mesmo lugar. Observamos essas pessoas solitárias negando o único parente que possuem. Falamos sobre integração na América como se fosse um grande enigma novo. 

O problema na América é que estamos integrados há muito tempo. Coloque-me ao lado de qualquer africano e você verá o que quero dizer. Minha avó não era uma estupradora. O que não enfrentamos é o resultado do que fizemos. O que se leva o povo americano a fazer por todos nós é simplesmente aceitar nossa história. Eu estava lá não apenas como escrava, mas também como concubina. Afinal, conhece-se o poder que pode ser usado contra outra pessoa se você tiver poder absoluto sobre essa pessoa.

Ao observar os americanos na Europa, pareceu-me que o que eles não sabiam sobre os europeus era o que não sabiam sobre mim. Eles não estavam tentando, por exemplo, ser desagradáveis ​​com a garota francesa ou rudes com o garçom francês. Eles não sabiam que feriam seus sentimentos. Eles não tinham nenhum senso de que essa mulher em particular, este homem em particular, embora falassem outra língua e tivessem maneiras e maneiras diferentes, era um ser humano. 

E eles andaram por cima deles, o mesmo tipo de ignorância branda, condescendência, charme e alegria com que sempre me deram tapinhas na cabeça e me chamaram de Shine e ficavam chateados quando eu ficava chateado. O que é relevante nisso é que enquanto há quarenta anos, quando nasci, a questão de ter que lidar com o que não é dito pelo subjugado, o que nunca é dito ao mestre, de ter que lidar com essa realidade era uma possibilidade muito remota. Não estava na mente de ninguém. 

Quando eu era criança, aprendi nos livros de história americanos que a África não tinha história, nem eu. Que eu era um selvagem de quem quanto menos falava melhor, que fora salvo pela Europa e trazido para a América. E, claro, eu acreditei. Eu não tive muita escolha. Esses eram os únicos livros que existiam. Todos os outros pareciam concordar.

Se você sair do Harlem, sair do Harlem, no centro da cidade, o mundo concorda que o que você vê é muito maior, mais limpo, mais branco, mais rico e mais seguro do que onde você está. Eles recolhem o lixo. Obviamente, as pessoas podem pagar seu seguro de vida. Seus filhos parecem felizes e seguros. Você não é. E você volta para casa, e parece que, é claro, que é um ato de Deus que isso seja verdade! Que você pertence ao lugar onde os brancos o colocaram.

Somente a partir da Segunda Guerra Mundial que existe uma contra imagem no mundo. E essa imagem não surgiu por meio de qualquer legislação ou parte de qualquer governo americano, mas pelo fato de que a África de repente estava no palco do mundo, e os africanos tinham que ser tratados de uma forma que nunca haviam sido tratados antes. Isso deu a um negro americano, pela primeira vez, uma sensação de si mesmo além do selvagem ou do palhaço. Ele criou e criará muitos enigmas. 

Uma das grandes coisas que o mundo branco não sabe, mas acho que sei, é que os negros são como todo mundo. Utilizou-se o mito do negro e o mito da cor para fingir e supor que se tratava, essencialmente, de algo exótico, bizarro e praticamente, segundo as leis humanas, desconhecido. Infelizmente, isso não é verdade. Também somos mercenários, ditadores, assassinos, mentirosos. Nós também somos humanos.

O que é crucial aqui é que, a menos que consigamos aceitar, estabelecer algum tipo de diálogo entre aquelas pessoas que eu finjo que pagaram pelo sonho americano e aquelas outras pessoas que não o realizaram, estaremos em apuros terríveis. 

Quero dizer, enfim, o último, é isso que mais me preocupa. Estamos sentados nesta sala, e todos nós somos, pelo menos eu gostaria de pensar que somos relativamente civilizados, e podemos conversar uns com os outros. Pelo menos em certos níveis para que possamos sair daqui presumindo que a medida de nossa iluminação, ou pelo menos, nossa polidez, tem algum efeito no mundo. Pode não ser.

Foto da visita de Bobby Kennedy a Natal, junto a com a sua esposa Ethel, em 1965.

Lembro-me, por exemplo, quando o ex-procurador-geral, senhor Robert Kennedy, disse que era concebível que em quarenta anos, na América, pudéssemos ter um presidente negro. Isso soou como uma declaração muito emancipada, suponho, para os brancos. Eles não estavam no Harlem quando essa declaração foi ouvida pela primeira vez. E eles não estão aqui, e possivelmente nunca ouvirão as risadas e a amargura e o desprezo com que esta declaração foi saudada. 

Do ponto de vista do homem da barbearia do Harlem, Bobby Kennedy[5] só chegou aqui ontem e já está a caminho da presidência. Estamos aqui há quatrocentos anos e agora ele nos diz que talvez daqui a quarenta anos, se você for bom, podemos deixá-lo se tornar presidente.

O que é perigoso aqui é se afastar de – se afastar de – qualquer coisa que qualquer americano branco diga. O motivo da hesitação política, apesar do deslizamento de terra de Johnson, é que um foi traído por políticos americanos por muito tempo. E eu sou um homem adulto e talvez eu possa argumentar com isso. Eu certamente espero que possa ser. 

Martin Luther King em Washington – Fonte – Wikipédia.

Mas eu não sei, e nem Martin Luther King[6], nenhum de nós sabe como lidar com aquelas outras pessoas que o mundo branco ignorou por tanto tempo, que não acreditam em nada que o mundo branco diz e não acreditam inteiramente qualquer coisa que eu ou Martin estivermos dizendo. E não se pode culpá-los. Você observa o que aconteceu com eles em menos de vinte anos.

Parece-me que a cidade de Nova York, por exemplo – este é o meu último ponto – há muito tempo tem negros nela. Se a cidade de Nova York foi capaz, como de fato tem sido capaz, nos últimos quinze anos de se reconstruir, demolir prédios e levantar outros novos, no centro da cidade e por dinheiro, e não fez nada exceto construir conjuntos habitacionais no gueto para os negros. E, claro, os negros odeiam. 

Atualmente, a propriedade realmente se deteriora porque as crianças não podem suportá-la. Eles querem sair do gueto. Se as pretensões americanas estivessem baseadas em uma avaliação mais sólida e honesta da vida e de si mesmos, não significaria para os negros quando alguém disser “renovação urbana” que os negros podem simplesmente ser jogados na rua. Isso é exatamente o que significa agora. Este não é um ato de Deus. 

Estamos lidando com uma sociedade feita e governada por homens. Se o negro americano não estivesse presente na América, estou convencido de que a história do movimento operário americano seria muito mais edificante do que é. É uma coisa terrível para um povo inteiro se render à noção de que um nono de sua população está abaixo deles. 

E até aquele momento, até que chegue o momento em que nós, os americanos, nós, o povo americano, possamos aceitar o fato, que eu tenho que aceitar, por exemplo, que meus ancestrais são brancos e negros. Que naquele continente estamos tentando forjar uma nova identidade para a qual precisamos uns dos outros e que não estou sob a tutela da América. 

Não sou objeto de caridade missionária. Eu sou uma das pessoas que construiu o país – até o momento, quase não há esperança para o sonho americano, porque as pessoas a quem é negada a participação nele, por sua própria presença, irão destruí-lo. E se isso acontecer, é um momento muito grave para o Ocidente.

Obrigado.

NOTAS

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[1] Escritor e dramaturgo, é considerado um dos maiores escritores nascido nos Estados Unidos no século XX, Baldwin abriu novos caminhos literários com a exploração de questões raciais e sociais em suas muitas obras. Ele era especialmente conhecido por seus ensaios sobre a experiência negra na América.

[2] Escritor, intelectual e comentarista político americano. Fundou a revista National Review em 1955, tendo grande impacto no estímulo ao pensamento conservador nos Estados Unidos. Ele apresentou 1.429 edições do programa de televisão “Firing Line” entre 1966 e 1999, onde ficou conhecido por seu sotaque distinto e amplo vocabulário. Ele escreveu colunas para vários jornais e vários romances de espionagem. Seu estilo de escrita era conhecido pela eloquência e sagacidade.

[3] O Deep South é uma sub-região cultural e geográfica no sul dos Estados Unidos. O termo foi usado pela primeira vez para descrever os estados daquele país mais dependentes de plantações e escravidão durante o período inicial da história dos Estados Unidos. A região sofreu dificuldades econômicas após a Guerra Civil Americana e foi (e ainda é) um importante local de tensão racial. O Movimento dos Direitos Civis nas décadas de 1950 e 1960 ajudou a inaugurar uma nova era, às vezes chamada de Novo Sul.

[4] Baldwin se refere ao xerife Jim Clark, da cidade de Selma, Alabama, que entre 7 e 25 de março de 1965 usou de extrema violência contra os participantes de três marchas pacíficas, organizadas pelos manifestantes pelos direitos civis, na Estrada 54, que liga a cidade de Selma a Montgomery, capital do Alabama. Após as cenas das ações por ele comandada terem sido divulgadas em cadeia nacional de TV, Lyndon B. Johnson, o então presidente dos Estados Unidos, emitiu uma declaração imediata “deplorando a brutalidade com que vários cidadãos negros do Alabama foram tratados”.

[5] Robert Francis Kennedy, apelidado de Bobby e também RFK, foi procurador-geral dos Estados Unidos de 1961 até 1964 tendo sido um dos primeiros a combater a Máfia, e Senador por Nova Iorque de 1965 até seu assassinato em junho de 1968. Ele foi um dos dois irmãos mais novos do presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy.

[6] Martin Luther King Jr. foi um pastor batista e ativista político estadunidense que se tornou a figura mais proeminente e líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos de 1955 até seu assassinato em 1968.

PARA NUNCA SER ESQUECIDO – AUSCHWITZ: IMAGENS DE ONTEM E DE HOJE

Entrada de Auschwtitz – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Dedico esse texto ao meu amigo Gilad Salomon, cujos antepassados fugiram da Europa antes da Shoah e buscaram em uma pequena capital do Nordeste do Brasil, cujo nome evoca uma das principais festas da cristandade, algo imprescindível para seguir adiante na aventura da vida – Paz.

Tenho orgulho de fazer parte dessa comunidade que tão bem os acolheu.

Entrada ferroviária de Auschwitz – Fonte – en.auschwitz.org

Um dos pilares fundamentais do nazismo na Alemanha foram seus campos de concentração e a aniquilação física dos seus inimigos políticos ou raciais. Eram espaços onde as pessoas ficaram detidas ou confinadas, geralmente em condições de vida adversas e sem respeito algum pelos seus direitos ou pelas normas legais básicas de detenção ou encarceramento, onde eram mortos sem nenhuma defesa legal.

Os primeiros campos de concentração na Alemanha (Konzentrationslager; KL ou KZ) foram criados após a chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933. Nesses primeiros centros foram mantidos presos aqueles considerados inimigos políticos do regime, principalmente membros do Partido Socialista e do Partido Comunista Alemão.

Desfile em carro aberto de Adolf Hitler – Fonte – BBC

Sua organização era dirigida pela SA (grupo paramilitar do partido nazista) e pela polícia. Aos poucos, os nazistas dissolveram a maioria dos primeiros campos e os substituiram por grandes campos de concentração centralizados e campos de trabalho sob a jurisdição exclusiva da SS comandados por Heinrich Himmler, um dos principais líderes da Alemanha de Hitler. A SS, ou Schutzstaffel  (Esquadrões de defesa), foi a guarda de elite do estado nazista. Uma organização militar do Terceiro Reich com funções políticas, policiais e de segurança, que também desempenharam o trabalho prisional por meio da administração e vigilância dos campos de concentração.

Em 1939 existiam seis campos principais: Dachau, o único existente desde 1933 e um modelo para os demais, Sachsenhausen (1936), Buchenwald (1937), Flossenbürg (1938), Mauthansen (1938) e Ravensbrück (1939).

Himmler inspeciona um campo de prisioneiros de guerra na Rússia, por volta de 1941 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Heinrich_Himmler

Com o início da Segunda Guerra Mundial em setembro de 1939, as conquistas territoriais nazistas fizeram surgir novos problemas, como a necessidade de encarcerar grupos de inimigos infinitamente mais numerosos. O sistema de campos de concentração rapidamente se espalhou pelo Leste Europeu e adquiriu dimensões dantescas com o surgimento dos campos de extermínio.

Em julho de 1941, Heinrich Himmler confiou a Reinhard Heydrich, um dos principais chefes da SS, a elaboração de um plano para a “Solução final da questão judaica”, que consistia basicamente na criação de métodos para a aniquilação biológica dos judeus.

Reinhard Heydrich – Fonte – https://br.pinterest.com/pin/780319072907723525/

Em 20 de janeiro de 1942 celebra-se em um subúrbio de Berlin a Conferência Wannsee.  Os participantes incluíram representantes de vários ministérios do governo, além de outros representantes da SS. No decorrer da reunião, Heydrich descreveu de forma clara e sistemática como os judeus europeus seriam presos e enviados para os campos de extermínio para serem mortos. A partir desse momento nomes como Auschwitz, Chelmno, Belzec, Sobibor, Treblinka, Majdanek e outros se tornariam conhecidos naquilo que hoje denominamos de Holocausto.

Local onde se realizou a conferência de Wannsee – Fonte – https://www.coisasjudaicas.com/2013/08/a-conferencia-de-wannsee.html

Nesses locais o objetivo não era apenas maltratar ou aniquilar inimigos lentamente com trabalhos forçados, mas simplesmente exterminar o maior número de pessoas e no menor tempo possível.

Os alemães começaram aplicando técnicas de extermínio antes utilizadas em menor escala, tais como a asfixia em caminhões especiais com os gases causados ​​pela combustão do motor. Mas para exterminar seres humanos em escala industrial, esse método era ineficiente e os nazistas acabaram desenvolvendo um sistema organizado que utilizava o gás Zyklon B como meio de alcançar seus objetivos. Essa era a marca registrada de um pesticida a base de ácido cianídrico, cloro e nitrogênio. Seu nome derivava dos substantivos alemães dos ingredientes principais e a letra B existia para apontar uma de suas diferentes concentrações. Este composto foi escolhido por proporcionar, com eficiência, uma morte rápida em câmaras de gás que comportavam centenas de pessoas, cujos restos depois foram destruídos nos chamados fornos crematórios.

Rótulos de Zyklon usados ​​como evidência nos julgamentos de Nuremberg ; o primeiro e o terceiro painéis contêm informações do fabricante e o nome da marca, o painel central diz “Gás venenoso! Preparação de cianeto para ser aberto e usado apenas por pessoal treinado” – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Zyklon_B

Nos campos de extermínio mais de seis milhões de pessoas foram mortas, a maioria deles judeus vindos da Europa Oriental. Mas centenas de milhares de prisioneiros russos, ciganos, prisioneiros políticos, homossexuais, Testemunhas de Jeová e outros considerados indesejáveis pelo Partido Nazista pereceram nesses locais.

O COMPLEXO AUSCHWITZ

De todos os campos de extermínio destaca-se Auschwitz, onde mais de um milhão e meio de pessoas foram assassinadas entre 1941 e 1944. Foi o maior complexo de campos de concentração criado pela Alemanha Nazista. Ficava localizado no sul da Polônia, em uma localidade a cerca de a 50 quilômetros da cidade de Cracóvia, perto da comunidade de Oswiecim, não muito distante da fronteira com a Alemanha, no território polonês anexado pelo Terceiro Reich.

Mapa do Holocausto na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, 1939–1945, com destaque em vermelho para Auschwitz – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp#/media/File:AerialAuschwitz1944.jpg

Auschwitz era realmente um complexo composto de três campos principais.

Auschwitz I foi o campo de concentração original e serviu como centro administrativo de todo o complexo. Nesse campo morreram prisioneiros políticos poloneses, prisioneiros de guerra soviéticos e sua construção começou em maio de 1940. No hospital de Auschwitz I, médicos da SS realizaram experimentos em crianças, gêmeos, anões, esterilizações forçadas, castrações e experiências de hipotermia em adultos. O mais conhecido médico a participar desses experimentos foi o capitão Josef Mengele.

Auschwitz II (Birkenau) foi um campo de extermínio que nasceu em outubro de 1941 e onde a maioria das pessoas que ali colocaram os pés naquela época foi assassinada. A primeira câmara de gás temporária tornou-se operacional em janeiro de 1942 e no final do ano seguinte já havia quatro estruturas de aniquilação, incluindo uma sala de decapagem, uma câmara de gás e um crematório.

Auschwitz I, 4 de abril de 1944 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp#/media/File:AerialAuschwitz1944.jpg

Os recém-chegados a Auschwtitz-Birkenau tiveram que passar por um processo de triagem para determinar se estavam aptos aos trabalhos forçados ou se eram imediatamente enviados as câmaras de gás, que foram disfarçadas de chuveiros para enganar as vítimas. A maioria dos prisioneiros era imediatamente morta. Os objetos pessoais das vítimas foram confiscados e classificados na seção conhecida como Kanada para serem enviados à Alemanha. Para os prisioneiros, o Kanada representava riqueza. Ali os casos de corrupção na SS eram frequentes e muitos desses objetos pessoais foram roubados pelos guardas.

Heinrich Himmler (segunda à esquerda) visita a fábrica da IG Farben em Auschwitz III, em julho de 1942 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Auschwitz III (Monowitz) foi um campo de trabalhos forçados da empresa IG Farben, uma empresa química alemã. Periodicamente a SS verificava o estado de saúde dos trabalhadores escravos e os mais fracos eram encaminhados para as câmaras de gás.

O complexo de Auschwitz foi primeiramente liderado pelo tenente-coronel da SS Rudolf Höss até novembro de 1943, quando foi substituído pelo capitão Josef Kramer. A partir do final de 1943 o complexo de extermínio ficou sob o comando do tenente-coronel Arthur Liebehenschel. Todos três comandantes de Auschwitz morreram na forca entre 1945 e 1948.

A CHEGADA

O portão de Auschwitz II , também conhecido como Auschwitz II-Birkenau, um campo de extermínio alemão nazista na Polônia ocupada durante o Holocausto – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

“Mil e quinhentas pessoas viajaram de trem por vários dias e suas noites correspondentes. Cada vagão estava lotado com 80 pessoas deitadas em cima de suas bagagens (…) Todos acreditávamos e esperávamos que nosso destino fosse uma fábrica de munições onde, simplesmente, eles nos obrigavam aos trabalhos forçados (…) De repente, um grito angustiado escapou da garganta dos passageiros: Há uma placa que diz Auschwitz!” (Livro – A busca do homem por sentido, de Viktor Frankl).

Ao longo dos anos, centenas de trens chegaram a Auschwitz carregados de judeus e indesejados de toda a Europa, especialmente poloneses e húngaros, mas também franceses, holandeses, gregos, tcheco-eslovacos e de outros países.

Recém-chegados, Auschwitz II-Birkenau, maio / junho de 1944 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Os deportados não sabiam do seu destino e que a morte os esperava, acreditavam que iam para um local onde iriam realizar trabalhos de vários tipos. A transferência massiva foi realizada em trens que puxavam vagões de gado, onde centenas de seres humanos se aglomeraram quase sem aberturas para o exterior e sem acesso a água ou comida durante todo o trajeto. Muitos morreram, especialmente se a viagem fosse longa, pois seguiram os trechos de pé e sem local para se aliviar de suas necessidades fisiológicas. Os trens chegavam lotados e sempre voltavam vazios, o que logo chamou a atenção de quase todos, principalmente dos moradores das cidades vizinhas.

Ao chegar a Auschwitz os prisioneiros saíam dos vagões e eram forçados pelos guardas SS a formarem enormes filas, em meio a intimidações, pancadas e latidos de cães enfurecidos. Em seguida tiveram que abandonar suas bagagens, que foram recolhidas e levadas ao bloco Kanada, onde seriam saqueados de todos os tipos de valores.

maio / junho de 1944, com o portão em segundo plano. “Seleção” de judeus húngaros para o trabalho ou a câmara de gás – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Posteriormente as colunas de homens e mulheres (separadamente) eram submetidas a uma seleção, onde os nazistas determinavam aqueles que não estavam aptos para o trabalho (fracos, doentes, crianças pequenas, mulheres com filhos, idosos e deficientes), que seriam eliminados rapidamente nas câmaras de gás. Os adultos considerados aptos para os trabalhos forçados tinham um número tatuado no antebraço e ficavam assim registrados. Em seguida eles eram desinfetados, barbeados e submetidos a chuveiros frios. Depois recebiam um uniforme de prisioneiro com as clássicas listras azuis, embora os prisioneiros russos pudessem usar seus uniformes, como forma de economizar dinheiro.

Uniforme de Auschwitz – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Os prisioneiros então passavam para um bloco especial de quarentena, onde esperavam semanas por seu destino final, ou algum trabalho no campo. O tratamento era brutal e alguns eram torturados ou espancados por prazer. Aqueles que não tinham uma função não demoravam muito em Auschwitz.

“Mandavam-nos deixar os nossos pertences e formar fileiras, uns de homens e outras de mulheres (…)  A fileira dos homens era comandada por um oficial imaculadamente uniformizado e que apontava com um dedo para que direção certos presos deviam tomar. Um amigo me disse para ficar de pé e parecer saudável, porque a fila da direita era fatal (…) o policial com o dedo brincalhão me apontava para o corredor da esquerda, enquanto para o meu amigo foi apontado o da direita ( …) Depois de um tempo perguntei a um conhecido do dormitório o que havia acontecido com meu amigo, ele me perguntou se o tinham feito descer o corredor da direita, ao que afirmei, meu companheiro olhou por uma janela estreita e apontou para uma chaminé distante de onde saía uma fumaça enegrecida, seu amigo já está no céu (…) demorei a perceber que meu amigo era um dos milhares de infelizes que morreram assim que desceram do trem (…)” (Livro – A busca do homem por sentido, de Viktor Frankl).

Viktor Emil Frankl (1905 – 1997) é reconhecido como um dos maiores psiquiatras da história, criador de um método terapêutico baseado na busca pelo sentido da vida – Fonte – https://www.ebiografia.com/biografia_viktor_frankl_criador_logoterapia/

VIDA NO CAMPO: REPRESSÃO E MORTE

A seleção dos prisioneiros após a chegada a Auschwitz não decide realmente entre a vida e a morte, mas apenas quando o prisioneiro vai morrer.

Dias difíceis de trabalho e de deploráveis ​​condições de vida aguardam os escolhidos, que os levariam mais cedo ou mais tarde à exaustão física. Isso é o que as SS chamavam de “extermínio por trabalho”. Eles trabalharam em indústrias próximas como mão de obra escrava, alugados ou vendidos a empresas em troca de dinheiro (IG Farben, Metall Union, Siemens), ou na construção e reparo de infraestrutura (edifícios, estradas, etc.).

Os prisioneiros foram amontoados em barracões de madeira com pouca ventilação e luz. Seu número por cada um desses ambientes dependia do número total de prisioneiros no campo.

Mulheres em Auschwitz II, maio de 1944 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Em Auschwitz I os presos ficavam em blocos de tijolos, em Auschwitz II havia casernas de tijolo e madeira, com um quarto para os Kapos (prisioneiros judeus que trabalhavam como guardas em troca de benefícios). Quando havia muitos presos, em cada área de beliches se espremiam para dormir 45 pessoas em vez de 15. Algumas vezes as camas eram cobertas com palha, outras com sacos cheios de palha ou aparas. Havia alguns cobertores sujos e puídos. Não havia instalações sanitárias. Eles se aliviavam em latrinas primitivas e desprotegidas, saturadas e fedorentas e, em meio à sujeira e aos cheiros terríveis os ratos vagavam livremente. A umidade e o frio prejudicavam a saúde. Raramente podiam tomar banho: quando podiam, eram empurrados nus para os banhos frios.

Às 4 da manhã os Kapos os acordavam com o som de seus apitos. Os prisioneiros então tomariam um café ou chá. Depois de alinhados uma contagem era feita e na sequência seguiam para o trabalho que durava exaustivas 11 horas. Em um breve intervalo os detidos comiam um pouco de batata, ou sopa de casca de batata. A comida era muito escassa e, para obtê-la, era preciso enfrentar longas e extenuantes filas. Devido à sua escassez, os últimos frequentemente ficavam sem comida. Quando voltavam o número de prisioneiros era revisado. Se por qualquer razão houvesse alguma falta, as filas eram prolongadas por várias horas como punição. À noite comiam pão com linguiça, ou manteiga, e às 9 horas era proibido sair dos seus barracões sob pena de morte.

Mulheres e crianças judias da Hungria caminhando em direção à câmara de gás, Auschwitz II, maio / junho de 1944 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

As catastróficas condições higiênicas, nutricionais e o excesso de trabalho permitiram a propagação de doenças que causaram enorme mortalidade, tornando-se mais uma forma de extermínio. As doenças mais comuns foram tifo, disenteria, malária, tuberculose, debilidade geral por exaustão, anemia e infecções causadas pelo trabalho e não tratadas. Os médicos selecionavam periodicamente enfermeiras para a câmara de gás, para dar lugar a uma nova prisioneira mais apta.

Em uma hierarquia entre os detidos, aqueles que ocupavam os postos mais baixos eram os judeus.

Assassinatos públicos eram realizados para manter os prisioneiros controlados. Eram utilizados fuzilamentos, enforcamentos, ou chicotadas até a morte com os detentos amarrados com as mãos por trás e pendurados em vigas, postes e árvores.

Uma das fotografias do Sonderkommando : Mulheres a caminho da câmara de gás, Auschwitz II, agosto de 1944 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Matar por diversão, ou por capricho, também fazia parte do terror infligido aos prisioneiros. Os SS tinham total liberdade sobre a vida dos detidos. Se algum dos prisioneiros se cansasse ao executarem uma tarefa, poderiam ser mortos sem compaixão. Às vezes os guardas misturavam ordens contraditórias e, portanto, tinha um pretexto para o assassinato, o que provocava terror nos sobreviventes.

Depois de três a seis meses, o prisioneiro geralmente estava no fim de suas forças. Se ele não morresse, ou se suicidasse atirando-se contra o arame farpado eletrificado, ou procurasse de todo jeito levar um tiro dos guardas, era classificado como impróprio para o trabalho em uma seleção posterior. Então era morto na câmara de gás.

Judeus na rampa de seleção em Auschwitz II , em maio de 1944. Mulheres e crianças estão enfileiradas de um lado, homens do outro, esperando que a SS determine quem está apto para o trabalho. Cerca de 20% em Auschwitz foram selecionados para o trabalho e o restante seguiram para as câmaras de gás – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/The_Holocaust

Se a cota de assassinatos diários não fosse atingida, uma cabana era escolhida a esmo e todos os seus inquilinos eram eliminados. Só tinha chance de sobreviver quem conseguiu um cargo na administração do campo, na enfermaria, na cozinha, ou trabalhava como um kapo.

Nos primeiros meses de 1944 quatro grandes câmaras de gás estavam operando plenamente. Este maquinário do terror superou todas as previsões, atingindo 8.000 vítimas por dia, que foram depois cremadas. Naquela época, o pico de chegada de trens carregados de judeus em Auschwitz foi atingido.

Os crematórios II e III e suas chaminés são visíveis ao fundo, à esquerda e à direita – Fonte –

Nas operações das câmaras de gás e fornos crematórios estavam unidades de trabalho compostas por prisioneiros e chamadas Soderkommandos. A situação deles era terrível, pois tinham que levar os prisioneiros – às vezes parentes ou amigos – para a câmara de gás. Depois tinham de retirar os corpos, revistá-los em busca de objetos de valor e finalmente incinerá-los nos fornos crematórios. Se revelassem a função das câmeras aos presos, eram executados, às vezes cremados vivos. Se eles não aceitassem a tarefa eram mortos. A cada três ou quatro meses eram eliminados e substituídos por outro novo grupo.

Outros prisioneiros tiveram uma morte mais cruel nas mãos dos médicos da SS. Estes profissionais da medicina, além de cuidar da seleção dos prisioneiros adequados para o trabalho escravo e supervisionar as execuções, realizaram testes ditos “científicos” com seres humanos vivos no bloco 10 de Auschwitz.

Bloco 10 , Auschwitz I, onde experimentos médicos foram realizados em mulheres – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Alguns prisioneiros tornaram-se cobaias em pesquisas sobre tratamentos com certos tipos de drogas, ou em experimentos voltados para a procriação da raça ariana e sua pureza. Nessa área ficou célebre a brutalidade de Joseph Mengele, que trabalhou em estudos genéticos e escolheu gestantes, crianças, gêmeos, deficientes físicos e anões para investigar. Ele até abriu a carcaça de prisioneiros vivos e também injetou mercúrio em fetos.

“Logo você estava se entendendo e se imergindo na situação e adotando palavras usadas no campo. Uma delas que merece destaque foi a expressão: atirar-se contra o arame farpado. Ela significava suicídio já que os portões estavam eletrificados e atirar-se contra eles era autodestruição. Como prisioneiro fui tentado a cometer este último ato, porém, como mais cedo ou mais tarde todos tínhamos a certeza do nosso fim, decidi que era o destino que tomaria essa decisão (…) A verdade é que não agradeço suicidar-me, porque fui um dos poucos sobreviventes desta enorme tragédia chamada Holocausto. ” (Livro – A busca do homem por sentido, de Viktor Frankl).

Da esquerda para a direita Richard Baer (comandante de Auschwitz em maio de 1944), Josef Mengele (médico do campo) e Rudolf Höss (primeiro comandante) em Solahütte , um resort SS perto de Auschwitz, verão de 1944 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

O complexo de Auswichtz estava sob o controle da SS. Em Auschwitz serviram 6.500 membros das SS, realizando todo tipo de tarefas destinadas à operação e vigilância dos campos. A existência de um campo feminino em Auschwitz II também implicava a existência de mais de 200 mulheres SS (Aufseherin).

Sempre junto aos SS estavam os Kapos. O tratamento desumano infligido Por esses dois grupos aos prisioneiros espancamentos, privação de alimentos, chicotadas, celas de punição tão estreitas que ninguém conseguia ficar em pé. Isso tudo criou uma atmosfera de terror permanente que destruiu os prisioneiros. Em troca os Kapos recebiam roupas melhores, cigarros e uma alimentação mais farta e, portanto, maior esperança de sobrevivência.

O FINAL

Soldados do Exército Vermelho soviético conversando com crianças recém-libertadas do campo de concentração de Auschwitz- Fonte – https://www.struggle-la-lucha.org/2020/02/07/on-the-75th-anniversary-of-the-liberation-of-auschwitz-fascism-and-the-triumph-of-revolution/

Em meados de janeiro de 1945, as forças soviéticas se aproximaram de Auschwitz e as SS começaram a evacuar o campo e os subcampos próximos. Milhares de prisioneiros foram mortos e 60.000 foram forçados a marchar em várias direções, especialmente para o oeste. Foi uma das mais importantes “marchas da morte” lançadas dos campos de concentração no final da guerra. Marchas cansativas, onde qualquer um que ficasse para trás ou que não pudesse continuar era baleado. Durante essas marchas, os presos sofreram fome e frio em meio ao mau tempo. Mais de 15.000 prisioneiros morreram nessas marchas.

Ao chegarem ao destino, embarcaram em trens que os levaram a outros campos na região central da Alemanha (Buchenwald, Sachsenhausen, Dachau, etc.). Por dias e sem comida ou água, muitos morreram na jornada.

Quando os soviéticos entraram no complexo de Auschwitz em janeiro de 1945, eles encontraram um quadro absolutamente desolador com 7.000 prisioneiros, a maioria deles doentes e moribundos.

Forca em Auschwitz I, onde Rudolf Höss foi executado em 16 de abril de 1947 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Auschwitz_concentration_camp

Depois da guerra, os soviéticos prenderam a maior parte do pessoal do complexo, que foram julgados pelas autoridades russas ou entregues aos tribunais poloneses. Rudolf Hoss foi capturado pelos britânicos e enviado à Polônia, onde foi julgado e enforcado em dezembro de 1947, nas mesmas instalações de Auschwitz. No total, 750 membros das SS foram julgados e alguns executados como resultado.

AUSCHWITZ ATUALMENTE

Hoje, Auschwitz é um dos grandes centros turísticos da Polônia e foi declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO.

Alunos do Holocaust Educational Trust (HET) em Auschwitz. Crédito da foto: Yakir Zur

Mais de um milhão e meio de pessoas o visitam todos os anos, especialmente no verão, e centenas de voos charters chegam à vizinha Cracóvia de todo o mundo (Europa, Estados Unidos, Israel especialmente). Para muitos, essa superlotação supõe a banalização da morte, transformada em um grande espetáculo, onde milhares de pessoas impulsivamente tiram fotos de lembrança.

Muitos sociólogos encontram uma explicação para a atração desses lugares para o turismo de massa: isso lembra o quão privilegiado você é, quando se lembra de tanto horror. As pessoas ficam aliviadas, felizes por não ter chegado a sua vez, e também sabem que, quando quiserem, podem sair e voltar para a segurança de suas próprias vidas. Esse turismo de massa também não ajuda a conservação das instalações que começam a correr sério risco de deterioração. Os barracões onde ficaram os prisioneiros, construídos com tijolos vermelhos e vigas de madeira, foram erguidos rapidamente e sem intenção de durar, pois seus habitantes seriam exterminados. Agora eles se desfazem com o passar do tempo.

Por outro lado, devemos compreender a importância de Auschwitz na preservação da memória, pois é um poderoso testemunho visual dos crimes ali cometidos e, especialmente, seu papel na sensibilização dos homens em face dos horrores do nazismo e da guerra.

Nesse sentido, Auschwitz é um antídoto para a barbárie: quem a visita fica marcado e chocado para sempre, porque se habitua à ideia do horror aí vivido. Visto desta forma, a chegada massiva de turistas é positiva e salvar Auschwitz torna-se uma necessidade. Não em vão esse lugar é o grande testemunho do Holocausto.

Um momento de partir o coração , captado a partir de de uma foto da SS de judeus húngaros em #Auschwitz II-Birkenau. Uma criança encontrou uma flor na grama e a está dando, ou mostrando, a um menino mais velho. Todas as pessoas nesta foto foram mortas com gás momentos depois.

Não há restos dos campos de extermínio de Treblinca, Kulmhof, Sobibor ou Belzec, que foram destruídos pelos nazistas com a intenção de esconder seus crimes. No entanto Auschwitz, o maior deles, mantém suas estruturas originais. Os alemães explodiram as câmaras de gás e queimaram alguns armazéns enquanto o Exército Vermelho se aproximava, mas sua retirada foi precipitada e caótica, e eles falharam em destruir tudo.

Conservam-se inúmeros testemunhos de sobreviventes dos campos, muitos deles coletados na página do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington.

Em tempo, a palavra Shoah é como os judeus denominam o Holocausto.

Modernos caças F-15 Eagles da Força Aérea Israelense sobrevoam Auschwitz II-Birkenau, em 2003 – Fonte – https://wordpress.com/block-editor/post/tokdehistoria.com.br/24537
Fonte – Material produzido a partir dos textos de Jose Antonio Doncel Domínguez, de Villanueva de la Serena, Badajoz, Estremadura, Espanha. Disponíveis nos endereços eletrônicos
http://jadonceld.blogspot.com/2012/05/auschwitz-imagenes-de-ayer-y-de-hoy.html
http://jcdonceld.blogspot.com/2012/01/campos-de-concentracion-y-exterminio-de.html

O QUE A FEB ENSINOU SOBRE DIVERSIDADE RACIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Ilustração existente na página 27 do livro “Brazilian Expeditionary Force in Wolrd War II”, de César Campiani Maximiano e Ricardo Bonalume, que mostra o soldado Francisco de Paula municiando um obuseiro de 105 m.m. na Itália, em setembro de 1944.

Autora – Paula Mariane, da CNN em São Paulo – 04 de julho de 2020 às 05:00 -Fonte – https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/07/04/o-que-a-feb-ensinou-sobre-diversidade-racial-em-plena-2-guerra-mundial?fbclid=IwAR0028mVMK9Q0bjfbK1uHKGUwTVb848RnfSU-_oFH7T8CjjLMRbj3XGXsxo

Enquanto os debates sobre igualdade racial dominam o debate público no ano em que se comemora os 75 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, é possível destacar que a Força Expedicionária Brasileira (FEB) foi o único contingente racialmente integrado em um conflito em que as tropas dos principais atores do campo de batalha tinham divisões segregadas. E temos muito o que aprender com isso. 

Com um Exército pouco equipado e uma Marinha defasada em termos de tecnologia, parecia óbvio pensar, na época, que seria mais fácil uma “cobra fumar” – expressão que nasce diante de uma descrença pública generalizada – do que o Brasil entrar na 2ª Guerra Mundial. No fim, o maior país da América Latina foi o único do continente a enviar tropas. 

Força Expedicionária Brasileira em acampamento no Campo de Gericinó, no Rio de Janeiro
Foto: Acervo Arquivo Nacional

“A FEB foi uma coisa revolucionária para o Brasil, mas de certa forma ela também foi revolucionária para os aliados. Embora houvesse um racismo velado, como era comum à época, a FEB foi a única tropa aliada racialmente integrada”, explica o historiador e professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) Sandro Teixeira. 

Além da luta contra o nazismo e o fascismo, a segregação racial era uma realidade nas tropas militares – mas este não era o caso da FEB, algo que surpreendeu positivamente os soldados dos Estados Unidos. 

“Você tinha negros e brancos lutando lado a lado, muito diferente do Exército Britânico, que tinha tropas segregadas, do Exército Francês e do Exército Americano”, ressalta.  

Durante parte da campanha, a FEB teve duas divisões americanas que combateram ao lado dos brasileiros, a exemplo da 10ª e da 92ª divisões de Infantaria Americana, que possuíam divisões segregadas entre soldados brancos e soldados negros. 

Força Expedicionária Brasileira em Nápoles, Itália – Foto: Acervo Arquivo Nacional

“Ao ver a FEB com uma divisão integrada, isso pode ter sido uma das chamas que acendeu o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos”, analisa. 

Alvo de notícias

A união dos pracinhas – como os combatentes brasileiros eram chamados – era admirável, e também foi tema de diversas notícias durante a guerra. 

“Todo mundo estava no mesmo barco, todos iriam combater. Digamos que as balas do inimigo não diferem ninguém por cor”, afirma Teixeira. 

“Isso foi alvo de notícias no noticiário oficial do exército americano. Os soldados americanos tinham um jornal que é muito famoso, e existe ainda nos dias atuais, chamado Stars & Stripes. E esse jornal relatava com certo ‘choque’, mas de surpresa mesmo, não de repúdio, o fato de que o Brasil, que era tido como um país atrasado política e tecnologicamente, foi capaz de enviar uma divisão integrada.”

Mais de 25 mil militares compuseram a Força Expedicionária Brasileira – Foto: Acervo Arquivo Nacional

Negociações 

A falta de tecnologia militar era, de fato, um fator preocupante para o Brasil. Desta forma, uma série de negociações feitas com os Estados Unidos possibilitaram que as Forças Armadas brasileiras pudessem ser equipadas e, em contrapartida, a FEB apoiaria os aliados. 

“É o início da nossa industrialização forte. Isso já estava na mentalidade militar, de que um envolvimento nacional era essencial para que o país tivesse segurança. É um ideal muito forte na cabeça dos militares”, afirma o professor. 

Para os EUA, o Brasil era visto “como o gigante da América do Sul, o país que deveria estar ao lado dos Estados Unidos para equilibrar a segurança do hemisfério, ou seja, para impedir que o fascismo viesse para as Américas”, explica Teixeira.

Soldados da FEB durante a Batalha de Monte Castelo, em 1945 – Foto: Acervo/Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX)

Resistência

A participação dos brasileiros na 2ª Guerra Mundial não foi bem vista por todos, em princípio: o país encontrava resistência por parte do Reino Unido, que via sua política externa ameaçada no continente sul-americano. 

“O Reino Unido procurou, de todas as maneiras, tentar vetar a entrada do envio das tropas brasileiras, porque isso, na visão deles, mudaria o papel do Brasil no equilíbrio de forças na América do Sul”, afirma.  

“Com tropas bem equipadas, o Brasil poderia se tornar a grande potência do sul [continente]. Então, havia essa preocupação.”

Aqui vemos o soldado Marcílio Luiz Pinto, de Caconde-SP, o único praça brasileiro agraciado pelo Exército dos Estados Unidos com a medalha Silver Star . Faleceu em 31 de julho de 1993, em Adamantina-SP.

Nazifascismo 

O período entre as duas guerras mundiais foi marcado por uma enorme crise econômica, além de uma descrença nos regimes democráticos, que levaram ao surgimento de ideais extremistas. 

Em 1921, com a ascensão do fascismo na Itália, iniciava-se um período ultranacionalista e autoritário naquele país. “A origem [latina] do nome fascismo vem de ‘fasce’, que era instrumento utilizado na época do Império Romano que simbolizava autoridade e poder”, explica o mestre em História Militar pela Universidade de Lisboa Fábio Laurentino. 

“A sociedade civil num todo se enxerga sem ter no que agarrar politicamente, onde as democracias parecem que falharam”, analisa. “Fascismo é uma ideologia totalitária. São regimes autoritários, que expressam um discurso muito forte, principalmente de ódio.” 

Chegada de 2.760 homens da Força Expedicionária Brasileira pelo navio James Parker, em 1945
Foto: Acervo Arquivo Nacional

Paralelamente, o mesmo sentimento de descrença faz com que o nazismo tome espaço na Alemanha. “Surge o Partido Nazista também no início da década de 1920, com a característica da sociedade alemã ter pedido a fé na força na democracia. Essa descrença é acrescida da supremacia racial”, aponta Laurentino. 

De acordo com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, estima-se que 6 milhões de judeus foram mortos durante o regime nazista. 

O que podemos resgatar da FEB

Mais de sete décadas após o fim da 2ª Guerra Mundial, há muito o que aprender com os mais de 25 mil militares que compuseram a Força Expedicionária Brasileira. E com tudo o que este conflito representou para o mundo: mais de 60 milhões de mortos e um holocausto causador de cicatrizes profundas que seguem nos dias atuais. 

“A diversidade é força. E acho que a força da diversidade que a FEB apresentou, dos soldados que foram lutar pela democracia em um outro continente, enquanto no seu próprio país não havia uma democracia, foi uma das razões para ajudar a redemocratizar o Brasil”, diz Teixeira.

“A integração e a diversidade presentes na tropa talvez tenha sido um elemento-chave para o sucesso dela”, analisa o historiador. “Talvez isso seja algo batido pela nossa história, mas é algo extremamente importante”, diz. 

“Você não tinha tensões raciais. Todos eles ali estavam combatendo, e pelo combate formaram irmãos de armas”, conclui. 

1941 – O ATAQUE DE UM AVIÃO NAZISTA AO CARGUEIRO TAUBATÉ E O PRIMEIRO POTIGUAR A TESTEMUNHAR O HORROR DA SEGUNDA GUERRA

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Rara foto da Historic Images, do Ebay, mostrando o Taubaté danificado dia 22 de fevereiro de 1941. Foto provavelmente batida pelo hidroavião inglês que deu apoio ao navio brasileiro.

Rostand Medeiros – Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

Já faz muito tempo que a terra potiguar é um lugar complicado para quem nasceu por aqui sem um sobrenome familiar nobre, com a coloração mais escura na pele e principalmente sem dinheiro no bolso. Por isso era bem normal, na época em que o transporte marítimo era mais utilizado, que muitos jovens das camadas mais humildes de nossa população se concentrassem no Cais da Tavares de Lira. Local importante de Natal, ali atracavam os antigos navios mistos de passageiros e cargas conhecidos como paquetes, principalmente das empresas Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro e Companhia de Navegação Nacional. Estes jovens então tentavam ganhar alguns trocados carregando malas, transportando mercadorias, ou servindo como os primeiros Guias de Turismo da capital potiguar. Além do mais, está no ponto de embarque e desembarque mais importante da nossa cidade, era onde poderia surgir o que para muitos era uma verdadeira oportunidade de ouro – Se tornar um trabalhador embarcado em uma das naves que aqui passavam. Além de, obviamente conhecer o mundo, estes jovens tentavam conseguir novas opções longe desse belo lugar cheio de racismos e preconceitos.   

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Cais da Tavares de Lira, no bairro da Ribeira, em Natal. Uma provinciana capital do Nordeste do Brasil.

Mas para quem embarcava vindo de um porto nordestino, com poucos recursos e instrução quase zero, sobrava geralmente os locais mais sujos e escuros da embarcação, onde o trabalho principal era ser foguista. Como nessa época a maioria destes barcos não tinha motor a diesel, o foguista era aquele que colocava carvão nas caldeiras a vapor, para assim conseguir energia suficiente para o deslocamento do navio. Uma função importante, mas certamente uma das mais desprezadas.

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Porto de Natal no início do Século XX.

Não sei se João Lins Filho foi um dos que ficavam no Cais da Tavares de Lira batalhando uma vaga em alguns destes barcos, mas sei que era potiguar e que ele era um dos 58 tripulantes listados a bordo do navio Taubaté, para uma viagem a portos na África e no perigosíssimo Mar Mediterrâneo de 1940![1]

Internamento

O Taubaté era uma nave velha, construída em 1905 pelo estaleiro alemão Bremer Vulkan AG, da cidade de Bremen. Recebeu inicialmente o nome de Franken, que batizou toda uma classe de nove navios cargueiros e esta nave pertenceu inicialmente a empresa de navegação Norddeutscher Lloyd. Estes navios percorriam principalmente as rotas entre a Alemanha e a Austrália, além da América do Sul.  

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O Hessen, navio cargueiro alemão da classe Franken, a mesma do Taubaté.

Tanto o Franken como seus navios irmãos eram equipados com um motor a vapor de 3.200 HP, que lhe proporcionavam a velocidade máxima de 11,5 nós (cerca de 21 quilômetros por hora), possuíam em média 130 metros de comprimento e 16 metros de largura, deslocando 5.055 toneladas.

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Propaganda da Norddeutscher Lloyd no Brasil em 1911, mostrando que o Franken, futuro Taubaté, já frequentava o porto do Rio de Janeiro antes da eclosão da Primeira Guerra.

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial quase todos esses barcos foram capturados pelos Aliados, ou se internaram em portos neutros. O Franken, sob o comando do capitão H. Lindrob buscou o porto do Rio de Janeiro procedente da Austrália, transportando minério destinado ao porto de Antuérpia, Holanda [2]. Ele era um dos 49 navios espalhados em dez portos brasileiros, que aqui estavam em sistema de internamento[3].

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Com a deterioração das relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha os navios desta nação em nossos portos foram confiscados pelo nosso governo, sendo rebatizados e entregues a companhias de navegação nacionais. O Franken recebeu a denominação de Taubaté, e ficou sob a responsabilidade da empresa Lloyd Brasileiro. Logo estava navegando com uma carga de café para a Índia[4]. Desde 1917 este navio vinha ostentando a nossa bandeira verde e amarela e cumprindo o seu papel de transportar cargas pelos mares[5].

Navegando Para Onde Os Alemães Estão Combatendo!

No final do ano de 1940 o Taubaté era comandado pelo experiente capitão de longo curso Mario Fonseca Tinoco, um homem que possuía uma longa e respeitável carreira, mas talvez pelos seus posicionamentos políticos e um problema ocorrido quando estava no comando de um dos barcos do Lloyd Brasileiro, quase sempre foi designado para comandar navios velhos e pequenos.

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Capitão de longo curso Mario Fonseca Tinoco.

Mesmo assim o capitão Tinoco sabia conduzir seus comandados e seus barcos de maneira correta. E ele precisava exercer bem sua função em 1940, pois naquele tumultuoso período inicial da Segunda Guerra Mundial, quem estava a bordo do Taubaté e de outros navios sem dúvida realizava um trabalho bem arriscado[6].

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Outro navio irmão do Taubaté, o Westfalen – Fonte – passengersinhistory.sa.gov.au

E em novembro daquele ano o velho navio foi contratado por uma empresa exportadora do Rio de Janeiro para levar uma carga de 3.000 toneladas de café, acondicionadas em 110.000 sacas, até a beligerante área do Mar Mediterrâneo [7]. Esta carga foi anteriormente carregada no porto de Santos e eles partiram do porto do Rio em 14 de novembro. Como medida de precaução/ foram pintadas duas grandes bandeiras brasileiras nos costados do Taubaté para identificar a nação a qual a nave pertencia[8].

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Enquanto o navio brasileiro seguia sua viagem, os combates da Segunda Guerra cresciam em violência em várias partes do mundo.

Na Europa a Inglaterra ainda se defendia dos ataques dos aviões alemães na Batalha da Inglaterra e, apesar de sofrerem bombardeios em suas cidades principais, já haviam mostrado aos nazistas que pelo ar eles não conseguiram dobrar o Império e nem a intrépida RAF. No Extremo Oriente, antes do ataque a base naval americana de Pearl Harbor, os japoneses continuavam sua luta para aniquilar os chineses. Na Grécia os italianos sofriam para derrubar a resistência do exército grego e em dezembro de 1940 pediam ajuda aos alemães. No norte da África os italianos também viam sofrendo sistemáticas derrotas para os britânicos, principalmente após o início da Operação Compass, que objetivava a recuperação do oeste do Egito aos italianos e a captura da Cirenaica, uma possessão italiana no norte da África, na atual Líbia.

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Benito Mussolini e seu grande aliado.

Em janeiro de 1941 a ofensiva das forças Britânicas e da Commonwealth nesta região obteve muito sucesso e estes se aproximavam cada vez mais da cidade Líbia de Tobruk. É quando o ditador Benito Mussolini pede socorro a Adolf Hitler para salvar suas tropas e sua honra e o alemão concorda em fornecer ajuda. Mas antes mesmo que as tropas germânicas do chamado Afrika Korps ponham suas botas na África, comandados pelo competente general Erwin Rommel, a aviação militar alemã, a Luftwaffe, já está com suas asas sobre o Mar Mediterrâneo.

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JU 88 da X. Fliegerkorps – Fonte – worldwarphotos.info

Entre janeiro e fevereiro de 1941 a Luftflotte 2, uma das principais divisões da Luftwaffe, sob o comando do marechal Albert Kesselring, recebe ordens para se deslocar a sua X. Fliegerkorps (X. Fl. Kps.) da gélida Noruega até a caliente Itália. Este era um formidável corpo aéreo com mais de 250 aviões de combate de vários modelos e divididos em doze unidades aéreas.

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O encouraçado alemão KMS Gneisenau, sobrevoado por um Heinkel He 111.

Durante esses dois meses esse grande grupo de aviação vai utilizar as bases italianas de Catania, Comisso, Palermo, Trapani e Gela, todas localizadas na Sicília[9]. A ideia de Albert Kesselring de posicionar a X. Fliegerkorps nesta área era reprimir a interferência da Marinha Britânica, a Royal Navy, nas rotas de abastecimento marítimo para a Península Italiana e reduzir a capacidade estratégica da ilha de Malta como base militar.

E logo os aviadores alemães começam o seu “show” pelo Mediterrâneo![10]

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O porta aviões inglês HMS Illustrious sob ataque da Luftwaffe em 10 de janeiro de 1941 – Fonte – http://ww2today.com

Em 10 de janeiro de 1941 o porta-aviões inglês HMS Illustrious, que se dirige para a ilha de Malta, é atacado por bombardeiros de mergulho alemães Junkers JU 87 Stukas vindos da base de Trapani e fica seriamente avariado[11]. No outro dia, no início da tarde, doze Stukas afundam o cruzador HMS Southampton[12]. Esses ataques deixam claro que a Luftwaffe tem o comando do ar sobre o Mediterrâneo. Eles também apontam para a verdadeira agonia que a ilha de Malta vai sofrer nos próximos meses e criar uma das páginas mais intensas da História da Segunda Guerra Mundial.

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o Schleswig, outro navio irmão do Taubaté – Fonte – http://www.simplonpc.co.uk

Certamente os tripulantes do Taubaté ouviam nos rádios valvulados de ondas curtas o noticiário em português da rádio britânica BBC e sabiam o que ocorria na região[13].

Dando A Volta Na África

Do jeito que a coisa estava Mar Mediterrâneo e desejando evitar problemas, o Lloyd Brasileiro ordenou ao capitão Mario Fonseca Tinoco que atravessasse o Atlântico Sul até o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, contornasse esta perigosa área marítima e entrasse no Oceano Índico. Daí ele deveria acompanhar a costa leste africana até o Golfo de Áden, entre os atuais países do Iêmen e do Djibuti. Daí o Taubaté iria entrar no Mar Vermelho e seguir até o Canal de Suez, ultrapassá-lo para navegar pelo Mar Mediterrâneo e chegar a Port Said, no Egito, seu destino final. Realmente o foguista João Lins podia se um homem pobre e trabalhar em uma função muito humilde no Taubaté, mas certamente era um potiguar que conhecia muito mais do mundo do que a maioria dos seus conterrâneos daquela época.

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O Taubaté.

Esta era uma Viagem longa, com muitas milhas marítimas a serem percorridas, mas o Lloyd estava colocando na mesma época não apenas o Taubaté, mas outros navios nessa mesma rota. Como foi o caso dos vapores Juazeiro e Atlântico, que saíram dias depois do Rio de Janeiro e seguiam a esteira do Taubaté.[14]

A viagem foi tranquila até o porto da cidade iemenita de Áden, dali o barco brasileiro foi escoltado por destróieres ingleses até o Canal de Suez. Essa prevenção tinha sentido, pois ali perto, na Etiópia e outras áreas da África Oriental, estavam se desenrolando sérios combates entre britânicos e italianos pela conquista desta região[15].

O Taubaté então atravessou o Canal de Suez sem problemas e chegou a Port Said.

Um Novo E Perigoso Contrato

Após descarregar todo o café e ficar com porões vazios a espera da próxima carga, mais de quarenta dias se passam desde a chegada do Taubaté naquele porto. É quando surgem as empresas Société de d’Avances Commerciales, do Egito, e a Shalon Brothers, de Isaac Shalon, um judeu radicado na Turquia.

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Port Said – Fonte – servatius.blogspot.com.br

Ambas as empresas fecham um acordo com o representante do Lloyd Brasileiro, que talvez fosse o próprio capitão Tinoco, para realizar um fretamento do porto egípcio de Alexandria até o porto de Boston, Estados Unidos. Mas antes disso o navio teria de pegar cargas em portos na ilha Chipre e mais cargas em Port Sudan, principal porto marítimo sudanês, às margens do Mar Vermelho. Na sequência haveria paradas nos portos de Buenos Aires, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Nova York, Baltimore e finalmente Boston. O seguro da tripulação ficou a cargo dos contratantes estrangeiros.

Esse tipo de fretamento nada tinha de errado, o problema era percorrer a distância entre o Egito e o Chipre, uma ilha extremamente estratégica e colônia britânica no Mediterrâneo. Mesmo sendo apenas umas 200 milhas náuticas (380 quilômetros), quase nada em termos de distâncias marítimas, o que ocorria a volta de Chipre na época é que era o problema.

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Outra imagem do navio Schleswig, irmão gêmeo do Taubaté.

Acredito que, além de possíveis vantagens comerciais, o tempo de inatividade no Egito em meio a notícias dos combates cada vez mais intensos entre os britânicos e o Afrika Korps no vizinho deserto da Líbia, tenha feito com que o representante do Lloyd Brasileiro decidisse fechar o acordo com os contratantes da Société de d’Avances Commerciales e da Shalon Brothers. Mesmo com o risco, o Taubaté partiu para o Chipre. No futuro o Lloyd Brasileiro vai responder na justiça por liberar seu barco para percorrer esse trajeto[16].

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Porto de Limassol, Chipre, em 1941.

O navio brasileiro partiu e, segundo os jornais de época, esteve nos portos cipriotas de Limassol, Lanarca e finalmente Famagusta. Após o recolhimento de cargas, o Taubaté está de partida da ilha de Chipre para o Egito na manhã do dia 22 de fevereiro de 1941.

De Famagusta o conferente de cargas José Francisco Fraga, de 28 anos, que morava na Rua Souza Valente, n° 7, São Cristóvão, Rio de Janeiro, escreveu uma carta para sua família onde comentou que eles não “esperassem notícias dele nem tão cedo”[17].

Ele não tinha ideia de quanto tragicamente estava certo!

Alemães Ao Ataque

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O interessante livro do pesquisador inglês John Weal, JU 88 – Kampfgeschwader of north Africa and the Mediterranean (© 2009 Osprey Publishing Limired), aponta que entre janeiro e fevereiro de 1941, as três esquadrilhas de JU 88 A 4 que atuaram no X. Fliegerkorps tiveram uma vida bem movimentada naqueles dias.

John Weal é um autor especializado na história da Luftwaffe, com mais de 30 livros publicados sobre o tema e na sua obra afirma que estas aeronaves realizaram ataques aéreos a ilha de Malta, apoio as tropas do Afrika Korps que lutavam contra os britânicos, ataques a Benghazi e Tobruk na atual Líbia, ataques contra alvos no Egito, além de patrulhas marítimas e ataques a navios que seguiam em todo Mediterrâneo em comboios, ou solitários.

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Um Ju 88 do I. / LG 1, no Norte da África em 1942- Fonte – http://www.worldwarphotos.info

Isso é referente especificamente as missões dos JU 88 A 4. Fora estes aviões ainda estavam na região os formidáveis bombardeiros HE 111 H 3, os bombardeiros de mergulho Ju 87 R 1 Stukas, os caças bombardeiros BF 110 D 3 e outros mais. A Luftwaffe verdadeiramente malhava em ferro quente todo o Mar Mediterrâneo e o Norte da África[18].

Em 21 de fevereiro a Luftwaffe atacou o comboio AS.21, que seguia escoltado por três destróieres do porto de Piraeus, na Grécia, para Alexandria, Egito. Tudo começou com três JU 88 A 4 que caíram em cima dos treze navios do comboio quando estes navegavam no canal da ilha Citera, ao largo da extremidade sul da região do Peloponeso, a parte meridional da porção continental da Grécia. Os JU 88 atingiram o petroleiro dinamarquês, mas trabalhando para os ingleses, Marie Maersk, de 8.271 toneladas. Este foi rebocado para o porto de Piraeus bastante danificado, com seis tripulantes mortos, oito desaparecidos e quatro que foram capturados.

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Uma bela foto de um HE 111 do II. / KG 26, ainda em 1939 – Fonte -www.worldwarphotos.info

Após o amanhecer do dia 22 de março, quinze aeronaves alemãs novamente atacaram o comboio AS.21, desta vez a 22 milhas náuticas (35 quilômetros) ao sul da ilha de Gavdos, um pequeno promontório considerado um dos pontos mais extremos da Europa, a poucas milhas ao sul da ilha de Creta. Desta vez foi uma ação conjunta de bombardeiros Ju 88 A 4 e HE 111 H 3 que lançaram várias bombas e afundaram o mercante grego Embiricos Nicolaos (3.798 ton.) e o petroleiro norueguês Solheim (8.070 ton.)[19].

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Nariz de um HE 111. O metralhador disparava deitado – Fonte – http://www.theatlantic.com

Enquanto tudo isso ocorria, a quase 500 milhas náuticas de distância a leste dali (cerca de 930 quilômetros), por volta das cinco da manhã desse intenso dia 22 de março, o Taubaté deixava a ilha de Chipre[20].

Die Walküre

Sem maiores dados é impossível apontar se foi um Ju 88 A 4 ou um HE 111 H 3 alemão que atacou o navio brasileiro, bem como não sabemos de onde ele partiu e nem de qual esquadrilha fazia parte. Entretanto eu acredito que a ação ocorrida no começo da manhã contra o comboio AS.21, ao sul da ilha de Gavdos, pode ter feito com que outros bombardeiros nazistas continuassem a buscar o comboio para um novo ataque. Como os navios do AS.21 tentavam chegar a Alexandria, o mesmo destino do Taubaté, não é difícil supor que alguma destas aeronaves alcançou à área ao sul de Chipre e houve o encontro com o navio brasileiro[21].

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Representação artística de um JU 88 atacando um cargueiro. No caso do ataque ao navio brasileiro, sendo o atacante um avião deste modelo, essa bem poderia ser uma imagem próxima dos fatos.

Conjecturas a parte todas as informações apontam que por volta do meio dia, com o sol a pino, quando o navio estava a cerca de 100 milhas náuticas de Lanarca, surgiu um avião bimotor voando lento, baixo e ostentando a inconfundível suástica nazista na cauda, além de cruzes gamadas nas laterais e nas asas. Esses aviadores teutônicos não chegaram ao som do Ato terceiro da ópera Die Walküre, de Richard Wagner, mas ao som de potentes motores Jumo[22].

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Representação artística de um bombardeiro HE 111 atacando navio mercante. Imagem meramente ilustrativa.

A aeronave passou sobre o Taubaté e começou a realizar voltas. A tripulação ficou surpresa, mas tranquila, pois nos costados a bandeira brasileira estava nitidamente pintada e o Brasil ainda mantinha relações diplomáticas com a Alemanha Nazista. Entretanto, logo depois de dar algumas voltas o avião alemão começou a virar diretamente para o navio e veio em alta velocidade, foi quando a primeira de seis (algumas fontes apontam quatro) bombas foi lançada e uma coluna de água emergiu do Mediterrâneo. Imediatamente após o lançamento da primeira bomba começou as rajadas de metralhadoras do tipo MG[23].

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Metralhadora MG de um bombardeiro alemão em ação.

O capitão Mario Fonseca Tinoco contou que em um primeiro momento houve pânico a bordo. Certamente nessa hora o pessoal que não estava no convés, talvez por medo de alguma bomba atingir o casco e a nave afundar rapidamente, veio para fora da nave. Pode ser que nesse momento o potiguar João Lins tenha visto o avião atacante.

Os oficiais e os marujos mais experientes então transmitiram ordens e informações que conseguiram colocar a situação sob algum controle. O capitão Tinoco contou a um jornal de Recife que após a primeira bomba cair a sua ideia foi manter o curso do barco firme, permanecendo na mesma direção, sempre em frente. Não sei se essa era a melhor tática contra esse tipo de ataque, mas no caso do Taubaté deu certo[24].

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Imagem ilustrativa de um a bombardeiro alemão atacando um navio mercante com bombas.

O capitão tentou enviar toda sorte de sinais para o avião, mas a resposta eram mais disparos[25]. O avião nazista voltou e uma das bombas caiu muito perto do navio brasileiro, estremecendo tudo a bordo, varando o casco da embarcação com estilhaços, ferindo tripulantes e danificando o leme, que ficou inoperante. Os telegrafistas Américo Rodrigues da Silva, Josias Correia de Castro e Raimundo Evangelista Monteiro enviaram mensagens telegráficas sobre o ataque, mas seu posto de trabalho recebeu vários disparos e um deles foi ferido.

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Metralhador de bombardeiro alemão enquadrando um navio mercante com a sua MG. Imagem Meramente ilustrativa.

O capitão Tinoco mandou que içassem uma bandeira branca, mas nada disso demoveu os alemães do seu ataque. Ele também afirmou ao Diário de Notícias do Rio que algumas bombas eram pintadas de preto e uma de vermelho. Tripulantes comentaram que o avião passava muito baixo, “rente as antenas telegráficas” e chamou atenção dos brasileiros a insistência dos alemães em atirar com suas metralhadoras contra o navio e sua tripulação. Certamente aqueles aviadores queriam pintar na cauda de sua aeronave a silhueta do Taubaté, indicando seu afundamento.

Morto Agarrado à Bandeira do Brasil

Conforme o avião despejava bombas e balas, membros da tripulação eram feridos. O 2° cozinheiro Teodoro da Silva Ramos, morador da Rua Faria Braga, 34 A, morro de São Roque, São Cristóvão, Rio de Janeiro, levou vários estilhaços nas costas, ocasionando feridas que deixariam grandes cicatrizes. Outro ferido com gravidade foi Henrique Leandro da Silva, colega do potiguar João Lins Filho, que ficou com uma fratura no crânio. O maquinista Aníbal Landelino Borges levou tal quantidade de ferimentos, com alta gravidade, que ninguém a bordo acreditava na sua sobrevivência. Foi o valoroso trabalho do enfermeiro Emiliano Priamo da Silva que salvou sua vida e de mais outros doze feridos[26].

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Cargueiro debaixo de bombas.

Existe uma notícia coletada após o ataque, já em Alexandria, e transmitida inclusive por agências internacionais, que chamou muito a atenção do povo brasileiro – Um grupo de quatro tripulantes subiu em dos pontos mais altos do Taubaté levando uma grande bandeira do Brasil. Nesse local, em um intervalo dos disparos, cada um dos quatro homens segurou em uma das pontas do nosso pavilhão nacional para que pudesse ser visto e reconhecido pelo avião atacante. Mas se alguém no avião viu a bandeira verde e amarela foi para melhor fazer mira, pois o conferente José Francisco Fraga foi atravessado por vários tiros e morreu praticamente na hora. Dois dos seus colegas também ficaram feridos nesse momento.

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O carioca Fraga foi o primeiro brasileiro a perecer em decorrência de ação inimiga direta durante a Segunda Guerra Mundial[27].

Sem o leme o Taubaté então parou, o que o deixou completamente pronto para ser afundado. Neste ponto as narrativas são conflitantes, mas, ou por que a carga de bombas do avião havia encerrado, ou por imperícia dos aviadores em acertar o Taubaté, ele não foi atingido.

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Os aviadores nazistas até que tentaram, mas o Taubaté não foi fazer parte do desenho da cauda deste JU 88 baseado na Itália em 1941.

Mesmo assim o capitão deu ordens de abandonar o navio, mas os tripulantes do bombardeiro continuaram disparando suas M.G., frustrando as tentativas de fuga dos marinheiros e também atingindo, ou “picotando”, os barcos salva vidas. Foi neste momento que o foguista João Pereira da Silva, que segurava uma das cordas utilizadas para arriar uma das baleeiras do navio recebeu uma saraivada de estilhaços, caiu sobre o convés e desmaiou[28].

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Nesta foto de jornal vemos na extrema esquerda o conferente Fraga e o cachorro Taubaté, mascote do navio brasileiro.

A mastreação, a chaminé, o casco, tombadilho, ponte de comando, o camarote do capitão, a sala de radiotelegrafia ficaram crivados de disparos. As metralhadoras do avião varreram o convés de popa a proa. O mascote de bordo, um cachorro chamado Taubaté, foi ferido duas vezes, mas sobreviveu[29].

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HE 111 atacando nave mercante – Fonte – warfarehistorynetwork.com

O imediato Armando Viana comentou ao Diário de Pernambuco que o ataque só parou quando surgiu outro avião no horizonte. Alguns tripulantes ficaram assustados com o novo “visitante”, mas o bombardeiro nazista desapareceu “como por encanto”, pois a nova aeronave era inglesa. Para o imediato era um “Spitfire”, mas documentos oficiais do Almirantado, que aqui reproduzo abaixo, apontam que a aeronave salvadora era um hidroavião.

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Os informes que li afirmam que o ataque do avião alemão durou, dependendo da fonte, de 60 a 90 minutos[30].

Notícias no Brasil

O Taubaté consegue chegar a Alexandria, onde está atracado o vapor Juazeiro, que dá todo apoio ao pessoal do navio atacado, bem como as autoridades consulares brasileiras do Cairo, as autoridades britânicas e egípcias. Em meio a muito buraco de bala, pedaços de estilhaços e sangue, os tripulantes são removidos para o hospital.

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O conferente José Francisco Fraga é enterrado em cerimônia simples, mas carregada de muita emoção, no Cemitério Cristão de Alexandria. Ele morreu um dia antes de completar 29 anos e deixou no Rio a noiva Geraldina Gonçalves com o enxoval pronto para o casamento que iria se realizar no seu retorno. Mas o sonho foi desfeito.

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Pelos próximos dias do ditador Getúlio Vargas e seus Ministros, juntamente com o Lloyd Brasileiro, prometem apoio às famílias e especialmente atender o pedido de Dona Isabel Maria Fraga –  O de trazer o cadáver do conferente Fraga para ser enterrado no Rio[31]. Outra situação envolvendo a Senhora Isabel foi que ela declarou a imprensa que não dormiu direito na noite do dia 22 de março e sonhou com seu filho vestindo seu imaculado uniforme branco da Marinha Mercante, mas este estava manchado de sangue[32].

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No Brasil a notícia do ataque ao Taubaté causa surpresa e indignação, mas não ao ponto de gerar protestos públicos. O tema é notícia de primeira página em todos os jornais do país. Mas estranhamente em Natal, capital do Estado onde o foguista João Lins Filho é natural, os dois principais jornais locais, A República e A Ordem, pouco comentou sobre o ataque em si e apenas lançaram pequenas notas sobre a situação do conterrâneo. Mas temos a informação que seus familiares foram até a Delegacia de Ordem Política e Social – DOPS, na Ribeira, onde procuraram o Diretor José Gomes da Costa em busca de notícias junto ao Lloyd Brasileiro sobre o tripulante potiguar do Taubaté, que felizmente eram positivas.

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O Itamaraty emite uma nota de protesto para a Alemanha Nazista, cuja chancelaria respondeu cerca de oito dias depois informando que iria apurar o caso e punir quem tivesse cometido erros. Mas ficou só nisso[33].

Lento e Complicado Retorno

O navio atacado e sua tripulação permaneceram 47 dias no Egito, onde foram feitos reparos e os tripulantes feridos gradualmente se recuperavam. Foi classificado de verdadeiro milagre ter havido um único falecimento devido ao ataque aéreo. No dia 25 de março o foguista João Pereira da Silva é operado por hábeis médicos e enfermeiras ingleses do B.M.H. Alexandria (British Military Hospital Alexandria). Estes profissionais retiram do seu corpo quatro estilhaços de projetis de metralhadora da região frontal e dois estilhaços do braço. O foguista perdeu todos os dentes de sua arcada superior[34].

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O B.M.H. Alexandria (British Military Hospital Alexandria) – Fonte – http://www.mycommunity.org.sg

Durante este período a tripulação do Taubaté testemunhou alguns ataques aéreos germânicos, tanto de dia quanto a noite, bem como a ação defensiva britânica com o uso de canhões antiaéreos. Felizmente o navio não foi atingido[35].

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Porto de Alexandria, Egito.

Finalmente chegou o dia de partir. O navio estava extremamente carregado de algodão egípcio, couros, lã, goma arábica e outras cargas menores. Seguiu em direção sul, bordejando a costa leste africana, refazendo em sentido contrário seu caminho anterior. Houve escalas em Port Sudan, Áden e Lourenço Marques, capital do então o território da África Oriental Portuguesa (atual Maputo, capital de Moçambique).

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Nesta cidade as autoridades coloniais portuguesas realizaram uma recepção tão acolhedora que o capitão Tinoco considerou como uma verdadeira “homenagem”. Provavelmente foi neste porto que o comandante percebeu que a sua tripulação precisava de um descanso. Eles estavam longe de casa há vários meses e tendo passado por problemas complicados, vendo alguns companheiros feridos e um morto, em meio a uma situação inusitada. O capitão decidiu então refazer o roteiro e seguir para Recife. Ali seria feita a troca da tripulação, antes de ir para os Estados Unidos.

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Mas antes houve uma parada no porto de East London, uma cidade localizada na costa sudeste da África do Sul. Parada rápida, mas ao voltar ao alto mar em direção ao Brasil o Taubaté foi atingido por uma violenta tempestade, que no pensamento do imediato Armando Viana “Só não foi ao fundo porque estava bem carregado”. Mas essa tempestade marcou a tripulação já atingida, pois um dos seus membros foi simplesmente levado do convés pela força das águas e desapareceu.

O Taubaté segue então para a capital pernambucana atravessando o Oceano Atlântico com suas combalidas máquinas, conseguindo ridículos quatro nós de velocidade. Leva mais de um mês para conseguir esse feito.

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Ao entrar no porto, as cinco da tarde do dia 13 de agosto de 1941, a situação do navio era de tal penúria, que somente com o apoio do rebocador 4 de outubro é que ele entra no porto.

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Porto do Recife

Uma verdadeira multidão de pernambucanos vai ao cais do porto testemunhar a chegada do Taubaté, que ancora no Armazém 5, onde as autoridades portuárias, a imprensa e até mesmo alguns parentes do pernambucano Teodoro da Silva Ramos esperavam ansiosos para visitar o 2° cozinheiro ferido. Chama atenção de todos os furos dos projetis e estilhaços em vários locais do barco. Quando desembarcam um dos tripulantes mostra a imprensa uma caixa cheia de estilhaços que atingiu o barco Taubaté [36].

Finalizando

Após os reparos o Taubaté retornou as atividades de navegação comercial em meio a Segunda Guerra Mundial. Documentos apontam que esse navio participou de vários comboios entre o Brasil e a ilha de Trinidad, ou de Nova York para Guantánamo, Cuba, e de lá para a zona do Canal do Panamá. Em agosto de 1944, conforme podemos ver neste documento da US Navy, o Taubaté inclusive comandou um destes comboios.

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Mas em um sábado, 3 de julho de 1954, o velho navio com mais de cinquenta anos de mar encalhou na ponta do molhe do porto de Recife e ali encerrou a sua trajetória[37].

Provavelmente após a volta do Taubaté Dona Isabel Fraga, a mãe do falecido tripulante, soube dos detalhes do ocorrido e não se conformou. Certamente açodada pelo não cumprimento da promessa do retorno do corpo de seu filho de Alexandria para o Rio, ela abriu um processo contra o Lloyd Brasileiro perante a vara dos feitos da fazenda do Rio de Janeiro. Representada pelo advogado Alberto de Oliveira, a querelante reclamava do contrato firmado pelo Lloyd para ir ao Chipre, em meio a um conflito bélico e a revelia da tripulação. Ela pedia uma indenização de 100 contos de réis.  

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Mas parece que a opinião pública não compreendeu muito bem a busca de Dona Isabel por uma indenização. Ainda mais em uma época onde o que não faltava no Brasil eram famílias chorando o desaparecimento de seus entes queridos, em meio a dezenas de afundamentos de navios nacionais provocados por submarinos do Eixo. Dois anos depois mais de 25.000 homens seguiriam para a Itália com a missão de combater diretamente os nazistas e o caso de Dona Isabel cairia no esquecimento. Não descobri os desdobramentos do seu processo[38].

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Foto de jornal da tripulação do Taubaté.

Outro que sofreu no corpo foi o foguista João Pereira da Silva, que dois anos depois ainda sofria de terríveis dores físicas por causa de vários estilhaços no seu corpo. Em março de 1942 ele se encontrava internado no Hospital Gaffrée e Guinle, no Rio de Janeiro, para mais uma operação de retirada de estilhaços. Este era a décima “lembrança” daquele dia a ser retirado, desta vez na região temporal direita e ele seria operado pelo médico Armando Amaral. O foguista João Pereira da Silva se encontrava internado neste hospital através de ações do Instituto dos Marítimos, entidade que defendia sua classe. Mas Pereira estava sem receber um centavo de fonte alguma[39].

Nada mais encontrei sobre o discreto potiguar João Lins Filho, que aparentemente nunca se interessou de contar esse episódio fora de seu círculo mais próximo de parentes e amigos, sobre o seu destino. Talvez, como aconteceu com muitos potiguares humildes que conheciam outras terras naquele tempo, decidiu deixar para trás o Rio Grande do Norte.

Última questão – É possível que João Lins Filho não tenha sido o primeiro potiguar a testemunhar os horrores da Segunda Guerra Mundial?

Sim, é possível.

Mas até que alguém prove o contrário, pelo menos em termos documentais, ele foi dos nossos conterrâneos o que primeiro viu algo que nunca deveria ter acontecido.

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NOTAS

[1] A família Lins era muito numerosa na área do Engenho Cajupiranga, cujo dono na década de 1920 era o fazendeiro Virgílio Lins, senhor de largas faixas de terras e essas áreas são hoje parte da cidade potiguar de Parnamirim. Sei também que os Lins se espalharam pela região litorânea, na área da antiga cidade de Papary, hoje Nísia Floresta, e na área das praias de Pirangi e Tabatinga.

[2] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de quarta-feira, 7 de junho de 1917, pág. 3 e o jornal O Imparcial, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta-feira, 9 de agosto de 1917, pág. 6.

[3] Ver Relatório do Ministério da Marinha, Abril de 1916, Imprensa Naval, Rio de Janeiro, pág. 135

[4] Algumas fontes apontam que o Taubaté só teria sido adquirido pelo Lloyd Brasileiro em 1925. Mas os jornais de época apontam a versão que desde o seu confisco ele já passou para a responsabilidade desta empresa

[5] Ver jornal O Imparcial, Rio de Janeiro-RJ, edição de domingo, 7 de outubro de 1917, pág. 6.

[6] Mario Fonseca Tinoco foi imediato no vapor Acary durante a Primeira Guerra Mundial, quando este navio foi torpedeado em 3 de novembro de 1917 pelo submarino alemão U-151, próximo ao arquipélago de Cabo Verde, África. Logo foi promovido a comandante de navios, mas em 1932 Fonseca se aliou aos paulistas na Revolução Constitucionalista e foi por isso foi exilado em Portugal. Já em 1936 a situação dele ficou complicada no Lloyd Brasileiro, pois estava no comando do navio Una quando este afundou na costa catarinense em 26 de outubro de 1936. Sobre o afundamento do Acary, ver jornal A Razão, Rio de Janeiro-RJ, edição de domingo, 4 de dezembro de 1917, pág.1. Sobre a participação do capitão de longo curso Mario Fonseca Tinoco na Revolução Constitucionalista ver https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/108009/ISSN1808-1967-2007-3-1-108-123.pdf?sequence=1 Em relação ao afundamento do Una ver jornal A Razão, Rio de Janeiro-RJ, edição de terça feira, 27 de outubro de 1936, pág.5.

[7] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 4.

[8] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 1.

[9] As unidades, as bases e os aviões da X Fliegerkorps na Itália entre janeiro e fevereiro de 1941 foram os seguintes –

Unidade          Base         Avião

Stab / LG 1   Catania       Ju 88 A-4

  1. / LG 1 Catania        Ju 88 A-4

III. / LG 1      Catania      Ju 88 A-4

  1. / KG 26  Comiso      He 111 H-3
  2. / KG 4 Comiso         He 111 H-3

(F)/121          Catania        Ju 88 D-1

III. / ZG 26     Palermo    Bf 110 D-3

Stab / St.G 3  Trapani     Ju 87 R-1

I./ St.G 3       Trapani       Ju 87 R-1

  1. / St.G 3 Trapani     Ju 87 R-1
  2. / JG 26 Gela            Bf 109 E-7
  3. / NJG 3 Gela           Bf 110 E-3

[10] Sobre a Luftflotte 2 ver https://weltkrieg2.de/luftwaffe-2-september-1939/ . Sobre a X Fliegerkorps ver https://www.asisbiz.com/Luftwaffe/xfk.html e http://deacademic.com/dic.nsf/dewiki/2635768 . Sobre o marechal Albert Kesselring ver http://www.fliegerhorste.de/rothwesten.htm .

[11] Sobre o ataque ao HMS Illustrious ver http://ww2today.com/10th-january-1941-luftwaffe-planes-attack-hms-illustrious .

[12] Sobre o afundamento do HMS Southampton ver https://maltagc70.wordpress.com/tag/hms-southampton/ .

[13] As fontes aqui pesquisadas informam que o Taubaté possuía como sistema de comunicação apenas o posto telegráfico para emitir sinais em código Morse. Mas encontrei a informação que eles possuíam rádios de ondas curtas e certamente captavam o serviço em português da BBC, o principal meio que os brasileiros do início da década de 1940 utilizavam para conseguir notícias internacionais.

[14] . Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 5 de abril de 1941, pág. 1.

[15] Os combates na África Oriental, ocorridos entre 1940 e 1941 são episódios pouco conhecidos no âmbito da Segunda Guerra Mundial. Ver https://web.archive.org/web/19970121012937/http://gi.grolier.com/wwii/wwii_8.html e http://www.bbc.co.uk/history/ww2peopleswar/timeline/factfiles/nonflash/a1057547.shtml

[16] Toda a questão do trajeto deste navio, a questão do fretamento e outras considerações estão incluídas no processo aberto pela mãe de José Francisco Fraga, a Senhora Isabel Maria Fraga, que processou judicialmente o Lloyd Brasileiro em 1942 pela morte do seu filho. Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 13 de fevereiro de 1942, pág. 1.

[17] Ver Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 4 de abril de 1941, pág. 1.

[18] John Weal é escritor, artista gráfico, autor prolífico e bem estabelecido sobre assuntos ligados a aviação militar alemã na Segunda Guerra Mundial. Possui uma das maiores coleções privadas de literatura original de língua alemã sobre este conflito e sua pesquisa sobre a Luftwaffe está firmemente baseada neste enorme arquivo. Ele mora na histórica vila de Cookham, Berkshire, a oeste de Londres, Inglaterra.

[19] Sobre os ataques da Luftwaffe no Mar Mediterrâneo nos dias 21 e 22 de março de 1941, especialmente o ataque ao sul da ilha Gavdos ver http://www.warsailors.com/singleships/solheim.html  e http://www.naval-history.net/xDKWW2-4103-30MAR02.htm .

[20] O Chipre era na Segunda Guerra um local extremamente estratégico como importante base de fornecimento de materiais e treinamento, além de possuir uma estação naval.

[21] No processo aberto pela Senhora Isabel Maria Fraga contra o Lloyd Brasileiro em 1942, existe a ideia que a saída do Taubaté de Chipre tenha sido comunicada por espião nazista a Luftwaffe, que então enviou um avião para o ataque. Apesar de plausível, essa versão carece de maiores dados para sua corroboração. Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 13 de fevereiro de 1942, pág. 1.

[22] Segundo dados existentes, deferentes versões deste tipo de motor equipavam tanto o JU 88 A 4 como o HE 111 H 3 da LuftWaffe, então em ação naqueles dois primeiros meses de 1941 no mar Mediterrâneo e no Norte da África.

[23] As várias voltas do bombardeiro talvez possam indicar que a tripulação da aeronave viu a pintura da bandeira brasileira, sabidamente um país neutro. Mas era inegável para eles que a proa do navio apontava em direção ao Egito, local onde se encontravam seus inimigos. Aí fica mais fácil, embora sem justificativa, entender a razão do ataque pelos aviadores alemães.

[24] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de terça feira, 26 de agosto de 1941, pág. 5.

[25] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 5 de abril de 1941, pág. 1.

[26] O 2° cozinheiro Teodoro da Silva Ramos, também é apresentado por alguns jornais como Teodósio da Silva Ramos. Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 14 de agosto de 1941, pág. 5.

[27] Confesso que pensei não ser real a notícia envolvendo a morte do conferente Fraga segurando a nossa bandeira. Imaginei que poderia ser o tipo de notícia ufanista, típica da propaganda do governo Vargas. Uma “patriotada” como se diz hoje em dia. Mas tudo indica que a história é verídica, segundo notícias vinculadas na época pela própria BBC. Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 4 e o jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 5 de abril de 1941, págs. 1, 2 e 3.

[28] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 17 de março de 1942, pág. 2.

[29] Ver Diário da Noite, Rio de janeiro-RJ, edição de sexta-feira, 4 de abril de 1941, págs. 1 e 2. Os jornais cariocas basicamente reproduziram uma reportagem feita pelo jornal A Tarde, de Salvador, que deu o furo com as informações transmitidas pelo jornalista Larry Alena, da Associated Press, que realizou uma visita ao Taubaté em Alexandria após a sua chegada.

[30] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 1.

[31] Mas essa situação só vai acontecer depois da deposição de Getulio Vargas. Somente em agosto de 1946, durante o governo de Gaspar Dutra, o navio “Camboinhas” chega ao Rio com os despojos de José Francisco Fraga.

[32] Ver Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 4 de abril de 1941, pág. 3.

[33] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 3 de abril de 1941, pág. 1 e a edição de sábado, 12 de abril de 1941, pág. 3.

[34] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 17 de março de 1942, pág. 2.

[35] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 14 de agosto de 1941, pág. 5.

[36] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 14 de agosto de 1941, pág. 5.

[37] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 8 de julho de 1954, pág. 3.

[38] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 13 de fevereiro de 1942, pág. 1.

[39] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 17 de março de 1942, pág. 2.

A TUMULTUADA CHEGADA DO ROCK AND ROLL A NATAL

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Fonte – crandall1950syoungculture.files.wordpress.com

Rostand Medeiros – Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte 

Sabemos que durante a Segunda Guerra Mundial a cidade de Natal sofreu muitas mudanças com a presença das tropas estadunidenses e suas bases militares. Ocorreram, além da visível mudança demográfica da cidade, muitas alterações no quesito de comportamento, o acesso a novos meios de informações e novos padrões econômicos.

Estilos, sons e acessórios comuns aos militares americanos foram incorporados ao dia a dia dos jovens natalenses e, aparentemente, esse desejo de absolver o que vinha da nação considerada na época “o grande irmão do norte” continuou nos anos seguintes e não parou mais.

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Militares norte-americanos em Parnamirim Field – Fonte – Getty Images

Mas nem tudo que veio dos “States” foi aceito de forma tranquila em Natal!

E  uma dessas rejeições foi com o Rock and roll.

Mas quando ele desembarcou na capital potiguar?

Música De Origem Negra Em Uma Terra Racista

Se as origens do Rock and roll têm sido até hoje ferozmente debatido por comentaristas e historiadores de música, existe o consenso que o rock surgiu no sul dos Estados Unidos. E foi através da reunião de várias influências e de uma combinação de diversos gêneros musicais populares que incorporaram principalmente a fusão da tradição musical africana com a instrumentação europeia. E tudo começou basicamente em julho de 1951. 

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Alan Freed – Fonte – http://www.wikipedia.org

Alan Freed era o disck-jockey de um programa de rádio na cidade de Cleveland, no estado de Ohio (EUA), e um dia percebeu em uma loja de discos alguns jovens que dançavam freneticamente ao som de uma música alucinante, que até então ele nunca havia parado para ouvir.

Era o Rhythm and blues, ou R&B, um som muito mais conhecido entre a comunidade negra dos Estados Unidos na época e distante dos brancos anglos saxões pelo peso do racismo existente naquele país.

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Cartaz do Moondog Coronation Ball – Fonte – http://www.wikipedia.org

Por sugestão de Leo Mintz, o dono da loja, Freed passou a divulgar aquele ritmo na rádio WJW-AM, onde trabalhava. Logo, encantado com o som frenético, Freed criou um programa chamado Moondog Rock Roll Party, inspirado na velha canção “My Daddy he Rocks me With a Steady Roll”.

No ano seguinte, Freed, Mintz e o promotor Lew Platt decidiram produzir um concerto com os artistas e bandas de R&B. No dia 21 de março de 1952 foi realizado no Cleveland Arena, um local com capacidade para 10 mil pessoas, o Moondog Coronation Ball, que é considerado o primeiro show de Rock and Roll da História. O show foi um sucesso e com casa cheia.

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Show do dia 21 de março de 1952 no Cleveland Arena, o primeiro show de Rock and Roll da História – Fonte – http://www.wikipedia.org

Um ano depois uma música denominada “Rock Around the Clock” e interpretada pela banda Bill Haley and his comets alucinou os jovens norte-americanos e tocou fogo no país. Devido ao rápido sucesso de “Rock Around The Clock”, que foi aclamado como o hino oficial do Rock and roll, outros artistas como Chuck Berry, Little Richard e Jerry Lee Lewis se juntaram a Bill Haley.

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Bill Haley and his comets – Fonte – obaudoedu.blogspot.com.br

Não demorou e um rapaz chamado Elvis Aaron Presley entra em cena com uma sensualidade em sua voz rouca e uma maneira inigualável de dançar. Mais que um símbolo sexual, Elvis cantava como um negro e transformou aquele suposto modismo numa verdadeira revolução cultural. Com o lançamento do disco “Heartbreaker Hotel”, em 1956, Elvis atingiu vendas extraordinárias e foi consagrado como o “Rei do Rock”.

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Elvis, o “Rei do Rock”

Grande parte do rápido e estrondoso sucesso do rock nos Estado Unidos aconteceu durante um período de forte prosperidade e isso não foi uma coincidência. 

No final da década de 1940 mais pessoas naquele país possuíam rádios e as televisões tornavam-se um objeto comum no dia a dia. Além das mudanças tecnológicas, aquela prosperidade do pós-guerra de muitas famílias de classe média significou que os adolescentes tinham dinheiro para gastar. Consequentemente por esta época a indústria fonográfica avançou aos saltos, permitindo que a música pudesse ser distribuída em massa.

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Chuck Berry

Não podemos também esquecer que os primeiros rumores do movimento de direitos civis, que visava combater o forte racismo reinante naquele país, estavam na pauta do dia e tornava as músicas de origem afro americana mais acessíveis.

O som e todo o estilo ligado ao Rock and roll sintetizou o conceito de cultura juvenil de uma forma surpreendente e sem precedentes nos Estado Unidos pós-Segunda Guerra Mundial e desempenharia um importante papel na definição desse conceito para grande parte do mundo durante a segunda metade do século XX. Influenciando desde a moda, atitudes, estilo de vida e linguagem.

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Jerry Lee Lewis – Fonte – http://www.wikipedia.org

Mas aonde este som chegou causou polêmicas e acaloradas discussões. No Brasil não foi diferente!

Filme Com Música Para Balançar As Estruturas

Em 21 de março de 1956 a empresa Columbia Pictures lançou um filme de baixo orçamento, segmentado diretamente para o público adolescente e que certamente não prometia grande coisa. Mas a película tinha a participação da banda Bill Haley and his comets, cuja música “Rock Around the Clock” batizou a obra nos Estados Unidos. Inesperadamente o filme se tornou um grande sucesso e logo começaram os problemas.

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A geração mais velha não aceitou gentilmente essa nova e barulhenta música. O filme começou a encontrar problemas em certas comunidades norte-americanas, onde líderes religiosos pediram um boicote. Outras controvérsias logo sugiram quando o filme foi distribuído internacionalmente. 

Em Londres o público adolescente ficou tão agitado dançando, batendo os pés, quebrando cadeiras e gritando durante a sessão, que o gerente do cinema onde era exibido teve que parar o filme e apelar para que eles se sentassem. Por causa de sua recepção estridente em Londres o filme foi banido das pequenas cidades inglesas. Em outubro de 1956, após as primeiras exibições da película na Noruega, adolescentes invadiram as ruas de Oslo gritando “mais rock!” 

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O filme “Rock Around the Clock” em cartaz na capital da Inglaterra – Fonte – http://www.zoomerradio.ca

O filme estreou no Brasil no final daquele ano, primeiramente nas grandes cidades do centro sul, e trazia o título de Ao Balanço das Horas. Logo as alegres músicas do novo estilo causaram problemas.

Em São Paulo, no dia 20 de dezembro de 1956, com medo que algo parecido ao que aconteceu na Inglaterra e na Noruega se repetisse por aqui, a exibição do filme no chique Cine Paulista, na Rua Augusta, foi vigilantemente acompanhada pela polícia e pelo Juizado de Menores. Este foi o antigo setor do judiciário especializado em questões ligadas a menores e que hoje é conhecido como Vara da Infância.

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Policiamento na exibição de “Ao balanço das horas” na capital paulista – Fonte – CinePaulista.acervo.estadao

Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo, o filme Ao Balanço das Horas “provocou manifestações histéricas de adolescentes”, com a primeira sessão sendo interrompidas duas vezes por causa dos jovens que gritavam e xingavam os guardas que os proibiam de dançar na sala. Ainda segundo o jornal, o então governador Jânio Quadros pediu ao chefe de polícia que tomasse “providências drásticas” contra os bagunceiros. “Se forem menores, entregá-los ao honrado juiz”, ordenou.

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Agitação nos cinemas paulistas – Fonte – CinePaulista.acervo.estadao

Mas não ficou apenas nisso – O jornal O Estado de São Paulo aponta que entidades como o Movimento de Arregimentação Feminina e a Comissão de Moral e Costumes da Confederação das Famílias Cristãs, representando 10 mil famílias paulistas, se posicionaram contra a fita Ao Balanço das Horas. Sob uma forte pressão, Aldo de Assis Dias, juiz de menores na cidade de São Paulo, ampliou a proibição etária do filme de 14 para 18 anos.

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Como foi noticiado em um jornal natalense o tumulto em apresentação do filme Ao balanço das horas em São Paulo

No Rio de Janeiro a confusão ao redor de Ao Balanço das Horas não foi menor. Quase um mês depois das exibições em São Paulo, o periódico Diário de Natal (Ed. de 17/01/1957) publicou uma extensa reportagem sobre a briga envolvendo policiais e amantes do Rock and roll na saída de um cinema na então Capital Federal. Houve interrupção do tráfego e ocorreram prisões. Logo, tal como ocorreu em São Paulo, o juiz de menores do Rio, o Dr. Rocha Lagoa, alterou a classificação do filme de 14 para 18 anos. 

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LP com a trilha sonora do filme – Fonte – clubedosentasdecatanduva.blogspot.com.br

Brilhantina, Casacos e Lambrettas

Nesse tempo na provinciana Natal, então com pouco mais que 150.000 habitantes, ainda não tinha emissoras de televisão atuando localmente. Era o rádio que fazia o papel de grande transmissor para as massa.

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Natal década de 1950

Por uma interessante razão que desconheço as causas técnicas, já ouvi de várias pessoas que viveram naquela época que se captava bem melhor as emissoras de rádio do Rio de Janeiro do que as de São Paulo na capital potiguar. Logo as notícias dos conflitos por causa de Ao Balanço das Horas era comentário geral entre os jovens locais.

Mas antes de adentrarmos sobre as apresentações desta película em Natal, é bom que fique registrado que, sobre aspectos estéticos, a cena do Rock and roll já estava presente na cidade, principalmente com a utilização de uma pequena motoneta de origem italiana.

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Propaganda da Lambretta – Fonte – http://www.propagandashistoricas.com.br

Com o fim da Segunda Guerra Mundial na Itália o proprietário de uma fábrica de tubos de aço chamado Ferdinando Innocenti decidiu reconstruir seu negócio em Lambratte, Milão. Percebendo a necessidade de prover os italianos com um meio de transporte barato e seguro, o proprietário se uniu ao engenheiro Pierluigi Torre e projetaram uma motocicleta modelo “scooter”, de baixo custo de produção e manutenção. Esse veículo foi a icônica Lambretta.

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1957 Lambretta L

As primeiras foram construídas em 1947, com um motor de dois tempos provido de um único cilindro, com 123 cc de volume de deslocamento e rodava até 33 quilômetros com um litro de gasolina, algo importante em uma Itália com escassez de combustível. Um dos pontos fortes da Lambretta era a boa estabilidade devido ao baixo centro de gravidade proporcionado pelo motor próximo à roda traseira. Logo a pequena “scooter” se tornou um sucesso na Europa e no resto do mundo. Coube a Lambretta desenvolver no Brasil a primeira fábrica de veículos do país em 1955. Chamada Lambretta do Brasil S.A. tinha sede no bairro da Lapa em São Paulo e sua produção entre 1958 e 1960 superou a quantidade de 50.000 unidades ao ano.

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Em fins de 1956 e início de 1957 chegaram as primeiras Lambrettas em Natal. Eram comercializadas na firma Paulirmãos, uma sociedade dos empresários Camilo de Paula e José Rezende Filho, com matriz em Mossoró e filial na capital potiguar, na Praça Augusto Severo, 260, na Ribeira. A pequena máquina caiu no gosto dos filhos da elite natalense e vendeu muito. Meu pai, Calabar Medeiros, então com apenas 16 anos, trabalhou em Paulirmãos e testemunhou o sucesso daquela motoneta por aqui.

Mas a Lambretta não era apenas um meio de transporte, era um veículo com forte atitude e estilo. Os jovens da cidade circulavam em suas máquinas em grupos, todos com brilhantinas nos cabelos (sempre sem capacetes) e envergando casacos pretos de couro. Gostavam de se reunir na área do Grande Ponto, no centro da cidade, onde passavam ruidosamente com seus canos de escape abertos e fazendo muito barulho.

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As pequenas máquinas fizeram tanto sucesso que até mesmo corridas de Lambrettas ocorreram em Natal, em um circuito improvisado no bairro de Petrópolis, cujo grande campeão foi Roberto Eider Lira. Alguns dos “Lambretistas” natalenses ficaram famosos por suas proezas em suas motonetas, como Beto Pires, que utilizava nafta no tanque de combustível para ampliar a potência da sua pequena máquina.

Toda aquela movimentação, todo aquele barulho, todos aqueles casacos escuros misturados com cabelos alisados a brilhantina, começaram a incomodar alguns membros da elite local, que ficariam ainda mais incomodados quando descobriram que seus filhos estavam escutando uma música tão barulhenta quanto as suas Lambrettas de escape aberto.

Encontro e Filmes Polêmicos

Mesmo sem o filme Ao Balanço das Horas ainda ter desembarcado nos cinemas locais, mesmo com a galera local escutando Rock and roll através dos poucos discos existentes na cidade, ou através das ondas curtas, médias e tropicais dos grandes rádios valvulados, aquele som contagiante chegou causando alvoroço em Natal.

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Em uma sexta feira da primeira semana de março de 1957, quando os jornais da cidade informaram com letras garrafais que existiam rumores que estava sendo arquitetado pelos “Lambretistas” natalenses uma apresentação do “tristemente famoso” Rock and roll no cruzamento das ruas João Pessoa e Princesa Isabel. Com medo que os distúrbios ocorridos em São Paulo e no Rio se repetissem em Natal, os jornais pediram veementemente a presença da polícia para coibir a tal apresentação. 

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Logo o Dr. Claudionor de Andrade, então Secretário de Segurança, informou que não havia sido solicitado o devido alvará para a dita apresentação e que os policiais estariam presentes em seus Jipes de patrulha no cruzamento da João Pessoa e Princesa Isabel para coibir a exibição pública dos “Lambretistas”. O Dr. Claudionor expressou claramente que “não permitiria que se introduzisse em nossa terra uma dança tão prejudicial aos bons costumes como o Rock and roll” (Diário de Natal, Ed. de 8/3/1957).

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Enquanto a elite e as autoridades se ouriçavam contra o Rock and roll e uma parte da população de Natal aguardava Ao Balanço das Horas com ganas de queimar o rolo de exibição em frente à Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, espertamente os proprietários do extinto Cinema Rio Grande aproveitaram a controvérsia e lançaram o filme Ritmo Alucinante para o público jovem de Natal.

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Cena do filme “Ritmo Alucinante”, que ficou em cartaz apenas por quatro dias em Natal.

Este era um musical fraquíssimo de enredo, produzido em preto e branco e intitulado originalmente em inglês “Rock, Rock, Rock!”. Mas trazia aquilo que a galera queria – Rock and roll. O filme tinha como ator principal o radialista Alan Freed e vinha com uma interessante performance de Chuck Berry com a música  “You Can’t Catch Me” (Diário de Natal, Ed. de 29/4/1957). Mesmo Ritmo Alucinante tendo sido exibido sem maiores alterações, estranhamente essa película ficou em cartaz no Cine Rio Grande por exíguos quatro dias, quando o normal era no mínimo uma semana.

Mas Ritmo Alucinante deve ter levado um bom público ao cinema, pois um mês depois duas outras películas com temáticas focadas nos problemas da juventude estadunidense da época, consideradas extremamente polêmicas e que tinham angariado um grande sucesso a nível mundial, foram exibidas para os natalenses.

Estou falando de O Selvagem (The Wild One) e Juventude Transviada (Rebel Without a Cause). O primeiro filme tinha como ator principal ninguém menos que Marlon Brando e foi exibido no Cine Rio Grande. Já o segundo filme, cujos atores principais eram James Dean e Natalie Wood, foi exibido no Cinema Rex. (Diário de Natal, Eds. de 22 e 27/5/1957)

É certo que nesse tempo os filmes demoravam meses para chegar à longínqua e provinciana Natal, mas O Selvagem era de 1953 e Juventude Transviada de 1955 e a muito já tinham sido exibidos no Rio, São Paulo e até em Recife. Aparentemente os proprietários dos cinemas natalenses já tinham os rolos destas películas em mãos, mas não as exibiram para evitar problemas com autoridades judiciais e religiosas.

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Imagem da rebeldia através de James Dean em “Juventude Transviada ” – Fonte –  Ellus

Mas, aparentemente, estes mesmos proprietários, em meio a toda polêmica gerada pelo Rock and roll e a juventude de Natal, não perderam a oportunidade de faturar algum lançando estes filmes polêmicos no final do mês de maio de 1957.

Ambas as películas, que se tornariam clássicos, foram liberadas para maiores de 18 anos e muitos “Lambretistas” foram com suas máquinas e seus casacos para os cinemas da cidade.

A Festa Que Mexeu Com Natal

Acredito então que naquele primeiro semestre de 1957 curtir o Rock and roll em Natal era algo que ficava restrito ao ambiente privado, principalmente aos existentes nas amplas e iluminadas residências do Tirol e Petrópolis, os bairros nobres da cidade. Mas aquele som alucinante logo seria tocado em um dos templos da elite local – Os salões da sede social do América Futebol Clube, no bairro de Petrópolis.

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Foram as jovens Inês Aranha e Márcia Santos, tidas como “finos ornamentos da nossa sociedade”, que estiveram a frente da organização do evento intitulado “1° Festival de Rock and roll”, que prometia “demonstrar com real valor e agrado a música difundida por Elvis Presley”. As notas de jornal informaram que o baile seria animado pelo prestigiado Conjunto Melódico de Paulo de Tarso. (Diário de Natal, Ed. de 5/6/1957). 

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Ocorreram cenas como esta na festa do América? Acredito que sim!

Não sei se alguém do grupo de Paulo de Tarso encarou ao vivo e a cores, na noite de sábado, 8 de junho de 1957, o público reunido no América munido de uma legitima guitarra Gibson ES-300. Ou se o pessoal presente foi animado ao som de Victrolas e discos de “velocidade” (frequência) de 78 rpm. Mas, mesmo com poucas informações, o certo é que houve a festa, com casa cheia e a presença de muitos “Lambretistas”. Consta que lá aconteceu a apresentação de três corajosos casais, que mandaram ver nos requebros e passos tidos como escandalosos desse “tal de Rock and roll”.

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Mesmo sem maiores informações eu tenho a certeza que a festa foi um sucesso e não tenho dúvidas que chamou a atenção da cidade. Pois a reação subsequente das autoridades para frear o ímpeto da garotada rebelde de Tirol e Petrópolis foi dura.

Umas semana depois, dia 15 de junho de 1957, um sábado, o então juiz titular da Vara de Menores, o Dr. Oscar Homem de Siqueira, baixou uma portaria determinando que os comissários de menores proibissem a entrada de jovens nas festas de Rock and roll em Natal.

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O magistrado, utilizando os termos do Artigo 131 do então Código de Menores, não proibiu expressamente a ocorrência de alguma festa que certamente deveria está programada para acontecer naquele fim de semana. Mas na prática o Dr. Oscar proibiu o público alvo de participar, pois nessa época eram considerados menores de idade aqueles que tinham menos de 21 anos.

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Dr. Oscar Homem de Siqueira – Fonte – jotamaria-america.blogspot.com.br

A portaria do juiz é interessante sobre alguns aspetos do entendimento do tradicionalismo vigente em Natal na época. Pois além de proibir o acesso e a permanência dos jovens menores de 21 anos nos locais de exibição do Rock and roll, textualmente o juiz ordenava que os comissários proibissem a garotada de “dançar” (Diário de Natal, Ed. de 18/6/1957).

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Parte da portaria determinando que os comissários de menores proibissem a entrada de menores nas festas de Rock and roll em Natal

Logo o magistrado foi ovacionado por vários setores da sociedade potiguar, chegando mesmo ao ponto de unir setores irreconciliáveis do cenário político e social local.

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Luiz Maranhão Filho

O jornalista Luiz Maranhão Filho, antigo membro do Partido Comunista do Brasil, que em 1958 seria eleito deputado estadual no legislativo potiguar pelo Partido Trabalhista Nacional e em 1974 seria morto de forma covarde pela Ditadura Militar, dedicou a decisão do titular da Vara de Menores um largo artigo em defesa de sua atitude. O artigo foi intitulado “Ainda há juízes” (Diário de Natal, Ed. de 21/6/1957).

Seguindo a mesma linha de pensamento do líder esquerdista, foi emitida uma nota de apoio ao Dr. Oscar Homem de Siqueira pelo Secretariado Arquidiocesano da Defesa da Fé e da Moral, representando a Igreja Católica (O Poti, Ed. de 26/6/1957).

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A vida do Rock and roll e de seus apreciadores não andava nada fácil em Natal, mas parece que outros setores da sociedade natalense pensavam contrários ao titular da Vara de Menores. Tanto assim que finalmente o tão esperado Ao Balanço das Horas finalmente foi exibido  nacidade.

O fato se deu somente na primeira quinzena de agosto de 1957 e a exibição no Cinema Rex foi cercada de todos os cuidados e de muita polícia. Mas estranhamente a faixa etária para exibição foi de 14 anos. Não houve nenhuma alteração! (O Poti, Ed. de 11/6/1957)

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O resto do ano de 1957 é possível ler nos velhos jornais natalenses diversos e contundentes ataques realizados por intelectuais locais contra o Rock and roll, mas logo um evento social, recheado de belas mulheres, mostraria a elite natalense que aquela musica não era esse bicho todo!

As Belas Estrangeiras Bailam Ao Som do Rock

Certamente não existiu na década de 1950 um tipo de celebridade meteórica que marcou mais essa época do que as misses e seus suntuosos desfiles de beleza.

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A baiana Martha Rocha e a vencedora do concurso Miss Mundo de 1954 – Fonte – efemeridesdoefemello.com

Estes eram concursos que, da noite para o dia, tornavam belas desconhecidas em estrelas de primeira grandeza do imaginário nacional, sendo a mais famosa miss tupiniquim a linda Maria Martha Hacker Rocha, uma baiana de faiscantes olhos verdes, consagrada como Miss Brasil em 1954 e que ficou em segundo lugar no concurso Miss Mundo daquele ano.

No Rio Grande do Norte não era diferente. Este tipo de concurso movimentava muito a sociedade local, com jovens representando clubes de futebol, cidades e entidades. Havia torcidas organizadas, entrevistas nas rádios e jornais locais, além de muito glamour.

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As beldades que chegaram em Natal em 1958

Em maio de 1958, as vésperas da Copa do Mundo da Suécia e meio de supetão, Natal recebeu a visita da platinada finlandesa Marita Lindahl, a vencedora do concurso Miss Mundo de 1957, e de outras beldades a nível mundial. Além da campeã desembarcaram na terra de Poti, com mais de 600 quilos de bagagem, a segunda colocada Lillian Juul Madsen, da Dinamarca, Teresinha Gonçalves Morango, do Brasil (natural do Amazonas), e as representantes da França, Claude Navarro e da Suécia, Ellinor Ulla Eldin, além da modelo francesa Danielle Challier.

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Elas estavam a caminho do Rio para uma exposição sobre moda francesa e realizaram uma parada de 24 horas em Natal. A cidade meio que parou para apreciar as belas mulheres e elas foram acompanhadas por uma verdadeira multidão embasbacada.

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Em meio a idas e vindas, as belas foram almoçar na casa do empresário Rui Moreira Paiva.

Em um ambiente tranquilo e relaxante elas foram condignamente recebidas por Dona Carminha, esposa do empresário. Então alguém (talvez Izinha, a filha do casal), colocou na vitrola de alta fidelidade um disco de Rock and roll. Aí, para surpresa geral, as divas da beleza internacional deixaram de lado os anfitriões e quaisquer regras de etiqueta e se esbaldaram a dançar aquela música considerada maldita na capital potiguar.

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Não sei se as pessoas da casa ficaram incomodadas pela alegria das misses com aquela música tida como complicada pela sociedade local, mas o certo é que logo alguém tirou aquele ritmo alucinante da vitrola e sapecou um calypso caribenho, que foi aproveitado apenas pela modelo Danielle Challier. Depois a vitrola tocou um puro samba verde e amarelo, mas aí todas as belezas pararam de rebolar e ficaram apenas ouvindo.

Entretanto o episódio não passou despercebido para o então repórter social Wolden Madruga, que acompanhou os passos das belas mulheres por Natal. Além de comentado nos jornais locais, a dancinha das misses se tornou motivo de conversas no Grande Ponto, o local de formação de opinião na cidade. Para alguns era terrível saber que aquelas belas jovens gostavam daquela música maldita!

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Mas como nesta cidade tudo que vinha de fora era bom (menos o Rock)eu acredito que aquela pequena apresentação dançante, realizada por algumas das mulheres consideradas as mais belas no mundo naquele tempo, mesmo indiretamente fez com que algo mudasse na sociedade natalense em relação a percepção sobre o Rock and roll. (O Poti, Ed. de 9/5/1957)

Veio Para Ficar

Logo as lojas de discos em Natal começaram a vender com maior frequência discos de Rock and roll. Sabemos que em maio de 1958 chegou na cidade o disco de 78 rpm do cantor norte-americano Little Richard chamado “Volume 2”, que vinha com doze músicas e era produzido pela London Records. (O Poti, Ed. de 28/5/1958)

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Não demorou e Natal recebeu o primeiro grupo internacional a tocar Rock and roll.

Mas quem veio não foi nenhum grupo de jovens estadunidenses com cabelos bem aparados, banhados de brilhantina, realizando uma dancinha leve e todos trajando ternos iguais. Quem aqui tocou pela primeira vez o som perseguido foi um grupo de música caribenha.

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Chamados de “Guyana Caribbean Varieties” era formado por pessoas oriundas da então colônia britânica da Guiana e de outras partes do Caribe. Sabemos que haviam se apresentado em outros países, tinham realizado shows em Fortaleza e em Natal ficaram hospedados no bairro da Ribeira, no tradicional Grande Hotel. Eles se apresentaram na Rádio Poti e no Teatro Alberto Maranhão e foram bem avaliados. O foco do grupo de mais de 20 artistas era principalmente as músicas caribenhas, mas o guitarrista Reggie Simpson liderou na parte do Rock and roll.

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Conforme o tempo foi passando aquele ritmo musical que tanto encheu as páginas dos jornais natalenses com polêmicas foi paulatinamente desaparecendo dos periódicos. E quando comento isso é tanto pelo lado das polêmicas, como pelo lado da aceitação do Rock and roll. Pouco observamos referências sobre o Rock, mas certamente seus apreciadores passaram a curtir aquele som com mais tranquilidade.

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Entretanto a Rádio Poti parece ter percebido que uma mudança havia acontecido, pois encontrei na sua grade de programação que eles estavam transmitindo um programa radiofônico chamado “Hoje é dia de Rock”, o primeiro do gênero no rádio potiguar.

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Ele era diário, mas tinha parcos 15 minutos de duração, o que daria para tocar umas três músicas no máximo. Mas era transmitido às 11 e 15 da manhã, a hora que a maioria dos estudantes em Natal voltava para suas casas para almoçar e aproveitavam para escutar um rockzinho.

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Apesar de todo o movimento ocorrido, aparentemente o número de pessoas que abraçaram aquela música estrangeira continuou pequena, fato que mudaria radicalmente pouco tempo depois.

É a época do governo JK, do Brasil de “50 anos em 5”, da chegada maciça do rock produzido no Brasil, da venda facilitada de mais discos e de instrumentos musicais apropriados para tocar Rock, da criação de bandinhas locais, de shows e festivais….

Mas isso é outra História!


Fontes na internet

http://www.redegeek.com.br/2016/09/20/ultrageek-258-historia-do-rock-anos-50/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Rock_and_roll

http://anuncifacil.com.br/posts/detalhes/7814

https://en.wikipedia.org/wiki/Don’t_Knock_the_Rock

http://super.abril.com.br/cultura/a-hora-do-rock/

http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,o-rock-proibidao-do-ao-balanco-das-horas,11698,0.htm

CIÊNCIAS MAIS OU MENOS EXATAS

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Ao longo da história, muitas vezes supostas descobertas científicas foram usadas para justificar fenômenos como o racismo, o machismo e o antissemitismo. Mas o que fazer quando o trabalho de teóricos e pesquisadores é influenciado pelas crenças e pelos valores deles próprios? 

Autora – Gabriela Loureiro

Fonte – http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2016/10/ciencias-mais-ou-menos-exatas.html 

Victor Frankenstein foi um jovem suíço que tinha algum conhecimento em alquimia e se dedicou aos estudos de ciências naturais na Alemanha. Traumatizado pela morte da mãe, passou a estudar febrilmente o segredo da geração da vida para tentar trazê-la de volta e não descansou até chegar muito perto — perto demais, na verdade.

Completamente absorvido em sua tentativa de solucionar o mistério da vida, ele ignorou família e professores e se isolou durante dois anos, criando um monstro que o perseguiu até o fim de sua vida e que poderia muito bem ter destruído a humanidade inteirinha se quisesse.

Tudo bem, essa é apenas a história de Frankenstein, o primeiro romance de ficção científica do mundo, escrito pela britânica Mary Shelley no início do século 19. Mas o clássico do terror contém uma lição importante: quando a ciência é feita em negação dos medos e crenças do cientista e ignorando questões éticas, o resultado pode ser devastador.

A obra de Shelley levanta uma série de questões: por que os cientistas fazem o que fazem? É possível fazer melhor? Qual é a responsabilidade do cientista em relação ao seu trabalho?

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Para entender o que a ética tem a ver com a ciência é preciso levar em conta ao menos duas questões: intenção e previsibilidade. Por exemplo, se por algum motivo você quiser colocar em prática as Leis de Newton e soltar uma pedra do alto de um edifício e essa pedra cair na cabeça de um transeunte inocente, de nada importa se você tinha ou não a intenção de matá-lo — se você não levou em consideração que esse risco existia, a responsabilidade é toda sua.

E o mesmo vale para outros experimentos bem mais complexos. “Seria muito mais fácil para os cientistas — e para todos nós, porque isso se aplica a todos — se não precisássemos nos preocupar com a maneira pela qual alguém pode usar o nosso trabalho para fins perversos. Não importa que minhas intenções sejam boas; se eu posso prever que o que estou fazendo pode machucar alguém, tenho que pensar nisso também”, diz Heather Douglas, professora e chefe da Comissão de Ciência e Sociedade da Universidade de Waterloo, no Canadá.

Hoje, o trabalho de Douglas é entender como a ciência deve funcionar em uma democracia para evitar tanto uma tecnocracia em que os cientistas ditem à sociedade como viver quanto uma ditadura em que a ciência seja censurada e perseguida politicamente.

“Temos que pensar em como ciência e democracia interagem em diferentes momentos, como você define o que é ciência, como você faz a ciência ser democraticamente responsável pelos seus resultados, como você quer que a ciência esteja presente na política”, afirma Douglas.

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“Você não assume que as pesquisas dos cientistas sejam neutras e livres de valores pessoais, mas você também dá a eles espaço para tomar as próprias decisões e manter sua integridade”. Na verdade, há uma área de pesquisa voltada exclusivamente à reflexão sobre a natureza, sobre a prática e o papel da ciência na sociedade: a filosofia da ciência, que consiste em explorar as formas pelas quais a ciência e a sociedade transformam uma à outra reciprocamente, ou seja, entender as implicações das práticas culturais e sociais sobre a ciência e vice-versa.

A ILUSÃO DA NEUTRALIDADE

A ideia de que cientistas são robôs evoluídos que não infligem seus valores pessoais ao seu trabalho, que é feito em ambientes absolutamente fechados e isolados não apenas de ondas eletromagnéticas, mas também de preconceitos e emoções humanas, já está ultrapassada há um bom tempo.

Uma das principais vozes que expandiram a crítica à falsa ideia de neutralidade nas ciências é Donna Haraway, filósofa e professora emérita da Universidade da Califórnia. De acordo com ela, a ciência é também uma prática cultural que pode ser interpretada criticamente inclusive questionando o posicionamento de quem realiza a pesquisa e ainda onde ela é desenvolvida — os chamados conhecimentos situados. Em outras palavras, é preciso avaliar as condições que influenciam certas descobertas científicas.

Há vários exemplos dessa influência nos casos de racismo científico. Um dos mais clássicos é o estudo Crania Americana, de 1839, no qual o médico e cientista norte-americano Samuel Morton defende que é possível determinar características da personalidade das pessoas com base no formato do crânio.

MEU GENE, MINHA VIDA

Para Donna Haraway, a humanidade experimenta hoje uma espécie de fetichismo em relação à genética. Existe uma crença bem disseminada de que os genes seriam capazes de determinar completamente quem somos, por que vivemos como vivemos e quais são as diferenças entre grupos distintos de pessoas.

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Segundo ela, há uma necessidade na tecnociência de negar medos, desejos e valores, uma tradição antiga que obedece à lógica cartesiana que separa razão e emoção e favorece a primeira em detrimento da segunda. De fato, os estereótipos de gênero que consideram as mulheres mais frágeis e instáveis do que os homens privaram as mulheres de muitos direitos hoje considerados banais em sociedades democráticas.

Em 1876, o médico Edward Clarke, da Faculdade de Medicina de Harvard, publicou um livro no qual afirmou que a menstruação tornava as mulheres inaptas à educação superior. Segundo a teoria dele, a soma de energia de um corpo é constante e, se uma mulher gastasse energia demais estudando, ela teria que transferir energia de seus órgãos reprodutores para o cérebro e se tornaria infértil.

Por esses e outros motivos, é preciso bater na tecla da ciência ética. Para Martin Savransky, professor de Sociologia da Universidade de Goldsmiths (Londres) e autor do livro The Adventure of Relevance: An Ethics of Social Inquiry (“A Aventura da Relevância: Ética da Investigação Social”, em tradução livre), o problema é que ética e política são vistas como assuntos completamente separados do saber e, quando são observadas como temas “cruzados”, geralmente é em forma de denúncia, por quem aponta o dedo para mostrar que não há objetividade na ciência.

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“Esse argumento de ‘ou isto ou aquilo’, como se o conhecimento fosse ou científico ou político, é o que dificulta uma conversa construtiva e civilizada sobre as políticas da produção de conhecimento. Dizer que a produção de conhecimento é política não é dizer que não é científica. Pelo contrário: significa que, até na ciência — especialmente na ciência —, produzir conhecimento relevante envolve riscos e preocupações”, diz Savransky.

Por um lado, as atrocidades cometidas em nome da ciência nos últimos 300 anos demandaram o desenvolvimento da filosofia da ciência, mas por outro, a separação entre política e ciência transformou esse questionamento ético em um organismo regulador da moralidade dos estudos e não em algo inerente e constitutivo da investigação científica. “A ética é apresentada como mera questão de julgamento — os cientistas não precisam estar particularmente interessados nela, mas precisam demonstrar que estão de acordo com as regras”, explica. Em 2018, o romance Frankenstein completa 200 anos, tempo que, aparentemente, foi insuficiente para que aprendêssemos sua principal lição.

NÓS X ELES

A ideia de que uma raça poderia ser superior a outra remonta à antiguidade greco-romana como forma de diminuir os povos com os quais diferentes exércitos se confrontavam, mas ela só ganhou um selinho de “comprovação científica” no século 18, quando o biólogo sueco Carlos Lineu separou os organismos em três reinos, inventou os conceitos de gênero e espécies e dividiu os seres humanos em quatro categorias, chamadas de raças. As categorias de Lineu foram muito além da biologia e serviram de defesa para uma série de genocídios, como a escravidão, o holocausto e o apartheid sul-africano.

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MOVIDAS A ESTROGÊNIO

Durante boa parte do século 20, acreditava-se que as diferenças entre os gêneros poderiam ser explicadas por hormônios. Portanto, mulheres eram mulheres por causa do estrogênio. Como a capacidade de gerar filhos era o centro da vida de uma mulher na época e o estrogênio era considerado a base da feminilidade, durante três décadas, entre 1940 e 1970, os médicos nos Estados Unidos prescreviam um estrogênio sintético chamado dietilstilbestrol (DES) para mulheres que queriam engravidar, mas sofriam abortos espontâneos.

O DES havia sido criado em laboratório pouco antes, em 1938, e já nos anos 1950 pesquisas com animais indicaram que ele não era eficaz. Mesmo assim, continuou sendo receitado pelos médicos por mais 18 anos, e algo em torno de 5 e 10 milhões de mulheres grávidas e suas filhas foram submetidas ao hormônio até que uma pesquisa publicada em 1971 comprovou que o DES era a causa de um câncer vaginal raro em meninas e mulheres expostas ao estrogênio ainda no útero da mãe. Muitas mulheres morreram, e foi feita uma campanha nacional para impedir a receita do DES.

SEXUALIDADE E IDENTIDADE

A homossexualidade passou a ser estudada pela ciência no século 19 como uma preocupação com o processo de urbanização especialmente nas grandes cidades europeias, já que o que era considerado pecado pelo cristianismo passou a ficar mais evidente. Naquele tempo, a homossexualidade era vista como “atividade sexual não natural” com status de doença contagiosa que “drenava fluidos corporais vitais”.

A ciência da época reproduziu a crença e passou a considerar a homossexualidade uma doença psiquiátrica (o “homossexualismo”), e isso só mudou em 1973, depois de muita pressão do movimento gay e por causa da total falta de dados empíricos para manter o status de doença. Por outro lado, a transexualidade continua sendo vista como um transtorno e não uma identidade de gênero, e as pessoas trans ainda são obrigadas a lidar com o estigma de loucura ou degeneração sexual.

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NO MUNDO ANIMAL

Muitas vezes os conceitos políticos sobre comportamento humano extrapolam espécies e os cientistas reproduzem ideias preconcebidas sobre os gêneros também no reino animal. Por um longo tempo, biólogos tentaram entender o ritual de acasalamento dos patos, que costuma ser bastante violento em algumas espécies, com machos forçando penetração nas fêmeas.

Impressionados com o tamanho do pênis do macho, que pode chegar a 40 cm, com sua forma de parafuso e com o fato de que o pênis definha ao final de uma estação de reprodução e cresce de novo na próxima, o foco sempre esteve no comportamento do macho. Foi comprovado que o tamanho depende da competitividade no local: quanto mais machos para competir, maior o pênis.

Mas isso é irrelevante no processo reprodutivo, porque as fêmeas não só também possuem longa vagina em formato de saca-rolhas no sentido contrário ao do pênis como ainda têm uma cavidade que joga fora o esperma do macho se elas não quiserem reproduzir com eles, basta contrair músculos internos. E, na verdade, apenas 3% das copulações forçadas resultam fertilização, o que comprova que são as fêmeas que decidem se vão reproduzir ou não. Ou seja, a resposta estava o tempo todo no sistema reprodutivo das fêmeas.

DE NÓS, PRA VOCÊ – SALVE O DIA DO NORDESTINO

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FONTE – https://medium.com/@basepropaganda/se-oriente-fc01dc8dfa2d#.ru8msgkp4

08/10/2016 — Dia do Nordestino

Durante a construção deste projeto, conversamos com alguns amigos que são do Nordeste e vivem em outras regiões do país para que juntos analisássemos e ilustrássemos algumas situações nas quais o preconceito, mesmo polido ou acompanhado de algum tipo de elogio, machuca e ajuda a perpetuar estereótipos.

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Estamos sempre em busca do nosso lugar no mundo. E, por onde quer que a gente vá, carrega em si um universo próprio, cheio de coisas que só a gente sabe realmente como são. Aquela tal de experiência de vida, não é?

O simples fato de termos nascido em uma região específica não nos torna especiais ou ~diferentões~, mas é claro que temos prazer em externar a nossa origem. Afinal, são palavras e expressões que nos lembram os amigos de infância, sabores e canções que nos levam imediatamente aos encontros de família, dificuldades que costumamos associar a quem sofre como nós.

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Porque sim, sofremos. Algumas vezes como qualquer um sofre, claro. Mas, outras, simplesmente por sermos de “lá”, do Nordeste. Um sofrimento que pode surgir a partir do que você pensa da gente, de como você imagina a nossa história ou do que você nem se interessa em saber se é verdade, ou não.

Você pode estar por perto, esbarrar com a gente na rua, pode ser um amigo do peito ou um ilustre desconhecido. Mas, em qualquer uma dessas possibilidades, vai sempre nos enxergar como uma xilogravura, um sotaque ou uma reprodução satírica de características engraçadas, exóticas, bizarras…

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Sim. É possível que você consiga identificar qualidades em nós, mas quase sempre elas serão suprimidas pela ideia que você tem da nossa origem.

Talvez você até encontre uma forma que acredita ser mais polida para mostrar que nunca seremos como você. Mas não adianta; viemos de um mundinho como qualquer outro, porém completamente nosso e presente em cada parte do que somos.

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A sua tentativa de provar que consegue ver algo bom em nós não suprime o fato de que esse “mundinho” continua sendo diminutivo pra você.

Por isso, no dia em que comemoramos mais uma vez o fato de sermos NÓS, deixamos o recado: Se oriente! Elogio não anula preconceito.

 ORGULHO DE SER NORDESTINO!

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FONTE – http://nordeste304.blogspot.com.br/

ABSURDO: PESSOAS NEGRAS FORAM EXIBIDAS EM ZOOLÓGICOS HUMANOS NA EUROPA

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É fato que o racismo ainda é uma ferida aberta em todo o mundo e difícil de ser curada.

A ideia de um “zoológico humano”, com negros em exibição, coisa que hoje causa espanto e repulsa, era realidade na avançada Noruega de um século atrás e, recentemente (2014), uma exposição intitulada “Kongolandsbyen” foi aberta em Oslo, capital, da Noruega, para marcar os cem anos da abertura da mostra original, que remontou uma pequena cidade que ficou conhecida como Vila Congo. Nela, as “vilas de negros” ou “zoológicos humanos” exibiam pessoas, especialmente vindas da África, em confinamentos semelhantes a jaulas de animais.

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Em 1914, no local da exposição na Noruega, viviam cerca de 80 pessoas de origem africana, a maioria do Senegal, que encenavam para visitantes costumes vistos como exóticos. Calculasse que um milhão e meio de noruegueses (ou três quartos da população total do país, na época) pagaram para assistir os africanos cozinhando e fazendo artesanato, por exemplo, vestidos com trajes tradicionais. Os organizadores disseminavam uma prática conhecida como “exposição etnológica”.

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A exibição de humanos nesses “zoológicos” não foi exclusividade da Noruega. Igualmente espetáculos horrendos como estes aconteceram na Alemanha, França e Bélgica tiveram, com reproduções de vilas nos mesmos moldes do que aconteceu na Noruega.

Assim, elas eram visitadas continuamente por famílias brancas, especialmente crianças. Algumas delas, no entanto, nunca haviam feito contato com negros antes e chegavam a levar pães e doces para alimentá-los e, assim, chamar sua atenção. 

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A exibição de africanos e outros povos não ocidentais eram meios utilizados como um instrumento para convencer a opinião pública da necessidade de colonização. Esses grupos eram mostrados como animais, reforçando uma ideia eurocentrista de civilização.

Fonte de textos e fotos – http://oglobo.globo.com/sociedade/mostra-reproduz-zoo-humano-que-exibia-negros-na-noruega-12627773#ixzz4Eqb5TVWQ

http://www.jornalciencia.com/absurdo-ha-apenas-60-anos-pessoas-negras-eram-exibidas-em-zoologicos-humanos-na-europa/

MÍDIA DOS ESTADOS UNIDOS DESTACA ADOÇÃO DE POLÊMICA BANDEIRA DE CONFEDERADOS NO BRASIL

Reportagem sobre o uso de bandeira de Confederados dos EUA no Brasil
Reportagem sobre o uso de bandeira de Confederados dos EUA no Brasil – CLIQUE PARA AMPLIAR AS FOTOS.

FONTE – http://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2015/06/24/midia-dos-eua-destaca-adocao-de-polemica-bandeira-de-confederados-no-brasil/?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook

Uma reportagem da agência de notícias internacional Reuters divulgada nos Estados Unidos levou o Brasil ao centro de uma forte polêmica norte-americana. Enquanto o país discute o racismo ligado ao uso da bandeira dos Estados Confederados por conta do massacre ocorrido em uma igreja na Carolina do Sul, muitos veículos de imprensa em inglês noticiaram, surpresos, que uma comunidade brasileira adotou a bandeira como símbolo de celebração.

“Enquanto a Carolina do Sul lida com a bandeira dos Confederados, uma cidade do Brasil a usa com orgulho”, diz o título de uma das publicações.

A polêmica bandeira é o símbolo do posicionamento dos Sul dos Estados Unidos, os Confederados, durante a Guerra Civil no país, no século XIX. Estes Estados do sul do país queriam ficar independentes e impedir a abolição da escravatura, o que faz com que a bandeira seja vista até hoje como símbolo do racismo, mesmo que os Confederados tenham sido derrotados.

A cidade brasileira mencionada nas reportagens é Santa Bárbara D’Oeste, no interior de São Paulo, onde é celebrada anualmente uma festa por conta da comunidade de imigrantes do Sul dos EUA ali. Segundo a reportagem, cerca de 10 mil confederados se mudaram para lá durante a Guerra Civil.

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General William Barksdale, das forças sulista, conduzindo sua brigada no combate de Gettysburg. A bandeira Confederada aparece com destaque – Pintura de Don Troiani.

Para os americanos, é surpreendente que o símbolo continue sendo usado no Brasil após tanto tempo, mas o orgulho atual da bandeira não tem a mesma carga racial, pois até mesmo descendentes negros dos imigrantes americanos a abraçam durante as celebrações.

Uma outra reportagem, publicada pela ‘Folha’ nesta semana, indica outras formas em que a bandeira aparece no Brasil. Segundo o jornal, o polêmico símbolo americano é usado como enfeite por motociclistas e roqueiros, muitos dos quais também não conhecem necessariamente a ligação dela com a questão racial.

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KU KLUX KLAN: ASCENSÃO, QUEDA E ATUAL SOBREVIVÊNCIA DA MAIS RADICAL SOCIEDADE DE ÓDIO AMERICANA

FONTE - www.brasilescola.com - CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR
FONTE – http://www.brasilescola.com – CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR

A organização que espalha ódio pelos Estados Unidos desde o século 19 está fragmentada. Mas não perdeu a capacidade de apavorar o país

Texto Fernando Duarte

Tímido, na infância, o menino Tim McVeigh, era vítima de bullying. Para evitar ao máximo as provocações, fechou-se ainda mais em um mundo próprio, onde criava planos de vingança contra outras crianças. Quando estava com 10 anos, seus pais se divorciaram e ele foi afastado das duas únicas irmãs. Mais ou menos nessa época seu avô lhe ensinou a atirar. Na adolescência, gostava de exibir suas armas de fogo no colégio. Logo começou a ler revistas como Soldier of Fortune, a bíblia dos mercenários. Adulto, entrou para o Exército e passou a frequentar células da Ku Klux Klan. Lutou e foi condecorado na Guerra do Golfo. Quando voltou para os EUA, tentou ingressar nas Forças Especiais, mas foi reprovado pelo exame psicológico. Em 31 de dezembro de 1991, deixou a carreira militar. Pouco mais de três anos depois, em 19 de abril de 1995, aos 26 anos, McVeigh estacionou uma van alugada diante do edifício federal Alfred P. Murrah, em Oklahoma. Deixou o lugar a bordo de seu carro, que havia parado previamente ali. Às 9h02 o utilitário explodiu. A mistura de fertilizante, óleo diesel e produtos químicos destroçou a fachada do prédio. No maior atentado terrorista praticado por um americano na história dos EUA, 168 pessoas morreram, incluindo 19 crianças. Uma hora e meia depois, a polícia prendeu o ex-militar, que dirigia sem licença e portava uma arma não registrada.

Fonte - www.newnownext.com
Fonte – http://www.newnownext.com

McVeigh confessou que colocou a bomba como forma de protestar contra a intromissão demasiada do Estado na vida dos cidadãos: o então presidente Bill Clinton queria aumentar o controle sobre o porte de armas.

O FBI investigou o passado do suspeito, que anos antes havia sido advertido por superiores ao comprar uma camiseta com os dizeres White Power (poder branco), durante uma manifestação da KKK.

A primeira KKK
A Ku Klux Klan nasceu como um subproduto da Guerra Civil americana, iniciada pelos estados do sul do país, inconformados com o fim da escravidão. A luta durou quatro anos, entre 1861 e 1865, e terminou com a vitória da União sobre os insurgentes, 625 mil mortos e uma imensa região destruída, com a economia estagnada e condenada à pobreza por falta de um modelo de desenvolvimento que pudesse substituir rapidamente a mão de obra escrava.

Em 1866, seis oficiais do antigo Exército Confederado fundaram um clube social em Pulaski, no Tennessee – Ku Klux é uma corruptela do grego kuklos, círculo. No ano seguinte, o grupo foi organizado como “O Império Invisível do Sul” durante uma convenção em Nashville. A organização passou a ser presidida por um “grande mago”, o general confederado Nathan Bedford Forrest, um brilhante oficial da cavalaria durante a guerra – e famoso pelo ódio que nutria aos negros e aos colaboradores sulistas do Exército do Norte.

Linchamentos de negros, pratica comum no passado da KKK - Fonte - focuson.alinea.dk
Linchamentos de negros, pratica comum no passado da KKK – Fonte – focuson.alinea.dk

A irmandade teria como principal função a manutenção da supremacia dos brancos – especialmente depois de uma guerra em que os escravos dos antigos senhores eram agora homens livres, capazes de se organizar. Ou seja, os “novos inimigos” precisavam ser combatidos, ainda que pela intimidação e violência.

Os historiadores se dividem sobre a natureza da KKK. Para alguns, o grupo foi fruto da nostalgia de uma enorme população de veteranos de guerra – o que explica sua pesada hierarquia interna (abaixo do grande mago vêm os grandes dragões, grandes titãs e grandes cíclopes). Para outros, a Klan nasceu com políticas e objetivos bem definidos. Seria a resistência clandestina branca contra o governo do norte e sua Reconstrução Radical – que previa a divisão do sul em cinco distritos militares e eleições multirraciais.

Na prática, a Klan atuava como uma gangue de vigilantes, defendendo as propriedades dos brancos. E não era a única no período. Uma organização parecida surgiu no mesmo ano, na Louisiana: os Cavaleiros da Camélia Branca. Parte do pavor que a KKK espalhava pela região era devido ao seu figurino. Capuzes e camisolões brancos tinham duas funções: assustar negros supersticiosos e evitar a identificação dos membros pelas tropas federais que coalhavam a região. Em pouco tempo, o que era um grupo de vigia passou a promover ataques noturnos para matar negros libertos e seus apoiadores brancos. De um ex-general confederado, surgiu o Prescript, o estatuto da KKK. Além do óbvio elemento racista, o documento pregava a resistência contra algumas das práticas impostas pelo lado vencedor da Guerra Civil, como o de negar direito de voto para pessoas que se recusassem a jurar não ter lutado contra as tropas do Norte.

FONTE - www.dailymail.co.uk
FONTE – http://www.dailymail.co.uk

Mais do que apenas minorias raciais, seus milicianos atacavam políticos, a mando do Partido Democrata, que usava as turbas para tumultuar eleições e até assassinar adversários. Só que a proliferação de células acabou se transformando em embaraço até para os patrocinadores da KKK: as arruaças serviam para aumentar o controle do governo federal sobre o sul. Em 1869, o general Forrest ordenou que o grupo fosse desmantelado. O surgimento de milícias rivais forçou diversos estados a adotar legislação proibindo as atividades da Klan. Incluindo o Ato de Direitos Civis de 1871, que deu ao governo poderes para intervir militarmente em localidades onde a KKK se recusasse a depor armas -revogando o habeas corpus e impondo pesadas penalidades para organizações terroristas. Foi o fim da primeira Ku Klux Klan.

A segunda KKK

A KKK parecia morta. A repressão do governo havia funcionado. Em 1882, a Suprema Corte declarou o grupo inconstitucional – e na época a Klan praticamente havia desaparecido. Para alguns historiadores, o fim da primeira Klan deveu-se ao sucesso de seu objetivo: restaurar a supremacia branca nos estados do sul dos EUA. De fato, Carolina do Norte, Tennessee e Geórgia eram governados por simpatizantes da tal supremacia.

FONTE - beefcakepantyhose.deviantart.com
FONTE – beefcakepantyhose.deviantart.com

Mas os EUA estavam mudando. O ódio aos negros rapidamente encontrou outro alvos. O ressurgimento veio com a chegada de imigrantes europeus a partir do final do século 19, especialmente os católicos e judeus. Havia também o momento populacional interno, com o deslocamento de populações negras para áreas predominantemente brancas do Meio-Oeste. Em 1915, perto de Atlanta, na Geórgia, o coronel e pastor metodista William Simmons lançou as bases da segunda geração da KKK, inspirado pelo livro The Clansman (o homem do clã), de Thomas Dixon, publicado dez anos antes, e no extraordinário sucesso do filme O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, baseado no livro. O grupo permaneceu pequeno, mas com uma agenda de ódio mais abrangente – que incluía xenofobia e antissemitismo -, e progredia baseado na defesa do patriotismo e de um modo de vida protestante e branco típico das pequenas cidades americanas.

No cenário internacional, um novo elemento funcionou como combustível: a ascensão dos comunistas na Rússia e o crescimento do movimento sindical. Na década de 20, os membros da KKK passavam de 4 milhões. Ao contrário de 1865, a organização se expandiu geograficamente, chegando a regiões que sofriam as pressões sociais da industrialização. Em Detroit, cujo clima e cotidiano não poderiam ser mais diferentes que o dos estados do sul, arrebanhou 40 mil afiliados. A diferença de popularidade em relação ao passado era clara: a agenda da segunda encarnação da Klan tinha um apelo muito mais generalizado.

FONTE - truthernews.wordpress.com
FONTE – truthernews.wordpress.com

“Estamos falando do auge da KKK, em que ela se torna uma espécie de grupo de apoio numa era em que não existia previdência social, por exemplo. E não eram apenas fazendeiros ou trabalhadores braçais que se assustavam com questões de imigração e de mudanças nos modos tradicionais de vida”, diz Thomas Pegram, historiador e autor de “One Hundred Per Cent American” (Cem por Cento Americano), um estudo sobre a segunda encarnação da KKK. “Profissionais liberais também se juntaram às fileiras da Klan. A população americana na época era de quase 100 milhões, então perto de 5% fazia parte do grupo.”

Massificada e com presença em círculos mais altos da sociedade, a Klan pôde exercer influência política. Elegeu xerifes, juízes, deputados e senadores. “A KKK era interessante o suficiente para o eleitorado americano. Mas os políticos que elegia eram amadores e nunca fizeram frente à turma mais experiente. Essas ambições políticas acabariam justamente criando problemas de popularidade para a Klan, pois seus candidatos acabavam parecendo pior que os políticos profissionais aos olhos do público”, afirma Pegram. O caráter religioso fez ainda com que as milícias da KKK tivessem papel preponderante nos anos da Lei Seca nos EUA (entre 1920 e 1933, a fabricação e a comercialização de álcool foram proibidas no país), atuando como poder paralelo na repressão, não raramente usando a violência.

FONTE - paradigm-shift-21st-century.nl
FONTE – paradigm-shift-21st-century.nl

A decadência

O declínio começou quando os opositores da KKK passaram a se organizar. Grupos de pressão como a Liga Antidifamação, um poderoso lobby de defesa dos judeus, engrossaram um coro de protestos que ajudou a marginalizar a Klan. A Grande Depressão dos anos 30 também afastou gente de suas fileiras. Divisões internas e escândalos, como casos de corrupção e até uma condenação por assassinato de um líder no estado de Indiana, minaram o apoio popular. Um resultado imediato foi a fragmentação e radicalização do movimento. Grupos passaram a agir de forma independente e, de linchamentos, passaram ao terrorismo escancarado. Em Birmingham, uma das mais importantes cidades do Alabama, ataques com bombas incendiárias a residências de negros nos anos 50 eram tão constantes que a cidade ganhou o apelido de “Bom-bingham”. O terror acabou criando a própria derrocada da Klan. Em 1963, um atentado a bomba a uma igreja batista do Alabama matou quatro crianças e chocou o país. O então presidente Lyndon Johnson assinou o Decreto dos Direitos Civis de 1964, um marco na história das relações raciais e da democracia nos Estados Unidos.

Ainda nos anos 60, o surgimento do Movimento pelos Direitos Civis e a mobilização pelo fim da segregação racial nos EUA (negros, por exemplo, só tiveram direito universal de voto a partir de 1965) também foram fatores que ativaram a terceira encarnação da Klan. Ativistas que vinham dos estados do norte eram alvos preferenciais da organização, e as investigações do FBI sobre diversos incidentes no sul dos EUA durante a década de 60 serviram de pano de fundo para o filme Mississippi em Chamas. Quando o governo enfim aprovou a legislação de igualdade racial, também foi restaurado um ato especial que serviu para coibir as ações da KKK no século 19 – e os ataques começaram a ficar cada vez mais isolados, embora linchamentos, por exemplo, tenham ocorrido até 1981. A Klan era uma entidade anacrônica, que sobrevivia em pequenas comunidades atrasadas nas regiões mais pobres dos EUA. Era essa a “supremacia branca”?

FONTE - uncyclopedia.wikia.com
FONTE – uncyclopedia.wikia.com

Pequena e furiosa

A Suprema Corte dos EUA julga todo tipo de litígio. Poucos despertaram mais curiosidade pública em 2012 que um pedido de apelação impetrado pela Ku Klux Klan no estado da Geórgia contra a decisão do Departamento de Transportes local de negar a participação do grupo no “Adote uma Rodovia”, programa em que diversas organizações ao redor do país custeiam ou promovem mutirões para a limpeza de trechos de estrada. Ainda tramitando na Corte, o caso chamou a atenção não só pelo envolvimento de uma das mais temidas e notórias associações extremistas da história americana, mas pelo que soou como uma tentativa de jogada de marketing, incluindo um certo tom de desespero – enfim, algo patético.

A Ku Klux Klan nunca pareceu tão isolada. Inclusive quando se leva em conta o racha ideológico no país revelado pelos resultados da recente eleição presidencial (veja ao lado). Na América do século 21, os capuzes brancos e as cruzes incandescentes deram lugar à retórica do movimento Tea Party, um radicalismo de terno e gravata. A KKK também cheira à irrelevância: depois ter milhões de integrantes engrossando suas fileiras no século 20, hoje conta com menos de 10 mil membros. A julgar pelo caso da Geórgia, eles parecem viver uma senhora crise de identidade.

FONTE - www.telegraph.co.uk
FONTE – http://www.telegraph.co.uk

“A sociedade americana mudou bastante nas últimas décadas e isso ajudou demais a transformar a Ku Klux Klan numa organização fora de moda e vista como um bando de malucos. Vive em franca decadência desde as conquistas do movimento pelos direitos civis do final década de 60”, explica o sociólogo Aaron Winter, pesquisador do grupo de estudos Extremis, que analisa movimentos de extrema direita americanos e ao redor do mundo. “E o fato de não estar conseguindo mudar esse quadro, mesmo com a polarização político-ideológica nos EUA, é evidência maior de como ela está obsoleta”, acrescenta.
Se a emancipação dos negros americanos foi um duro golpe para a Klan, a ascensão de Barack Obama resultou numa oportunidade de recrutamento. “A sociedade americana ainda tem muito racismo, e a eleição de Obama por si só não iria acabar com isso, lembra Aaron Winter. O sul do país permanece uma área volátil especialmente com o crescimento da população hispânica e dos sentimentos pouco simpáticos dos americanos quando se fala de imigração. Não por acaso, é um dos assuntos favoritos nos pronunciamentos da KKK. “Somos acusados de racismo, quando na verdade apenas queremos salvaguardar os interesses da população branca americana. Não odiamos ninguém”, afirmou, numa recente entrevista à rede de TV CNN, April Hanson, secretária de um grupo da Klan no estado da Geórgia. A história parece discordar da senhora Hanson, como demonstrou o atentado terrorista de Oklahoma City.

Nascida para odiar

O estatuto da primeira Ku Klux Klan é um exemplo de que a organização surgiu voltada à destruição. Conheça alguns tópicos do Prescript:
– Membros não podem ter lutado contra os confederados na Guerra Civil
– Membros devem se opor à igualdade racial
– Membros devem ser a favor de um governo de brancos
– Membros devem ser a favor do retorno dos direitos dos homens do sul, incluindo os de propriedade (e de ter escravos)
– Membros têm de estar prontos para pegar em armas contra os abusos do poder.

FONTE - www.dailymail.co.uk
FONTE – http://www.dailymail.co.uk

Os estranhos “patriotas” americanos

A Ku Klux Klan pode ser o mais famoso grupo radical de direita dos EUA, mas está longe de ser o único. De acordo com a organização antirracista Southern Poverty Law Center, o número de grupos de protesto contra o governo ou intitulados “patriotas” saltou de 149 para 1 200 desde a eleição de Barack Obama em 2008. “A Ku Klux Klan nem é a mais perigosa organização nesse universo, que vem crescendo por causa da intolerância racial e dos problemas econômicos do país. É um fenômeno sem precedentes e que ocorre num momento perigoso”, diz Mark Potok, pesquisador-chefe do SPLC. O espectro de intolerância é amplo. Conta com neonazistas e organizações pregando o rompimento de Estados com a União. A Segunda Emenda da Constituição dá a indivíduos o direito de portar armas e se organizar em milícias. Racistas e xenófobos dividem espaço com rebeldes nas atenções do FBI: grupos ou cidadãos que se declaram soberanos e desobrigados a respeitar as autoridades foram um dos que mais cresceram desde a chegada de Obama ao poder.

FONTE - misteriossemexplicacao.wordpress.com
FONTE – misteriossemexplicacao.wordpress.com

O ritual da cruz
Um dos símbolos da Ku Klux Klan é a cruz incendiada ou iluminada. O ritual é do ressurgimento do grupo, nos anos 20, e não existia no movimento original, do século 19

Brasão
O emblema circular tem uma gota de sangue no formato do número 6. Remete aos fundadores da KKK e ao sangue derramado dos brancos. Antes era em forma de cruz e tinha o símbolo do yin-yang.

Em nome de Deus
A Klan defende o homem branco, protestante e sulista. A Bíblia é parte integrante dos rituais.

Roupas brancas
A intenção era representar fantasmas de soldados mortos durante a Guerra Civil – e assustar os negros. A ideia surgiu no livro The Clansman e foi adotada pela segunda encarnação da KKK

Bandeira da Klan - FONTE - shark-tank.com
Bandeira da Klan – FONTE – shark-tank.com

Batismo
O novo integrante tem de recitar um juramento: “Lembrem a todo momento: fidelidade à fé jurada é honra, vida, felicidade. Mas, para quem infringi-la, significa vergonha, desgraça e morte”.

Cruz em chamas
Representa o Espírito Santo e era usada em todas as reuniões da KKK. Surgiu na segunda encarnação. A ideia veio do filme O Nascimento de uma Nação (1915)

Armas nos rituais
A Klan é um grupo armado (e que defende a posse de arma como símbolo da luta do indivíduo contra o Estado, o que é garantido na Segunda Emenda da Constituição americana, que permite a criação de milícias).
Bandeira Confederada
Ela representa o Exército do Sul, que se insurgiu contra a União durante a Guerra Civil americana (1861-1865). Foi adotada em 1949.


FONTE – http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/ku-klux-klan-ascensao-queda-atual-sobrevivencia-mais-radical-sociedade-odio-americana-768966.shtml

NEONAZISMO: OS FANTASMAS DE HITLER

Fonte - AFP/Getty
Fonte – AFP/Getty

Como a ideologia que prega o ódio renasceu na Europa, o mesmo cenário dos crimes contra a humanidade cometidos na Segunda Guerra – e como ela se espalha até mesmo no Brasil

TEXTO – Eduardo Szklarz – FONTE – http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/neonazismo-fantasmas-hitler-806550.shtml?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_avhistoria

O ruído era ensurdecedor. Jovens de camisas negras se aglomeravam na praça fazendo a saudação Heil Hitler! e entoando a Canção de Horst Wessel, o hino nazista. Num bar perto dali, intelectuais vociferavam contra gays, culpavam os estrangeiros pelo desemprego e advertiam sobre a “conspiração judaica” que levou o país à ruína.

A cena bem poderia ter ocorrido na Berlim dos anos 30. Mas aconteceu em 4 de junho passado em Atenas, berço da democracia, durante um ato do partido neonazista grego Aurora Dourada. Em toda a Europa, mas também em outros países, a chaga do nazismo renasceu e vem crescendo. Tal como ocorreu com Hitler e seus asseclas, usam-se as armas da democracia para atacá-la e destruí-la.

Russia - Fonte - www.thestar.com
Russia – Fonte – http://www.thestar.com

Nas eleições de maio para o Parlamento Europeu (PE), o Aurora Dourada elegeu três deputados. “Somos a terceira força política do país”, disse o porta-voz Ilias Kasidiaris, que tem uma suástica tatuada no braço. Grupos de extrema direita festejaram a presença recorde em um parlamento que a maioria delas rejeita. Na Alemanha, o neonazista Partido Nacional Democrático (NPD) conseguiu pela primeira vez um assento no PE. Na Hungria, o fascista Jobbik é a segunda maior legenda. A Frente Nacional, cujo patriarca, Jean-Marie Le Pen, sugeriu o vírus ebola para solucionar o problema da imigração, teve 25% de apoio dos franceses.

O que explica esse fenômeno? Qual foi o momento em que ser nazista/fascista deixou de ser vergonhoso para se tornar aceitável? É o que veremos nesta reportagem.

A fagulha nacionalista

A extrema direita não é um bloco monolítico. Alguns partidos são racistas, xenófobos, outros são contra muçulmanos ou gays. Muitos são tudo isso. Mas há um elemento comum a todos: o nacionalismo. “Nem todo nacionalismo é de direita e muito menos fascista, mas todo movimento nazifascista é nacionalista”, afirma o historiador Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, superintendente da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, em São Paulo.

Ucrânia - Fonte - http://www.globalresearch.ca/the-bbc-supports-ukraines-neo-nazis/5383112
Ucrânia – Fonte – http://www.globalresearch.ca/the-bbc-supports-ukraines-neo-nazis/5383112

Nacionalismos florescem em tempos de crise. Tem sido assim desde o final do século 19, quando russos massacraram milhares de judeus acusando-os pela morte do czar Alexandre II (1818-1881). A onda de perseguições se alastrou pelo Leste Europeu, onde judeus e outras minorias foram culpados pelas mazelas de cada país. Isso porque o nacionalismo não é um mero amor à pátria: é uma defesa ferina da identidade nacional que pressupõe a glorificação de “Nós” e a exclusão dos “Outros”. Por isso desemboca em violência.

Em 28 de junho de 1914, por exemplo, o nacionalista sérvio Gavrilo Princip disparou contra o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro da coroa austro-húngara. E deflagrou a Primeira Guerra. Durante o conflito, o nacionalismo serviu de base para a principal – e mais aterradora – invenção política do século 20: o fascismo. Era um movimento de massas autoritário e populista baseado no anticomunismo, na expansão imperialista e em um Estado policial que controlava a vida pública e privada das pessoas.

O fascista (e socialista na juventude) Benito Mussolini assumiu o poder na Itália em 1922 para logo implantar uma ditadura. “O fascismo reconfigurou as relações entre o indivíduo e o coletivo, de modo que o indivíduo não tinha direito algum fora do interesse da comunidade”, diz o historiador americano Robert Paxton no livro The Anatomy of the Fascism (“A Anatomia do Fascismo”).

Alemanha - Fonte - Reuters
Alemanha – Fonte – Reuters

Em 1933, o nazismo triunfou na Alemanha agregando um novo ingrediente ao pacote fascista: a raça. Hitler quis purificar a comunidade alemã dos seres considerados “inferiores”, entre eles judeus, homossexuais, eslavos, deficientes físicos e mentais. Segundo o führer, era preciso eliminar esses “bacilos” do corpo da sociedade para assegurar a supremacia ariana. Após a Segunda Guerra, contudo, o nacionalismo deu lugar ao mundo bipolar: EUA x URSS. As superpotências fatiaram o planeta em áreas de influência do capitalismo e do comunismo. Na lógica da Guerra Fria, ser extremista era vergonhoso. Mas não por muito tempo.

Cara nova

“O neonazismo surgiu na Europa entre as correntes de direita mais radicais. De certa forma, foi constituído pelos velhos nazistas que sobreviveram aos expurgos do pós-guerra, principalmente na Alemanha Ocidental”, diz Luiz Dario Ribeiro, professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

De fato, muitos nazistas convictos ingressaram no serviço público alemão após a guerra e aproveitaram os novos cargos para manter vivas as suas ideias. Foi o caso de Hans Globke, um dos autores das discriminatórias Leis de Nuremberg (1935) e colaborador de Adolf Eichmann, o arquiteto da “Solução Final”. Globke virou assessor do chanceler alemão Konrad Adenauer nos anos 50. Assim, o anticomunismo da Guerra Fria criou condições para que o caráter nazista desses agentes fosse esquecido.

Estados Unidos - Fonte - www.jewishpress.com
Estados Unidos – Fonte – http://www.jewishpress.com

O próximo passo deles foi criar organizações de fachada para incorporar novos membros. O alemão Partido Nacional Democrático (NPD) e o Movimento Social Italiano (MSI), por exemplo, eram agrupamentos nazifascistas que se escondiam atrás de nomes simpáticos. “Os novos membros eram jovens convencidos de que deveria haver uma luta de vida e morte contra os comunistas”, diz Ribeiro.

Nos anos 60, o neonazismo ganhou adeptos com a crise do colonialismo europeu. Grupos como o Occident e o Exército Secreto Francês (OAS) atraíram nacionalistas frustrados pela derrota da França nas guerras de independência da Indochina (1946-54) e da Argélia (1954-62). O OAS perpetrou atentados contra argelinos e tentou até mesmo assassinar o presidente francês Charles de Gaulle por permitir a descolonização.

Pierre Sidos, fundador do Occident, era filho de um membro da Milice – a brigada paramilitar francesa que caçou judeus e membros da Resistência durante a ocupação nazista. Sidos prosseguiu com as ideias do pai, recrutando universitários para combater os manifestantes que pediam reformas no Maio de 68. De Gaulle proibiu o Occident, mas vários de seus membros integraram a Frente Nacional, fundada por Le Pen em 1972.

Espanha, material de grupos neonazistas apreendido - Fonte - http://antoniosalasjournalist.blogspot.com.br/2013/08/hammerskin-condemns-neo-nazi-group.html
Espanha, material de grupos neonazistas apreendido – Fonte – http://antoniosalasjournalist.blogspot.com.br/2013/08/hammerskin-condemns-neo-nazi-group.html

Os neonazistas também buscaram reabilitar a ideologia de Hitler. E para isso recorreram a uma teoria pseudocientífica, o revisionismo, que acusava os vencedores da guerra de contar a História à sua maneira. O pai do revisionismo foi o historiador francês Paul Rassinier. Ele havia sido prisioneiro político dos nazistas mas começou a defender o Tercero Reich depois da guerra. Ele negava o Holocausto. “Eu estive lá e não havia câmaras de gás”, dizia. De fato. Rassinier esteve em Buchenwald, um campo de concentração situado na Alemanha que realmente não tinha câmaras de gás. Os campos de extermínio ficavam na Polônia ocupada, como em Auschwitz e Treblinka, dotados de câmaras de gás e crematórios. Mas os livros delirantes de Rassinier conquistaram leitores na Europa e foram traduzidos nos EUA pelo historiador Harry Elmer Barnes – outro adepto de teorias da conspiração.

Barnes dizia que os julgamentos de nazistas como Eichmann eram uma tramoia sionista e descrevia os Einsatzgruppen (esquadrões da morte da SS) como “guerrilhas”. Outro revisionista norte-americano, Francis Parker Yockey, tinha ideias ainda mais estranhas. Ele defendia uma união totalitária entre a extrema direita, a URSS e governos árabes para derrotar o “poder judaicoamericano”. Yockey foi preso pelo FBI por fraude, com três passaportes falsos, e se matou na prisão em 1960. Mas seu livroImperium se tornou objeto de culto dos neonazistas.

Gangues se aliam aos partidos

O nacionalismo sofreu uma metamorfose com a crise do petróleo de 1973. Em meio à recessão europeia, os extremistas adotaram um novo inimigo: o imigrante, sobretudo aquele oriundo das ex-colônias árabes. “A xenofobia atraiu jovens desempregados e sem perspectivas para a extrema direita”, diz Ribeiro.

Grécia - Fonte - www.theguardian.com
Grécia – Fonte – http://www.theguardian.com

Foi o caso dos skinheads, uma tribo formada nos anos 60 na Inglaterra por jovens de classe baixa que curtiam ritmos como ska e reggae. Os skinheads originais não eram racistas (muitos eram negros jamaicanos), mas alguns deles atacavam gays e asiáticos. E, na recessão dos anos 70, uma ala do movimento se vinculou ao partido neonazista inglês National Front (NF), que promovia a “superioridade branca”.

“Os partidos de extrema direita precisavam de militância e a encontraram nas gangues”, diz Nóbrega. Gritos de guerra xenófobos entraram para o repertório dos hooligans – torcedores de futebol conhecidos por deixar um rastro de vandalismo e pancadaria. O jornalista americano Bill Buford conviveu durante quatro anos com hooligans do Manchester United, na década de 80, e viu como eles eram facilmente recrutados pelo NF.

Mas nem todos os brutamontes que surravam estrangeiros estavam desempregados. Muitos aderiram à violência xenófoba por pura sede de adrenalina. Foi o caso de Mick, o primeiro hooligan que Buford conheceu. “Ele parecia um eletricista perfeitamente feliz, com um enorme maço de dinheiro no bolso para comprar passagens e ver os jogos”, diz Buford no livro Entre os Vândalos. E, enquanto cooptavam as gangues, os partidos de extrema direita seduziam os eleitores. Em 1984, por exemplo, a Frente Nacional obteve quase 11% dos votos dos franceses e elegeu 10 membros ao Parlamento Europeu. Um deles foi Dominique Chaboche, antigo membro do grupo Occident.

Itália - Fonte - http://www.thelocal.it/20130814/neo-nazis-prepare-to-party-in-Milan
Itália – Fonte – http://www.thelocal.it/20130814/neo-nazis-prepare-to-party-in-Milan

Para recuperar terreno, partidos de esquerda também assumiram o discurso xenófobo e racista. Entre eles o Partido Socialista (PS) francês e o Partido Comunista Italiano (PCI), que acusaram os imigrantes de macular a cultura nacional. O objetivo era frear a debandada de eleitores para a direita. O resultado foi desastroso. Judeus franceses estão arrumando malas para mudar para Israel por medo de perseguição. De janeiro a maio, 2,5 mil franceses emigraram, quatro vez mais que em 2013.

No fim dos anos 80, as células extremistas já haviam erguido uma rede internacional. Ela era articulada pelo alemão Michael Kühnen, o norueguês Erik Blücher e o belga Léon Degrelle, um ex-general de Hitler que vivia na Espanha e liderava o Círculo Espanhol de Amigos da Europa (Cedade). Kühnen revelou que era gay em 1986, quando estava preso por incitar à violência. Após sua morte em decorrência da aids, em 1991, o neonazismo na Alemanha foi levado adiante por Christian Worch.

Nos EUA, a rede cresceu graças a Willis Carto, fundador do Instituto para a Revisão Histórica (IHR) e do extinto Liberty Lobby – que publicava o jornal antissemita Spotlight. Timothy McVeigh, o terrorista que em 1995 detonou um caminhão-bomba em frente a um edifício em Oklahoma City, deixando 168 mortos e 700 feridos, era leitor assíduo do Spotlight. McVeigh colocou anúncios no jornal para vender munição.

Inglaterra - Fonte - www.birminghammail.co.uk
Inglaterra – Fonte – http://www.birminghammail.co.uk

Fascismo maquiado

O grande salto da extrema direita veio após o fim da URSS, em 1991. Grupos nacionalistas até então sufocados pelo regime soviético despontaram no Leste Europeu. Com o fim do comunismo e a social-democracia desmoralizada, os extremistas europeus capitalizaram nas urnas. Na Dinamarca, por exemplo, o Partido Popular obteve 13 cadeiras no Parlamento em 1998. “O ressurgimento do fascismo na Europa pós-Guerra Fria não é orquestrado por um ditador seguido por homens com camisas pardas e braçadeiras com suásticas”, diz o jornalista norteamericano Martin A. Lee no livro The Beast Reawakens (“A Besta Desperta”). “Uma nova geração de extremistas de direita, sintetizada pelo führer do Partido da Liberdade austríaco, Jörg Haider, adapta sua mensagem e seus modos aos novos tempos.”

Haider foi duas vezes governador do estado da Caríntia, na Áustria, e só não foi mais longe porque morreu num acidente de carro em 2008. Mas outros líderes como ele têm chegado lá. O búlgaro Volen Siderov ficou em segundo lugar nas eleições presidenciais em 2006. Seu partido, Ataka (“Ataque”), é hoje o quarto maior da Bulgária, com 23 cadeiras no Congresso.

Chile - Fonte - laprensa.peru.com
Chile – Fonte – laprensa.peru.com

Graças à internet, os extremistas propagam sua animosidade de forma simples e barata. Um dos primeiros sites de ódio foi o Stormfront, criado em 1995 por Don Black, ex-líder da Ku Klux Klan. Hoje o site conta com 250 mil membros e um fórum online com mais de 9 milhões de posts. A nebulosa virtual inclui o site Radio Islam, que dissemina propaganda antissemita em 23 idiomas. Esses portais seguem a tática de Hitler: usar a democracia para propagar mensagens antidemocráticas.

“Como a liberdade de expressão é um dos bens mais apreciados em qualquer democracia, ela não pode ser regulada de antemão. Cada caso tem que ser analisado”, diz Sergio Widder, representante do Centro Simon Wiesenthal para a América Latina. E nenhum país preza a liberdade de expressão mais do que os EUA. Isso explica por que muitos neonazistas hospedam seus sites em território norte-americano.

França - Fonte - www.vice.com
França – Fonte – http://www.vice.com

Por suas leis permissivas, os países escandinavos se transformaram em refúgio de extremistas. Não é à toa que o marroquino Ahmed Rami, fundador da Radio Islam, reside na Suécia. Redes de skinheads, como Combat 18 e Blood & Honour, também difundem sua mensagem através de DVDs, CDs e shows ao redor da Europa sob o olhar complacente da polícia.

“Precisamos encontrar respostas que se adaptem aos novos desafios. Não podemos confrontar o nazismo do século 21 da mesma forma que nos anos 80”, diz Widder. Em 2010, por exemplo, a Rússia proibiu a publicação de Minha Luta, a autobiografia de Hitler, para tentar conter o extremismo. Mas o livro está disponível na web, virou best-seller entre os ebooks e tem mais de 100 versões à venda na Amazon. “A obra de Hitler é uma fonte para quem estuda o nazismo. Não sei se proibir o livro é a melhor resposta. Vamos censurar o acesso à internet?”, diz Widder.

Encontrar respostas é difícil numa era em que a xenofobia existe até em governos democráticos – a França expulsou mais de 20 mil ciganos nos últimos anos. E o nazismo volta a assombrar quase sete décadas após a derrota alemã na guerra. Segundo estudo da Universidade de Leipzig, um em cada seis alemães orientais tendem à extrema direita. Em 2002, era só um em cada doze. Na Espanha, 18 mil tweets “#putosjudios” (putos judeus) foram postados após a vitória do Maccabi Tel Aviv sobre o Real Madrid, em maio passado, na Euroliga de Basquete – e houve comentários racistas durante a Copa do Mundo contra torcedores brasileiros.

Peru - Fonte - www.taringa.net
Peru – Fonte – http://www.taringa.net

“A História é cíclica: tende a se repetir. E ela nos mostra que esse tipo de ideologia é nocivo. Começa pequeno e vai crescendo por meio da demagogia, muitas vezes com um discurso maquiado”, diz Carlos Reiss, coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, único do gênero no Brasil. Aqui, aliás, páginas do Facebook cultuam a supremacia branca com ofensas a negros e índios. “Não somos racistas, somos orgulhosos”, proclama uma delas, que tem mais de 8 mil likes.

ELES ESTÃO ENTRE NÓS
Cresce o número de brasileiros envolvidos com o neonazismo

O neonazismo também se prolifera no Brasil, porém de forma mais clandestina do que na Europa. Os adeptos dificilmente mostram a cara em manifestações públicas, mas estão bem organizados e encontraram na internet o meio ideal para disseminar ideias antissemitas e racistas. Aproximadamente 150 mil brasileiros baixam mensalmente mais de 100 páginas com esse tipo de conteúdo, de acordo com a antropóloga Adriana Dias, que estuda o tema há 12 anos.

Brasil - Fonte - pt.wikipedia.org
Brasil – Fonte – pt.wikipedia.org

A pesquisadora mapeou o neonazismo no país e monitora o movimento na internet. Entre 2002 e 2009, o número de sites específicos saltou de 7,6 mil para 20,5 mil, um aumento de 170%. Nos últimos nove anos, o número de blogs cresceu mais de 550%.

A internet é hoje o meio de comunicação usado para expressar os mais variados tipos de intolerância. Em novembro de 2010, na eleição de Dilma Rousseff – a candidata mais votada no Nordeste –, 3 mil denúncias de manifestações preconceituosas nas redes sociais foram feitas na SaferNet Brasil, entidade de combate a crimes e violação aos direitos humanos na internet.

Com uma grande população de origem alemã, o Sul é a região de maior concentração de neonazistas. Em São Paulo e Distrito Federal, o movimento também vem crescendo, de acordo com o estudo. Não existe um pensamento único entre os neonazistas brasileiros. Em 2009, o estudante de arquitetura Bernardo Dayrell Pedroso, de 24 anos, uma liderança nacional de extrema direita que estava criando uma dissidência entre mineiros e paulistas, foi assassinado. Ele e a namorada, Renata Waeschter Ferreira, de 21 anos, foram mortos a tiros na volta de uma festa de comemoração dos 120 anos de Adolf Hitler.

Grupo de neonazistas de Niteroi-RJ, presos com seu material de propaganda, depois de terem agredido o natalense Cirley Santos - Fonte - http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/neonazistas-ovacionaram-hitler-antes-de-agredirem-nordestino
Grupo de neonazistas de Niteroi-RJ, presos com seu material de propaganda, depois de terem agredido o natalense Cirley Santos em 2013 – Fonte – http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/neonazistas-ovacionaram-hitler-antes-de-agredirem-nordestino

“Precisamos estar alertas para combater esse tipo de crime”, diz Anita Novinsky, professora da Faculdade de História da Universidade de São Paulo, ao se referir às manifestações racistas que proliferam na internet e ao crescimento de grupos radicais no país. “Não podemos esquecer que o nazismo ganhou corpo e criouuma política de extermínio em apenas seis anos na Alemanha.”

Anita veio da Cracóvia, Polônia, pouco antes da Segunda Guerra, com os pais, para escapar do massacre que estava por vir. Mas a maioria dos parentes dela foi parar em campos de concentração. “A mídia é capaz de transformar qualquer país em qualquer coisa. É muito perigoso, principalmente se houver apoio do governo. Por sorte, o Brasil é um país democrata, com leis rígidas para coibir a intolerância racial, de classes ou de gêneros”, afirma a professora.

O PERFIL DO INTOLERANTE
  • Há 300 grupos neonazistas, 90% deles se concentram em São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.
  • Os integrantes são brancos, homens e jovens. A maioria com ensino superior.
  • Para se inserir nas células, é necessário enfrentar um ritual de iniciação. Geralmente, espancar um negro ou judeu na rua.
  • Se aceito no movimento, o novato recebe senha para acessar um manual, que lhe dirá, entre outras coisas, como reconhecer um útero branco – a mulher perfeita para procriação de um neonazista.
  • Mulheres não são muito ativas no movimento.
  • A maioria tem dificuldade de socialização.
  • Acham que os brancos perderam o poder desde a eleição de Lula. Isso tem a ver com o preconceito contra nordestinos e à ascensão da nova classe média.
  • São fundamentalistas religiosos – o que ajuda a confundir liberdade religiosa com crimes de ódio.*
 

The Anatomy of the Fascism, Robert Paxton, Vintage, 2005

Entre os Vândalos, Bill Buford, Companhia de Bolso, 2010

The Beast Reawakens, Martin A. Lee, Routledge, 1999

Antissemitismo e Nacionalismo, Negacionismo e Memória, Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, Unesp, 2006

NATALENSE É AGREDIDO POR GRUPO NEONAZISTA EM NITERÓI, NO RIO DE JANEIRO – RAZÃO DO ATAQUE : SER NORDESTINO

Grupo que atacou o natalense detido e os artefatos nazistas
Grupo que atacou o natalense detido e os artefatos nazistas

Sete jovens neonazistas foram presos na manhã deste sábado (27) na Praça Araribóia, no Centro de Niterói, no Rio de Janeiro, após agressão ao natalense Cirley Santos, de 33 anos.

Morador de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, desde os cinco anos, Cirley Santos, 33, nasceu em Natal (RN) e teme retomar sua rotina após a agressão que sofreu no sábado (27), em frente à estação das Barcas, em Niterói. 

Ele levou um soco que quebrou seus óculos de sol e só não foi emboscado pelos outros seis integrantes do grupo que aguardavam em um carro porque as pessoas que passavam no local alertaram a Guarda Municipal, que conseguiu deter o grupo. Os guardas encontraram os dois agressores dentro de um carro Peugeot preto, próximo à praça. No veículo, estava o restante do grupo, totalizando cinco homens. 

Desempregado, Santos precisa voltar a procurar trabalho, mas teme sair sozinho. “Eu penso que tenho que mudar os lugares por onde passo, prestar mais atenção, não andar mais sozinho. Não sei se eles vão ficar presos por muito tempo, a maioria é da classe média”, disse o rapaz.

Não é a Primeira Agressão

Na delegacia, Cirley Santos contou que foi abordado pelos jovens quando atravessava a praça defronte a estação das Barcas. “Eles me apontaram e ele (Tiago Borges Pita, 28, suspeito da agressão) gritou ‘nordestino de merda’ e me deu um soco. Quem estava em volta viu os outros saírem do carro, mas eles chamaram a Guarda Municipal”, disse Santos.

Ele afirma já ter sido agredido por Pita há aproximadamente dois anos, em um bar de um posto de gasolina em São Gonçalo, onde tomava cerveja com amigos. Na ocasião, Santos vestia uma camiseta com uma bandeira da Jamaica.

“Ele [Pita] me chamou de ‘amante de negros’ e me deu um golpe com um pequeno canivete entre os dedos. Dessa vez também tinha gente em volta, e ele correu. Ele estava sozinho”, afirmou o rapaz, que não prestou queixa à polícia, mas diz não ter esquecido o rosto de Pita. “Só depois que vi que tinha um ferimento no braço, aí fui ao hospital.”

No Brasil fazer apologia ao nazismo e ao racismo é crime sem direito a fiança. Este enquadramento é dado pelo artigo n. 20, parágrafos 1 e 2, da Lei n. 7716 de 5/1/1989 (redação destes parágrafos atualizada pela lei n. 9459 de 15/5/1997
No Brasil fazer apologia ao nazismo e ao racismo é crime sem direito a fiança. Este enquadramento é dado pelo artigo n. 20, parágrafos 1 e 2, da Lei n. 7716 de 5/1/1989 (redação destes parágrafos atualizada pela lei n. 9459 de 15/5/1997

“Paraíba”

Para esquecer e espairecer, Santos foi no sábado à noite a uma festa nordestina que acontecia em seu bairro. Apesar de ter saído ainda pequeno de Natal, ele gosta de participar de festas e outras manifestações culturais nordestinas. Ele disse que já sentiu outras formas de preconceito devido ao lugar de onde veio e que também já viu amigos serem hostilizados.

“Já vi meus amigos serem chamados de paraíba. Não fico pensando muito nisso, não quero sentir raiva. A vida continua”, disse Santos.

Material nazista e iniciação

Pita está preso com os demais membros do grupo: Carlos Luís Bastos Neto, 33; Davi Ribeiro Moraes, 39; Caio Souza Prado, 23; Philipe Ferreira Ferro Lima, 21; e Jéssica Oliveira Charles Ribeiro, 26. Um adolescente de 15 anos também foi detido. Ele irá para um abrigo, e os demais para uma unidade do complexo penitenciário de Gericinó, em Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro.

No carro, a polícia encontrou objetos para tortura, bandeiras com suásticas, blusas com símbolos nazistas, um taco de beisebol, botas com biqueiras de aço, livros sobre neonazismo e folhetos com propaganda nazista. A suspeita é de que o grupo iria para um churrasco de iniciação de um membro que aconteceria em Icaraí, bairro nobre de Niterói.

Eles foram encaminhados à 77ª DP (Icaraí), onde foram indiciados por formação de quadrilha, corrupção de menores e intolerância racial, religiosa, por cor ou etnia, prevista na lei 7.716. Pita também foi indiciado por lesão corporal dolosa (com intenção). 

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De acordo com a delegada-adjunta do distrito, Helen Sardemberg, o crime de intolerância não prevê pagamento de fiança, e eles serão soltos somente se conseguirem liberdade provisória por alguma ordem judicial.

A vítima reconheceu o grupo e a polícia vai investigar se os suspeitos estão envolvidos em outra agressão ao mesmo rapaz. A família de um dos presos enviou um advogado à delegacia, que disse ainda não ter condições de dar declarações sobre o flagrante.

P.S. – Isso tudo ainda ocorre com um rapaz que foi para esta cidade carioca com 5 anos de idade. No meu caso eu estaria lascado com meu sotaque carregado.

Fico preocupado de existir um grupo neonazista no Rio de Janeiro, terra que tanto admiro, onde tenho inúmeros amigos e que na nossa história foi o principal destino escolhido por milhares de potiguares na busca de dias melhores no sudeste do Brasil.

Em um caso revoltante como este, clamo que ocorra justiça, pois se não será muito difícil para o Rio receber Copa do Mundo e Olimpíadas. 

PRECONCEITO E RACISMO CONTRA NORDESTINOS – FATO ANTIGO

ATÉ MÁRIO DE ANDRADE JÁ SE POSICIONOU CONTRA ISSO

Autor – Rostand Medeiros

Existe muita coisa de boa e de ruim do ser humano, mas certamente uma das piores é o preconceito e o racismo em relação as suas origens. E você só sabe como funciona este tipo de situação, e o quanto isso é perverso, apenas no dia que sente.

Em relação a este assunto, existe um movimento ocorrendo em São Paulo, terra maravilhosa e de muita gente boa, que revela uma situação triste e complicada.

Há um ano teve início um abaixo assinado divulgado na internet, do chamado “Movimento São Paulo para paulistas” http://tudoporsaopaulo2010.blogspot.com/

Sou uma pessoa que se impressiona muito com o preconceito e com o racismo, pois durante mais de dez anos trabalhei como Guia de Turismo em Natal, onde conheci e fui alvo de preconceito e racismo pelo fato de ser nordestino.

Ser nordestino, viver no Nordeste, me causa muito orgulho. Neste sentido os fatos que infelizmente tive o desprazer de presenciar foram mais amargos ainda, pois ocorreram na minha própria terra.

Lembro-me que, talvez devido ao fato de ter a pele clara, sempre me diziam que eu “-Não parecia com um nordestino!”. Na mesma hora eu respondia; “-Mas para você, como se parece um nordestino?”.  Daí, primeiramente, vinha a cara de surpresa, o risinho torto e sem graça, os olhos procurando algo perdido no espaço e as respostas mais ouvidas foram “-Ah, sei lá!”.

Quando havia alguma coisa errada na rua, como por exemplo, uma pessoa que jogava um papel na calçada, não faltava a sentença; “-Mas como nordestino faz besteira!”.

Outra coisa triste eram as comparações. Nunca consegui compreender como alguém gasta tanta grana para viajar, vem para outras cidades e, ao invés de curtir, fica ridiculamente fazendo comparações desairosas e negativas sobre o lugar visitado.

Ouvi muitas vezes a máxima que na nossa terra “só havia gente feia”. Afirmavam que sua região de origem do turista era diferente, pois lá o povo não era tão “misturado”. Misturado?

E por aí seguia.

Não vale nem a pena rememorar tais episódios de forma específica. Nem listar de forma ridícula “de qual estado vem os turistas mais racistas”, pois durante todo este tempo de luta no turismo, estes fatos negativos foram poucos.

Essa é a nossa unica imagem quando se fala em Nordeste?

Mas, infelizmente ocorreram e o ruim é que dá uma raiva difícil de esquecer!

Coisa Antiga

Mas voltando ao caso do triste e vergonhoso movimento paulista. O pior é que este tipo de preconceito, de racismo contra os nordestinos, não é novidade.

Anteriormente, principalmente para fugir da seca, o pobre sertanejo da nossa região seguia para o norte do país, para a Amazônia em busca do sonho da borracha e da terra cheia de florestas e rios. Mas houve o momento em que o destino mudou e no final da década de 1920 teve início o movimento de migração de nordestinos em direção a São Paulo. Logo começaram as críticas contra a chegada destas pessoas.

Em 1929 havia a ideia que nordestinos “desocupados e preguiçosos” eram trazidos para São Paulo para “vadiarem” na grande metrópole. Mas ouve vozes em contrário. Uma delas veio de um paulista de renome, ninguém menos que Mário de Andrade.

Em um artigo originalmente publicado em março de 1929, no jornal paulista “Diário Nacional”, tendo sido reproduzido integralmente no jornal natalense “A Republica”, no dia 7 de abril de 1929, o autor de “Turista Aprendiz”, mesmo iniciando o artigo afirmando que não iria “entrar nessa discussão sobre imigração nordestina”, faz uma defesa do trabalhador da nossa região que estava no seu estado.

Mário de Andrade

TRABALHADOR NORDESTINO

Mário de Andrade

Não pretendo entrar nessa discussão sobre imigração nordestina, que anda ascendendo ardores por aí. Discussão que deu lugar a patriotismos regionalistas muito detestáveis. Antipatrióticos.  E me parece que mal colocada. Excetuada alguma nota rara de visão exata (Amadeu Amaral, Antonio Bento de Araújo Lima), o problema foi tratado debaixo de uma mentalidade capitalista e não propriamente econômica.

Ainda outra coisa que ninguém distinguiu foi entre “proletário” nordestino e “desocupado” nordestino. Homem do campo. Homem da cidade. Em todas as cidades deste mundo se ajunta sempre uma população mariposa. A cidade atrai. Uma gente fraca, e o que é pior, dotada de todas as “habilidades” que a fraqueza engendra, vem chamada por esta atração. E fica por aí, na barra da saia da cidade, mariposando, vivendo de expedientes, na folga dos biscates. De fato essa gente vadia. E “vadeia” que no Nordeste significa brincar, cantar, dançar, se divertir.

E essa psicologia romântica do verbo “vadiar” nos da bem um elemento pra aquilatar da capacidade do homem do povo nordestino. Não se pode chamar de “vadiação” ao caso do individuo que vai pra city das cidades, a espera e trabalho. Muito menos ao fato do sertanejo na seca, rodeado pelo gado, estar esperando a hora de queimar o xiquexique pra criação comer. Esse mesmo homem é capaz de agüentar léguas a pé e tem capacidade física formidável. Basta ver o que é um samba ( ), um coco violento, durando a noite, para saber do que são capazes fisicamente os homens e mulheres nordestinos. A própria condição da vida nordestina em certas zonas, a do gado, a da carnaúba, é que obriga a longas estiagens de trabalho econômico. Porem, no vale do Assu, (carnaúba) pór exemplo, se diz que não tem noite sem samba. O proletário exerce nas noites a atividade que não teve por onde exercer durante o dia. E por isso o verbo “vadiar” mudou de sentido lá. Significa o brinquedo: o exercício às vezes duma fadiga inclemente, prodígio de esforço físico e habilidade. Ora o brinquedo é sempre uma transposição de atividades que não podem ser exercidas.

Porem não quero negar a existência do desocupado urbano nordestino. Existe como existe em S. Paulo, em Montevidéu, em Paris. E a psicologia do desocupado, do homem… da fuzarca, é a mesma por toda parte. Os agentes em busca de colonos pras fazendas não se dão ao trabalho de dias inteiros através do sertão, arrebanhando gente. Chegam nos portos e pegam as mariposas do biscate. Está claro que virá muito colono ruim assim. Mariposa não se transforma em proletário do dia pra noite Mas também sei de fazendeiro que coloniza a propriedade só com nordestinos. Porem não fia em agente. Manda, mas é o próprio sertanejo nordestino que já tem na fazenda, trabalhador, colono excelente, buscar os conhecidos dele, lá de Catolé do Rocha, de Martins, do Seridó, gente boa.

Descendente de índio ou africano o proletário nordestino conserva disso a psicologia de quem foi muito dominado e abatido. É manso. É bem mandado. É de uma obediência servil. Vive no Nordeste uma diferenciação de classes que me chocou. Às vezes me feriu mesmo. Não é a toa que nos últimos tempos está se dando uma recrudescência no emprego da expressão “senhor de engenho”. No geral iniciativa do proletário é circunscrita ao mínimo possível pelo “seu doutor”, que significa homem de gravata. Também pra explicar a psicologia do cangaceiro nordestino, o argumento dele se revoltar contra as injustiças da justiça me parece fácil por demais. Há sem duvida no cangaceiro um fundamento mais secular de revolta contra a injustiça social das classes. E contra a escravidão que, se perdeu a base de compra e venda, não perdeu o sentido de obediência e mando.

Quanto ao argumento que o proletário nordestino raro enriquece aqui, é argumento capitalista e não econômico.

Malfadado por uma terra que acumula omissões, o homem do povo nordestino se rege pelo “primo vivere”. É a psicologia da fome, mais dramática que condenável. Quando vem pro sul ganha fácil. Então se deslumbra. Vê tudo fácil, gasta, não amontoa. Fenômeno perfeitamente explicável em quem atinge terras de aventura capitalista. Se deu na Califórnia e no Alasca. No sul da África. Na Argentina e Brasil. Em S. Paulo, terra de aventura, tem centenas de estrangeiros que fazem o mesmo. Antes e depois de ricos. Porque a riqueza não justifica, os luxos rastaqüeras. Mas nós não censuramos o senhor conde Matarazo que esbanja um trust num monumento tumular ridículo. Porem por causa do proletário nordestino não se adaptar desde logo a mania de ajuntar ouros… a Prefeitura abre portãozinho  para quanto ricaço esbanje chique. Pelo menos que soubesse abrir portões maravilhosos, que nem os que a gente encontra em cemitérios nordestinos, o de Arez, o de Goianinha, o de Augusto Severo, por exemplo. Portões que nordestino fez. Mas os nossos problemas não tratam de civilização, de cultura, de economia. Se resumem a cócegas de capitalização.

O mais engraçado é que todos acabaram reconhecendo que o proletário é excelente. Porquê e praquê tanta birra então? Nós vivemos no geral suspeitos às franjas dos problemas brasileiros. Em vez de atacarmos diretamente os problemas, vivemos desbastando as superfícies dum instrumento malfeito. É o que o caracteriza, desde a Monarquia, a desídia nossa.

(Do “Diário Nacional”, de São Paulo)

O Conhecimento de Mário de Andrade Sobre o Nordeste

Percebemos que os apontamentos do escritor Mário de Andrade neste artigo certamente surgiram a partir das experiências do autor nas suas duas viagens pelo Norte e Nordeste do Brasil. Nestas aventuras etnográficas, Mário desejava conhecer o Brasil e o povo brasileiro. Elege o Norte e o Nordeste como regiões privilegiadas do que deveria visitar e realiza seus objetivos em duas distintas viagens de estudo e pesquisa.

Mário pesquisando o Brasil

Na sua segunda viagem ele demora-se no Nordeste em trabalho de coleta de documentos musicais, conhecendo músicas de “feitiçaria”, cocos, danças dramáticas, romances, cantos de trabalho. Quando esteve no Rio Grande do Norte no final de 1928, conheceu muita coisa na companhia de intelectuais locais, registrou em fotos as paisagens, a arquitetura, o sertão e a população dos locais visitados.

Mário de Andrade passa a escrever no jornal “Diário Nacional” a partir de 1927, onde publica a maior parte de sua produção, entre críticas, contos, crônicas e poemas, até 1932, quando o jornal é fechado. O “Diário Nacional” era o órgão noticioso do Partido Democrático, agremiação política a qual Mário de Andrade era filiado. Respondia pela redação do periódico Sérgio Milliet, Antônio Carlos Couto de Barros e Amadeu Amaral.

É Combatido

Percebo que este preconceito, este racismo regionalista existente no Brasil, só tende a crescer na medida em que crescem as nossas eternas e futuras crises econômicas, políticas, sociais, morais, éticas, etc., etc. É como uma espécie de válvula de escape para superar as frustrações de um momento.

Ainda bem que vivemos em uma democracia, onde todos tem o direito de manifestarem as suas ideias e por sorte existem pessoas que não se conformam com as ações preconceituosas e racistas, como a realizada pelo “Movimento São Paulo para paulistas”. Uma manifestação interessante sobre este movimento veio do jornalista Paulo Henrique Amorim, que mostra de forma clara e inteligente o que pensa quem cria este tipo de coisa.

Veja o link; http://www.conversaafiada.com.br/brasil/2010/11/08/o-que-pensa-quem-quer-sp-so-para-paulistas/

Ainda bem que depois de um ano ativo, pelo menos até a manhã de 24 de maio de 2011, o triste movimento “Movimento São Paulo para paulistas”, possuía 1849 assinaturas.

E, infelizmente, Também Existe Aqui

Como já senti o preconceito e o racismo pelo simples fato de ser de onde sou, é inevitável que dentre todas estas ações preconceituosas e racistas existentes por aí,  a que me chama mais a minha atenção é o que ocorre contra estrangeiros.

No passado muitos imigrantes vindos de outros países sofreram inúmeras formas de racismo ao desembarcarem no “grande país tropical”.

Assim ocorreu quando japoneses chegaram a mais de 100 anos e se tornaram alvo de fortes críticas e perseguições. Ou como aconteceu com os sírios e libaneses, que aqui eram chamados pejorativamente de “Turcos”. Ou com os “branquelos” alemães. No topo da lista não podemos esquecer os portugueses, que vinha da “terrinha” para serem alvos de eternas piadas.

Mesmo a distante China, que nem tinha tantos imigrantes no Brasil em épocas passadas, ficou conhecido como o país onde tudo que não prestava era mandado para lá. Era o famoso “Vai prá China!”, que tinha o mesmo significado de “Vai para aonde o diabo te carregue”.

Afora que, tudo que é mal feito em termos de produtos manufaturados vem do Paraguai e também da China.

E por aí vai.

Mas o irônico é que as piadas com os portugueses e a mania de se mandar tudo que não presta para a China diminuíram na medida que estes países ganharam mais prestígio no cenário mundial.

Será que estas manifestações de preconceito e racismo é algo inerente ao DNA de todos os seres humanos que vivem na Terra?

Não sei, mas como existem quase 2.000 pessoas que assinam este tipo de manifesto público, infelizmente, em nossa querida Natal, igualmente existe preconceito e racismo.

No caso potiguar, os preconceitos e os racismos são múltiplos. Focados muitas vezes em quem tem mais que outros, na cor da pele, onde mora, qual seu sobrenome, a sua família, de onde se vem e outros mais.

Por aqui eu percebo que uma das coisas que mais incomoda muita gente é a miscigenação dos estrangeiros na “Capital Espacial do Brasil”.

Devido ao fato dos estrangeiros se casarem com potiguares morenas, de origem humilde, oriundas do interior, ou da Zona Norte de Natal, se diz que eles “só gostam de negas”.

Se você que está lendo este artigo e, por acaso, acha que não existe preconceito e racismo em Natal, é porque você é igual aos que participam do “Movimento São Paulo para paulistas” e devia assinar o manifesto.

Siga estas ideias

P.S.- Segundo site http://preconceitoouracismo.zip.net/, a diferença entre preconceito e racismo é a seguinte;

Preconceito: Atitude discriminatória que baseia conhecimentos surgidos em determinado momento como se revelassem verdades sobre pessoas ou lugares determinados. Costuma indicar desconhecimento pejorativo de alguém ao que lhe é diferente.

Racismo: É a tendência do pensamento, ou do modo de pensar em que se dá grande importância à noção da existência de raças humanas distintas e superiores umas às outras. Onde existe a convicção de que alguns indivíduos e sua relação entre características físicas hereditárias, e determinados traços de caráter e inteligência ou manifestações culturais, são superiores a outros.

Mas para mim é tudo terrível e sofremos da mesma maneira.

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