MULHERES QUE INSPIRAM – A HISTÓRIA DE UMA GUERREIRA DO MAR

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

As aventuras e épicos no mar sempre despertaram o interesse geral, e este é um fascínio muito antigo. Quase sempre vale a pena ler narrativas sobre os elementos da natureza marítima. Mas normalmente, os protagonistas desses feitos incríveis são homens.

E se uma mulher fosse protagonista de uma história marítima genuína e emocionante, os seus feitos seriam igualmente apreciados na sociedade atual?

Não me parece!

Para minha surpresa, esta mulher notável, com uma incrível história de sobrevivência no mar, está em grande parte esquecida no seu próprio país. E é um país conhecido por valorizar muito a sua própria história.

Essa seria a imagem de Mary Ann Brown na infância.

E olha que na época dos acontecimentos ela tinha apenas 19 anos e estava grávida do primeiro filho. Mas isso não a impediu de assumir o cargo de capitã de um grande veleiro depois que seu marido, o capitão, ficou gravemente doente. Ela fez isso em meio às tempestades traiçoeiras do Cabo Horn e da Passagem de Drake, que incluíram temperaturas extremamente baixas, ondas gigantes, ventos com força de furacão e muitos outros desafios. Ela também enfrentou um primeiro oficial tirânico e uma tripulação que tentou se amotinar. Porém, ela superou o cansaço, o medo e a dor e conseguiu chegar ao seu destino.

Esta é a sua história!

Uma Mulher do Mar

No nordeste dos Estados Unidos, no estado de Massachusetts, fica a grande cidade de Boston. Mesmo à sua frente está a cidade de Chelsea, um local que desde os seus primórdios tem uma forte ligação com o oceano. Em meados do século XIX, Chelsea desenvolveu-se como um importante centro industrial para a construção de veleiros, estabelecendo-se como uma potência neste setor nos Estados Unidos. Isso fez com que a cidade atraísse trabalhadores qualificados de todo o país e do mundo. E foi nesta cidade que, nas primeiras décadas do século XIX, chegou o casal inglês George e Elizabeth Brown.

George era um marinheiro profissional, com muitos anos de experiência no mar. Na nova cidade, rapidamente se envolveu em atividades marítimas. Elizabeth, como era costume no século XIX, tinha como único objetivo da sua vida cuidar da sua casa e dos seus filhos. Ainda mais por ser esposa de um marinheiro, que ficava frequentemente fora de casa, às vezes por anos.

Mary Ann Brown Patten.

Mas estas ausências não impediram George e Elizabeth de criarem uma família numerosa, cujos filhos estavam ligados ao mar. Nesta época, não foi surpresa que Mary Ann Brown, nascida em 1837, se casasse aos 16 anos com Joshua Patten, um encantador capitão do mar nove anos mais velho que ela. Mary Ann foi descrita como uma bela jovem com traços atraentes, modos refinados e graciosos, uma figura esbelta e pequena, longos cabelos escuros e olhos castanhos vibrantes.

Joshua trabalhou no comando de veleiros, transportando cargas e passageiros de Nova York a Boston. Mas ele era uma estrela em ascensão entre os capitães de navios, por isso não foi surpresa quando lhe foi oferecido o comando de um elegante e poderoso Clipper.

Este tipo de navio surgiu à medida que o comércio e a economia global se expandiam. Basicamente, era um tipo de veleiro de carregamento rápido que se originou nos Estados Unidos e teve seu apogeu em meados do século XIX. As características mais marcantes do navio eram a proa bem cortada, a largura estreita em relação ao comprimento e as altas velocidades alcançáveis. Esses recursos resultaram em espaço de carga limitado em favor da velocidade. Os mastros, postes e estruturas eram relativamente grandes, e velas adicionais a favor do vento eram frequentemente usadas. Este tipo de embarcação requer um grande número de tripulantes e comandantes experientes e bem preparados. Joshua Patten foi um deles!

Uma Mulher a Bordo

Pintura original do Clipper Neptune’s Car.

Ele recebeu um veleiro pesando mais de 1.600 toneladas, com velas enormes, e batizado de Neptune’s Car (Carro de Netuno).

Este navio foi lançado em 16 de abril de 1853, no estaleiro Page & Allen Company, na cidade de Portsmouth, Virgínia. Posteriormente, foi adquirida pela empresa de transportes Foster & Nickerson’s Line de Nova York. Em sua época, o Neptune’s Car era considerado um barco longo e elegante. Tinha 68 metros de comprimento, boca de 12 metros e capacidade para transportar 1.616 toneladas de carga. Ela tinha três mastros altos e carregava 25 velas, a maior das quais tinha aproximadamente 21 metros de diâmetro. Um verdadeiro colosso do seu tempo.

Uma pintura do famoso Clipper Cutty Sark, de Jack Spurling. Este navio está inteiramente preservado na Inglaterra.

Entre os principais destinos alcançados pelos velozes Clippers estava a cidade norte-americana de São Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos. O problema era que, antes do Canal do Panamá, a única forma de chegar lá por mar era partir de um porto da costa leste, sendo Nova York o principal, e navegar para sul ao longo de toda a costa da América do Norte. E pelo sul, atravessando o traiçoeiro Cabo Horn e a Passagem de Drake, entrando no Oceano Pacífico, depois traçando todo o litoral sul-americano em direção ao norte, passando pela costa do México, e finalmente chegando a São Francisco. Uma viagem com duração de quatro meses e aproximadamente 24 mil quilômetros. Apesar dos desafios e obstáculos, esta rota desempenhou um papel crucial no apoio à economia em expansão impulsionada pela mineração de ouro na Califórnia. As empresas de transporte marítimo obteriam enormes lucros entregando prontamente alimentos e suprimentos para a área.

Anúncio original do Clipper Neptune’s Car.

O Neptune’s Car completou com sucesso sua primeira viagem entre Nova York e São Francisco, com a navegação provando ser um sucesso. Porém, o relacionamento entre a tripulação deixou a desejar. Entre os problemas ocorridos com o comandante e a tripulação, não faltaram ameaças de motim. O capitão avisou que atiraria em qualquer um que ousasse concretizar tal ideia. Evidentemente, todos a bordo foram para a rua e Joshua Patten foi chamado para assumir o comando.

Logo, Lady Mary Ann Brown Patten insistiu em se juntar ao marido em sua primeira viagem como capitão do Neptune’s Car. Ela teve uma oportunidade que poucas mulheres de sua época teriam: conhecer o mundo a bordo de um navio.

Eles viajaram para o extremo sul do continente americano e entraram no Oceano Pacífico antes de chegarem a São Francisco. Desta cidade surgiu um novo trabalho de transporte de cargas, e eles seguiram para Xangai, na China, onde embarcaram uma grande quantidade de chá com destino a Londres, na Inglaterra. Eles retornaram ao Oceano Atlântico navegando pelo traiçoeiro Cabo Horn a caminho de seu destino. Eles passaram vários meses juntos no mar antes de retornarem para Nova York, Boston e Chelsea.

Embora as mulheres tripulantes de navios fossem muito raras naquela época, não era incomum que as esposas dos comandantes estivessem presentes nos navios de carga. Nos jornais do século XIX, era comum encontrar notícias no site da Biblioteca Nacional sobre navios ancorados no porto do Rio de Janeiro. Essas matérias mencionavam o nome do navio, a tonelagem, a carga, o capitão, os tripulantes e ainda destacavam a presença da esposa do comandante, que os jornais frequentemente elogiavam.

Normalmente, durante a navegação, as esposas desses oficiais permaneciam em suas cabines, realizando atividades como ler, tricotar ou tocar algum instrumento musical próprio de senhoras modestas. Ocasionalmente, elas saíam para tomar um pouco de ar fresco e acompanhavam seus maridos em caminhadas tranquilas pelos portos de destino. Mas para Mary Ann Potter, permanecer a bordo seria diferente.

Ela não queria ser apenas a “esposa do capitão”. Ela estava determinada a ser útil e aprender tudo o que pudesse para ajudar o marido a bordo do Neptune’s Car.

Diz-se que Mary Ann passava o tempo pesquisando na pequena biblioteca do navio, lendo sobre a medicina rudimentar de sua época e ajudando os marinheiros com suas doenças. Joshua, por sua vez, ajudou sua esposa em sua busca por conhecimento, ensinando-lhe os conceitos básicos de navegação, meteorologia, cordas, velas e outras funções dos marinheiros. Ele também ensinou sua esposa a navegar usando equipamentos como sextante, bússola, astrolábio e cartas de navegação. Apesar de enfrentar certas limitações financeiras, Mary recebeu o apoio necessário de sua família em Chelsea para receber uma educação excelente. Ela não demonstrou dificuldades em compreender conceitos técnicos complexos.

O que ninguém a bordo do Neptune’s Car tinha ideia era da utilidade futura desses ensinamentos.

E seria um futuro muito problemático!

A Ganância dos Impuros

Em julho de 1856, o Neptune Car estava se preparando para sua segunda viagem com o Capitão Joshua no comando. Mary Ann acompanharia o marido, mas estava grávida do primeiro filho. Só ela e Joshua compartilharam esse segredo. Provavelmente acreditavam que haveria tempo suficiente para viajar de Nova York a São Francisco e que a criança nasceria em Chelsea quando voltassem. Uma ideia um tanto arriscada.

Uma pintura de 1855, de Fitz Henry Lane, mostrando o porto de Nova York.

Pois bem, sabemos que naquela época as mulheres eram ensinadas a se considerarem e agirem como o “sexo mais fraco”, e que deveriam sempre se proteger para evitar problemas. Mas acho que Mary Ann faltou àquela aula!

Os problemas logo começaram.

Durante o ataque, houve um acidente e o leal primeiro oficial de Joshua quebrou a perna. Os financiadores Foster & Nickerson, ansiosos por não perder tempo, colocaram um jovem inexperiente chamado William Keeler nesta posição delicada. Algo imprudente, pois depois do comandante, ele era o primeiro oficial que tomava todas as decisões de um navio.

Os problemas continuaram quando Joshua começou a se sentir mal devido a uma doença desconhecida, que só pioraria seu estado mais tarde. Mas Foster & Nickerson, uma dupla de capitalistas ambiciosos e sem coração, desconsideraram a situação difícil do seu empregado e lançaram-no ao mar com Keeler.

O principal motivo de toda essa correria foi que a Foster & Nickerson não queria lucrar apenas com a entrega de cargas. Eles fizeram uma aposta substancial contra os proprietários de outros três navios Clippers que estavam programados para viajar na mesma rota de Nova York a São Francisco, todos partindo simultaneamente. Como o Neptune Car ainda era um navio relativamente novo, eles queriam demonstrar as suas capacidades e garantir que seria o primeiro a chegar ao porto de destino. É verdade que o capitão vencedor poderia ganhar entre US$ 1.000 e US$ 3.000, o que era considerado uma fortuna na época, se completasse a viagem primeiro. Apesar do incentivo, na verdade, a linha Foster & Nickerson seguiu a antiga tradição de indivíduos ricos que estavam dispostos a arriscar a vida de seus funcionários para superar outros indivíduos ricos.

Então eles partiram, e Joshua confiou a Keeler para manter o curso enquanto ele tentava descansar e se recuperar com a ajuda de sua esposa. Mas Keeler provou ser um idiota incompetente em pouco tempo. Sua lista de infrações é impressionante: ele dormiu metade de seus turnos, navegou em recifes de coral, exigiu ordens para tarefas simples e, por fim, recusou-se abertamente a realizar certas tarefas com os marinheiros, como içar velas. Cerca de um mês depois de partir de Nova York, o comandante Joshua trancou-se em sua cabine.

O navio estava no extremo sul e agora enfrentava constantes vendavais de neve e granizo. Nenhum dos outros membros da tripulação foi capaz de realizar a navegação. O segundo oficial era analfabeto e o terceiro era outro idiota que por acaso era amigo de Keeler.

Pintura de um Clipper enfrentando as ondas do temido Cabo Horn.

O capitão Joshua teve que ficar acordado dia e noite para manter o curso correto. Por causa disso, ele confiou cada vez mais em Mary Ann para ajudá-lo a confirmar sua posição, curso e velocidade. Ele reconheceu que ela era uma matemática melhor do que ele. Quando o grande navio chegou ao Estreito de Le Maire, estreita passagem marítima entre a Ilha dos Estados e o extremo leste da Terra do Fogo, na Argentina, o estado do capitão piorou. Ele teve febre, delirou e acabou incapacitado em sua cabine. Mary Ann então assumiu o comando pela primeira vez.

Se os problemas já eram enormes, para complicar ainda mais, a Mãe Natureza parecia decidida a atacar aquele veleiro com todas as suas forças. No Cabo Horn, o Neptune Car foi sacudido por ondas de quinze metros e ventos que atingiram velocidades de 160 quilômetros por hora. O céu escureceu, transformando-se em uma massa rodopiante de nuvens, vento e chuva. Sem saber a sua localização exata, Mary Patten decidiu que a sua única hipótese de sobrevivência era desviar-se temporariamente do curso mais curto e seguir para oeste, em antecipação a condições mais favoráveis. Ela então dirigiu o navio na direção sul-sudeste, navegando com o vento. Assim, o Neptune’s Car escapou rapidamente dos perigos do Cabo Horn.

Mas a maior ameaça ainda era aquele desprezível Keeler.

Capitão Mary Ann

Ao saber da saúde debilitada do capitão, ele enviou uma carta a Mary oferecendo-se para assumir o comando se ela o libertasse. Dada a extrema gravidade da situação do marido, ela inicialmente aceitou a oferta. Keeler gentilmente se ofereceu para aliviá-la do fardo e assumir o controle sozinho. Mas Mary Ann respondeu que não podia aceitar esta condição, pois tinham muitos problemas como casal. Keeler então tentou incitar a tripulação ao motim, mas felizmente eles recusaram.

A condição do capitão melhorou um pouco e ele concordou em deixar Keeler assumir o comando para dispensar sua esposa de suas funções. Ele pode não ter acreditado nas habilidades de Mary Ann, mas a condição dela também era complexa. Independentemente desta questão, rapidamente se tornou evidente que se tratava de um erro significativo.

Primeiro, devido à doença do capitão, Keeler proibiu Mary Ann de subir ao convés para fazer medições de navegação. Então, por motivos ainda desconhecidos dos que investigaram o assunto, o primeiro oficial começou a dirigir secretamente o navio em direção ao porto chileno de Valparaíso, apesar das ordens explícitas de ir diretamente para São Francisco. Porém, ele não possuía a competência da única mulher a bordo.

Mary Ann, apesar de estar praticamente confinada aos dormitórios, percebeu que eles estavam se desviando do rumo. E para provar isso, ela montou uma bússola básica nos aposentos do capitão e demonstrou a situação para Joshua. Ao confirmar a ação e com milhares de dólares em valiosos maquinários e suprimentos para os campos de mineração de ouro da Califórnia a bordo do navio, o capitão ordenou que o primeiro oficial fosse confinado novamente, após uma acalorada discussão com Mary Ann.

Mas isso foi demais para Joshua. O capitão desenvolveu uma pneumonia, o que só complicou a doença não diagnosticada que tinha no início da viagem: a meningite tuberculosa.

Mary, que ainda estava no sexto mês de gravidez, assumiu o controle total do navio. Apesar de sua deficiência intelectual, ela recebeu apoio e assistência do segundo oficial. O Neptune Car continuou avançando através de tempestades mortais que abalaram o navio. Enquanto isso, a situação de Josué piorou cada vez mais. A infecção se espalhou para seu cérebro, fazendo com que ele ficasse delirante, cego e parcialmente surdo.

Enquanto isso, dada a situação, Keeler tentou convencer a tripulação a se juntar a ele em um motim contra Mary Ann Patten. Ele ouviu os terríveis rumores sobre a conspiração e temeu que o desespero tornasse a tripulação vulnerável ao seu controle. Ela não podia deixar isso acontecer. O Dayle Tribune de Nova York relatou mais tarde: “Sra.” Patten reuniu os marinheiros no convés e explicou-lhes a terrível situação de seu marido, ao mesmo tempo que solicitou o apoio deles para ela e seu segundo imediato. Cada homem respondeu ao seu chamado com a promessa de obedecer a todas as suas ordens. A incomparável Sra. Patten agora dirigia todos os movimentos a bordo.

Agora, a capitã Mary Ann Patten avisou Keeler que o denunciaria às autoridades de São Francisco por tentativa de tumulto e que ele seria enviado para a prisão. Vale ressaltar que, naquela época, a pena mais comum para os amotinados era a morte por enforcamento.

Mais tarde, Mary comentou que passou 50 dias usando as mesmas roupas, com tempo mínimo para higiene pessoal, em meio a um estresse extremo, cercada por uma equipe desafiadora e um marido muito doente. Ela sentiu a necessidade de assumir o comando do navio e se manter informada sobre tudo o que acontecia a todo momento.

Uma fotografia do porto de São Francisco em 1851.

Finalmente, quatro meses depois de deixar Nova York, o navio chegou a São Francisco em 15 de novembro de 1856. Mary Ann assumiu o comando e guiou o navio até o cais. No total, ela ficou sozinha no comando do navio por 56 dias.

Os espectadores no porto ficaram surpresos. O segundo oficial do navio gritou por ajuda para colocar o capitão Patten em uma maca. O orgulhoso capitão parecia magro e frágil, com um rosto pálido e cinzento. Os estivadores ficaram ainda mais curiosos com a presença de uma jovem de aparência delicada entre a tripulação de homens, dando ordens. A julgar pela redondeza de sua barriga, era evidente que ela estava grávida de aproximadamente seis meses. Apesar disso, ela permaneceu ao lado do marido enquanto ele era transportado para o hospital. Logo, a notícia se espalhou de boca em boca por toda São Francisco.

Um jornal do estado da Virgínia, com os relatos dos feitos heróicos de Mary Ann Patten.

Quando a imprensa soube como ela conseguiu comandar um poderoso Clipper, cuidar do marido, proteger o navio e a carga e controlar o primeiro oficial desonesto, tudo isso aos 19 anos e grávida, Mary Ann Patten se tornou uma celebridade instantânea. Jornal após jornal a entrevistou..

Jornais de todo o mundo, incluindo aqueles tão distantes como Londres, começaram a divulgar esta notícia. Jornalistas ansiosos começaram a juntar as peças da história triste, mas inspiradora. Enquanto isso, ela descobriu que seu barco havia ficado em segundo lugar na “Corrida dos Clippers de 1856”, algo para o qual ela não estava preparada. Chegando a São Francisco, Ella Mary tornou-se uma sensação nacional.

Acontece que o capitão Joshua Patten era maçom e, para apoiá-lo durante sua doença, eles receberam assistência significativa do Templo Maçônico da Califórnia. Também receberam apoio da Maçonaria para retornar a bordo de um navio, o George Law, que os levaria a Nova York e depois a Boston.

Em Nova York, um jornalista do New York Daily Tribune (página 5, 18/02/1857) comentou que o casal estava hospedado no Battery Hotel. Foi mencionado que Joshua foi carregado em uma liteira do navio para o hotel por seus irmãos Mason. E que seu estado era “delicado”. Tão delicado que o jornalista, sem qualquer sentido, afirmou que Mary Ann “em breve ficaria viúva”. Mesmo em conexão com a Maçonaria, onde Joshua Patten estava antes de vir para Boston, ele recebeu o apoio dos irmãos maçônicos.

Enquanto o casal voltou para casa, William Keeler nunca foi para a prisão ou foi executado. Ainda a bordo do Neptune’s Car, ele escapou com a ajuda de um companheiro e desapareceu. Ele deve ter mudado de nome e, quem sabe, se tornado um gigolô em uma taverna do Velho Oeste, ou um ladrão de cavalos, ou um agiota, etc.

O Fim Precoce de Uma Guerreiro do Mar

Depois de chegar a Boston e Chelsea, apesar da atenção da mídia, ela encontrou um problema com a empresa do marido. Embora Mary Ann estivesse grávida e seu marido estivesse muito doente, Foster & Nickerson recusou-se terminantemente a pagar a Joshua seu salário e bônus. Alegaram que ele havia entregue o navio a alguém “sem qualquer treinamento ou experiência”. Permaneceram teimosos até o fim e nunca pagaram um único centavo, apesar de o capitão claramente merecer.

Mary escreveu uma carta à seguradora, Atlantic Mutual Insurance Company, explicando o que havia acontecido durante a viagem. Foi somente depois de um protesto público que a empresa concedeu a Joshua um bônus de US$ 5.000 e mostrou sua magnanimidade enviando US$ 1.000 para Mary Ann. Prêmio do ano. De qualquer forma, a carga que ele salvou valia 350 mil dólares.

Os jornalistas que acompanharam a história não ficaram impressionados com a “generosidade”. O New York Daily Tribune de 1º de abril de 1857 proclamou sarcasticamente: “Mil dólares por uma heroína… das mãos caridosas e agradecidas de oito companhias de seguros com capitais grandes o suficiente para segurar uma marinha…”

Sendo uma mulher educada do século 19, ela escreveu-lhes para agradecer sinceramente e pediu-lhes que também agradecessem aos membros da tripulação do Neptune’s Car que apoiaram ela e seu marido. E como mulher vitoriana, ela minimizou o seu próprio papel, afirmando que estava “apenas cumprindo os seus deveres de esposa por causa do marido”.

Um jornal de Boston lançou uma campanha para cobrir as despesas dos cuidados médicos contínuos de Joshua, bem como o próximo nascimento de seu primeiro filho. Mary Ann recebeu US$ 1.399.

Conforme comentado por um jornalista do New York Daily Tribune, Mary Ann logo ficou viúva. Joshua morreu em 26 de julho de 1857, aos 30 anos, no Asilo McLean, em Boston. Ele morreu cego, surdo e completamente inconsciente. Ele nem sabia que Mary Ann havia dado à luz seu filho, Joshua Patten Jr. No dia de sua morte, as bandeiras marítimas do porto tremulavam a meio mastro e os sinos das igrejas dobravam em sua homenagem.

The New York Daily Tribune – 28-07-1857.

Mas os problemas não terminaram. Pouco depois, o pai de Mary, que também era marinheiro, se perdeu no mar.

Infelizmente, Mary Ann Brown Patten nunca se recuperou totalmente da intensa experiência. Em 1860, ela também contraiu tuberculose. Em 17 de março de 1861, com a idade de 23 anos, 11 meses e 11 dias, ela morreu. Ela está enterrada em Boston ao lado do marido.

Necrologio de Mary Ann Patten, em um jornal da cidade de Baltimore.

Memória

No Brasil, existe a ideia de que os Estados Unidos são uma nação que “valoriza muito a sua história”, que o povo de lá “é muito patriótico” e que “dá muito valor aos seus símbolos e heróis”. Porém, no caso de Mary Ann Patten, não é assim!

Hoje, apesar da importância dos acontecimentos de 1856, esta mulher é lembrada principalmente por ser reconhecida como a primeira mulher a comandar um navio mercante nos Estados Unidos. Em homenagem a ela, um hospital chamado Patten Health Service Clinic, da Marinha Mercante, leva seu nome e fica localizado em King’s Point, Nova York. E isso aconteceu mais de 100 anos após sua realização.

Pelo que pesquisei, nenhum navio americano leva o nome dela. Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos construíram uma imensa frota de navios de carga, conhecidos como “Liberty Ships”, com um total surpreendente de 2.710 navios concluídos, nenhum deles foi nomeado em homenagem a esta mulher. Vários desses navios receberam nomes de mulheres. Posso estar errado, mas não encontrei nenhuma referência à vida dela sendo tema de um filme ou documentário de Hollywood. Sei que ela serviu de inspiração para um romance, mas não encontrei obra literária mais abrangente sobre sua vida.

Mas o que aconteceu com ela em 1856 é algo que não deve ser esquecido.

WOMEN WHO INSPIRE – THE STORY OF AN OCEAN WARRIOR

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Adventures and epics at sea have always attracted general interest, and this is a very ancient fascination. Narratives about the elements of maritime nature are almost always worth reading. But typically, the protagonists of these incredible feats are men.

And if a woman were the protagonist of a genuine and gripping sea story, would her accomplishments be equally appreciated in today’s society?

It doesn’t seem like it to me!

This would be the image of Mary Ann Brown as a child.

To my surprise, this remarkable woman, with an incredible story of survival at sea, is largely forgotten in her own country. And it is a country known for highly valuing its own history.

And look, at the time the events happened, she was only 19 years old and pregnant with her first child. But that did not prevent her from taking over as the captain of a large sailboat after her husband, the captain, became seriously ill. She did this in the midst of the treacherous storms of Cape Horn and the Drake Passage, which included extremely cold temperatures, giant waves, hurricane-force winds, and many other challenges. She also faced a tyrannical first officer and a crew that attempted to mutiny. However, she overcame fatigue, fear, and pain, and managed to reach her destination.

This is your story!

A Woman of the Sea

In the northeastern United States, in the state of Massachusetts, lies the great city of Boston. Just in front of it is the city of Chelsea, a place that has had a strong connection with the ocean since its early days. In the mid-19th century, Chelsea developed as a significant industrial center for sailboat construction, establishing itself as a powerhouse in this sector in the United States. This led to the city attracting skilled workers from all over the country. And it was in this city where, in the first decades of the 19th century, the English couple George and Elizabeth Brown arrived.

George was a professional sailor, experienced with many years at sea. In the new city, he quickly became involved in maritime activities. Isabel, as was customary in the 19th century, had the sole objective of her life to care for her home and her children. Even more so as the wife of a sailor, she was often away from home, sometimes for years.

Mary Ann Brown Patten.

But these absences did not prevent George and Elizabeth from creating a large family, whose children were connected to the sea. In this era, it was not surprising that Mary Ann Brown, born in 1837, married at the age of 16 to Joshua Patten, a charming sea captain who was nine years her senior. Mary Ann was described as a beautiful young woman with attractive features, refined and graceful manners, a slim and petite figure, long dark hair, and vibrant brown eyes.

Joshua worked at the helm of sailboats, transporting cargo and passengers from New York to Boston. But he was a rising star among ship captains, so it was no surprise when he was offered the command of a sleek and powerful Clipper.

This type of ship emerged as trade and the global economy expanded. Basically, it was a type of fast-loading sailboat that originated in the United States and had its heyday in the mid-19th century. The most striking features of the ship were its well-cut bow, narrow width in relation to its length, and high achievable speeds. These features resulted in limited cargo space in favor of speed. The masts, posts, and frames were relatively large, and additional downwind sails were often used. This type of vessel requires a large number of experienced and well-prepared crew members and commanders. Joshua Patten was one of them!

A Woman on Board

He was assigned a sailboat weighing more than 1,600 tons, with massive sails, and named Neptune’s Car.

Original drawing of the Clipper Neptune’s Car.

This ship was launched on April 16, 1853, at the Page & Allen Company shipyard in the city of Portsmouth, Virginia. It was later acquired by the transport company Foster & Nickerson’s line from New York. In its time, Neptune’s Car was considered a long and elegant boat. It was 68 meters long, had a beam of 12 meters, and could carry 1,616 tons of cargo. She had three tall masts and carried 25 sails, the largest of which was approximately 70 feet in diameter. A true colossus of its time.

Among the main destinations reached by the fast Clippers were the North American city of San Francisco, on the west coast of the United States. The problem was that, before the Panama Canal, the only way to reach there by sea was to depart from a port on the east coast, with New York being the main one, and sail south along the entire coast of North America.

A painting of the famous Clipper Cutty Sark by Jack Spurling. This ship, which also produces a great whiskey, is entirely preserved in England.

And from the south, crossing the treacherous Cape Horn and the Drake Passage, entering the Pacific Ocean, then tracing the entire South American coastline in a northerly direction, passing along the coast of Mexico, and finally reaching San Francisco. A trip lasting four months and covering approximately 24,000 kilometers. Despite the challenges and obstacles, this route played a crucial role in supporting the booming economy driven by gold mining in California. Shipping companies stood to make enormous profits by delivering food and supplies to the area promptly.

Neptune’s Car had successfully completed its first voyage between New York and San Francisco, with navigation proving to be successful. However, the relationship between the crew left something to be desired. Among the problems that occurred with the commander and the crew, there was no shortage of threats of mutiny. The captain warned that he would shoot anyone who dared to carry out such an idea. Evidently, everyone on board went to the street, and Joshua Patten was called to take command.

Original Clipper Neptune’s Car advertisement.

Soon, Lady Mary Ann Brown Patten insisted on joining her husband on his first voyage as the captain of Neptune’s Car. She had an opportunity that few women of her time would get: to see the world aboard a ship.

They traveled to the southernmost part of the American continent and entered the Pacific Ocean before reaching San Francisco. From this city, a new cargo transport job emerged, and they went to Shanghai, China, where they shipped a large quantity of tea destined for London, England. They returned to the Atlantic Ocean by navigating the treacherous Cape Horn on their way to their destination. They spent several months together at sea before returning to New York, Boston, and Chelsea.

Although women crewing ships was very rare at that time, it was not uncommon for the wives of commanding officers to be present on cargo ships. In the 19th century newspapers, it was common to find news articles on the National Library website about ships anchoring in the port of Rio de Janeiro. These articles would mention the ship’s name, tonnage, cargo, captain, crew members, and even highlight the presence of the commander’s wife, which the newspapers often praised.

Normally, during navigation, the wives of these officers would stay in their cabins, engaging in activities such as reading, knitting, or playing a musical instrument befitting of modest ladies. They would occasionally come out to get some fresh air and accompany their husbands on leisurely walks through the ports of destination.. But for Mary Ann Potter, staying on board would be different.

She didn’t want to merely be the “captain’s wife.” She was determined to be useful and learn everything she could to assist her husband on board the Neptune Car.

It is said that Mary Ann spent her time searching the ship’s small library, reading about the rudimentary medicine of her day, and assisting sailors with their ailments. Joshua, in turn, helped his wife in her quest for knowledge by teaching her the basics of navigation, meteorology, ropes, sails, and other duties of sailors. He also taught his wife how to navigate using equipment such as a sextant, compass, astrolabe, and navigation charts. Despite facing certain financial limitations, Mary received the necessary support from her family in Chelsea to receive an excellent education. She demonstrated no difficulties in grasping complex technical concepts.

What no one aboard the Neptune Car had any idea of was the future usefulness of these teachings.

And it would be a very problematic future!

The Greed of the Unclean

In July 1856, Neptune’s Car was preparing for its second voyage with Captain Joshua in command. Mary Ann would accompany her husband, but she was pregnant with her first child. But only she and Joshua shared this secret. They probably believed that there would be enough time to travel from New York to San Francisco, and that the child would be born in Chelsea upon their return. A somewhat risky idea.

An 1855 painting by Fitz Henry Lane showing New York Harbor.

Well, we know that at that time, women were taught to consider themselves and act as the “weaker sex,” and that they should always protect themselves to avoid problems. But I think Mary Ann missed that class!

The problems soon began.

During the charge, there was an accident, and Joshua’s loyal first officer broke his leg. Financiers Foster & Nickerson, eager to waste no time, placed an inexperienced young man named William Keeler in this delicate position. Something reckless, because after the commander, he was the first officer who made all the decisions on a ship.

The problems continued when Joshua began to feel unwell due to an unknown illness, which would only worsen his condition later. But Foster & Nickerson, a pair of ambitious and heartless capitalists, disregarded their employee’s predicament and cast him into the sea with Keeler.

The main reason for all this rush was that Foster & Nickerson didn’t just want to make a profit from the delivery of cargo. They placed a substantial wager against the owners of three other Clippers ships that were scheduled to travel the same route from New York to San Francisco, all departing simultaneously. Since the Neptune Car was still a relatively new ship, they wanted to demonstrate its capabilities and ensure that it would be the first to reach its destination port. It is true that the winning captain could earn between $1,000 and $3,000, which was considered a fortune at the time, if he completed the voyage first. Despite the encouragement, in fact, the Foster & Nickerson line followed the ancient tradition of wealthy individuals who were willing to risk the lives of their employees in order to outdo other wealthy individuals.

So off they went, and Joshua entrusted Keeler to stay the course while he tried to rest and recover with the assistance of his wife. But Keeler proved himself to be an incompetent idiot in no time at all. His list of infractions is impressive: he slept through half of his shifts, navigated courses through coral reefs, required orders for simple tasks, and ultimately, he outright refused to perform certain tasks with the sailors, such as raising sails. About a month after sailing from New York, Commander Joshua locked himself in his cabin.

The ship was far south and was now facing constant gales of snow and hail. None of the other crew members were able to handle the navigation. The second officer was illiterate, and the third was another idiot who happened to be a friend of Keeler.

Captain Joshua had to stay awake day and night to maintain the correct course. Because of this, he increasingly relied on Mary Ann to help him confirm her position, course, and speed. He acknowledged that she was a better mathematician than he. When the large ship reached the Strait of Le Maire, a narrow maritime passage between the Island of the States and the easternmost part of Tierra del Fuego, Argentina, the captain’s condition worsened. He developed a fever, became delirious, and eventually became incapacitated in his cabin. Mary Ann then took charge for the first time.

Painting of a Clipper facing the waves of the feared Cape Horn.

If the problems were already enormous, to complicate things even further, Mother Nature seemed determined to attack that sailboat with all her might. At Cape Horn, the Neptune Car was rocked by fifty-foot waves and winds reaching speeds of 100 miles per hour. The sky darkened, transforming into a swirling mass of clouds, wind, and rain. Unsure of her exact location, Mary Patten decided that her only chance of survival was to temporarily deviate from the shortest course and head west, in anticipation of more favorable conditions. She then steered the ship towards the south-southeast, sailing with the wind. Thus, the Neptune Car quickly escaped the dangers of Cape Horn.

But the biggest threat was still that despicable Keeler.

Captain Mary Ann

Upon learning of the captain’s poor health, he sent Mary a letter offering to assume command if she released him. Given the extreme seriousness of her husband’s situation, she initially accepted the offer. Keeler kindly offered to relieve her of the burden and take control himself. But Mary Ann responded that she could not accept this condition since they had many problems as a couple. Keeler then attempted to incite the crew to mutiny, but fortunately, they refused.

The captain’s condition improved somewhat, and he agreed to let Keeler take the helm to relieve his wife of her duties. He may not have believed in Mary Ann’s abilities, but her condition was also complex. Regardless of this issue, it quickly became evident that it was a significant mistake.

First, due to the captain’s illness, Keeler prohibited Mary Ann from going on deck to take navigational measurements. Then, for reasons still unknown to those who investigated the matter, the first officer began secretly steering the ship towards the Chilean port of Valparaíso, despite explicit orders to go directly to San Francisco. However, he did not possess the competence of the sole woman on board.

Mary Ann, despite being largely confined to the dormitories, noticed that they were veering off course. And to prove it, she set up a basic compass in the captain’s quarters and demonstrated the situation to Joshua. Upon confirming the action and with thousands of dollars’ worth of valuable machinery and supplies for the California gold mining fields on board the ship, the captain ordered the first officer to be confined again, following a heated argument with Mary Ann.

But this was too much for Joshua. The captain developed pneumonia, which only complicated the undiagnosed illness he had at the beginning of the trip: tuberculous meningitis.

Mary, who was still in the sixth month of pregnancy, took full control of the ship. Despite her intellectual disabilities, she received support and assistance from the second officer. The Neptune Car continued to move forward through deadly storms that rocked the ship. Meanwhile, Joshua’s situation became increasingly worse. The infection had spread to his brain, causing him to become delirious, blind, and partially deaf.

Meanwhile, given the situation, Keeler attempted to convince the crew to join him in a mutiny against Mary Ann Patten. He heard the terrible rumors about the conspiracy and feared that desperation would make the crew vulnerable to his control. She couldn’t let that happen. The Dayle Tribune of New York later reported, “Mrs.” Patten gathered the sailors on deck and explained to them the dire situation of her husband, while also requesting their support for her and her second mate. Each man responded to her call with a promise to obey all of her orders. The incomparable Mrs. Patten now directed all movements on board.

Now, Captain Mary Ann Patten warned Keeler that she would report him to the San Francisco authorities for attempted rioting, and he would be sent to jail. It is worth noting that at that time, the most common sentence for mutineers was death by hanging.

Mary later commented that she spent 50 days wearing the same clothes, with minimal time for personal hygiene, amidst extreme stress, surrounded by a challenging team and a very ill husband. She felt the need to take charge of the ship and stay informed about everything that was happening at all times.

A Photograph of the Port of San Francisco in 1851.

Finally, four months after leaving New York, the ship arrived in San Francisco on November 15, 1856. Mary Ann took command and guided the ship to the dock. In total, she was alone in command of the ship for 56 days.

The spectators at the port were surprised. The ship’s second officer shouted for help to lift Captain Patten onto a stretcher. The proud captain looked thin and frail, with a pallid gray face. The dockworkers were even more curious about the presence of a delicate-looking young woman among the crew of men, giving orders. Judging by the roundness of her belly, it was evident that she was approximately six months pregnant. Despite this, she remained by her husband’s side as he was transported to the hospital. Soon, the news spread by word of mouth throughout San Francisco.

A Virginia state newspaper reporting the heroic deeds of Mary Ann Patten.

When the press learned how she managed to command a powerful Clipper, take care of her husband, protect the ship and cargo, and control the rogue first officer, all at the age of 19 and while pregnant, Mary Ann Patten became an instant celebrity. Newspaper after newspaper interviewed her.

Newspapers around the world, including those as far away as London, began reporting this news. Eager journalists began piecing together the sad yet inspiring story. Meanwhile, she discovered that her boat had even come in second place in the “Clippers Race of 1856,” something she was not prepared for. Arriving in San Francisco, Ella Mary became a national sensation.

It turns out that Captain Joshua Patten was a Freemason, and to support him during his illness, they received significant assistance from the California Masonic Temple. They also received support from Freemasonry to return aboard a ship, the George Law, which would take them to New York and then to Boston.

In New York, a journalist from the New York Daily Tribune (page 5, 02/18/1857) commented that the couple was staying at the Battery Hotel. It was mentioned that Joshua was carried in a litter from the ship to the hotel by his Mason brothers. And that his condition was “delicate.” So delicate that the journalist, without any sense, stated that Mary Ann “would soon be a widow.” Even in connection with Freemasonry, where Joshua Patten was before coming to Boston, he received the support of the Masonic brothers.

While the couple returned home, William Keeler never went to prison or faced execution. Still aboard the Neptune Car, he escaped with the assistance of a companion and vanished. He must have changed his name and, who knows, become a gigolo in a Wild West tavern, or a horse thief, or a loan shark, etc.

The Early End of a Sea Warrior

After arriving in Boston and Chelsea, despite the media attention, she encountered a problem with her husband’s company. Even though Mary Ann was pregnant and her husband was very ill, Foster & Nickerson adamantly refused to pay Joshua his salary and bonuses. They claimed that he had handed over the ship to someone “without any training or experience.” They remained stubborn until the end and never paid a single cent, despite the fact that the captain clearly deserved it.

Mary wrote a letter to the insurance company, Atlantic Mutual Insurance Company, explaining what had happened during the trip. It was only after a public outcry that the company awarded Joshua a $5,000 bonus and showed its magnanimity by sending Mary Ann $1,000. Prize of the year. Anyway, the cargo he saved was worth $350,000.

Journalists who followed the story were not impressed by the “generosity.” The New York Daily Tribune of April 1, 1857 sarcastically proclaimed, “One thousand dollars for a heroine… from the charitable and grateful hands of eight insurance companies with capitals large enough to insure a navy…”

Being an educated woman of the 19th century, she wrote to them to sincerely thank them and asked them to also acknowledge the crew members of Neptune’s Car who had supported her and her husband. And as a Victorian woman, she downplayed her own role, stating that she was “merely fulfilling her duties as a wife for the sake of her husband.”

A Boston newspaper launched a campaign to cover the expenses of Joshua’s ongoing medical care, as well as the upcoming birth of his first child. Mary Ann received $1,399.

As commented by a journalist from the New York Daily Tribune, Mary Ann was soon widowed. Joshua died on July 26, 1857, at the age of 30, at McLean Asylum in Boston. He died blind, deaf, and completely unconscious. He didn’t even know that Mary Ann had given birth to his son, Joshua Patten Jr. On the day of his death, the port’s maritime flags flew at half-mast, and church bells tolled in his honor.

The New York Daily Tribune – 07-28-1857.

But the problems did not end. Shortly after, Mary’s father, who was also a sailor, was lost at sea.

Unfortunately, Mary Ann Brown Patten never fully recovered from the intense experience. In 1860, she also contracted tuberculosis. On March 17, 1861, at the young age of 23 years, 11 months, and 11 days, she died. She is buried in Boston next to her husband.

Mortuary of Mary Ann Patten, in a Baltimore city newspaper.

Memory

In Brazil, there is an idea that the United States is a nation that “highly values its history,” that the people there “are very patriotic,” and that it “gives a lot of value to its symbols and heroes.” However, in the case of Mary Ann Patten, this is not so!

Today, despite the significance of the events in 1856, this woman is primarily remembered for being recognized as the first woman to command a merchant ship in the United States. As a tribute to her, a hospital called Patten Health Service Clinic, in the Merchant Navy, bears her name. The Academy of that country is located in King’s Point, New York. And this happened more than 100 years after her accomplishment.

As far as I have researched, no American ship is named after her. Even during World War II, when the United States built an immense fleet of cargo ships, known as “Liberty ships,” with an astonishing total of 2,710 completed, none of them were named in honor of this woman. Several of these ships were named after women. I could be wrong, but I found no reference to her life being the subject of a Hollywood movie or documentary. I know she was the inspiration for a novel, but I haven’t found a more comprehensive literary work about her life.

But what happened to her in 1856 is something that should not be forgotten.

O MARCO TOPOGRÁFICO DE RIACHUELO – UMA RELÍQUIA DA SEGUNDA GUERRA NO AGRESTE POTIGUAR

Próximo à Cidade de Riachuelo, no Alto da Serra Azul, Existe um Antigo Marco Topográfico, Aparentemente o Último do Seu Tipo Ainda Existente no seu Ponto Original, Que Foi Colocado Pelo Exército Brasileiro Durante a Segunda Guerra Mundial e Foi Utilizado Como Instrumento Para a Defesa do Nosso Litoral.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Nos últimos meses de 2018, através das indicações existentes em um livro sobre a vida e a obra do escritor e pesquisador potiguar Oswaldo Lamartine, junto com os dados encontrados em um documento originalmente produzido em 1944 pela US Navy (Marinha dos Estados Unidos), me desloquei ao município de Riachuelo, no Agreste Potiguar, para pesquisar sobre um acidente com uma aeronave de combate.

Rostand Medeiros, José Lourenço e Aírton Freitas, Secretário de Administração de Riachuelo e grande batalhador pela história de sua comunidade. Foto realizada em 2018 quando realizamos a pesquisa do desastre do Catalina em 1944 – Foto: José Correia Torres Neto.

Nesta cidade, distante 80 quilômetros de Natal, encontrei uma interessante história sobre a queda de um hidroavião bimotor Consolidated PBY-5A Catalina no dia 10 de maio de 1944. Encontrei também testemunhas extremamente interessadas em ajudar, tendo conseguido acumular muitas informações e elementos ligados a esse episódio.

Livro Sobrevoo: Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte.

Os resultados da nossa pesquisa foram extremamente promissores, gerando inclusive um dos capítulos do meu livro Sobrevoo: Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte (2019), além de um interessante contato com a Embaixada dos Estados Unidos, conforme os leitores podem saber mais acessando os links abaixo… 

https://br.usembassy.gov/pt/relembrando-riachuelo/

Durante esses trabalhos conheci o professor Airton Freitas de Macedo, que na época era Secretário de Administração da Prefeitura Municipal de Riachuelo e muito ajudou em nossas pesquisas e nos desdobramentos que ocorreram junto ao pessoal da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e do consulado desse país sediado em Recife.

Registro quando ocorreu a visita dos membros do Consulado dos Estados Unidos de Recife a cidade de Riachuelo em maio de 2019. Da esquerda para a direita vemos os Srs. Stuart Alan Beechler e Daniel A. Stewart , do Consulado Geral dos Estados Unidos em Recife, seguido de Rostand Medeiros , escrito e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e o Capitão de Mar e Guerra Fuzileiro Naval (R.R.) Edison Nonato de Faria. Foto: Charles Franklin de Freitas Gois. 

Em nossas visitas e entrevistas, Ailton me falou sobre a existência de uma espécie de “marco” que havia sido colocado próximo a Riachuelo, no alto de uma elevação chamada Serra Azul, às margens da BR-304, a mesma estrada que liga Natal a Mossoró. Ailton me informou que a colocação desse marco ocorreu na época da Segunda Guerra e foram militares do Exército Brasileiro os responsáveis pela colocação. Apesar de ter sido convidado por Airton para visitar esse marco, essa visita não pôde ser concretizada naquela época. 

Na hora que eu soube dessa informação, acreditei que essa verdadeira relíquia tinha ligação com um marco topográfico colocado pelo Exército no alto do Morro do Navio, ou Morro Vermelho, perto da localidade de Pium, município de Nísia Floresta, próximo ao litoral potiguar e a cerca de 25 quilômetros de distância do centro de Natal.

O autor desse texto e o falecido jornalista Luiz Gonzaga Cortez, realizando medições no marco do Morro do Navio em 2013.

Eu estive neste local em 2013 e vi esse marco de concreto junto com o falecido jornalista Luiz Gonzaga Cortez. Na sequência escrevi em nosso blog TOK DE HISTÓRIA um texto sobre essa visita e sobre o vandalismo que esse objeto sofria na época [1].

Esse marco no Morro do Navio possuía um orifício na ponta, tinha em torno de 1,50 m, sendo 40 centímetros só na base. Em uma de suas laterais encontramos as inscrições “1942”, “S.G.H.E.” e “45”. Na época eu acreditei que esse marco estava relacionado a alguma missão militar realizada na década de 1940, provavelmente destinado a utilização na área de levantamento cartográfico do Serviço Geográfico do Exército (SGEx).

O marco do Morro do Navio totalmente desenterrado.

Em 2013 eu busquei ajuda com um amigo historiador sobre a possível origem desse marco do Morro do Navio e, segundo ele, a hipótese mais correta era que este material estava ligado a missão de um grupo de cartógrafos/topógrafos militares, que realizaram o levantamento do litoral nordestino, mediante a necessidade de operações de guerra que iriam se desenvolver em nossa região. Para cumprir tal missão foi organizado o Destacamento Especial do Nordeste (DEN), chefiado pelo então Tenente-coronel Djalma Poly Coelho, contando com um número superior a trinta oficiais engenheiros e sargentos topógrafos.

Apesar do desejo em ajudar, essas eram as informações básicas que esse amigo historiador me passou sobre esse marco. 

PARA DETALHES SOBRE A HISTÓRIA DO MARCO DO MORRO DO NAVIO, EM PIUM, MUNICÍPIO DE NÍSIA FLORESTA, CLIQUE NO LINK ABAIXO. 

Surpresa 

Em setembro de 2022 eu recebi um e-mail do Capitão Othon Amorim Barbosa, então Chefe da Seção de Comunicação Social do 3º Centro de Geoinformação (3º CGEO), também conhecido como “Centro de Geoinformação General Poly Coelho”, sediado em Olinda, Pernambuco.   

Serra Azul, no município de Riachuelo.

Logo mantivemos um proveitoso contato telefônico, onde o Capitão Othon me relatou ter encontrado na internet o nosso texto sobre o marco do Morro do Navio. Ele então me transmitiu alguns detalhes interessantes sobre a história do 3° CGEO e do trabalho do Tenente-coronel Djalma Poly Coelho no início da década de 1940 no Nordeste brasileiro. Em meio ao nosso interessante diálogo, lhe relatei sobre a existência de um marco no município de Riachuelo, que poderia ter relação com a história do trabalho do Serviço Geográfico do Exército em nossa região.

Detalhe da Serra Azul.

A nossa conversa então tomou outro rumo, onde o Capitão Othon se mostrou interessado em enviar um militar do 3° CGEO até a região para visitar a Serra Azul e fotografar o marco ali existente.

Logo entrei em contato com o amigo Ailton Freitas em Riachuelo, que se colocou à inteira disposição para a realização dessa visita e prometeu ajudar no que fosse possível.

Passando na sede da propriedade a caminho do alto da serra.

Em um sábado, 8 de outubro de 2022, eu segui para Riachuelo com o Subtenente Severino Alves Neto, um profissional de alto gabarito, pessoa de primeiríssima qualidade, que me transmitiu muitas e interessantes informações sobre o trabalho da atual Diretoria de Serviço Geográfico do Exército (DSG), sucessora do Serviço Geográfico do Exército. De forma muito tranquila o Subtenente Alves Neto delineou a atuação das unidades militares vinculadas a essa diretoria e a atuação desse ramo do Exército Brasileiro em todo território nacional.

Trilha para o alto da serra no meio da mata.

Confesso que nada sabia da atuação da DSG, da importância prática do seu atual trabalho para os diversos níveis da máquina estatal, do nível de desenvolvimento das atividades cartográficas do Exército Brasileiro e outros temas. A troca de informações proporcionada pelo Subtenente Alves Neto foi tão interessante, que o tempo para percorrer os 80 quilômetros de trajeto entre Natal e Riachuelo me pareceu ter passado muito rápido.

O Professor Airton fotografando um abrigo soba rocha existente na Serra Azul.

Nessa cidade que sempre me traz boas energias, estivemos na casa do amigo Ailton, que nos apresentou os irmãos Ariel e Urias Teixeira da Silva, que nos ajudaram na empreitada e nos conduziram através das trilhas da Serra Azul. Após um cafezinho, seguimos todos para esse local, distante cerca de dois quilômetros de Riachuelo. 

Trecho após o abrigo natural.

Uma Relíquia da Segunda Guerra no Agreste Potiguar 

O acesso a Serra Azul é feito por uma propriedade às margens da BR-304, onde fomos muito bem recebidos pelas pessoas que moram por lá. Depois iniciamos a trilha, que logo chegou ao setor mais próximo da elevação propriamente dita. Então iniciamos o caminho por uma área com boa preservação natural e a trilha seguia para o alto, onde teríamos que chegar ao topo desta serra com cerca de 300 metros de altitude.

Da esquerda para direita Urias, Rostand, Ariel e Alves Neto.

Apesar de em alguns trechos a mata ser relativamente densa, ela pode ser realizada de maneira tranquila, sem maiores percalços. No caminho os guias Ariel e Urias não deixavam escapar nenhum detalhe sobre a trilha e a natureza ao redor. Realmente eles são dois guias natos, muito bem preparados e extremamente dispostos a ajudar.

No meio do caminho tivemos de contornar um grande bloco esférico de granito, que de tão grande forma na sua base um interessante abrigo natural, que percebemos serem utilizados por pequenos animais.

Visual na subida da serra.
Belezas da Serra Azul.

Em alguns momentos a trilha é feita basicamente sobre o granito, onde a vegetação é naturalmente ausente, mas o visual da região se torna então muito interessante. Na verdade, essa trilha bem poderia ser utilizada como um atrativo turístico da cidade de Riachuelo e da Região do Agreste Potiguar.

No final da trilha chegamos ao alto da serra e encontramos o marco.

Grupo reunido junto ao marco topográfico.

Ele se encontra rachado e, segundo fomos informados, por pessoas que acreditavam que no seu interior haveria algum tipo de “tesouro”, o que nunca existiu.

Nesse marco encontramos uma marca triangular, que apontava em direção leste, a mesma de Natal e do litoral do Rio Grande do Norte. Essa marca é um ponto trigonométrico.

Marca triangular onde provavelmente havia uma placa de bronze com marcações topográficas.

Segundo o Subtenente Alves Neto esse triângulo no marco da Serra Azul poderia conter uma placa de bronze, com várias marcações para serem utilizadas naquela época pelos topógrafos do Serviço Geográfico do Exército.

O interessante, conforme é possível ver na imagem abaixo, esse triângulo é reproduzido dentro de uma marcação semicircular que significa uma elevação, com o número “254” ao lado, indicativo de sua referência de nível. Esse sinal é reproduzido no mapa em escala de 1:100.000, Folha SB25–V–C–IVMI–977, confeccionado pela DSG em 1983. Infelizmente essa possível placa de bronze foi perdida.

No detalhe a localização da Serra Azul no mapa em escala de 1:100.000 que mostra uma parte do município de Riachuelo.

Na lateral, tal como no marco do Morro do Navio de Pium, encontramos a sigla “S.G.H.E.” e o número “40.

Segundo o amigo Ariel Teixeira da Silva, na época da colocação desse objeto no alto da Serra Azul, ficou na memória dos moradores da pequena Riachuelo, então um arruado com poucas casas, que os homens que implantaram esse marco seriam “alemães”, por muitos deles serem brancos, altos e loiros. Mas a maioria dos membros do Exército que realizaram essa atividade no Nordeste eram oriundos do Rio Grande do Sul e muitos eram descendentes de italianos e alemães.

As letras “S.G.H.E.” e o número “40”.

Concluímos então a visita realizando inúmeras fotos desse marco histórico. 

ATENÇÃO – Para quem desejar percorrer a trilha que leva ao marco histórico do Exército Brasileiro no alto da Serra Azul, em Riachuelo, liguem para o amigo Urias Teixeira da Silva, no telefone celular e WhatsApp número – 84 99612 3048. 

Reconhecimento 

Nos dias posteriores a nossa visita, fiquei sabendo que os resultados obtidos em campo foram positivamente apreciados pelo Tenente-coronel Rodrigo Wanderley de Cerqueira, comandante do 3° CGEO, bem como pelo General de Brigada Marcis Gualberto Mendonça Junior, Diretor do Serviço Geográfico do Exército (DSG), cuja sede fica em Brasília.

Entrada do 3° CGHEO, em Olinda, Pernambuco.

Então todos os civis que participaram dessa atividade na zona rural de Riachuelo foram convidados para se fazerem presentes na sede do 3° CGEO em Olinda, no dia 17 de outubro de 2022, para comemorar o Dia do Topógrafo e recebemos diplomas e uma lembrança dessa atividade junto a essa unidade militar.

Nesse dia, uma segunda-feira, me fiz presente e representei meus amigos de Riachuelo. Na ocasião visitei o Centro de Memória do 3° CGEO e participei da cerimônia militar alusiva ao Dia do Topógrafo.

O autor deste texto ao lado do Tenente-coronel Rodrigo Cerqueira, comandante do 3° CGEO.

O Tenente-coronel Rodrigo Cerqueira, o Major Daniel da Costa e Silva, subcomandante da unidade, além dos oficiais e subalternos foram extremamente atenciosos e me receberam de maneira muito digna nessa unidade militar.

Formatura pela cerimônia do Dia do Topógrafo.

Durante a cerimônia recebi das mãos do comandante do 3° CGEO meu diploma e uma lembrança contendo o brasão da unidade e a esfinge do General de Brigada Djalma Poly Coelho. Na ocasião me foram entregues os diplomas dos amigos Airton Freitas de Macedo, Ariel e Urias Teixeira da Silva.

Materiais que foram entregues pelos militares do 3° CGEO aos civis que participaram da visita ao marco topográfico da Serra Azul.

Foi um momento muito positivo, onde conheci muitos topógrafos dessa unidade que atualmente se encontram na reserva e com eles soube das difíceis missões topográficas realizadas em tempos passados pelo interior do Nordeste.

Me vi entre militares que têm uma formação técnica extremamente apurada, um senso de satisfação na realização de suas missões que muito me impressionou, um enorme respeito pelos membros veteranos da unidade e acima de tudo percebi que esses homens e mulheres do 3° CGEO possuem a certeza que todo o trabalho que realizam tem uma enorme utilidade para a sociedade brasileira. Embora essa mesma sociedade desconheça os resultados dos seus relevantes trabalhos.

Entrega dos diplomas.

Essas pessoas trazem no desenvolvimento de suas atividades uma tradição que começou no final do século XIX, onde a missão principal dos militares que iniciaram os trabalhos cartográficos no Exército Brasileiro era criar mapas para uma imensa nação que quase não tinha mapas.

O Exército e a Cartografia

Em 2 de junho de 1890 saiu na primeira página do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, a notícia que três dias antes havia sido criado pelo Exército Brasileiro um “serviço geographico”. Essa atividade seria exercida por militares com especialização em engenharia, oriundos da tradicional Escola Polythecnica do Rio [2]. Já os membros que fariam parte desse serviço e não tinham essa formação, realizaram cursos junto aos cientistas do Observatório Nacional, também no Rio, com foco em atividades de levantamento geográfico [3].

Texto de criação do “serviço geographico” no Exército em 1890.

As razões para a criação desse tipo de atividade no Exército Brasileiro, seis meses após a Proclamação da República, passava por uma ideia de modernização da força terrestre brasileira e encerrar uma situação onde o conhecimento geográfico do território nacional era muito limitado. Havia muitos erros nos mapas disponíveis, que geravam incertezas sobre as localizações de limites de fronteiras com outros países e nos próprios estados brasileiros, além do traçado dos rios e até a localização de capitais e cidades [4]. 

Naquele período entre a década de 1890 e a virada do novo século, ocorreram no Brasil várias crises internas, onde algumas delas se tornaram lutas sangrentas, que atrasaram o desenvolvimento do país. Na arma terrestre não foi diferente, tendo o seu “serviço geographico” só começado a desenvolver projetos de maior vulto nos primeiros anos do século XX [5].

Mapa da Baía da Guanabara, Rio de Janeiro.

Em 1903 foi elaborado pelo Estado-Maior do Exército o “Projeto Carta Geral do Brasil”, através de uma comissão específica, que tinha então o objetivo de elaborar o maior mapeamento possível do país. Contudo, lendo um amplo texto existente em um relatório com as atividades do Ministério da Guerra de 1908, esse trabalho basicamente se concentrou na implantação da rede geodésica e no mapeamento do estado do Rio Grande do Sul, principalmente a região de fronteira com o Uruguai e a Argentina [6].

As razões para esse incremento na elaboração de mapas nesse setor do país, era tanto a demarcação definitiva da fronteira com essas duas nações, como elaborar estratégias militares visando a nossa defesa para o caso de algum ataque vindo principalmente da Argentina, que dentro dos processos estratégicos brasileiros da época era considerado o nosso potencial e principal inimigo.

Autoridades civis e militares na Fortaleza do Morro da Conceição.

A partir da metade do ano de 1917 essa área especializada do Exército Brasileiro passou a ser denominado Serviço Geográfico Militar, tendo sua sede na antiga fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, um bastião defensivo construído pelos portugueses em 1718 no Morro da Conceição, Rio de Janeiro [7]. Segundo notícia de um periódico carioca, em 3 de agosto de 1917 o General Bento Manuel Ribeiro Carneiro Monteiro, então Chefe do Estado Maior do Exército, reuniu um grupo de deputados e jornalistas para visitar as dependências daquela instituição na fortaleza [8].

General Bento Ribeiro apresenta o serviço Geográfico a políticos e a imprensa carioca.

Em 14 de outubro de 1920 desembarcou no Rio de Janeiro a hoje quase desconhecida Missão Cartográfica Imperial Militar Austríaca, tendo à frente o General e Barão Arthur Herr Von Hübl, do Imperial Instituto Geográfico Militar de Viena. Os austríacos introduziram no país o levantamento topográfico à prancheta, os métodos estereofotogramétricos de emprego de fotografias terrestres e aéreas e a impressão offset, além de ajudarem na criação da Escola de Engenheiros Geográficos Militares [9].

Em 1923, percebendo que as dependências da Fortaleza do Morro da Conceição não comportavam a apliação do Serviço Geográfico Militar, o Exército adquiriu o Palácio da Conceição (foto abaixo), que fica nos fundos da antiga fortaleza. Esse local serviu de sede do bispado até 1915, quando este foi transferido para o Palácio Arquiepiscopal São Joaquim, no bairro da Glória [10].

Antigo Palácio da Conceição.

O Serviço Geográfico Militar e a Comissão da Carta Geral continuaram ao longo dos anos atuando de forma independente, com o primeiro executando mapeamentos em áreas no Rio de Janeiro e o segundo continuando a realização de levantamentos no Rio Grande do Sul. A partir de 1932 o Serviço passa a denominar-se Serviço Geográfico do Exército (SGE), e a então Comissão da Carta Geral dá origem à Primeira Divisão de Levantamento, tendo sua sede em Porto Alegre e sua criação se deu através do decreto nº 21.883, de 29 de setembro de 1932 [11].

Símbolo do serviço Geográfico.

O Serviço Evolui

No ano seguinte foram designados para a Divisão de Levantamento dois aviões Bellanca CH-300 Special Pacemaker (Foto abaixo).

A antiga Aviação Militar do Exército Brasileiro havia adquirido treze exemplares dessa aeronave, que eram construídos nos Estados Unidos, sendo monoplanos utilitários típicos da década de 1930. Possuíam asa alta, trem de pouso fixo, capacidade para seis pessoas, sendo movidos por um motor Wright J-6s de 300 H.P. e foi uma aeronave que se tornou conhecida por sua resistência e grande autonomia de voo, que superava as cinco horas [12].

Avião utilizado pelo Serviço Geográfico.

Em 27 de setembro de 1933 os Bellanca decolaram do Rio para Porto Alegre pilotados pelo Capitão Clóvis Travassos e o Tenente Burgmann [13]. Com a ideia de apoiar as atividades dessas aeronaves em terras gaúchas, o então governador Flores da Cunha mandou construir um hangar na cidade de Cruz Alta, liberando para os militares 400 caixas de gasolina, 48 de óleo e até dinheiro para diárias de manutenção das equipes, sendo o fato noticiado em todo país [14].

Devido a importância e especialidade de suas missões, o Serviço Geográfico do Exército conseguia até mesmo superar certas diferenças internas no Exército, criadas em decorrência das lutas políticas ocorridas no Brasil na década de 1930. Um exemplo disso ocorreu com o Tenente-coronel Jaguaribe Gomes de Mattos, que se encontrava exilado na Europa por ter participado da Revolução Constitucionalista de 1932 ao lado dos paulistas. Mesmo assim esse oficial recebeu permissão do Ministério da Guerra para a atuar pelo Exército, com os seus devidos vencimentos, acompanhando a impressão dos mapas da região do Mato Grosso junto ao Exército Francês a [15].

Informativo sobre o serviço Geográfico.

Em 1937 o Serviço Geográfico do Exército se viu diante da missão de encerrar as várias pendências em relação à demarcação das fronteiras estaduais. A situação chegou a tal ponto que a Constituição Brasileira outorgada pelo presidente Getúlio Vargas em 10 de novembro daquele ano tinha um artigo específico para tratar do assunto, com a designação do Serviço Geográfico do Exército nessa função, conforme podemos ler abaixo [16]. 

Art. 184 – Os Estados continuarão na posse dos territórios em que atualmente exercem a sua jurisdição, vedadas entre eles quaisquer reivindicações territoriais.

§ 1º – Ficam extintas, ainda que em andamento ou pendentes de sentença no Supremo Tribunal Federal ou em Juízo Arbitral, as questões de limites entre Estados.

§ 2º – O Serviço Geográfico do Exército procederá às diligências de reconhecimento e descrição dos limites até aqui sujeitos a dúvida ou litígios, e fará as necessárias demarcações [17]

Para se ter uma ideia da quantidade de pendências dos limites estaduais no Brasil até o final da década de 1930, veja abaixo esse resumo publicado na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (páginas 33 e 34, edição de 1937).

Pela relação é possível compreender como a questão dos limites estaduais no Brasil foi complicada no passado.

Pelo final da década de 1930, ou início da de 1940, o Exército mudou a denominação do Serviço Geográfico do Exército, pra “Serviço Geográfico e Histórico do Exército”, daí surge a sigla “S.G.H.E.” que vi nos marcos do Morro do Navio e da Serra Azul. Agora a razão dessa alteração, a portaria informando a mudança e quando deixou de existir eu realmente não descobri.

Logo surgiram no horizonte nuvens negras vindas da Europa, onde começaram a se acumular notícias que mostravam que uma nova conflagração mundial era somente uma questão de tempo.

Topografando no Nordeste

Cerimônia na sede do Serviço Geográfico do Exército.

O Exército Brasileiro então começou a se preocupar com a defesa do chamado “Saliente Nordestino”, a parte da América do Sul mais próxima da África, com uma distância de 2.900 quilômetros entre os dois continentes, cujos pontos estratégicos em cada lado eram Natal, no Rio Grande do Norte, e Dakar, na antiga África Ocidental Francesa e atualmente capital do Senegal [18].

Um problema para a defesa do litoral dessa região era a quase total inexistência de mapas que ajudassem os comandantes a realizar suas ações militares no caso de uma invasão estrangeira. Foi então criado o Destacamento Especial do Nordeste do Serviço Geográfico do Exército e a chefia ficou a cargo do então Tenente-coronel Djalma Poly Coelho, que assumiu o posto em maio de 1941 [19].

Poly Coelho assumindo o comando do destacamento Especial do Nordeste.

Nascido em Curitiba, Paraná, em 17 de outubro de 1892, era filho do primeiro sargento José Manuel da Silva Coelho, lotado no 17º Batalhão de Infantaria, e da dona de casa Amália Poly Coelho. O jovem estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro na primeira década do século XX, ingressando depois na antiga Escola de Guerra do Realengo [20]. Em 1914 alcançou a patente de Aspirante, formou-se engenheiro geógrafo militar e encerrou sua carreira em 1952, no posto de General de Divisão [21].

Pelos jornais antigos existentes na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, descobri que em agosto de 1941 houve uma grande quantidade de publicações relativas a transferências de militares para Recife. Eram homens de diversas patentes, de várias partes do Brasil, alguns deles com ordens para servir no Destacamento Especial do Nordeste.

Pessoal do Destacamento Especial do Nordeste, tendo à esquerda o Tenente-coronel Poly Coelho – Fonte – 3° CGEO.

A missão era o levantamento aerofotogramétrico das regiões próximas à costa dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco e ao longo de três anos e meio esse Destacamento Especial trabalhou bastante.

Sabemos também que foram realizados levantamentos topográficos no Arquipélago de Fernando de Noronha e nas regiões salineiras do Rio Grande do Norte e do Ceará. Já em 1942 oficiais do Exército Brasileiro começaram a utilizar os primeiros mapas que o Destacamento Especial do Nordeste havia concluído.

Descobri que em janeiro de 1942 a área onde se aquartelou o pessoal do Serviço Geográfico do Exército em Recife, sofreu uma aparente ação de sabotagem.

Notícia da possível sabotagem em jornal do Rio de Janeiro.

A área onde os militares ficaram era no chamado Campo do Jiquiá, onde o Serviço Geográfico tinha uma grande instalação com pessoal, veículos e material de trabalho. O Jiquiá se tornou famoso por receber 65 vezes o pouso do grande dirigível Graf Zeppelin, da empresa alemã Luftschiffbau Zeppelinm G.M.B.H. Ocorre que na manhã de 12 de janeiro o capinzal existente na área pegou fogo repentinamente e houve preocupação com o avanço das chamas, mas os bombeiros recifenses apareceram no local e controlaram o fogo. O problema era que vizinho as instalações do Serviço Geográfico estava o depósito da companhia de navegação alemã Hermann Stoltz & Cia, uma empresa envolvida até o pescoço com espionagem nazista em vários locais do Nordeste e no sul do país. Seus gestores tinham acesso a informações privilegiadas sobre a navegação na costa brasileira e foram acusados de repassar essas informações para Berlin, além de financiar uma grande rede de espionagem mantida por alemães e que utilizava brasileiros aliciados. Se o incêndio foi realmente uma sabotagem isso não ficou provado, mas as suspeitas das autoridades brasileiras em relação a Hermann Stoltz eram muito fortes, sendo episódio noticiado em todo país [22].

Mara que mostra as áreas topografadas pelo Destacamento Especial do Nordeste.

Naqueles anos o trabalho do Destacamento Especial do Nordeste contou com o apoio da recém criada Força Aérea Brasileira (FAB), que forneceu aeronaves que realizarem milhares de fotografias aéreas. Estas eram produzidas com as aeronaves percorrendo faixas específicas do terreno, na altitude de 3.500 metros, com um recobrimento longitudinal respectivamente de 66 e 30 por cento e cobrindo uma área de 40.000 quilômetros quadrados [23].

Poly Coelho e o Presidente Getúlio Vargas.

Em relação a presença de membros do Destacamento Especial do Nordeste o Rio Grande do Norte, apenas descobri que no final de março de 1942 chegou no município de Goianinha o Capitão João de Mello Moraes e sua equipe, sendo esse militar apontado como o responsável pelo levantamento geográfico no Rio Grande do Norte [24].

Mesmo sabendo a importância do trabalho do Destacamento Especial, para mim não foi nenhuma surpresa o fato de encontrar poucas referências sobre as atividades desse grupo de militares pelo Nordeste do Brasil. Enfim, o país estava em guerra e nesses momentos de extrema tensão o foco principal dos órgãos de imprensa se voltaram para as unidades de combate e seus feitos, sobrando muito pouco espaço para comentar algo sobre a realização das unidades técnicas e de apoio. Talvez por isso não encontrei referências sobre a colocação do marco da Serra Azul e da atuação do Destacamento Especial do Nordeste na região de Riachuelo.

Depois da Guerra

O General Poly Coelho apresentando trabalhos do Serviço Geográfico do Exército ao Presidente Gaspar Dutra.

Com o fim da guerra o agora General Poly Coelho passou a dirigir o Serviço Geográfico do Exército, onde ficou no cargo de 1946 até 1951.

Durante sua gestão, mais precisamente em 1947, foi criada uma comissão de estudos para determinar a melhor localização de uma nova capital brasileira a ser implantada no interior do país. A ideia do Rio de Janeiro deixar de ser a Capital Federal visou promover de maneira clara a ocupação de uma vasta região despovoada e praticamente sem desenvolvimento no Brasil e evitar possíveis ações futuras de nações estrangeiras pelo nosso rico território.

Apresentação dos trabalhos em 1953.

Essa comissão foi presidida por Poly Coelho e ao final do seu trabalho esse grupo ratificou as análises e o relatório final da pesquisa liderada pelo belga Louis Ferdinand Cruls, que em 1892 comandou duas expedições exploradoras no Planalto Central do Brasil, cujo objetivo foi descobrir um local adequado para abrigar uma nova capital do país, sendo esse trabalho o marco gerador da definitiva questão da mudança da capital.

Resultados apresentados as autoridades.

A frente do Serviço Geográfico do Exército o General Poly Coelho criou o Quadro de Topógrafos do Serviço Geográfico do Exército e o Curso de Topografia para Oficiais das Armas na Escola Técnica do Exército, hoje Instituto Militar de Engenharia – IME. 

O General Djalma Poly Coelho faleceu no Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1954.

O General Poly Coelho hasteando o pavilhão nacional na Fortaleza da Conceição.

NOTAS…………………………………………………………………………………………….


[1] O escritor e jornalista potiguar Luiz Gonzaga Cortez Gomes de Melo, morreu aos 70 anos, na madrugada de segunda-feira, 19/08/2019, em Natal. Trabalhou no Diário de Natal e na Tribuna do Norte, onde foi editor de Polícia na década de 1980. Atuou também como diretor de redação do semanário “Dois Pontos” e venceu dois prêmios em 1988, ao escrever sobre o Integralismo no Rio Grande do Norte e o Movimento Estudantil no Estado.

[2] A antiga Escola Polythecnica é a atual Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fundada em 1792, é a sétima escola de engenharia mais antiga do mundo e a mais antiga das Américas, assim sendo, a primeira instituição de ensino superior do Brasil.

[3] O Observatório Nacional é uma instituição científica localizada na cidade do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro, no Brasil. O Observatório foi criado em 1827, sendo uma das instituições científicas mais antigas do país. A sua finalidade inicial foi a de orientar os estudos geográficos do território brasileiro e o ensino da navegação, por isso sua relação estreita com o exército na criação do “serviço geographico”.

[4] Ver Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, segunda-feira, 2 de junho de 1890, p. 1.

[5] Ver Diário da Tarde, Curitiba, sábado, 31 de maio de 1980, p. 4.

[6] Ver Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, Ministro de Estado da Guerra, em junho de 1908, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, págs. 34 a 45, 1908.

[7] A fortaleza de Nossa Senhora da Conceição foi erguida sobre os alicerces da antiga Bateria do Morro da Conceição, construída em 1711 pelo corsário francês René Duguay-Troin. Sobre a história dessa fortaleza, ver https://www.ipatrimonio.org/rio-de-janeiro-fortaleza-da-conceicao/#!/map=38329&loc=-22.899628000000018,-43.182856,17

[8] Ver Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, sexta-feira, 2 de agosto de 1917, p. 3.

[9] Sobre essa missão militar austríaca no Brasil ver SILVA, Eliane Alves da. 90 Anos da Missão Cartográfica Imperial Militar Austríaca no Exército Brasileiro – Relato Histórico da Fotogrametria (1920-2010). 1º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica. Parati, 10 a 13 de maio de 2011. Ver também O Jornal, Rio de Janeiro, sexta-feira, 25 de fevereiro de 1944, pág. 4.

[10] Ver Última Hora, Rio de Janeiro, terça-feira, 9 de dezembro de 1958, pág. 14. Sobre o Palácio da Conceição vale comentar que o primeiro prelado que nele residiu foi o terceiro bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de São Jerônimo, que chegou ao Rio de Janeiro no ano de 1702. Quando de sua morte, em 1721, com fama de Santo, teve o seu corpo sepultado no interior da Capela do Palácio. Mais sobre o local ver https://www.ipatrimonio.org/rio-de-janeiro-palacio-episcopal/#!/map=38329&loc=-22.89964011290089,-43.18269073963165,17 

[11] Ver A Noite, Rio de Janeiro, quarta-feira, 6 de setembro de 1933, pág. 3.

[12] Sobre essa aeronave ver C. Pereira Netto, Francisco. Aviação Militar Brasileira 1916-1984. Editora Revista de Aeronáutica, 1984, pág. 126.

[13] Ver A Nação, Rio de Janeiro, quarta-feira, 27 de setembro de 1933, pág. 3.

[14] Ver Diário de Pernambuco, Recife, quinta-feira, 9 de novembro de 1933, pág. 1.

[15] Ver O Paiz, Rio de Janeiro, quinta-feira, 26 de julho de 1934, p. 4.

[16] A Constituição de 1937 é a quarta do Brasil e a terceira da república, de conteúdo pretensamente democrático, foi implantada no mesmo dia em que foi decretado o período ditatorial no Brasil, que ficou conhecido como Estado Novo. Era uma carta política eminentemente outorgada, mantenedora das condições de poder do presidente Getúlio Vargas. A Constituição de 1937, que recebeu o apelido de “Polaca” por ter sido inspirada no modelo semifascista polonês, era extremamente centralizadora e concedia ao governo poderes praticamente ilimitados.

[17] Para conhecer o texto desta Constituição ver https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm

[18] Sobre o “Saliente Nordestino” ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Saliente_nordestino

[19] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, sexta-feira, 23 de março de 1945, págs. 1 e 2.

[20] Ver Diário da Tarde, Curitiba, sábado, 12 de fevereiro de 1944, p. 1.

[21] Sobre uma biografia mais elaborada do General Poly Coelho ver https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/galeria-de-presidentes/20959-djalma-polli-coelho.html Ver também o jornal Diário da Tarde, Curitiba, sábado, 12 de fevereiro de 1944, págs. 1 e 2.

[22] Ver os jornais O Radical, Rio de Janeiro, quarta-feira, 14 de janeiro de 19425, pág. 6 e O Estado, Florianópolis, quinta-feira, 22 de janeiro de 1942, pág. 3.

[23] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, sexta-feira, 23 de março de 1945, págs. 1 e 2.

[24] Ver A Noite, Rio de Janeiro, terça-feira, 31 de março de 1942, pág. 5.

NATAL NA REVISTA TIME E NO CAMINHO DA SEGUNDA GUERRA 

Rostand Medeiros 

Em 24 de novembro de 1941, poucos dias antes do ataque japonês à base de Pearl Harbor, no Havaí, razão da entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, a revista norte-americana Time publicou uma interessante matéria que apresentava os negócios da empresa de aviação Pan American Airways, conhecida como Pan Am, no Brasil. Nessa época a empresa construía doze bases aéreas em nosso país, sendo a principal Parnamirim Field. 

Mesmo com os Estados Unidos ainda não estando oficialmente em guerra contra os países do Eixo, nesse texto é possível perceber que para esses jornalistas a participação dos na Guerra já era o assunto do dia. Vemos também a visão dos americanos em relação às relações do Brasil com os Estados Unidos e detalhes ligados à construção da grande base de Parnamirim, inclusive os problemas. Narra também os acontecimentos em Parnamirim Field, inclusive pretensos casos de sabotagem, situação que também foi comentada pelo escritor potiguar Lenine Pinto em seu livro Natal, USA (1995). 

Revista Time, Estados Unidos, págs. 89 a 92, Segunda-feira, 24 de novembro de 1941, Volume XXXVIII, Número 21.

No final do texto fica evidente um recado transmitido pela revista Time para pressionar as autoridades brasileiras a realizarem a paralisação das atividades das empresas aéreas LATI (italiana) e Condor (brasileira, mas de controle alemão). 

Esse texto da revista Time é um retrato de um momento delicado em nossa história. Um momento que se situa poucos dias antes da entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra. E apenas quatro dias após o ataque japonês a Pearl Harbor, chegaram em Natal seis hidroaviões PBY-5 Catalina da Marinha dos Estados Unidos (US Navy), do esquadrão VP-52, mostrando o início do total engajamento dos militares norte-americanos em Natal. 

NEGÓCIO: PAN AM NO BRASIL 

Revista Time, Estados Unidos, págs. 89 a 92, Segunda-feira, 24 de novembro de 1941, Volume XXXVIII, Número 21.

A vulnerável ponta oriental do Brasil, que se destaca como um polegar dolorido em todos os mapas da grande estratégia dos Estados Unidos, é para uma corporação americana já uma frente de combate ativa. A corporação: Pan American Airways. 

Nessa região as linhas da Pan Am seguem paralelas às companhias aéreas do Eixo; e lá, por ordem do governo dos Estados Unidos, a Pan Am estava ocupada na semana passada melhorando ou construindo doze bases aéreas.

As dificuldades no caminho da Pan Am são tão reais quanto a guerra e não muito diferentes dela. Os homens da Pan Am confrontam agentes, espiões e empresários do Eixo todos os dias. Um relatório de progresso sobre a nova rede de aeroportos, que chegou a Manhattan na semana passada, foi lido como um comunicado de guerra.

Técnicos norte-americanos papeando com trabalhadores natalenses, fazendo cena para a câmera.

As doze bases estão no Amapá, Belém, São Luiz, Camocim (Ceará), Fortaleza, Natal, Recife, Maceió e na Bahia. Sete são aeroportos para aviões e cinco locais para serem utilizados por hidroaviões (A Pan Am ainda está negociando outro aeroporto na Bahia.) Em cada projeto trabalham de 500 a 800 homens.

Para um programa de construção deste porte, que requer 6.000.000 barris de emulsão asfáltica apenas para as pistas, a Pan Am (uma empresa de transporte) não estava inicialmente equipada. Formou uma subsidiária chamada Airport Development Program (ADP), contratou a Haller Engineering Associates como consultora em estabilização de solos e conseguiu que a Bitumuls of Brazil, Inc. construísse plantas para fazer e misturar o material de revestimento. 

Por deferência aos sentimentos brasileiros, não estão envolvidos engenheiros do Exército dos Estados Unidos, mas todo o projeto foi adiado no início por dúvidas brasileiras. Depois foi adiada pela própria inexperiência da Pan Am, pela chegada tardia das máquinas, pelo excesso de executivos (em Natal, por um tempo, eles superaram em número os homens de macacão). Nenhum campo ainda está completo. Mas de agora em diante mais atrasos serão causados ​​pelo Eixo – como alguns já foram.

Um Lockheed L-18 Lodestar da Royal Air Force (RAF). Fabricados nos Estados Unidos, aviões similares so da foto passaram por Natal a caminho da Inglaterra.

O ponto de partida para África, a Lisboa sul-americana, é Natal. Há Lodestars [1] para os britânicos, que decolam para Bathurst [2] a 1.850 milhas de distância (2.978 km). Lá, o Capetown Clipper da Pan Am [3] fez uma pausa na semana passada em um voo de teste de 18.290 milhas (29.434 km) de Manhattan a Leopoldville, no Congo Belga [4] – um voo que em breve levará a um serviço comercial quinzenal regular. Em Natal a Pan Am está construindo duas bases, uma para aviões (Parnamirim), outra para hidroaviões (Rampa) [5].

Normalmente Natal é uma tranquila cidade de 56.165 habitantes, que agora está lotada e em alta. Seu hospital [6] é um dormitório para os construtores de aeroportos; seu hotel transborda de engenheiros [7], pilotos que cruzam o Atlântico, motoristas de trator e espiões do Eixo. Dois operadores de escavadeiras dos Estados Unidos alugaram quartos em um bordel de alta classe, embora não gostem da comida. Eventualmente, a Pan Am espera construir um hotel perto de seu campo, a onze esburacadas milhas da cidade (17 km).

Avião italiano da LATI que utilizaram Natal e Recife como pontos de apoio no seu caminho para Roma.

Para a base de aviões de Natal a Pan Am está construindo duas pistas, cada uma com um quilômetro e meio de comprimento; uma estação de rádio; tanques de gás subterrâneos; um armazém, galpões de carga, etc. Junto a este campo, e provavelmente mais tarde incluído nele, está outro construído pela Air France para a sua linha aérea entre Paris e Buenos Aires. Nesse local aviões Savoia-Marchettis da linha italiana LATI ainda decolaram esta semana para Roma [8].

Um francês corpulento chamado Reynaud, responsável por este campo, gosta de lembrar como os grandes hidroaviões da Air France costumavam passar todos os dias com presentes para ele, legumes frescos da Argentina, vinho e frutas de Dakar [9]. Desde que a França caiu, ele nem recebeu seu salário. (O chefe da Pan Am em Natal ocasionalmente lhe dá um conto de réis ou dois). Mas ele ainda mantém uma lona bem espalhada sobre o único avião da França em Natal, um velho Fokker; ele corta a grama na pista; e todas as noites, pelo rádio, ele relata “condições climáticas” para Dakar.

Aeronave italiana da LATI aterrissando em Ibura (Recife), ou Parnamirim (Natal), enquanto trabalhadores brasileiros trabalham para uma empresa dos Estados Unidos.

A uma hora de Natal sobre o Atlântico, um piloto norte-americano do primeiro grupo que transportava aviões para os britânicos em Bathurst notou que um cilindro estava “ausente”. Ele conseguiu retornar a Natal e pousar, embora o farol e as luzes da pista estivessem apagados, o campo deserto. Os mecânicos descobriram uma vela de ignição muito solta, vários fios de ignição ondulados. Desde então, as luzes do aeroporto brilham a noite toda e os pilotos ficam duas horas vigiando seus aviões.

Uma noite, um estranho misterioso apareceu em um armazém que guardava gasolina da Pan Am. Enviando o vigia simplório para telefonar para o gerente, o estranho colocou perto de algumas latas de querosene uma bomba incendiária, do tipo caneta-tinteiro da Primeira Guerra Mundial, e depois desapareceu. O vigia descobriu o fogo, que gerou um pequeno dano. A gasolina era necessária para as Lodestars, que em breve partiriam para a África [10].

Avião Douglas DC-3 da Pan American Airways na pista do antigo Campo dos Franceses, que durante a Segunda Guerra ficaria conhecido como Parnamirim Field.

Em Recife, no extremo leste do Brasil, a ADP assumiu outro campo da Air France, ladeado por uma estação de rádio da LATI extremamente poderosa. Os aviões da LATI também usam este campo, quase roçando as cabeças dos trabalhadores da ADP quando decolam e aterrissam.

Para ampliar a pista de 800 para 1.550 metros, a ADP está movendo com mão-de-obra 120.000 metros cúbicos de solo, cortando e enchendo pontos muitas vezes seis metros acima do nível normal.

O superintendente Fred Wohn teve problemas para obter caminhões basculantes necessários, devido ao pequeno número existente. Um empreiteiro alemão tinha alguns; quando Wohn tentou alugá-los para o projeto ADP, ele recusou categoricamente. Wohn finalmente conseguiu seus caminhões enviando um intermediário para alugá-los para um projeto anônimo [11].

O engenheiro civil norte-americano Frederick Louis Wohn, que chegou ao Brasil no final de julho de 1941 para trabalhar em Natal.

O solo do Recife é quase areia pura, deve ser aguado para evitar que seja levado pelo vento. De uma pedreira próxima, a argila é transportada, espalhada sobre a base de areia em uma camada de seis polegadas. Sobre isso vão duas camadas de três polegadas de mistura de estabilização do solo. O resultado equivale a um bom cimento, mas é barato, rápido e resistente ao sol equatorial.

Recentemente quatro funcionários de primeira linha da Pan Am foram forçados a retornar em um voo de pesquisa desde o Caribe até Natal. Eles estavam pilotando um anfíbio Grumman que exigia permissões especiais, e o Ministério da Aeronáutica do Brasil, que é um órgão pesado e onde alguns funcionários são simpatizantes do nazismo, se recusou a conceder a licença de voo.

Apesar de tais obstáculos, o trabalho da Pan Am avança. Há dois anos a Pan Am operava 35% das companhias aéreas da América do Sul; agora opera 63%. A espionagem e a sabotagem do Eixo vão diminuir quando LATI e a Condor fizeram as malas e partirem, como outras linhas do Eixo na América do Sul já fizeram [12].

Esta semana a LATI. pelo menos, parecia estar em suas últimas pernas no Brasil. Quando a Pan Am iniciar o serviço South Atlantic Clipper, não haverá mais motivos para o Brasil tolerar o LATI.


NOTAS

[1] O Lockheed L-18 Lodestar foi um avião bimotor de transporte, desenvolvido e construído pela empresa Lockheed Corporation.

[2] Bathurst, atualmente chamada Banjul, é a principal área urbana da Gâmbia, uma antiga colônia britânica na África Ocidental. A Gâmbia se tornou independente em 1965 e Banjul é o centro econômico e administrativo desse país.

[3] O Capetown Clipper era a designação de um dos doze hidroaviões quadrimotores Boeing 314 Clipper operados pela Pan Am, que utilizavam Natal com frequência como ponto de parada e apoio. Eles desciam no Rio Potengi e utilizavam a base da Pan Am em nossa cidade, local que atualmente conhecemos como RAMPA.

[4] A cidade de Leopoldville é a atual Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, antigo Congo Belga.

[5] Segundo Lenine Pinto em seu livro Natal,USA, (págs. 58 e 59), o engenheiro Décio Brandão iniciou o levantamento topográfico na área de Parnamirim em março de 1941. Também neste livro, segundo relato do Sr. Rui Garcia Câmara, nesse mesmo mês também começou a ampliação do que hoje é a Rampa, às margens do Rio Potengi. Anteriormente no local havia uma pequena estação de passageiros da Pan Am.

[6] Atual Hospital Universitário Onofre Lopes, no bairro de Petrópolis.

[7] Nesse caso era o Grande Hotel, comandado por Teodorico Bezerra, no bairro da Ribeira.

[8] Os aviões Savoia-Marchetti utilizados pela empresa italiana LATI – Linea Aerea Transcontinentali Italiana eram trimotores S-79, que ligavam o Rio de Janeiro a Roma. Semanalmente em Natal esses aviões, suas tripulações e passageiros pernoitavam em um local de descanso próximo a pista de pouso de Parnamirim e realizavam a travessia do Atlântico Sul pela manhã cedo. A empresa italiana operou até o momento que o engajamento brasileiro foi se tornando mais forte com os americanos e teve sua licença cassada. 

[9] Dakar, ou Dacar, é a capital do Senegal e antiga capital da área colonial da África Ocidental Francesa, possui como Natal uma posição geográfica privilegiada e estratégica, sendo por muitos anos o principal ponto de contato das antigas aeronaves que partiam da capital potiguar em direção a África.

[10] Lenine Pinto em Natal,USA (pág. 155) ele comenta sobre esse caso, mas que ele teria ocorrido em agosto de 1941, no depósito da empresa Esso, próximo da Base Naval de Natal e esse autor tinha extremas restrições sobre as informações referentes a esse atentado.

[11] Segundo sua ficha de imigração, Fred Wohn era na verdade o engenheiro civil Frederick Louis Wohn, de 38 anos, que chegou ao Brasil no final de julho de 1941.

[12] A Condor era o Sindicato Condor, ou Syndicato Condor, uma subsidiária da empresa aérea alemã Lufthansa no Brasil. Foi uma das mais antigas companhias de aviação do mundo, criada em dezembro de 1927.

A ESPIONAGEM EM NATAL E PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL – O CASO DO ENGENHEIRO PERNAMBUCANO QUE TRABALHOU PARA OS NAZISTAS

Rostand Medeiros – Escritor e membro do IHGRN

Muitos hoje desconhecem a importância estratégica do Brasil durante o maior conflito bélico da humanidade. Além de grande fornecedor de matérias primas e materiais de alto valor estratégico o Brasil possuía alguns locais de extrema importância geográfica para uso da aviação e das forças navais, caso principalmente de Natal e Recife. 

Não é surpresa que antes mesmo da entrada do Brasil na conflagração, os nazistas já tinham olhos postos e muito atentos sobre o território nacional. Foi o Abwehr, uma organização de inteligência militar alemã que existiu entre 1920 a 1945, que cumpriu esta missão. O objetivo inicial da Abwehr era a defesa contra a espionagem estrangeira – um papel organizacional que mais tarde evoluiu consideravelmente, principalmente após a ascensão dos nazistas ao poder em 1933. Esta organização sempre esteve muito próxima ao Comando Supremo das Forças Armadas (Oberkommando der Wehrmacht – OKW) e do próprio Adolf Hitler, com seu quartel general em Berlim, adjacente aos escritórios do OKW.

Vice-almirante Wilhem Canaris, chefe do Abwehr.

Quem comandou por nove anos a Abwehr foi o vice-almirante Wilhem Franz Canaris. Considerado até os dias atuais como uma verdadeira lenda e um dos indivíduos mais interessantes e misteriosos da história da Segunda Guerra Mundial. Canaris nasceu em 1 de janeiro de 1887 em Aplerbek, Alemanha.

Jovem ainda começou a carreira naval e tornou-se oficial da Marinha. Era considerado como um homem inteligente, dinâmico, que havia viajado muito e conhecia seis línguas, inclusive o português. Foi comandante de submarinos na Primeira Guerra Mundial e, apesar da rivalidade entre as duas nações, tinha grande respeito pela Marinha Real da Grã-Bretanha, a Royal Navy.

Sob a direção de Canaris a Abwehr se tornou uma vasta organização de informações que incluía uma grande rede de espionagem em numerosos países estrangeiros, utilizando extensamente as missões diplomáticas alemãs. Essa rede foi primeiramente organizada em países que eram considerados os prováveis adversários da Alemanha do novo conflito que surgia no horizonte, principalmente a Grã-Bretanha. Depois a rede foi implantada em locais de forte significação estratégica no Hemisfério Ocidental.

A grande base de Parnamirim Field durante a Segunda Guerra Mundial.

Apesar do maior país da América do Sul ser considerado pela Alemanha nazista um país amigo do ponto de vista político, logo que a Guerra iniciou em 1939 o Abwehr  agiu para organizar um amplo serviço de informações em nosso país[1].

Suástica Sobre o Brasil

A espionagem alemã no Brasil esteve principalmente sob o comando de Albrecht Gustav Engels, um engenheiro que vivia no Brasil desde 1923, fugindo da crise que se abateu no seu país após a Primeira Guerra Mundial. Aqui Engels trabalhou na empresa Siemens, na Companhia Siderúrgica Brasileira e depois foi gerente da Companhia Sul-americana de Eletricidade em Belo Horizonte, sucursal da empresa alemã Allgemeine-Elektrizitäts Gesellschaft (AEG), onde alcançaria cargo de direção na América do Sul. Casou com a alemã Klara Pickardt em 1927, onde nasceu seu único filho e três anos depois se mudou para o Rio de Janeiro, a então Capital Federal.

Antes do início da guerra Engels foi com a família para três meses de férias a Alemanha e outros países europeus. Nesta viagem reencontrou em Gênova, cidade portuária italiana, um velho amigo chamado Jobst Raven, então capitão da Wehrmacht, o exército alemão, e que trabalhava na seção econômica do Abwehr. Deste contato Engels se tornou espião e passou a enviar inúmeros relatórios sobre a situação econômica, industrial e militar dos países sul-americanos e Estados Unidos. Com o início da Guerra este trabalho se ampliou bastante.

Engels (cujo codinome era “Alfredo”), com a colaboração de importantes membros da colônia alemã, que tinham cargos chaves em fortes empresas comerciais no país, começou a recrutar alemães natos, ou nascidos no Brasil, e estabeleceu se grupo de espionagem.

A organização de Engels não foi a única que operava no país, mas foi a maior e mais bem organizada. Esta rede de espionagem buscava informações variadas sobre o país, incluindo aspectos da política interna, sobre pontos estratégicos, a geografia litorânea e sobre a movimentação dos transportes. Para enviar suas informações a Abwehr sem serem descobertos os espiões germânicos em terras tupiniquins empregavam diversos recursos, tais como tinta invisível, pseudônimos, símbolos nos passaportes, códigos telegráficos, correspondência para endereços disfarçados, microfotografias e mensagens enviadas de estações de rádios clandestinas[2].

A movimentação nos portos brasileiros, como o de Santos (foto), eram alvos prioritários dos espiões nazistas no Brasil – Fonte – http://www.navioseportos.com.br/site/index.php/historia/historia-da-mm/195-a-expansao-1941-a-1989

Os melhores relatórios dos espiões de Engels tinham foco em inteligência naval e questões relativas ao tráfego marítimo. As informações vinham de tripulantes e funcionários que trabalhavam em navios e escritórios de terra das companhias marítimas nos principais portos brasileiros e incluíam vitais informações estratégicas. Graças a estes relatórios, a Kriegsmarine, a Marinha alemã, pode planejar interceptações de uma enorme quantidade de navios mercantes aliados que partiam da América do Sul.

É verdade que uma parte do serviço de espionagem de Engels era formada por espiões que estavam ligados a uma organização com algum nível de estrutura e financiadas pelo Abwehr, mas também havia muitas pessoas comuns, que atuavam de forma amadora e independente, querendo de alguma maneira ajudar a pátria distante.

Foto de várias pessoas acusadas de espionagem nazista no Brasil e publicadas no jornal Diário Carioca, de 2 de março de 1943. Entre eles temos brasileiros natos e naturalizados e cidadãos alemães. Tipos comuns, distante da ideia dos espiões criada pelo cinema.

Apesar de problemas que existiram devido ao amadorismo de vários espiões e informantes, é fato que graças às comunicações das redes de Engels, os relatórios obtidos pelos agentes nazistas na Argentina, Estados Unidos, México, Equador e Chile foram enviados para a Alemanha através de estações de rádios clandestinas brasileiras. Esta extensa rede conseguiu durante algum tempo enganar muito bem os serviços de contraespionagem britânica e norte-americana. 

O Nordeste Como Alvo 

Entre os homens que Engels conhecia com perfil para trabalharem como espiões estava Herbert Friedrich Julius von Heyer, ou Herbert von Heyer. Este era um filho de alemães nascido no Brasil em 1901, na cidade paulista de Santos, que aos quatro anos von Heyer seguiu com a família para Alemanha e chegou a lutar na Frente Russa durante a Primeira Guerra Mundial. Deu baixa do serviço militar como sargento em 1919, retornando ao Brasil quatro anos depois e desde 1938 trabalhava na sede carioca da empresa de navegação Theodor Wille & Cia.

Herbert Friedrich Julius von Heyer, ou Herbert von Heyer. Fonte – Livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, pág. 37.

Quando von Heyer esteve na Alemanha no outono de 1941, Engels avisou ao capitão Jobst Raven para encontrar, contatar e cooptar o antigo sargento para a causa. O que aconteceu sem maiores problemas e von Heyer passou a utilizar o codinome “Humberto Heyer”.

Engels e o novo colaborador começaram a trabalhar juntos no Rio, em dois escritórios conjugados de um edifício localizado na Rua Buenos Aires, 140, no Centro. Em julho daquele ano Engels informou a Berlim que von Heyer se deslocaria a Recife para recrutar possíveis colaboradores na capital pernambucana e saber das atividades dos norte-americanos na região.

Ele chegou à cidade faltando dez minutos para as cinco da tarde do dia 4 de julho de 1941, uma sexta-feira. Desembarcou do hidroavião “Caiçara”, da empresa Syndicato Condor no chamado “Aeroporto de Santa Rita”, onde então amerissavam os hidroaviões de passageiro na Bacia do Pina-Santa Rita[3].

Hidroavião em Recife – Fonte – http://www.fotolog.comtc211078575

Apesar de não possuir dados comprobatórios sobre isso, provavelmente quando o “Caiçara” sobrevoou a região do Porto de Recife, o espião Humberto deve ter visto atracados quatro belonaves de guerra da marinha dos Estados Unidos, a US Navy. Eram os cruzadores Memphis (CL 13), Cincinnati (CL 6) e os destroieres Davis (DD 395) e Warrington (DD 383) e certamente Von Heyer se questionou o que aquelas naves de guerra faziam ali. Mas aquela não seria sua única e desagradável surpresa no Nordeste do Brasil[4].

Logo o espião hospedou-se no tradicional Grande Hotel e manteve um primeiro contato com Hans Heinrich Sievert.

O Grande Hotel de Recife – Fonte – http://www.fernandomachado.blog.br/novo/?p=88384

Von Heyer passou oito dias em Recife e através do apoio de Sievert realizou várias reuniões na tentativa de angariar novos adeptos para a causa. Algumas foram produtivas e outras nem tanto. Entre estes manteve contato com o engenheiro elétrico alemão Walter Grapentin para a instalação de uma estação de rádio de ondas curtas, mas este recusou o trabalho[5].

Certamente o melhor elemento contatado por von Heyer foi Hans Sievert. Este era um alemão naturalizado brasileiro, tinha 37 anos, havia chegado ao Brasil em 1924, era casado com a alemã Wilma Korr, sendo membro destacado da tradicional comunidade germânica na capital pernambucana, além de gerente e sócio da antiga e conceituada firma Herm Stoltz & Cia. Sievert onde teve uma ascensão muito positiva na Herm Stoltz, saindo do posto de simples empregado, passando a ser gerente e finalmente sócio. Estava tão bem financeiramente que em 1932 retornou da Alemanha para o Recife no dirigível Graf Zeppelin[6].

A Herm Stoltz & Cia. era muito conceituada em todo país e muito conhecida particularmente em Pernambuco, onde eram os agentes da empresa aérea teuto-brasileira Syndicato Condor.

O Serviço em Natal

Segundo o brasilianista Stanley E. Hilton, em seu livro ““Suástica sobre o Brasil : a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944”, nesta viagem a Recife o espião von Heyer já estava sendo vigiado pelo pessoal do Federal Bureau of Investigation – FBI, a mítica unidade de polícia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Consta que o homem a serviço do Abwehr teria deixado Recife para uma rápida viagem a Natal, provavelmente em algum avião de carreira do Syndicato Condor[7].

Natal, metade da década de 1930.

Na capital potiguar ele teria se encontrado com os alemães Ernest Walter Luck, seu cunhado Hans Werbling e Richard Burgers. É provável que este encontro tenha ocorrido na casa de Luck, que servia de cônsul alemão na cidade, na Rua Trairi, 368, no bairro de Petrópolis. Todos esses alemães já eram radicados há vários anos na capital potiguar, partidários e propagandistas de primeira linha da causa nazista. Mas certamente o que deve ter impressionado o espião von Heyer em Natal foi o acentuado movimento de aviões norte-americanos, a presença de tropas brasileiras nas ruas e o imenso volume das obras desenvolvidas na construção da base aérea em Parnamirim e das bases de hidroaviões e de navios de guerra nas margens do Rio Potengi.

Aquilo era muito grave e von Heyer nem esperou seu retorno para o Rio. Antes de seguir para Fortaleza e Belém, destino final de sua viagem, ele enviou uma carta, certamente feita à base de tinta invisível, contando as preocupantes novidades ao seu chefe Engels.

Abastecimento de um C-87 em Parnamirim Field – Livro-Trampolim para a vitória, pág 129, de Clyde Smith Junior, 1993.

O que estava acontecendo em Recife e Natal, em uma das áreas mais estratégicas de todo Oceano Atlântico, certamente tinha de ser mais bem avaliado para ser informado ao Abwehr. Mas como isso poderia ser feito sem chamar atenção dos americanos?

A solução veio através de Hans Sievert, que conhecia um pernambucano com sólida formação como engenheiro, oriundo de família tradicional, com muitos contatos proveitosos e que poderia ampliar as informações do que acontecia na capital potiguar.

O escolhido foi Luiz Eugênio Lacerda de Almeida. Era filho do desembargador Luiz Cavalcanti Lacerda de Almeida e de Dona Maria Elisa. Tinha 46 anos, havia estudado no tradicional Ginásio Porto Carreiro, casou em 1922 com Maria Cândida Pereira Carneiro, tinha três filhos e residia na Avenida Beira Mar, número 3.000, em Recife. Na época ele trabalhava na Destilaria Central Presidente Vargas, pertencente ao Instituto do Açúcar e do Álcool e localizada no município do Cabo, atual Cabo de Santo Agostinho.

O engenheiro e sua esposa eram muito bem situados na sociedade pernambucana, possuindo parentesco com as tradicionais famílias Brennand e Burle, além do conde Ernesto Pereira Carneiro, empresário, político, jornalista e proprietário do respeitado Jornal do Brasil, com sede no Rio de Janeiro.

Jornais de várias partes do país também enalteceram a ligação do engenheiro pernambucano com o Integralismo, como o Diário da Tarde, de Curitiba-PR, na sua edição de terça feira, 30 de junho de 1942, pág. 1.

Segundo o jornal O Radical, do Rio, Eugênio Lacerda de Almeida havia sido Integralista e ideologicamente tinha um posicionamento favorável em relação ao Terceiro Reich de Adolf Hitler. Provavelmente isso explica a sua amizade com Hans Sievert[8].

Não existe uma comprovação da data que Eugênio Lacerda de Almeida chegou a Natal, mas se sabe que desembarcou em um voo da Panair do Brasil, pago pela Herm Stoltz & Cia. O fato deste engenheiro pernambucano haver chegado a Natal através de um voo desta empresa aérea pode explicar muito sobre sua infiltração nas obras de Parnamirim.

Ceremônia em Parnamirim Field – https://catracalivre.com.br

Em 1941 o Brasil ainda era um país neutro na Segunda Guerra e não queria de modo algum comprometer sua neutralidade. Oscilando ora para o lado do Eixo, ora com acenos aos Aliados, o regime ditatorial de Getúlio Vargas tolerou tanto as atividades dos nazistas no Brasil, quanto à construção de vários aeroportos pelos americanos. Estes aeroportos, cujos principais eram os de Belém e Natal, jamais poderiam ser construídos por militares estadunidenses. A solução encontrada pelo governo americano foi colocar em campo a Panair do Brasil, que nada mais era do que uma subsidiária da empresa aérea americana Pan American Airways, com recursos para tocar as obras vindas do ADP (Airport Development Program – Programa de Desenvolvimento de Aeroportos). Então teve início a construção das instalações destinadas a servirem como principais bases de transporte e transbordo ao longo da rota do Atlântico Sul.

Na foto vemos um Douglas C-47 Dakota em Parnamirim Field.

Evidentemente que muito dinheiro forte estava circulando em Natal, fato este que tanto atraía prostitutas, malandros e ladrões, quanto pedreiros, mestres de obras e engenheiros. Pernambuco já possuía há décadas uma escola de engenharia e alguns engenheiros ali formados convergiram para a capital potiguar atrás de dólares. Certamente a chegada de Eugênio Lacerda de Almeida a Parnamirim, vindo em um avião da Panair do Brasil, possivelmente bem trajado e distribuindo simpatia, não deve ter alertado as autoridades.

Trabalhos de construção em Parnamirim Field – Hart Preston-Time & Imagens de Vida / Getty Images.

Aliado a isso temos que pensar que ele talvez conhecesse alguém na área das obras para apresentar o trabalho que ali era realizado. Esse pretenso contato, de forma inadvertida, ou em estreita cooperação, lhe apresentou o engenheiro encarregado das obras, que lhe trouxe então as plantas da construção das pistas de aterrissagem e dos muitos locais administrativos que seriam utilizados por americanos e brasileiros. Ardilosamente Eugênio Lacerda de Almeida guardou na memória o que viu nas plantas da grande base e depois, reservadamente, desenhou um croqui com detalhes do projeto.

Foto atual da Base Naval de Natal, que teria sido espionada pelo engenheiro Eugênio – Fonte – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/portoes-abertos-base-naval-de-natal-realiza-exposicao/205460

Existe a informação que além de “visitar” as obras da base de Parnamirim, o engenheiro teria igualmente visto as obras da futura Base Naval de Natal[9]. À noite, hospedado em um hotel, ao entabular conversas com pessoas que trabalhavam nas obras em Natal, soube de detalhes dos projetos de ampliação do porto da cidade. No outro dia ele voltou a Recife a bordo do navio Cantuária[10].

Na capital pernambucana, ao se encontrar com Hans Sievert, o engenheiro Eugênio Lacerda de Almeida quis lhe reportar o que viu, mas o alemão exigiu um relatório por escrito, mas afirmou que depois o destruiria. 

Capturando Os Vermes!

Em muito pouco tempo a situação virou completamente.

Os afundamentos e os chocantes relatos dos sobreviventes levaram a um clima de intensa animosidade com a Alemanha, com manifestações em todo o país, algumas violentas, com a depredação de bens ligados a alemães, e onde se exigia que o Brasil declarasse guerra ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão), o que foi feito pelo presidente Vargas em agosto de 1942.

O afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães alterou a participação do Brasil no conflito. Foto meramente ilustrativa – Fonte – http://www.navioseportos.com.br/site/index.php/historia/historia-da-mm/195-a-expansao-1941-a-1989

Mesmo tendo vários navios afundados por submarinos alemães e com muitos de seus cidadãos mortos, O Brasil era um país que teimava em ficar em cima do muro, sem se comprometer demasiadamente na Guerra e tentava tirar vantagens dos dois lados da contenda. Mas conforme cresciam os ataques dos submarinos alemães aos navios de carga brasileiros, a revolta da população aflorou intensamente e a boa vida dos espiões alemães acabou completamente em terras tupiniquins[11].

O desmantelamento das redes de espionagem deu um enorme trabalho para o governo Vargas, que levou algum tempo para conseguir este objetivo. Mas em 25 de fevereiro de 1942 os alemães Hans Sievert e Walter Grapentin prestaram depoimentos ao então Secretário de Segurança de Pernambuco, o Dr. Etelvino Lins de Albuquerque, e ao delegado Fabio Correia de Oliveira Andrade, nas dependências da Delegacia de Ordem Política e Social, o DOPS, em Recife e eles entregaram tudo mundo[12].

Logo, para surpresa geral na capital pernambucana, um dos chamados a depor foi Luiz Eugênio Lacerda de Almeida.

Sievert confirmou que o engenheiro foi a Natal por conta da empresa Herm Stoltz & Cia, que o enviou para conhecer a obra para a empresa alemã melhor se preparar para “candidatar-se as concorrências que existiam em Parnamirim”. Uma situação completamente ilógica e ridícula diante do estado de extrema desconfiança e quase beligerância entre alemães e americanos na época.

Já Eugênio Lacerda de Almeida informou que passou apenas um dia em Natal e negou a autoria do croqui produzido sobre a base de Parnamirim. Entretanto, talvez por receio de uma acareação, se retraiu ao ser confrontado com o material e confirmou que foi ele que produziu os desenhos. Afirmou que primeiramente negou o fato por medo de se prejudicar, pois havia recebido de Hans Sievert a garantia que o material havia sido destruído. Eugênio Lacerda de Almeida comentou também que na época da feitura dos desenhos, quando o Brasil ainda se encontrava neutro, ele havia se tornado “admirador das vitórias alemãs” e na sua concepção ele não estava prejudicando o Brasil.

As estratégicas bases aéreas em Natal e Belém foram importantes na engrenagem de guerra doa Aliados no Brasil. Na foto vemos um Douglas C-47 e um Consolidated B-24 Liberator.

A situação do engenheiro foi cada vez mais se complicando, principalmente quando ele teve de explicar a origem de 50 contos de réis (50.000$000) que recebeu de Hans Sievert. Até então a ida de Eugênio Lacerda de Almeida a Natal teria sido, por assim dizer, voluntária. Mas surgiu um depósito em sua conta corrente do Banco do Povo neste valor, creditado no dia 23 de dezembro de 1941. Aparentemente um gordo presente de natal!

Espiões Nazistas que agiam em Santos, São Paulo – Fonte – http://atdigital.com.br/historiasdesantos/?p=94

Mas o dinheiro ficou depositado por seis meses, em uma espécie de conta de renda fixa que existia na época. Sievert afirmou em depoimento que entregou aquele dinheiro ao engenheiro pernambucano em confiança, sem documento comprobatório, para atender as necessidades de sua família no caso de surgirem “imprevistos contra a sua pessoa”[13].

O engenheiro Eugênio Lacerda de Almeida foi identificado, sujou os dedos quando fez sua ficha datiloscópica, fez retratos de frente e de perfil e depois saiu andando tranquilamente pela porta da rua!

Lei Frouxa! 

Ficou a cargo do Dr. José Maria Mac Dowell da Costa, Procurador do Tribunal de Segurança Nacional (TSN), analisar as provas contidas nos autos contra as pessoas acusadas de espionagem, ou de facilitação desta atividade, os chamados “Agentes do Eixo”[14].

Dr. José Maria Mac Dowell da Costa, Procurador do Tribunal de Segurança Nacional (TSN)

O Dr. Mac Dowell da Costa prometia através da imprensa que “seria inflexível no cumprimento do dever” e se algum daqueles 128 homens e mulheres pronunciados estivesse seriamente implicado nos artigos no Decreto Lei Nº 4.766, de 1º de outubro de 1942, que definia os crimes militares e contra a segurança do Estado, ele não hesitaria em aplicar a pena máxima existente – A pena de morte![15]

O nobre engenheiro Luiz Eugênio Lacerda de Almeida sofreu por parte da imprensa carioca, especialmente dos jornais Diário Carioca e O Radical, uma intensa pressão para que fosse condenado e recebesse uma punição exemplar[16]. Eugênio Lacerda de Almeida compareceu ao TSN no Rio e foi indiciado com base no Decreto Lei 431, de 18 de maio de 1938, Artigo 3º, no seu 16º inciso.

Houve forte indignação com a liberdade do engenheiro pernambucano. Manchete do jornal O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, pág. 1.

Notem os leitores que de saída o engenheiro pernambucano não foi indiciado na chamada “Lei de Guerra”, que era o Decreto Nº 4.766, de 1º de outubro de 1942, uma lei bem mais dura, mas no Decreto Lei 431, de 1938. Este na sua parte inicial era definido como “Crimes contra a personalidade internacional, a Estrutura e a segurança do Estado e contra a ordem social”. E trazia no texto do seu inciso 16º o seguinte teor “Incitar ou preparar atentado contra pessoa, ou bens, por motivos doutrinários, políticos ou religiosos; Pena – 2 a 5 anos de prisão; se o atentado se verificar, a pena do crime incitado, ou preparado”[17]. Além disso, trazendo como verdadeiro “abre alas” de sua defesa, havia dezenas de cartas de autoridades e pessoas gradas, atestando a sua conduta e de como ele era uma pessoa ilibada[18].

Quase no fim do ano de 1943, sob a presidência do ministro Frederico de Barros Barreto, natural de Recife, o TSN promulgou várias sentenças contra os acusados de espionagem e vários deles foram condenados a pena de morte, entre eles Albrecht Gustav Engels.

Aparelho achado no Rio servia para mandar informações a nazistas.

Mas para desgosto de muita gente, sedenta de sangue para vingar os mais de 1.081 mortos, em mais de 34 navios brasileiros afundados por submarinos do Eixo, nenhum dos acusados de espionagem foi parar diante de algum pelotão de fuzilamento. O Dr. Mac Dowell da Costa afirmou a um periódico mineiro que os casos que estavam chegando ao TSN eram anteriores ao reconhecimento da declaração de guerra, sendo impossível aplicar a pena de morte[19].

Esses condenados a morte tiveram a pena alteradas para 30 anos de prisão, mas muitos não cumpriram sequer dez anos pelos seus atos. O grande chefe Engels logo saiu da cadeia e foi ser funcionário, logicamente, de uma empresa alemã. No caso a Telefunken do Brasil, aonde chegou a presidência da mesma[20]. Hans Heirich Sievert e Herbert von Heyer foram condenados a 25 anos de prisão cada um. Sievert logo deixou a cadeia e aparentemente foi morar em Petrópolis, Rio de Janeiro, onde faleceu em 17 de novembro de 1979[21].

Já von Heyer penou um pouco mais. Em 1952 vamos encontrá-lo encarcerado no mítico e tenebroso presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde era considerado um preso de bom comportamento e dava aulas de inglês para o comandante da instituição prisional[22].

Não consegui apurar, mas acredito que o engenheiro Luiz Eugênio Lacerda de Almeida não passou um dia sequer na cadeia. Ele faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 1975[23].

Final Infeliz

Não causa nenhuma surpresa que a maioria dos espiões nazistas que operaram no Brasil não quis retornar para sua tão amada nação de origem após o fim da guerra. Simplesmente após o fim do conflito ninguém no Brasil se importou muito com essa gente e represálias, até onde sei, nunca aconteceram. O tempo apagou quase tudo sobre esses casos!

Já nos Estados Unidos, por exemplo, a coisa foi bem diferente. Começa que o Presidente Franklin D. Roosevelt, temeroso que um tribunal civil fosse demasiado indulgente com espiões nazistas, criou um tribunal militar especial para esse tipo de caso. Isso levou a execução na cadeira elétrica de seis espiões nazistas[24].

Já na Inglaterra foi criada a “Lei da Traição”, que após passar pelo parlamento e receber o assentimento real, tinha apenas uma sentença prioritária: a morte. Lá, Entre 1940 e 1946, dezenove espiões e sabotadores foram processados sob a Lei da Traição e executados. Um vigésimo espião – um jovem diplomata português – foi condenado à morte, mas a sua pena foi comutada para prisão perpétua após a intervenção do governo português[25].

Texto publicado originalmente no blog Papo de Cultura, do jornalista Sérgio Vilar – http://papocultura.com.br/nazista-em-natal/


NOTAS

[1] Ver os livros Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 17 a 19 e O Brasil na mira de Hitler, Roberto SANDER. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, págs. 23 a 33.

[2] Ver os livros Hitler’s Spy Chief: The Wilhelm Canaris Mystery. New York, NY, EUA: Pegasus Books, 212, págs, 23 a 45. Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 20 a 24.

[3] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de sábado, 5 de julho de 1941, pág. 2. O interessante foi que von Heyer desembarcou utilizando seu nome verdadeiro e este antigo ponto de embarque e desembarque de hidroaviões em Recife ficava localizado onde atualmente existem duas grandes torres de apartamentos, construídas pela empresa Moura Dubeux, as margens do Rio Capibaribe. Estas torres são dois edifícios de luxo de 42 andares, construídos no Cais de Santa Rita, no bairro de São José e conhecidas popularmente como as “Torres Gêmeas”. A construção das torres começou em 2005 e foi concluída em 2009, após batalha judicial com o Ministério Público Federal, que apontava irregularidades na obra. Com sua excessiva proximidade com o mar e grande altura, os prédios diferem radicalmente do entorno do bairro histórico. Sobre esse assunto ver – https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/01/obra-em-bairro-historico-inflama-debate-sobre-verticalizacao-do-recife.htm

[4] Aquelas naves em Recife estavam sob o comando do vice-almirante Jonas H. Ingran, como parte da Task Force 3, que futuramente, com a ampliação das ações de combate da US Navy no Atlântico Sul, seria designada como Fourth Fleet (Quarta Frota).

[5] Sobre o encontro entre Grapentin e von Heyer ver as declarações do primeiro para a polícia pernambucana, reproduzidas no Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de domingo, 29 de março de 1942, pág. 4 e no livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, pág. 40.

[6] A Herm Stoltz & Cia. foi uma empresa fundada em 1863, muito conceituada em todo país no transporte marítimo, com matriz no Rio e filial até na Alemanha. Era muito conhecida particularmente em Pernambuco, onde eram os agentes da empresa aérea teuto-brasileira Syndicato Condor. Já sobre as declarações de Hans Sievert para a polícia pernambucana, reproduzidas no Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de domingo, 29 de março de 1942, pág. 4. Já sobre a viagem no dirigível Graf Zeppelin, ver o Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de quinta feira, 13 de outubro de 1932, pág. 1.

[7] Segundo Stanley E. Hilton a informação da presença do espião von Heyer em Natal está inserida no relatório do FBI intitulado “Totalitarian activities – Brazil Today”, produzido em dezembro de 1942, mas sem referência de páginas. Afora isso não existe nenhum documento comprovatório da passagem deste espião por Natal. Entretanto é bastante crível sua presença na capital potiguar diante do que os americanos desenvolviam aqui em julho de 1941 . Ver o livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 40 e 41.

[8] Sobre os vários detalhes da vida de Luiz Eugênio Lacerda de Almeida ver o Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de segunda feira, 20 de fevereiro de 1922, pág. 1 e O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4.

[9] Ver Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 29 de maio de 1942, páginas 1 e 5.

[10] Eugênio Lacerda de Almeida não informou em qual hotel ficou em Natal e nem se manteve contato com os alemães residentes na cidade. Ver seu depoimento reproduzido no jornal O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4 e no Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 29 de maio de 1942, páginas 1 e 5.

[11] Sobre a derrocada dos espiões nazistas no Brasil, ver o livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 235 a 296.

[12] Etelvino Lins de Albuquerque foi Governador de Pernambuco entre 1952 e 1955, senador constituinte, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) e deputado federal em duas legislaturas.

[13] Ver O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4.

[14] O Tribunal de Segurança Nacional (TSN) foi uma corte de exceção, instituída em setembro de 1936, primeiramente subordinada à Justiça Militar e criada diante dos traumas provocados no poder pela Intentona Comunista de novembro de 1935. Era composto por juízes civis e militares escolhidos diretamente pelo presidente da República e deveria ser ativado sempre que o país estivesse sob o estado de guerra. Com a implantação da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937, o TSN passou a desfrutar de uma jurisdição especial autônoma e tornou-se um órgão permanente. Nesse período passou a julgar não só comunistas e militantes de esquerda, mas também integralistas e políticos liberais que se opunham ao governo. Entre setembro de 1936 e dezembro de 1937, 1.420 pessoas foram por ele sentenciadas. O TSN foi extinto após a queda do Estado Novo, em outubro de 1945.

[15] Dos 128 implicados 77 eram estrangeiros, 40 brasileiros natos e 11 brasileiros naturalizados. Já os processos eram originários do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo. Ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 2 de outubro de 1943, pág. 5. Sobre o Decreto Lei 4.766, de 1 de outubro de 1942, ver http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4766-1-outubro-1942-414873-publicacaooriginal-1-pe.html

[16] Ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edições de domingo, 30 de junho e 17 de julho de 1942, respectivamente nas páginas 1 e 3.

[17] Sobre o Decreto Lei 431, de 18 de maio de 1938, ver http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-431-18-maio-1938-350768-publicacaooriginal-1-pe.html

[18] Sobre esta questão ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edições de domingo, 8 de junho de 1943, nas páginas 1 e 2.

[19] Sobre as declarações do Dr. Mac Dowell da Costa ver o Correio de Uberlândia, Minas Gerais-MG, edição de quinta feira, 25 de fevereiro de 1943, pág. 1.

[20] Ver o livro O Brasil na mira de Hitler, Roberto SANDER. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, págs. 106 e 119.

[21] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro-RJ, edição de domingo, 17 de novembro de 1979, pág. 38, 1º Caderno.

[22] Ver Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, edição de segunda feira, 4 de fevereiro de 1952, pág. 7.

[23] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro-RJ, edição de quarta feita, 3 de dezembro de 1975, pág. 24, 1º Caderno.

[24] Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Operation_Pastorius

[25] Ver https://www.theguardian.com/world/2016/aug/28/britain-nazi-spies-mi5-second-world-war-german-executed

100 ANOS DA REVOLTA DOS 18 DO FORTE DE COPACABANA E A LIDERANÇA DE SIQUEIRA CAMPOS

Rostand Medeiros

Em 5 de Julho de 2022 Será o Centenário de Um Dos Momentos Mais Dramáticos e Intensos da História do Brasil no Século XX, Quando Se Iniciou Uma Rebelião Contra a Situação Política Nacional, Que Colocou um Pequeno Grupo de Jovens Militares e Civis Idealistas Para Enfrentarem Abertamente o Governo Brasileiro na Praia de Copacabana. Inicialmente Eles Utilizaram a Mais Poderosa Fortaleza do Brasil na Época Para Mostrar Suas Insatisfações e Depois Lutaram Corajosamente nas Areis da Praia Contra Uma Tropa Bem Mais Numerosa. Nesse Trágico Episódio se Destacou a Figura do Tenente Siqueira Campos, Um Homem de Pensamento Firme e Família de Origens Nordestinas.

Ele foi um dos principais personagens do Tenentismo, movimento de contestação política marcado pela rebelião militar entre as décadas de 1920 e 1930. Antônio de Siqueira Campos nasceu em Rio Claro, São Paulo, em 18 de maio de 1898, vinha da parte menos abastada de uma poderosa família ruralista.

O bisavô que emigrou de Portugal para o Brasil e foi trabalhar como agricultor na cidade de Flores, na Região do Pajeú, no interior do estado de Pernambuco, onde se casou com uma moça da família Siqueira, grande proprietária de terras da região e forte poder político no Nordeste.

Antônio de Siqueira Campos.

Seu avô, Pedro Pessoa de Siqueira Campos, foi condecorado por Dom Pedro II durante a Guerra do Paraguai por atos de bravura e se tornou coronel honorário do Exército. Já seu pai, Raimundo Pessoa de Siqueira Campos nasceu em Pernambuco e casou com Luísa Freitas de Siqueira Campos. Tempos depois Raimundo e seus familiares passaram a viver no interior estado de São Paulo, onde administrava uma das fazendas de um irmão chamado Manuel de Siqueira Campos, que além de rico proprietário de terras, foi presidente da Câmara da cidade de Rio Claro e em 1891 recebeu a nomeação de chefe de polícia de São Paulo, no governo de Américo Brasiliense de Almeida Melo.

A família do jovem Siqueira Campos se mudou para a capital paulista em 1904, onde o pai ocupou o cargo de almoxarife do Departamento de Águas e recebia “o excelente salário de setecentos mil-réis”. Na capital o jovem filho de Raimundo fez o curso primário no Grupo Escolar Sul da Sé de 1904 a 1907 e o secundário no Ginásio do Estado de São Paulo, formando-se em 1914 com “grande distinção”.

Anos depois da Revolta do Forte de Copacabana Siqueira Campos (esquerda), ao lado de Orlando Leite.

O São-carlense pretendia continuar os estudos, mas a situação da família mudou radicalmente. Sua mãe morreu vítima de um acidente e logo seu pai resolveu casar-se novamente. Siqueira Campos tinha na época 16 anos e sua madrasta era mais jovem do que ele. Na pressa de construir um novo lar, seu pai mergulhou a família em dificuldades financeiras e pessoais.

Siqueira Campos viu frustrados seus planos de cursar engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Ao mesmo tempo em que se deterioravam suas relações com o pai, os irmãos mais velhos, Raimundo e Ananias, saíram de casa. Pouco tempo depois Siqueira Campos seguiu o exemplo dos irmãos e mudou-se para o Rio. Sem maiores perspectivas ele escolheu a carreira militar e assim seguiu o exemplo de vários filhos de famílias pobres que desejavam prosseguir os estudos. Em dezembro de 1915 ele ingressou na Escola Prática do Exército e no ano seguinte iniciou o curso na Escola Militar do Realengo.

Militares do Exército Brasileiro no Forte de Copacabana.

Aos dezoito anos, é descrito nos registros militares como um jovem voluntarioso de “1,68 de altura, pouca barba, boca regular, cabelos castanhos, pele branca, nariz afilado, olhos esverdeados e rosto oval”.

Um Oficial em Formação 

As preferências de Siqueira Campos entre as matérias do currículo, dividiram-se entre balística e a matemática, o que o levaria mais tarde à escolha da arma de artilharia. O ensino dentro da escola primava pelo “respeito à ordem constituída”. Embora fosse “quase proibido pensar”, a disciplina não impedia que Siqueira Campos e seus colegas discutissem exaustivamente os problemas brasileiros. Já nessa época ele usava frequentemente a expressão “Brasil Novo” para definir sua esperança de uma mudança no regime político e social que caracterizava a República Velha. 

Dois amigos se destacaram do círculo de colegas de Siqueira Campos. O fechado e religioso Eduardo Gomes — conhecido como “frei Eduardo” —, e Estênio Caio de Albuquerque Lima. Esses alunos alugaram uma casa em Realengo a fim de estudarem de madrugada. A casa recebeu o nome de “Tugúrio da morte” e passou a abrigar inquilinos bastante estudiosos e esfomeados. Esta última característica foi a responsável pelo desaparecimento de várias galinhas das casas vizinhas. 

Exército Brasileiro em movimentações.

Nessa turma privilegiada, de onde sairiam os líderes de acontecimentos que iriam mudar a face da República, Siqueira Campos era amigo de todos, mas admirava especialmente Luís Carlos Prestes.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) dava assunto para várias discussões entre os cadetes: além das posições opostas sobre o pangermanismo e a Revolução Russa de 1917, o tema que inflamava os ânimos era o da entrada do Brasil na contenda. Maurício de Lacerda, então deputado federal, não se cansava de pedir a entrada do Brasil no conflito: apresentou um projeto que foi derrotado em terceira discussão da Câmara, e, durante sua pregação, chegou a procurar os alunos da Escola Militar do Realengo. Siqueira Campos, um dos mais entusiasmados por lutar no exterior, fez parte da guarda-de-honra na homenagem prestada ao poeta Olavo Bilac, outro defensor da participação no conflito, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. 

No Brasil, o período 1917-1920 foi marcado também por agitações sociais. Os operários da Fábrica Bangu entraram em greve reivindicando melhores salários e condições de trabalho. A polícia foi enviada pelo governo contra os grevistas e no choque alguns operários foram mortos. O governo recuou, retirou a polícia e em seu lugar enviou os cadetes da Escola Militar, que foram bem recebidos pelos trabalhadores. Entre os jovens militares que patrulharam a via férrea entre Bangu e o Realengo estava Siqueira Campos. Mais tarde, comentando esse incidente, ele disse que os cadetes que se julgavam politizados naquela época, não tinham a menor consciência dos problemas sociais. 

Um único incidente marcou a vida escolar de Siqueira Campos: em 1918, ainda cadete, agrediu um delegado de polícia que o destratara a chicotadas, no meio da rua . No julgamento, seus bons antecedentes e sua aplicação nos estudos pesaram a seu favor, mas, mesmo assim, foi condenado a 15 dias de prisão no Forte de Santa Cruz por “desacato a autoridade civil”. 

Siqueira Campos.

A turma de Siqueira Campos, da qual faziam parte, além dos já citados, Frederico Cristiano Buys, Ciro do Espírito Santo Cardoso, Paulo Kruger da Cunha Cruz, Honorato Pradel, José Bina Machado e Carlos da Costa Leite, entre outros, terminou o curso da Escola Militar em 1918. Nesse mesmo ano Siqueira Campos matriculou-se no Curso Especial de Artilharia, sendo declarado artilheiro em 30 de dezembro de 1919. Promovido a segundo-tenente em 2 de janeiro de 1920, foi classificado na 1ª Bateria de Costa, sediada no Forte de Copacabana, onde se apresentou no dia 19 do mesmo mês. 

Nas Muralhas

Forte de Copacabana, década de 1960.

Inaugurado em setembro de 1914, o Forte de Copacabana fazia parte de um conjunto de seis fortalezas responsáveis pela defesa do Rio, e era comandado pelo capitão Euclides Hermes da Fonseca, filho do ex-presidente da República, marechal Hermes da Fonseca e sobrinho do marechal Deodoro da Fonseca..

Campos foi promovido a juiz do Conselho de Guerra Permanente do 1° Distrito de Artilharia da Costa. Depois, em janeiro de 1921, torna-se primeiro-tenente e é nomeado comandante interino da cúpula de canhões das guarnições de 190 milímetros, além de ajudante secretário da unidade e auxiliar do comando, estabelecendo uma relação direta com o capitão Euclides Hermes.

Até meados da década de 1920, os registros do Forte classificam a conduta de Siqueira Campos como exemplar, ressaltando seu zelo, inteligência e dedicação ao serviço e seu alto grau de ilustração militar. Apesar de ser considerado um oficial inflexível com a disciplina, ele gozava de grande prestígio no meio da tropa por seu senso de justiça e sua preocupação com as condições de vida dos soldados.

Euclides Hermes da Fonseca – Fonte – https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:EuclidesHermes.jpg

Em janeiro de 1922, durante as férias do comandante Euclides Hermes, respondeu interinamente pelo comando do Forte. Além do trabalho e do estudo, Siqueira Campos dedicava-se também ao esporte. Seus subordinados contam que, para relaxar o corpo após um dia de trabalho, costumava convidá-los a atravessar a nado do Forte de Copacabana à Ponta do Leme. 

Seguindo o exemplo de Eduardo Gomes, o jovem Siqueira Campos conseguiu autorização para submeter-se aos exames da Escola de Aviação Militar em fevereiro de 1922. Entretanto, julgado incapaz no exame de vista, voltou ao Forte de Copacabana, reassumindo suas funções de ajudante-secretário e, no mês seguinte, o comando da cúpula de 190 milímetros.

Para se ter uma ideia do poderio do canhões do Forte de Copacabana, nessa foto da década de 1950 vemos vidraças quebradas pela força expansiva dos disparos dos canhões de 305 em edifícios localizados à beira mar.

Mas as circunstâncias políticas e sociais da conflituosa década de 1920 estabeleceram fortes mudanças que envolveram setores do Exército e transformaram a vida do jovem tenente.

Preparativos do Drama

Já nos primeiros anos do século XX decaía no Brasil os ideais de um sistema político controlado pelas elites estaduais que, pela violência e corrupção, dominavam as eleições, os partidos e os juízes. O próprio Governo recorria à fraude eleitoral, criando os mais ardilosos dispositivos para impedir a vitória de oposicionistas. As relações entre o Governo Federal e os estaduais, e entre estes e os municipais, tinham em sua base uma política de favores e privilégios, numa espécie de círculo fechado no qual inexistia a preocupação com os interesses nacionais.

A guerra nas trincheiras, verdadeiro moedor de carne humana, foi uma das situações marcantes da Primeira Guerra Mundial, cujos reflexos chegariam ao Brasil – Fonte – http://www.sahistory.org.za/article/world-war-ihttp://www.sahistory.org.za/sites/default/files/article_image/worldwar1somme-tl.jpg

A Primeira Guerra Mundial proporcionou a oportunidade de novos empreendimentos industriais, o que gerou o aumento da população urbana. Surgiram assim setores sociais – a classe média e o operariado – que reivindicavam representação política própria.

O operariado, alimentando-se dos ideais anarco-sindicalistas, passou a lutar por melhores condições de vida e trabalho, realizando sucessivas greves e, em 1922, organizando-se politicamente com a fundação do Partido Comunista Brasileiro. Outro fator que iria desestabilizar o controle político das elites foi o aparecimento de dissidências em outras regiões, contrárias ao predomínio político dos grupos dominantes de São Paulo e Minas Gerais.

Os eventos desencadeadores das rebeliões que seriam denominadas “Tenentista”, ou “Movimento tenentista”, ocorreram no período do governo do Presidente Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa, que se iniciou em 28 de julho de 1919.

Esse período se caracterizou pela desarticulação do regime político oligárquico e pelas tensões criadas com os militares em decorrência da nomeação dos civis João Pandiá Calógeras e João Pedro da Veiga Miranda, respectivamente, para os ministérios da Guerra e da Marinha.

Ministro Pandiá Calógeras – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Pandi%C3%A1_Cal%C3%B3geras

O desprestígio de Epitácio cresce com o desenrolar de sua administração, marcada por orgia financeira, empréstimos provenientes do exterior vinculados à política de valorização do café, por inflação, aumento do custo de vida, intensa repressão aos movimentos sociais e radical recusa em conceder melhorias salariais, inclusive para o soldo militar.

Desde 1921, Artur Bernardes, o governante do estado de Minas Gerais, era o candidato oficial à sucessão de Epitácio Pessoa na Presidência da República, o que, segundo a tradição, constituía uma garantia de vitória. No entanto, a candidatura concorrente de Nilo Peçanha, na legenda da Reação Republicana, granjeou também um apoio considerável.

Episódio das cartas falsas.

As desavenças entre as duas correntes políticas penetraram no seio do Exército através de uma série de incidentes, entre os quais se destacou a publicação, em outubro de 1921, pelo Correio da Manhã, das chamadas “Caso das Cartas Falsas”, atribuídas a Bernardes e cujo teor provocou escândalo nas forças armadas: nelas o marechal Hermes era chamado de “sargentão” e um banquete do Clube Militar era qualificado de “orgia”. 

O Estopim Ligado

Apesar da oposição militar, das muitas acusações de corrupção eleitoral, Bernardes foi eleito em 1º de março de 1922, derrotando Nilo Peçanha e assumindo o cargo em 15 de novembro.

Arthur Bernardes

A essa altura, oficiais do Exército conspiravam abertamente e o Correio da Manhã os incitava à rebelião. Enquanto isso, Epitácio Pessoa fazia feroz perseguição aos militares contrários ao político mineiro, promovendo transferências em massa de oficiais que serviam no Rio de Janeiro para guarnições distantes e com isso formou um amplo movimento contra a posse de Bernardes. 

Os incidentes com o governo federal tiveram prosseguimento pouco depois com a acusação a Epitácio Pessoa, que ele determinava a intervenção violenta de guarnições federais nas campanhas políticas nos estados, com o intuito de favorecer determinados candidatos, neutralizar as oposições políticas regionais, como ocorreu em Pernambuco.

Marechal Hermes da Fonseca.

No dia 29 de junho de 1922, o marechal Hermes da Fonseca telegrafou ao comandante da 7ª Região Militar, sediada em Recife, concitando-o a não compactuar com as ameaças do governo federal à autonomia do estado, advertindo-o para que o Exército não se tornasse “o algoz do povo pernambucano”.

Severamente repreendido pelo Presidente da República através do ministro da Guerra, João Pandiá Calógeras, o marechal Hermes enviou a Epitácio Pessoa, no dia 2 de julho, um ofício em que reafirmava o conteúdo de seu telegrama ao comandante da 7ª Região Militar, o qual havia sido aprovado pela direção do Clube Militar. Declarava, ainda, não poder “aceitar a injusta e ilegal pena” de repreensão severa que lhe havia sido imposta.

Considerando essa atitude do marechal Hermes uma reiteração da sua indisciplina, Epitácio Pessoa ordenou sua prisão. Ao mesmo tempo foi decretado o fechamento do Clube Militar por seis meses.

Desfile militar no Realengo.

Era iminente a ruptura entre oficiais legalistas e oficiais descontentes. Para os jovens oficiais, a prisão de Hermes agrediu de tal forma os brios militares, que a oposição ao governo dentro da ordem institucional vigente era incompatível com a sua concepção sobre o papel político arbitrário da organização militar. Tornava-se impossível a sujeição do Exército ao poder político civil estabelecido. A baixa oficialidade, composta em sua maioria de tenentes, identificou-se como legítima representante da instituição castrense, assumindo para si todos os riscos de uma atuação política autônoma.

Então, contra o regime corrupto e opressor, escolheram o caminho da revolta militar os integrantes da Escola Militar do Realengo, da Escola de Aviação do Exército, do Forte de Copacabana, membros da 9ª Companhia do 1° Regimento de Infantaria, além de guarnições do Mato Grosso.

Começa a Rebelião

Em 3 de julho, o comandante do Forte de Copacabana, o capitão Euclides Hermes da Fonseca enviou a seu pai uma mensagem na qual informava que a sua guarnição decidira revoltar-se em protesto contra a sua prisão e contra a atuação do Governo Federal. A ligação do pessoal do Forte com o marechal Hermes era discretamente feita através do tenente Eduardo Gomes.

Guarnição do Forte de Copacabana na época da revolta.

Mas devido à indecisão do marechal Hermes, seu filho Euclides resolveu, com o apoio dos tenentes Antônio de Siqueira Campos e Delso Mendes da Fonseca, protelar o levante para o dia 5.

Mas antes de estourar a revolta o Governo Federal e o Exército tinham determinado nível de ciência do que acontecia e da rebelião que se formava. Segundo relatou Siqueira Campos, na reportagem publicada pelo jornal carioca A Noite, em 3 de setembro de 1923, que na noite de 4 de julho de 1922 chegou à guarnição o general Bonifácio Gomes da Costa, comandante do 1º Distrito de Artilharia.

O segundo a direita é o general Bonifácio Gomes da Costa, comandante do 1º Distrito de Artilharia, após a sua libertação do Forte de Copacabana.

Este por sua vez havia recebido ordens do general Manuel Lopes Carneiro da Fontoura, comandante da 1ª Região Militar, para dirigir-se ao Forte de Copacabana, sondar as intenções dos revoltosos e passar o comando da unidade ao capitão José da Silva Barbosa, que o acompanhava.

Após chegarem ao Forte eles foram direto ao gabinete do capitão Euclides e transmitiram suas ordens. Houve um diálogo entre o general Bonifácio e o capitão extremamente carregado de emoção, pois o general era muito amigo da família de Euclides e não aceitou os argumentos do capitão para a rebelião. Bonifácio era tão próximo a Euclides, que na reunião o chamou de “Xiru”, um apelido de família. Nisso surge Siqueira Campos, que com autoridade e sem perda de tempo, deu a ordem de prisão ao general Bonifácio e ao capitão Barbosa, que foram mantidos encarcerados até o fim da revolta. 

Sob estado de alerta, a tropa cavou trincheiras, estendeu redes de arame farpado, enquanto o tenente Newton Prado superintendeu os depósitos de armazenamento de alimentos com víveres suficientes para um mês e preparou a artilharia.

Em razão do seu valor tático e poderio bélico, o Forte de Copacabana se tornou o depositário das esperanças revolucionárias. A poderosa fortaleza recebeu adesões de oficiais e soldados lotados em outras guarnições, além de voluntários civis. Com essas adesões o total de revoltosos na primeira fase da insurreição chegou a 301. Um dos grupos que aderiu chegou ao Forte no bonde do Leme!

Antiga entrda do Forte da Ponta da Vigia, cuja a área no entorno foi atingida por disparos do Forte de Copacabana – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Forte_da_Ponta_da_Vigia

No Forte da Ponta da Vigia, no morro do Leme, o primeiro-tenente Fernando Bruce conseguiu a adesão do segundo-tenente intendente Rubens de Azevedo Guimarães, do aspirante Romulo Fabrizzi e de outros militares, totalizando mais 54 revoltosos ao contingente do Forte de Copacabana, que chegaram na praça de guerra rebelada com armas e munições. Inclusive eles comunicaram a extremada decisão ao comandante da guarnição do Leme, o capitão Maximiliano Fernandes da Silva, que tentou até convencê-los do contrário, mas de nada adiantou.

Só que para percorrerem o caminho até Copacabana, os militares do Leme tomaram de assalto um bonde da empresa Light, baixaram as cortinas do veículo, desligaram as luzes e o aspirante Fabrizzi colocou uma pistola na cabeça do motorneiro, obrigando-o a fazer o trajeto.

Forte de Copacabana em 1922.

Teve ainda o caso do capitão Libânio da Cunha Mattos, do 3º Regimento de Infantaria, que saiu do quartel da Praia Vermelha com uma companhia formada de oficiais e praças e foi até o Forte de Copacabana para dialogar com seu colega Euclides Hermes e “lhe chamar a razão”.

A conversa foi tranquila, clara e sincera, como deve ser entre dois amigos, mas o capitão Euclides não se dobrou aos argumentos de Cunha Mattos. Então, na hora de ir embora do Forte, o capitão do 3º Regimento deu de cara com o segundo-tenente Mário Tamarindo Carpenter, seu comandado, que aderira a revolta. Outros dizem que na hora de partir, o tenente Carpenter, que teria vindo junto com o grupo que saiu da Praia Vermelha, bateu continência para Cunha Mattos, deu meia volta e aderiu a revolta.

Na madrugada de 5 de julho não havia nada mais o que esperar e os revoltosos entraram em ação!

Siqueira Campos e seus comandados dispararam as 01:20 da manhã contra a Ilha de Cotunduba (dois disparos), contra o Forte da Ponta do Vigia e o 3º Regimento de Infantaria, que recebeu disparos como protesto por ter esta unidade recebido o marechal Hermes preso. Também visaram o Ministério da Guerra.

A sombra que surge nessa foto de baixa qualidade é o resultado dos disparos dos canhões do Forte de Copacabana.

Consta que o capitão Euclides desejava acertar nesse último local a sala do ministro Pandiá Calógeras, onde foi assinado o ato de prisão do seu pai, mas errou o tiro e acertou o prédio da Litgh, a companhia de energia elétrica e bondes da cidade, matando três pessoas. O ministro então ligou para o Forte, protestando asperamente contra o disparo. Foi aí que Euclides percebeu que errou o alvo. Calibrou o canhão para um novo tiro e mandou bala. Dessa vez acertou o prédio na ala esquerda e depois mais dois disparos tiveram o mesmo destino. Infelizmente nesses ataques três militares do Exército faleceram e dois ficaram feridos.

Com outros disparos, outras residências e áreas comerciais foram atingidas, como um prédio na Rua São Pedro e outro na Rua Marechal Floriano. A população desesperada refugiava-se nos morros, serras e nos subúrbios. O abastecimento de água e luz do Forte foi cortado, menos a telefonia.

Notícia da revolta nos Estados Unidos, onde o jornalista Charles Lucas sofre forte censura, mas conseguiu enviar as notícias dos episódios no Rio.

Chegou-se a falar em armistício, mas Epitácio Pessoa só aceitava a rendição dos rebeldes, sob pena de serem atacados por todas as forças governamentais de terra, mar e ar. Logo, mais de 4.000 homens das forças regulares cercavam a região do Forte de Copacabana.

Do lado de fora, na cidade, multiplicaram-se os boatos sobre os presídios estarem superlotados de rebeldes, seus apoiadores e familiares. Falavam que os mortos pelos bombardeios chegavam aos milhares, que ocorriam enterros em massa e os corpos eram jogados em vala comum. Mas, apesar da destruição de alguns prédios e da morte de alguns militares e populares, o que havia de verdade era que os pontos estratégicos da cidade permaneceram nas mãos das forças governistas.

Região do Forte de Copacabana cercado por tropas legalistas.

Nesse mesmo dia 5 de julho, após o início da rebelião, tropas legalistas e os efetivos da Polícia Militar rapidamente subjugaram os cadetes da Escola Militar e da Escola de Aviação. No Campo dos Afonsos os sargentos do general Carneiro da Fontoura tiveram vital importância, onde ficaram encarregados de controlar os oficiais nos corpos de tropa e de sabotar os aviões, impedindo-os de levantar voo.

Apesar dessa pequena vitória, só restou ao governo dominar os revoltosos entrincheirados no Forte de Copacabana.

Canhões Disparam na Baía da Guanabara

Às quatro horas da madrugada do dia 6, o capitão Euclides Hermes reúne todos os oficiais que participavam da defesa do Forte e expõe claramente a situação vivida e informa que o Forte de Copacabana era a única unidade que se mantinha rebelada e estava completamente isolado. Poderia resistir por mais tempo, em virtude do seu imenso poder de fogo, mas as chances de vitória eram inteiramente nulas!

Forte de Dom Pedro II de Imbuí, bairro de Jurujuba, Niterói, que não aderiu a revolta de 5 de julho.

Ciente da gravidade da situação, o capitão Euclides facultou a cada um a livre opção pela resistência ou retirada. O próprio Siqueira Campos incitou os que eram arrimos de família a abandonarem o local e exigiu que a permissão à desistência fosse estendida aos soldados.

O Forte, que abrigava 301 revoltosos, fica com apenas 29: cinco oficiais — o comandante Euclides, Siqueira Campos, Eduardo Gomes, Mário Carpenter e Newton Prado —, dois sargentos, um cabo, dezesseis praças e cinco voluntários civis. Os demais deixaram as armas e se retiraram.

Essa foto, da década de 1950, mostra as proporções dos canhões de 350 milímetros do Forte de Copacabana.

Foi quando o governo deu o próximo passo.

Por volta da 07:35 da manhã de 6 de julho os encouraçados São Paulo e Minas Gerais, cruzaram a barra,escoltados pelo destroier Paraná, onde se encontrava o almirante Max Fernando de Frontin, Chefe do Estado Maior da Armada e comandante daquela operação naval. Os poderosos encouraçados eram imponentes máquinas de destruição, com seis canhões de 305 milímetros em cada navio, enquanto os canhões mais poderosos do Forte de Copacabana eram apenas dois, do mesmo calibre das naves de guerra, mas que poderiam atingir alvos a 23 quilômetros de distância, 1.500 metros a mais que os disparados pelos canhões do São Paulo e Minas Gerais.

No instante que os navios transpuseram a barra, os revolucionários abriram fogo, mas não contra os navios. Mostrando toda sua competência e capacidade de combate, realizaram mais de dez disparos com os canhões de 190 milímetros contra postos-chave da cidade, como a Ilha das Cobras, o Palácio do Catete, o Corpo de Bombeiros e o Arsenal da Marinha. No Batalhão Naval dos Fuzileiros Navais morreram três militares atingidos por estilhaços.

Salva dos poderosos canhões do Minas Gerais, navio irmão do São Paulo.

Na sequência o Forte de Copacabana foi atacado a uma distância de 6.000 metros pelo fogo dos canhões do São Paulo, o único dos navios a disparar, cujos estampidos ressoaram de forma poderosa por toda a Baía da Guanabara.

O tempo estava firme e o mar calmo e efetivamente os canhões do navio dispararam vinte vezes. O impacto das granadas navais chegou até mesmo a estremecer o solo quando duas delas, as únicas, atingiram a muralha do Forte. O resto dos disparos caíram no mar.

Aquilo foi uma demonstração pífia da capacidade de combate de uma nave de guerra que possuía muito mais canhões do que a fortaleza rebelada, que estava a uma distância relativamente curta para a efetiva utilização desse tipo de armamento, além de ser um dia claro e de mar calmo.

Canhões de 305 milímetros disparando no Forte de Copacabana na década de 1950. Essa cena não ocorreu em 1922.

Alguns autores apontam que os artilheiros do Forte preparavam a reação com os dois canhões de 305 milímetros, quando um enguiço no motor a diesel do sistema hidráulico que movimentava a cúpula das armas impediu a ação. Os revoltosos alegaram que o enguiço foi resultado de sabotagem. Então, manobrando no braço os canhões de 190 milímetros, a guarnição respondeu ao fogo do navio de guerra. O São Paulo teria sido atingido na torre de comando, tendo a esquadra recuado para uma distância segura e não voltado a entrar em ação.

Sobre a questão dos disparos do encouraçado São Paulo e do Forte de Copacabana, é bom os leitores observarem a nota que segue abaixo, publicada na edição dominical do jornal carioca Correio da Manhã, 5 de julho de 1959. É um trecho da entrevista concedida pelo então general da reserva Euclides Hermes da Fonseca, no seu apartamento da Rua Toneleros, ao jornalista (e futuro deputado federal) Márcio Moreira Alves.

Os historiadores navais nunca corroboraram essas informações de impacto e afirmaram que os navios manobraram não em busca de uma distância segura, mas apenas para se “recolocarem no cenário”. E mais – Os historiadores navais comentaram que do Forte subiu uma bandeira com a letra “P”, indicativo de parada dos disparos de artilharia e que no mastro principal da unidade sublevada subiu uma bandeira branca, mostrando que os disparos navais foram a causa da “rendição do Forte”.

E essa ideia perdurou (ou perdura) no meio naval. Mas apenas no meio naval.

Para a maioria dos que se debruçaram sobre o tema, o que aconteceu foi que apesar dos desfalques no lado dos revolucionários, do barulho dos ineficientes disparos do São Paulo e do impasse existente, tudo apontava que o combate podia prolongar-se. O ministro Pandiá Calógeras, sensível às 72 toneladas de granadas de artilharia que abarrotavam os paióis da fortaleza e a possível perda dos meios navais mais poderosos existentes no Brasil, propôs uma conversação de paz, aceita pelos insurretos. E foi aí que a bandeira branca subiu no mastro!

Newton Prado no Forte de Copacabana, atrás de uma barricada, aguardando seu destino. Foto Brício de Abreu.

O major Egídio Moreira de Castro Silva e o tenente-aviador Pacheco Chaves são então enviados pelo governo para conversar. Mas no momento em que o tenente Newton Prado cruza o portão para recebê-los, um hidroavião da Marinha (alguns afirmam que foram dois) sobrevoo o Forte e lançou bombas que, tal como a maior parte dos disparos feitos pelos seus colegas no encouraçado Minas Gerais, só acertaram a água.

Se os aviadores navais erraram feio no seu bombardeio, acabaram foi com a tal “missão de paz”, que degenerou em conflito verbal e físico entre os embaixadores. O major Egídio e o tenente Pacheco tentaram prender o tenente Newton Prado, que resistiu, mas acabou sendo jogado para o lado de fora da muralha, se ferindo, enquanto os dois oficiais, que em nada lembravam homens honrados, fugiram em desabalada carreira.

Tropas legalistas aguardando desfecho dos revoltosos do Forte de Copacabana.

Indignado, o capitão Euclides Hermes toma o telefone e protesta. Calógeras desculpa-se por medo de levar um novo bombardeio. Argumenta que foi um engano: a Marinha não foi devidamente informada sobre a trégua. Lembrando as relações cordiais que mantinham até o início do levante, propõe um encontro pessoal entre ambos. A oferta é aceita pelos revolucionários.

Os oficiais no Forte reuniram-se e decidiram enviar ao ministro da Guerra, através do capitão Euclides, os termos da rendição. O tenente Siqueira Campos, comandante moral da rebelião, redige as cláusulas da desistência. Por elas, os oficiais rebeldes terão a vida respeitada e receberão baixa do Exército, para se exilar em seguida. O capitão Euclides Hermes pegou um automóvel de praça no Posto Seis, de placa 1.231, para tentar entregar o documento de desistência às autoridades.

O cidadão marcado com uma cruz é Euclides Hermes da Fonseca, quando ficou preso na Ilha Grande, Rio de Janeiro.

Segundo os jornais ele passou primeiro na residência de seu pai, em Botafogo, no número 60 da Rua Guanabara, atual Pinheiro Machado. De lá telefonou para Calógeras, que pede para aguardá-lo. Mas quem compareceu foi o capitão Marcolino Fagundes, acompanhado de um sargento e de um cabo, todos do 3º Regimento de Infantaria. Euclides foi preso por ordem do presidente e levado para o Palácio do Catete.

Esse militar ficaria na cadeia até o fim do governo seguinte, o de Artur Bernardes.

A Marcha dos Valentes

No palácio, visivelmente embaraçado diante do capitão Euclides, Calógeras explica que: por decisão posterior do Presidente da República era forçado a prendê-lo, devendo também o Forte se render incondicionalmente.

Ao meio dia e meia Euclides, por telefone, comunica a Siqueira Campos o resultado da missão de paz: Estou preso, Siqueira. Eles traíram a palavra de honra dada… Eles querem que os oficiais se rendam, que deixem o forte, marchando desarmados, um a um, até se entregarem às tropas legais. Consta que também houve a ameaça de fuzilarem o capitão Euclides se os rebelados não se rendessem.

Foto atual da área de entrada do Forte de Copacabana.

Reinava então uma paz temporária, pois o dispositivo legal recebera ordens de aguardar a rendição.

Sabendo da traição, os militares no Forte decidem pensar de novo sobre o desfecho do conflito. Na sala de comando reúnem-se os quatro últimos oficiais que se mantinham rebelados. Todos eram tenentes. Nenhum tinha mais de 25 anos. Dois eram membros da guarnição original do Forte de Copacabana: Siqueira Campos e Newton Prado. Outros dois haviam se juntado a ela no momento da sublevação: Mário Carpenter e Eduardo Gomes.

Siqueira Campos faz uma proposta extremada: explodir o paiol de pólvora, morrendo a guarnição em seus postos. A sugestão não foi aceita. Propôs então uma outra: os navios estavam fora do alcance dos canhões de 190 milímetros, mas o Forte podia continuar bombardeando objetivos militares na cidade. Eduardo Gomes alegou que esta solução oferecia o risco de atingir ainda mais a população civil.

Foto de jornal que mostra parte dos soldados do 3º Regimento de Infantaria que enfrentaram os rebeldes do Forte de Copacabana.

Eles sabiam que as tropas federais estavam estacionadas na Praça Serzedelo Correia, a um quilômetro e meio do forte, e superavam o efetivo rebelde na proporção de 142 para 1. Estes números mostravam que o Governo Federal pretendia liquidar a fatura com uma lição exemplar e definitiva aos militares que não acatassem suas ordens. Em troca de suas vidas, à guarnição da fortaleza rebelada não bastaria render-se. A humilhação era o preço a ser pago por haverem levado a luta até aquele ponto.

Certamente diante dessa situação foi que o tenente Eduardo Gomes sugeriu que ele e seus companheiros abandonassem o Forte, saíssem armados e seguissem em direção ao Palácio do Catete, enfrentando às tropas do governo em um combate corpo a corpo, em plena rua, de peito aberto, na frente do povo. Valentemente eles concordaram com a sugestão!

Os momentos seguintes são de grande e intensa emoção. Siqueira mandou trazer a bandeira brasileira, mandou cortá-la em 29 pedaços irregulares e distribuiu um pedaço a cada soldado e oficial. Todos se municiaram, até mesmo com granadas, e guardaram o 29º pedaço do pavilhão nacional para entregar ao capitão Euclides.

Na década de 1950 um oficial do Forte de Copacabana mostra o pedaço da bandeira brasileira utilizado por Siqueira Campos, preservada nessa unidade militar e, segundo foi comentado na época da foto, manchada de sangue.

Era uma e meia da tarde quando os revoltosos saltaram uma barricada que eles criaram na entrada da fortaleza.

Sob o comando de Siqueira Campos, seguiram pela Avenida Atlântica, que margeia a Praia de Copacabana, em direção ao Leme, encontrando alguns populares que tentaram desencorajá-los daquela loucura. Falavam aos moradores sobre seus motivos e lenços brancos eram acenados das janelas. Seguiram assim até a chamada “London House”, que tempos depois seria o Hotel Londres, onde pararam e beberam água em uma casa de família. As mulheres que os atenderam estavam visivelmente emocionadas. Já haviam percorrido mais de um quilômetro.

Ao reiniciar a marcha, Siqueira verifica que alguns rebelados haviam desistido. Mas isso já não tinha importância. Eles continuam numa tensa caminhada rumo às tropas legalistas. Siqueira puxou gritos de vivas ao Exército, ao marechal Hermes e aos defensores do Forte.

Nas imediações da praia, as tropas legalistas tomam posição.

Eduardo Gomes era o oficial que estava mais bem trajado e ainda conservava a sua gravata. Já Mário Carpenter seguiu na avenida com cabelos desgrenhados e com parte da sua túnica aberta. Newton Prado, mais corpulento, não trazia uma das polainas, perdida na briga com o major Egídio Moreira de Castro e o tenente-aviador Pacheco Chaves. Já os sargentos e soldados seguem mais bem equipados e garbosamente vestidos que os oficiais. Todos estão de armas na mão e vários fuzis estão com suas baionetas. Alguns fumam.

Antes de atingirem a Rua Barroso, hoje Siqueira Campos, o civil Otávio Correia, um jovem engenheiro gaúcho de 36 anos se integra ao grupo. Ele era conhecido de Siqueira Campos, a quem havia sido apresentado na casa da escritora Rosalina Coelho Lisboa. Otávio vem bem vestido com seu paletó claro, bem talhado para seu corpo alto e magro, além de trazer um chapéu de massa. O engenheiro então recebeu o pedaço da bandeira destinado ao capitão Euclides e o fuzil Mauser de Newton Prado, que ficou na mão com uma pistola ou um revólver.

Rebelados seguem pela Avenida Atlântica.

O fotógrafo Zenóbio Couto, da importante revista O Malho, imortalizou os instantes finais da marcha com uma chapa fotográfica antológica. Um documento de extrema importância para a história iconográfica brasileira. Por ironia não aparece na imagem a figura de Siqueira Campos – ele tinha recuado momentaneamente até a retaguarda para convencer alguns soldados a não abandonarem a empreitada. Então, numa das esquinas da Avenida Atlântica, a marcha encontrou as tropas governistas.

Enquanto os rebeldes caminhavam na avenida a beira mar, o tenente legalista João de Segadas Viana, comandante de um dos três pelotões da 6ª Companhia do 3º Regimento de Infantaria, havia recebido ordens de preparar-se para deter a marcha dos revolucionários, enquanto se providenciavam mais reforços. Seu comandante, o capitão Pedro Crisol Fernandes Brasil, dispôs então um pelotão na Rua Barroso, comandado pelo tenente Segadas; outro na rua seguinte, Hilário de Gouveia, chefiado pelo tenente Miquelina; e o terceiro manteve na praça, sob comando do tenente João Francisco Sawen.

Algum tempo depois, o tenente Segadas recebeu ordem de descer pela rua Barroso, em direção à praia, para observar a progressão dos revoltosos. Tendo atrás de si, a uns 30 metros, seu pelotão. Logo que chegou na esquina deparou-se com os rebelados.

Ao verem o tenente legalista, três soldados do Forte tentaram dominá-lo. Ele sacou a sua arma, mas o tenente revolucionário Mário Carpenter, seu colega no 3º Regimento, ordenou aos praças que se detivessem. Enquanto isso, os cerca de 40 membros do pelotão de Segadas apontavam suas armas contra os revoltosos e vice-versa.

Segadas tentou dissuadi-los do combate e por sua vez Siqueira e Carpenter exortavam o legalista a acompanhá-los na rebeldia. Segundo reportagem do periódico carioca O Jornal, Segadas Viana chegou até Siqueira Campos e teria dito “O que é isso companheiro?”. Siqueira Campos reagiu arrancando os botões de sua túnica e proclamando que não mais pertencia ao Exército.

Esgotados os argumentos, o destacamento revolucionário retomou a marcha, mas surge o capitão Brasil vindo da Rua Hilário de Gouveia, que vendo a situação acaba dando a ordem de “fogo” ao pelotão do tenente Segadas. Consta que apenas um soldado obedeceu e disparou. O tiro matou pelas costas o soldado Pedro Ferreira de Melo. O tenente Siqueira Campos virou-se e devolveu o tiro e o combate começou.

Na área do Palácio do Catete, tropas legalistas tomam posição.

Morte nas Areias de Copacabana

Depois de sustentarem o tiroteio por alguns minutos em pé, em plena avenida, os revolucionários pulam para a areia e se abrigam por trás do paredão da calçada. Só levantavam a cabeça dessa proteção para abrir fogo. Embora a desproporção entre as forças fosse esmagadora, o paredão representava excepcional proteção aos rebeldes. E a motivação com que pelejavam dava às suas ações a objetividade que faltava às forças governistas.

Em meio a muitos tiros, alguns jornais da época afirmam que os homens que deixaram as muralhas do Forte de Copacabana “lutavam feito loucos na areia da praia”, de “maneira superior aos seus inimigos” e que suas ações “perturbaram as forças legalistas”, impressionadas diante de tamanha coragem insana e suicida. Os pelotões do tenente Segadas e Miquelina sofrem imediatamente várias baixas, inclusive seis mortes.

As forças legalistas acorrem em massa à praça Serzedelo Correia, em socorro aos pelotões do 3º Regimento de Infantaria. Até mesmo a tropa de guarda do Palácio do Catete foi deslocada para essa finalidade.

Tropas legalistas se aproximam da Praia de Copacabana para combater os revoltosos.

O voluntário rebelde Joaquim Maria Pereira Júnior, que sobreviveu ao combate, relatou: “O tiroteio foi renhido, mas atirávamos com calma e precisamente… As forças do governo avançavam lentamente”.

Considerando a dificuldade de sufocar os revoltosos, foi cogitada a carga de baionetas. Os oficiais, no entanto, recusaram-se a empregá-la contra aqueles que, mesmo na condição de inimigos, lutavam tão corajosamente. Que se rendessem ou fossem mortos a tiros, nunca estripados.

A luta prosseguiu, até que a munição dos rebeldes se esgotou. Eduardo Gomes foi ferido na coxa esquerda e foi o primeiro revolucionário atingido pela fuzilaria. Depois caíram o sargento José Pinto de Oliveira, com uma bala na fronte, estavam feridos os praças Hildebrando da Silva Nunes e Manoel Antônio dos Reis – corneteiro, cujos toques de clarim vibravam duros golpes no moral das tropas governistas. Mário Carpenter, de apenas 23 anos de idade, recebeu um disparo no abdômen e mergulhara na inconsciência. Já o engenheiro Correia perdeu a vida com um balaço no peito. Siqueira Campos – com um ferimento na mão esquerda – e o tenente Newton Prado – baleado no abdome e na perna – ainda guardavam a última bala em suas armas. Aos demais combatentes já não restava nenhuma.

Tropas legalistas se posicionam na área da Avenida Atlântica.

O tenente Siqueira Campos ordena, então, aos praças e voluntários civis, que cada qual tome um rumo, mas não se deixem prender e não se deixassem ser feridos pelos legalistas. Por incrível que possa parecer, dois conseguem cumprir essas ordens com êxito.

O soldado 108, Manoel Ananias dos Santos, respirou fundo, saltou para cima do paredão e desviando-se das balas atravessou a avenida em busca de abrigo. “Os legalistas deram uma rajada contra mim, mas não acertaram”, contou ele 42 anos mais tarde ao jornalista Glauco Carneiro, da revista O Cruzeiro. “Consegui alcançar e pular o muro de uma casa… Havia no jardim uma corda estendida com vários calções de banho.” Disfarçado de banhista, ele conseguiu atravessar o túnel, por volta das 16:30, chegando em seguida à residência de um sargento, na Rua Mena Barreto, em Botafogo. Já o voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior escapou pelo mar: “Esgotada a minha munição, ordenou o tenente Siqueira Campos que eu me retirasse… Atirei o meu fuzil ao mar e logo adiante nadei até um lugar abrigado, onde alguns operários humanitários me vestiram à paisana”.

Preso ao tentar romper o cerco João Anastácio Falcão de Mello, ex-soldado e que em 1922 era funcionário civil da Intendência de Guerra, fez um significativo relato do acontecimento: “Quando não tinha mais munição fui avançando, com um bruto ferimento na perna, mas com um punhal na mão. Me pegaram logo adiante e um oficial legalista me chamou de bandido. Aquilo moeu-me a alma. Lutara de peito descoberto contra gente armada em número muito superior e aquele homem a chamar-me de bandido!”. Consta que Falcão já havia trabalhado para a família do capitão Euclides Hermes da Fonseca, que o protegia e o ajudava e que teria ido ao Forte de Copacabana saber notícias do capitão a pedido de sua esposa, Leonila Ovalle da Fonseca. Nisso acabou aderindo ao movimento rebelde, foi preso e depois de algum tempo libertado.

Logo após o final do combate, nessa foto vemos no chão o corpo do engenheiro Otávio Correia e de costas, sendo apoiado pelos inimigos, o tenente Newron Prado, que depois morreria em decorrência dos ferimentos no Hospital Central do Exército.

Ao final do combate na Praia de Copacabana, como os revolucionários não respondiam mais aos disparos, o capitão Brasil e o tenente Segadas Viana suspenderam o fogo e iniciaram um avanço lento e cuidadoso em sua direção. Já tinham caminhado cerca de vinte metros quando, repentinamente, um contingente de 100 homens do 3º Batalhão de Infantaria da Policia Militar, sob o comando do coronel Tertuliano Potiguara, sai da Rua Barroso, em veículos de transporte apelidados de viuvinhas. Em alta velocidade, chegam ao local onde se encontram Siqueira Campos e seus companheiros. “Calar baioneta! Avançar!” Foi a ordem de Potiguara.

Debaixo de uma gritaria infernal os atacantes se precipitam contra uma fortaleza sem muralhas guarnecida por mortos e feridos. Mas a surpresa ainda os espera.

A última bala do tenente Newton Prado é certeira, derrubando para sempre o atacante mais afoito. Siqueira aguarda até o último instante para disparar a sua, atingindo na boca o sargento Lindolfo Garcia Godinho, que lhe enterrara a baioneta no fígado.

O Governo Federal em 1922 triunfou sobre os rebelados. Oito anos depois essa ordem vigente seria derrotada pelo Golpe de 1930.

Levantem os vivos! Os vivos levantem! – uivam os comandados de Potiguara, tomados de histérico frenesi. Não há quem os possa atender.

O combate teria durado de uma hora a uma hora e meia. Outras fontes afirmam que a refrega foi bem mais rápida, de apenas “onze minutos”. Independente do tempo, o certo foi que os rebeldes não abriram mão de lutar!

Junto ao corpo inerte do tenente Mário Carpenter jaz o seu quinhão da bandeira do Forte. Nele está escrito: “Forte Copacabana – 6 de julho de 1922 – Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia… Minha vida”.

Outras Lutas de Siqueira Campos

Marcada pelo voluntarismo, essa fase inicial do tenentismo não existia uma definição ideológica claramente expressa pelo movimento, não carrega um projeto para a sociedade brasileira e nem se identifica como porta-voz de grupos sociais que não sejam o próprio Exército.

Epitácio Pessoa, numa tentativa de apaziguamento dos ânimos, visitou os feridos no Hospital Central do Exército e a iniciativa foi amplamente divulgada pela imprensa. Siqueira Campos reagiu com altivez e frieza à tentativa de diálogo do Presidente da República.

O líder revoltoso só receberia alta em dezembro de 1922, sendo então preso. Eduardo Gomes também sobreviveria.

Em 14 de agosto, Campos prestou depoimento no inquérito presidido pelo general Augusto Tasso Fragoso. No início de setembro, foi transferido para o 3º Regimento de Artilharia Montada, no interior do país, onde ficou até o início de outubro, quando lhe foram concedidos mais 60 dias para tratamento de saúde no Hospital Central do Exército. Ao ter alta foi recolhido preso à Escola de Comando e Estado-Maior, na Tijuca.

Apesar da expectativa contrária do recém iniciado governo Artur Bernardes, a Justiça Federal concedeu habeas corpus aos rebeldes sobreviventes em janeiro de 1923.

Siqueira Campos saiu da prisão com habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Logo solicitou baixa do Exército em 7 de janeiro de 1923, mas, ao ver seu pedido recusado, resolveu exilar-se no Uruguai. Não demorou e foi denunciado pelo promotor criminal da República.

Siqueira Campos (direita), ao lado do tenente revolucionário Juarez do Nascimento fernandes Távora, de jaguaribe, Ceará. Foto feita provavelmente na Argentina.

Associado com seu colega da primeira fase da insurreição do forte de Copacabana, o ex-aspirante Manuel Augusto de Araújo Góis, fundou uma firma de representações “Araújo, Campos & Cia.”, dedicada à importação e venda de produtos primários brasileiros. Depois, nos primeiros meses de 1924, abriu em Buenos Aires a casa comercial “Araújo, Siqueira & Cia. Importación-Exportación”, numa tentativa de vender café.

Siqueira Campos voltou clandestinamente ao Brasil em 1924 e em 5 de julho desse ano, exatamente dois anos após a Revolta de Copacabana, rebeldes liderados pelo general aposentado Isidoro Dias Lopes lançaram outra revolta. Inspirada na luta de Copacabana de 1922, e novamente com o objetivo de derrubar a Primeira República. Embora essa revolta tenha conseguido tomar São Paulo temporariamente, no final de julho, eles estavam enfrentando a perspectiva muito real o governo exterminá-los completamente após um cerco. 

Como resultado, sob a cobertura da escuridão, 3.000 rebeldes escaparam da capital paulista nos dias 27 e 28 de julho, escapando até mesmo das forças do governo sitiantes. 

Na sequência, os rebeldes, agora liderados por Luís Carlos Prestes, formaram efetivamente uma força de guerrilha que seguiu combatendo no interior do país. O grupo, conhecido como Coluna Prestes, manteve-se em constante movimento, sofrendo perdas, mas evitando o extermínio total pelas mãos do governo. Quando eles escaparam para a Bolívia em 1927, haviam percorrido mais de 25.000 quilômetros no interior do Brasil. Siqueira Campos juntou-se à Coluna, tornando-se líder de um dos quatro destacamentos que tentavam escapar da captura e marchavam pelo interior do país.

Siqueira Capos no exílio.

Enquanto a Coluna Prestes se dirigia à Bolívia, Siqueira Campos acabou primeiro em Buenos Aires, onde continuou os esforços para organizar os brasileiros que se opunham à Primeira República e estavam exilados no Uruguai e na Argentina. 

Em 1929, à medida que o descontentamento com o governo brasileiro crescia e os rebeldes militares e dissidentes políticos formavam a Aliança Liberal, Siqueira Campos foi escolhido para liderar um levante em São Paulo. No entanto, antes que a revolta pudesse acontecer, a trama se tornou conhecida e o rebelde mais uma vez fugiu para o exílio. No entanto, os dias da Primeira República estavam contados.

Telegrama para a escritora Rosalina Coelho Lisboa, informando sobre a morte de Siqueira Campos. Foi enviado por Luís Carlos Prestes no exílio.

Finalmente, em outubro de 1930, o governo Artur Bernardes caiu, sendo substituído pelo movimento revolucionário que levou Getúlio Vargas ao poder.

Apesar de todos os seus esforços para acabar com a Primeira República, Siqueira Campos não veria os frutos de seus esforços. Ele morreu quando o avião em que viajava do Uruguai para o Brasil caiu no Rio da Prata em 10 de maio. Após vários dias de buscas, seu corpo foi encontrado e enterrado no Rio. Ele ganhou uma série de homenagens póstumas.

Chegada do caixão de Siqueira Campos no Rio.

Embora Antônio de Siqueira Campos não tenha vivido para ver o fim da Primeira República, sua liderança e sacrifício na Revolta do Forte de Copacabana e suas ações subsequentes, desempenharam um papel importante para minar ainda mais a legitimidade do regime.

UM POUCO DA HISTÓRIA DO BRASIL NAS COPAS DO MUNDO

Ruas enfeitadas, festas por todos os lados, emoção à flor da pele, demonstrações de “patriotismo”: no Brasil e em muitos países, a cada quatro anos, vemos repetir-se a força de mobilização de uma Copa do Mundo de Futebol, cujas finais, que atualmente contam com 32 seleções nacionais, envolvem mais público, movimentam mais recursos e angariam mais prestígio do que os Jogos Olímpicos, outro grande evento esportivo que reúne mais de 20 modalidades.

As primeiras ideias de organizar uma competição mundial de futebol surgiram em 1905, em um cenário em que havia muitas iniciativas de criação de movimentos internacionais (escotismo, esperanto, Cruz Vermelha, jogos olímpicos, entre outros). As iniciativas, todavia, não chegaram a se concretizar por questões operacionais ou políticas, como a Primeira Guerra Mundial.

O 4º gol da seleção Uruguai x Argentina marcado por Héctor Castro – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/1930_fifa_world_cup_final#/media/file:uruguay_goal_v_argentina_1930.jpg

Somente a partir da década de 1920, quando a FIFA (Federação Internacional de Futebol Association, órgão máximo da modalidade, criada em 1904) era dirigida por Jules Rimet, houve esforços mais sistemáticos no sentido de operacionalizar a proposta, que culminaram com a organização da primeira Copa do Mundo, em 1930, no Uruguai, graças em grande parte ao desempenho da diplomacia do país-sede.

Ao contrário dos Jogos Olímpicos, organizados por cidades, as Copas do Mundo sempre foram promovidas por países. Do primeiro torneio, apenas 14 equipes nacionais participaram, sendo nove do continente americano e cinco do europeu.

Naquela ocasião, provavelmente não se imaginava que a competição iria crescer de tal forma que envolveria praticamente todos os países do mundo. Vale citar que a FIFA possui mais associados do que a Organização das Nações Unidas (ONU). Também no Brasil, essa primeira edição não teve grande impacto, inclusive pelo fato de a equipe representativa ser fruto de uma cisão entre paulistas e cariocas.

A seleção brasileira obteve um modesto sexto lugar. O Uruguai foi o campeão, o que não surpreendeu por sua condição de bicampeão olímpico (1924 e 1928) e país-sede. 

Jogadores da Alemanha Nazista realizando a sua saudação tradicional na Copa do Mundo de 1938 – Fonte – https://www.history.com/news/world-cup-nazi-germany-forced-austrian-players-lost

A segunda edição do evento foi realizada em 1934, na Itália. A competição começava a tornar-se mais popular, tendo sido inscritas 32 seleções para 16 vagas, tornando necessária a organização de eliminatórias. Tal Copa coincide com o avanço do fascismo na Itália, bem como de regimes autoritários na Alemanha, na Espanha e Portugal.  Foi concebida por Mussolini como uma forma de provar ossupostos avanços possibilitados pelo novo regime. Até mesmo facilitou-se a naturalização de estrangeiros, a fim de fortalecer a seleção italiana. Curiosamente, um brasileiro, Anfilogino Guarisi, foi campeão jogando pela equipe da casa.

Os torcedores brasileiros somente se empolgaram com a Copa do Mundo a partir de 1938, realizada na França. Com os problemas de organização no futebol nacional bastante amenizados, em função da intervenção governamental (já em pleno Estado Novo), enviou-se uma equipe forte, que contou com grande apoio popular. O Brasil conquistou o terceiro lugar, tendo uma participação bastante destacada: perdeu a semifinal para a Itália, um jogo bastante controverso por problemas de arbitragem. Leônidas da Silva foi o artilheiro da competição.

Selo comemorativo da Copa do Mundo de 1950 no BHr5asil – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/1950_FIFA_World_Cup

Deve-se ter em conta que, no cenário brasileiro, o futebol começava a ser mais comumente mobilizado como elemento discursivo na construção de uma identidade nacional, inclusive por uma reabilitação dos fenômenos culturais considerados mestiços, momento que tem como uma importante marca a difusão das ideias de Gilberto Freyre.

Algo que contribuiu e foi mesmo fundamental para o crescimento da popularidade do futebol e das Copas foi a atuação dos meios de comunicação. No Brasil, se em 1930 os torcedores tinham de esperar pelas notícias nas redações dos jornais, em 1938 já era possível acompanhar os jogos pelo rádio e também se podia assistir posteriormente às partidas nos cinemas.

Waldir Pereira, o Didi, bicampeão mundial de futebol em 1958 e 1962, apertando a mão do Presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1958, os jogos já podiam ser acompanhados pela televisão, sempre alguns dias depois de sua realização. Ao vivo, isso somente se tornou possível a partir da Copa de 1970. Nessa ocasião, fora introduzido o recurso do replay e, no decorrer do tempo, cada vez mais inovações tecnológicas marcariam as coberturas esportivas. A transmissão dos jogos tornou-se um verdadeiro espetáculo, transmitido por muitas emissoras de todo o mundo, que pagam direitos caríssimos e buscam a todo custo conquistar o público.

A Copa do Mundo é o evento líder mundial de audiência televisiva. Na última edição do evento, realizada no Brasil, em 2014, estima-se que houve cerca de 4,5 milhões de espectadores por partida, média superior à obtida na África do Sul.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, conversando com Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha – Fonte – Arquivo Nacional.

Vários recordes mundiais foram também quebrados nos outros meios de comunicação, inclusive na internet.

Aproximadamente 1 bilhão de torcedores acompanharam on-line os jogos pelo site da FIFA No Brasil, se em 1938 o interesse foi grande, a Copa do Mundo tornou-se mesmo uma febre quando o país organizou a edição de 1950, construindo para tal o que na época seria o maior estádio do mundo e que ainda hoje, já bastante modificado por reformas recentes é uma das grandes referências do futebol mundial: o Maracanã.

O Preseidente da República João Melchior Marques Goulart abraçando o goleiro bicampeão mundial Gilmar dos Santos Neves – Fonte – Arquivo Nacional.

Depois de duas goleadas na fase final, ninguém esperava que o Uruguai fosse sair vitorioso na partida decisiva contra a seleção brasileira. A derrota por 2 × 1 foi uma das maiores tristezas do esporte brasileiro, para alguns foi mesmo encarada como uma marca das debilidades da nação.

Na ocasião, a competição era retomada depois do fim da Segunda Grande Guerra, e o Brasil, com a organização do evento, vislumbrava demonstrar seu protagonismo no novo tabuleiro internacional. Essa postura tornou-se comum no decorrer do século, inclusive em função da Guerra Fria: os blocos socialista e capitalista transferiram parte de seus conflitos e enfrentamentos para as instalações e competições esportivas.

O general Castelo Branco apertando a mão de Garrincha. Ao lado do militar vemos o então presidente da Confederação Brasilira de Desportos, CBD, Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange – Fonte – Arquivo Nacional.

Depois do fracasso na Copa de 1950, repetido na edição de 1954, realizada na Suíça, o país finalmente sagrou-se campeão em 1958, na Suécia, em um torneio que ficou marcado pela aparição internacional de uma das maiores estrelas da história do futebol e do esporte do século: Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, na época com 17 anos.

A seleção brasileira voltaria a se sagrar campeã em 1962, na Copa do Chile, onde o grande destaque foi Garrincha, não se saindo bem em 1966, na Inglaterra, uma edição marcada pela violência e pela benevolência dos árbitros com a equipe da casa, que se sagrou vitoriosa em uma final extremamente polêmica com o time nacional da Alemanha.

Pelé – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1970, no México, a equipe nacional tornou-se a primeira tricampeã da competição, após uma fase da preparação marcada por conflitos internos, com o técnico João Saldanha sendo substituído por Zagalo, mas também por grandes investimentos no treinamento. Nunca antes uma seleção brasileira fora tão bem preparada, com tanta antecedência.

Muitos autores sugerem que esses investimentos estariam ligados à vontade dos militares, que comandavam o regime de exceção em vigor no país, de provarem o quanto eram adequadas suas propostas para o país. Além disso, estariam relacionados com uma estratégia de dispersão e distração da população brasileira. Tais hipóteses têm sido muito contestadas. Independentemente das polêmicas, não se pode negar a ampliação da atenção ao esporte a partir de então, bem como o forte clima de patriotismo que cercou a participação da seleção brasileira no México.

A Seleção Brasileira de Futebol que participou da Copa do Mundo de 1974, na Alemanha Ocidental. Ao centro da foto, de paletó preto, está o general Ernesto Geisel, tendo ao seu lado esquerdo o potiguar Francisco das Chagas Marinho, o Marinhgo Chagas – Fonte – Arquivo Nacional.

As Copas de 1974 (Alemanha), 1978 (Argentina, uma edição muito polêmica em função de o país-sede viver um período ditatorial, liderado por militares, que cometiam constantes desrespeitos aos direitos humanos), e 1982 (ao contrário da anterior, marcada pelo processo de redemocratização da Espanha) foram marcadas por muitas mudanças, uma tentativa de a FIFA se sintonizar com o novo cenário internacional, algo que imediatamente repercutiu no aumento do número de participantes nas finais do evento e numa maior atenção para as equipes asiáticas e africanas.

Além disso, melhor se estruturavam as estratégias de negócios ao redor do futebol. Em 1982, pela primeira vez foi introduzido o conceito de “patrocinador oficial”. Se as primeiras propagandas apareceram de forma muito embrionária já na Copa de 1934, a partir da Espanha essa relação comercial tornou-se cada vez mais intensa. Basta lembrar que, no Brasil, o personagem “Pacheco”, parte da propaganda de uma empresa de lâmina de barbear, tornou-se um dos mais populares até hoje.

Arthur Antunes Coimbra, o Zico- Fonte – Arquivo Nacional.

Por trás dessas mudanças, deve-se citar o nome de João Havelange, que desde 1974 assumira a FIFA e veio a tornando uma das mais poderosas instituições do mundo. O dirigente tornou o futebol em um grande negócio global. As Copas do Mundo passaram a ser um dos principais palcos de lançamento de novidades, de estratégias comerciais e de badalação, a faceta mais conhecida de um dos esportes mais influentes e populares.

Se essas mudanças definitivamente projetaram o futebol, também trouxeram muitos problemas. Muitas têm sido as denúncias de que o aspecto esportivo está sendo abandonado em função dos lucros e do benefício dos investidores, para além de problemas de falcatruas financeiras diversas.

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, o Dr. Sócrates – Arquivo Nacional.

A Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil, foi o momento auge desses problemas, uma expressão das ambiguidades que cercam o evento. Se de um lado alcançou popularidade e impacto jamais visto, foi marcada também por manifestações e insatisfação da população com os gastos públicos excessivos e com a interferência da FIFA na governança nacional. Se de um lado, observou-se um dos melhores resultados técnicos, foram também descobertas ilegalidades nos negócios que cercam a competição.

Somente no futuro será possível melhor precisar o impacto dessas ocorrências, mas provavelmente durante muitos anos ainda persistirá a articulação entre governos instituídos e mercado na promoção das Copas do Mundo. As próximas edições já têm sido marcadas por polêmicas em função das características autoritárias do governo de Putin, cuja Copa de 2018 ocorreu na Rússia e da compra de votos na escolha da sede de 2022 (Qatar), denúncia ainda não confirmada, que está sendo apreciada pela FIFA, que
também tem sido compelida a adotar posturas mais transparentes em função de escândalos financeiros que cercam o mundo futebolístico.

Neymar da Silva Santos Júnior, considerado por muitos o maior craque da atual Seleção Brasileira de Futebol- Fonte – https://esportes.r7.com/prisma/copa-2018/cosme-rimoli/o-mal-que-neymar-faz-para-a-selecao-brasileira-10072018 – REUTERS/DAVID GRAY – 02.JUL.2018

Fonte

Livro – Enciclopédia de guerras e revolução, Volume 1, 1901 a 1919, páginas 338 a 342. Organizadores – FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA, SABRINA EVANGELISTA MEDEIROS e ALEXANDER MARTINS VIANNA.

Referências

HELAL, Ronaldo, CABO, Álvaro do. Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol. Rio de Janeiro: EdUerj, 2014.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MELO, Victor Andrade de (orgs.). O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

MASCARENHAS, Gilmar, BIENENSTEIN, Glauco, SANCHEZ, Fernanda (orgs.). O jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Rio de Janeiro: EdUerj, 2011.

PRIORE, Mary Del; MELO, Victor Andrade de (orgs.). História do Esporte no Brasil: da colônia aos dias atuais. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

O VOO DO “PLUS ULTRA” E A ATRIBULADA VIDA DO PILOTO RAMON FRANCO

O Dornier Do J Wal “Plus Ultra” em Buenos Aires, no fim da longa viagem

Autor – Rostand Medeiros – IHGRN

A Espanha havia sido um grande império colonial, entretanto, no fim do século XIX, o império espanhol acumulava derrotas, humilhações e um quadro social dos mais terríveis.

A partir de 1902, com o reinado personalista de Afonso XIII, a própria monarquia encontrava-se em uma posição muito delicada. Ocorrem conspirações, forte crise econômica, social e intenso fortalecimento do regionalismo Catalão e Basco, que sonhavam com suas respectivas autonomias. Ocorrem igualmente fortes distúrbios sociais, fortalecidos pelo crescimento dos movimentos socialistas e anarquistas, principalmente na Catalunha. Devido a toda esta crise, desencadeia-se uma forte imigração espanhola para outros países. Entre os anos de 1904 e 1913, por exemplo, serão 224.672 espanhóis que emigram para o Brasil.

Ramon Franco – Fonte – http://en.wikipedia.org/

Diante desta situação tumultuada e visando manter sua sobrevivência política, o Rei Afonso XIII encoraja o golpe militar do general Miguel Primo de Rivera y Orbajena, que no dia 13 de setembro de 1923, dissolve as Cortes (Parlamento) e estabelece a ditadura. Com o apoio de uma junta militar, implanta a censura e uma forte perseguição política.

Em meio a estes acontecimentos um grupo de jovens oficiais das Forças Armadas Espanholas, entusiastas da aviação, decidem organizar um voo transoceânico, ligando a Espanha e a Argentina, passando pelo Brasil. À frente deste planejamento, estava o comandante de infantaria do exército espanhol Ramón Franco y Bahamonde Salgado Pardo de Andrade, natural de El Ferrol, na província de La Corunã. 

Dornier Do J Wal   

Ramon Franco utilizou os seguintes argumentos como justificativa para este voo – Mostrar em meio a um tumultuado momento o valor da aviação espanhola, buscar propaganda positiva no exterior para o país, utilizar este projeto para conhecer as características de um voo de longo alcance com uma aeronave melhor equipado e preparado, visando à abertura de futuras linhas aéreas e utilizar a repercussão do voo para estreitar os laços diplomáticos com os países da América do Sul, principalmente os de língua espanhola. Além de mostrar para os espanhóis emigrados que um novo e moderno país se fazia presente no cenário mundial.

Ramon Franco entrega então um plano detalhado ao diretor da aeronáutica militar, que vislumbra uma ótima oportunidade de promoção do regime e aprova o vôo em 1925. Neste momento é convocada a tripulação. Como copiloto seguirá o capitão de artilharia do exército Julio Ruiz de Alda Miqueléiz, de Estella (Navarra), como terceiro piloto e navegador, o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles, professor da Escola Naval de Barcelona, natural de Jerez de la Frontera (Cadíz) e como mecânico, o soldado Pablo Rada Ustarroz, de Caparroso (Navarra).

Tripulação principal do “Plus Ultra” – No alto, a esquerda está Ramon Franco, a direita vemos Julio Ruiz de Alda Miqueléiz. Abaixo a esquerda está Pablo Rada Ustárroz e a sua direita Juan Manuel Durán González.

Foi escolhido para o voo o hidroavião Dornier Do J Wal, planejado e construído pela fábrica Dornier Flugzeugwerke, de Friedrichshafen, Alemanha. Por esta época, devido às restrições existentes no Tratado de Versailles, os alemães não podiam fabricar este tipo de aeronave, por esta razão o comandante Ramon Franco foi buscar o seu exemplar na Itália, onde era fabricado pela a Construzioni Meccaniche Aeronautiche S.A. (CMASA), na Marina de Pisa.

O hidroavião era um dos melhores produtos existentes no seu tempo, possuía um casco central, era de construção totalmente metálica, tripulação de cinco pessoas, com piloto e copiloto sentados lado a lado em cabine aberta. Era motorizado por dois motores Napier Lion, montados em tandem e com potência de 450 hp cada um. Seu peso normal era de 2.500 kg e peso total carregado de 7.500 kg. Tinha uma envergadura de 23,20 metros, comprimento total de 18,20 metros, alcance de 1.080 km, altitude máxima de 3.600 metros, velocidade de 180 km/h, quantidade de combustível de 400 litros de gasolina. Especificamente para este voo a aeronave foi equipada com um sistema de radiotelegrafia com alcance de 600 km, bússolas, derivômetro (Instrumento de voo, usado para indicar o ângulo de deriva), material salva-vidas, uma máquina de destilação de água, sextante, mapas e, visando o apoio no transporte de gasolina de reserva, o comandante Franco solicitou a Marinha Espanhola o apoio de dois navios de guerra, sendo designados o cruzador “Blas de Lezo” e o destroier “Alsedo”. 

Plus Ultra 

Fonte – elladooscurodelahistoria.blogspot.com

Estando tudo pronto, o comandante Franco recebe a ordem de voo no dia 18 de janeiro de 1926, mas faltava um detalhe, o nome da aeronave. Foi escolhido o termo latino “Plus Ultra”, que significa “mais além”. Sua origem vem da antiguidade, quando a Espanha era a terra mais ocidental que havia no mundo antigo, pois se considerava que após o estreito de Gibraltar, não haveria mais nada, só um grande abismo povoado por monstros terríveis. Reza a lenda que o herói mitológico Hércules colocou duas colunas no estreito, eram as conhecidas Colunas de Hércules, sendo uma na Espanha (no monte Calpe) e outra na África (monte Abile), com uma inscrição latina que advertia aos navegantes que não deveriam ir mais adiante “Non Plus Ultra” (não mais além). Mais tarde, com o descobrimento da América por Colombo, o povo passou designar somente “Plus Ultra” (mais além).

A rota escolhida teria início na cidade de Palos de la Frontera, na província de Huelva. A escolha era antes de tudo baseada em fatores históricos e sentimentais para o povo espanhol. Pois foi do porto de Palos que Cristóvão Colombo iniciou a sua épica viagem ao novo mundo 1492. Os aviadores participaram de uma missa solene na igreja de São Jorge, a mesma utilizada por Colombo e seus homens antes da sua viagem.

No dia 22 de janeiro de 1926, às 07:55 da manhã, o “Plus Ultra” decolava do Muelle de La Calzadilla, no porto de Palos, diante de uma grande multidão. A aeronave seguiu sem maiores problemas em direção as Ilhas Canárias, mais precisamente ao seu principal porto, também conhecido como Puerto de la Luz. Chegaram ás 15:03, tendo percorrido o trajeto de 1.315 km, em oito horas e oito minutos, com uma velocidade média de 163 km/h (velocidade esta comum a modernos automóveis com motorização 1.6).

No Puerto de la Luz foi realizada uma minuciosa revisão, mas, pelas condições do mar, o hidroavião foi transferido para a Baía de Gando. Neste local, devido ao pequeno espaço para decolagem, destinaram 400 kg de cargas em um navio holandês para a Argentina.

No dia 26, às 07:35, decola o “Plus Ultra” em direção as ilhas da então colônia portuguesa de Cabo Verde, a 500 km da costa de Senegal. Este trajeto seria monitorado por diversas estações de rádio e navios, que ajudaram o hidroavião Dornier Do J Wal a seguir a melhor rota. Depois de nove horas de voo, avistam a ilha de São Tiago e a cidade de Porto Praia, em uma etapa de 1.670 km, com uma velocidade média de 185 km/h. Em Porto Praia encontram os dois navios de guerra espanhóis que darão apoio na travessia Atlântica. Neste ponto, o alferes Duran, para diminuir o peso, é transferido para o destroier “Alsedo”, que zarpa no dia 27 de janeiro em direção ao Arquipélago de Fernando de Noronha.

A partir daquele ponto teria início a fase considerada mais difícil pelos aviadores – a travessia do Atlântico Sul. 

Sobre o Atlântico Sul 

No dia 30 de janeiro, o hidroavião decola as 06:10 para o “salto”. Durante uma hora mantém contato com Cabo Verde e os navios, depois só o silêncio.

Fernando de Noronha visto pelos aviadores espanhóis.

Voam a 300 metros de altitude, sobre um mar agitado e fortes ventos. Apesar desta situação, o voo transcorreu sem maiores problemas. O moral estava extremamente elevado e as máquinas respondiam aos comandos perfeitamente. Depois de mais de doze horas de voo, quando o sol já estava se pondo, avistam as ilhas brasileiras e as suas luzes.

Sendo impossível o pouso noturno, amerissam a vinte milhas de Fernando de Noronha, recebendo apoio de um navio inglês que reboca a aeronave até as proximidades do porto da Vila dos Remédios (alguns historiadores afirmam que a aeronave amerissou de forma equivocada, mas sem maiores consequências e a tripulação foi socorrida pelo navio).

Quando ancoram definitivamente recebem a visita do tenente Queiroz, comandante interino do presidio que existia no arquipélago, no lugar do Diretor Manoel Pinheiro de Menezes Filho. O militar chega em uma grande balsa e informa que naquele momento as condições do mar não ajudariam ao desembarque da tripulação no porto. Passaram então à noite no “Plus Ultra” e no outro dia chega o destroier “Alsedo”. Os espanhóis finalmente desembarcam em Fernando de Noronha, tendo percorrido 2.305 km, em 12:40 de voo.

Mesmo sem amerissarem no Rio Potengi, em Natal, a expectativa na capital potiguar com uma possível chegada do “Plus Ultra” era intensa. Até mesmo grandes propagandas de marcas de gasolina que abasteceram a aeronave eram vistas nos jornais natalenses da época.

No dia seguinte, 31 de janeiro de 1926, o hidroavião decola as 12:10, com destino a Recife. Estações de radiotelegrafia em Natal, Cidade da Paraíba (atual João Pessoa), Recife e Fernando de Noronha acompanham o trajeto do “Plus Ultra”.

Após a decolagem ouve o problema mais sério de todo o trajeto – a hélice do motor traseiro rompeu-se e houve um princípio de incêndio em pleno voo, debelado pelo mecânico Rada com suas próprias roupas. Neste momento todo material dispensável foi lançado no mar, com o intuito de tornar a aeronave mais leve e poder seguir com apenas um motor.

Este desenho mostra a expectativa da chegada do “Plus Ultra” ao Rio de Janeiro, na época a Capital Federal

No meio de toda tensão, segundo os tripulantes, houve momentos em que o casco do hidroavião Dornier Do J Wal roçou nas ondas, sendo necessário muito esforço e forte tensão para mantê-lo no ar.

Finalmente avistam as praias, provavelmente em algum ponto do litoral paraibano, pois teriam que voar mais 100 km em direção sul para chegarem a Recife. Durante todo este trecho os espanhóis seguiram perigosamente na altura dos coqueiros e já avistavam as pessoas nas praias acenando.

As 16:48, depois de quatro horas e trinta e oito minutos de voo, amerissam em Recife, após realizarem um rasante entre Olinda e o porto da cidade. 

Chegada em Recife

Houve uma grande concentração de pessoas, que começou a se reunir desde as duas da tarde, os aguardava no cais do porto, próximo ao atual bairro do Recife Antigo. A cidade, que em 1922 já havia recebido os pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, repetia a calorosa recepção a um novo hidroavião que atravessara o Atlântico Sul, adicionado pela grande expectativa gerada pela Rádio Clube do Recife, que a todo o momento irradiava boletins sobre a chegada do aeroplano espanhol.

Notícias sobre a chegada do hidroavião espanhol ao Nordeste brasileiro.

Luiz Amador Sanchez, cônsul espanhol na cidade (futuro escritor, professor da USP e pai do recentemente falecido ator global Luiz Gustavo, que interpretou personagens como “Beto Rockfeller” e “Mário Fofoca”), junto com mais de 500 espanhóis residentes na cidade recepcionam os pilotos. Os tripulantes estavam cansados e a imprensa notou que todos traziam medalhas de Nossa Senhora do Carmo. Ramon Franco esteve no Palácio do Campo das Princesas, onde foi saudado pelo então governador pernambucano Sergio Loreto e foi cumprimentado pela oficialidade do contratorpedeiro Piauí (CT-3), comandados pelo capitão Jorge Dodsworth Martins, futuro ministro da marinha brasileira.

Em meio a pouco descanso no Palace Hotel e muitas solenidades em vários locais, a tripulação do “Plus Ultra” esteve presente no Casino Boa Viagem para uma festa na noite de 2 de fevereiro, onde os tripulantes encaram a pista de dança. E parece que a noite foi muito positiva, pois no outro dia, as nove da manhã, Ramon Franco, na companhia de Pablo Rada, realizou um voo de testes de 20 minutos sobre Recife. Além dos dois tripulantes, acompanharam os espanhóis o cônsul Sanchez, o comandante Dodsworth Martins e duas beldades pernambucanas, Carolina Burle e Dolores Salgado. 

A Caminho do Rio de Janeiro 

Contudo, a jornada não estava encerrada, pois havia mais de 2.100 km de distância até o Rio de Janeiro, que até então nunca haviam sido percorridas sem escalas. No dia 04 de fevereiro, o “Plus Ultra” decolava do Rio Capibaribe as cinco da manhã, seguindo em direção sul. Depois de doze horas e dezesseis minutos de voo sem alterações, chegavam a Baía da Guanabara, o pouso inclusive teve alguma dificuldade, devido a grande quantidade de barcos que aguardavam o hidroavião Dornier Do J Wal.

Ramon Franco e o então presidente brasileiro Artur da Silva Bernardes, em recepção no Rio.

Ramon Franco e seus amigos foram recepcionados pelo Presidente Arthur Bernardes e outras autoridades. Como em Recife, grandes festividades aguardavam os espanhóis, sendo o comandante do hidroavião homenageado com seu nome batizando uma rua no bairro da Urca. Esta rua conserva até hoje o seu nome.

Placa da Rua Ramón Franco, no bairro da Urca, Rio de Janeiro.

Depois de cinco dias de eventos e festas, no dia 09 de fevereiro decolam rumo a Buenos Aires. Os tripulantes estão com sorte, pois um vento francamente favorável ajuda-os a percorrerem 2.600 km sem escalas, em doze horas e cinco minutos. Apesar disto, o sol já está se pondo, o que dificultaria a amerissagem no Rio da Plata. Os espanhóis decidem amerissar em Montevidéu, Uruguai, escala não prevista.

A rota do “Plus Ultra” em 1926.

No dia 10 de fevereiro de 1926, decolam para Buenos Aires, chegando depois de uma hora e doze minutos de voo. O hidroavião evolui três vezes sobre a capital Argentina e, após amerissar no Rio de La Plata, ocorre uma estrondosa recepção da população local.

Neste momento ocorre uma situação que poderia ter ampliado muito mais a conquista dos tripulantes do “Plus Ultra” e poderia tê-los trazido a Natal. O comandante Franco prontamente telegrafou ao Rei Afonso XIII, informando a finalização do voo e solicitando a permissão de continuar seguindo viagem pela costa sul americana do Oceano Pacifico, até Cuba. Depois continuariam voando até o norte do Brasil, até Natal e cruzariam pela segunda vez o Atlântico sul. Mas, a resposta foi não.

O Rei e as autoridades aeronáuticas espanholas decidiram encerrar a missão na Argentina, pois já estavam imensamente satisfeitos com o feito e não tinham total confiança de que o “Plus Ultra” poderia concluir o trajeto. Seria melhor ovacionar quatro heróis vivos, do que chorar por quatro mártires. Mais uma vez Natal não poderia ser palco da passagem do hidroavião espanhol.

Grande recepção aos aviadores espanhóis em Buenos Aires.

A distância total percorrida do trajeto Palos/Buenos Aires foi de 10.270 km, com um tempo estimado de cinquenta e nove horas e trinta e nove minutos de voo, em dezenove dias. Atualmente este trajeto é realizado em uma média de doze horas e meia de voo em um moderno Airbus, ou em um Boeing.

O “Plus Ultra” original, preservado em Lujan, Buenos Aires, Argentina – Fonte – https://www.laprensalatina.com/first-plane-to-fly-from-europe-to-latam-still-gleams-95-years-on/

O grande compositor argentino Carlos Gardel não deixou escapar a oportunidade e gravou o tango “La gloria del aguila”, narrando a epopeia dos espanhóis.

A aeronave deveria ser doada a nação Argentina, e lá ela ficou prestando serviços à aviação naval até sua retirada de serviço. Hoje está em exposição no Complexo Museógrafo Enrique Udaondo, de Luján, cidade localizada no extremo oeste da grande Buenos Aires. Uma cópia fiel do hidroavião está exposta no Museo Del Aire, em Madri, Espanha.

Os aviadores espanhóis retornam ao seu país no cruzador argentino “Buenos Aires”, chegando a 5 de abril de 1926. Foram cobertos de glórias e receberam do Rei Afonso XIII medalhas alusivas ao feito.

Esta viagem foi considerada na época, um grande salto na modernização do estado espanhol. Depois o país acompanharia mais dois “raids” aéreos com sucesso, um para as Filipinas e o outro a Guiné Equatorial, com outros aviões e tripulantes. Ramon Franco e Alda tentariam mais uma empreitada aérea, mais sem sucesso (ler mais adiante). 

Caminhos Distintos 

O destino final dos aviadores seria muito diferente, em meio a situações político-sociais extremas na Espanha e na Europa.

Como resultado da crise da bolsa de valores de Nova York agravou-se a situação social e econômica da Espanha, levando a deposição do General Primo de Rivera e, em seguida, caiu também a monarquia. O Rei Afonso XIII foi obrigado a buscar o exílio e a República foi proclamada em 1931.

Havia com a proclamação da república a intenção da Espanha buscar uma maior aproximação com os seus vizinhos europeus, realizando uma reforma social que iria retirar a nação do oásis tradicionalista no qual vivia. Existiam projetos para a separação da igreja e do estado (No Brasil, este fato ocorreu em 1889), introdução de conquistas sociais, liberdade eleitoral, liberdade de expressão e organização sindical.

Contudo, a profunda depressão econômica provocou uma enorme frustração generalizada na sociedade espanhola, que apoiada em forte radicalismo de determinados setores, terminou levando o país a conhecer um violento enfrentamento de classes. O mais dramático e sangrento ocorrido na Europa antes da Segunda Guerra Mundial.

Em meio a esta situação política o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles viria a falecer cinco meses depois do voo, em um acidente de aviação. Já os outros três tripulantes estariam presentes na tragédia quer foi a Guerra Civil Espanhola.

Julio Ruiz de Alda torna-se em 1927, membro do Conselho Superior de Aviação e Automobilismo e representante espanhol para a Federação Internacional de Aeronáutica. Em 1928 é nomeado chefe de um grupo de aviação. Foi neste período que ele tenta, juntamente com Ramon Franco, realizar uma volta ao mundo em um avião Dornier 16, mas sem sucesso. Logo após solicita baixa do exército. Torna-se empresário e, com o fim da ditadura, aproxima-se da política. Tanto que em 1932, já é considerado por alguns setores políticos espanhóis chefe do fascismo na Espanha. Em 29 de outubro de 1933, funda com José Antonio Primo Rivera (filho do ex-ditador Primo Rivera), a Falange Espanhola. Este grupo seria conhecido como tradicionalista, fascista, paramilitar, que participaria da guerra civil junto ao futuro ditador Francisco Franco. Por suas atividades, Alda seria preso pelo governo republicano em 14 de março de 1936 e fuzilado em 23 de agosto do mesmo ano.

O soldado mecânico Pablo Rada Ustarroz, depois de agraciado pelo Rei Afonso XIII, inicia estudos e obtém o brevê de piloto. Por sua forte amizade a Ramon Franco participa, em 1930, de um fracassado movimento de ação política (ver mais adiante).

Dedicou-se a política durante a república, tornando-se militante de esquerda. Participou da queima de conventos católicos durante a Guerra Civil. Com o desfecho do conflito, foi obrigado a exilar-se na Colômbia, aonde se dedica a indústria de automóveis. Retornou em abril de 1969, para falecer na Espanha, com uma grave enfermidade hepática, tinha 67 anos. 

O Último Voo de Franco 

Contudo, a figura com a biografia mais intensa após o vôo do “Plus Ultra”, seria o próprio comandante Ramon franco. Se já seria muito comentar que o mesmo era irmão caçula do próprio general e futuro ditador Francisco Franco, mais interessante é saber que o aviador, durante um período, foi opositor do poderoso irmão e posteriormente seu aliado, para depois de sua morte ser esquecido durante muito tempo pelo governo espanhol.

Depois do vôo do “Plus Ultra”, Ramon Franco torna-se da noite para o dia uma figura muito popular na Espanha, mais que qualquer artista ou toureiro, tal era a admiração da população pela aviação e pelo seu glorioso “raid”, chegando a escreve em 1926, o livro “De Palos a Plata”, narrando o voo.

Tenta juntamente com Alda, em 1928, à volta ao mundo em um Dornier 16, mas o avião cai no mar. Eles passam alguns dias à deriva, sendo enfim resgatados por um porta aviões britânico. Ramon é fortemente criticado pelo fracasso da missão, torna-se um forte opositor e conspirador contra a monarquia e a ditadura.

Devido a sua popularidade era considerado um adversário muito perigoso. Seria preso e, posteriormente, conseguiria fugir com a ajuda de Rada. Em 15 de dezembro de 1930, junto com o mesmo Pablo Rada, Queipo de Llano e outros aviadores que apoiavam a república, apoderam-se de alguns aviões no aeroporto de “Quatro Vientos”, com a intenção de bombardear o Palácio Real, em Madri. Não conseguiram realizar a ação, fugindo para Portugal. Deste episódio, Franco escreveria em 1931, o livro “Madrid bajo las bombas”.

Após a sua fuga da Espanha, Ramon só retornaria com a proclamação da república. No regresso foi nomeado Diretor Geral da Aeronáutica, sendo destituído por participar de uma revolta anarquista na Andaluzia. Foi depois eleito para o parlamento por grupos republicanos de Sevilha e Barcelona, declarava-se um tanto estranhamente “republicano de esquerda, mas não comunista”. Retirou-se do exército, que por esta época era uma instituição que cada dia mais se tornava antirrepublicana. Não foi um grande parlamentar e seus biógrafos consideram o maior erro de sua vida a sua entrada na política.

Quando estourou a Guerra Civil, Ramon encontrava-se nos Estados Unidos como membro agregado do adido aeronáutico espanhol. Ao retornar a sua nação, mostrando a sua inconsistência ideológica, não mais apoia os republicanos e segue as ideias do irmão, “El Generalíssimo Franco”. Foi nomeado tenente-coronel e chefe da Base Aérea de Barcelona, a mesma Barcelona que o elegera deputado republicano. O comandante Ramon Franco sempre foi considerado um homem de ação, mais de poucas ideias políticas concretas.

Em outubro de 1938, seu hidroavião italiano caiu nas proximidades da Ilha de Maiorca, quando pretendia bombardear a zona republicana. Existe até hoje na Espanha uma discussão se o comandante Franco caiu com seu hidroavião, suicidou-se ou se a aeronave caiu por um ato de sabotagem. Nada ficou totalmente esclarecido. Seu irmão, que na época combatia em Elbro, não foi ao seu enterro em Maiorca. 

Conclusão 

Durante o terrível regime franquista, talvez por ter sido muito contraditório, o comandante Ramon Franco se converteu em um personagem muito incômodo, sendo ele praticamente esquecido do panteão dos heróis nacionais.

Mas a Espanha mudou, Francisco Franco se tornou passado e um novo país surgiu no sul da Europa.

Em 30 de janeiro de 2001, com a presença do então Príncipe de Astúrias, atual Rei Felipe VI, decolou da mesma Palos de La Fronteira, um hidroavião de combate a incêndio, buscas e salvamento Canadair CL-215T, do Grupo 43, da Força Aérea Espanhola, acompanhado de um Hércules C-130. As duas aeronaves realizavam a mesma rota, ponto a ponto, percorrida por Ramon Franco e seus companheiros do “Plus Ultra”. 

O voo do “Plus Ultra”, não veio a Natal e nem sequer sobrevoo terras potiguares. Entretanto, na sua época, seu “raid” teve uma repercussão enorme no cenário da aviação mundial. Os espanhóis mostrariam que com o aparelho certo, tecnologia de ponta e correto apoio, estava pronto o cenário para a realização de grandes viagens aéreas sobre o Atlântico Sul.

CASO PARASAR – O “NÃO” DO CAPITÃO SÉRGIO CARVALHO!

A Indisciplina do Capitão Sérgio Carvalho, o Conhecido “Sérgio Macaco”, Ao Negar Cumprir Uma Ordem de Um Superior Hierárquico, Lhe Custou Muito Caro. Mas Certamente Evitou Muitas Mortes no Rio de Janeiro Durante o Período da Ditadura Militar.

1968 foi sobretudo o ano em que o Brasil constatou definitivamente que a radicalização e o terrorismo de esquerda e de direita criavam um cenário que afligiria a nação nos anos seguintes e resultaria numa crescente onda de violência política.

Corpo do estudante secundarista paraense Edson Luís de Lima Souto, morto no Rio de Janeiro em 28 de março de 1968, quando a Polícia militar carioca invadiu o restaurante Calabouço. Durante a invasão, o comandante da tropa da PM, aspirante Aloísio Raposo, atirou e matou o secundarista Edson Luís com um tiro a queima roupa no peit0 – Foto – Arquivo Nacional.

No começo de abril daquele ano, o Rio de Janeiro ainda amargava o impacto da morte do estudante paraense Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, foi baleado num confronto entre manifestantes e policiais nas imediações do restaurante do Calabouço. Na sequência o enterro do estudante foi um acontecimento que parou a cidade. Mais de 60 mil pessoas acompanharam o cortejo desde a Cinelândia até o Cemitério de São João Batista. Quando a multidão chegou à Praia do Flamengo, um veículo da Força Aérea Brasileira foi virado e incendiado.

Em meio a toda essa manifestação, um grupo de militares altamente especializados acompanhavam discretamente a movimentação que cortava as ruas do Centro do Rio.

Cortejo fúnebre do estudante Edson Luís. Os homens do PARA-SAR acompanharam essa movimentação – Foto – Arquivo Nacional.

Naquele dia tenso aqueles homens foram recrutados para uma ação repressiva, onde teriam de infiltrar-se no meio do povão em grupos localizados no Largo da Carioca, Cinelândia e Candelária. Todos estavam vestidos à paisana, tinham ordens para colaborar com o pessoal do Exército na prisão de manifestantes, vigiar o alto dos edifícios e atirar para matar contra quem arremessasse objetos sobre os policiais. Isso tudo utilizando identidades falsas, armas com os números de identificação raspados, granadas defensivas e punhais.

O problema é que nessa época a missão primária desses militares estava muto distante dos brutais esquemas repressivos existentes na Ditadura Militar brasileira. Eles eram os membros da 1ª Esquadrilha Aeroterrestre de Salvamento (EAS), mais conhecido como PARA-SAR (“PARA” de paraquedistas, “SAR” do inglês Search and Rescue, “busca e salvamento”), um esquadrão de elite formado por paraquedistas altamente treinados para a realização de buscas e resgates aéreos.

Repressão policial no Rio de janeiro. Essa não era a missão dos homens do PARA-SAR da Força Aérea Brasileira – Foto – Arquivo Nacional.

Os homens do PARA-SAR efetivamente agiram durante os distúrbios ocorridos a 4 de abril, mas o grupo deliberadamente decidiu nada fazer e não se envolveu em prisões, ou mortes.

Mas a participação daquele pessoal naquela manifestação, como comumente se diz dentro dos quartéis no Brasil, “só podia dar m#%&@”.

E deu!

Mudança de doutrina

Exatamente no dia da missão, o capitão intendente Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido na Força Aérea Brasileira como “Sérgio Macaco”, estava de férias em Manaus e o capitão-médico Rubens Marques dos Santos, conhecido como “Doc”, estava em uma missão na região do Xingu.

Sérgio e “Doc” eram dois dos oficiais mais respeitados no PARA-SAR, dividindo essa respeitabilidade com o capitão Roberto Câmara Lima Ipiranga dos Guaranys, o único dos três a testemunhar os incidentes de 4 de abril.

Um helicóptero SH-1D faz evoluções sobre um hidroavião Grumman SA-16A Albatroz, ambos utilizados pela Força Aérea Brasileira para buscas e salvamentos – Fonte – Arquivo Nacional.

O capitão Sérgio soube do fato através do major Gil Lessa de Carvalho, então comandante do PARA-SAR, que, segundo a reportagem da revista Veja (edição de 26 de junho de 1985, págs. 50 a 59), estava de acordo com as ordens recebidas e a mudança de doutrina que aparentemente estava sendo imposta ao PARA-SAR.

Ao tomar conhecimento do caso, o capitão Sérgio se apresentou ao brigadeiro Geraldo Labarte Labre, então comandante da Escola de Aeronáutica, no Campo dos Afonsos, em Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, onde ficava a sede do PARA-SAR.

Depois de conversar com o comandante dos Afonsos, o capitão Sérgio foi à subdiretoria deProteção ao Voo, na época dirigido pelo brigadeiro Mário Paglioli de Lucena, onde informou o que ocorrera. Lucena então se comunicou com o coronel Pedro Vercílio, chefe do Estado-Maior da 3ª Zona Aérea (atual 3º Comando Aéreo Regional), pedindo informações sobre como o PARA-SAR tinha sido empregado naquele tipo de atividade, sem o conhecimento da Diretoria de Rotas Aéreas, ao qual a unidade de elite estava diretamente vinculada. Vercílio informou que havia atendido a um pedido do major Nereu Peixoto, da 2ª Seção de Informações da 3ª Zona Aérea, ou seja, os “agentes secretos” daquele setor da Força Aérea Brasileira

O brigadeiro Burnier – Foto – Arquivo Nacional.

Nessa mesma época voltou de uma missão no Panamá o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, que assumiu interinamente o cargo de chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica. Vale ressaltar que nesse tempo não havia um Comandante da Aeronáutica, que respondia a um Ministro da Defesa, que nem sequer existia. O comandante da Força Aérea Brasileira era o ministro da Aeronáutica, com amplos poderes sobre tudo que voava no Brasil e muito mais. Em 1968 estava comandando esse segmento das Forças Armadas o marechal-do-ar Márcio de Sousa Mello, que era muito próximo ao brigadeiro Burnier.

“Costa e Silva, não. Bosta e Silva”

Na matéria da revista Veja de 1985, Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho afirmou que após chegar ao Rio o brigadeiro Burnier não só aprovou a missão de repressão confiada ao PARA-SAR, como resolveu ampliá-la.

Ao saber da posição contrária do capitão Sérgio, Burnier promoveu a partir de junho, três encontros que o subordinado definiu como “sessões de doutrinação”.

Um helicóptero Sikorsky H-19D, utilizado em missões de busca e salvamento (SAR) e evacuação aeromédica, em uma praia carioca e sendo sobrevoado por dois aviões Noth American T-6 – Foto – Arquivo Nacional.

Nessas reuniões o brigadeiro Burnier afirmou que o PARA-SAR seria “a peça-chave para salvar o Brasil do comunismo”. A missão seria entregue aquela unidade militar de elite por eles terem “vastíssimo poder de fogo — toneladas de explosivos plásticos — e extraordinário grau de capacidade operacional”.

O oficial general teria então sugerido a execução de uma escalada de atos terroristas, que seriam atribuídos aos extremistas de esquerda.

Os homens do PARA-SAR fariam o papel de detonadores de um processo histórico. Inicialmente seriam realizados pequenos atentados à extinta loja de departamento Sears, no bairro de Botafogo. Logo o outro alvo seria a embaixada norte-americana no Rio e depois uma agência do Citibank na capital carioca. Tudo com a utilização de pequenas cargas de explosivas e — segundo Burnier — com “reduzido número de vítimas fatais”.

A operação teria um teor de escalada. Cada ato seguinte seria mais forte e desembocaria na explosão do Gasômetro de São Cristóvão, um formidável complexo de três reservatórios de gás, com capacidade total para 235.000 metros cúbicos, destinados a abastecer toda a cidade.

Modelo Bell SH-1D, de busca e salvamento – Foto – Arquivo Nacional.

Localizado a curta distância da estação rodoviária, de um depósito de combustível e próximo à zona portuária, as explosões do Gasômetro certamente iriam gerar incêndios em série, com elevado nível de destruição e mortos. Além desse ataque um outro alvo a ser destruído no mesmo dia seria a hidrelétrica de Ribeirão das Lages — localizada a 78 quilômetros do centro do Rio.

Esses dois atentados deixariam a cidade sem luz e sem água, às voltas com milhares de mortos e feridos, em meio a um caos total.

Então, teria dito Burnier, “seria dado um basta aos comunistas”. Para ele a cidade do Rio exigiria “a caçada dos comunistas a pauladas e eles seriam eliminados em no máximo seis meses.”

Em outra reunião Burnier teria detalhado com maior ênfase e convicção as suas ideias, além de ter exposto um plano para a eliminação de “quarenta líderes políticos ou militares”. Segundo o capitão Sérgio, Burnier revelou que a lista seria anunciada aos encarregados dos assassinatos em lotes de cinco nomes, sempre verbalmente.

A bordo de um helicóptero Sikorsky H-19D, em trajes civis, podemos ver a esquerda Jânio Quadros e a direita Juscelino Kubitscheck, ladeados por dois oficiais generais. Em 1968 ambos eram ex-presidentes e estavam marcados para morrer na pretensa operação que desejava utilizar o PARA-SAR para assassinatos de políticos – Foto – Arquivo Nacional.

Os primeiros seriam os ex-presidentes Juscelino Kubitscheck e Jânio Quadros, o ex-governador Carlos Lacerda, o então arcebispo de Olinda eRecife, dom Hélder Câmara, além do general Olímpio Mourão Filho, um dos líderes do movimento militar de 1964.

Na revista Fatos (edição de 1º de julho de 1985, págs. 38 a 45), existe a informação que o brigadeiro Burnier revelou um plano suplementar ao capitão Sérgio.

O brigadeiro pegaria alguns militares considerados de esquerda, colocaria todos eles dentro de um avião, que seria pilotado pessoalmente por ele e pelo brigadeiro Roberto Hipólito da Costa, e “os comunistas da Aeronáutica seriam lançados ao mar”. Burnier disse: “Vamos pegar os comunistas da Força Aérea Brasileira, o Teixeira, o Anísio, o Malta, e jogar no mar.” Ele chegou a perguntar ao capitão Sérgio se “a pessoa atirada de um avião morria durante a queda, ou só quando o corpo batesse contra a água”.

O general Artur da Costa e Silva – Foto – Arquivo Nacional.

Ainda na reportagem da revista Fatos o capitão Sérgio ponderou em 1968 que o chefe do governo era um marechal do Exército, o marechal Costa e Silva. Mas Burnier de pronto o corrigiu: “Costa e Silva, não. Bosta e Silva.” Segundo o brigadeiro, o presidente era um homem fraco no trato com os comunistas. Disse que já estava tudo planejado. Os comunistas não teriam fronteiras de apoio e os americanos dominariam o Atlântico Sul.

De acordo com Burnier, mesmo que os comunistas reagissem desesperadamente, a luta teria duração de no máximo seis meses. Em compensação ”nós ficaríamos eternamente livres dos comunistas”. Respondi ao brigadeiro Burnier dizendo que “a condução para um estado de guerra quentenão parecia um ato de sabedoria, um ato patriótico, ou de interesse nacional”.

Como em todo mundo, as missões de busca e salvamento aéreo sempre foram vistas de maneira muito positiva pela população brasileira – Foto – Arquivo Nacional.

Sérgio decidiu comentar o caso com os capitães “Doc” Santos e Guaranys, além do brigadeiro Mário Pagliole de Lucena, pedindo-lhe que ele retransmitisse seu relato ao brigadeiro Itamar Rocha, diretor geral da Diretoria de Rotas Aéreas, à qual o PARA-SAR estava diretamente subordinado.

O capitão Sérgio afirmou a Veja em 1985 que no terceiro encontro com Burnier, este fez “o elogio do método de lotar um avião com comunistas e jogá-los no mar”. No final da conversa, ainda segundo o capitão, ao constatar que não conquistara o interlocutor para suas teses, o brigadeiro Burnier teria se irritado.

Consta que Burnier não poderia realizar aquelas reuniões sem consultar o brigadeiro Itamar Rocha, que além de chefiar o órgão ao qual estava subordinado o PARA-SAR, era um oficial general de três estrelas, enquanto Burnier só tinha duas.

A direita vemos o brigadeiro Burnier e o marechal do ar Souza e Mello (de óculos) – Foto – Arquivo Nacional.

A questão é que por trás de Burnier estava o marechal-do-ar de cinco estrelas Márcio de Sousa Mello, o ministro da Aeronáutica e o homem que mandava em toda a Força Aérea Brasileira.

Mas não parou por aí!!!

“Quem aqui já matou gente?”

Diante da resistência tácita do capitão Sérgio, o brigadeiro Burnier ordenou que no dia 14 de junho de 1968, uma quarta feira, fosse realizada uma derradeira reunião no seu gabinete e com a presença de todos os homens do PARASAR.

Dela participaram 36 dos 41 homens da 1ª Esquadrilha Aeroterrestre de Salvamento. Um ônibus da Aeronáutica estacionou no Campo dos Afonsos para recolher os integrantes do grupo de elite, onde seguiram desde oficiais, sargentos e cabos. Eles foram levados ao antigo prédio do Ministério da Aeronáutica, na Avenida Marechal Câmara, 233, Centro do Rio de Janeiro.

Foto – Arquivo Nacional.

Para muitos dos integrantes da comitiva, a reunião serviria para definir quem iria representar a Força Aérea Brasileira em um evento de paraquedismo que logo se realizaria em Portugal. Mas não foi nada disso!

O então terceiro sargento Gilson Tardivo Gonçalves contou a reportagem da Veja em 1985 que “a reunião começou de maneira muito estranha, com o brigadeiro dando voltas pela sala e dando socos na mão, sem dizer nada”. Depois de alguns minutos de silêncio, Burnier ponderou que achava “muito difícil começar certos assuntos”. Enfim, inaugurou a sessão com uma pergunta “Quem aqui já matou gente?”.

Depois desse início um tanto bombástico, o brigadeiro Burnier começou um monólogo verdadeiramente aterrorizante – “Ninguém, não é? E quem aqui garante que será capaz dematar alguém? Ninguém, não é? E, claro que, para matar em tempo de guerra, é preciso ter treinamento para matar em tempo de paz. A pessoa precisa ter certeza de que a mão não vai tremer na hora da verdade. Há anecessidade de sentir na boca o gosto de sangue.” Os oficiais e sargentos, assustados, ouviram em silêncio.

Missão digna e honrada a do PARA-SAR – Foto – Arquivo Nacional.

Em seguida, o brigadeiro sustentou que alguns políticos, a começar por Carlos Lacerda, “deveriam estar mortos há muito tempo”. Enfim, Burnier defendeu explicitamente a execução de assassinatos políticos por parte dos integrantes do PARA-SAR.

Afirmou que ele próprio daria as ordens e exigiria que fossem aplicadamente cumpridas. No princípio, admitiu, haveria constrangimentos. “Mas uma vez cumprida a primeira ordem”, argumentou, “as demais seriam banalidades.”

Encerrada a exposição, o anfitrião quis saber o que pensava cada um dos convidados. Três homens disseram que estavam de acordo — o major Lessa (apesar de anteriormente afirmar para o capitão Sérgio que seu superior estava “louco”), o capitão Loris Areias Cordovil e, para espanto e decepção de Sérgio, o capitão Guaranys, seu amigo, confidente e defensor entusiasmado da pureza do PARA-SAR. Aquele posicionamento foi o fim de uma velha amizade!

Segundo a reportagem da revista Veja (edição de 26 de junho de 1985, págs. 50 a 59), quem primeiro disse “não” foi o capitão Sérgio de Carvalho.

Foto – Arquivo Nacional.

— E o senhor, concorda ou não? — perguntou Burnier, num tom de voz mais elevado.

— Não — disse Sérgio no mesmo tom.

Em seguida, o capitão afirmou que a tese do brigadeiro lhe parecia imoral e indigna de um militar de carreira.

— Cale-se! — berrou Burnier — Não se estenda em considerações!

— Não, não me calo! — berrou também o capitão Sérgio — E isso não acontecerá enquanto eu for vivo. O ministro ficará sabendo do que houve aqui.

Testemunha da tensa reunião, o sargento Alédio de Souza Gago afirma que um quarto homem concordou com Burnier antes do nãodo capitão Sérgio: o tenente João Batista Magalhães. Mas em 1985 esse oficial negou até mesmo ter comparecido ao encontro.

Foto – Arquivo Nacional.

Alédio também informou ter ouvido a ameaça que Burnier fez ao capitão que o desafiara, antes de voltar as costas ao grupo e deixar a sala – “o Burnier disse ao Sérgio Macaco que, dali em diante, ele sentiria todo o peso de suas duas estrelas”.

Em 1985 o sargento Gilson Tardivo Gonçalves confessou ter ficado estarrecido com a cena que presenciou. “Eu me perguntei como é que um brigadeiro podia ter dito tudo aquilo numa reunião formal e com tanta gente?”. Gonçalves concluiu que “que aquele homem era uma besta.”

Após a reunião, o capitão Sérgio determinou que os homens do PARA-SAR não esperassem o elevador. Estavam no 11° andar do antigo prédio do Ministério da Aeronáutica e todos desceram pela escada.

“O Funcionamento Básico Dessa Esquadrilha é Salvar e Não Matar”

O pequeno e versátil Bell H-13 foi também utilizado em missões de salvamento pela Força Aérea Brasileira – Fonte – Arquivo Nacional.

A Veja de 1985 afirmou que o capitão Sérgio tinha muita coisa para conversar com o marechal Souza Mello, mas o ministro estava em Portugal. Já o brigadeiro Itamar Rocha se encontrava em Tóquio. Também estavam fora do Rio no dia 14 de junho o capitão “Doc” Santos, o cabo enfermeiro Herly Cabral, conhecido como Cabralzinho, e o Sargento Pedro Klein. Logo os três saberiam do problema.

Klein comentou em 1985 que o major Gil Lessa informou que “o chefe de gabinete do ministro, em reunião com quase toda a esquadrilha, havia dado ordens para fazermos missões especiais, inclusive matar, sem deixar a mão tremer e com gosto de sangue na boca”. E completou dizendo que o major Lessa ameaçou – “quem não estivesse satisfeito, deve entregar oboné.” Cabralzinho estava presente nessa reunião e confirmou que “Doc” Santos tratou de deixar claro de que lado estava e que “ofuncionamento básico dessa esquadrilha é salvar e não matar”.

Em outra reunião, testemunhada por Cabralzinho, o comandante Lessa e vários integrantes do PARA-SAR bateram boca.

Lessa foi contestado abertamente pelo sargento Gilson Tardivo Gonçalves, que apartir daí passou aser considerado “líder dos sargentos rebelados” por seus superiores fiéis a Burnier. “Viemos para cá com ideais humanitários”, ponderou Gonçalves, “se for para ficar aqui e ser usado como polícia, ou agente secreto, vou entregar meu boné.”

O capitão “Doc” Santos entendeu que chegara a hora de deixar o PARA-SAR e pediu transferência para o Hospital Geral da Aeronáutica. Ele afirmou em 1985 que “fui com o Sérgio ao hospital para uma conversa com o diretor, que era o Brigadeiro Georges Guimarães, a quem contamos toda a história”. Mas para a surpresa dos dois capitães, esse oficial superior começou a esbravejar, de dedo em riste, dizendo que “Burnier tinha razão e que comunista tinha mesmo de ser metralhado”. Os dois saíram do lugar estupefatos.

Esse Senhor idoso nessa foto, desde muito tempo compreendeu muito bem o que significava “Sacrifício pela Pátria”, principalmente quando lembramos das areias da praia de Copacabana, sujas de sangue em 5 de julho de 1922. Eduardo Gomes era uma verdadeira lenda viva dentro da Força Aérea Brasileira e abraçou a causa em busca de justiça contra o descalabro que o capitão Sérgio e seus amigos sofreram no caso PARA-SAR. Mas seus apelos foram deliberadamnente ignorados por um grupo de oficiais generais que distorceram profundamente o significado de dever e honra na sua amada Força Aérea Brasileira. Até hoje, e no futuro, o nome de Eduardo Gomes vai nos lembrar sempre de valores positivos e preciosos. Já aos oficiais generais que participaram desse caso, só restara o esgoto da História – Fonte – Arquivo Nacional.

O capitão Sérgio decidiu então recorrer ao , um dos principais líderes da Aeronáutica e futuro ministro no governo João Figueiredo. Délio, depois de ouvir seu relato, concluiu: “Só há um homem capaz de segurar este abacaxi: o brigadeiro Eduardo Gomes”.

Um dos dois sobreviventes, junto com Siqueira Campos, do massacre dos “18 do Forte de Copacabana” em 1922, Eduardo Gomes era uma verdadeira lenda viva dentro da Força Aérea Brasileira, uma espécie de patriarca da Aeronáutica, criador do Correio Aéreo Nacional e duas vezes candidato à Presidência da República pela UDN, a opinião do velho e respeitado brigadeiro tinha muito peso.

Informado do ocorrido por Délio e Sérgio naquele mesmo dia, Eduardo Gomes ficou perplexo. Teve ter sido muito difícil para aquele homem de uma vida tão honrosamente dedicada a Força Aérea Brasileira, tomar conhecimento do nível complicado que o oficialato daquela instituição militar tinha chagado em 1968!

Folha de uma das consultas que o brigadeiro Itamar Rocha fez aos homens do PARA-SAR, que estiveram na missão de rua na época da morte do estudante Edson Luís e na reunião do gabinete do brigadeiro Bournier. No caso da foto é sobre a atuação do tenente tenente João Batista Magalhães na missão nas ruas do Rio – Fonte – Arquivo Nacional.

O brigadeiro pediu que os dois voltassem na manhã seguinte, acompanhados do brigadeiro Itamar Rocha. Nessa reunião, Eduardo Gomes recomendou que Itamar promovesse uma “sindicância rigorosa”. Este por sua vez endereçou consultas rigorosas aos integrantes do PARA-SAR sobre como se deu a reunião de 14 de junho. Apenas quatro deles, precisamente os oficiais que haviam dito sim a Burnier, negaram veracidade à história contada por Sérgio — todos os outros a confirmaram.

Semanas mais tarde, Itamar encaminhou um minucioso relatório ao ministro, descrevendo o que ocorrera. O relatório provocou reação oposta à que se esperava. Em 11 de setembro de 1968 o ministro Souza Mello respondeu ao brigadeiro Itamar com um documento que fazia largos elogios aBurnier e atacava asperamente seus críticos. Dias depois, as represálias se intensificaram. E, enquanto se sucediam transferências arbitrárias e prisões, oficiais fiéis a Burnier, como Lessa e Guaranys, pressionavam sargentos para que modificassem os depoimentos que haviam concedido a Itamar Rocha.

O episódio do caso PARA-SAR foi uma vergonha para História da Força Aérea Brasileira, que apenas 23 anos antes se cobriu de glória nos céus da Itália. Na foto vemos o Presidente Vargas recebendo os orgulhosos aviadores do 1º Grupo de Aviação de Caça, após o fim da Segunda Guerra Mundial Foto – Arquivo Nacional.

Tudo isso se transformou em uma verdadeira palhaçada, uma esculhambação e um grandioso escárnio para com a História de uma instituição chamada Força Aérea Brasileira, que se cobriu de glórias durante a Segunda Guerra Mundial, com a atuação da 1ª Grupo de Aviação de Caça nos céus da Itália!

“É a palavra de cabos e sargentos contra a de oficiais”

Mas nada do que aconteceu adiantou e as perseguições só cresceram!

Sérgio de Carvalho foi transferido para o Recife, “Doc” Santos para Campo Grande, Gilson Tardivo Gonçalves para Lagoa Santa, em Minas Gerais. Todos sofreram penas de prisão, aplicadas também a outros sete sargentos. Nenhum membro do grupo que se opôs a Burnier escapou a algum tipo de sanção. Até o brigadeiro Itamar Rocha foi afastado da Diretoria de Rotas Aéreas e submetido a quatro dias de prisão domiciliar.

Foto – Arquivo Nacional.

O brigadeiro Itamar comentou de maneira correta na revista Fatos (edição de 1º de julho de 1985, págs. 38 a 45), que “os homens do PARA-SAR sofreram demais”. Foram humilhados e mostrados come se fossem criminosos, quando eram homens imbuídos do espírito de salvar vidas.

Mas ninguém, entretanto, sofreria de maneira tão brutal quanto o capitão Sérgio de Carvalho. Ele foi reformado pelo Ato Institucional Número 5, o famigerado AI-5, perdendo a patente e o meio de vida.

Apaixonado pela profissão que exercia na Força Aérea Brasileira, ele viajava em média 240 dias por ano e aos 37 anos, quando foi colhido pela guilhotina do AI-5, realizara centenas de missões e mais de 800 saltos. Era o que sabia fazer, era o que gostava de fazer — mas nunca mais voltaria a exercer essa atividade. Na mesma época, o capitão Sérgio foi processado por falsidade ideológica, sendo absolvido em primeira instância por quatro votos a um e, no Superior Tribunal Militar, por quinze votos a zero. 

O capitão intendente Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho – Fonte – http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R04927.pdf

Empurrado para a vida civil, foi convidado a assumir a presidência de honra de um aeroclube do Recife — mas ele não tardou a constatar que não poderia ser instrutor de salto, nem mesmo saltar. O convite colidiu com uma portaria reservada do Ministério da Aeronáutica, segundo a qual militares cassados “não podem manter adestramento aeroterrestre”.

Um emprego que conseguiu na revista Manchete durou o tempo suficiente para que Burnier soubesse de onde vinha seu salário e logo foi demitido dali também. Depois, Sérgio escreveu roteiros para um programa de televisão. Em 1971, os ventos afinal pareceram soprar a favor, pois ele fez 13 pontos na Loteria Esportiva e, com o dinheiro do prêmio, fundou uma empresa de propaganda, a Podium. Dois anos mais tarde, assolada pela alta dos preços do papel, a empresa sucumbiu, e Sérgio tornou-se vendedor.

Documento que mostra a vigilância do Serviço Nacional de Informações, o SNI, sobre a vida do capitão-médico Rubens Marques dos Santos, conhecido como “Doc” – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1979, à luta pela sobrevivência financeira somou-se a luta pela vida. Vítima de leishmaniose visceral, uma doença tropical que contraíra em consequência de suas missões na selva e que ficara incubada por dez anos em seu organismo, agora o afetava severamente a sua circulação linfática. Sérgio permaneceu 130 dias internado no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. Seu peso desceu a 49 quilos, inquietantes para um homem de 1,76 metro de altura. Mas salvou-se.

O capitão Sérgio de Carvalho realizou uma luta solitária e obstinada para sua reintegração a Força Aérea Brasileira. Contou com a ajuda de dois grandes aliados — o brigadeiro Eduardo Gomes e o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias. Pouco antes de morrer, em 1981, Eduardo Gomes repetia a amigos que levaria para o túmulo o desgosto de não ter obtido a reparação da injustiça sofrida pelo jovem amigo.

Eduardo Gomes visitando Sérgio Carvalho no hospital – Fonte – http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R04928.pdf.

Em maio de 1974, numa carta ao então presidente Ernesto Geisel, Gomes fez uma ardente defesa do capitão Sérgio. “Se ele não tivesse procedido como procedeu”, argumentou o brigadeiro, “a revolução ter-se-ia perdido, irremissivelmente desmoralizada, chafurdada em ignomínia,afogada num turbilhão de sangue de pessoas inocentes.” Em dezembro de 1977, Eduardo Gomes redigiu outra carta de teor semelhante, mas não chegou a remetê-la ao presidente.

Durante a permanência de Sérgio no Hospital Samaritano, o velho e respeitado brigadeiro Eduardo Gomes o visitou e fez questão de posar a seu lado para os fotógrafos. Para o grande herói da História da Força Aérea Brasileira, o problema envolvendo o capitão Sérgio se tornou uma das grandes frustrações da vida do legendário aviador.

Outro que procurou ajudar o capitão Sérgio e seus amigos, foi o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias. Outra grande figura história do Brasil, Cordeiro de Farias participou de lutas e episódios que vão desde a Coluna Prestes a ser o comandante da artilharia da Força Expedicionária Brasileira, passando por governar o Rio Grande do Sul e Pernambuco. Mas como aconteceu com Eduardo Gomes, foi ignorado. Na foto ele presta homenagem aos pracinhas mortos no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Rio – Fonte – O Globo.

Mesmo após o escândalo, o brigadeiro Burnier permaneceu à frente de operações secretas da Aeronáutica. Em 1970, já no governo Médici, é premiado com o comando da 3ª Zona Aérea, área de chefia que abrangia a Base Aérea do Galeão e onde no ano seguinte ele se envolveu no episódio da tortura e morte do guerrilheiro Stuart Angel Jones. A pressão pública exercida por Zuzu Angel em razão do assassinato de seu filho, acabaria por provocar a queda do ministro Souza Mello. Seu sucessor foi o brigadeiro Joelmir de Araripe Macedo, que removeu Burnier do comando da 3ª Zona, transferindo-o para um cargo burocrático na Diretoria de Documentação Histórica da Aeronáutica. Logo foi afastado da lista de promoções em 1972, sendo obrigado a passar para a reserva. 

Até a sua morte, ocorrida em 13 de junho de 2000, Burnier negou o envolvimento no caso PARA-SAR, protestando contra sua divulgação na imprensa e solicitando diversas vezes que o processo militar fosse reaberto, não obtendo sucesso. Apesar disso, o passar dos anos não arrefeceu o apoio que recebera de Souza Mello; ao ser entrevistado em 1988 por Zuenir Ventura para seu livro 1968: o Ano que Não Terminou, o ex-ministro declarou que o capitão Sérgio, “ele sim, é que tinha esse plano” – posição que manteve mesmo confrontado com a evidência da confirmação feita por mais de 30 testemunhas militares. Diante dessa situação, Souza Mello preferiu fazer uso de um argumento muito utilizado por oficiais militares, quando se veem diante de questões problemáticas no âmbito de suas instituições – hierarquizar o debate: “É a palavra de cabos e sargentos contra a de oficiais”.

O capitão Sérgio quando falou sobre o caso em Campinas, São Paulo – Fonte – Arquivo Nacional.

Herói

Em 1985 o antigo capitão “Doc” Santos afirmou que a resistência dos integrantes do PARA-SAR mudou o curso da história do Brasil. “Se não tivéssemos reagido, este país teria virado uma republiqueta. Onde já se viu combater terrorismo com ações de super terrorismo?”, pergunta o antigo militar. “Seria uma coisa de louco, sem paradeiro.”

Somente em 12 de junho de 1985, Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho recebeu a primeira homenagem pública desde que foi cassado, sendo-lhe outorgado o título de “Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro”. Ele envolveu-se na política, tendo assumido como suplente o mandato de deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro durante três ocasiões da legislatura de 1987 a 1991.

Sérgio Carvalho e sua esposa – Foto – Arquivo Nacional.

Em 1992, o Supremo Tribunal Federal reconheceu os direitos do capitão Sérgio, estabelecendo que ele deveria ser promovido a brigadeiro – posto que teria alcançado se tivesse permanecido na Força Aérea Brasileira. O então ministro da Aeronáutica, o brigadeiro Lélio Viana Lobo, ignorou a decisão da corte, sendo o STF obrigado a mandar um ofício exigindo o cumprimento da lei. Lobo novamente se recusou a cumprir a determinação judicial, transferindo o problema para o presidente Itamar Franco.

Esse político, que ocupou o cargo de maneira interina e não queria problemas com a classe fardada, protelou a decisão até cinco dias após a morte de Sérgio Carvalho, ocorrida em 5 de fevereiro de 1994, devido a um câncer no estomago. O valente capitão morreu no Rio de Janeiro, não viu sua patente ser restabelecida, ou receber a promoção a que tinha direito. Somente em 1997, o governo federal, baseado na decisão do STF, indenizou a família de Sérgio com o valor relativo às vantagens e soldos que ele deixou de receber entre os anos de 1969 e 1994.

Sempre que comento essa história com outras pessoas, eu acho interessante como a figura histórica de Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho consegue criar discursões acaloradas, intermináveis e estéreis…

Foto – Arquivo Nacional.

Para os seguidores da direita brasileira e dos saudosistas da Ditadura Militar, o capitão Sérgio é no mínimo um “traidor”, um homem que “se virou contra o sistema”, que “cuspiu no prato que comeu” e que “não ajudou a acabar de vez com a esquerda no Brasil”. Já para a esquerda, que muitas vezes consegue ser tão sectária em certos pontos de vista que fica difícil entendê-los, Sérgio Carvalho não merece nenhum tipo de elogio, de reconhecimento e consideração, pois foi um “golpista de 31 de março de 1964”, que “apoiou o sistema repressor”, “vestia farda” e “desfilava no 7 de setembro”.

Tudo isso é muito triste, pois ao dizer “não”, Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho se tornou um grande herói!

Ele teve coragem de dizer “não” a um superior, em um sistema baseado na ordem hierárquica e pagou um preço muito alto por isso.

Seu exemplo foi seguido por outros companheiros, tão honrados como ele. Diferentemente de outros colegas de carreira, que desejosos de conquistarem as benesses do superior hierárquico e do sistema, mostraram que poderiam executar ações terroristas horríveis, que ocasionaria uma série de catástrofes inigualáveis na cidade maravilhosa, resultando na morte de sei lá quantas mil pessoas.  

Eu sempre me pergunto onde iria parar a Ditadura Militar no Brasil se Sérgio Carvalho tivesse aceitado o que queria seu superior e executasse a planejada hecatombe no Rio de Janeiro?

Quantos mais iriam morrer no Brasil se isso tivesse acontecido? E quanto tempo mais a Ditadura iria permanecer no poder?

Não tenho todas as respostas. Mas de saída creio que aqui teriam morrido muito mais pessoas que na ditadura da vizinha Argentina, cujo número de por lá teria sido de 30.000 vítimas. Também acredito que a nossa Ditadura teria permanecido mais uns 20 anos no poder, só terminando em 2005. E, mesmo que em algum momento voltássemos a respirar a liberdade, diante de qualquer alteração política que não agradasse os fardados, certamente os tanques rolariam pelas ruas com uma facilidade imensa e o terror recomeçaria.

Por isso repito – ao dizer “não”, Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho se tornou um herói!

BARREIRA DO INFERNO – QUANDO NATAL ERA A CAPITAL ESPACIAL DO BRASIL

A Boa Localização Para Disparar Foguetes – A Doação de 2.000 Hectares na beira da Praia – O Início da Construção – Primeiro Disparo – O Foguetório – O Dia Que os Russos Espionaram a Barreira do Inferno – Futuro Incerto – Memórias Inesquecíveis Para o Povo de Natal

Rostand Medeiros – IHGRN

Efetivamente a ideia galgar o espaço exterior se inicia com o desenvolvimento dos processos tecnológicos de lançamento de foguetes pelos países vencedores da Segunda Guerra Mundial. Com a ideia de não perder o “bonde da história” e diante das perspectivas altamente estratégicas que a conquista do espaço criava para uma nação com dimensões continentais como o Brasil, apontou para a necessidade do desenvolvimento de um projeto de programa espacial nacional. Logo a criação de instituições como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em 1950, e o surgimento do Centro Técnico de Aeronáutica, hoje o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), como órgão científico e técnico do Ministério da Aeronáutica, apontou os caminhos a serem seguidos.

Preparação de um foguete para disparo na Barreira do Inferno na década de 1970 – Fonte – Biblioteca Nacional.

Nesse desejo da nação brasileira de alçar o espaço sideral ficou evidente que um dos caminhos a ser seguido era a criação da primeira base de lançamento de foguetes no país. E foi no Rio Grande do Norte que o Governo Brasileiro decidiu desenvolver esse local.

E porque razão fomos escolhidos?

Primeiramente o fator posição geográfica foi decisivo para que a terra potiguar participasse desse projeto de alto interesse para a nação. Natal está distante apenas 5 graus da linha do Equador e essa proximidade muito facilita o lançamento de foguetes ao espaço, pois quanto mais próximo desse marco geográfico, utiliza-se uma menor quantidade de combustível para a ascensão desses equipamentos. De certa forma repetiu-se o mesmo que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando militares norte-americanos construíram a base aérea que eles denominaram de Parnamirim Field, pela excepcional posição estratégica de Natal para o desenvolvimento do transporte aéreo militar dos Aliados durante o conflito.

Desenvolvimento de foguetes nos Estados Unidos – Fonte – NASA

Outro fator estava na existência de um tipo de “anomalia magnética” sobre o Rio Grande do Norte e outros estados nordestinos. Ocorre que nessa região as linhas do campo magnético da Terra formam uma espécie de “funil” e essa situação facilita as medições espaciais com foguetes, que não necessitam se elevar a grandes altitudes para cumprir suas missões, diminuindo o custo dos lançamentos.

Outros fatores que pesaram favoravelmente na decisão de construção dessa base de lançamento de foguetes na área metropolitana de Natal foram o clima estável da nossa região, a proximidade com a capital potiguar, proximidade do porto no Rio Potengi e a pouca distância da Base Aérea de Parnamirim.

A Doação do Terreno de Fernando Pedroza

Ficou decidido que o local para implantação da base ocorreria em um terreno de quase 2.000 hectares, localizado as margens do Oceano Atlântico, próximo a praia de Ponta Negra. Era um lugar abandonado, cercado de altas dunas de areia, aquinze quilômetros do centro de Natal, no caminho para a região das praias do litoral sul e conhecida como Barreira do Inferno.

Falésias da Barreira do Inferno – Fonte – https://www.praiasdenatal.com.br/barreira-do-inferno/

Para alguns a denominação nativa evocava a coloração avermelhada das altas falésias de arenito ali existentes. Para outros o nome era uma lembrança das trágicas mortes de jangadeiros nas águas turbulentas daquela região, provocadas pelas fortes correntezas marinhas e rochas que dificultavam a navegação. O certo é que essas condições sempre limitaram a ocupação da área por populações de pescadores.

O terreno pertencia a Fernando Gomes Pedroza, que morava no Rio de Janeiro mas era membro de uma tradicional família potiguar. Logo, em 7 de agosto de 1964, os quase 2.000 hectares foram integralmente doados para o então Ministério da Aeronáutica.

Aos olhos de hoje, diante da intensa especulação imobiliária existente no belo litoral potiguar, pode parecer estranho alguém doar um terreno daquelas dimensões ao Governo Federal. Mas alguns fatores talvez possam explicar essa decisão.

Instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Como comentamos anteriormente Pedroza morava no Rio, onde ele certamente tinha seus interesses, objetivos e investimentos e naquele início da década de 1960, dentro da realidade do paupérrimo Rio Grande do Norte, dificilmente Fernando Pedroza poderia usufruir pecuniariamente daquele local a curto prazo. Consta que Aluízio Alves, então governador potiguar e com ligações pessoais com Pedroza, intercedeu para a doação da área, mostrando o quanto seria proveitoso para o Estado a implantação daquela base. Não sei se também pesou na decisão de Fernando Pedroza o fato de ser complicado para ele se colocar contrário aos objetivos estratégicos da classe fardada naquele período, poucos meses após os militares deflagrarem a revolução de 31 de março de 1964.

Em todo caso o terreno foi entregue e tempos depois, certamente pelos seus “sentimentos de brasilidade e patriotismo”, o antigo proprietário foi agraciado pela Força Aérea Brasileira (FAB) com a medalha do Mérito Aeronáutico.

Instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Início das Obras e Primeiros Lançamentos

As obras foram iniciadas em 5 de outubro de 1964, com parte delas sendo executadas pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, que na época tinha recrutado quinze presidiários para trabalharem no desmatamento da área, em troca de benefícios nas penas. Consta que sem o apoio do governo Aluízio Alves para o desenvolvimento da Barreira do Inferno, a base de lançamento de foguetes poderia ter ido para Aracati, no Ceará, ou para o Arquipélago de Fernando de Noronha, administrado por Pernambuco.

Quem primeiro noticiou a construção da nova base foi o jornalista Paulo Macedo, recentemente falecido, em sua coluna da segunda página do Diário de Natal (Ed. 09/10/1964).

Casamata blindada da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Em meio as dunas logo surgiu todo um complexo de estradas pavimentadas, garagens, prédios, abrigos, depósitos, rampas, antenas e radares. Foram construídas a casamata blindada para os técnicos acompanharem os lançamentos de foguetes a curta distância e as várias rampas de disparo. Estradas pavimentadas ligavam estas rampas aos depósitos e hangares onde ficam abrigados os foguetes, antes de serem preparados para ir aos céus. Outras estradas interligavam esses depósitos aos centros de rastreio e telemetria, instalados em prédios próprios, e aos prédios administrativos.

Nascia assim o CLFBI – Centro de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno, um local que sem dúvida alguma encheu de orgulho os potiguares, ao ponto dos radialistas locais designarem Natal como “Capital Espacial do Brasil”.

Instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Nos jornais natalenses da época existe a informação que alguns foguetes de teste foram disparados em abril, ou junho, de 1965. Mas oficialmente o primeiro lançamento de um foguete aconteceu em dezembro daquele ano, em um evento que contou com a presença do brigadeiro Eduardo Gomes, então Ministro da Aeronáutica. Nessa ocasião foi disparado um foguete de dois estágios denominado Nike-Apache, utilizado para sondagens, de fabricação norte-americana e capaz de atingir quase 200 km de altitude. O foguete subiu ao espaço exatamente as 16 horas e 28 minutos de 15 de dezembro de 1965.

Em tempo – A Barreira do Inferno não é a primeira base de lançamento de foguetes da América Latina. A honra cabe a Base de Santo Tomás, em Pampa de Achala, Província de Córdoba, Argentina, onde em fevereiro de 1961 foi lançado um foguete tipo Apex A1-02 Alfa-Centauro, que alcançou 2.170 metros de altitude. Esse foi o primeiro artefato desse tipo lançado nessa parte do Planeta. Inclusive alguns acreditam, mesmo sem apresentar provas, que muito do desenvolvimento da Barreira do Inferno por parte do Governo Brasileiro se deveu ao positivo andamento do programa espacial argentino.

Atividade dos técnicos nas instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Desenvolvimento

Bem antes da Barreira do Inferno lançar seus primeiros foguetes, o pessoal do Grupo Executivo de Trabalho e Estudos de Projetos Espaciais (GETEPE), do Ministério da Aeronáutica, providenciava junto a NASA, nos Estados Unidos, o treinamento do pessoal técnico necessário às operações de lançamento e para se familiarizarem com esses artefatos. Logo, cerca de dez norte-americanos desembarcaram em Natal para instruir a equipe da Barreira do Inferno no uso de uma série de equipamentos cedidos ao Brasil.

Nos anos seguintes a Barreira do Inferno foi palco do lançamento de centenas de foguetes.

Disparo de foguete – Fonte – Arquivo Nacional.

Aquilo visto nos céus potiguares foi um verdadeiro foguetório de fazer inveja em festa de São João no interior. Chegou um momento que de tão comuns, os rastros dos foguetes já nem chamavam mais a atenção das pessoas na cidade. De toda maneira o espetáculo enchia de orgulho o povo de nossa terra, sendo referência no Brasil. Até o grande sanfoneiro Luiz Gonzaga colocou na sua música “Nordeste prá frente“ o seguinte refrão;

“Caruaru tem sua universidade

Campina Grande tem até televisão

Jaboatão fabrica jipe à vontade

Lá de Natal já tá subindo foguetão…”

Fonte – Arquivo Nacional.

Desde os brasileiríssimos Sondas I, II e III, onde esse último alcançava mais de 500 quilômetros de altitude, a foguetes estrangeiros como os Nike Tomahawk, Nike Cajun, Aerobee, Black Brant, Javelin, Arcas e Hasp, foram disparados da Barreira do Inferno. Alguns foguetes superaram os 1.000 quilómetros de altitude e outros foram lançados como parte de importantes programas de pesquisas nacionais e estrangeiros.

Além de técnicos norte-americanos, passaram pela Barreira do Inferno técnicos franceses, canadenses e alemães. E a presença desses últimos por aqui, vindos do Max Planck Institute, acabou gerando um incidente internacional.

Preparação para disparo na década de 1970 – Fonte – Arquivo Nacional.

Foguetório Teuto-Brasileiro

De dezembro de 1965 a março de 1972 a Barreira do Inferno já havia disparado um total de 381 foguetes. O lançamento de número 382 estava previsto para ocorrer no dia 7 de março de 1972 e este seria um modelo Black Brant 5C, fabricado pela empresa canadense Bristol Aerospace e vendido para os alemães desenvolverem seus projetos de pesquisa espacial.

Esta operação era parte do Projeto Aeros, onde o custo de um milhão de dólares do disparo era totalmente financiado pelo estado germânico e trazia algumas novidades em relação aos lançamentos anteriores. A sua carga útil de componentes eletrônicos de medição, pesando 98 quilos, seria recuperada a cerca de 145 milhas náuticas (268 km) de distância da base, o Black Brant 5C atingiria a altitude máxima de 230 km e após o fim do combustível cairia livremente até 4.500 metros de altitude, quando seria acionado seus paraquedas e a carga desceria tranquilamente no oceano. Essa carga seria recuperada com o trabalho conjunto de uma corveta do Grupamento Naval do Nordeste da Marinha do Brasil e dois helicópteros SAR (do inglês: Search And Rescue – busca e salvamento) da Força Aérea Brasileira.

Fonte – Arquivo Nacional.

Até então normalmente eram disparados foguetes cuja área de recuperação de sua carga útil atingia em média de 40 milhas náuticas (74 km) e metade da altitude do Black Brant alemão. Diante da situação a FAB e a Marinha criaram uma área de exclusão ao redor da Barreira do Inferno de 60 milhas náuticas (111 km), onde todo o tráfego aéreo e marítimo foi expressamente proibido por razões de segurança. 

Durante a operação a corveta da Marinha ficaria permanentemente em alto mar e caberia também a sua tripulação a missão de informar a Barreira do Inferno, cinco horas antes do lançamento, as condições do tempo, velocidade do vento, visibilidade e cobertura das nuvens.

Fonte – Arquivo Nacional.

Ainda em relação a meteorologia o monitoramento também era realizado pelo então Centro Meteorológico do Instituto de Atividades Espaciais, com sede em São José dos Campos, São Paulo, que utilizava informações vindas do satélite meteorológico americano ESSA-8. Todo este cuidado era importante, pois naquele início de março de 1972 estava ocorrendo chuvas na costa potiguar.

O evento era coberto de extrema segurança e contava com a presença do então Ministro da Aeronáutica, o brigadeiro José Campos de Araripe Macedo, toda a cúpula da FAB, do setor técnico aeroespacial brasileiro e do pessoal diplomático e técnico alemão.

Para manter a cobertura aérea segura a FAB disponibilizou duas aeronaves de patrulha Lockheed P-15 Neptune, pertencentes ao Primeiro Esquadrão do Sétimo Grupo de Aviação (1º/7º GAv), o conhecido Esquadrão Orungan, sediado em Salvador, na Bahia.

E foram os membros deste esquadrão que localizaram em alto mar, às dez horas da manhã do dia 1 de março, um penetra no foguetório teuto-brasileiro.

O Intruso Vermelho

As aeronaves de patrulha da FAB eram equipadas com radares de busca, podiam voar horas sobre o mar e segundo os jornais da época teriam detectado um forte sinal que aparentava ser de um navio de grande porte e agindo de maneira suspeita em águas territoriais brasileiras. Prontamente eles foram investigar.

Os tripulantes se depararam com um grande navio pintado em cor clara, equipado com enormes antenas parabólicas, navegando lentamente a cerca de 144 milhas náuticas (266 km) da costa de Natal. Os dados mostraram que o tal navio estava 56 milhas náuticas (103 km) dentro de águas territoriais brasileiras, em clara violação das nossas leis. Não demorou e os tripulantes viram a bandeira vermelha, com a foice e o martelo estampados em dourado, mostrando que aquele era um navio da União das Repúblicas Socialista Soviética.

O Iuri Gagarin e sua inconfundível silhueta – Fonte – Wikipédia

Vale frisar que nesta época a União Soviética, atual Federação Russa, não reconhecia o mar territorial brasileiro como tendo 200 milhas náuticas. O decreto ampliando a nossa faixa marítima havia sido instituído apenas em 1970 e, além dos soviéticos, os arquivos do Itamaraty registraram notas de protesto, ou de não reconhecimento, ou de reservas quanto ao ato unilateral de ampliação do nosso mar territorial, vindos de países como a Bélgica, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Japão, Noruega, Reino Unido, República Federal da Alemanha e Suécia.

Mas para os aviadores do P-15 Neptune os soviéticos e seu grande navio estavam sim em nossas águas territoriais e ou caíam fora, ou poderiam sofrer alguma consequência. E lá embaixo não estava um “barquinho” qualquer, era o grande e recém-lançado navio soviético de monitoramento espacial Cosmonauta Iuri Gagarin.

Desenho do P-15 da FAB – Fonte – wp.scn.ru

Um verdadeiro monstro com 230 metros de comprimento, autonomia de 24.000 milhas náuticas (44.448 km) e uma tripulação de 180 pessoas, onde entre estes se encontravam alguns dos mais especializados técnicos de monitoramento e rastreamento eletrônico da extinta União Soviética. Em operação desde dezembro de 1971, a silhueta do navio Cosmonauta Iuri Gagarin se caracterizava pela existência de quatro grandes antenas parabólicas e elas serviam para monitorar tudo que fosse interessante e relativo a área espacial produzida pelos países ocidentais.

Apesar de vivermos um período de extrema censura jornalística durante a ditadura militar brasileira, o interessante neste caso foi que os militares não negaram aos jornais praticamente nenhuma informação sobre a presença em nossas águas deste “intruso vermelho”. Desejavam mostrar que as nossas Forças Armadas estavam atentas a movimentação daquele barco carregado de alta tecnologia russa e em clara missão de espionagem tecnológica.

Navio Cosmonauta Iuri Gagarin – Fonte – Wikipédia

Raspando as Antenas e o Mastro do Navio Soviético

E não podemos negar que o pessoal do Esquadrão Orungan estava realizando corretamente seu trabalho. Segundo o então comandante da operação de lançamento do foguete Black Brant 5C, o coronel aviador Paulo Henrique Correia do Amarante, não havia dúvidas que o navio Cosmonauta Iuri Gagarin estava no mar territorial brasileiro para monitorar e rastrear o lançamento do foguete adquirido pelos alemães.

Ele afirmou que após a localização visual do navio, ocorreu uma primeira passagem para fotografias e depois os P-15 Neptune da FAB realizaram voos rasantes “raspando as antenas e o mastro do navio soviético”. A tripulação do Iuri Gagarin prontamente acelerou as máquinas e deslocou a nave para fora de nossas águas territoriais, em uma direção que o conduzia a região do Arquipélago de Fernando de Noronha. O coronel Paulo Henrique chegou mesmo a apresentar fotografias do navio espião à imprensa.

Foi divulgado que no dia 6 de março os P-15 Neptune retornaram a missão de buscas ao navio Cosmonauta Iuri Gagarin, em uma operação que durou mais de cinco horas, alcançando uma área de 900 milhas náuticas de patrulha, incluindo Fernando de Noronha. Foi utilizado constante busca por radar, seguiram a bordo cinegrafistas para registar a presença da nave, mas o grande navio não voltou a ser localizado.

Para os militares brasileiros o lançamento do foguete Black Brant 5C e a parceria teuto-brasileira não tinha nada de secreto. Tanto que as atividades na Barreira do Inferno eram amplamente divulgadas, até como forma de mostrar que o governo militar era atuante e tecnologicamente moderno. Deduziu-se que a presença do navio Cosmonauta Iuri Gagarin, violando as novas águas territoriais brasileiras e arriscando um possível problema diplomático, era um claro aviso aos alemães que os soviéticos estavam plenamente atentos as suas atividades aeroespaciais, ocorressem elas onde ocorressem.

Fonte – Arquivo Nacional.

Esta situação de bisbilhotagem eletrônica entre a extinta União Soviética e os países ocidentais eram ações mais do que corriqueiras durante a chamada Guerra Fria. Eles se xeretavam mutuamente na tentativa de descobrir os avanços tecnológicos dos inimigos e muitas vezes estas ações serviam para mostrar ao adversário que o outro lado estava atento e alerta.

Nós brasileiros é que não estávamos acostumados com este tipo de coisa.

A Visita das Baleias

Serguei Mikhailov, o então embaixador soviético no Brasil na época, negou qualquer declaração à imprensa por parte daquela representação diplomática e não sei se o Itamaraty chegou a emitir alguma nota de desagravo. Desconheço se o caso teve maiores desdobramentos diplomáticos.

Apesar de alguns atrasos devido à chuva, exatamente as 7h32m53s da manhã do dia 8 de março de 1972, o foguete Black Brant 5C foi lançado da Barreira do Inferno em direção ao sol.

O artefato alcançou 230 km de altitude e precisamente 10 minutos e 15 segundos após o lançamento, a sua carga útil de equipamentos eletrônicos de medição tocou o Oceano Atlântico a 15 milhas náuticas (28 km) da corveta da Marinha. Já os P-15 Neptune da FAB localizaram visualmente a cápsula no mar e apoiaram a chegada do navio da marinha brasileira.

Fonte – Arquivo Nacional.

Os militares da FAB não avistaram o navio Cosmonauta Iuri Gagarin novamente, mas informaram que foram visualizadas duas graciosas e grandes baleias próximas ao artefato aeroespacial. Consta que os cetáceos se mostraram completamente indiferentes com a presença humana no seu território, com as tolas diferenças ideológicas dos homens e com seus brinquedinhos tecnológicos.

Dias Atuais

Ao longo dos anos a Barreira do Inferno continuou a exercer com dignidade a sua missão, mas o crescimento de Natal ligou o sinal de alerta para os militares brasileiros. Um acidente com um foguete que por ventura caísse na área urbana da capital potiguar, carregado de combustível altamente inflamável, seria uma catástrofe. Nesse sentido os militares passaram a desenvolver uma base de lançamento na região do município maranhense de Alcântara, onde continuam as pesquisas espaciais do nosso país.

Fonte – Arquivo Nacional.

Já faz tempo que o povo de Natal não olha mais para o céu e observa interessantes rastros espiralados de fumaça branca, que muitas vezes marcavam grandes extensões do firmamento, as rádios locais já não transmitem o bordão “Capital Espacial do Brasil” e tudo isso ficou na memória dos natalenses. Hoje é tudo tão ligado a memória, que até um museu foi criado próximo a entrada da Barreira do Inferno.

As últimas notícias que tive em relação a essa base informam que muito do pessoal ali lotado foi transferido para a Base Aérea de Parnamirim e não se sabe o que exatamente a FAB fará com aquele local.

Mas uma coisa é certa, seja lá o destino que a Barreira do Inferno venha a ter, esse local jamais vai deixar de fazer parte da história potiguar e quem viu aqueles foguetes nos céus de Natal jamais esquecerá aqueles momentos.

Todos os direitos reservados.

É permitida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.

A HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA DE JUDEUS QUE FUGIU DAS PERSEGUIÇÕES EM SUA TERRA E VIERAM PARA A CIDADE DE NATAL PARA VIVER EM PAZ

E A ESTRANHA SITUAÇÃO DOS NATALENSES NO SÉCULO XXI, QUE BUSCAM AS SUAS ANTIGAS RAÍZES JUDAICAS PARA FUGIR DA ATUAL E CRESCENTE VIOLÊNCIA EM SUA TERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Nos últimos anos no Rio Grande do Norte é notório que várias pessoas buscam ardentemente nas histórias dos seus antepassados uma pretensa ligação com a fé judaica.

Isso é bem interessante para quem vive no Rio Grande do Norte.

Pois esse é um Estado onde é perceptível que a sua classe dirigente (de todas as orientações ideológicas) pouco se importa com os temas ligados à nossa cultura e a nossa própria história. São dirigentes que pouco sabem e pouco utilizam como ferramentas positivas para o crescimento da cidadania potiguar as nossas interessantes e ricas manifestações culturais, ou dos fatos ligados ao nosso passado. Dito isso, é inegável que essas buscas individuais por uma pretensa “Raiz judaica” chamam a minha atenção.

Percebi que esse movimento de potiguares em busca da “Estrela de Davi” se tornou tão intenso, que ao publicar algumas postagens relacionadas com esse tema no “TOK DE HISTÓRIA”, todas tiveram muita procura e intensa visibilidade.

A Estrela de Davi na mais antiga cópia completa sobrevivente do texto massorético, o Códice de Leningrado, datado de 1008 – Fonte – https://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/788679/jewish/Star-of-David-The-Mystical-Significance.htm

Busca Da Fé?

Tal como o autor desse texto, cujos antepassados imigraram do Velho Mundo para viver em solo potiguar no início do século XVIII, muitas das pessoas que buscam suas “Raízes judaicas” possuem histórias semelhantes em relação aos seus antepassados.

Soldados romanos carregando os despojos das guerras judaicas – Fonte – http://www.bible-history.com/archaeology/rome/arch-titus-menorah-1.html.

Mesmo que já tenha se passado quase três séculos que essas pessoas aqui chegaram para povoar as terras potiguares, mesmo que não exista nenhuma ligação com terra de onde esses antigos vieram, mesmo tendo avós, bisavós e tataravós que nasceram em nosso sertão e debaixo do credo cristão, nos dias atuais muitos insistem e persistem arduamente nessa busca por essa “Estrela Perdida”.

Levado unicamente pela curiosidade, sempre que me encontro com aqueles que desejam se ligar (ou já se ligaram) ao judaísmo através das histórias dos seus antepassados, eu não perco a oportunidade de questionar a razão desse esforço e dessa busca.

Nos diálogos que tive percebi que alguns realmente acreditam nessa antiga ligação religiosa, que levam o tema a sério, estudam e pesquisam bastante os fatos. São pessoas que possuem informes orais que, segundo eles, provam essa ligação de maneira concreta e afirmam que seus antepassados realizavam em datas determinadas certos atos e ações que apontam para essa ligação com a fé judaica. Em meio a certos critérios, percebi que eles possuem pura e simplesmente a fé nessas teses. E sobre fé eu nada comento, apenas respeito!

Mas outros com quem dialoguei, vários inseridos nos setores sociais mais privilegiados da sociedade potiguar, essa busca pouco tem relação com a vontade de realmente se ligar a uma religiosidade praticada pelos antigos. Observei que para essas pessoas, a pretensa descoberta dessas ligações antigas se resume unicamente em conseguir determinados mecanismos que lhes facilitem a conquista de um passaporte estrangeiro para imigrar para outro país.

Pude notar que para esses que buscam suas “Raízes judaicas” como forma de facilitar sua saída do Brasil, várias são as razões pessoais para realizar esse tipo de projeto. Entretanto houve uma unanimidade nesses diálogos – A existência da violência urbana em Natal como principal motivador dessa mudança.

Ouvi repetidamente que “Natal está muito violenta”, que tem “Muito medo de viver em Natal”, ou medo de “Criar filhos em um lugar tão violento” e um até me disse que “Valia a pena até virar judeu para ir embora”.

E é verdade. Faz tempo que a capital potiguar deixou de ser o lugar idílico, calmo e tranquilo que conheci na minha juventude.

Protesto na Praia de Ponta Negra, em Natal, em 2017. O belo cartão postal da capital potiguar virou um “cemitério” em protesto por número de homicídios no Rio Grande do Norte naquele ano – Fonte – Reprodução/Inter TV Cabugi – https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2019/06/05/rio-grande-do-norte-tem-a-maior-taxa-de-homicidios-de-jovens-do-brasil-diz-atlas-da-violencia.ghtml

A nossa violência urbana, igualmente comum em outras grandes cidades brasileiras, por aqui avançou (e avança) de forma contundente e intensa. Muitas são as razões para esse fenômeno, sendo claro que as fortes desigualdades econômicas e sociais amplificadas nas últimas décadas, muito contribuíram para essa terrível mudança. Mas foi (e ainda é) algo tão forte, tão avassalador, que mudou totalmente nossos hábitos de convivência e de agir no dia a dia. E não posso esquecer que nas nossas periferias continuam a ser assoladas por uma matança incrível e cotidiana, onde os maiores atingidos são principalmente os jovens pobres e negros.

Pastores judeus da Bessarábia – Fonte – https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00279.html

Foi quando percebi que essa situação contemporânea envolvendo potiguares, possui uma certa relação com os judeus membros das famílias Mandel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, que devido a violência contra a fé judaica na Bessarábia, deixaram a sua terra na primeira metade do Século XX para encontrar na cidade de Natal aquilo que muitos atualmente sentem que perderam – Paz e tranquilidade para viver e crescer.   

Uma Região Intensa e Complicada

Possuindo uma área de 45.630 km², pouco menor que o estado do Espírito Santo, a Bessarábia fica localizada na Europa Oriental e na atualidade dois terços dessa região se encontram na República da Moldávia e uma pequena parte na República da Ucrânia. Mas no início do século XIX sua área era um principado vassalo aos turcos otomanos, que passou ao Império Russo através de negociações.

Em 1856, após a Guerra da Criméia, a Bessarábia fez parte de uma Moldávia independente, causando a perda do Império Russo acesso ao rio Danúbio, situação a qual não se conformaram. Através de negociações e ameaças, a região voltou para o domínio dos Czares em 1878. Mas em 1917, em meio a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, a Bessarábia passou a fazer parte do então Reino da Romênia, cujas tropas invadiram a região em troca da passagem livre das tropas alemãs para a Ucrânia. O governa da recém criada União Soviética não se conformou com a situação e passou a considerar essa área como sua, além de se colocava politicamente favorável a retomá-la, a força se necessário. 

Até esse período, pelas idas e vindas em sua história, dá para perceber que a Bessarábia viu muita coisa acontecer, principalmente o sangue da sua gente derramado em várias guerras. E os judeus que lá viviam estavam sempre propensos a sofrerem com essa volatilidade política, mesmo vivendo nessa região ha séculos.

Os Judeus se estabeleceram na Bessarábia no século XV, formando comunidades mais ou menos numerosas. Com o tempo começaram a participar ativamente do comércio local, tornando-se conhecidos pela fabricação de bebidas alcoólicas. Um censo realizado em 1900 apontou que viviam na Bessarábia 1.935.000 pessoas, sendo 219.000 judeus. Eles dividiam esse espaço com romenos, russos, ucranianos, búlgaros, povos de origem turcas e minorias de origem grega e alemã. Provavelmente nesse período ali viviam os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband.

Segundo um conjunto de fichas que classificaram os estrangeiros residentes em Natal, produzidas pelo Departamento de Segurança Pública em 1937 e atualmente guardada no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, descobri que dezesseis judeus, dessas seis famílias comentadas, vieram da Bessarábia e desembarcaram no Brasil entre 1912 e 1935. A maioria dessas pessoas inicialmente desembarcou em outras capitais brasileiras, para depois seguirem em momentos distintos para Natal. Eram homens e mulheres com idades variando de 61 a 19 anos, vindos das cidades de Secureni e Ataki, localizadas a nordeste da Bessarábia e distantes apenas 28 quilômetros uma da outra.

Historicamente os judeus que viviam na região de Secureni, onde consegui melhores informações, viviam do pequeno comércio, plantavam tabaco e beterraba, derrubavam e vendiam madeira, tinham moinhos de farinha e negociavam com cavalos, ovelhas, frutas e vegetais. Entre eles também haviam carpinteiros, sapateiros, peleteiros, serralheiros e outros profissionais.

Se no início do século XX essas duas cidades faziam parte da Romênia, atualmente Secureni, hoje chamada Sokyryany, fica no Condado de Chernivsti, na Ucrânia, ao lado da fronteira da República da Moldávia, onde a poucos quilômetros se encontra a antiga Ataki, atual Otaci.

Perseguições

Na primeira metade do século XIX, os judeus que viviam na Bessarábia não estavam sujeitos a perseguições dos russos. Mas em 1835, quando essa região estava gradualmente começando a perder sua autonomia e as ações de maior fortalecimento da população russa se multiplicaram, as leis antijudaicas começaram a ser aplicadas na Bessarábia, com a criação de vários decretos que tornaram a vida deles bastante complicada.

Judeus começaram a ser segregados nas grandes cidades, proibidos de estudar, impedidos de possuir propriedades e ainda exilados e isolados em pequenas aldeias espalhadas pela Europa Oriental.

As sociedades europeias da época possuíam um grande número de judeus integrados, participando até mesmo das esferas políticas, militares, econômicas e intelectuais. Apesar disso existiam fortes correntes antissemitas, de raízes religiosas ou não, na opinião pública europeia da época. Entre os cristãos europeus mais devotos, os judeus eram considerados como os “Algozes de Jesus” e outro tipo de preconceito bastante forte era o de ordem econômica. Diante desse quadro, não demorou para à situação dos judeus na Bessarábia piorar.

Macabro resultado do Primeiro Progrom de Chisinau em 1903.

Em 6 a 7 de abril de 1903, na cidade de Chisinau, atual capital da Moldávia, durante o Pessach, a Páscoa judaica, habitantes locais foram incentivados por autoridades do Império Russo para organizarem um “pogrom”, ou seja, uma série de ataques massivos, espontâneos contra os judeus, caracterizado por assassinatos, espancamentos, assédio, destruição de casas, de negócios, templos religiosos e outros ataques violentos. 

O chamado Primeiro Pogrom de Chisinau deixou 49 judeus assassinados, entre estas várias crianças. Cerca de 500 pessoas ficaram feridas, 1.500 casas e lojas judias foram parcialmente ou totalmente destruídas e 2.000 famílias judias ficaram desabrigadas.

Este pogrom abalou a população judia do Império Czarista e marcou uma virada na opinião pública judaica e mundial. Isso foi seguido por um novo aumento nas ondas de emigração de judeus da Europa Oriental para os Estados Unidos e para à Palestina.

O Presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt chama a atenção do Czar da Rússia Nicolau II para o massacre de Chisinau.

Uma das consequências desse ataque foi a vinda de 267 judeus da Bessarábia, distribuídos em 37 famílias, para formar uma colônia agrícola no Brasil, que ficou conhecida como Colônia Philippson. Eles chegaram em 18 de outubro de 1904 para ocupar uma área de 4.472 hectares, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 

Mas não demorou e os judeus da Bessarábia levaram uma segunda dose de violência. Entre 19 e 20 de outubro, novamente em Chisinau, ocorreu um segundo progrom, com 19 mortos. Dessa vez o número de vítimas foi menor porque os judeus resistiram em algumas áreas e chegaram a matar alguns atacantes. Já na área das cidades de Secureni e Ataki não ocorreram ataques dos russos, mas o medo passou a ser a tônica do dia a dia desses judeus, que poucos anos depois começariam a imigrar para Natal.

Monumento na Moldávia em honra aos que morreram nos progroms realizados na Bessarábia.

Logo a região da Bessarábia, conforme comentamos anteriormente, passou a ser dirigida por autoridades do atualmente extinto Reino da Romênia. Isso criou a ideia que as perseguições diminuiriam, mas não foi assim que aconteceu.

Os judeus que viviam na cidade de Secureni tinham relações estáveis ​​com seus vizinhos, mas sofriam com a atitude dos agentes do governo. No final de 1921, na véspera do Yom Kippur, judeus andando nas ruas foram presos, muitos homens, mulheres e crianças foram retirados à força de suas casas e levados para um campo fora da aldeia, onde foram vigiados por guardas armados e montados em cavalos. Depois da meia-noite, em meio a muito frio, o Chefe da Polícia, outros policiais e um médico indicado pelo governo vieram ao campo. Queriam prender dois refugiados que haviam cruzado um rio das proximidades e seriam espiões russos. Ameaçaram que no caso de não encontrar os dois homens, eles deportariam todos da aldeia. Os soldados abusaram dos judeus, mas como não encontraram os dois elementos desistiram da ação e todos voltaram para casa.

Parece que com essa perseguição (e talvez outras mais), associado a notícia da mudança de judeus da Bessarábia para o Brasil, tornou atrativa a ideia de alguns judeus das cidades de Secureni e Ataki mudarem para o nosso país. Pois a maioria dos judeus que vieram dessa região para viver em Natal, partem da Bessarábia na primeira metade da década de 1920.

Chegada ao Novo Mundo

Ao tentarmos cruzar informações disponíveis na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, com os dados que possuímos sobre os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, são poucas as informações conseguidas. Mas foi possível traçar o caminho de uma dessas famílias através do tempo e perceber, mesmo limitadamente, como se desenvolveu sua mudança para Natal e sua vida posterior.

RMS Andes – Fonte – http://www.naval-history.net

No dia 21 de junho de 1926, ao meio dia, o vapor inglês RMS Andes, da Royal Mail Steam Packet Company, conhecida no Brasil como Mala Real Inglesa, lançou âncora em frente ao farol da barra do porto de Recife. Havia zarpado 15 dias antes do porto de Southampton (Inglaterra), com escalas em Cherbourg (França), Vigo (Espanha) e Lisboa (Portugal).

Em Recife desembarcaram 22 passageiros, entre eles o jovem casal Samuel e Bertha Axelband, ele com 24 e ela com 19 anos de idade e sem filhos. Mas os tramites burocráticos do casal na alfandega só foram resolvidos um dia depois, uma terça-feira. A razão provável foi um grande bafafá ocorrido na repartição, inclusive noticiado nos jornais, em decorrência da prisão do comerciante judeu Alexander Gurewitz. Este pretendia embarcar no mesmo RMS Andes para o Rio de Janeiro, mas teve a sua partida sustada por dois oficiais de justiça e policiais, que cumpriram um mandato expedido pelo juiz Adolpho Cyriaco, a pedido da Sra. Sophia Goldel, também judia e sua credora. (Diário de Pernambuco, 22/06/1926, págs. 2 e 4).

Certamente na capital pernambucana o casal recebeu apoio da comunidade judaica, que era relativamente numerosa e atuante. Mas, por alguma razão, eles não permaneceram em Recife. Provavelmente Samuel deve ter trabalhado como mascate, profissão que abria contatos e horizontes e era a atividade muito comum entre os judeus desembarcados Brasil vindos da Europa Oriental.

Uma situação normal para todos estrangeiros e imigrantes no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial – Todos seus deslocamentos em aeronaves eram monitorados pelo DOPS. Isso ocorria independentemente de raça, origem, credo, etc. O interessante é que esse material normalmente traz boas informações de pessoas que são alvo de pesquisas históricas.

Talvez como fruto de suas andanças, vamos ter notícias dos Axelband sete anos depois de desembarcarem em Recife. Uma nota afirma que Samuel Axelband era um comerciante em São Luís, no Maranhão, e divulgava o aniversário do seu filho Aron (O Imparcial, 07/03/1933, pág. 2). Mas seja lá o tipo de comércio que Samuel tinha nessa cidade, aparentemente ele não durou muito, pois quatro anos depois seu nome consta no prestigiado Almanak Laemmert (Ed. 1937, pág. 1.376) como sendo proprietário da alfaiataria “A Carioca”, na Rua Simplício Mendes, no Centro de Teresina, Piauí, uma rua com várias alfaiatarias. Nesse negócio Samuel aparentemente tinha uma sociedade com uma pessoa de sobrenome “Luz”, mas não obtive maiores informações.

É provável que essa informação não seja totalmente correta. Não no sentido que Samuel Axelband e sua família viveram em Teresina, mas na data. Pois é conhecido que os nomes listados no Almanak Laemmert perduravam por anos nas novas edições desse almanaque, gerando informações equivocadas. Até porque a família Axelband já vivia em Natal em janeiro de 1938.

Imigrante de Sucesso

O Censo demográfico de 1940 apontou Natal com 109 judeus e, segundo Câmara Cascudo (Ver o livro História da Cidade do Natal, 1999, IHGRN, pág. 389) sua sinagoga havia sido fundada em 12 de janeiro de 1919, um domingo, quando a pandemia de Gripe Espanhola se encaminhava para seu final. É provável que a existência dessa comunidade judaica e o fato de prováveis parentes de sua esposa, cujo sobrenome de solteira era Mandel, já viverem e comerciarem em Natal, tenha influenciado Samuel Axelband a viver nessa parte do Brasil.

Não sabemos como seu deu a chegada dessa família em Natal, qual negócio Samuel montou primeiramente e nem como se deu sua relação com a comunidade judaica e com a população local. Mas sabemos que quem se destacou em sua família na cidade por essa época, foi a sua filha Riva Axelband, que começou a chamar atenção do maestro Waldemar de Almeida como exímia pianista e logo a jovem realizava apresentações para a sociedade local. Como na 19ª audição do “Curso Waldemar de Almeida”, ocorrida em 31 de janeiro de 1938 no Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão. No seu piano marca Albert Schmölz, Riva tocou a “Mazurca” opus 24 n. 1, do polonês Frederic Chopin e nos anos seguintes outros recitais se repetiriam.

Temos a informação que Samuel Axelband fundou, em data desconhecida, uma loja chamada “Casa Glória”, especializada em artigos masculinos, no bairro da Ribeira, na Rua Dr. Barata, número 205. Ao lado da sua loja havia o comércio de um outro judeu, era a “J. Mandel & Cia”, um parente de sua esposa.

Bairro da Ribeira, em Natal, na época da Segunda Guerra.

Provavelmente Samuel percebeu claramente a grande possibilidade de negócios que ocorreria com a Segunda Guerra Mundial e a presença de tropas americanas na capital potiguar em Natal. Logo seu negócio prosperou enormemente, ao ponto de fundar na Rua Chile, número 240, em frente a atual Capitania dos Portos, uma movelaria chamada “Progresso”.

Segundo o livro Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff (Pág. 53, Rio de Janeiro, 1984), 30 dias após a morte de Franklin Delano Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos, houve na sede do Centro Israelita de Natal (CEN), no centro da cidade a cerimônia dos trinta dias de falecimento, que na fé judaica se denomina Shloshim. O ato foi realizado pelo Rabino Baum e contou com a presença de militares americanos judeus. Também estiveram presentes vários judeus que moravam em Natal, entre eles Samuel Axelband. 

Após o fim da guerra, como fizeram quase todos os judeus que viviam em Natal, os Axelband partiram da cidade nordestina que lhes deu tranquilidade para viver, mas que depois da Segunda Guerra e da partida das tropas estrangeiras, tinha pouco em termos econômicos a oferecer. Samuel foi viver em Recife, onde manteve uma representação de relógios.

Não sabemos quando sua existência findou nesse plano existencial e nem o que ocorreu com a sua família, mas sua trajetória e sua história no Brasil, especialmente em Natal, apontam para uma história de sucesso de um imigrante judeu da Europa Oriental que, mesmo recebendo apoios de pessoas da mesma religião, claramente mostra como essas pessoas desse grupo minoritário podiam viver tranquilos em Natal e no Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX, sem o perigo dos progoms e das perseguições religiosas.

Cada um tem o direito acreditar na religião que quiser. Isso é uma situação de foto íntimo. Mas não deixa de ser um tanto irônico que em Natal, na segunda década do século XXI, na era do “futuro”, vários de seus cidadãos que não nasceram judeus, se voltem para suas pretensas “Raízes judaicas” para migrar de uma violência que anualmente crescer no número de assassinatos.

JHJHJHKJKH

Livros – História da Cidade do Natal, Câmara Cascudo, 1999, IHGRN, pág. 389.

Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff, 1984.

Internet – https://kehilalinks.jewishgen.org/philippson/index.html

https://www.apusm.com.br/2014/09/fazenda-phillipson-os-114-anos-da-imigracao-judaica-em-santa-maria/

https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00382.html

https://en.wikipedia.org/wiki/Bessarabia

https://ro.wikipedia.org/wiki/Istoria_evreilor_din_Republica_Moldova

NO TOK DE HISTÓRIA PODEM SER ENCONTRADOS ESSES TEXTOS SOBRE ASSUNTOS LIGADOS A JUDEUS.

PARA NUNCA SER ESQUECIDO – AUSCHWITZ: IMAGENS DE ONTEM E DE HOJE

O MITO SOBRE A ORIGEM DE SOBRENOMES DE JUDEUS CONVERTIDOS

OS CRIPTO JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS EM NATAL – A SAGA DOS PALATNIK

A HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS SEM SABER

LEI PODE DAR CIDADANIA A BRASILEIROS DESCENDENTES DE JUDEUS

DIÁSPORA: DESCUBRA COMO OS JUDEUS SE ESPALHARAM PELO MUNDO

https://tokdehistoria.com.br/2014/03/23/sobrenomes-de-judeus-expulsos-da-espanha-em-1492-veja-se-o-seu-esta-na-lista/

A EXPULSÃO DOS JUDEUS DE PORTUGAL

A MARCHA REVOLUCIONÁRIA DE CLETO CAMPELO PELO AGRESTE DE PERNAMBUCO

Rostand Medeiros – Escritor e Pesquisador.

O tenente Cleto Campelo.

Antecedentes

Durante os conturbados anos 20 do século passado, ocorreram inúmeras agitações políticas que abalaram o então agrário Brasil. Entre estes movimentos, o que ficou conhecido como Tenentismo marcou aquele período. Tendo se caracterizado pelas críticas destes jovens oficiais militares às instituições republicanas e às condições da sociedade brasileira da época. Os tenentes defendiam a modernização econômica do país e combatiam a corrupção política. Com o endurecimento do governo federal em relação ao tenentismo, remanescentes da malfadada Revolução de 1924 e dissidentes do Rio Grande do Sul, uniram-se e seguiram em uma coluna de combatentes para o interior do país, defendendo reformas políticas e sociais e lutando para depor o governo do presidente Artur Bernardes (1922-1926).

Sempre conseguindo vitórias, a coluna revolucionária combateu forças regulares e milícias privadas de fazendeiros. A Coluna empregava táticas de guerrilha, possuía um número de combatentes que chegava em média a cerca de 1.200 homens, acompanhado de algumas mulheres e sendo chefiados por Miguel Costa, Siqueira Campos e Luís Carlos Prestes. Conforme a coluna avançava, muitos eram os insatisfeitos militares de baixa patente, que conspiravam pelo Brasil afora para se unir a Coluna, esperando levantar as populações rurais injustiçadas, se possível levando combatentes, armas e provisões para o grupo revoltoso. Um destes idealistas foi o recifense Cleto Campelo e esta é a sua esquecida saga.

O Revolucionário

Cleto da Costa Campelo Filho nasceu em 29 de dezembro de 1898, era filho de um contador e uma dona de casa, onde desde cedo demonstrou vocação pela carreira militar. Em 1913 ingressou no 4º Batalhão de Infantaria, no Recife, de onde partiu para cursar a Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, concluindo o curso em 1916. Ao sair da Academia retorna a capital pernambucana para servir como aspirante no 21º Batalhão de Caçadores. Vale ressaltar que este batalhão seria anos depois transferido para Natal, onde dentro desta unidade militar, iria eclodir a Intentona Comunista de novembro de 1935 na capital potiguar.

Pernambuco, Recife particularmente, era um fervente caldeirão de exaltações partidárias. O então comando do exército brasileiro na região, a 6ª Região Militar, também não ficava alheia às lutas das facções. Cleto Campelo, então 2º tenente, sempre se interessou pela política de seu tempo, onde acabou entrando em choque contra pessoas ligadas ao grupo dominante da poderosa família Pessoa de Queiroz. Fora então transferido, em maio de 1922, para o 6º Batalhão de Caçadores, sediado em Goiás. Inconformado, na passagem pelo Rio de Janeiro, concede uma entrevista ao jornal “Correio da Manhã” e por isso ficou preso por 30 dias na Fortaleza de Santa Cruz.

Dois anos mais tarde, já promovido a 1º tenente, Cleto Campelo retornou a Recife e ao 21º batalhão de Caçadores, mas estava marcado como revolucionário. É deste período à foto acima, onde vemos a oficialidade do 21º Batalhão de Caçadores. Cleto Campelo é o segundo oficial, em pé, posicionado da direita para a esquerda. Repare a sua face tranquila, confiante e como se coloca encarando a objetiva. Outro detalhe que chama a atenção, não sei se proposital, é como os outros oficiais se encontram afastados deste militar, posicionando-se a certa distância, como evitando uma possível ideia de associação por parte de algum observador.

Sempre solidário aos que lutava contra o governo, ele acompanhava os avanços da coluna revoltosa pelo interior do Brasil e procurou aliciar alguns camaradas nos quartéis da capital para se unir aos revoltosos.

Nada conseguiu e desertou. Preferiu destruir a carreira a sacrificar as aspirações. Partiu para a Argentina para se unir a militares brasileiros no exílio, receber ordens, montar planos, conseguir apoio e conspirar novamente em Pernambuco. Voltou clandestinamente no início de 1926, em aventurosa viagem, onde até foguista se tornou em navio costeiro. Tinha ordens de preparar o levante que apoiasse e servisse de suporte à coluna rebelada, quando esta cruzasse o sertão pernambucano.

A Descoberta do Plano e o Início da Revolta

Após ter atravessado o Rio Grande do Norte, invadindo as cidades de São Miguel e Luis Gomes e perpetrar um verdadeiro massacre na cidade de Piancó, na Paraíba, a Coluna Prestes chegou a Pernambuco no dia 2 de fevereiro de 1926, entrando pelo Vale do Pajeú.

No Recife, entre os mais destacados participantes da rebelião de Cleto Campelo estava Anfilóquio Cavalcante. Este mantinha um arsenal na Rua Alecrim, nº 105, o que levou pânico a sua família, tendo o seu cunhado, o alfaiate José Pedro da Silva denunciado as autoridades à existência do armamento. Alguns conspiradores foram presos e o levante no Recife fracassou.

Avisado do fato Cleto Campelo não desistiu do plano e conseguiu fugir para Jaboatão. Às 4 da manhã do dia 17 de fevereiro, em pleno Carnaval, deu início ao seu plano junto com 25 companheiros. O grupo tomou de assalto a cadeia pública, libertaram os prisioneiros, prenderam os policiais e cortaram as linhas telefônicas para o Recife. Após isso requisitaram o dinheiro das coletorias de rendas e dos correios, saquearam algumas casas comerciais e tomaram as oficinas da empresa ferroviária Great-Western. Nesta empresa apossaram-se da munição que existia na estação ferroviária, tomaram o trem de passageiros e descarrilaram os vagões que não precisavam utilizar. Alguns operários da Great-Western decidiram integrar o movimento.

O Caminho para o Agreste.

Marcha de um trem em direção ao agreste pernambucano.

Seguiu viagem pela então Ferrovia Central, onde iniciaram a tentativa de alcançar o Rio São Francisco, na região da cidade de Floresta, ainda em Pernambuco, onde se encontrava uma parte da Coluna comandada pelo tenente João Alberto Lins de Barros.

Durante o trajeto, os revoltosos realizaram paradas sucessivas em Moreno, Tapera, Vitória de Santo Antão e São José dos Pombos.

Em Vitória de Santo Antão, o grupo parou a composição na estação da fazenda Mufumbo, próximo à área urbana, para onde seguiram a pé. Nesta cidade tornaram a destruir o telégrafo, a soltarem os presos, a prenderem os policiais e tomar suas armas.  Almoçaram no Hotel Fortunato e seguiram em frente, procurando antes destruir a linha férrea na ponte sobre o Rio Tapacurá. O grupo então já passava de 80 homens, todos com lenços vermelhos ao pescoço.

Muito chamou a atenção das testemunhas o trato cordial do comandante com a atônita população, sempre passando “recibos revolucionários” de tudo que requisitava e que não fosse do governo. A sua liderança junto aos seus homens crescia a cada momento.

Ao chegarem próximos ao 1º túnel da encosta da Serra da Borborema, os revoltosos dinamitaram um pontilhão em uma curva e danificaram o túnel nº 7, cortando a linha férrea.

A Luta em Gravatá e a Morte de Cleto Campelo

Por volta das 16 horas se aproximaram de Gravatá, onde o comandante sabia que haveria resistência. Afinal, depois de 14 horas e meia do ataque a Jaboatão, o governo já tivera tempo de organizar uma tropa entrincheirada na estação ferroviária. Cleto Campelo ordenou ao maquinista Saturnino que diminuísse a marcha da máquina e entraram lentamente na cidade, que aparentava estar desabitada.  A composição seguia lenta entre as ruas e praças da cidade,  parou a trezentos metros da estação, próximo a cadeia pública e o tiroteio começou.

Antiga Cadeia Pública de Gravatá, atualmente uma biblioteca e museu.

Segundo historiadores pernambucanos, Cleto Campelo arremeteu a frente do grupo contra o edifício da cadeia, cabeça erguida, de revólver na mão, acompanhado de perto do engraxate Ezequiel, neste local jogou uma dinamite, que produziu aterradora explosão. Ao sair do prédio, segundo alguns, inadvertidamente o foguista da composição, Artur Cipriano, abriu fogo contra Cleto Campelo e Ezequiel e ambos foram mortos.

Foto do cadáver de Cleto Campelo

Segundo outros foram tiros efetuados da trincheira legalista mataram os dois revoltosos. O certo é que esta derrota trouxe grande  desgosto para os revoltosos, o pânico tomou conta da tropa e começou a desistência de vários componentes. O agora comandante tenente Valdemar Paula de Lima dominou a situação e convenceu parte do grupo a voltar ao trem e seguir em frente. Valdemar Lima era pernambucano de Recife, fora sargento da marinha e era conhecido como “Tenente Limão”.

Uma das muitas fotos do cadáver do Tenente Cleto, publicada pelos jornais recifenses. Certamente com isso o governo federal desejava mostrar aos militares rebeldes que a mesma situação poderia ocorrer com os participantes de novas rebeliões militares tornassem a acontecer.

Três quilômetros depois de Gravatá, no quilometro 91, no lugar conhecido como “Curva da Caatinga Vermelha”, as margens do Rio Ipojuca, o militar revolucionário ordenou ao maquinista desligar a locomotiva da composição e deixasse a máquina seguir sozinha em direção a cidade de Bezerros. No povoado denominado Gonçalves Ferreira, as tropas do 20º Batalhão de Caçadores assistiram o descarrilamento desta maquina solitária.

Movimentação popular diante da Cadeia Pública de Gravatá, após os combates entre legalistas e a tropa rebelada de Cleto Campelo.

Valdemar de Lima, Comandante

Após deixar o trem, aproveitando a noite que surgia, outros rebeldes fugiram, ficando Valdemar com apenas 30 companheiros. Sem condições de seguir adiante, o grupo desistiu da intenção de chegar ao Rio São Francisco, eles se apossam de cavalos e fogem rumo norte, mata adentro, para o município de Vertentes, de onde pretendiam fugir para o vizinho Estado da Paraíba.

Valdemar sabia das dificuldades que enfrentava para sobreviver, pois estava cercado pela polícia com ordens para matar e na Paraíba pretendia dispensar a tropa.

Antiga estação ferroviária de Gravatá.

Segundo alguns historiadores, Valdemar tinha um contato junto ao fazendeiro Pessoa Monteiro, para onde seguiu em direção a fazenda deste. Lá chegando, ao amanhecer do dia 19 de fevereiro, o grupo teve abrigo e comida. Pessoa Monteiro ofereceu os serviços do seu morador, Manuel Botelho, para servir de guia até a Paraíba. Mais tranquilo Valdemar relaxou na segurança e colocou o grupo para descansar. Só seguiriam viagem na manhã do dia 22

O Combate Final

O fim definitivo do grupo revoltoso de Cleto Campelo, segundo uma teoria existente, teria ocorrido porque o morador Manoel Botelho teria informado ao coronel Francisco Heráclio do Rego, chefe político da cidade pernambucana de Limoeiro, da presença dos revoltosos. Para não seguir com o grupo, Botelho teria alegado um problema de saúde e colocando outro morador, o senhor Amaro Jerônimo, conhecido como “Pai-né”, como novo guia.

O chefe político avisa o sargento legalista José Joaquim, que acompanhado de um grupo de soldados, seguiu margeando o Rio Capibaribe, até o ponto de travessia da fazenda Pitombeira, bem perto do povoado de Topada, pertencente na época ao município de Vertentes e atualmente ao município de Frei Miguelinho. O sargento José Joaquim e seus comandados, estrategicamente montaram uma emboscada por trás de algumas pedras graníticas, ficando muito bem protegidos, com as armas à espera da tropa revoltosa.

Fim do grupo de Cleto Campelo, com a morte de Valdemar Lima – Fonte – Arquivo Público do Estado de Pernambuco.

Os revoltosos, durante o trajeto para a Paraíba, estavam tranquilos e aparentemente não tomaram as precauções devidas. Na hora em que iam atravessando o Rio Capibaribe, receberam muitos tiros vindos dos esconderijos dos policiais. O tenente Valdemar Lima, sem ver seus inimigos, foi o primeiro que caiu do cavalo, morrendo imediatamente. Dois soldados também caíram sem vida, um outro soldado recebeu ferimentos leves e o senhor Amaro Jerônimo foi atingido, ficando esses dois últimos sem condições de correr. O resto da tropa, sem comando, desertou, fugindo pelo mato adentro.

O soldado ferido foi fuzilado, já o senhor Amaro Jerônimo, depois de provada a sua inocência, foi levado para Vertentes e se recuperou. Os quatro cadáveres foram expostos como troféus na calçada da capela de Topada e em seguida levados com desprezo para serem sepultados no cemitério de Vertentes, sendo os três soldados numa cova só e o tenente em outro lugar, junto à parede do cemitério.

Cadeia Pública de Gravatá em 1917.

Problemas Entre os Legalistas

Após algumas horas da triste ocorrência, chegou a Topada o tenente da polícia pernambucana de nome Zumba, tendo sob seu comando quase 40 soldados e foram ao encontro do sargento José Joaquim e seus quase 20 subalternos. O tenente Zumba foi chegando e se arvorando de herói e o sargento José Joaquim não aceitou aquilo.

Mapa da região de Pernambuco onde se desenrolou o conflito.

A discussão aumentou ainda mais quando o tenente Zumba exigiu do subordinado uma bolsa que continha o dinheiro das coletorias e dos correios. Homem valente e obediente, o sargento José Joaquim entregou a referida bolsa com um montante avaliado em 32 contos de réis, uma fortuna para época. O tenente Zumba duvidou que o valor total estava no bisaco e por muito pouco o tempo não fechou entre os policiais. Para maior irritação do sargento José Joaquim, o tenente tomou o revólver de Valdemar Lima que o sargento desejava guardar como troféu. Na troca de ofensas o sargento acusou o tenente de covarde, comentando que o mesmo, comandando quase 40 soldados acampados em Vertentes e tendo conhecimento da aproximação dos revoltosos, permitiu que o sargento chegasse primeiro para evitar o confronto com os revolucionários. Com o fim da altercação, os militares foram embora e seriam recebidos como heróis em Recife e os mortos foram considerados traidores.

Consequências

Os companheiros sobreviventes do grupo de Valdemar, ajudados por fazendeiros amigos de Pessoa Monteiro, foram ajudados ou obrigaram moradores da região a lhe socorrerem às escondidas. Muitos trocaram as fardas, coturnos, armas e munição do exército por roupas de camponeses, alpercatas e caíram “no oco do mundo”.

Quanto ao pessoal da Coluna revoltosa, que entraria para a história como a ”Coluna Prestes”, ao receberem a notícia do fracasso dos companheiros do Recife, atravessaram o Rio São Francisco com destino ao Sul.

Jornal recifense de 1930, mostrando a mudança em relação a figura de Cleto Campelo, então um herói da Revolução de 1930.

Quatro anos depois, vitoriosa a Revolução de 1930, o Exército veio buscar os restos mortais de Valdemar Lima e dos três soldados no cemitério de Vertentes. Foram prestadas honras militares e foi mudando o nome do povoado de Topada para “Capitão Valdemar Lima”. Cleto Campelo e Valdemar Lima ainda seriam homenageados com seus nomes estampados em ruas e praças em Recife e outras cidades. Contudo, sua saga de idealismo e bravura, seria quase totalmente esquecida.

Este não foi o único combate histórico a ocorrer nas proximidades do antigo povoado de Topada. Ainda em 1914, na fazenda da Laje, próxima a povoação de Olho D’água da Onça, ocorreu o tiroteio entre a volante do então tenente Teófanes Ferraz e o bando de Antônio Silvino, em 27 de novembro de 1914, onde morreria neste combate o cangaceiro Joaquim Moura, conhecido como “Serra Branca” e o famoso chefe cangaceiro seria ferido e capturado, sendo libertado apenas em fevereiro de 1937.

Fontes bibliográfica;

– Aragão, José, in “História de Vitória de Santo Antão”, 2º Volume (1843 – 1982). Biblioteca Pernambucana de História Municipal – CEHM/FIDEM, Recife, 1982.

– Ferraz Filho, Geraldo de Sá Torres, in “Pernambuco no tempo do cangaço (Antônio Silvino – Sinhô Pereira – Virgulino Ferreira ”Lampião”) Theophones Ferraz de Barros, um bravo militar, 1926 – 1933”. 2º Volume , Coleção Tempo Municipal, número 22, Centro de Estudos de História Municipal – CEHM/FIDEM, Recife, 2003.

– Joffily, José, in “Revolta e Revolução – Cinqüenta anos depois”. Editora Paz e terra, Rio de Janeiro, 1979.

– Lins, Alberto Frederico, in “História de Gravatá”. INOJOSA. Recife, 1993.

– Jornal “Vida Rural”, novembro de 2000, autor Severino de Moura.

– Jornal “A Republica”, várias edições de fevereiro e março de 1926. Coleção do APE-RN / Arquivo Público do Rio Grande do Norte.

JÂNIO QUADROS NA PRESIDÊNCIA DO BRASIL – DA ESPERANÇA EM UM SALVADOR DA PÁTRIA, ATÉ A RENÚNCIA NO DIA DO SOLDADO

Jânio da Silva Quadros nasceu no dia 25 de janeiro de 1917, na cidade de Campo Grande, no então estado de Mato Grosso e atual capital do Mato Grosso do Sul. Era filho de Gabriel Quadros e de Leonor da Silva Quadros e foi criado em Curitiba, no Paraná, onde estudou em colégios estaduais. Tempos depois sua família mudou para São Paulo, onde Jânio estudou no Colégio Marista Arquidiocesano e em 1935 ingressou na prestigiada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ou Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma academia que formou nada menos que treze presidentes da república brasileira.

Após a formatura Jânio Quadros montou um pequeno escritório de advocacia no centro da capital em 1943 e depois começou a lecionar em dois colégios. Foi também professor de direito processual penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Jânio da Silva Quadros.

Político de Ascenção Meteórica

Em 7 de maio de 1947, por determinação geral do então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra, ocorreu a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Por isso muitas cadeiras na Câmara Municipal de São Paulo ficaram vagas. Jânio então teria sido um dos suplentes chamados a preencher esses lugares em 1948. Essa versão é contestada por alguns, que afirmam ter sido Jânio Quadros um dos três vereadores efetivamente eleitos pelo PDC.

Independente dessa questão, o certo foi que a ação de Jânio como vereador foi decisivo para projetá-lo na vida política paulista. Ele ficou conhecido como o vereador de todas as casas legislativas do país no período a apresentar a maior quantidade de proposições e projetos de lei, além de discursos. Jânio foi igualmente considerado o vereador que assinou a grande maioria das propostas e projetos considerados favoráveis à classe trabalhadora.

Quadro de votação na época da campanha de Jânio Quadros para preidente.

Com esse currículo logo foi consagrado como o deputado estadual mais votado em São Paulo, com mandato a ser exercido entre 1951 e 1953. Jânio percorreu todo o interior do estado de São Paulo, sempre insistindo na bandeira da moralização do serviço público e pedindo sugestões ao povo para resolver os problemas de cada região.

No início de 1953 a capital paulista assistiu à primeira campanha eleitoral para a prefeitura em 23 anos, desde a Revolução de 1930. Jânio foi lançado candidato do PDC em coligação com o Partido Socialista Brasileiro – PSB, vencendo por larga margem as principais máquinas partidárias locais. Essa vitória foi tida como uma grande façanha, pois Jânio enfrentou bloco formado por oito partidos políticos e um adversário, o professor Francisco Antônio Cardoso, que tinha uma campanha milionária, com uma enxurrada de material de propaganda e com apoio ostensivo das máquinas municipal e estadual. 

Assumiu a prefeitura de São Paulo aos 36 anos e um dos seus primeiros atos foi promover demissões em massa de funcionários, iniciando uma cruzada moralizadora que marcou sua gestão.

De Governador a “Salvador da Pátria”

Ademar de Barros, de chapéu.

Em 1954 Jânio Quadros desincompatibilizou-se do cargo de prefeito para candidatar-se a governador do estado de São Paulo e filiou-se ao Partido Trabalhista Nacional – PTN. Ganhou por uma pequena margem de votos, de cerca de 1%, do grande rival Ademar Pereira de Barros, um político popularmente conhecido pelo bordão “Rouba, mas faz”.

Jânio foi empossado governador em 31 de janeiro de 1955 e durante o seu mandato procurou executar ações que transmitisse uma imagem de moralização da administração pública e de combate à corrupção, aliadas a um empreendedorismo que buscava destaque e projeção.

Uma prática comum do governador Jânio era a das visitas surpresa às repartições públicas, a fim de verificar a qualidade dos serviços oferecidos à população. Outra foi a criação de novos serviços e órgãos estaduais, ou a construção de grandes obras.

Desde o início do seu governo Jânio procurou ampliar seu espaço político no nível nacional, estabelecendo positivos contatos com o potiguar João Café Filho, então Presidente da República. A aproximação entre ambos criou condições mais propícias para o governo paulista realizar um trabalho de recuperação financeira do estado. Tudo isso angariou grande popularidade e consagrou Jânio como um líder entre os paulistas.

Com a chegada do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK,  a Presidência da República, houve um foco muito intenso na criação de uma política desenvolvimentista, que foi realizada através da aplicação do chamado “Plano de Metas” e provocou um grande crescimento em diversas áreas e setores no país. São Paulo foi um dos estados mais beneficiados com a implantação de novas indústrias e a concentração de crédito e essa expansão econômica se refletiu no aumento da receita tributária do estado e na criação de condições favoráveis à diminuição do déficit financeiro herdado dos governos anteriores. Apesar de todas as vantagens que São Paulo usufruiu no governo JK, matreiramente Jânio permaneceu alinhado com a oposição em relação a importantes aspectos da política econômica vigente. E isso foi muito útil ao governador paulista, pois apesar do impulso desenvolvimentista, o governo JK gerou um panorama de forte inflação e crise econômica.

Diante do difícil quadro nacional, o nome de Jânio Quadros começou a surgir como alguém que poderia solucionar os problemas e colocar o Brasil em um bom rumo. Um novo “Salvador da Pátria”.

Jânio em campanha.

No dia 20 de abril de 1959, um grupo reuniu-se na Associação Brasileira de Imprensa – ABI no Rio de Janeiro e fundou o Movimento Popular Jânio Quadros – MPJQ, lançando nessa ocasião a candidatura do ex-governador de São Paulo à presidência da República.

Nove Meses de Campanha: A Vassoura Janista na Caça ao Voto.

O homem do “tostão contra o milhão” chegava ao topo da escalada que o conduziria ao Palácio da Alvorada.

Não que fosse um caminho fácil. O líder que granjeara sua popularidade junto às massas operárias de São Paulo, que quando prefeito da capital paulista chegou mesmo a apoiar a greve de 1953 e, como governador, não adotou atitudes repressivas contra os trabalhadores, via-se agora na contingência de conquistar a simpatia de todos os brasileiros — ricos, pobres, remediados, urbanos, rurais, ignorantes ou letrados.

As vassouras de Jânio em suas campanhas.

O povo delirou quando Jânio deixou bem claro a todos os partidos que o apoiavam a sua posição extremamente personalista e autoritária, alheia as agremiações partidárias, as quais ele ignorava até o desprezo. Conter a inflação e governar acima dos partidos era seu propósito. Sobretudo porque, percebendo a fragilidade das plataformas partidárias do momento, ele podia agir dessa maneira.

O “justiceiro” prometeu um governo de austeridade, onde aglutinou setores militares e da classe média (com promessas de “limpeza” na administração e estabilização da economia), das elites empresariais (com afirmação de fé na livre iniciativa) e dos trabalhadores (com promessas de uma ordem social mais justa). Descontentes com a carestia, a maioria dos brasileiros preferiu ir beber nas águas populistas de Jânio Quadros. 

Em 30 de setembro de 1960 era encerrada a tumultuada campanha eleitoral de Jânio Quadros à presidência da República. Em meio a cartazes, animação de bandas de música, fogos de artifício, papéis picados, vassouras, além da marchinha antológica que tinha esses versos – “Varre, varre, varre, varre, vassourinha./ Varre, varre a bandalheira./ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira./ Jânio Quadros é a esperança deste povo abandonado”.

Marechal Teixeira Lott, derrotado por Jânio Quadros.

Nas eleições de 3 de outubro de 1960 quase seis milhões de eleitores fazem Jânio o 22º Presidente do Brasil, sendo até então a maior votação da história no país. O marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, o segundo colocado, foi vencido de forma arrasadora com mais de dois milhões de votos de vantagem.

Mas nem tudo foi positivo para Jânio. Como naquela época votava-se separadamente para presidente e vice, apesar de todo prestígio Jânio não conseguiu eleger Milton Soares Campos, o candidato a vice-presidente de sua chapa. O escolhido foi o gaúcho João Belchior Marques Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB.

Governo de Altos e Baixos

Após a vitória sem precedentes, o presidente eleito partiu para Europa, em uma viagem de “concentração e retiro”. Somente três meses após as eleições, em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros e João Goulart foram empossados. Contrariando a expectativa geral, o discurso de posse do presidente foi discreto e gentil, chegando a tecer elogios ao governo anterior. Porém, na noite desse mesmo dia, Jânio atacou violentamente o governo Juscelino Kubitschek em cadeia nacional de rádio, atribuindo ao ex-presidente a prática de nepotismo, ineficiência administrativa, responsabilidade pelos altos índices de inflação e pela dívida externa de dois bilhões de dólares.

Não demorou e o novo presidente decepcionou pela primeira vez seus correligionários, ao desfazer a expectativa dos que previam que ele realizasse um governo de composição ou união nacional, ou que tentasse obter, através da nomeação ministerial, a maioria parlamentar de que não dispunha.

Jânio compôs seu Ministério contemplando uma mistura de elementos da União Democrática Nacional – UDN e representantes de partidos menos expressivos. Surpreendeu a todos ao nomear cinco ministros do Norte e Nordeste e disse que isso foi feito para honrar compromissos de sua campanha. O Ministério da Fazenda foi confiado a Clemente Mariani Bittencourt, líder da UDN baiana, que fora presidente do Banco do Brasil em 1954 e 55. Afonso Arinos de Melo Franco, da UDN mineira ficou com a pasta das Relações Exteriores. O Ministério era formado ainda por Clóvis Pestana, do Rio de Janeiro (Viação e Obras Públicas), Oscar Pedroso d’Horta, do Ceará (Justiça e Negócios Interiores); Romero Cabral da Costa, de Pernambuco (Agricultura); Brígido Fernandes Tinoco, do Rio de Janeiro (Educação e Cultura); Francisco Carlos de Castro Neves, de São Paulo (Trabalho); Edward Cattete Pinheiro, do Pará (Saúde); João Agripino Vasconcelos Maia Filho, da Paraíba (Minas e Energia) e Artur da Silva Bernardes Filho, de Minas Gerais (Indústria e Comércio). Já os ministérios militares foram preenchidos pelo marechal Odílio Denys (Ministério da Guerra, que teria sua denominação alterada durante o governo do general Costa e Silva  para Ministério do Exército), o brigadeiro Gabriel Grüm Moss (Aeronáutica) e o vice-almirante Sílvio de Azevedo Heck (Marinha), os três do Rio de Janeiro.

Reunião ministerial do governo Jânio Quadros.

No início do seu governo Jânio tomou uma série de pequenas medidas que ficaram famosas, destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e saneamento moral. Também investiu fortemente contra alguns direitos e regalias do funcionalismo público. Reduziu as vantagens até então asseguradas ao pessoal militar ou do Ministério da Fazenda em missão no exterior e extinguiu os cargos de adidos aeronáuticos junto às representações diplomáticas brasileiras.

Tal como aconteceu quando era governador paulista, Jânio Quadros pretendia prescindir da maioria parlamentar, mas duas reações foram imediatas: a dos que o acusavam de veleidades ditatoriais e desprezo pelo Poder Legislativo, e a dos setores nacionalistas, que viam na composição do novo governo uma prova de submissão ao FMI – Fundo Monetário Internacional, pela nomeação do banqueiro Clemente Mariani para o Ministério da Fazenda.

Seguindo um amplo programa anti-inflacionário, em 13 de março de 1961 o Presidente Jânio decretou uma reforma cambial, cuja consequência imediata foi a desvalorização do cruzeiro (a moeda brasileira da época) em 100% e o corte dos subsídios na importação de trigo e gasolina. Disso decorreu um galopante aumento do custo de vida, coincidindo com o congelamento dos salários e restrição ao crédito, o que gerou imediatos protestos sindicais.

Embora contasse com o apoio tácito do Congresso Nacional para sua política de austeridade, Jânio encontrou sérias resistências, mesmo entre seus correligionários, em relação a outros projetos em andamento, como o da reforma da lei antitruste, o da remessa de lucros, o do imposto de renda e o da reforma bancária.

Segundo o seu ministro das Minas e Energia, o paraibano João Agripino, “Jânio atraía contra seu governo todos os grupos econômicos deste país e ao mesmo tempo impunha aos humildes sacrifícios quase insuportáveis”.

Na tentativa de agradar o FMI pela austeridade, a classe média pela sindicância moralizadora dos escândalos financeiros e as camadas populares pelas reformas, Jânio conseguiu, em poucos meses, multiplicar as oposições.

Os Famosos “Bilhetinhos”

Jânio Quadros na capa da revista americana Times.

Alpargatas, blusões folgados, os famosos slacks com jaquetas tipo safari (também conhecidos como pijânios) — era a imagem tropical de um novo estilo de presidente.

Parte dessa performance foram os não menos famosos “bilhetinhos” que Jânio enviava diariamente a funcionários dos mais diversos escalões, como parte de sua estratégia moralizadora da administração pública.

Esperados muitas vezes com humor pela imprensa, esses pequenos recados causavam frequentemente irritação e até desespero nos que os recebiam. Prova é que, dos 1.534 bilhetes ditados durante a presidência, apenas onze foram de elogios ou homenagens.

O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, por exemplo, foi vítima de cerca de 600 deles, o que contribuiu sensivelmente para o desgaste de suas relações com o presidente. Certa feita, o Ministério da Agricultura foi contemplado com um bilhetinho que dizia literalmente: “O objetivo da próxima safra de amendoim deve ser o do atendimento do mercado interno, com largas sobras para exportação, dobrando-se, pelo menos, essa cultura em relação à safra de 1959/60”.

Jânio Quadros e Carlos Lacerda.

Na prática, essas pequenas notas funcionavam, sobretudo como decretos oficiosos, transformando em “lei” várias das pequenas decisões quase legendárias de Jânio.

O funcionalismo público foi o alvo predileto dos “bilhetinhos”: sindicâncias, horário de dois turnos com aumento da jornada de trabalho, cortes de gastos de representação e até ordem para à devolução de carros luxuosos. Muitas vezes justos, a maioria desses bilhetes tratava de assuntos que, sem dúvida, não competiam ao presidente da República.

Jânio também proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, acabou com as corridas de cavalo em dias úteis, com as rinhas de galo, com o lança-perfume em bailes de carnaval e regulamentou o jogo de carteado. Por mais hilárias que possam ter parecido essas medidas na ocasião, 60 anos depois todas essas leis editadas por Jânio ainda continuam em vigor.

Política Externa Radical

Enquanto aplicava uma política interna de austeridade, submissa às orientações do Fundo Monetário Internacional, Jânio Quadros radicalizava progressivamente na chamada Política Externa Independente – PEI.

Essa diretriz introduziu grandes mudanças na política internacional do Brasil, transformando as bases da sua ação diplomática e representou um ponto de inflexão na história contemporânea da política internacional brasileira, que passou a procurar estabelecer relações comerciais e diplomáticas com todas as nações do mundo que manifestassem interesse num intercâmbio pacífico. Essa modalidade de fazer política externa foi firmemente conduzida pelo chanceler Afonso Arinos de Melo Franco.

Jânio levou adiante seu projeto de estabelecer relações com as recém-independentes nações africanas e do bloco socialista. Nomeou Raimundo Sousa Dantas embaixador do Brasil em Gana, sendo este o primeiro embaixador negro brasileiro. Por meio de um sem-número de bilhetes recomendava o reatamento diplomático com os países do Leste, alegando objetivos econômicos. Pronunciou-se contrário à tradição brasileira de apoio às potências colonialistas, sobretudo na África portuguesa, e favorável à admissão da China nas Nações Unidas. Em maio de 1961 recebeu no palácio do Planalto a primeira missão comercial da República Popular da China enviada ao Brasil.

O cosmonauta soviético Yuri Gagarin (a direita), o primeiro homem a ir ao espaço, recebe a Ordem do Mérito Aeronáutico de Jânio Quadros e do brigadeiro Gabriel Grüm Moss, Ministro da Aeronáutica. 

O mesmo fato se repetiu em julho com a missão soviética de boa vontade, que pretendia incrementar o intercâmbio comercial e cultural entre o Brasil e a União Soviética. As primeiras providências para o reatamento diplomático entre os dois países começaram a ser tomadas em 25 de julho, mas o processo só seria concluído durante o governo Goulart. Antes disso, em julho de 1961, Jânio Quadros condecorou com a Ordem do Mérito Aeronáutico o cosmonauta soviético Yuri Alexeievitch Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço e que visitava o Brasil. 

Essa radical mudança na política exterior do Brasil não foi bem vista pelos Estados Unidos, nem por vários grupos econômicos que se beneficiavam da política anterior e nem pela direita nacional, em especial por alguns políticos da UDN, que apoiaram Jânio Quadros na eleição.

Uma Medalha para o Che

Entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961 ocorreu em Punta del Este, Uruguai, a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social da Organização dos Estados Americanos – OEA. Nela estiveram reunidos ministros e dirigentes das economias dos países latino-americanos, incluindo Ernesto Rafael Guevara de la Serna, mais conhecido como Che Guevara, revolucionário marxista e então ministro da Economia de Cuba. A finalidade desta reunião foi discutir o então novo programa da política externa dos Estados Unidos para a América Latina, a Aliança para o Progresso, cujo intuito era desenvolver economicamente e socialmente os países latino-americanos.

Ernesto Che Guevara sendo condecorado por Jânio Quadros.

Ao fim da reunião Che Guevara viajou para a Argentina e na sequência para o Brasil. Jânio aproveitou a passagem de Guevara para pedir, com êxito, a libertação de 20 padres espanhóis presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Aproveitaram e discutiram as possibilidades de intercâmbio comercial por meio dos países do Leste europeu. Finalmente, em 18 de agosto o presidente condecorou o ministro cubano com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, o que provocou a indignação dos setores civis e militares mais conservadores.

As possíveis consequências desse ato foram mal calculadas por Jânio. Sua repercussão foi a pior possível e os problemas já começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda que, amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países e a revista dos militares. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrarem e participarem da cerimônia.

O Fim no Dia do Soldado

Uma verdadeira cruzada passou a ser desencadeada contra a Política Externa Independente de Jânio. Para seus críticos essa política nada mais era do que declarações e ações com fins publicitários e vista por muitos como uma tentativa de atenuar a tensão provocada pelas decepções com sua política interna. O certo é que a condecoração de Che Guevara foi o bastante para o jornalista Carlos Lacerda, então governador do Rio de Janeiro, da UDN, romper publicamente com Jânio Quadros. O presidente perdia assim a sua frágil base parlamentar no Congresso.

Em várias oportunidades, o ministro da Guerra, Odílio Denys, também chegou a adverti-lo sobre a insatisfação da alta hierarquia militar. No plano internacional, a situação não melhorou para o governo.

Jânio parecia ter conseguido com suas ações desagradar a gregos e troianos.

Fotograma da película que mostra a cerimônia do Dia do Soldado em 25 de agosto de 1961, o último ato que Jânio Quadros participou como presidente do Brasil.

Em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, o presidente Jânio Quadros apresentou à nação sua carta de renúncia. O seu último ato presidencial foi um terrível equívoco, uma tentativa de golpe mal arquitetada. O objetivo de Jânio Quadros era criar um clima de comoção nacional de tal modo que os ministros militares, o Congresso e a população pedissem para que ele ficasse. Seu objetivo era negociar sua permanência na presidência da República com poderes excepcionais.

O Congresso, segundo a Constituição, não tinha poderes para negociar uma renúncia, que era um ato unilateral do presidente. A única obrigação do Congresso era investir os poderes ao vice.

Jânio Quadros, ao receber a notícia de que sua renúncia foi acolhida, chorou copiosamente. Seu mandato presidencial de 206 dias (quase sete meses) foi um dos mais breves na história da presidência do país.

A população, frustrada com as medidas econômicas rígidas e com os decretos moralistas, não reagiu como o Presidente esperava. Os ministros militares se limitaram a publicar um manifesto atestando que o vice-presidente, João Goulart, que se encontrava em visita oficial à China comunista, não deveria assumir a Presidência da República por representar um perigo aos quadros democráticos e constitucionais, pois Jango seria apoiado por elementos do clandestino Partido Comunista.

O país estava à beira de uma grave crise por conta da obsessão anticomunista de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. O conflito, entretanto, foi evitado graças a uma solução política negociada: a criação da Emenda Parlamentarista.

O sistema parlamentarista era um paliativo, pois garantia a posse de Goulart, ao mesmo tempo em que retirava os poderes políticos do Executivo federal e o transmitia para o Congresso Nacional, que indicaria um Primeiro-Ministro. Desta forma, Goulart poderia voltar ao Brasil e tomar posse. Foi escolhido como Primeiro-Ministro o político mineiro Tancredo de Almeida Neves. Para Juscelino Kubitschek, que na época era senador, declarou que “a Emenda Parlamentarista foi aprovada por pressão militar”.

O sistema parlamentar, entretanto, teve vida curta. Em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito aprovou o retorno ao regime presidencial e, segundo os próprios militares, aquilo foi o início da contagem regressiva para o golpe contra Jango.

O resultado está estampado na manchete abaixo…

O ATAQUE DO ENCOURAÇADO GRAF SPEE PRÓXIMO A COSTA NORDESTINA

A Primeira Nave de Guerra Nazista no Atlântico Sul – Atacou um Cargueiro Inglês na Costa de Pernambuco – Três Tripulantes Eram Brasileiros e Testemunharam Esse Ataque Perto do Litoral Nordestino – Um Hidroavião Alemão Metralhou O Navio Inglês – O Graf Spee Foi Visto Próximo a Natal? – A Estranha Visita do Adido Naval Britânico a Capital Potiguar – A Guerra que Chegou

Rostand Medeiros – Escritor e Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Em 1939, enquanto o mundo assistia a escalada de uma nova guerra mundial, na Alemanha Nazista havia a certeza que a sua Marinha de Guerra, a Kriegsmarine, não poderia enfrentar a Marinha Real Britânica, a Royal Navy. Mesmo com essa desvantagem foram os alemães que executaram os primeiros movimentos daquilo que entrou para a História como a Batalha do Atlântico, um conjunto de ações navais beligerantes que duraria toda a Segunda Guerra Mundial e atingiria toda extensão desse vasto oceano.

O poderoso encouraçado de bolso Admiral Graf Spee.

O comando da Kriegsmarine decidiu posicionar secretamente no Atlântico Norte naves de superfície, submarinos e navios de apoio para manter os britânicos ocupados quando a guerra estourasse. Entretanto, nesses movimentos navais pré-guerra uma das mais importantes naves da Alemanha seguiu em direção do Atlântico Sul.

Esse navio era o poderoso encouraçado de bolso Admiral Graf Spee, que zarpou do porto de Wilhelmshaven, na costa do Mar do Norte, na noite de 21 de agosto de 1939, recebendo o apoio do petroleiro da frota Altmark e sendo comandado pelo capitão de mar e guerra (kapitän zur See) Hans Langsdorff.

Ninguém a bordo do Graf Spee, a não ser seu capitão, sabia o rumo a nave deveria tomar e a natureza da missão a cumprir.

Para muitos naquele poderoso barco, mesmo com toda tensão na Europa, aquela navegação seria apenas mais um cruzeiro de instrução que seguia em direção sul. Mas o que Langsdorff queria era que seu navio desaparecesse na imensidão do Atlântico. E isso ele conseguiu![1]

Uma Grande Nave de Guerra

O Graf Spee era um navio excepcional, verdadeiro prodígio da engenharia naval alemã da época. Possuía 186 metros de comprimento, um calado máximo de 7,34 metros e era ocupado por cerca de 1.000 tripulantes. Seu casco era pura inovação para uma nave desse tamanho no final da década de 1930, pois era totalmente soldado e não utilizava rebites.

Seus dois motores principais foram fabricado pela MAN (Maschinenfabrik Augsburg-Nürnberg), sendo modelos M9 Zu 42/53, a diesel, de nove cilindros, dois tempos e média velocidade. A potência projetada para o Admiral Graf Spee era de 54.530 HP, o que permitia a velocidade máxima de 26 nós. Mas durante os testes a nave atingiu 28,5 nós (52,5 km/h), com os eixos da hélice girando a 250 rpm. Também haviam motores auxiliares instalados ao longo de cada um dos conjuntos dos motores principais. Tratavam-se de motores MAN M-5 Z 42/48, a diesel, com cinco cilindros, dois tempos, cada um com a potência de 3.500 HP a 425 rpm. Eles abasteciam bombas, compressores, equipamentos de combate a incêndio, etc. A eletricidade era fornecida por oito geradores fabricados pela AEG (Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft), de Berlin, com potência combinada de 3.360 kW, alimentados por 375-400 HP.

Tinha uma autonomia de 20.000 quilômetros e um deslocamento total de 16.020 toneladas, bem mais que as 10 mil toneladas estipuladas pelo Tratado de Versalhes, que limitavam os navios de guerra alemães a naves de pequeno porte e era uma das punições dos países Aliados após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.

Para fugir dessas proibições os engenheiros navais alemães desenvolveram os chamados Panzerschiff (navio blindado) da classe Deutschland, que os britânicos logo apelidaram de encouraçados de bolso, pois possuíam artilharia pesada, em um navio com um tamanho e peso relativamente reduzidos. Mas essa relação superava em muito os cruzadores pesados da época ​​e estava no mesmo nível de muitos navios de guerra mais antigos[2]

Aquela impressionante nave possuía seis canhões de 280 milímetros, com três destes montados em duas torres fortemente blindadas – uma dianteira e outra traseira – com capacidade de lançar projeteis a cerca de 30 quilômetros de distância. Havia oito canhões de 150 milímetros e outros vinte e quatro canhões e metralhadoras antiaéreas. Foram montados no tombadilho dois lançadores de torpedo quádruplos de 533 mm e o Graf Spee podia transportar até dois hidroaviões Arado Ar 196 A-1 para buscar seus alvos à distância e lançados de uma catapulta na superestrutura da ponte[3]. A função dessas aeronaves era complementada pela a existência de um rudimentar radar de busca[4].

Seu Bravo Capitão

O Graf Spee era comandado por um competente oficial que desde os dezoito anos de idade estava na carreira naval. Hans Johann Wilhelm Rudolf Langsdorff  nasceu em 20 de março de 1894 na cidade de Berguen, a maior aglomeração urbana da Ilha de Rugen, próximo a costa norte do Mar Báltico. Vinha de uma tradicional família de pastores luteranos, sendo filho de Ludwig Langsdorff e Elisabeth Steinmetz. Em 1898 sua família mudou-se para a cidade de Düsseldorf, onde seu pai assumiu as funções de juiz e os Langsdorff se tornaram vizinhos da aristocrática família do Conde e Almirante Maximilian von Spee. Ali o jovem Hans Langsdorff conheceu os filhos desse almirante, os futuros cadetes navais Otto e Heinrich Spee[5].

O Capitão Langsdorff.

Certamente influenciado pelos seus honrados vizinhos, mas contra a vontade dos seus pais, que desejavam que ele seguisse a função de pastor, em 1912 Langsdorff entrou na Academia Naval de Kiel. Durante a Primeira Guerra Mundial o então tenente Langsdorff recebeu a Cruz de Ferro de 1ª Classe e em maio de 1916 participou da Batalha da Jutlândia, considerada por muitos a maior batalha naval da história. Após o fim do conflito ele continuou na marinha e em março de 1924 se casou com Ruth Hager, onde da união nasceram seu filho Johann e sua filha Ingeborg Langsdorff[6].

Principalmente por suas habilidades administrativas, a sua carreira naval chamou a atenção do comando da Kriegsmarine. Em 1933, após a ascensão dos nazistas ao poder, Langsdorff buscou se afastar do novo regime e solicitou retornar para o mar, mas foi nomeado para o Ministério do Interior. Finalmente, entre 1936 e 1937, conseguiu uma comissão que o colocou a bordo do novo encouraçado de bolso Admiral Graf Spee, onde participou do apoio alemão ao lado nacionalista de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. 

Logo depois Langsdorff foi promovido a capitão e em outubro de 1938 recebeu o comando do Graf Spee. Nessa nave ele pode mostrar suas habilidades de comandante naval, ficando marcado pela audácia, coragem, companheirismo, capacidade de decisão e um atuante pensamento humanitário.

Essa última faceta do caráter de Hans Langsdorff certamente era fruto de sua criação luterana e foi algo que anos depois lhe custou a vida, mas o fez entrar para a História.

No Atlântico Sul

Foi em uma sexta-feira, 1º de setembro de 1939, o dia que os alemães invadiram a Polônia e a Segunda Guerra Mundial teve início. Nessa mesma data vamos encontrar o Graf Spee já tendo ultrapassado as Ilhas Canárias, estando a cerca de 800 milhas a oeste das Ilhas de Cabo Verde e se aproximando da Linha do Equador, onde, no dia 8 de setembro, teve o privilégio de ser a primeira nave de combate alemã durante a Segunda Guerra Mundial a cruzar essa linha geográfica. Poucos dias depois esse encouraçado de bolso estará em uma posição que o deixou bem próximo do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, seguindo em patrulha para uma área mais próxima do centro do Atlântico Sul. 

O Capitão Langsdorff obedecia à risca às ordens recebidas, onde estava pautado que deveria manter o Graf Spee fora das vistas de outros navios e era proibido de atacar naves cargueiras inglesas e francesas. Seguia acompanhando as notícias na Europa, em velocidade lenta, demorando muito no deslocamento e aguardando as ordens para atacar.

Hitler imaginava que após a conquista da Polônia, a França e a Grã-Bretanha, os principais inimigos da Alemanha, buscariam um acordo para evitar a guerra total. Mas isso não aconteceu e conforme os dias foram passando as restrições de combate de Langsdorff vão caindo, até não mais existirem em 26 de setembro. Nessa data o Graf Spee se encontra praticamente no centro do Atlântico Sul e toma rumo noroeste em busca da sua primeira vítima. Nessa rota se aproxima da costa do Nordeste do Brasil, mais precisamente ao largo de Pernambuco.

Quem observa a linha traçada pelo avanço do Graf Spee naqueles dias, talvez se pergunte o porquê desse navio de guerra ter seguindo em uma rota quase sem alteração e de forma tão célere para a costa pernambucana.

Ao nos debruçarmos sobre as velhas páginas dos periódicos recifenses Diário de Pernambuco e Jornal Pequeno, publicados na segunda quinzena de setembro de 1939, buscando informações sobre a movimentação portuária em Recife, descobrimos que o entra e sai de navios de cargas e passageiros era intenso. Em parte isso se explica porque nessa época a capital pernambucana era terceira maior cidade brasileira, com uma população de 348.424 habitantes[7]. Evidentemente que o maior número de barcos que ali circulavam era de brasileiros, mas nas primeiras semanas da Segunda Guerra Mundial nada menos que nove navios alemães e seis ingleses estiveram escalando no porto de Recife[8]. Também se encontrava atracado o grande transatlântico polonês MV Chrolbry, que segundo os jornais estava sendo totalmente “pintado de cinza para melhor se camuflar no mar” e poder seguir a “qualquer momento para Europa”.

Hidroavião Arado Ar 196 A-1 sendo lançado.

Talvez por estar recebendo mensagens enviadas por espiões germânicos baseados em Recife, o Capitão Langsdorff se aproximou da capital pernambucana para interceptar algum navio inimigo que dali partia[10]. Para melhorar a caçada Langsdorff ordenou o lançamento do hidroavião Arado para uma busca além do horizonte[11].

O Ataque e os Brasileiros a Bordo do Clement

Dias antes desse momento, quando o encouraçado alemão ainda seguia de forma lenta em direção sul, se encontrava no porto de Natal um cargueiro inglês chamado Clement, que deslocava 5.051 toneladas, era comandado pelo Capitão Frederick C. P. Harris, de 58 anos de idade, e possuía um total de 48 tripulantes. Essa nave pertencia a empresa inglesa de navegação Booth Steam Ship Company, sendo uma frequentadora habitual dos portos da costa leste dos Estados Unidos e do norte e nordeste do Brasil. Havia partido de Nova York em 24 de agosto com um carregamento de gasolina e querosene em latas, bacalhau e ferramentas, tendo escalado em Belém do Pará, São Luís e Tutóia (Maranhão), Fortaleza e Natal. Da capital potiguar o Clement partiu para Recife com uma pequena carga de algodão, vindo provavelmente da região do Seridó[12].

Uma particularidade interessante é que entre os tripulantes do Clement havia três brasileiros.

Estes eram Martinho Silva, de 32 anos de idade, Thomaz Brandão, de 30 anos, além de Waldemar Francisco Penedo, com 26 anos. Todos eram paraenses de Belém e haviam embarcado nessa cidade para trabalhar no Clement realizando manutenção e lubrificação dos motores, sendo conhecidos como “graxeiros”, uma das funções mais humildes e sujas a bordo.

Após alguns dias na capital pernambucana, a uma da manhã de 30 de setembro, vamos encontrar o Clement deixando aquele porto para seguir em direção a Salvador para pegar mais cargas. Após essa parada seu destino era o porto de Cabedelo, na Paraíba, onde carregaria mais algodão e depois o próximo porto seria o de Nova York, Estados Unidos[13].

Desde que começou o conflito o capitão Frederick C. P. Harris, veterano da Royal Navy na Primeira Guerra Mundial, vinha navegando mais afastado do litoral, para evitar possíveis ataques[14]

Dias depois Thomaz Brandão declarou para um jornal carioca que por volta das onze e meia da manhã de 30 de setembro, quando o Clement se encontrava a cerca de 70 milhas náuticas (130 quilômetros) da costa pernambucana e a tripulação se preparava para almoçar, o barco foi sobrevoado por uma aeronave. Brandão primeiramente imaginou que fosse “o avião do correio”, mas logo percebeu a cruz negra alemã e soube que aquilo significava problemas[15].

No hidroavião Arado do Graf Spee o piloto Heinrich Bongardts, que possuía a patente de sargento (Unteroffizier) da Força Aérea Alemã (Luftwaffe), emitiu uma chamada de rádio ordenando que o Clement não transmitisse sinais de socorro enquanto dava voltas sobre o cargueiro. Mas a ordem foi ignorada e o oficial do rádio da embarcação começou a transmitir “RRRR” em código Morse, que indicava que um cargueiro inglês estava sob ataque. E esse não demorou a vir por parte do hidroavião, quando o Cabo (Obergefreiter) Hans-Eduard Sümmerer despejou várias rajadas de metralhadora MG no Clement, ferindo um tripulante inglês[16].

Logo a sinistra silhueta do Graf Spee surgiu no horizonte a toda velocidade e abriu fogo de advertência com um dos seus canhões. Diante da nova ameaça o capitão Harris ordenou que as transmissões cessassem e os papéis oficiais do navio e códigos de transmissão fossem colocados em uma sacola e jogados ao mar[17]

Perdidos Perto da Costa Nordestina

O Clement passou a ser abandonado pelos tripulantes, incluindo o comandante e o engenheiro chefe W. Bryant, de 70 anos de idade, que se acomodaram em quatro botes salva-vidas. Mas eles mal começavam a deixar o navio cargueiro, os alemães também desceram um escaler motorizado do Graf Spee e logo buscaram abordar os botes ingleses.

O Clement.

Chegaram armados com pistolas e submetralhadoras e, após identificarem o Capitão Harris e o engenheiro Bryant, ordenaram que os mesmos entrassem em sua lancha para serem levados a bordo do Graf Spee como prisioneiros de guerra e interrogados. Os dois oficiais se resignaram diante da situação, mas antes de partir se despediram de toda tripulação. O homem ferido pelos disparos da aeronave também foi levado para receber tratamento médico pela equipe do navio atacante. Nesse momento os ingleses comentaram aos brasileiros que aqueles homens armados eram alemães.

Os que estavam nos botes salva-vidas receberam instruções para seguirem em direção à costa brasileira[18]. Thomaz Brandão achou interessante o fato dos alemães filmarem os homens do Clement.

O Clement sendo destruído pelos canhões do Graf Spee.

Logo, ao meio-dia, esses sobreviventes assistiram o Graf Spee abrir fogo com seus poderosos canhões, rompendo de maneira ensurdecedora o silêncio oceânico. O Clement foi afundado com cinco granadas de 280 mm e 25 de 150 mm. Dois torpedos também foram disparados, mas ambos erraram o alvo. O cargueiro inglês levou 45 minutos para afundar totalmente e enquanto agonizava o navio atacante partiu rapidamente. Seu pequeno hidroavião evoluiu algum tempo sobre a nave sinistrada e depois também se foi.

Devido ao mar agitado os barcos salva-vidas se dispersaram e assim passaram a noite. Pelas sete horas da manhã do outro dia um desses barcos, com dezesseis homens a bordo, foi avistado e recolhido pela tripulação do vapor nacional Itatinga a quinze milhas do litoral, na altura da praia de Porto de Pedras, Alagoas[19]. Comandado pelo Capitão de longo curso Antenor Dias Sanches, este realizou com seu navio buscas aos outros sobreviventes durante algum tempo, apitando estridentemente e fazendo longas curvas, mas sem sucesso.

Depois o Itatinga seguiu para Maceió, Salvador e Rio de Janeiro, onde nesse último porto Herbert John Gill, o 2º piloto do Clement, deu declarações para imprensa carioca sobre o ataque[20]. Já os outros barcos salva-vidas e os sobreviventes, fazendo o uso de velas, chegaram à costa alagoana.

Os náufragos foram vistos com muita curiosidade pela população das cidades onde estiveram e receberam algum ajuda, pois a maioria só tinha mesmo a roupa do corpo.

Mesmo sem se aperceberem, aqueles tripulantes do Clement foram testemunhas oculares de fatos realmente significativos naquela época. A ação do Graf Spee foi o ataque de um navio de guerra alemão realizado mais próximo do Continente Americano em toda a Segunda Guerra Mundial. Igual situação se enquadra a ação do hidroavião Arado Ar 196 A-1, colocando-o como a aeronave da Luftwaffe a ter realizado um ataque aéreo mais próximo do chamado Novo Mundo.

Os Primeiros Brasileiros Envolvidos na Segunda Guerra Mundial e o Graf Spee Próximo a Natal

No Rio de Janeiro o Ministério das Relações Exteriores do Brasil se pronunciou nos jornais afirmando que o ataque ao Clement se deu fora das águas territoriais brasileiras, não caracterizando uma “violação da neutralidade do país”. Vale ressaltar que nessa época o que o Brasil considerava que suas águas territoriais seriam parcas três milhas náuticas a partir das nossas praias[21].

Quando dias depois um dos três tripulantes brasileiros chegou ao Recife, cujo nome o Diário de Pernambuco omitiu, informou ao jornalista que o ataque do encouraçado ao Clement para ele “foi um grande azar”. Independente de se encontrar vivo e sem um arranhão, comentou que depois de ter sido tripulante de outros navios mercantes britânicos e de ter visitado a Inglaterra em várias ocasiões, estava há meses desempregado no Pará e aquele engajamento no Clement era uma verdadeira dádiva, mas que acabou[22].

Os marinheiros brasileiros ainda comentaram junto à imprensa que informaram ao cônsul inglês que desejavam continuar trabalhando como embarcados em naves comerciais britânicas, desde que “recebessem salários de guerra e seguros de vida”[23].

Sabemos que em setembro de 1939 a Segunda Guerra Mundial se desenrolava com maior força na Polônia, mas eu desconheço se nesse período algum cidadão brasileiro tenha se envolvido em alguma ação bélica nesse país, ou em algum outro local onde os alemães e seus inimigos se batiam. Nesse tocante, creio que é possível afirmar que os paraenses Martinho Silva, Thomaz Brandão e Waldemar Francisco Penedo tenham sido os primeiros brasileiros a se envolverem e testemunharem uma ação bélica nesse conflito. E o interessante é que esse fato ocorreu próximo ao belo e caliente litoral nordestino.

O Almirantado Britânico recebeu então um primeiro relatório dando conta que um poderoso navio de guerra alemão estava operando no Atlântico Sul, nesse momento eles acreditavam que a nave era o Admiral Scheer, pois foi esse o nome que os náufragos do Clement viram pintado na proa do encouraçado. Na verdade era mais um ardil de Langsdorff para enganar seus adversários. Muitos jornais brasileiros caíram no logro e durante algum tempo estamparam notícias que o Admiral Scheer era quem aterrorizava o Atlântico Sul. Fosse lá qual fosse o nome daquele navio de guerra, o certo é que nos dias após o ataque ao Clement os ingleses não faziam a menor ideia onde ele se encontrava. Muitos acreditavam que o navio atacante teria navegado em direção leste, para o meio do oceano.

Mas em 7 de outubro, uma semana depois do afundamento do cargueiro inglês, o próprio Almirantado Britânico publicou um documento reservado onde encontramos a informação que um navio americano comunicava ter visto uma nave de guerra classificada como o Admiral Scheer, navegando a somente 60 milhas náuticas (110 quilômetros) de Natal, Rio Grande do Norte. Esses documentos só foram desclassificados em 2012.

Esse fato é interessante, pois certamente esse documento trás uma das primeiras menções sobre a cidade de Natal em um documento militar de um dos países beligerantes envolvidos na Segunda Guerra Mundial.

A Batalha do Rio da Prata

Um mês após o episódio do Clement, sem revelar sua posição aos adversários e sem matar um só marinheiro inglês, o Capitão Langsdorff e a sua equipe a bordo do encouraçado de bolso Graf Spee haviam mandado para o fundo do mar mais de 50.000 toneladas de navios inimigos e criado problemas nas rotas comerciais marítimas dos ingleses.

Entre outubro e novembro sete grupos de navios de guerra da Marinha Real Britânica e Francesa caçavam o Graf Spee no Atlântico Sul, enquanto outro grupo esquadrinhava o Oceano Índico. No total, ingleses e franceses empregaram quatro porta-aviões, três encouraçados, dezesseis cruzadores e outros tantos navios menores. Em novembro o Graf Spee ainda afundou um pequeno petroleiro a sudoeste de Madagascar e depois voltou para o Atlântico Sul, onde reivindicou mais três vítimas, incluindo o Doric Star no dia 2 de dezembro e o Tairoa no dia 3.

Depois de mais de dois meses em alto mar, tornou-se necessário que o navio voltasse para a Alemanha para reparos, mas antes disso Langsdorff decidiu interceptar um comboio que ele sabia se encontrar ao largo do rio da Prata e transportava para a Grã-Bretanha grãos e carnes.

O HMS Exeter.

Quem também estava na mesma região era o Comodoro inglês Henry Harwood, comandando um grupo de combate (Group G) composto pelo cruzador pesado britânico HMS Exeter (comandado pelo Capitão Frederick Secker Bell), o cruzador leve britânico HMS Ajax (Capitão Charles Henry Lawrence Woodhouse) e do cruzador leve neozelandês HMNZS Achilles (Capitão William Edward Parry). 

Também fazia parte do Group G o veterano cruzador britânico HMS Cumberland (Capitão Walter Herman Gordon Fallowfield), que naquele momento estava nas Ilhas Falklands (Malvinas) reparando seus motores, o que deixava o Comodoro Harwood desfalcado diante do poder de fogo da nave alemã. Mesmo assim ele e seus companheiros ficaram patrulhando a área, esperando encontrar o inimigo.

O Graf Spee.

De maneira inesperada o encontro entre o Graf Spee  e os três cruzadores se deu às 06:10h do dia 13 de dezembro, a 390 km a leste de Montevidéu, quando a nave germânica foi primeiramente vista de uma posição a noroeste. Langsdorff decidiu acelerar ao máximo seu encouraçado para encurtar a distância das três naves adversárias, que para ele pareciam ser simples destroieres e que achava estarem protegendo o cobiçado comboio mercante. Foi quando percebeu tarde demais que estava enfrentando três cruzadores e não havia nenhum navio mercante por perto. 

Confrontado com o armamento mais pesado do Graf Spee, Harwood decidiu colocar sua força em duas alas e tentar assim dividir o fogo das principais armas inimigas. O cruzador pesado Exeter seguiu ao sul, enquanto os outros dois cruzadores ligeiros seguiram para norte. As 06:18h os disparos dos grandes canhões do Graf Spee irromperam o silêncio do Atlântico Sul.

Disparos no calor da Batalha do Rio da Prata.

Todos os quatro navios envolvidos na luta navegavam disparando incessantemente enquanto manobravam. Logo no começo da batalha naval um petardo inglês destruiu o hidroavião Arado e matou os aviadores Bongard e Sümmerer. O Graf Spee então concentrou os canhonaços de suas duas torres de 280 mm no Exeter, que foi duramente atingido. As dez para as sete da manhã todos os navios estavam indo para o oeste. Nessa altura da contenda o Exeter disparava apenas uma de suas quatro torres de tiro. Chamas eram vistas em várias partes do navio e havia danos generalizados. A ponte de comando foi duramente atingida, com estilhaços matando ou ferindo todo o pessoal, exceto o Capitão Bell e outros dois tripulantes. 

Quando uma das torres de tiro do Exeter foi atingida por um impacto direto de um projetil de 280 mm, o fuzileiro real Wilfred A. Russell teve seu antebraço esquerdo explodido e seu braço direito quebrado, mas recusou os primeiros socorros enquanto outros companheiros não fossem atendidos, além de permanecer no convés incentivando seus amigos durante a luta. Ele não cedeu até que o calor da batalha terminasse, mas faleceu de suas feridas poucos dias depois.

Troca de disparos na manhã de 13 de dezembro de 1939.

As comunicações gerais do Exeter ficaram inoperantes e pelo resto da batalha as ordens internas nesse navio tiveram de ser enviadas por uma cadeia de mensageiros. Até para informar ao timoneiro para girar o leme para esquerda ou direita, a ordem tinha de ser repassada por vários tripulantes. O marinheiro de primeira classe Patrick O’Leary, quando recebeu ordens da sede do controle de danos para fazer contato com o comando principal, em um momento de extrema confusão pela falta de comunicações internas, encontrou seu caminho através do apartamento dos oficiais destruído por um disparo de 280 mm. Mesmo assim, através do fogo e da fumaça densa e mortal, ele fez contato com o comando e depois com a sala das máquinas, o que muito ajudou a equilibrar as decisões dos oficiais naquele momento. De lá retornou com várias queimaduras, além dos pulmões cheios de fumaça. Em decorrência desses ferimentos O’Leary faleceu[24]. Enquanto isso o Ajax e o Aquiles chegaram a 12.000 metros do Graf Spee, sempre disparando seus canhões de 150 mm (armamento principal dessas duas naves). Eles começaram a martelar pesadamente a nave de guerra germânica, fazendo com este que dividisse os disparos do seu principal armamento. Essa ação aliviou o sofrimento do Exeter, que recebeu ordens de deixar a ação e ir para o sul, para as Falklands.

Hidroavião Arado do Graf Spee destruido.

Até às oito da manhã o Graf Spee continuou a trocar disparos contra o Ajax e o Aquiles. Depois de quase duas horas de combate, para alguma surpresa dos ingleses e neozelandeses, a nave alemã levantou uma cortina de fumaça e partiu em direção ao continente sul-americano. Aos binóculos dos seus inimigos, o navio alemão tinha apenas um dano superficial visível.

Na verdade um disparo de 203 mm do Exeter desferiu aquele que foi o golpe decisivo contra o Graf Spee. Quando destruiu seu sistema de processamento de combustível cru e deixou a poderosa nave alemã com apenas 16 horas de combustível, insuficientes para permitir que retornasse para a Alemanha. Sua tripulação não podia realizar consertos dessa complexidade em alto mar. Além disso, dois terços de sua artilharia antiaérea foram destruídos, assim como uma de suas torres secundárias. 

O Graf Spee em Montevideo.

Não havia bases navais amigas ao alcance e muito menos reforços disponíveis. Naquelas condições o Graf Spee só poderia seguir para algum o porto neutro, como o da cidade brasileira de Porto Alegre, ou o porto uruguaio de Montevideo, ou para Buenos Aires.

Escolheram Montevideo!

O Fim do Graf Spee

A batalha agora se transformou em uma perseguição marítima. Os cruzadores mantiveram cerca de treze milhas náuticas (24 km) de distância do Graf Spee. Estava claro que a nave alemã seguia para o estuário do rio da Prata, onde entrou em Montevideo a meia noite e dez minutos de 14 de dezembro[25]

Essa decisão foi um erro político, pois o Uruguai, embora neutro, havia se beneficiado do comércio e da significativa influência britânica durante seu desenvolvimento e os uruguaios claramente favoreceriam os Aliados.

Mortos alemães da Batalha do Rio da Prata.

O Capitão Langsdorff libertou 61 marinheiros mercantes cativos que estavam a bordo do Graf Spee, que declararam terem sido humanamente tratados. Os tripulantes alemães feridos foram levados para hospitais locais e os mortos foram enterrados com honras militares completas.

Langsdorff então pediu ao governo uruguaio duas semanas no porto para fazer reparos, mas os diplomatas britânicos começaram a pressionar as autoridades uruguaias para a partida rápida do navio alemão. Langsdorff então recebeu a informação que o governo da República Oriental do Uruguai havia-lhe concedido apenas 72 horas de permanência no porto de Montevideo. 

No enterro dos seus comandados o Capitão Langsdorff faz a tradicional saudação militar, enquanto civis, entre eles religiosos, fazem a saudação nazista.

Ao mesmo tempo, esforços foram feitos pelos britânicos para disseminar falsas informações aos alemães que uma esmagadora força britânica estava chegando, incluindo o porta-aviões HMS Ark Royal e o cruzador HMS Renown. Na verdade, além dos dois cruzadores leves que anteriormente se bateram contra a nave alemã, a eles se juntou apenas o veterano Cumberland, que chegou às 22:00 de 14 de dezembro e sem ter resolvidos todos os seus problemas anteriores.

Os alemães foram totalmente enganados e acreditaram que iriam enfrentar uma força muito superior ao deixar o Rio da Prata. Além disso, o Graf Spee utilizou dois terços de sua munição de 280 mm, o que lhe deixava com o suficiente para aproximadamente 20 minutos de disparos, quantidade de munição limitada para o combate que aconteceria ao sair de Montevideo.

O Graf Spee deixando Montevideo para sua última navegação.

Langsdorff sabia das relações amigáveis entre o Uruguai e a Grã-Bretanha e se aceitasse que seu navio fosse internado e mantido sob a guarda da Marinha do Uruguai, esses certamente permitiriam que os oficiais da inteligência britânica tivessem acesso ao seu interior. Algo impensável. Como Langsdorff tinha ordens de afundar seu navio se não houvesse condições de lutar pela liberdade de seu barco e de sua tripulação e o limite de tempo imposto pelo governo do Uruguai estava próximo de se encerrar, ele decidiu afundar sua nave.

O fim.

Com o capitão e apenas outros 40 homens a bordo, o Graf Spee  seguiu três milhas fora do porto de Montevideo, em águas internacionais, onde então Langsdorff ordenou a destruição de todos os equipamentos importantes a bordo e o suprimento de munição restante foi colocado por todo o navio em preparação para o afundamento. 

Pouco antes de nove da noite, diante de uma grande multidão de uruguaios calculada em 250.000 pessoas, primeiramente a sirene anticolisão do navio alemão soou estridentemente, depois múltiplas explosões lançaram jatos de fogo no ar e criaram uma grande nuvem de fumaça que obscureceu o navio. Imediatamente após o seu afundamento o Graf Spee descansou em águas rasas, a uma profundidade de apenas onze metros, com grande parte da sua superestrutura permanecendo acima do nível da água[26].

O Sacrifício do Comandante

O Capitão Langsdorff evitou sob todas as circunstâncias que sua tripulação fosse internada no Uruguai, preferindo uma transferência para a Argentina, do outro lado do Rio da Prata.

O cargueiro alemão Tacoma, presente nessa ocasião no porto de Montevidéu, recebeu ordens para estar pronto para partir e seguir o navio de guerra. Mas devido ao seu calado, não poderia percorrer a rota direta de Montevidéu a Buenos Aires. Foi quando na noite de 17 de dezembro o Capitão Rudolf Hepe, inspetor em Buenos Aires da empresa de navegação marítima alemã Hamburg-Süd, contratou dois rebocadores argentinos para transportar os marujos do Graf Spee até Montevidéu. Este apoio logístico, que funcionou corretamente até o último minuto, foi essencial para evacuar toda a tripulação para uma Argentina amigável à Alemanha, onde os marinheiros poderiam ter um regime de internamento mais benevolente.

Dois dias depois na capital argentina, depois de completar as formalidades com as autoridades locais, Langsdorff fez um breve discurso para seus oficiais e depois se retirou para um quarto de hotel. Pouco tempo depois, com a bandeira de batalha da Marinha Imperial Alemã ao redor de seus ombros, cometeu suicídio com uma pistola. Langsdorff deixou uma carta para sua família e outra para o Barão von Therman, o embaixador alemão em Buenos Aires, onde assumiu a responsabilidade pelo incidente Graf Spee. Tinha 45 anos de idade.

Hans Langsdorff foi enterrado na Seção Alemã do Cemitério La Chacarita, em Buenos Aires, onde chegou até mesmo a ser homenageado pelos seus inimigos por sua conduta honrosa.

No final ficou patente que Langsdorff escolheu sacrificar seu navio para preservar a vida de seus homens. Ao cometer suicídio o comandante do Graf Spee provou que não havia evitado o combate naval para salvar a sua vida e que seu destino era igual ao do seu navio. 

Para outros, nazistas principalmente, Hans Langsdorff não passou de um mero covarde, que teve uma atitude derrotista causada por maus julgamentos, que preferiu enfrentar o suicídio aos seus inimigos imediatos, ou a desgraça nas mãos de seu governo. Afirmaram ainda que, dadas as probabilidades reais de um combate após partir de Montevideo, um comandante com mais coragem teria condições de afundar de dois a três navios inimigos e tentar voltar para a Alemanha.

Essa possibilidade seria viável?

É possível! Mas tudo se mostraria um sacrifício inútil.

Mesmo que vencesse inicialmente os três cruzadores que estavam no estuário do Rio da Prata, Langsdorff, com pouca munição nos seus paióis e importantes problemas para resolver nas máquinas do seu navio, dificilmente conseguiria fugir dos mais de 30 navios de guerra inimigos que o caçariam implacavelmente por todo Oceano Atlântico.

E não podemos esquecer que sob o comando de Langsdorff a missão operacional do Graf Spee  foi cumprida com sucesso. Apesar de tudo que aconteceu ele conseguiu comprometer as linhas de fornecimento marítimo comercial para a Grã-Bretanha por algum tempo, afundando nove navios mercantes e causando pânico nas tripulações e armadores. Mais importante foi o efeito estratégico de desviar muitos navios de guerra da Marinha Real Britânica e Francesa para caçarem um esquivo atacante alemão que surgiu inesperadamente na imensidão do Atlântico Sul e do vizinho Oceano Índico.

De todas as maneiras o que Hans Langsdorff fez desafia o senso comum. Em foco permaneceu a situação limítrofe de um oficial de marinha que rompeu com a tradição, seguiu sua consciência e salvou a vida de centenas de seus comandados[27].

O Destino das Testemunhas Brasileiras e Um Interessante Estrangeiro Visita Natal

Não demorou e os paraenses Martinho Silva, Thomaz Brandão e Waldemar Francisco Penedo, os simples “graxeiros” do Clement, foram totalmente esquecidos pela imprensa nacional.

Sei que após passarem por Maceió os três paraenses chegaram a Salvador, onde conseguiram roupas e dinheiro com o cônsul britânico ali lotado. Depois tomaram o rumo para Recife e sumiram. Mesmo com muitas buscas nos arquivos dos jornais antigos, nada mais encontrei sobre esses brasileiros.

Já em Natal o episódio do afundamento do Clement foi muito pouco comentado pelos jornais A República e A Ordem, os principais que circulavam na capital potiguar nessa época. Mas uma pequena e discreta nota publicada na terceira página do jornal A República, edição de 13 de outubro de 1939, dá conta da inesperada chegada de um interessante visitante estrangeiro, que parece ter relação com os acontecimentos relativos a destruição desse cargueiro inglês na costa pernambucana.

Capitão Donal Scott McGrath, Adido Naval britânico no Brasil.

Na manhã do dia 12 de outubro de 1939 um hidroavião da Panair amerissou no Rio Potengi e entre os passageiros que desembarcaram estava o Capitão Donal Scott McGrath, Adido Naval britânico no Brasil e a maior autoridade da Marinha de Sua Majestade o rei Jorge VI em nosso país. Esse veterano da Primeira Guerra, ex-comandante de barco torpedeiro e de destroieres em Malta e no Extremo Oriente, havia sido designado para a Divisão de Inteligência Naval do Almirantado antes da Segunda Guerra Mundial e enviado ao Brasil como Adido Naval no Rio de Janeiro[28].

Em Natal o Capitão McGrath foi recebido pelo chefe de gabinete do governador Rafael Fernandes, o advogado Paulo Pinheiro de Viveiros. Apesar dessa informação não sabemos praticamente nada da visita de McGrath a capital norte-rio-grandense, mas temos conhecimento que as duas da tarde do mesmo dia ele embarcou em um trem da Great Western para Recife e sabemos o quanto até aquela data era raro uma visita de um adido naval britânico a Natal.

O oficial Capitão Donal Scott McGrath está sentado, ao centro da foto.

Evidentemente não podemos deixar de perceber que o Capitão Donald Scott McGrath veio primeiro a Natal, para só depois seguir para Recife para, talvez, se encontrar com os náufragos do Clement. Outra situação interessante está no fato desse homem aqui chegar cinco dias após o Almirantado Britânico informar que um cargueiro americano havia visto um navio de guerra alemão a 60 milhas náuticas de Natal[29].

Logo estrangeiros bem mais importantes que o Capitão Donal Scott McGrath chegaria com maior frequência a capital potiguar e a própria Segunda Guerra Mundial seria assunto de atenção primária[30].

Com a Guerra Cada Vez Mais Perto

Manoel de Medeiros Britto, ex-deputado estadual e ex-ministro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte, nascido em 1924, era um jovem seminarista na primeira metade de 1940, no tradicional Seminário São Pedro em Natal. Ele comentou em uma entrevista ao autor deste artigo que nessa época as notícias sobre a Segunda Guerra Mundial preenchiam cada vez mais os debates do dia a dia no Seminário e como toda essa movimentação alterava a sua rotina e a de seus colegas.

O autor desse artigo e o amigo Manoel de Medeiros Britto.

Nos céus de Natal o ronco de aviões estrangeiros se tornou cada vez mais frequente. Era comum o sobrevoo das aeronaves italianas, alemãs e americanas, partindo ou chegando à capital potiguar. Certo dia, durante o recreio no Seminário, Manoel de Britto viu um grande hidroavião quadrimotor prateado passar roncando fortemente e assustando a todos. Era um modelo Boeing 314 Clipper, de fabricação americana e esse colosso dos céus lhe impressionou bastante. Aquela aeronave era um verdadeiro marco da aviação comercial e percorria a linha aérea de Miami ao Rio de Janeiro, com escala em Natal, sempre amerissando no Rio Potengi.

Em maio de 1940 chamou atenção do jovem Manoel de Britto a forte repercussão que a queda da França teve entre os natalenses. A foto de Adolf Hitler ultrajando a Torre Eiffel foi algo que impressionou os moradores da capital potiguar, tanto pela França ser o país estrangeiro mais admirado pelos brasileiros na época, como pela derrota avassaladora que estes sofreram frente aos nazistas. Ele também comentou que após a rendição da França ouviu várias reclamações sobre o aumento dos preços dos produtos alimentícios que eram importados, como a farinha de trigo, conhecida na época como farinha do reino, a pimenta, queijos, manteigas, entre outros.

Boeing 314 Clipper.

Diante desses acontecimentos Manoel de Britto e certamente grande parte dos quase 50.000 habitantes de Natal na época, perceberam que aquela guerra afetaria o dia a dia de todos de uma forma ou de outra.

Eles só não sabiam o quanto e nem como o perigo algumas vezes esteve bem próximo!

NOTAS


[1] Certamente o comando da Kriegsmarine desejava que as ações de combate do Graf Spee obrigasse a Marinha Britânica a deslocar seus vasos de guerra para o Atlântico Sul a fim de caçarem o poderoso navio alemão, deixando o Atlântico Norte desprotegido.

[2]Foram construídos três navios dessa classe; o Deutschland (lançado ao mar em 1931), o Admiral Scheer (1933) e o Admiral Graf Spee (1934). Nenhum deles sobreviveu a Segunda Guerra.

[3] Por ocasião da viagem do Graf Spee ao Atlântico Sul só u m hidroavião foi levado.

[4] Em janeiro de 1938 o Almirante Graf Spee foi o primeiro navio de guerra alemão a ser equipado com um radar de busca. Era o protótipo “Seetakt” FuMG 39G, sendo instalado a bordo do navio com uma antena de 0,8 x 1,8 metros, montada na carcaça giratória do telêmetro.

[5] Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial os três homens da família Spee seguiram para a Marinha Imperial Alemã, onde todos morreram no dia 8 de dezembro de 1914, junto com toda a tripulação do cruzador SMS Scharnhorst, na devastadora derrota alemã na Batalha Naval das Ilhas Falklands (Malvinas). A história começa em 1 de novembro de 1914, onde uma frota de cruzadores imperiais alemães comandadas por Spee destruiu dois cruzadores pesados britânicos próximos a costa do Chile, naquela que ficou conhecida como a Batalha Naval de Coronel. Essa foi a primeira derrota da marinha britânica desde 1812 e o combate ocasionou a morte de 1.700 oficiais e marujos. Mas o troco não se fez esperar e em 8 de dezembro do mesmo ano uma força naval britânica afundou a leste das Ilhas Falklands (Malvinas) oito navios alemães, sendo dois cruzadores de batalha, três cruzadores leves e três navios auxiliares, ocasionando mais de 2.200 mortos.

[6] O filho de Hans Langsdorff, Joachim Langsdorff, também se juntou à marinha alemã. Ele foi morto enquanto pilotava um submarino anão modelo Biber 90 em dezembro de 1944. Sua nave foi posteriormente recuperada pela Marinha Real e está atualmente em exibição no Imperial War Museum, em Londres.

[7] Em primeiro estava o Rio de Janeiro, Capital Federal, com 1.764.141 habitantes e em segundo São Paulo, com 1.326.261. Sobre as populações das capitais estaduais brasileiras em 1940 e outros períodos ver https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00

[8] Os navios em Recife nessa época foram o Tijuca, Uruguay, Bertha Fisser, Curityba, Mecklemburg, São Paulo, Cap Norte e Wolfsburg. Já os ingleses foram o Benedict, Ruperra, Soconía, Western Princes, Baltic e o malfadado Clement. Uma particularidade interessante a todos esses navios é que suas saídas sempre ocorriam à noite e suas luzes eram totalmente apagadas após ultrapassarem a linha dos arrecifes existentes na área desse porto. Apesar do conflito existente na Europa, não consegui encontrar nas páginas dos jornais nenhum conflito que ocorreu com essas tripulações em Recife.

[10] Sobre a existência de espiões do Eixo em Recife e Natal ver https://tokdehistoria.com.br/2017/03/08/o-curioso-caso-do-espiao-nazista-em-natal-durante-a-segunda-guerra-mundial/

[11] Ver o texto “O fim do encouraçado de bolso Admiral Graf Spee”, de Carlo di Risio, in Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v. 111, números 7/9 e 10/12, p. 390, jul./set. e out./dez. 1991.

[12] Sobre a passagem desse navio por Natal ver Jornal Pequeno, Recife, edição de segunda-feira, 2 de outubro de 1939, na página 3.

[13] Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 4 de outubro de 1939, na página 3.

[14] Sobre essa questão os jornalistas do jornal carioca Correio da Manhã tiveram certa dúvida se esse ataque realmente se realizou entre 60 e 70 milhas da costa, pois um barco como o Clement, fazendo uma viagem tão curta, como era o caso entre Recife e Salvador, normalmente “não se afastaria tanto da costa”. Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 4 de outubro de 1939, na página 3.

[15] Nessa época era normal que aviões e hidroaviões, principalmente da empresa Air France, transportassem malas postais de norte a sul do Brasil voando próximo ao litoral brasileiro. Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 5 de outubro de 1939, na 2ª página.

[16] Quando partiu para o Atlântico Sul o Graf Spee transportava apenas uma aeronave e seu respectivo pessoal de apoio. Este foi o Arado 196A-1 do esquadrão aéreo embarcado Bordfliegerstaffel 1./196 – BFGr. 196.

[17] Não existe nenhum indício que aponte que esse hidroavião Arado 196A-1 sequer tenha visualizado a costa brasileira.

[18] O Capitão Harris e o Chefe Bryant foram embarcados a bordo do navio grego Papalemos, que foi parado e revistado pelos alemães no mesmo dia do afundamento do Clement. Os oficiais ingleses foram desembarcados nas Ilhas de Cabo Verde no dia 9 de outubro. O capitão concordou em não transmitir um sinal de socorro até chegar ao seu destino em troca da libertação da tripulação do seu navio. Ele honrou este acordo.

[19] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 3 de outubro de 1939, páginas 1 e 4.

[20] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro, edição de sábado, 7 de outubro de 1939, na 1ª página.

[21] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 4 de outubro de 1939, páginas 1 e 3. Essas três milhas seriam ampliadas para seis em 1966, sendo ampliadas depois de três anos para doze milhas e em 1970 chegou as atuais 200 milhas náuticas. Ver texto de Dalmo de Abreu Dallari “O Mar Territorial do Estado Brasileiro”, obtido no link file:///C:/Users/rosta/Downloads/66716-Texto%20do%20artigo-88104-1-10-20131125.pdf

[22] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 4 de outubro de 1939, páginas 1 e 3.

[23] Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 5 de outubro de 1939, na página 2.

[24] Além do fuzileiro Russel e do marinheiro O’Leary, outros 63 homens morreram no Exeter como consequência desse combate.

[25] No decorrer da batalha o Graf Spee havia sido atingido aproximadamente 70 vezes, com 36 homens mortos e outros 60 ficaram feridos, incluindo Langsdorff, que havia sido ferido duas vezes por estilhaços enquanto estava na ponte de comando.

[26]Apesar das fortes pressões dos Aliados e dos países do Eixo para que os governantes uruguaios da época colocassem essa pequena nação sul-americana participando mais ativamente do conflito, O Uruguai manteve uma neutralidade extrema durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o drama do Admiral Graf Spee o mais importante acontecimento desse conflito envolvendo aquela nação.

[27] Ver Führungsentscheidung in einer Grenzsituation: Kapitän zur Ver Hans Langsdorff vor und in Montevideo 1939. Vortrag für Klaus-Jürgen Müller zum 80 Geburtstag in der Helmut-Schmidt-Universität de 11. Março 2010. 

[28] Sobre Donal Scott McGrath ver – http://www.holywellhousepublishing.co.uk/commandingofficers.html

[29] Nos jornais de Natal, Recife e Rio de Janeiro não encontramos nenhuma referência sobre a razão da visita deste Adido Naval nessas cidades, nem sabemos se ele chegou mesmo a se encontrar com os náufragos do Clement  em Recife. Sabemos apenas que no dia 17 de outubro ele retornou ao Rio. Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, edição de terça-feira, 17 de outubro de 1939, página 6.

[30] Durante a Segunda Guerra Mundial, após deixar seu cargo na Embaixada Britânica no Brasil, o Capitão Donal Scott McGrath teve participação ativa no conflito. Comandou o navio antiaéreo HMS Ulster Queen, depois foi o comandante do navio desembarque de tropas HMS Glengyle, no malfadado desembarque de Dieppe, França, em 19 de agosto de 1942, na sequência comandou o porta-aviões HMS Tracker e o navio varredor de minas HMS Adventures.

SEGUNDA GUERRA EM NATAL – O DEPÓSITO DA ADP DA RUA CHILE

Rostand Medeiros – IHGRN

Parte Integrante do livro Lugares de Memória – Edificações e Estruturas Históricas em Natal Durante a Segunda Guerra Mundial, páginas 73 a 75.

Sobre esse depósito, Lenine Pinto assegura que o local original era ao lado do Centro Náutico Potengy, tradicional clube de remo localizado na Rua Chile. Para esse autor, o prédio seria como um “ship Chandler”, um local da Airport Development Program (ADP), especializado em fornecimento de suprimentos para os navios da Marinha dos Estados Unidos.

Ali, segundo Lenine, eram estocados grandes carregamentos de suprimentos, acondicionados em caixas, fardos e outras embalagens. Quando esse material estragava, pelo menos para o padrão dos norte-americanos, era jogado no Rio Potengi. Aí um funcionário brasileiro do local só colocava esses produtos no rio com a maré vazante, onde o material flutuava até a comunidade do Canto do Mangue. Pessoalmente, já ouvi alguns depoimentos de pessoas que recolheram no Rio Potengi várias latas de manteiga de ótima qualidade.

Lenine comentou, por meio do relato de Rui Garcia, que ao final do conflito o que sobrou nesse depósito e em outros “três grandes depósitos de comestíveis” que os americanos possuíam em Parnamirim, foi vendido para o Exército Brasileiro[1].

Durante a realização desta pesquisa, em contato com outros pesquisadores do tema, surgiram dúvidas se o depósito nesse endereço teria sido realmente utilizado para esse fim. Ou teria sido em outro local?

A dúvida surgiu por esse ser um depósito que possui pequenas dimensões na atualidade e que, aparentemente, não teria condições de ser um local de armazenamento da ADP. Vale lembrar que essa era a empresa que desenvolvia a gigantesca obra da Base de Parnamirim.

Foto antiga do Porto de Natal.

Seria, então, esse local de maiores dimensões, ou ele sofreu alterações?

Segundo relatos de trabalhadores e administradores de empresas na região, quando estivemos visitando o prédio em 2014, aparentemente a resposta é não!

Pudemos perceber na época dessa visita que a edificação apresentava poucas alterações mais radicais.

Outra dúvida estava nas proximidades.

Não muito distante do endereço da Rua Chile, número 44, existe um local conhecido naquele setor com “Frigorífico” e pertencente à Companhia Docas do Rio Grande do Norte (CODERN). Pela sua grande dimensão, antes de ter sido utilizado para conservação de gêneros alimentícios, ali poderia ser esse o antigo depósito da ADP?

Atendendo a um pedido nosso, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte solicitou informações sobre o caso ao Almirante Elis Treidler Öberg, atual Diretor-Presidente da CODERN. Esse, por sua vez, encaminhou um texto do jornalista Aproniano César Fagundes Trindade, pesquisador da história do Porto de Natal desde 1972 e fundador de um museu que guarda a história do nosso porto. Nesse texto Trindade informou ter sido o local idealizado como frigorífico durante a Segunda Guerra e destinado ao abastecimento das tropas aqui sediadas. Mas sua construção só se iniciou em 1948 e foram concluídas em 1951. Isso descartou a utilização do “Frigorífico” como o antigo depósito da ADP, pois os norte-americanos deixaram definitivamente Natal em 1947.

Nesse sentido, sem maiores opções e mesmo com as dimensões reduzidas, deixamos valendo a informação de Lenine Pinto, que aponta ter sido o prédio da Rua Chile, 44, o antigo depósito da ADP.

Sobre a utilização do Porto de Natal durante a Segunda Guerra Mundial, soubemos, por intermédio do trabalho do jornalista Aproniano César Fagundes Trindade, que nosso porto podia receber navios de até 27 pés de calado. Petroleiros, destroieres e cruzadores penetravam nesse porto sem nenhuma dificuldade. Após a Guerra, o porto começou a entrar em crise, sendo uma das causas o fato do canal de acesso não ter sido mais dragado por anos e, por isso, muita areia acumulou-se no seu leito.

Essa situação agravou o problema dos transportes marítimos em Natal. No início de dezembro de 1950, devido à impossibilidade de acesso à barra de navios de calado superior a 20 pés, Rui Moreira Paiva, então agente da Companhia Nacional de Navegação Costeira, comunicou à imprensa local que os navios de passageiros daquela empresa não aportariam mais em Natal.

Quem da capital potiguar quisesse viajar para as capitais do norte e sul do país teria que embarcar em Recife ou Fortaleza.

Obviamente essa situação acarretou sérios prejuízos para a economia potiguar, pois reduziu as exportações dos nossos produtos e encareceu a importação das mercadorias[2].

NOTAS


[1] PINTO, Lenine. Natal, USA. 2. Ed – Natal-RN: Edição do autor, 1995. Páginas 81 e 82.

[2] SMITH JUNIOR, Clyde – Trampolim Para a Vitória. 1. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1993, Páginas 15 a 27.

1939 – A INTERESSANTE PALESTRA DE JUVENAL LAMARTINE SOBRE O ENVOLVIMENTO DE NATAL NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Juvenal Lamartine

Rostand Medeiros – IHGRN

Na noite de 4 de fevereiro de 1939, sete meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, o ex-governador potiguar Juvenal Lamartine de Faria proferiu uma interessante palestra no Rotary Club de Natal. Ali Juvenal comentou com os presentes sobre sua antiga ligação com a aviação, anteviu o início da Guerra, apontou como em sua opinião seria o envolvimento da capital potiguar no grave conflito, clamava a atenção das autoridades para o que poderia acontecer e apontou as ações que os militares dos Estados Unidos executariam para a sua defesa.

Essa palestra foi integralmente apresentada na edição do jornal A República, de 11 de fevereiro de 1939, página 10, mas não causou nenhuma repercussão e nem foi posteriormente comentada naqueles dias incertos.

NATAL: A MAIS IMPORTANTE BASE DE DEFESA AÉREA DO BRASIL

Palestra do Dr. Juvenal Lamartine, na reunião de 4 do corrente no Rotary Clube de Natal.

Em 1927, quando tive a honra de ocupar uma cadeira no Senado Federal, como representante do Rio Grande do Norte, apresentei à consideração aquela casa do Parlamento, tão rica de brilhantes tradições, um projeto de lei autorizando o governo da República a construir um aeroporto em Natal com base para os aviões em Fernando de Noronha e, nos rochedos de São Pedro e São Paulo, um farol aéreo, cuja coluna fosse uma alegoria, que lembrasse e perpetuasse a memória de Santos Dumont.

Fernando de Noronha na década de 1920.

Decorridos hoje mais de dois lustros, e tendo o mundo passado por profundas e graves transformações políticas, penso que cada dia mais se impõe e se faz urgente a realização da ideia que tive em 1927, diante não só do desenvolvimento da aviação comercial, como principalmente dos perigos que ameaçam as nações militarmente fracas, mas ricas em matérias primas, como é o caso do Brasil.

Embora afastado da atividade pública, continuo, entretanto, a me interessar vivamente por tudo que se relaciona com o desenvolvimento do nosso potencial econômico, segurança e integridade do Brasil.

Juvenal Lamartine, o0 primeiro a esquerda, ao lado de um biplano francês.

Desde que vi o primeiro avião, fiquei empolgado pela aviação aérea, na qual antevi um futuro formidável e o meio de transporte ideal para o Brasil, cujo vasto território não é possível cortar de estradas de ferro, se não em um futuro muito remoto e às custas de somas fora de nossas possibilidades econômicas.

Quando os pilotos franceses foram contratados como instrutores do nosso Exército e vieram fundar nossa primeira escola de aviação, fui dos primeiros civis a subir em avião. Nesse tempo era uma temeridade andar pelos ares. A sensação que experimentei nesse voo inicial foi formidável: mas tive desde logo a visão nítida que os céus seriam, em pouco tempo, cortados em todas as direções pelas hélices por aparelhos de todas as nações do mundo, numa competição cada vez maior, e que era preciso estender as linhas aéreas, não só às capitais dos Estados, como ao nosso hinterland[1].

Djalma Petit e Juvenal Lamartine no Aeroclube. Foto da Revista Cigarra. Fonte-http://peryserranegra.blogspot.com

Eleito Presidente do Rio Grande do Norte, dediquei-me com entusiasmo no desenvolvimento do novo meio de transporte, fundando, com parcos recursos do Tesouro do Estado, o Aeroclube de Natal, criando uma escola de pilotos civis, construindo e pessoalmente inaugurando trinta campos de pouso nos municípios no interior, facilitando a instalação nesta Capital de companhias estrangeiras que aqui fundaram bases para seus aviões comerciais, animando, finalmente, por todos os modos esse admirável meio de transporte e já hoje a mais terrível arma de guerra e destruição[2].

A posição geográfica do Rio Grande do Norte e as condições privilegiadas de Natal devem merecer a atenção dos responsáveis pela defesa do Brasil, cujo ponto mais vulnerável a quaisquer ataque aéreo é a costa do Nordeste. Os Estados Unidos da América do Norte, possuindo uma das forças aéreas das mais fortes do mundo e aviões de bombardeiro que não encontram paridade, já pelo se poder ofensivo, já pelo seu raio de alcance, vão gastar somas formidáveis na construção de bases em toda a costa do Atlântico e nas ilhas da América Central, a fim de garantir-se contra um possível ataque de uma potência europeia.

Mapa da empresa Compagnie Générale Aéropostale (CGA) mostrando sua rota aérea que passava por Natal e a nossa privilegiada posição estratégica.

Muito, muito maior é o perigo que corre o Brasil, econômica e militarmente fraco e detentor de imensas riquezas ainda inexploradas e cobiçadas pelos povos imperialistas. O seu ponto mais vulnerável, como já disse, é o Nordeste e a base de defesa mais importante é Natal, donde os aviões poderão exercer um patrulhamento eficiente contra quaisquer tentativas de ataque não só ao Brasil, como mesmo a toda a América do Sul.

Na ausência de autoridade para só por mim agitar o problema, venho lembrar que o Rotary tem a iniciativa de sugerir as altas autoridades da República, a começar pelo comandante da Região Militar, a necessidade de ser incluída no plano quinquenal a construção do porto aéreo de Natal.

Festividade em Natal para os aviadores italianos Ferrarin e Del Prete. Da esquerda para direita vemos o Cônsul italiano em Recife, Arturo Ferrarin, Juvenal Lamartine, Carlo del Prete e a cientista Berta Lutz

Embora não seja técnico, penso, entretanto, que o melhor local para esse porto é o que se encontra entre o Radiofarol e o forte dos Reis Magos, feita a terraplanagem das dunas e a elevação do recife desde o mesmo forte até a praia do Meio.

As condições são as melhores possíveis, pois, além de oferecer espaço bastante para a construção de pistas para os aviões de terra, fica à margem do Potengi, onde podem amerissar os mais possantes hidroaviões do mundo[3].

Juvenal Lamartine de Faria em 1935

Com um apoio ou base em Fernando de Noronha e outro, se possível, nos rochedos de São Pedro e São Paulo, como propus em meu projeto de 1927, estará o Brasil de posse do mais importante porto militar aéreo da América do Sul e a chave da defesa deste Continente.

Para reforçar ainda mais o poder defensivo do porto aéreo de Natal e lhe dar maior eficiência, deve ser utilizada a Lagoa do Bonfim, a cerca de 30 quilômetros desta capital, para nela permanecer uma esquadrilha de hidroaviões de bombardeiro. São excepcionais as condições que oferece a Lagoa do Bonfim. Mermoz, o grande piloto francês há pouco desaparecido, considerava essa Lagoa uma das melhores bases do mundo para hidroaviões[4].

Alunos do Aeroclube do Rio Grande do Norte e, ao centro, de branco, o instrutor Djalma Petit.

Certamente ninguém pensa em concentrar todos os elementos de defesa aérea do Brasil no sul do país, de vez que, ocupado o norte, dificilmente seria desalojar daí o inimigo.

Qualquer ataque que sofrer o Brasil, por uma das nações fortes e imperialistas da Europa, só pode ser feito por via aérea e marítima visando precisamente o norte desprotegido de qualquer elemento de defesa e muito acessível a toda investida estrangeira.

Estou, aliás, convencido de que os poderes públicos conhecedores da importância estratégica de Natal mandarão construir aqui a base de defesa da nossa costa setentrional.

Pouco tempo depois da divulgação do discurso de Juvenal Lamartine no Rotary de Natal, a Segunda Guerra começou e logo, como Juvenal Lamartine previu, Natal se tornou um dos principais pontos estratégicos da aviação dos Aliados. Não demorou e logo hidroaviões do tipo Consolidated PBY Catalina, que na foto estão participando de uma cerimônia no Rio, se tornaram frequentes na capital potiguar.

Daqui é possível não só repelir qualquer tentativa de ataque por aviões que projetem atravessar o Atlântico, como estabelecer linhas de defesa para os Estados do sul e do norte do Brasil.

O ideal de todos os povos do mundo é a paz; mas, como a humanidade ainda não atingiu esse ideal, o dever de todos os povos é organizar sua defesa para a proteção de seus habitantes e de suas fontes de produção e de riqueza[5].

NOTAS

——————————————————————————————————————–


[1] Palavra de origem alemã que significa “terra de trás”. Em alemão, a palavra também se refere à parte menos desenvolvida de um país, aquela menos dotada de infraestrutura e menos densamente povoada. Era muito utilizada por parte de autores e intelectuais brasileiros do início do século XX como sinônimo de sertão e interior.

[2] O que Juvenal Lamartine denomina como “Presidente eleito do Rio Grande do Norte” nesse texto significa que ele tinha sido eleito Governador do Estado. Durante o regime imperial, os atuais governadores eram denominados “Presidentes de Província”, denominação que foi alterada para “Presidente dos Estados” com a implantação do período republicano em 1889. Essa denominação seguiu até a Revolução de 1930, quando aparece o termo “Governador”, sendo essa maneira como se designam os Governantes dos estados brasileiros até hoje.

[3] O Radiofarol ao qual Juvenal Lamartine se refere era uma instalação pertencente à Marinha do Brasil, inaugurado em 27 de janeiro de 1937, situada nas dunas que atualmente estão na área do quartel do 17° GAC. Servia para a orientação de aeronaves que cruzavam o Oceano Atlântico em direção a Natal através de ondas de rádio e possuía duas torres de transmissão com cerca de 60 metros de altura. Tratamos neste livro sobre esse local. Já a ideia dessa pista de pouso aparentemente seria uma estrutura que teria sua cabeceira na região do Iate Clube de Natal, percorreria a área onde atualmente se encontram os tanques de combustível da Petrobras e parte do bairro das Rocas, finalizando próximo à beira mar. Na época, essa era uma área com poucas habitações e essa pista de pouso poderia ter uma extensão alcançaria entre 800 a 1.200 metros.

[4] Juvenal Lamartine se referiu ao piloto Jean Mermoz (1901 – 1936), verdadeiro mito da aviação francesa, que com seu forte espírito desbravador realizou, em 12 de maio de 1930, a primeira viagem transatlântica de correio aéreo sem escalas. Partiu de Saint-Louis (atual Senegal) a bordo de um hidroavião Laté 28 com mais dois companheiros e chegou a Natal depois de 21 horas de voo, percorrendo uma distância superior a 3.000 km. Seis anos após esse feito, após partirem de Natal, Jean Mermoz e sua tripulação desapareceram no Atlântico, durante a sua 25.ª travessia do Atlântico Sul, a bordo de um hidroavião Laté 300.

[5] Ver o jornal A República, Natal/RN, edições de sábado, 4 de fevereiro de 1939, pág. 4 e 11 de fevereiro de 1939, pág. 3.

A ESQUECIDA CANTINA DO COMBATENTE EM NATAL

Durante a Segunda Guerra Mundial Existiu na Capital Potiguar um Local que Muito Ajudou os Militares Brasileiros que aqui estavam. Completamente esquecido nos dias atuais, era conhecido como Cantina do Combatente e Foi um dos Poucos Locais Criados para Atender e Apoiar as Necessidades Dessas Pessoas. Um Futuro Governador Potiguar se Destacou no Seu Desenvolvimento.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

O jovem Getúlio Vargas e sua esposa Darcy em 1911.

A partir de janeiro de 1928, quando Getúlio Dorneles Vargas se tornou governador do Rio Grande do Sul, sua mulher Darcy Sarmanho Vargas acompanhava sua carreira política de forma mais reservada. Mas a partir desse ano essa gaúcha da cidade de São Borja assumiu funções que estavam muito além das de ser a esposa e a genitora de cinco filhos. Ela começou a participar ativamente de atividades assistencialistas do governo do seu marido.

Dois anos depois, ainda em terras gaúchas, a primeira-dama criou a Legião da Caridade, entidade fundada para apoiar com mantimentos e remédios às famílias dos riograndenses do sul que participaram da Revolução de 1930, episódio político que levou seu marido a permanecer no cargo máximo do poder executivo brasileiro até o ano de 1945[1].

Dona Darcy Vargas – Fonte – http://2.bp.blogspot.com/

Após se mudar para o Rio de Janeiro, Darcy Vargas realizou visitas a hospitais e asilos e montou com a estrutura do governo uma casa de costura para ajudar doentes da Santa Casa de Misericórdia[2]. Em 1936 a primeira-dama brasileira fundou oficialmente o Abrigo Cristo Redentor, onde realizou trabalhos de apoio aos mendigos e menores abandonados. Em 1940 ela fundou a Casa do Pequeno Jornaleiro, onde buscou oferecer aos menores de rua abrigo e alimentação, dando-lhes ocupação com aulas e cursos profissionalizantes, além de emprego[3]. Foi na Casa do Pequeno Jornaleiro que Darcy Vargas organizou pela primeira vez o chamado Natal das Crianças, também conhecido como Natal do Pobres, onde era realizado uma grande festividade natalina marcada pela distribuição de brindes e oferta de diversão ao público. Consta que esse evento foi tomando grandes proporções, tendo em 1944 beneficiado 25 mil menores[4].

Sabemos que Darcy Vargas foi uma das incentivadoras para a criação oficial da Legião Brasileira de Assistência – LBA, como um órgão assistencial público e de abrangência nacional. Depois de todos os trâmites burocráticos e contando com o apoio de federações e associações comerciais e industriais brasileiras, a instalação da LBA se deu em 2 de outubro de 1942.

Como nessa época o Brasil se encontrava em guerra contra a Alemanha e a Itália, um dos principais focos da LBA foi ajudar os militares brasileiros que atuavam na defesa do país, bem como de suas famílias.

Ao longo dos anos Darcy Vargas e a direção da LBA realizaram várias campanhas beneficentes como a Campanha da Madrinha dos Combatentes, ou as Hortas da Vitória, para incentivar a produção de alimentos pela população. Organizou também as Legionárias da Costura, que fabricavam materiais médico-hospitalares e roupas para serem doadas aos soldados. Na sequência instituiu a Cantina do Combatente, lugar de apoio e lazer para os soldados, cuja primeira unidade foi inaugurada no Rio de Janeiro em 20 de novembro.

E Natal foi uma das cidades contempladas com a criação de uma Cantina do Combatente.

O Início

Nos primeiros dias do mês de dezembro de 1942 desembarcou na Base de Parnamirim a Sra. Rosa de Mendonça Lima, uma das diretoras da LBA e esposa do general João de Mendonça Lima, então Ministro da Viação e Obras Públicas. Ela estava viajando pelo Nordeste para inaugurar as sedes da Cantina do Combatente em Salvador, Recife e Natal[5].

Getúlio Vargas, ao centro o general João de Mendonça Lima, então Ministro da Viação e Obras Públicas, e sua esposa Rosa de Mendonça Lima – Foto Arquivo Nacional.

Segundo o jornal natalense A Ordem, assim foi apresentada a Cantina do Combatente – “Instituição que visa o prolongamento do lar. Aí, os soldados brasileiros terão um ponto de diversão e assistência. Na cantina os militares terão cigarros, bebidas (não alcoólicas), leite, sanduiches e divertimentos, como livros, cinema, teatro, etc., tudo isso gratuitamente”. Uma ação muito apreciada pelos militares brasileiros era a existência de materiais para escrever e enviar cartas e o selo também era gratuito[6]. Percebe-se nitidamente o caráter assistencialista que a LBA colocava nessa ideia.

Depois de ser entrevistada na Rádio Educadora de Natal no programa “Fé e Civismo” e ser recebida pelo Interventor Federal Interino Aldo Fernandes Raposo de Melo, a Sra. Rosa de Mendonça Lima participou da inauguração[7].

Essa foi a única imagem que consegui da Cantina do Combatente em Natal.

A festa aconteceu no final da tarde de sábado, 5 de dezembro de 1942, e a sede da Cantina ficava localizada na Rua Jundiaí, no bairro de Petrópolis. Busquei com pessoas que viveram naquela época detalhes dessa localização, mas não consegui uma informação concreta. Para alguns, esse local era na esquina da Rua Jundiaí com a Avenida Hermes da Fonseca. Para outros seria em uma grande casa, atualmente derrubada, onde se localiza a Fundação José Augusto.

Aluízio Alves no início de carreira públiva.

Quem comandou o evento foi o jovem bacharel em direito Aluízio Alves, então Secretário Geral da Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência, que discursou e participou de descerramento de placa e da “inauguração” do retrato de Getúlio Vargas. Após a cerimônia oficial os muitos soldados, marinheiros e fuzileiros navais presentes aproveitaram para jogar sinuca, ping-pong, consumir o que havia no bar, jantar no restaurante e, para os que sabiam ler, aproveitar os livros e revistas da biblioteca, que em breve receberia mais de 90 volumes da conceituada Livraria Ismael Pereira[8].

Para animar a soldadesca e os convidados civis, apresentou-se um conjunto musical do 2º Grupo Móvel de Artilharia de Costa (2º GCMA) e as bandas da Polícia Militar e da Associação de Escoteiros.

Um dado interessante e que bem mostra o espírito existente na época devido a guerra em Natal foi que 25 senhoritas “das mais proeminentes famílias da sociedade natalense”, ficaram servindo bebidas e comidas para os jovens militares. Não fosse as circunstâncias do momento, acredito que dificilmente essas meninas de pele clara dariam a mínima atenção a esses rapazes, a maioria deles morenos e vindos do interior.

O primeiro grande evento da Cantina do Combatente foi realizado dias depois, em 13 de dezembro, na comemoração do Dia do Marinheiro. Houve uma palestra proferida por Elói de Souza e a animação foi realizada pelo “grupo de Jazz” da banda da Polícia Militar[9].

Festa de Natal da cantina do Combatente de Recife, Pernambuco. Esse clube ficava no Parque 13 de maio.

Americano Não Entra?

Não consta em nenhuma das fontes pesquisadas que nas solenidades realizadas em dezembro de 1942 estivessem presentes os militares estrangeiros que serviam em Natal.

Observando os jornais da época disponíveis, percebemos que foram poucas as ocasiões que os gringos se fizeram presentes na Cantina do Combatente. Vale recordar que o primeiro de dois clubes recreativos que os militares norte-americanos montaram em Natal só seria inaugurado três meses depois da Cantina dos militares brasileiros.

Ceremônia em Parnamirim Field – https://catracalivre.com.br

Durante a Segunda Guerra Mundial, quando um soldado norte-americano, recebia de seus superiores uma pausa necessária durante a luta, muitas vezes o seu destino eram as unidades recreativas do United Service Organization, popularmente conhecida em todo mundo como U.S.O. Essa organização foi criada em 4 de fevereiro de 1941, sendo financiada e apoiada pelo governo americano e sua missão básica era proporcionar lazer aos membros das forças armadas norte-americanas em qualquer lugar onde estivessem. Tal como a Cantina do Combatente em Natal, os clubes recreativos U.S.O. forneciam um ambiente para dançar, exibição de filmes e entretenimento ao vivo. Mas também serviam como um lugar tranquilo para conversar, escrever cartas e encontros, além de conselhos religiosos com os capelães lotados nas suas unidades militares[10].

Casa onde funcionou o U.S.O. do bairro Petrópolis, em Natal.

Os clubes U.S.O. receberam estrelas dos mais diversos níveis de importância da indústria do entretenimento dos Estados Unidos. Desde simples mágicos que antes da Guerra se apresentavam em pequenas casas de espetáculos, a estrelas hollywoodianas. Figuras como Katharine Hepburn, Groucho Marx, Bette Davis, Marlene Dietrich, Bob Hope e muitos outros fizeram parte das trupes dessa organização.

Um dos clubes U.S.O. em Natal ficava no bairro de Petrópolis, na Avenida Getúlio Vargas, 796, sendo chamado pelos estrangeiros como “U.S.O. Beach” e foi inaugurado em 1º de março de 1943[11]. O segundo ficava localizado no bairro da Ribeira, na Praça Augusto Severo, 252, sendo conhecido como “U.S.O. Town Club” e foi inaugurado em 14 de setembro de 1943[12]. Em Natal a entidade responsável por esses locais era denominada U.S.O. Overseas Department in Natal.

Salão principal e palco do Clube U.S.O. da Ribeira.

Existem, em jornais natalenses, informações de festas realizadas nesses ambientes, que contaram com a presença de autoridades brasileiras e norte-americanas. No jornal A Ordem, edição de 15 de abril de 1944, na 1ª página, temos informações de como foram as festividades em comemoração ao dia “Pan-Americano” no U.S.O. da Ribeira. Uma data bem oportuna e característica daquela época, em que se buscava a união entre os povos do Brasil e dos Estados Unidos. Nesse evento esteve presente o General Fernandes Dantas, natural de Caicó, que nessa época era o interventor no Rio Grande do Norte nomeado por Getúlio Vargas.

Segundo o norte-americano William L. Highsmith, que serviu em Natal entre abril de 1943 e agosto de 1945, era normal na sede do U.S.O. de Petrópolis existir redes de dormir armadas em um alpendre e ele algumas vezes descansava nesse local após o turno da noite anterior na Base de Parnamirim[13].

Nesse local, na Ribeira, funcionou durante a Segunda Guerra Mundial o Clube U.S.O. dos americanos na área mais central de Natal.

Uma Verdadeira Dádiva!

Enquanto Natal e o Brasil repercutiam o encontro dos presidentes Franklin Delano Roosevelt e Getúlio Vargas a bordo do USS Humboldt, um navio tênder de hidroaviões da Marinha dos Estados Unidos que estava ancorado no Rio Potengi, a Cantina do Combatente de Natal seguia normalmente com as suas atividades. O local recebia diariamente uma média de 400 militares brasileiros e todos os dias eram enviadas cerca de 200 cartas para a sede dos Correios e Telégrafos na Ribeira. Estas seriam remetidas ao custo mensal de 5.000 cruzeiros[14].

Mas seria possível que esse local recebesse essa quantidade de frequentadores e fosse gerado esse volume de correspondências?

Muito se comenta sobre o número de norte-americanos ligados a aviação e a marinha que estiveram atuando em Natal. Muitas vezes os números apresentados sobre a quantidade desses estrangeiros na capital potiguar muitas vezes são bem inflados. Mas no meu entendimento, mesmo sem ter maiores dados, o maior contingente de militares em Natal era de brasileiros. Essa dedução surge de forma simples, quando listamos as unidades militares dos três ramos das nossas Forças Armadas que aqui estiveram.

Soldados do Exército Brasileiro em Natal – Foto Hart Preston, LIFE.

Vejam o exemplo do nosso Exército – Natal foi sede do Comando da 14º Divisão de Infantaria (14º DI)[15], do 16º Regimento de Infantaria (16º RI), da 1ª Companhia do 1º Batalhão de Engenharia (1ª/1º BE)[16], do 4º Grupo de Artilharia de Dorso (4º GADô), do I Grupo do 3º Regimento de Artilharia Antiaérea (I/3ºRAAAé), do 2º Batalhão de Carros de Combate (2º BCC)[17], do 2º Grupo Móvel de Artilharia de Costa (2º GMAC), da 14ª Companhia Independente de Transmissões, do Hospital Militar de Natal (HMN), do 24º Circunscrição de Recrutamento (24ª CR), além de outras organizações menores, ou que passaram pouco tempo na capital potiguar.

A Marinha tinha a moderna e imensa Base Naval de Natal, com seus diversos departamentos, onde circulavam centenas de marinheiros. Havia ainda a Estação Rádio na Limpa (atualmente na área do 17º GAC), a 3ª Companhia Regional de Fuzileiros Navais, a Capitania dos Portos e as tripulações de diversos navios brasileiros que utilizavam o Rio Potengi como atracadouro de forma permanente, ou temporária.

Militares americanos e brasileiros da FAB no portão da guarda da base de Parnamirim Field.

Já a Força Aérea Brasileira – FAB, mesmo tendo sido criada no primeiro semestre de 1941, estava fortemente presente em Natal, tendo sido criado em 1942 a Base Aérea de Natal e atuando na mesma área que os americanos chamavam de Parnamirim Field. Em março de 1943 a FAB tinha então cinco esquadrilhas aéreas, que formavam dois Grupos de Aviação. Havia uma Companhia de Infantaria de Guarda composta de cinco pelotões, além de toda uma enorme estrutura de apoio para que essas unidades militares cumprissem corretamente suas inúmeras missões em tempo de guerra[18].  

Comentamos anteriormente que muitos dos militares que serviram em Natal eram provenientes do interior potiguar, mas havia uma parcela substancial que vieram de outros estados brasileiros. Um exemplo claro – Quando foi criado o 16 RI, pelo Decreto Lei 3.344, de 6 de junho de 1941, sua guarnição foi formada por elementos do 29º Batalhão de Caçadores (29º BC), de Natal, complementada por elementos do 11º Batalhão de Caçadores (11º BC), da cidade do Rio de Janeiro, e da 1ª Companhia do 12º Batalhão de Caçadores (1ª/12º BC), de Jacutinga, Minas Gerais[19].

E foi para essa massa de homens fardados vindas de várias partes do país, ou do sertão potiguar, que a Cantina do Combatente serviu perfeitamente. Para um contingente de pessoas cujo salário era bastante limitado, ter um ambiente onde eles podiam se alimentar, escutar uma boa música, ler algo de bom e pegar cigarros, sendo tudo isso de graça, era uma verdadeira dádiva!

Além de ser um ótimo ponto de apoio e de encontros uma situação positiva, destinada a apoiar os militares que não sabiam ler e nem escrever, era que na Cantina do Combatente sempre era possível encontrar alguém que voluntariamente escrevesse uma carta para seus familiares em locais distantes.

Um Aparente Encerramento

Uma das festas que foi marcante na história daquele local foram as comemorações pelo Dia do Soldado de 1943. Muitas autoridades presentes, muita gente circulando e foi realizado o “Show do Combatente”. No palco se apresentaram a banda do 16º RI, da Polícia Militar, além dos “conjuntos regionais” do 2º BCC e do 2º GMAC e a orquestra do Air Transport Command (ATC), da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF). Dividindo o palco com esses grupos musicais se apresentaram atrações locais da Rádio Educadora de Natal, que transmitiu ao vivo todo o evento[20].

Em novembro de 1943, Aluízio Alves entregou o cargo de Secretário da LBA no Rio Grande do Norte a Sra. Maria de Lourdes Dantas Matos e apresentou um relatório de sua gestão.

No tocante a Cantina do Combatente foi informado que entre dezembro de 1942 e setembro de 1943 o local forneceu mais de 52.000 refeições, expediu quase 3.500 cartas, entregou para os militares cerca de 17.500 maços de cigarros e atendeu de diversas formas 374 famílias de combatentes das três armas. Aluízio foi convidado por Dona Darcy Vargas a ir ao Rio de Janeiro, onde recebeu vários elogios da Primeira-dama pelo seu trabalho e conheceu a Cantina do Combatente na cidade carioca.

Outro evento em 1943 que foi bastante movimentado foi a comemoração do “Natal dos Combatentes”, na noite de 22 de dezembro.

Em janeiro de 1944 a Sra. Maria de Lourdes Dantas Matos anunciou que a Cantina do Combatente de Natal passaria por reformas. Mas dessa época em diante ela deixa de ser notícia nos jornais de Natal A Ordem e A República. Não encontrei nenhuma referência de sua reabertura, ou quaisquer outras notícias sobre um provável encerramento das atividades do local.

Provavelmente, como é normal em relação ao período da Segunda Guerra Mundial em Natal, a partir de 1944 a estratégica posição geográfica da capital potiguar e a atuação dos submarinos inimigos na área do Atlântico Sul já não tinha a mesma relevância e importância para os militares norte-americanos. Para os brasileiros, 1944 foi um ano onde toda atenção se voltou para o desenvolvimento da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e sua partida para o front italiano. Com isso algumas unidades militares, principalmente do Exército, foram deslocadas de Natal para outras localidades brasileiras e é provável que o movimento na Cantina do Combatente de Natal tenha diminuído bastante.

Mas esse local prestou relevante serviços ao esforço de guerra em Natal e certamente para um potiguar da cidade sertaneja de Angicos, a Cantina do Combatente foi um momento de grande aprendizado e de muita atividade administrativa na área pública. Tendo sido, juntamente com outras ações realizadas por Aluízio Alves à frente da LBA, algo que, de uma forma ou de outra, ajudou a melhor prepará-lo para assumir o cargo de governador potiguar vinte anos depois.

NOTAS


[1] Ver O combatente vespertino: A campanha de mobilização civil no jornal A Noite durante a Segunda Guerra Mundial (1942) de Vandré Aparecido Teotônio da Silva, Doutor em História Social Universidade de São Paulo. In https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1563823276_ARQUIVO_Ocombatentevespertino_VandreAparecidoTeotoniodaSilva.pdf. Visualizado em 19/10/2020.

[2] As outras faces dos presidentes: Darcy Vargas e Evita Perón, de Marina Maria de Lira Rocha Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. In http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-content/uploads/2016/11/e06_a7.pdf

[3] Ver Educação e produção de moda na Segunda Guerra Mundial: as voluntárias da Legião Brasileira de Assistência, de Ivana Guilherme Simili, Doutora em História, professora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá/UEM.

 in https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332008000200019 . Visualizado em 20/10/2020.

[4] Ver Darcy Vargas, Sarah Kubitschek e Maria Thereza Goulart: Instituição, perpetuação e reapropriação do primeirodamismo brasileiro, de Dayanny Deyse Leite Rodrigues, Doutoranda em História (Universidade Federal de Goiás), in https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1565199356_ARQUIVO_TrabalhoCompletoAnpuh2019.pdf,visualizado. Visualizado em 22/10/2020.

[5] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, ed. 21/11/1942, pág. 1.

[6] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, ed. 03/12/1942, pág. 1.

[7] O Interventor Federal Rafael Fernandes Gurjão se encontrava no interior do Rio Grande do Norte.

[8] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, edições de 05/12/1942, pág. 1 e 22/05/1943, pág. 4.

[9] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 06/12/1942, pág. 1.

[10] Em 1940, por sugestão do General George C. Marshall e com a aprovação do presidente Franklin Roosevelt, mais de um milhão de voluntários administraram mais de 3.000 clubes recreativos, que foram estabelecidos onde podiam encontrar algum espaço. Esses clubes foram alojados em igrejas, museus, celeiros, vagões de trem, lojas e outros locais improváveis.

[11] Lenine Pinto. Natal, USA. 2. Ed – Natal-RN: Edição do autor, 1995. Páginas 27 a 48.

[12] Clyde Smith Junior – Trampolim Para a Vitória. 2. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1999, Páginas 98.

[13] Clyde Smith Junior – Trampolim Para a Vitória. 2. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1999, Páginas 32.

[14] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, edições de 29/01/1943, pág. 1 e de 14/05/1943, págs. 1 e 2.

[15] A 14ª Divisão de Infantaria (14º DI ) foi criada pelo Decreto Reservado nº 4.700-A, de 17 de setembro de 1942, sendo anteriormente conhecida como 2ª Brigada de Infantaria. Depois a 14º DI se transformou na Infantaria Divisionária da 14ª Divisão de Infantaria (Inf Div/14ª DI), pelo Decreto nº 6.177 e 6.180, de 06 de janeiro e Aviso Reservado nº 19-9, de 14 de janeiro de 1944.

[16] Em dezembro de 1942 o 1º Batalhão de Engenharia (1ª/1º BE) se transformou no 1º/7ª Batalhão de Engenharia (1ª/7º BE).

[17] Essa unidade blindada foi criada no Rio de Janeiro, através do Decreto nº 5.003, de 27 de novembro de 1942 e transferida para Natal.

[18] Ver História da Base Aérea de Natal, de Fernando Hoppólyto da Costa. Natal-RN, Ed. Universitária, 1980, págs. 92 e 93.

[19] Ver O Nordeste na II Guerra Mundial – Antecedentes e Ocupação, de Paulo Q. Duarte. Rio de Janeiro-RJ, BIBLIEX, 1971, págs. 184 a 186.

[20] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 26/08/1943, pág. 8.

RIO DO FOGO, 1941: CHEGAM AS PRIMEIRAS VÍTIMAS

Típica cena de um afundamento no Oceano Atlântico por ação de submarinos.

A História dos Primeiros Náufragos a Chegarem ao Litoral Potiguar Durante a Segunda Guerra Mundial.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Esse texto é um dos capítulos do livro “Sobrevoo – Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte, lançado em 2018.

O caçador

Era bom voltar ao mar. Pois era no mar que ele se sentia bem, principalmente realizando o que sabia fazer de melhor: caçar e destruir navios inimigos.

Era um sábado, dia 22 de fevereiro de 1941, e da torre do seu submarino U-105, o capitão tenente (Kapitänleutnant) Georg Schewe, de 32 anos, orientava a navegação de sua nave em direção ao Atlântico pela foz do Rio Blavet, que banha a cidade francesa de Lorient. Ele deixava para trás todo o trabalho de construção da nova e grande base de submarinos nessa cidade, a qual seus superiores prometiam que, quando concluída, seria “inexpugnável” aos bombardeios ingleses, que de vez em quando se apresentavam sobre o porto e a cidade. Schewe, navegando no tranquilo Blavet, tinha a bordo entre seus oficiais os tenentes (Oberleutnant zur See) Max Wintermeyer e Ernst-Wolfgang Ravee, além do alferes (Fähnrich zur See) Hans-Erwin Reith.

Kapitänleutnant Georg Schewe

O capitão Schewe partia de Lorient no mesmo dia que o submarino U-99, comandado pelo capitão Otto Kretschmer, deixava aquele porto, e isso poderia ser um sinal de boa sorte, pois Kretschmer era simplesmente o melhor de todos os capitães da 2ª Flotilha de Submarinos (2. Unterseebootsflottille). Até aquela data ele tinha afundado ou danificado 39 navios aliados em dezesseis patrulhas de combate. Uma situação bem diferente para o aplicado Schewe, que havia participado de nove patrulhas de combate e até aquele momento havia conseguido afundar apenas três navios de carga ingleses [1].

Desde o início da guerra e por quase um ano Schewe comandou o submarino U-60, onde conseguiu sua primeira vitória com o uso de mina explosiva. Depois seguiu uma fase onde realizou várias patrulhas infrutíferas, até que em setembro de 1940 assumiu o comando do U-105, um novo e melhorado modelo IXB. Após uma fase de adaptação, partiu para a primeira missão com a sua nova nave e seus homens. Foi quando o capitão Schewe, em 39 dias de navegação, conseguiu afundar por torpedeamento dois navios a leste da Grã-Bretanha.

Foto de uma cerimônia, creditada como tendo ocorrido no U-105 – https://uboot-recherche.de/en/U105-4588

Certamente que o comandante e sua tripulação estavam otimistas com aquela patrulha que se iniciava e poderia tranquilamente superar mais de 100 dias de mar.

O próprio almirante Karl Döenitz, o Comandante dos Submarinos (B.d.U.  – Befehlshaber der Unterseeboote), ordenou que o U-105 seguisse em direção ao sul do Oceano Atlântico, junto com o U-106 e o U-124. A ideia era que essas naves de guerra buscassem novas presas em outras áreas das que os submarinos alemães atuavam naquele período, como a região do Saliente do Atlântico. Isso colocava aqueles submarinos como os primeiros do Terceiro Reich a atravessarem a linha do Equador durante a Segunda Guerra Mundial. Os outros dois submarinos partiriam de Lorient respectivamente um e quatro dias após o U-105 ter zarpado.

Se houve alguma preocupação por parte de Schewe, certamente a presença de seus experientes colegas pode ter-lhe tranquilizado e animado, pois ambos os capitães eram ótimos submarinistas. Até aquele final de fevereiro de 1940, Jürgen Oesten, comandante do U-106, iniciava sua décima patrulha de combate, tendo no currículo a marca de oito naves inimigas afundadas. Já o capitão do U-124, Georg-Wilhelm Schulz, partia para sua oitava patrulha com a experiência de ter enviado nove naves inglesas para o fundo do mar.

Como acontece com quase todos os alemães, provavelmente parte da animação do capitão Schewe estava na possibilidade de buscar superar seus companheiros de luta em número de vitórias, mesmo que essas conquistas significassem mortos no fundo do Oceano Atlântico.

Aquela caçada prometia[2].

O caçado

Um mês e alguns dias após Georg Schewe zarpar de Lorient para percorrer o Atlântico atrás de novas vítimas, no leste da Inglaterra, na cidade portuária de Kingston Upon Hull, ou simplesmente Hull, o capitão de um navio cargueiro inglês preparava sua nave para mais uma viagem aos confins do mundo, enquanto contemplava a destruição daquela velha cidade fundada no século XII.

Ataque alemão contra a cidade inglesa de Hull – Fonte – https://www.hulldailymail.co.uk/news/history/five-tragedies-hull-blitz-ww2-78134

Entre os inúmeros dramas da Segunda Guerra Mundial, sem dúvida um dos casos mais intensos foi o bombardeiro perpetrado pelos nazistas contra a Inglaterra  entre 1939 e 1940. Inseridos igualmente dentro da chamada Batalha da Inglaterra, esses ataques, que os britânicos denominam simplesmente como “Blitz”, trouxeram muita destruição a várias cidades daquelas ilhas. Uma das que mais sofreram naqueles dias foi Hull e o seu estratégico porto. A cidade foi o alvo do primeiro ataque diurno da Guerra e recebeu o último ataque aéreo contra a Grã-Bretanha. Teve 95% de suas casas atingidas, com 5.000 imóveis destruídos e, de uma população de aproximadamente 320.000 pessoas no começo do conflito, cerca de 150.000 ficaram desabrigadas por efeitos dos bombardeios.

Apesar dos danos, o porto continuou a funcionar durante toda a Segunda Guerra. E era justamente nesse porto, mais precisamente na ponte de comando do cargueiro S.S. Ena de Larrinaga, que o comandante Reginald Sharpe Craston se preocupava com a situação da sua nave. Em momentos alternados entre os dias 13 e 19 de março, a aviação nazista martelou Hull com severos e precisos bombardeios. Bastava que uma bomba de 500 kg acertasse no casco daquele navio de 5.200 toneladas, que ele afundaria rapidamente e poderia levar junto grande parte de seus 43 tripulantes.

S.S. Ena de Larrinaga – Fonte – https://www.wrecksite.eu/wreck.aspx?15355

Logo, em meio a muita tensão, a carga de carvão e outros materiais destinados a Buenos Aires, Argentina, foi colocada nos porões e o comandante Craston recebeu ordens de seguir viagem. Mas se houve certo alívio em deixar a cidade duramente bombardeada, o Ena de Larrinaga agora seguia pelo perigoso Canal da Mancha, atacado pela aviação nazista, para depois navegar em um Oceano Atlântico cheio de submarinos. Era como sair de um caldeirão com água fervente, entrar em uma frigideira cheia de óleo quente e depois cair em uma grande fogueira.

Uma foto de uma revista mostrando os náufragos do Ena de Larrinaga retornando para a Inglaterra, onde vemos o o comandante Reginald Sharpe Craston de chapéu.

O pior era que o comandante Craston e sua tripulação teriam 25 dias de viagem até a capital portenha, em meio a um mar infestado de sorrateiros e invisíveis inimigos da Marinha alemã. Inimigos que no mês anterior, fevereiro de 1940, haviam destruído ou danificado um total de 47 navios cargueiros.

Enquanto a viagem seguia pelo Atlântico, a vigilância no Ena de Larrinaga era intensa e as normas de segurança eram observadas com extremo rigor. À noite ninguém pensava em acender luzes, principalmente quando se navegava em um barco fabricado dezesseis anos antes e que desenvolvia meros dez nós de velocidade máxima, algo em torno de dezoito quilômetros por hora.

Realmente a vida a bordo de um cargueiro inglês naqueles dias não era nada fácil.

Os que ajudaram

Enquanto o mundo desmoronava em meio a um caos de sangue e chamas, em uma praia do Nordeste do Brasil havia uma pequena vila de pescadores onde a vida seguia muito tranquila.

Segundo a historiadora e funcionária pública Gislayne Chiarelle Vieira Soares, que nasceu e vive no atual município litorâneo potiguar de Rio do Fogo, em 1941 a sua comunidade não passava de uma pequena vila de pescadores, que pertencia administrativamente ao município de Touros e possuía em torno de 100 famílias.

Praça principal da cidade de Rio do Fogo – Foto – German Zaunseder.

Segundo uma pesquisa realizada por Gislayne Chiarelle, a tradição oral sobre a chegada de náufragos no lugar é muito rica. E essa tradição abrange tanto os náufragos que chegavam à praia devido a acidentes que ocorreram na barreira de recifes de corais existente a cerca de seis milhas náuticas de Rio do Fogo, quanto a sobreviventes que vieram do alto-mar.

Em um período de navegações heroicas e arriscadas, em que os homens se aventuravam por costas ainda não totalmente mapeadas, passando por áreas sem os faróis para o auxílio à navegação, conduzir um barco através dos oceanos era uma tarefa que exigia muita atenção e a experiência de sua tripulação era fundamental para uma boa viagem. É bem verdade que já se utilizavam bússolas, mapas de navegação, sextantes, cronômetros marítimos e outras ferramentas que facilitavam na navegação, mas nada era totalmente seguro. Em relação a costa do Rio Grande do Norte, esta se apresentou para os navegadores com ventos fortes em certas épocas do ano, correntes marítimas complicadas e algumas perigosas áreas com recifes de corais.

O autor desse artigo mergulhando nas áreas liberadas para os turistas nos recifes de corais, ou parrachos, de Rio do Fogo.

Ao longo dos séculos seguintes não era raro a notícia de algum afundamento nessas, especialmente nas regiões onde se encontram recifes de corais das praias de Maracajaú e Rio do Fogo, onde essas barreiras marítimas naturais são conhecidas como “parrachos”.

O interessante site Naufrágios do Brasil (http://www.naufragiosdobrasil.com.br) possui uma página específica para os afundamentos em águas potiguares. A relação traz os nomes de mais de 100 barcos e alguns aviões que repousam no fundo do mar. O mais antigo registro existente nesse site é de um barco, provavelmente uma caravela portuguesa, com o nome “São João e Almas”, que se perdeu na região do Cabo de São Roque no longínquo ano de 1677.

Nas páginas amareladas do velho jornal Publicador Natalense, edição de sábado, 2 de maio de 1840, existem várias notícias do então governo provincial potiguar, cuja presidência era exercida por Manoel de Assis Mascarenhas. Em uma delas consta que o juiz de paz do município de Touros, deu ciência em 30 de março que o brigue inglês Orion, de 198 toneladas, carregado de café do sul do Brasil, bateu e afundou nos recifes de coral diante da praia de Rio do Fogo, onde nessa época já existia uma povoação de pescadores.

68 anos após o desastre do brigue Orion, o Jornal de Recife, edição de 12 de dezembro de 1872, na sua página quatro, dá conta que, um dia após o “sagrado dia do nascimento de Jesus”, aconteceu na Alfândega da capital potiguar e na presença do vice-cônsul inglês, o leilão de 35.000 tábuas de pinho que estavam a bordo da barca inglesa N. D. Calile, totalmente destruída nos parrachos de Rio do Fogo.

Texto de Luís da Câmara Cascudo sobre Mestre Julião e os mergulhadores de Rio do Fogo.

Apesar do tempo decorrido entre essas duas notícias anteriormente comentadas, aparentemente foram tantos os naufrágios que aconteceram em Rio do Fogo, que Luís da Câmara Cascudo narrou com maestria a vida dos mergulhadores de naufrágios Mestre Julião e de seus irmãos Miguelão e João.

Esse relato de Cascudo foi inicialmente publicado na primeira página do Jornal de Notícias, do Rio de Janeiro, edição de domingo, 28 de julho de 1940, quando o grande pesquisador potiguar informou que os três irmãos Lourenço Ferreira eram nativos de Rio do Fogo, nascidos entre 1852 e 1864, e aprenderam a mergulhar em barcos soçobrados nos parrachos de sua praia para salvar materiais e manter a vida. Com o tempo angariaram fama e respeito, realizando com sucesso esse tipo de atividade em todo o litoral potiguar. Um dos barcos que os irmãos Lourenço Ferreira trabalharam ficou registrado na edição de 15 de julho de 1885 do Diário de Pernambuco, página 2, onde encontramos a informação que no dia 29 do mês anterior o veleiro de carga holandês Stella, comandado pelo capitão Kleipp, carregado de sal de Macau, bateu nos recifes de Rio do Fogo e afundou. Nesse dia, na tentativa de salvar a tripulação, uma jangada dos pescadores locais resgatou três tripulantes, mas virou a caminho da praia e um dos marujos estrangeiros morreu afogado.

Percebi, ao realizar a pesquisa para esse capítulo nos jornais antigos, que sempre existiu uma situação comum sobre esses naufrágios – o apoio da comunidade de Rio do Fogo às vítimas.

Outra visão da praça de Rio do Fogo – Foto – German Zaunseder.

A historiadora Gislayne Chiarelle me contou que um antigo habitante de Rio do Fogo conhecido como “Cachica”, falecido em 2014, narrou-lhe que em uma noite um grupo de náufragos chegou de surpresa na vila buscando ajuda e assustando a todos com um linguajar completamente desconhecido. Os moradores do lugarejo, mesmo bem assustados, saíram de suas choupanas feitas de palha de coqueiro e ajudaram aqueles sobreviventes.

Essa tradição de apoiar os náufragos que chegavam à praia de Rio do Fogo continuou acontecendo, mesmo quando no resto do mundo a barbárie era a ordem do dia.

O ataque

Enquanto a calma e a tranquilidade reinavam na idílica praia de Rio do Fogo, a bordo do submarino alemão U-105 o capitão de Georg Schewe e sua tripulação viviam um momento verdadeiramente feliz. Desde que partiram da França eles haviam conseguido afundar seis navios aliados, com um total de 33.119 toneladas de perdas, e provocado a morte de 134 tripulantes e passageiros.

Tudo começou na madrugada de 8 de março de 1941, catorze dias após zarpar de Lorient, quando o U-105 estava próximo à costa ocidental africana, a norte-nordeste das ilhas de Cabo Verde. Nessa ocasião, em conjunto com o U-124 do capitão Georg-Wilhelm Schulz, atacaram o comboio SL-6. Este era uma massa formada por 55 navios, que havia partido do porto de Freetown, na Serra Leoa, no dia 1º de março e seguia para o porto de Liverpool, Inglaterra. Tinha como escolta oito navios de guerra da Royal Navy, entre esses o porta aviões HMS Ark Royal e o cruzador HMS Renown.

Mesmo com essa proteção, os dois capitães de submarinos realizaram tão corretamente seu trabalho que entre as três e meia e as seis da manhã do dia 8 de março afundaram cinco navios comerciais britânicos, tendo sido creditado ao U-105 o afundamento do S.S. Harmodius, o primeiro dos cinco.

Depois desse sucesso, Georg Schewe se uniu ao capitão Jürgen Oesten do U-106 e atacaram implacavelmente as naves do comboio SL-68.

Capitão Jürgen Oesten – Fonte – https://uboat.net/men/oesten.htm

Esse comboio havia igualmente partido de Freetown com 60 navios e dez escoltas. Entre os dias 17 e 21 de março, em uma área a leste e a norte das ilhas de Cabo Verde, os dois capitães alemães afundaram nove navios, sendo seis britânicos e três holandeses. Coube a Schewe a destruição de cinco barcos (quatro britânicos e um holandês) e a Oesten o afundamento de outras quatro naves (duas britânicas e duas holandesas) e de ter danificado o encouraçado HMS Malaya e outro cargueiro. O Malaya só retornaria à Inglaterra e ao serviço ativo quatro meses depois.

Sabendo que a área próxima às ilhas de Cabo Verde seria intensamente patrulhada pelos ingleses depois dos sucessos desses submarinos, o B.d.U. ordenou que eles se separassem, cabendo ao U-124 permanecer patrulhando na costa ocidental africana e ao U-105 e U-106 seguirem para oeste, patrulhando uma área ao longo da linha do Equador, onde dias depois chegaram mais próximo ao arquipélago brasileiro de São Pedro e São Paulo.

O histórico encontro no Atlântico Sul em 1941, dos submarinos U-105, U-106 e o navio de abastecimento alemão Nordmark, disfarçado como o petroleiro os Estados Unidos, batizado como Prairie – Fonte – https://warfarehistorynetwork.com/2015/08/20/german-merchant-raider-kormoran-hmas-sydneys-deadly-duel/

Nessa área, entre os dias 30 de março e 1º de abril de 1941 houve o encontro do U-105, do U-106 e o navio de abastecimento alemão Nordmark. Como a Alemanha não possuía bases no exterior, as operações navais no Oceano Atlântico exigiam muitas vezes uma rede de navios de abastecimento, que se disfarçavam de navios neutros para evitar a destruição por parte dos britânicos. Na ocasião desse encontro a tripulação do Nordmark havia pintado uma grande bandeira norte-americana na sua lateral e “rebatizado” o navio como Prairie.

Estas eram operações extremamente necessárias, mas difíceis e perigosas, que podiam demorar dias por várias razões e serem interrompidas de maneira abrupta. Nesse encontro foram transferidos para o submarino de Schewe treze torpedos, óleo combustível, lubrificante, água doce e quatro semanas de provisões gerais. Abastecido e renovado, o capitão Schewe retornou à caça ainda na região de São Pedro e São Paulo. Já o U-106 seguiu viagem mais ao sul.

Foto da década de 1930, mostrando o Arquipélago São Pedro e São Paulo – Fonte BN.

No final da tarde do sábado, 5 de abril de 1941, da torre do U-105 o capitão Georg Schewe, seus oficiais e subalternos avistaram um navio mercante que se deslocava a baixa velocidade, mas de maneira firme e segura. Os alemães passaram a segui-lo de forma discreta e sorrateira.

No S.S. Ena de Larrinaga, não existem registros de como se encontrava naquele dia o estado de espírito do veterano comandante Reginald Sharpe Craston, então com 45 anos de idade e com mais de vinte anos de navegações pelos oceanos do mundo. Igualmente não sabemos como se sentiam naquele dia outros 33 britânicos, um malaio, um espanhol, um lituano, cinco caribenhos e até mesmo três japoneses que faziam parte de sua tripulação[3].

Foto meramente ilustrativa de um navio afundando, após ter sido torpedeado durante a Segunda Guerra – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_ships_sunk_by_Axis_warships_in_Australian_waters

Mas é provável que o comandante e seus homens se sentissem mais tranquilos, pois o seu navio se aproximava da linha do Equador e do Atlântico Sul, área onde nessa época os submarinos alemães ainda não atuavam.

Dez horas depois de visualizarem o Ena de Larrinaga, com a ajuda da lua em quarto crescente, Georg Schewe seguiu pacientemente a nave cargueira britânica. Quando estava a 205 milhas náuticas a sudoeste do arquipélago de São Pedro e São Paulo, o alemão encontrou as condições ideais para disparar um único torpedo G7A, com sete metros de comprimento e 280 quilos de explosivos. Este atingiu certeiramente a região da popa, explodiu na casa de máquinas da desprotegida embarcação e ela começou a afundar. O comandante Craston ordenou à tripulação seguir para os barcos salva-vidas e tomou providências para o que viria. Ficou constatado que cinco homens haviam desaparecido e após quinze minutos depois do impacto o Ena de Larrinaga desceu para o fundo.

O U-105 retornando de sua vitoriosa patrulha em 1941.

Do U-105 o capitão Georg Schewe assistiu o ataque, e após constatar que o cargueiro estava perdido deixou calmamente a área, aparentemente sem fazer contatos com os 38 náufragos, que iniciariam uma nova e dura luta.

Sobrevivência

Os barcos salva-vidas continuaram juntos durante a noite. Ao amanhecer o comandante Craston dividiu a tripulação, colocando dezenove para cada barco, e decidiu seguir para Fernando de Noronha, a cerca de 500 milhas de distância a sudoeste. Para isso utilizaram velas e remos que havia nas embarcações.

Para levantar o moral do pessoal em meio à vastidão do Atlântico Sul, o capitão Craston puxou um coro de músicas como “Land of Hope and Glory”, “There’ll Always Be an England”, “God Save the King” e “Are We Downhearted? No!”, um misto de tradicionais canções patrióticas e outras que os militares ingleses entoaram durante a Primeira Guerra Mundial. Nos barcos uma aposta foi acordada: o primeiro que chegasse à terra receberia dez libras como premiação. E era bom mesmo que eles se movimentassem para chegar a algum lugar, pois a todo momento eles testemunharam a presença de tubarões seguindo os dois barcos, circulando aos lados e de vez em quando mordendo os remos.

Certamente pela sua experiência após haver navegado muitas vezes por aquela região, onde o mar é muito quente e o sol implacável, o comandante Craston decidiu esvaziar no mar vinte e seis garrafas do mais puro uísque escocês. Recuperadas de alguma maneira pelo mordomo-chefe após o torpedeamento do navio, o capitão ordenou deixar as garrafas vazias e prontas para serem preenchidas com água fresca de alguma chuva que caísse. Com enorme pesar, a tripulação concordou que aquela era a única ação adequada a ser feita. Com certeza essa ação causou algum desespero na maioria dos marinheiros.

Logo todos estavam sedentos e as garrafas continuavam secas, quando um dia choveu de forma fraca, mal dando para os homens lamberem as poucas gotas que conseguiam reunir em seus bonés. Mas no outro dia houve um verdadeiro dilúvio, que encheu as garrafas e quase fez os barcos transbordarem. Além da água doce acumulada eles tinham duras e secas bolachas e alguma quantidade de leite condensado. Após cinco dias navegando, por razões da ação do mar, os dois barcos se separaram e cada um seguiu seu destino[4].

Navio de carga e passageiro Almirante Alexandrino.

Por sorte, três dias depois da separação, por volta das onze da noite de 13 de abril, um dos barcos foi avistado pelo paquete brasileiro Almirante Alexandrino, navio do Lloyd Brasileiro que procedia do porto de Vigo, Espanha, para o Rio de Janeiro.

O avistamento se deu a cerca de quinze milhas náuticas de Fernando de Noronha, sendo os dezenove marinheiros do Ena de Larrinaga prontamente atendidos e preparados para serem levados a Recife. Antes de seguir viagem, o capitão de longo curso Tasso Augusto Napoleão, natural de Camocim, Ceará, realizou buscas com seu navio nas proximidades do Atol das Rocas, na tentativa de encontrar os outros dezenove náufragos. Mas sem sucesso[5].

Diário da Noite, em 15-4-1941-Rio de Janeiro-RJ.

Enquanto isso, no outro barco salva-vidas, o comandante Craston demonstrava ser um verdadeiro exemplo de liderança e atenção com sua tripulação. Sua autoridade era evidente pela organização e disciplina que prevaleceu ao abandonar o navio torpedeado e durante o tempo que ficaram perdidos no mar. Ele não se negou a ajudar os mais fracos a remar, ou deixou de promover ações para levantar o moral de todos. Como exemplo, mesmo sem ter muito com que comemorar, Craston fez questão de organizar a festa de aniversário do 3° radiotelegrafista George Henry Ellis, de 18 anos, natural da cidade de Goole, região de Yorkshire, que ficou mais velho em plena imensidão do Atlântico Sul.

Qualquer coisa, por mais tola que pudesse acontecer, era motivo de discussões e atenção por parte daqueles dezenove homens perdidos no mar. Houve o caso de um tubarão brincalhão, que seguiu o barco por três dias, de vez em quando brincava com os remos e parecia “interessado” neles. Foi apelidado pelos náufragos como “Snoopy”, que nesse é um adjetivo em inglês para intrometido, curioso. Nenhuma relação com o personagem canino criado em 1950 pelo cartunista norte-americano Charles Monroe Schulz .

Já em outro momento, o encontro com os esqualos não foi nada engraçado, pois os tripulantes tiveram uma colisão com um tubarão que eles afirmaram ser da espécie tigre e possuía um tamanho calculado em “seis metros”.

O segundo bote salva-vidas do Ena de Larrinaga continuou sob o comando do comandante Craston. Este dirigiu com segurança sua diminuta nave até Fernando de Noronha, que avistou no décimo primeiro dia de navegação. Mas, além de não ter sido visto pelos habitantes do lugar, devido ao vento, mar grosso e correntes contrárias, não conseguiram desembarcar.

Agora só restava a costa brasileira a cerca de 200 milhas náuticas de distância, ou 370 quilômetros. O comandante então estabeleceu o curso e dois dias depois, na manhã do 13° dia de provação, a terra surgiu ao longe na forma de uma faixa longa e clara de dunas. Mas, para alcançar a terra, eles teriam de superar uma barreira de recifes de corais que surgiu adiante, onde o mar quebrava em fortes ondas. Foi quando um deles percebeu três pequenas embarcações com alguns homens morenos.

Eles estavam salvos!

O encontro

Manoel Rodrigues Neto, conhecido por todos em Rio do Fogo como Manoelzinho, nasceu no dia 19 de dezembro de 1935 e até recentemente pescava nas águas quentes dessa praia. No dia da chegada dos náufragos ele tinha apenas seis anos de idade; recordou da movimentação, lembrou-se de algumas imagens, mas não tinha compreensão do que acontecia na época. Soube dos detalhes por meio de seu pai.

Seu Manoel Rodrigues Neto, conhecido por todos em Rio do Fogo como Manoelzinho, sendo entrevistado sobre a chegada dos náufragos do Ena de Larrinaga, do qual ele foi testemunha – Foto – German Zaunseder.

Ele é filho do já falecido pescador Francisco Rodrigues, que no dia 18 de abril de 1941, uma sexta-feira, estava pescando em uma das três jangadas tipicamente nordestinas que estavam em um setor dos parrachos de Rio do Fogo conhecido como “Cangote”. Um lugar onde se pescava muito peixe do tipo agulhão. Seu Manoelzinho me comentou ter sido seu pai quem primeiro viu o que ele chamou de “barquinha à deriva”, que vinha sem estar com a vela montada.

Mesmo com os pescadores de Rio do Fogo já tendo conhecimento que submarinos alemães afundavam navios pelo mar afora de guerra, eles perceberam que os homens naquele pequeno barco necessitavam de ajuda e não tiveram receio em socorrê-los.

É certo que as três jangadas que ajudaram os náufragos do Ena de Larrinaga eram bastante similares as embarcações dessa foto, realizada na Praia do Pina, Recife, Pernambuco.

Francisco Rodrigues narrou ao seu filho que ele estava acompanhado de Júlio Lopes, o proprietário da jangada, e de um outro pescador de nome Lucas. No contato com os homens no barco salva-vidas eles viram muitos bastante queimados do sol, enquanto outros se protegiam embaixo de um pano desgastado, que poderia ter sido a vela original do barco salva-vidas.

A mímica foi utilizada para haver o entendimento. Logo os pescadores compreenderam que os náufragos estrangeiros queriam ir à terra. Os brasileiros então trataram de amarrar as três jangadas no barco pra rebocá-los até a beira-mar e sua vila, pois se eles continuassem à deriva iriam encalhar na altura da praia de Perobas, onde então viviam poucas pessoas em uma comunidade muito simples. Os pescadores armaram suas velas triangulares e, no dizer tradicional dos valorosos homens do mar das praias nordestinas, “abriram o pano” em direção à terra.

Uma baleeira de salvamento da época da Segunda Guerra Mundial.

Mas antes de percorrer as seis milhas náuticas, cerca de doze quilômetros, que separavam os recifes de corais da praia, os pescadores brasileiros distribuíram entre os náufragos suas cabaças de água e seus “ranchos”, ou seja, a comida que levavam para a pescaria. Segundo Seu Manoelzinho essa alimentação era basicamente composta de pão, bolachas e frutas. No barco dos estrangeiros havia muitos sorrisos de alegria e gestos de agradecimentos, pois para seu pai eles se mostraram debilitados e com bastante fome.

As três jangadas começaram a singrar, puxando aquele barco branco e pesado. Francisco Rodrigues comentou ao filho que o reboque levou cerca de uma hora e meia. Conforme se aproximavam da praia, começou a juntar gente vendo aquela cena pouco usual.

Náufragos do Ena de Larrinaga – Jornal Pequeno, Recife-PE, em 22-4-1941.

Por volta de dez da manhã, as jangadas chegaram com aqueles sofridos e estranhos homens. Alguns estavam visivelmente emocionados e passaram a beijar a areia da praia e a agradecer aos céus e aos pescadores pela salvação.

À frente da comunidade se apresentou Seu Miguel Elias, cujo nome era Miguel Gomes Ribeiro, liderança política local, que exercia a função de subdelegado em Rio do Fogo. Além de Miguel Elias, outra pessoa da comunidade que buscou ajudar os náufragos foi a professora Francisquinha Ribeiro, a única titular da então “Escola Rudimentar de Rio do Fogo” e filha de Eliseu Ribeiro. Considerada uma pessoa de muita fé e virtudes cristãs, era a professora Francisquinha que, além de ensinar o ABC aos mais jovens da comunidade, preparava-os para as aulas de primeira comunhão. De alguma forma a professora Francisquinha conseguiu manter um diálogo com algum dos estrangeiros. Acredito que tenha sido o tripulante de origem espanhola.

Entrevista com o Senhor Miguel Alves de Souza, nascido na comunidade de Rio do Fogo em 18 de setembro de 1921 e conhecido por todos como “Miguel de Doens”.

Outro dos moradores da pequena vila de Rio do Fogo que testemunharam a chegada dos náufragos foi o Senhor Miguel Alves de Souza. Nascido nessa comunidade em 18 de setembro de 1921 é conhecido por todos como “Miguel de Doens”. Ele relembrou a movimentação das pessoas da vila, que viram as jangadas que haviam partido pela manhã retornando cedo e trazendo a reboque um barco desconhecido. Praticamente toda Rio do Fogo estava na beira-mar querendo saber o que era aquilo.

Seu Miguel, além da tripulação da jangada de Júlio Lopes, lembrou que alguns dos pescadores que estavam nas outras jangadas eram Luiz Colaço, Chico de Cândico e recorda que também havia um conhecido como Chico Caetano. O nosso entrevistado percebeu que o estado geral de alguns náufragos ainda era bom, mas a maioria estava debilitada, bastante queimada do sol, desanimada; no entanto, viu que ainda havia alguma comida com eles. Para se ter uma ideia do estado desses náufragos, dias depois o Jornal Pequeno, de Recife, em sua edição de 22 de março de 1941, informou que dos náufragos, mesmo com todos os cuidados recebidos em Rio do Fogo, Touros e Natal, vários ainda inspiravam atenção. Principalmente o 2° oficial inglês Harold Greville Morgan, que se encontrava com os lábios em carne viva, e o malaio Abdul Bin Doolan, que quase havia morrido na travessia e não conseguia comer nada.

A Noite, de 20-4-1941- Rio de Janeiro-RJ.

Em Rio do Fogo quase ninguém entendeu patavina do que os náufragos falavam, mas ficaram impressionados com todo o acontecimento e com a altura daqueles marinheiros estrangeiros. Os habitantes da vila compreenderam pelos gestos que o navio tinha sido torpedeado por um submarino e que eles vinham de longe, de “bem lá dentro do mar”, segundo narrou Seu Miguel.

Enquanto a população fornecia água de coco e alguma comida para aqueles homens, ambos os entrevistados confirmaram que as lideranças locais, devido à inexistência de veículos e estradas transitáveis, logo começaram a organizar a preparação de outras jangadas para levar aquele povo para Touros, a maior cidade das redondezas. A rapidez se justificava, pois a navegação levava algumas horas entre Rio do Fogo e Touros e os pescadores não teriam condições de seguir à noite devido aos perigosos recifes de corais. Logo uma pequena flotilha de jangadas acomodou os dezenove estrangeiros e seguiram costeando pela beira-mar.

Antiga Sede da prefeitura de Touros – Fonte – Vila Praieira, via http://tourosemfoco.blogspot.com/2015/08/antigo-palacio-porto-filho-antiga-sede.html

Nesse tempo Touros possuía uma área territorial bem maior que a atual. Segundo o livro “Povoados do Rio Grande do Norte em 1943 e populações urbanas e rurais”, escrito por Anfilóquio Carlos Soares da Câmara e impresso em 1944 pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, esse município possuía mais de 1.780 km² de área e abrangia várias comunidades que se tornaram municípios autônomos, como Barra de Maxaranguape, Pureza, São Miguel do Gostoso e a própria Rio do Fogo. Já a população da cidade era inferior a 2.000 pessoas, enquanto em sua vasta zona rural viviam 87% da população de 16.777 habitantes.

Segundo Seu Miguel e Seu Manoelzinho, ninguém em Touros esperava a chegada daquele pessoal. Quem tomou a frente para apoiar os náufragos foi o Padre Bianor Aranha, então pároco da cidade, que conseguiu dialogar com alguns dos náufragos em língua estrangeira, provavelmente italiano ou francês. Outro que ajudou no apoio foi Júlio Lopes do Nascimento, então presidente da Colônia de Pescadores Z-2, que abrangia o município de Touros.

Um telegrama foi enviado da cidade para as autoridades em Natal. Através de um pedido do cônsul inglês ao então governador Rafael Fernandes, foi solicitado às lideranças em Touros que providenciassem a vinda dos náufragos para a capital o mais rápido possível. Logo um caminhão foi preparado e este trouxe os náufragos na carroceria, além de um motorista, o padre Bianor e o capitão do Ena de Larrinaga na cabine.

O que as pessoas em Rio do Fogo e em Touros não sabiam era que aqueles dezenove náufragos eram as primeiras vítimas de uma ação direta de combate na Segunda Guerra Mundial a chegarem ao Rio Grande do Norte.

Outras mais viriam no futuro!

Retorno

Diário da Noite, em 16-4-1941-Rio de Janeiro-RJ.

O comandante Craston e seus homens ficaram hospedados na “Pensão Familiar”, de Dona Maria Cabral, na subida para a Cidade Alta, na antiga Avenida Junqueira Aires, número 417, onde hoje se localiza o Solar Bela Vista. O vice-cônsul britânico em Natal, Mr. Willian F. Scotchbrook, proibiu terminantemente os dezenoves homens de manterem contato com pessoas da cidade. Certamente o vice-cônsul sabia da ação dos simpatizantes e espiões nazifascistas em Natal e quaisquer informações vazadas poderiam ser úteis aos inimigos.

A Polícia Marítima listou os seguintes membros da tripulação do Ena de Larrinaga que estiveram em Natal: comandante Reginald Sharpe Craston, 2° oficial Harold Greville Morgan, 1° telegrafista Maurice William Trevethick, 3° telegrafista George Henry Ellis, chefe de máquinas Richard McMillon, 2° maquinista James Alexander Walker, carpinteiro John Lorenz, faroleiro Osman Bin Usop, os marinheiros James Clemento, Abdul Bin Doolan, Richard Raffel, Charles Mizzi, moços de convés (profissão marítima) Albert Wilkinson, Seduz Olbert Hamilton e Joseph Albert Hood, foguistas Siduez Reginald Harold,  comissário Ignácio de Boatigui, 2° comissário Joseph Francis Vella e o ajudante de cozinha Thomaz Binsalch.

Placa com a relação dos mortos do Ena de Larrinaga, existente em Londres, um monumento aos mortos da marinha mercante britânica durante a Segunda Guerra Mundial.

Logo eles deixaram Natal no navio Brasil, com destino a Recife, onde toda a tripulação foi novamente reunida, ficando alguns dias regularizando documentação perdida e estadia por conta do Consulado Britânico. Uma semana depois partiu para os Estados Unidos no transatlântico brasileiro Buarque. Na saída do porto de Recife a tripulação do Ena de Larrinaga foi saudada pela tripulação e pela sirene do navio Brasil.

Após partirem de Nova Iorque, chegaram à Grã-Bretanha e cada um seguiu seu destino.

No final do ano de 1941, pelo seu profissionalismo, capacidade de superação e por haver conseguido salvar grande parte de sua tripulação, o comandante Reginald S. Craston foi condecorado com a medalha da Ordem do Império Britânico (Order of the British Empire, ou OBE) e a Medalha de Guerra Lloyd’s por bravura no mar. Ele voltaria a comandar outro navio mercante e novamente sua nave foi atingida por torpedos e afundou. O nome do navio era Ocean Venture, tinha sido colocado em condições de navegação em dezembro de 1941 e dois meses depois, em 8 de fevereiro de 1942, foi afundado pelo submarino alemão U-108, defronte ao Cabo Hatteras, na costa leste dos Estados Unidos. Dessa vez 31 tripulantes pereceram e o capitão Craston e mais treze tripulantes foram recolhidos pelo destroier da Marinha americana USS Roe, e desembarcados no porto de Norfolk, estado da Virgínia.

O comandante Reginald S. Craston faleceu de causas naturais em 1962.

Os náufragos do Ena de Larrinaga, em foto do Diário da Noite-15-4-1941-RJ.

Em 13 de junho de 1941, depois de passar 112 dias no mar, o capitão Georg Schewe trouxe seu U-105 e sua tripulação de volta ao porto francês de Lorient. Se até então Schewe só havia afundado três navios em várias patrulhas de combate, apenas nessa patrulha ele destruiu doze naves, que totalizaram 71.450 toneladas de navios Aliados perdidos, tornando aquela patrulha a terceira mais produtiva de todos os submarinos alemães em toda a Segunda Guerra Mundial. O capitão Schewe realizou mais duas patrulhas e afundaria apenas mais um navio inglês, alcançando a marca total em sua carreira de 16 navios inimigos destruídos, com 85.779 toneladas perdidas no fundo do mar e 175 tripulantes inimigos mortos.

Esse militar seria então removido para funções em terra, onde sobreviveu ao conflito, vindo a falecer em 1990 na cidade alemã de Hamburgo, aos 80 anos de idade.

Os Senhores Miguel Alves de Souza e Manoel Rodrigues Neto concordam que os acontecimentos envolvendo a chegada daqueles náufragos foi algo marcante para a história de Rio do Fogo e que os fatos ocorridos são um exemplo do que as pessoas do seu lugar têm de melhor: um forte espírito de solidariedade.

?

Nota do autor: para realizar essa pesquisa, esteve ao meu lado na praia de Rio do Fogo o amigo German Zaunseder, nascido na Argentina, descendente de alemães que lutaram na Segunda Guerra Mundial, que há vários anos vive em Natal e é um grande pesquisador sobre temas da Segunda Guerra Mundial. Contei igualmente com o imprescindível apoio financeiro do empresário Luiz Augusto Maranhão Valle, grande batalhador pela história e cultura potiguar.

NOTAS ——————————————————————————

1 – O que Georg Schewe não sabia é que vinte dias depois o U-99 seria afundado a sudeste da Islândia e Otto Kretschmer seria capturado. No total esse submarinista afundou, ou danificou, 47 navios, perfazendo um total de 312.383 toneladas perdidas. Kretschmer passou seis anos preso e retornou à Alemanha em 1947, onde ingressaria na nova Marinha da Alemanha Ocidental. Chegou ao posto de almirante, ocupou altos cargos na OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte e faleceu em 1997, aos 86 anos de idade.

2 – Na atualidade, através do uso da internet, é possível realizar de maneira bastante razoável uma pesquisa sobre a trajetória de quaisquer submarinos alemães e de seus capitães que atuaram na Segunda Guerra Mundial, bem como de suas inúmeras vítimas. Os sites https://uboat.net e http://www.uboatarchive.net/ (língua inglesa), http://www.u-boot-archiv.de/ (língua alemã) e http://www.u-historia.com/ (língua espanhola) possuem muitas informações. Os dois primeiros aqui comentados são os melhores pela qualidade do material exposto, pois são baseados em documentos originais e em farta literatura.

3 – Não esquecer que o Japão e a Inglaterra só entrariam em guerra contra os britânicos em dezembro de 1941.

4 – Antes de retornarem para a Grã-Bretanha, o comandante Reginald Sharpe Craston e os outros sobreviventes do Ena de Larrinaga estiveram em Nova York, onde deram entrevistas à imprensa norte-americana narrando a sua luta pela sobrevivência no Atlântico Sul, sendo a principal para a revista The Lookout, da Seamen’s Church Institute of New York, volume XXXII, número 7, julho de 1941, páginas 7 e 8.

5 – Tasso Augusto Napoleão, além de capitão de navio mercante, foi político, tendo exercido o cargo de Intendente da cidade litorânea cearense de Camocim entre 1917 e 1918, cargo atualmente equivalente ao de prefeito municipal. Depois o comandante Tasso dedicou a vida a comandar navios, tendo passado muitos anos no comando do navio Almirante Alexandrino. Ver Folha doLitoral, Camocim, Ceará, edição de domingo, 29 de setembro de 1918, página 2.

90 ANOS ATRÁS, JEAN MERMOZ DECOLOU DO SENEGAL PARA DOMAR O ATLÂNTICO SUL

Nos dias 12 e 13 de maio de 1930, às 21h, o aviador do lendário Aéropostale completou a primeira travessia aérea comercial para a América do Sul.

O hidroavião Latécoère Croix du Sud a bordo do qual Jean Mermoz (inserido) desapareceu em Dakar, em 7 de dezembro de 1936. AFP

Fonte – https://www.lemonde.fr/afrique/article/2020/05/11/il-y-a-90-ans-jean-mermoz-decollait-depuis-le-senegal-pour-dompter-l-atlantique-sud_6039293_3212.html

Um tremor final e as cinco toneladas e meia de metal pousam suavemente no Rio Potengi. Nos dias 12 e 13 de maio de 1930, em 9 horas e alguns minutos, Jean Mermoz completou o primeiro cruzamento aéreo comercial do Atlântico Sul, juntando-se às fileiras das figuras lendárias de Aéropostale.

Foi a bordo do hidroavião Laté 28-3, batizado de Conde de la Vaulx, que o aviador, assistido pelo navegador Jean Dabry e pela rádio Léopold Gimié, engoliu os 3.200 quilômetros que separam Saint-Louis do Senegal e Natal (Brasil), com 130 quilos de correspondência a bordo.

Hidroavião Laté 28-3.

Um ex-piloto da força aérea ansioso por aventura, Mermoz ingressou na empresa fundada em 1924 pelo industrial Pierre-Georges Latécoère. Este último estabeleceu ligações aéreas regulares entre França, Espanha, Marrocos e Senegal, que ele sonha em estender para a América do Sul.

Em 1930, Mermoz – apelidado de “o Arcanjo”  já teve várias façanhas em seu crédito pela Aéropostale, como os primeiros voos noturnos entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires e a travessia da perigosa cordilheira dos Andes. Mas entre a África e a América do Sul, o correio continua sendo transportado por barco em quatro dias.

“Um dia e uma noite”

Para grande exasperação dos pilotos, os regulamentos franceses proibiram o sobrevoo comercial do Atlântico por avião, por razões de segurança. Portanto, é necessário transformar o Latécoère 28 em um hidroavião, fornecendo-o flutuadores e motores reforçados.

Mermoz passou na licença de piloto de hidroavião e testou a aeronave decolando e pousando implacavelmente no Etang de Berre (sul da França). Como teste final, quebrou o recorde mundial de duração e distância em um hidroavião de circuito fechado.

Restrição final, a tripulação deve esperar a lua cheia tentar a travessia. “Neste vôo que duraria um dia e uma noite, a noite tinha que ser tão clara quanto o dia”, escreveu Joseph Kessel no livro Mermoz .

Em 12 de maio de 1930, uma grande multidão assistiu à decolagem do pesado hidroavião pintado em vermelho vivo, de uma lagoa no rio Senegal, perto de Saint-Louis. Dois avisos são publicados na rota da aeronave, para guiá-la com seus transmissores ou resgatá-la em caso de queda forçada.

Após várias horas de um voo pacífico, a cerca de 150 metros acima do oceano, o hidroavião encontra as famosas tempestades ao entardecer, uma zona formidável de convergência intertropical dos ventos alísios.

50 metros acima das ondas

“Todo o horizonte era preto, uma espécie de muro gigantesco parecia bloquear nosso caminho “, escreveu Mermoz. No meio desse ciclone, uma espécie de tornado sem vento, estava um calor sufocante. Não podíamos evitar grãos de violência incrível, que emitiam um calor ainda mais forte do que o dos banhos de vapor. De repente, sem que pudéssemos desconfiar de nós, nossa cabine, de frente para trás, foi banhada em água. Nós fomos inundados. “

O piloto foge com seu Latécoère em um corredor enquanto voa 50 metros acima das ondas. A travessia do equador é comemorada com “sanduíche, banana e champanhe”. Na manhã do dia 13, pouco mais de 21 horas após sua partida, Mermoz colocou delicadamente o hidroavião no Rio Potengi, perto de Natal.

Jornal francês noticiando a chegada do aviador Mermoz ao Rio Grande do Norte

A correspondência é transferida para outro dispositivo e segue para o Rio de Janeiro, Montevidéu, Buenos Aires e Santiago do Chile. “Banquetes, discursos, música, bailes e galas”, os três homens são celebrados por duas semanas nas capitais do Brasil, Uruguai e Argentina.

O retorno é mais trabalhoso. Entre 8 de junho e 9 de julho, Mermoz fez 52 tentativas de decolagem, frustradas pelos ventos. Na 53ª, ele finalmente voou. Mas uma falha de petróleo a 900 quilômetros da costa africana o forçou a pousar. O Aviso Phocée recupera a correspondência, resgata a tripulação e tenta rebocar o hidroavião, mas a aeronave afunda.

Como outros “pioneiros do céu” , seus amigos Antoine de Saint-Exupéry e Henri Guillaumet, Mermoz desaparecer no mar.

Em 7 de Dezembro de 1936, em sua 24 ª  travessia do Atlântico Sul, desta vez com o hidroavião Cruz do sul. O rádio cospe “Cupons do motor traseiro direito …” e para. “O acidente, para nós, seria morrer na cama”, disse Mermoz.

1928 – A HISTÓRIA DO PRIMEIRO VOO SOBRE O SERIDÓ E A INAUGURAÇÃO DOS CAMPOS DE POUSO DE ACARI E CAICÓ

Qual a Razão Para a Construção desses Campos de Pouso? Como Se Deu Esses Eventos? Quem Pilotou o Avião e Que Aeronave Era Essa?

Rostand Medeiros – Escritor e Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Campo dos Franceses em Parnamirim e o avião Breguet XIV AV2, matricula F-AGBV, número 306, o experiente aviador André Depecker, que levou o governador Juvenal Lamartine ao Seridó em 1928.

Eram nove e meia da manhã de uma quarta-feira ensolarada e em uma cidade do sertão potiguar uma multidão não parava de observar o céu. Estavam todos atentos ao surgimento de algo diferente daquilo que normalmente divisavam no horizonte, as desejadas nuvens de chuva.

Estamos no dia 16 de agosto de 1928, na centenária cidade de Acari, região do Seridó, onde a maioria dos seus habitantes se concentrava em uma área a alguma distância do centro da pequena urbe. Um local que até recentemente era apenas mato. Logo circulava de boca em boca no meio da multidão, que na cidade o dedicado telegrafista Mário Gonçalves de Medeiros havia recebido uma mensagem dando conta que o governador potiguar Juvenal Lamartine de Faria estava a caminho.

E os acarienses continuavam olhando para o alto, pois dessa vez aquela autoridade não chegaria de automóvel, vindo pela Rodagem, mas estaria entre seus amigos desembarcando de um moderno avião. A primeira aeronave a voar pelo interior do Rio Grande do Norte.

Aquele era o momento da inauguração do campo de pouso de Acari, um acontecimento que era visto com extremo orgulho por todos na cidade e apontava para interessantes possibilidades de progresso.

Acari era a primeira cidade potiguar a ter esse tipo de benfeitoria inaugurada pelo governador Lamartine. Sendo uma obra construída pela comunidade, com assessoria do governo do estado, tendo a frente dos trabalhos os fazendeiros Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa e Cipriano Pereira de Araújo. Além de Acari, ainda naquele dia 16 de agosto o governador Lamartine seguiria para Caicó, a maior e mais importante cidade da região, para inaugurar o campo de pouso local. Uma grande e detalhada reportagem do jornal natalense A República (18/08/1928), foi publicada em sua primeira página sobre a construção desses campos e como ocorreram esses eventos.

Circulavam pela pista de terra dos mais abastados aos mais humildes acarienses e seridoenses. Veio gente das povoações de Carnaúba, Cruzeta, São José e outros das vizinhas cidades de Currais Novos, Jardim do Seridó, Parelhas e até de mais distante. Homens, mulheres, crianças e idosos com seus cabelos prateados se misturavam aos vaqueiros com chapéus de couros, que orgulhosamente passeavam em seus cavalos. Estes últimos circulavam ao lado dos automóveis dos coronéis, que traziam seus familiares para ver o progresso vindo dos céus.

Em meio à agonia da espera, alguns comentaram Mário Gonçalves de Medeiros havia recebido novas informações da passagem do avião sobre as cidades de Macaíba, Santa Cruz e Currais Novos.

O Avião Está Chegando

Realmente para os potiguares da época, todo aquele movimento aviatório era um assombro. Nem fazia tanto tempo assim, quase seis anos, quando o hidroavião com Euclides Pinto Martins e alguns norte-americanos, conhecido em Natal como “Libélula de Aço”, tinham sido a primeira aeronave a sobrevoar o Rio Grande do Norte e a visitar a capital. Logo vieram outras aeronaves, como um hidroavião branco que sobrevoou Natal e depois baixou no Rio Curimataú, perto de Canguaretama, sendo pilotado por um argentino chamado Ollivieri. Na sequência a capital potiguar recebeu os hidroaviões do italiano De Pinedo, do português Sarmento de Beires e a esquadrilha de três aeronaves da aviação do exército dos Estados Unidos.

Hidroavião da esquadrilha Dargue, que esteve em Natal em 1927.

Mas o que verdadeiramente encheu os potiguares de orgulho e enlouqueceu a capital foi à chegada do hidroavião brasileiro Jahú, pintado de vermelho e pilotado pelo paulista João Ribeiro de Barros. Mesmo com todos os problemas ligados a esse “Raid”, os potiguares quase explodiram de satisfação ao saber que eram os primeiros brasileiros a receber aquele hidroavião em nosso território continental.

Não demorou a circular a notícia que os franceses estavam construindo um campo de pouso em um lugar chamado Parnamirim, não muito distante de Natal. E em outubro de 1927 aquele local foi palco de um verdadeiro prodígio – Um avião francês atravessou o Atlântico com o piloto Dieudonné Costes e seu companheiro Joseph Le Brix e aterrissou em Parnamirim, depois de terem partido de Paris apenas dois dias antes. No mês anterior ao da inauguração dos campos no Seridó, os italianos Arturo Ferrarin e Carlo Del Prete tinham descido em uma praia perto de Touros, depois partirem de Roma e voar sem escalas entre a Europa e a América do Sul.

População de Touros (RN) empurrando o avião S.64 de Ferrarin e Del Prete até a vila de pescadores.

Aquelas notícias corriam por todo Rio Grande do Norte. Mesmo com muitos sertanejos sem compreender totalmente seu significado, só o fato de saber que modernas aeronaves vindas do outro lado do mundo tinham como destino a sua terra, o seu estado, era algo que criava um clima diferente, positivo e intenso.

No caso de Acari, quando chegaram os homens do governo para elaborar a construção da pista do campo de pouso, tendo a frente o capitão-tenente aviador naval Djalma Fontes Cordovil Petit, o falatório e a curiosidade foram gerais. Agora, naquela ensolarada manhã de quarta-feira, ali no campo de pouso, todos aguardavam o governador Juvenal Lamartine para inaugurar aquela obra.

Djalma Petit e Juvenal Lamartine. Foto da Revista Cigarra. Fonte-http://peryserranegra.blogspot.com

Quando faltavam cerca de dez minutos para as dez, alguém viu ao longe um avião pintado de branco e o frêmito da multidão foi geral. Primeiramente a máquina sobrevoou algumas vezes Acari e logo, com extrema maestria e para assombro de todos os presentes no campo de pouso, o “bicho” passou baixo e roncando forte. Deu para ver o piloto acenando e umas letras pintadas de preto na lateral da máquina voadora. Aí o avião deu uma volta e passou de novo sobre a pista, como querendo observar o lugar para ter segurança para pousar. Não demorou e o piloto aterrissou seu avião com perfeição, mas levantou uma poeira danada.

Chegada do Breguet no campo de pouso de Acari em 15 de agosto de 1928.

A máquina rodou pela pista que tinha 500 metros de extensão, por 150 de largura. Foi aos poucos desacelerando e parou. Quando o governador Lamartine surgiu com um gorro de piloto, a multidão estourou em aplausos.

Juvenal e a Aviação  

Mesmo tendo nascido na cidade potiguar de Serra Negra do Norte, mais precisamente na fazenda Rolinha, Juvenal Lamartine cultivou uma relação muito próxima com Acari, terra de sua mulher Silvina Bezerra de Araújo Galvão. Ali foi juiz de direito por sete anos, tinha muitos amigos e a região era seu principal reduto eleitoral.

Festividade em Natal para os aviadores italianos Ferrarin e Del Prete. Da esquerda para direita vemos o Cônsul italiano em Recife, Arturo Ferrarin, Juvenal Lamartine, Carlo del Prete e a cientista Berta Lutz.

Homem inteligente, culto e vivaz, Lamartine certamente foi um dos primeiros potiguares a perceber as vantagens positivas que a localização do Rio Grande do Norte trazia para a incipiente indústria da aviação. Quando assumiu o governo potiguar em janeiro de 1928, Lamartine propagava um forte discurso desenvolvimentista, utilizando como exemplo a aviação em terras potiguares. Imaginava Lamartine que em pouco tempo o Rio Grande do Norte, bastante carente de ligações rodoviárias e ferroviárias, poderia ter na aviação uma maneira de ligar mais rapidamente seus extremos. 

Entre seus feitos nessa área podemos listar o total apoio às empresas aéreas estrangeiras que aqui se instalaram, a criação de um aeroclube e de uma escola de aviação em Natal e a construção de campos de pouso em cidades do interior.

Mesmo com toda sua inteligência e capacidade, Juvenal era um homem do seu tempo e do seu lugar. Não foi surpresa ele apoiar e incentivar fortemente a criação nas cidades de Acari e Caicó dos primeiros campos de pouso no sertão. No futuro aqueles locais poderiam até nem receber mais aeronaves, mas realizar aquelas inaugurações, diante de sua gente e chegando dos céus em uma aeronave estrangeira, era algo que não tinha preço.

De Cavalo de Batalha na Primeira Guerra, Para o Sucesso no Uso Civil

Já o avião biplano que transportou o governador era de fabricação francesa, chamado Breguet XIV AV2, desenvolvido inicialmente como avião militar na Primeira Guerra Mundial.

O engenheiro Louis Charles Breguet- Fonte – https://m.mgronline.com/general/detail/9610000054741

Seu idealizador foi o engenheiro Louis Charles Breguet, que no início de 1916 propôs as forças armadas francesas o desenvolvimento de um grande biplano monomotor de dois lugares, chamado Breguet AV. O protótipo AV1 voou pela primeira vez em 21 de novembro de 1916, com um motor de 250 hp e se mostrou extremamente bem sucedido. Essa aeronave podia levar uma carga de 730 kg, se elevando aos 6.500 metros de altitude em alguns minutos e atingindo a velocidade máxima de 175 km/h, feito que poucos aviões de caça da época poderiam alcançar. Breguet então decide ampliar a capacidade de motorização de sua nova aeronave para 275 hp e nasce o protótipo AV2, que incorpora dois tanques de combustível de 130 litros e um tanque de óleo (20 litros) no lado direito do motor.

Assim que os testes oficiais do AV2 foram concluídos em janeiro de 1917, ele é batizado de Breguet XIV e 508 unidades foram encomendados pelos franceses. O resultado geral é bastante positivo e a nova aeronave se torna um verdadeiro “Cavalo de batalha” da aviação francesa nos últimos anos da Primeira Guerra. Logo surge uma versão de bombardeio de dois lugares, equipada com motor V12 Renault, de 300 cv. Mais de 1.500 aeronaves são encomendadas a Louis Breguet, que também foi vendida para a aviação militar belga e para a Força Expedicionária Americana. Em abril desse ano Louis Breguet consegue entregar aos seus clientes quatro unidades dessa aeronave por dia e 2.000 aviões estão em serviço no final da guerra, com versões que incluem aviões de treinamento, bombardeiro de longo alcance, transporte de feridos e uma versão equipada com flutuadores.

Breguet XIV AV2 da aviação militar francesa – Fonte – http://wp.scn.ru/ru/ww1/b/48/21/0

Em fevereiro de 1919, Louis Breguet e outros sócios fundam a Compagnie des Messageries Aériennes (CMA), cuja linha principal liga Paris a Londres. Essa empresa aérea civil opera entre 1919 e 1923 e os aviões militares Breguet XIV A2 são usados com tanques adicionais e recipientes colocados sob as asas para transportar malas postais entre Paris, Bruxelas e Londres. O uso pela CMA desses aviões mostram suas vantagens e qualidades para a aviação civil. Logo outra empresa aérea francesa vai utilizar o mesmo avião com esse fim, principalmente do outro lado do Oceano Atlântico.

Breguet XIV AV2 da Latécoère na França.

Durante a Primeira Guerra Mundial o visionário Pierre Georges Latécoère, decidiu transformar sua fábrica de vagões em um centro de produção aeronáutica. Em 1918, com a paz restaurada e percebendo a urgência de acelerar a comunicação entre os países, Latécoère cria em 1º de setembro de 1919 uma linha aérea regular para transportar o correio entre a França e o Marrocos, cujo voo inicial foi realizado pelo piloto Didier Daurat, diretor das linhas Latécoère, em um Breguet XIV A2. Depois a linha, ou “La Ligne”, como os franceses a denominavam, chegou a Dacar, na antiga África Ocidental Francesa e hoje capital do Senegal. Na sequência Daurat recrutou pilotos como Jean Mermoz, Henri Guillaumet, Antoine Saint-Exupéry e André Depecker.

Em abril de 1927 Pierre Georges Latécoère cedeu a linha aérea à Marcel Bouillioux-Lafont, investidor francês radicado na América do Sul. A razão social da empresa passou a ser Compagnie Générale Aéropostale (CGA).

Marcel Bouilloux-Lafont

Lafont tinha planos ambiciosos, com a ideia de criar uma grande linha aérea postal de Toulouse, Casablanca, Dacar e daí para Natal, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Santiago do Chile. Nesta ideia empreendedora, ainda em julho de 1927, vindo do Rio de Janeiro, chega a capital potiguar um avião Breguet pilotado pelo francês Paul Vachet e mais dois companheiros. Eles vêm para implantar em um descampado conhecido como Parnamirim, o primeiro aeródromo do Rio Grande do Norte. Fato que comentamos anteriormente.

Paul Vachet, terceiro a partir da esquerda, realiza o reconhecimento completo e detalhado da linha Buenos Aires até Natal – Fonte – http://sterlingnumismatic.blogspot.com/2010/05/latecoere-aeropostale-air-france.html

Em 1 de março de 1928 foi inaugurado o primeiro serviço aeropostal entre a França e a América do Sul. Nesta operação os aviões partiam de Paris até Dacar, onde os malotes com correspondências eram então embarcados em navios pequenos e bastante velozes conhecidos como “Avisos Postais”, ou “Avisos Rápidos”, que atravessavam da África até Natal. Depois eram embarcados em aviões para o sul do país.

Como no Brasil basicamente as rotas aéreas dos franceses percorriam o litoral, certamente eles jamais pousariam com alguma regularidade em Acari, Caicó ou algum outro campo de pouso que viessem a ser criado no interior do Rio Grande do Norte. Mas não era nenhum prejuízo para esses estrangeiros realizar aquele voo e satisfazer o governador Lamartine naquela viagem ao Seridó. Contanto que este continuasse colaborando com seus interesses em terras potiguares. Percebi que a Compagnie Générale Aéropostale deu muita importância no apoio àqueles eventos, pois além do piloto e Juvenal Lamartine, seguia no avião George Piron, diretor da empresa francesa em Natal.

O Primeiro Piloto a Sobrevoar o Sertão Potiguar

E para ocasião festiva em Acari e Caicó foi convocado para pilotar o Breguet XIV A2, matricula F-AGBV, número 306, o experiente aviador André Depecker, um dos melhores da Aéropostale, com anos de atuação no transporte de correio aéreo e de passageiros na Europa, África Ocidental e América do Sul. Além de tudo isso, Depecker era um dos pilotos franceses mais populares e conhecidos em Natal.

Detalhe do avião Breguet.

Realmente aquela missão tinha de contar com um piloto como Depecker. Até aquela data nenhuma aeronave havia sobrevoado o sertão do Seridó e nem aterrissado nas cidades de Acari e Caicó. Ele tinha experiência suficiente para voar com mapas simples e poucas referências, seguindo adiante basicamente no visual. É possível que Juvenal Lamartine tenha ajudado Depecker na orientação do caminho a seguir para Acari, pois no passado já havia realizado várias viagens no lombo de burros entre o Seridó e Natal, conhecia bem as referências do caminho por terra e falava fluentemente francês.

André Depecker nasceu em 1904, na cidade de Hautmont, extremo norte da França, não muito distante da fronteira com a Bélgica. Ele tinha apenas dez anos de idade quando estourou a Primeira Guerra Mundial. Não sabemos se sua família foi atingida diretamente pelo conflito, mas sabemos que sua cidade esteva na zona ocupada pelas tropas alemãs e só foi libertada pelos ingleses em novembro de 1918.

André Depecker.

Sobre aspectos de sua vida e sua entrada na aviação, nada conseguimos apurar. Mas nos antigos jornais sempre encontramos várias notas elogiosas sobre seu trabalho, atuação e caráter.

O conceituado crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima, que se criou na fazenda Bom Jardim, em Goianinha, Rio Grande do Norte, registrou no Diário Carioca (12/11/1935-P.6) como havia sido seu primeiro voo, seguindo a rota entre Natal e o Rio de Janeiro, cujo piloto foi André Depecker. Para Bento o voo foi fenomenal, onde ele teve a oportunidade de sobrevoar o Rio durante a noite, “fantasticamente iluminado”, em condições atmosféricas perfeitas. O passageiro classificou o piloto francês como “Forte, calmo, corajoso e ao mesmo tempo de uma prudência incomparável”.  Segundo o periódico recifense Jornal Pequeno (14/04/1930-P.1) Depecker foi condecorado em abril de 1930 pela Societé Aeronautique de France, em decorrência do apoio prestado aos aviadores italianos Ferrarin e Del Prete em Touros.

O francês parece que gostou muito do Brasil, tendo um carinho muito especial pelo Rio Grande do Norte. Em 2007 eu realizei uma entrevista com o escritor Oswaldo Lamartine de Faria, filho do governador Juvenal Lamartine e que na juventude conheceu vários pilotos franceses que estiveram em Natal, pois sua casa no bairro de Petrópolis era próxima do local que alojava esses aviadores. Oswaldo Lamartine me disse que André Depecker havia se apaixonado ardorosamente por uma jovem da cidade de São José de Mipibu. Meu entrevistado não sabia a situação anterior dessa mulher, mas sabe que o francês montou uma casa para ela, onde se encontravam quando ele aqui escalava. O fato chamou tanta atenção na provinciana e pequena cidade, que essa mulher foi apelidada de “Maria de Depecker” e até uma música de carnaval foi para ela criada.

Avião em que pereceu André Depecker.

Anos depois, em 5 de novembro de 1935, vamos encontrar André Depecker pilotando um avião Latécoère 28, prefixo F-AJIQ. Segundo o Diário Carioca (06/11/1935-P.1) junto com ele seguiam os franceses Joseph Le Duigou, operador de rádio, Auguste Morel, engenheiro de voo, e Fernand Clavere, navegador. A aeronave procedia de Buenos Aires, Argentina, com escala em Montevideo, Uruguai, pousando nos principais aeródromos ao longo da costa brasileira e tendo como destino Natal. O Latécoère 28 transportava quilos de correspondências destinadas a Europa. Após a partida de Salvador a equipe confirmou pelo rádio que tudo estava indo bem a bordo. Algum tempo depois, no que se acredita ser o litoral do atual município baiano de Conde, o avião caiu no mar em circunstâncias até hoje desconhecidas. Os destroços da aeronave e os quatro corpos foram encontrados, bem como algumas malas postais.

Juvenal Lamartine em Acari

Segundo a reportagem de A República (18/08/1928), após Juvenal Lamartine, George Piron e André Depecker desembarcarem do Breguet XIV A2 no campo de pouso de Acari, foram recebidos por várias autoridades. Entre estes se encontravam o Coronel Felinto Elísio (de Jardim do Seridó e presidente da Assembleia Legislativa), o Padre Bianor Aranha e o Dr. Eurico Montenegro (juiz de direito de Acari). Logo se sucederam vários discursos.

Na sequência foi formado um grande corso de automóveis e todos seguiram para a residência de Cipriano Pereira de Araújo, onde foi oferecido um almoço aos presentes. No final do banquete Juvenal Lamartine levantou um brinde para Terezinha, filha do seu amigo Cipriano.

Após esse almoço o grupo seguiu para a sede da Presidência da Intendência, onde foi realizada uma cerimônia de incentivo ao sufrágio feminino no Rio Grande do Norte, que contou com a presença da cientista paulista Betha Maria Julia Lutz, ativista feminina, grande incentivadora do voto feminino. Sobre esse interessante evento eu comentarei em uma futura postagem do nosso TOK DE HISTÓRIA.

Martha Maria de Medeiros

Entre os seridoenses que vieram testemunhar o fato estava Marta Maria de Medeiros, professora formada na Escola Doméstica de Natal e filha do fazendeiro Joaquim Paulino de Medeiros, conhecido por todos em sua região como Coronel Quincó da Ramada, e de Maria Florentina de Jesus. Marta vivia com os pais na Fazenda Rajada, que ficava próximo da grande e bela serra homônima e do povoado de Carnaúba, atual município de Carnaúba dos Dantas. A professora era uma admiradora do governador Lamartine, com quem sua família tinha ótimas relações. Marta havia seguido o chamamento do governador quando ele pediu que jovens senhoritas potiguares, que possuíam determinado nível de instrução, se inscrevessem para a concessão de títulos eleitorais, os primeiros da América do Sul. Ela se inscreveu oficialmente em Acari no dia 10 de dezembro de 1927, tornando-a a quarta eleitora do Rio Grande do Norte e a primeira da região do Seridó. Inclusive foi Marta Medeiros quem recebeu Bertha Lutz em Acari, conforme comentarei futuramente.

O autor dessas linhas, quando ainda era um simples estudante, teve o privilégio e a honra de ouvir Marta Maria de Medeiros, minha tia-avó, narrar a sua visão da inesquecível chegada desse avião em Acari.

Chegada em Caicó

Somente às três da tarde os tripulantes retornaram ao avião Breguet, em meio a muitos aplausos dos presentes, e partiram de Acari para Caicó,.

Após 30 minutos de voo a aeronave francesa sobrevoou Caicó e depois seu campo de pouso. A aterrissagem, segundo o jornal A República, foi dificultada pelas pequenas dimensões do campo de pouso, que teve a frente dos trabalhos de construção o Coronel Celso Dantas. Mas o pássaro de aço francês aterrissou em segurança. Segundo Antônio Luís de Medeiros, competente genealogista potiguar e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, as dimensões desse antigo campo de pouso em Caicó eram reduzidas e ficava localizado próximo da estrada que segue para Jardim do Seridó, numa área conhecida como Baixa do Arroz, não muito longe da área onde se localiza atualmente o Açude Itans.

Juvenal Lamartine, na inauguração do campo de pouso em Caicó.

Após deixarem a aeronave, tal como em Acari, começaram os discursos e aplausos. Segundo A República o empresário caicoense Renato Dantas realizou um elogio a André Depecker, comentando que o francês havia realizado uma pilotagem competente, por uma região “nunca dantes navegada”.

Eles ficaram hospedados na casa de Celso Dantas e a noite todos participaram de um evento em homenagem ao governador e a ativista Betha Lutz, que chegou a Caicó de automóvel.

Segundo o jornal natalense A República (18/08/1928), no outro dia pela manhã o Breguet decolou e pousou novamente em Acari, onde esteve na Escola Tomaz de Araújo, onde foi recebido pela professora Iracema Lopes Brandão, que pronunciou um discurso. À tarde o Breguet retornou a Natal.

EVENTO DE LANÇAMENTO DO PROJETO DO SEBRAE – NATAL E PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

SITE DO PROJETO NATAL & PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA http://www.segundaguerra.com.br/

Foi uma noite memorável na Casa da Ribeira, principalmente para aquele que pensam e realizam projetos relativos ao conhecimento e democratização da informação histórica dos eventos ligados a Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte.

Como comentou o amigo Yves Bezerra, gestor desse projeto, a proposta busca apresentar em Natal e Parnamirim os pontos de interesse cultural e histórico das duas cidades, que até então têm sido pouco explorados e que estes possam ser trabalhados por empresas de receptivo para atrair mais turistas e interessados no assunto.

Um salto verdadeiramente interessante para o turismo potiguar. Esse projeto faz parte das ações do programa Investe Turismo, que é promovido pelo Sebrae, Ministério do Turismo, Embratur e Secretaria Estadual de Turismo (Setur).

Depois de dois anos de trabalho, foi hora do SEBRAE-RN apresentar Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra. E tudo foi muito bom!

Com Zeca Melo, Diretor Superintendente do SEBRAE-RN,

Como foi comentado anteriormente, a presença de milhares de soldados americanos no cotidiano de Natal mudou a cultura e os costumes da cidade, a população bem sabe. No entanto, nenhum desses argumentos foi relevante para o Rio Grande do Norte ter um roteiro turístico para explorar esse fato histórico. Agora chegou a hora!

Meus agradecimentos aos amigos da Art&C e ao SEBRAE-RN, especialmente ao superintendente Zeca Melo pela confiança e apoio.

Com o amigo Yves Guerra de Carvalho, Gestor do Projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra Investe Turismo RN.

SEBRAE MAPEIA PONTOS TURÍSTICOS DO RN DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra será lançado nesta quarta-feira, 9 de outubro de 2019.

Por Agência Sebrae de Notícias / 8 de outubro de 2019

Que o Rio Grande do Norte teve um papel relevante, e até mesmo decisivo, para a vitória dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, não restam dúvidas. Que Parnamirim abrigou a primeira base aérea dos Estados Unidos fora do território norte-americano, os livros de história dão conta muito bem. Que a presença de milhares de soldados americanos no cotidiano de Natal mudou a cultura e os costumes da cidade, a população bem sabe. No entanto, nenhum desses argumentos foi relevante para o Rio Grande do Norte ter um roteiro turístico para explorar esse fato histórico.

Parnamirim Field – Foto – Getty Image

O Sebrae no Rio Grande do Norte, entretanto, pretende virar essa página e abrir caminho para a implantação de uma nova rota turística no estado a partir desta quarta-feira (9), quando a instituição vai lançar o projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra. O lançamento será em solenidade fechada para convidados na Casa da Ribeira, a partir das 19h. Durante a cerimônia, que terá espetáculos teatral e sinfônico, será apresentado o mapeamento feito pelo projeto com pontos de interesse histórico e cultural importantes da participação das duas cidades na segunda Grande Guerra.

Na esquerda da imagem está Rostand Medeiros, responsável pelo blog TOK DE HISTÓRIA e autor do livro SOBREVOO-EPISÓDIOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NO RIO GRANDE DO NORTE, junto com José Ferreira de Melo Neto, o Zeca Melo, Diretor Superintendente do SEBRAE-RN, além de Edwin Aldrin Januário da Silva, Gerente de Comunicação e Marketing SEBRAE-RN, Yves Guerra de Carvalho, Gestor do Investe Turismo RN do SEBRAE-RN, Lorena Roosevelt Lima , Gerente da Unidade de Desenvolvimento da Indústria do SEBRAERN, e Leonardo Dantas, da Fundação Rampa.

Todo o levantamento está reunido em um portal em quatro idiomas (Inglês, Francês, Espanhol e Português), que além do mapeamento dos pontos históricos, traz também personagens e fatos curiosos relacionados ao tema, como o caso do açúcar nos tanques de combustível, o rasante no desfile de 7 de setembro e do espião preso em Jacumã. Além desse levantamento, feito por historiadores da Fundação Rampa e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, o projeto criou governança ao chamar os principais interessados no tema para debater o assunto e desenvolveu os estudos de viabilidade técnica e econômica do aeroporto Augusto Severo, que será transformado em um Centro Cultural, e do Museu da Rampa.

Militares dos Estados Unidos no Grande Hotel, no bairro da Ribeira – Foto – Getty Image

Além disso, vai utilizar a tecnologia de realidade aumentada para criar mais atrativos nos principais equipamentos turísticos ligados à participação na Segunda Guerra. Monumentos, como a rampa, terão pontos de realidade aumentada em que o turista ao apontar a câmera do smartphone poderá fazer fotos em meio a jipe e soldados virtuais.

“A proposta do projeto é apresentar esses pontos de interesse cultural e histórico das duas cidades, que até então têm sido pouco explorados e passem a ser trabalhados por empresas de receptivo para atrair mais turistas e interessados no assunto”, explica o gestor do projeto, Yves Guerra. O Sebrae também inseriu a temática no edital de economia criativa, que apoiou financeiramente projetos culturais, como o espetáculo ‘Bye, Bye Natal’ e a coleção de três livros ‘A Participação do RN na Segunda Guerra Mundial‘, entre outras iniciativas.

Barracas dos militares dos Estados Unidos em Parnamirim Field – Foto – Getty Image

Diversificação

O projeto Natal & Parnamirim Field já vinha sendo trabalhado há cerca de dois anos e, atualmente, faz parte das ações do programa Investe Turismo, que é promovido pelo Sebrae, Ministério do Turismo, Embratur e Secretaria Estadual de Turismo (Setur). Um dos objetivos do programa é diversificar a oferta turística que vá além do turismo de mar. Por isso, o projeto tomou a participação do RN na Grande Guerra como forma de atrair turistas ao estimular entre o trade turísticos e entes governamentais a criação bem estruturada de um roteiro turístico histórico e cultural em volta da temática.

“Mesmo sendo um episódio histórico bastante conhecido, essa participação na Segunda Guerra nunca foi de fato transformada em oferta turística. Por isso, estamos dando esse primeiro passo para a criação de um roteiro”, ressalta Yves Guerra. Além do portal, o projeto também prevê a publicação de uma websérie de dez vídeos, envolvendo a relação entre o Rio Grande do Norte e a II Guerra Mundial. O primeiro já será apresentado no momento do lançamento do projeto, que terá inclusive a participação do cônsul dos Estados Unidos em Recife (PE), John Barrett.

A HISTÓRIA DA LEALDADE DOS CÃES CAÇADORES DE ONÇAS DE LAJES, RIO GRANDE DO NORTE

Rostand Medeiros – IHGRN

1
A onça-pintada está até hoje entre os animais mais caçados no Brasil (Foto: Reprodução) – Fonte – https://davidarioch.com/author/davidarioch/page/18/?ak_action=reject_mobile

Quase sempre a morte de um cãozinho fornece o primeiro contato de muitas pessoas com o fim da existência terrena. O mesmo fim ao qual todos que estão lendo esse texto estão sujeitos. Essa situação ajuda muitas pessoas a aceitar a fragilidade da vida e a inevitabilidade de nossa própria mortalidade. 

Embora não saibamos se os cães compreendem quando morremos, não faltam exemplos pelo mundo afora de reações caninas a estes acontecimentos. E elas variam do comovente ao bizarro. 

Descobri que na época que a atual cidade de Lajes ainda era uma propriedade rural, ocorreu uma situação envolvendo dois cachorros que chamou a atenção da comunidade e se mantém até hoje no imaginário de algumas pessoas da região.

Os Cães Entendem a Morte?

Sabe-se que os cães são os melhores amigos de quatro patas do homem e ele ficará ao seu lado, não importando o que aconteça. Mas você realmente sabe até onde vai a lealdade de um cachorro? 

article-2202509-14FDAC27000005DC-124_634x475
O recente caso do vira-lata ‘Capitán’, que durante dez anos zelou pelo túmulo do seu dono na cidade argentina de Villa Carlos Paz, na província de Córdoba, chamam atenção de todos – Fonte – G1

Talvez você possa ter ouvido falar da história de Hachiko, o cão que esperou o retorno de seu mestre humano, mesmo depois dele ter morrido. Mas há muitos outros caninos cujas façanhas foram extraordinárias de alguma forma. Eles fizeram o inesperado, realizando coisas surpreendentes. A fim de honrar a memória desses animais, muitas estátuas de cães foram erguidas em todo o mundo, representando a devoção dos homens a esses animais de estimação. 

O professor de psicologia da Universidade da Columbia Britânica, Stanley Coren, disse à IFLScience que “Todas as nossas pesquisas atuais tendem a mostrar que os cães têm uma mente que é aproximadamente equivalente a de uma criança humana entre dois e três anos de idade”. Os cientistas acreditam que os nosso melhor amigo é mais do que capaz de sentir dor, tristeza e até depressão, mas provavelmente eles não possuem inteligência para compreender a existência e a permanência da morte. Afirma Stanley Coren que “Antes dos cinco anos de idade as crianças não entendem alguns conceitos básicos sobre a morte e a principal coisa que para elas é incompreensível se relaciona ao fato da morte ser irreversível”.

Isso não quer dizer que os cães não tenham algum grau de percepção sobre isso. Um grupo cada vez maior de pesquisadores em cognição canina indica que eles são animais emocionalmente complexos e com um alto grau de inteligência social. Por exemplo, estudos recentes revelaram que os cães conseguem compreender alguns sons do vocabulário humano, ao mesmo tempo em que julgam o tom da voz de uma pessoa para decifrar o verdadeiro significado do que estão dizendo. É essa intuição social que permite aos cães formarem relações tão próximas com os humanos. Essa proximidade pode em muitos casos ser extremamente fortes e pungentes, gerando por parte desses animais de estimação interessantes situações quando seus donos morrem.

Navy SEAL Killed In Afghanistan Mourned By Dog
Em 2011, na cidade de Mason City, Iowa, Estados Unidos, o cachorro Hawkeye não saiu do lado do esquife do seu dono, o membro do SEAL Jon Tumilson, morto em ação de combate no Afganistão em 6 de agosto daquele ano, quando seu helicóptero foi abatido durante uma missão destinada a ajudar as tropas que foram atacadas por insurgentes. Foi um dos ataques mais mortais contra as forças dos Estados Unidos naquela guerra de 10 anos. Foto de Lisa Pembleton, Getty Images.

No entanto, Stanley Coren insiste que a capacidade de compreender conceitos abstratos como a morte pode estar além da capacidade dos caninos, sendo essa situação limitada a humanos e possivelmente a um pequeno número de outros animais altamente cognitivos, como elefantes e alguns primatas. O cientista afirma “Os cães são extremamente sociáveis ​​e estão altamente conscientes da perda de um indivíduo que é importante em sua vida, mas eles não têm a ideia de que eles necessariamente desaparecerão para sempre”, diz ele.

Em relação aos casos de cães que esperam fielmente por seus donos ao lado de seus túmulos por anos a fio, Coren diz que eles provavelmente estão esperando por eles voltarem, em vez de lamentar sua perda. “Eu não acho que o cachorro ficaria particularmente surpreso se seu mestre saísse daquela caixa”, explica ele[1].

Ok, tudo bem!

Mas diante de um caso que aconteceu aqui no Rio Grande do Norte, ainda na época do Brasil Imperial, me pergunto se é comum cães sentirem e até mesmo “homenagearem” outros um cães após a morte deste?

Não sei! Mas leiam sobre esse caso…

Um promissor Potiguar

Nossa história se inicia com um fazendeiro da Região Central do Rio Grande do Norte.

Segundo consegui apurar, através dos escritos do professor e poeta João Bosco da Silva, da cidade potiguar de Pedro Avelino, e publicados no blog “Fernando – A Verdade”, do blogueiro Fernando Soares, Juvêncio Tassino Xavier de Menezes era filho do Major Francisco Xavier de Menezes e de Dona Maria de Fontes Taylor, nascida na Inglaterra. O jovem Juvêncio Tassino estudou em Recife onde se destacou em língua portuguesa, inglês, francês, matemática e latim. Depois de retornar ao seu estado natal, o promissor potiguar foi chamado pelo empresário e industrial Fabrício Pedrosa, o conhecido “Senhor dos Guarapes”, para exercer o cargo de procurador de sua poderosa empresa, atuando como representante do comércio exterior na venda de açúcar durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, a chamada Guerra da Secessão (ocorrida entre 1861 e 1865).

Mesmo sem comentar a data, o professor João Bosco informa que Olinto José Meira de Vasconcelos, que foi presidente da província do Rio Grande do Norte entre 30 de julho de 1863 a 21 de agosto de 1866, nomeou Juvêncio Tassino professor público, onde ele serviu em Taipu, Angicos, Mossoró e Caicó. Depois conseguiu a patente de Alferes da Guarda Nacional, mostrando sua ascensão na sociedade em que vivia. Entretanto, consta que Juvêncio abandonou tudo e decidiu morar na sua fazenda Livramento, na cidade de Angicos, localizada na Região Central do Rio Grande do Norte. Durante a conhecida “Seca dos dois sete”, que na verdade durou de 1877 a 1879, esse fazendeiro perdeu todos os seus bens para a calamidade climática. Decidiu então sair do sertão e morar no fértil Vale do Ceará-Mirim, onde com muita luta Juvêncio conseguiu recuperar seu patrimônio. Existe a informação que ele foi juiz distrital no município paraibano de Guarabira e fundador do Partido Republicano do Rio Grande do Norte, juntamente com Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, o primeiro governador republicano em terras potiguares. Juvêncio Tassino foi um homem de vasta influência política, onde conseguiu trazer para os municípios da Região Central escolas e muitos açudes.

O professor e poeta João Bosco da Silva informa ainda que em 1913, Juvêncio Tassino veio para sua fazenda São Miguel, em um lugar chamado “Gaspar Lopes” e que está enterrado no “Cemitério do Logradouro, em São Miguel”. Era tido como um homem pacífico, bondoso, que acolheu antigos escravos, como por exemplo, ”Mãe Chica e Joana”[2].

Mas eu descobri que Juvêncio Tassino não apenas acolheu ex-escravos, ele também os ouvia e, melhor, anotou e transmitiu alguns dos relatos dos antigos cativos em interessantes crônicas no principal jornal natalense do início do Século XX.

Pai Mané, os Dois Parrudos e as Onças

Na edição de terça-feira do jornal A República, dia 4 de dezembro de 1917, na terceira página, mais precisamente na coluna “Solicitadas”, Tassino apresenta sua crônica com o seguinte titulo “História verídica de um cão, vitima admirável do amor paternal, passada nas Lajes, hoje Villa florescente d’este Estado”. Ele informa que o episódio ocorreu ainda na época do Brasil Império, quando o sistema escravista era vigente e o atual município de Lajes era uma antiga e grande fazenda que havia pertencido a Miguel Ferreira de Mello, homem rico, que tinha até mesmo casa comercial em Recife.

DSC02804 - Copia

Miguel Ferreira tinha como vaqueiro e seu procurador na propriedade José Antônio de Mello, um provável parente. Este por sua vez foi casado com uma senhora que era irmã do avô paterno de Juvêncio Tassino. Não sei se o narrador conviveu com os envolvidos nessa história, ou apenas ouviu relatos de quem conviveu com os mesmos.

Em seu texto Juvêncio relatou que José Antônio de Mello possuía entre seus “bens de fortuna” um casal de escravos vindos da África, cujo homem se chamava Manoel, mas era conhecido de todos como “Pai Mané”, sendo considerado de extrema confiança e tinha total atenção e estima do seu dono.

Um dia José Antônio entregou a Manoel um cachorro bem novo, que este último lhe chamou de “Parrudo”. Mesmo sem informar a raça desse cão, o nome dá ideia de ser um animal de porte respeitável e certamente bem forte. Talvez um da raça Fila Brasileiro?

Filas_brasileiros_de_orelhas_cortadas,_acuando_onça.
Antiga gravura que mostra Cães Fila de orelhas cortadas(que podem ser o brasileiro, ou o cão de fila de são miguel) acuando uma onça-pintada – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Fila_brasileiro

Parrudo logo se mostrou um cachorro especial, pois apresentou notável destreza e capacidade nas caçadas de onças, que nesse tempo provocavam grande destruição entre o plantel de gado dos fazendeiros da região.

A onça pintada e seus parentes próximos são os animais que mais força e representatividade possuem no imaginário dos brasileiros, sendo as dos tipos pintada e a parda os únicos animais comparados aos grandes felídeos africanos. Já sua caçada dependia (e ainda depende em algumas regiões do Brasil) do uso de cachorros com enorme capacidade para a perseguição. Os cachorros farejavam o rastro das onças e quando os caçadores se aproximavam, a tendência desses animais era correr. Mas a onça pintada é um animal pesado, que não aguenta correr muito. O cachorro é muito mais resistente. Então, a onça se cansava e subia nas árvores ou buscava uma loca de pedra procurando segurança, quando então se tornava um alvo fácil para os caçadores.

Não sei no caso de Pai Mané, o texto nada comenta, mas naqueles tempos de trabalho servil no Brasil certamente eram poucos os escravos que caçavam esses animais com armas de fogo. Então o apetrecho de caça das onças grandes era uma espécie de lança chamada “zagaia” e quem utilizava essa arma era o “zagaieiro”. E o caçador tinha de possuir muita coragem e muita destreza, pois após a onça ser acuada por Parrudo, o escravo Pai Mané tinha de chegar bem perto do forte felino, levar a zagaia com a ponta rente ao chão sem jamais poder levantá-la, pois a onça poderia dá uma patada na zagaia que deixaria o caçador indefeso e certamente o animal lhe atacaria.

“Homenagem”

Mas o tempo foi passando e Parrudo começou a dá sinais de velhice. Pai Mané decidiu então colocar seu companheiro de caçadas para cruzar com uma cadela, da qual Juvêncio Tassino não informa nada em relação à origem e sua raça. Nasceu então uma ninhada onde se destacou um macho que foi adotado pelo escravo e chamado “Novo parrudo”.

O neófito animal se mostrou apto para o negócio de caçadas de onças, tão bom quanto seu pai. Logo a destreza e capacidade do trio fez ainda mais fama na Região Central e em outras áreas do Rio Grande do Norte.

Juvêncio Tassino nos conta que eles chegaram a caçar na região do Seridó, onde foram chamados para matar onças pelo “inteligente e grande reformador Capitão Thomaz de Araújo”, talvez algum descendente de Thomaz de Araújo Pereira (1765-1847), 3º do nome e 1º presidente da província do Rio Grande do Norte. O certo é que Pai Mané e Parrudo pintaram o sete na caçada às onças seridoenses.

Mas quis o destino que um dia, no meio da mata e durante uma das caçadas, o velho Parrudo fosse mordido por uma cascavel. O animal só durou umas duas horas e o desolado escravo trouxe nas costas o cadáver do companheiro de labuta. Na casa grande da fazenda o já velho escravo pediu licença ao seu senhor para enterrar o estimado animal. José Antônio de Mello deu a autorização e seu escravo levou o cadáver do cachorro para ser sepultado na várzea direita de um rio que, segundo Juvêncio Tassino, ficava “bem confronte aonde existe o Cemitério Público”. Certamente o mesmo cemitério que é facilmente visível por quem hoje passa por Lajes, utilizando a rodovia BR-304, a mesma que liga Natal a Mossoró.

Caça à onça, Rugendas
Índios caçando onças durante o período colonial, em quadro de Johann Moritz Rugendas – Fonte – https://martaiansen.blogspot.com/2014/03/como-os-indios-cacavam-oncas.html

A partir desse ponto da história começaram a acontecer situações estranhas, que fizeram com que esse relato permanecesse por décadas na memória de muitas pessoas da região.

O jovem Parrudo seguiu Pai Mané e o cadáver do velho Parrudo soltando ganidos estridentes, uivando fortemente e agindo de maneira muito estranha. Enquanto o velho escravo cavava a cova, o jovem animal passava a pata com carinho no animal morto, como querendo chamá-lo para a vida. Depois de cavar uma cova bem funda e enterrar o velho Parrudo, o animal mais jovem colocou-se sobre o local do enterramento e continuou ganindo e uivando.

Juvêncio informou em seu texto de 1917 que Pai Mané tentou de tudo para trazer o jovem Parrudo para casa, mas foi em vão. No final do dia o escravo trouxe o cachorro amarrado e a força. Mas logo que foi solto, voltou rapidamente para a cova do velho Parrudo e lá ficou. Para piorara a situação e deixar o povo da região impressionado, o animal não aceitou nenhum tipo de comida e teimava em ficar sobre a tumba. Logo a notícia se espalhou e outras pessoas vieram ver o que acontecia. Muitos tentaram trazer o animal para a choupana do escravo, mas presenciavam seu retorno ao local do enterramento. Foram oito dias de agonia e tentativas de demover o jovem animal daquele verdadeiro martírio. Mas nada adiantou e o Parrudo novo morreu naquele oitavo dia de fome e tristeza.

DSC02805 - Copia

Em meio a muita contrariedade ao Pai Mané não sobrou outra coisa a fazer do que enterrar aquele cachorro ao lado do velho Parrudo. Ele jurou nunca mais caçar onças e criar outros cachorros para esse fim. Segundo Juvêncio Tassino Manoel, o Pai Mané, cumpriu sua promessa até a morte.

Ao final do relato transcrito em A República de 4 de dezembro de 1917, Juvêncio fez questão de escrever – “Garanto a verdade do facto mesmo sob juramento”.

Esse material eu fotografei em 2005, nos velhos exemplares de A República existentes no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, quando lá realizei uma pesquisa como aluno do curso de história da UFRN. Fotografei esse exemplar do jornal mais pela singularidade do relato e não porque fosse o foco da minha pesquisa. 

41135320_10217949052184789_7618751098060275712_n
Em recente pesquisa de campo na região de Lajes, São Tomé e Cerro Corá.

Passados treze anos, nesse ano de 2018 eu estive realizando um trabalho de levantamento de campo na região da Serra do Feiticeiro, em uma área onde se encontram as fronteiras dos atuais municípios de Lajes, São Tomé e Cerro Corá. Em um dos momentos que realizava esse trabalho estive no sítio Serra Verde, próximo ao Rio Poço dos Cavalos e da Serra da Macambira, não muito distante da cidade de Bodó.

Ali encontrei a Senhora Maria das Dores da Silva, moradora do lugar, pessoa simples e humilde e tendo cerca de 60 anos de idade. Ela é de descendência negra, possui mãos calejadas pelo trabalho no campo e uma enorme alegria ao receber seus visitantes. Em meio a um cafezinho, ao lhe perguntar histórias “dos mais antigos da região”, para minha surpresa ela me narrou o mesmo episódio que encontrei no exemplar de A República de 1917.

Maria das Dores me disse que essa história lhe foi contada pelo seu pai, já falecido, que ouviu de seus avôs e certamente dos seus antepassados mais distantes. Ela não sabe me dizer se é descendente do escravo africano Manoel, o Pai Mané, mas que essa história era transmitida como uma maneira dos mais velhos mostrarem aos mais novos como os cachorros, os melhores amigos dos homens, merecem atenção e respeito.  

NOTAS


[1] Ver https://www.dailymail.co.uk/news/article-2202509/Loyal-dog-ran-away-home-dead-masters-grave–stayed-years.html

http://worldtoptop.com/top-famous-loyal-dogs/

Top 10 Famous Loyal Dogs in the World

[2] Ver http://fernando-averdade.blogspot.com/2011/09/espaco-das-grandes-figuras-legado-dos.html

A DESCOBERTA QUE PÕE FIM AO MISTÉRIO DE U-3523, O SUBMARINO LIGADO À FUGA DE LÍDERES NAZISTAS PARA A AMÉRICA DO SUL NO FINAL DA II GUERRA

hitlerhandshakelarge
Provavelmente a última aparição pública de Adolf Hitler, no dia 20 de março, onde ele entregou medalhas aos membros da Juventude Hitlerista – Fonte – http://ww2today.com/20-april-1945-hitlers-birthday-as-red-army-guns-hit-berlin

Fonte – http://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-43825374?ocid=socialflow_facebook

A verdade sempre foi que Adolf Hitler cometeu suicídio, atirando em si mesmo no seu bunker nazista em Berlim, no dia 30 de abril de 1945.

Mas ao longo de décadas várias teorias apontam que ele morreu como um ancião e em diferentes partes do planeta.

13844798_f1024
Portão de Brandemburgo, abril de 1945, na Batalha de Berlim – Fonte – https://owlcation.com/humanities/Berlin-April-1945-The-Cauldron

Muitas dessas declarações informais indicavam que Hitler e vários de seus colaboradores do Terceiro Reich vieram para a América Latina, especialmente na parte sul do continente, onde conseguiram passar incógnitos e viver o resto de seus dias em total tranquilidade.

E eles fizeram isso depois de cruzar o Oceano Atlântico e fugir dos extensos e rígidos controles das forças aliados graças a um poderoso submarino: o U-3523.

No entanto, um dos pilares dessa teoria desmoronou recentemente: em abril de 2018 o Museu da Guerra da Dinamarca, localizado em Copenhague, encontrou o famoso submarino nazista nas águas territoriais daquele país, a 123 metros de profundidade.

_100942680_81c32477-a275-498f-ad98-52946102df85
O submarino foi encontrado a 123 metros de profundidade no Estreito de Skagerrak, no norte da Dinamarca.

“O museu localizou os restos do submarino alemão U-3523, que foi afundado no Estreito de Skagerrak por uma aeronave B-24 Liberator britânico (Esquadrão 226) em 6 de maio de 1945, as 18:39 horas”, diz um documento enviado pelo Museu da Guerra da Dinamarca à BBC World.

“Devido à sua capacidade de permanecer submerso por muito tempo, o U-3523 alimentou rumores de que ele havia sido o meio de transporte utilizado pela elite nazista fugir para a América do Sul”, acrescenta.

_100942262_content-1524057481-uboat
Este é um modelo semelhante ao que foi encontrado na Dinamarca e que foi pensado para ter sido o meio de transporte com o qual os líderes nazistas fugiram para a América Latina.

O que é certo é que alguns personagens destacados entre os nazistas realmente fugiram para a América do Sul, como Adolf Eichmann, que terminou na Argentina, ou Josef Mengele, que atingiu a costa do Brasil.

Mas o submarino encontrado permite derrubar muitas versões e reescrever a história de uma parte do século XX.

O Achado

U-3523 era um submarino do Tipo XXI, considerado por muitos especialistas como o mais moderno da Kriegsmarine, a marinha nazista, e um dos últimos modelos a ser construído. “Este submarino foi projetado, diferentemente de seus antecessores, para permanecer realmente submerso por um longo tempo, o que significa que ele poderia viajar tranquilamente para a América do Sul”, diz o documento.

German_submarine_U_3008
O U-3008, capturado pelos ingleses após o fim do conflito – Fonte – https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6d/German_submarine_U_3008.jpg

No entanto, apesar do fato de 118 submarinos Tipo XXI haver sido construídos, apenas dois entraram em serviço – um deles U-3523, que era comandado pelo Oberleutnant zur See Willi Müller.

Embora houvesse indícios claros de que a Real Força Aérea Britânica havia afundado, a falta de evidências físicas alimentou o mistério e as teorias sobre a fuga nazista para a América do Sul.

Os pesquisadores do museu indicaram que estão trabalhando na busca pelos naufrágios deixados pela Segunda Guerra Mundial e que estão nas águas perto da Dinamarca.

“A descoberta foi feita enquanto estávamos escaneando uma área perto da cidade de Skagen, no norte da Dinamarca”, explicou o representante do Museu.

Como identificaram esse submarino?

86_big
Este é o U-2540, o único modelo Tipo XXI sobrevivente.

Além dos dados históricos que indicavam que o U-3523 havia sido afundado naquela área, havia um modelo idêntico ainda preservado para ser comparado com os restos encontrados. O submarino sobrevivente do Tipo XXI da frota nazista se encontra na cidade alemã de Bremerhaven, no museu marítimo local.

“O engraçado é que, ao contrário de outros achados, os restos do U-3523 estão bem destacados no fundo do mar, o que tornou mais fácil identificá-lo.”

Por enquanto os restos do U-3523 permanecerão no fundo do mar até que uma expedição seja organizada para remover seus restos. Além disso todos os 58 tripulantes da nave pereceram neste local.

“É improvável que seja em breve devido ao fato de que está em uma grande profundidade e em uma área de difícil acesso”, concluiu o representante do museu.

NOTA DO TOK DE HISTÓRIA –

Um submarino do Tipo XXI, denominado U-2361, foi comandado por Heinz von Hennig, que em 1957 veio para o Brasil, conforme foi relatado por este blog no texto “O COMANDANTE DE UM SUBMARINO ALEMÃO DA SEGUNDA GUERRA QUE VIVEU NO BRASIL”.

Para conhecer essa história é só clicar no link abaixo.

https://tokdehistoria.com.br/2017/04/20/o-comandante-de-um-submarino-alemao-da-segunda-guerra-que-viveu-no-brasil/

COMO O PARAGUAI PLANEJAVA LIQUIDAR O BRASIL

guerra-do-paraguai-1083175
A Batalha do Riachuelo, uma das mais importantes da Guerra do Paraguai | Crédito: Wikimedia Commons

Quando o ditador paraguaio declarou guerra a um país dez vezes maior, não foi loucura; ele tinha boas razões para acreditar na vitória

AUTOR – Fabio Marton

Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/ha-153-anos-solano-lopez-declarava-guerra-ao-brasil.phtml#.Wk63Ld-nHXN

Em 13 de dezembro de 1864, o Paraguai declarou guerra ao Brasil, iniciando o que seria o conflito mais sangrento da América Latina, em que mais de 300 mil vidas se perderiam dos dois lados, entre batalhas, fome e doenças. O Paraguai seria aniquilado na guerra: perdeu 75% de sua população adulta e reduziu seu papel geopolítico a pouco mais que um estado-tampão entre Argentina e Brasil, oscilando entre ser dominado politicamente por um ou outro.

l1chlqxugfwo2ltsxtvk
A batalha representada em obra de Pedro Américo

O ditador do Paraguai, Francisco Solano López, entrou na guerra conhecendo alguns fatos. A população do Brasil era dez vezes maior que a do Paraguai, cerca de 8 milhões de habitantes, contra 800 mil. A Argentina, forte aliada do Brasil, tinha cerca de 2,5 milhões. Ambos os países tinham acesso desimpedido ao Oceano Atlântico para comprar armas, navios e o que mais precisassem da Europa e dos Estados Unidos, enquanto o único acesso ao mar do Paraguai era por meio dos rios Paraná e Prata, cruzando o território argentino.

À primeira vista, e sabendo como a guerra terminou, López parece ter sido um louco suicida. Ele era impulsivo e autoritário. Mas suicida ele não era. E tinha um plano – ou pelo menos uma aposta. E, no seu jogo, conquistar acesso ao mar era fundamental.

Tríplice Aliança ao contrário

A primeira coisa sobre o plano de López é que ele não esperava ter de enfrentar Brasil, Uruguai e Argentina, situação que se consolidou com a criação da Tríplice Aliança, em 1º de maio de 1865. Ao contrário, esperava ter Uruguai e Argentina a seu lado e quem sabe unificar os 3 países ao fim da guerra e criar uma grande nação nas fronteiras do antigo vice-reino do Rio da Prata, do Peru à Patagônia. “López imaginava uma Tríplice Aliança ao contrário”, diz Francisco Doratioto, autor de Maldita Guerra e Osório.

Lopez1870
Francisco Solano López – Fonte – military.wikia.com

Os uruguaios eram aliados de López, e a guerra só começou, tecnicamente, porque o Brasil invadiu o Uruguai, em guerra civil desde 19 de março de 1863, em apoio ao ex-presidente Venâncio Flores e 1,5 mil voluntários do Partido Colorado, que desafiou o governo de Montevidéu, controlado pelo Partido Nacional (ou Blanco). Os brasileiros, que formavam um terço da população do Uruguai, apoiavam Flores e passaram a sofrer ataques dos partidários blancos. Em 30 de agosto de 1864, o Paraguai havia mandado um ultimato ao Brasil: invadir o Uruguai seria um ato de guerra.

O Brasil ignorou o ultimato e declarou guerra ao governo blanco em 10 de novembro de 1864, com o apoio tácito da Argentina. “Nem Argentina nem Brasil acreditavam que o Paraguai reagiria a um ataque ao Uruguai”, diz Moacir Assunção, autor de Nem Heróis, Nem Vilões: Curepas, Caboclos, Cambás, Macaquitos e Outras Revelações da Sangrenta Guerra do Paraguai. Mas López cumpriu a ameaça e atacou o Brasil. Não na fronteira com o Uruguai, mas em Mato Grosso, em dezembro de 1864.

López não contava só com o apoio dos blancos. Havia recebido promessas de Justo José Urquiza. Governador da província de Entre Rios, Urquiza era o maior proprietário rural da Argentina, presidente entre 1854 e 1860, e inimigo do presidente argentino, Bartolomé Mitre. O plano de López era invadir o país ao norte, juntar-se às forças de Urquiza ao sul e seguir para Buenos Aires. Se tudo funcionasse, os 3 aliados – Paraguai, Uruguai e Argentina – atacariam o Brasil.

hqdefault
A Batalha de Riachuelo

A mão (invisível) do Tio Sam

Além de Urquiza e dos blancos uruguaios, havia outro personagem soprando confiança nos ouvidos de López. Ninguém menos que os Estados Unidos da América. Segundo o livro de Moacir Assunção, “no Paraguai, o cônsul americano Charles Ames Washburn ofereceu apoio ao país contra o Brasil ainda antes da guerra e chegou a instigá-lo a iniciar o conflito”.

Washburn era cônsul desde 1861, ainda no governo do pai de Solano, Carlos Lopes. E o que ele prometia não era completamente infundado: Brasil e EUA andavam às turras desde o início da Guerra de Secessão (1861-1865). Os americanos unionistas, do Norte, viam os brasileiros como uma monarquia europeia implantada na América e um país profundamente escravocrata, ambas verdades que os brasileiros não gostavam de ouvir. Artigos na imprensa durante a guerra eram principalmente antibrasileiros, quando não idealizando López como um libertador republicano contra uma monarquia de escravos.

jn002104
Militar brasileiro Francisco do Rego Barros – Fonte – http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=64329

Já os brasileiros não ocultavam suas simpatias pelos confederados do Sul, escravocratas, agrários e aristocráticos como eles. Isso levou a alguns incidentes, em que brasileiros recebiam calorosamente os navios confederados, que atacavam navios unionistas na costa brasileira impunemente, enquanto os navios unionistas eram quase proibidos de frequentar portos do Brasil. Em 1864, o ataque de um navio unionista a um confederado em águas brasileiras quase comprometeu as relações diplomáticas.

Em duas ocasiões, Washburn quase fez com que sua promessa a López fosse cumprida. Quando a guerra começou, o diplomata estava em férias no seu país. Em 1866, o navio americano Shamokin tentou furar o bloqueio da Marinha brasileira e levá-lo a Assunção. O comandante prometeu que só seria interrompido “por força maior”, o que fez os brasileiros cogitarem abrir fogo.

jn004931
O brasileiro Symphonio dos Santos uniformizado para combater na Guerra do Paraguai – Fonte –

Washburn caíria em desgraça e seria torturado pelas forças de López, que havia ficado paranoico com a possibilidade de conspiração. Em 1868, outro navio foi enviado para retirá-lo – e, desta vez, falaram abertamente em guerra com os brasileiros. Em ambas as situações, os brasileiros engoliram seu orgulho, evitando o pior.

Blitzkrieg paraguaia

A aposta paraguaia não era apenas diplomática. O Exército paraguaio era muito maior que o brasileiro no começo da guerra. Os paraguaios tinham uma força de 64 mil homens, e os preparativos para a guerra começaram meses antes da declaração, enquanto as tensões entre Brasil e Uruguai se acumulavam. O Exército brasileiro tinha 18 mil efetivos, mal-armados e malvestidos, informações que os blancos uruguaios fizeram questão de levar ao ditador paraguaio. Segundo Doratioto, López queria fazer uma blitzkrieg do século 19. “Ele tinha um plano inteligente e bem estruturado. Era um ataque-relâmpago, uma coisa à frente do seu tempo.”

colerico1
Retirada da Laguna – Fonte – http://datasefatoshistoricos.blogspot.com.br/search?q=retirada+da+laguna&x=11&y=13

A blitzkrieg paraguaia também contava com outra manobra inteligente: fazer os brasileiros acreditarem que os paraguaios atacariam por outra região, causando um imenso problema logístico. A ofensiva em Mato Grosso envolveu duas colunas e 9 mil homens, que conquistaram cidades como Albuquerque, Coxim e Corumbá até abril de 1865. Os brasileiros esperavam um ataque à capital da província, Cuiabá, que nunca aconteceu. Sem estradas que chegassem à região, a contraofensiva brasileira levou de abril a dezembro de 1865 para se mover de Minas Gerais ao Mato Grosso. Quando finalmente alcançaram a província, os paraguaios simplesmente se retiraram – exceto de Corumbá, onde resistiram até junho de 1867.

Enquanto os brasileiros se perdiam no próprio Brasil, López preparava seu verdadeiro ataque. O Paraguai declarou guerra à Argentina em 18 de março de 1865. Em 13 de abril, um contingente enorme de tropas paraguaias – 37 mil homens – invadiu a província de Corrientes pelo rio Paraná. Com Corrientes capturada quase sem resistência, em maio, as tropas se dividiram. Cerca de 12 mil ficaram na cidade e 25 mil rumaram para o Rio Grande do Sul, onde tomaram São Borja, em 12 de junho, e Uruguaiana, em 5 de agosto. Era o plano de López em ação.

Le_capitaine_Moriz-e-Barros,_mort_au_bombardement_d'Itapiru
Antônio Carlos Mariz e Barros, comandante da corveta Belmonte em 1862, que visitou Natal e foi morto na Guerra do Paraguai.

Traição na Argentina

A primeira má notícia para López aconteceu no início da invasão à Argentina. Comandando as tropas para a retomada de Corrientes, apareceu ninguém menos que Justo José Urquiza. O caudilho havia feito promessas a López, mas havia recebido outra visita. O general e senador brasileiro Manuel Luís Osório, com quem teve uma conversa estratégica. “Os brasileiros compraram Urquiza”, diz Assunção.

Ele foi convencido por Osório de que lucraria muito mais apoiando Brasil e o governo argentino. Para a surpresa de López, o ex-presidente argentino conduziu suas tropas com rara ferocidade. A decisão de Urquiza também surpreendeu muitos argentinos, e vários desertaram a favor do Paraguai nos primeiros meses da campanha.

a-3
Guerra do Paraguai – Imagem meramente ilustrativa

De forma que, em 25 de maio de 1865, quando uma tropa argentina conseguiu reconquistar a cidade de Corrientes, a glória durou menos de 24 horas: os argentinos recuaram, deixando a cidade pronta para ser reconquistada pelos paraguaios. Ainda assim, López destituiu do comando o general Resquín, líder da invasão, que seria executado em janeiro de 1866.

Baixas de uma ditadura

O plano de López começou a naufragar, literalmente, no arroio Riachuelo, em 11 de junho de 1865. A ideia era tomar a esquadra brasileira, de 9 vapores, atacando-os por meio de abordagem – os soldados saltam para dentro do navio inimigo de forma a capturá-lo intacto. A chave do ataque era o fato de os navios brasileiros serem a vapor.
À noite, apagavam-se as caldeiras, acesas novamente de manhã. Levava uns 20 minutos até a água ferver e o navio estar em condições de se mover. Assim, os navios paraguaios – também a vapor, e em mesmo número que os brasileiros – poderiam se aproximar da frota nacional.

a-15
A guerra não era uma unanimidade no Brasil. Conflito armado entre militares e civis brasileiros, no período da Guerra do Paraguai.

Uma avaria, no entanto, atrasou o ataque. E aqui o autoritarismo político do Paraguai se mostrou uma desvantagem. “Ninguém ousava contrariar López, que havia ordenado um ataque para aquele dia”, diz Doratioto. Com medo do ditador, os paraguaios atacaram com dois navios a menos e só às 9h30, quando os barcos brasileiros estavam totalmente operantes. As abordagens foram repelidas a canhonaços. Ao fim do dia, a esquadra paraguaia jazia no fundo do rio Paraná. A Batalha de Riachuelo foi um desastre que isolou o país do resto do mundo.

Quando os paraguaios invadiram o Rio Grande do Sul, já era tarde para os blancos uruguaios. Em 20 de fevereiro de 1865, brasileiros e colorados haviam conquistado Montevidéu e Venancio Flores assumiu um governo pró-Brasil. Em 18 de agosto, duas semanas após tomar a cidade, os paraguaios se renderam em Uruguaiana, diante de dom Pedro II, Bartolomeu Mitre e Venâncio Flores.

Guerra-do-paraguai
Coronel Joca Tavares (terceiro sentado, da esquerda para a direita) e seus auxiliares imediatos, incluindo José Francisco Lacerda, mais conhecido como “Chico Diabo” (terceiro em pé, da esquerda para a direita). Imagem: Wikipedia, Domínio Público. In: Salles, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003. ISBN 85-333-0264-9 (p.180)

Foi o fim da ofensiva do sul. Em 31 de outubro, as tropas paraguaias em Corrientes se retiraram. A partir daí, a guerra seria uma longa e agonizante defensiva para Solano López, culminando com a captura de Assunção, em 1º de janeiro de 1869. A fuga do ditador pelo interior do país acabou em 1º de março de 1870. Numa emboscada à última tropa paraguaia em Cerro Corá, o cabo brasileiro Chico Diabo atingiu o ditador com uma lança. Sem se render, López foi morto a balas ali mesmo.

O NAVIO PIRATA BRASILEIRO

unnamed (1)
Combate no alto mar, em pintura do século XIX – Fonte – https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

A História do Navio Negreiro Brasileiro Defensor de Pedro Que Se Transformou Em Um Barco Pirata

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN 

Em 1827 o Império do Brasil era uma nação bem jovem, que apenas cinco anos antes havia deixado de ser colônia de Portugal. O país tinha Dom Pedro I como seu Imperador, que governava em uma época de instabilidades. Era um tempo em que o Brasil era majoritariamente agrário, onde utilizava e dependia da mão de obra escrava vinda da África e tinha no tráfico negreiro através do Atlântico Sul a principal maneira destes cativos chegarem a seus portos.

Engenho_na_Paraíba_1645
Engenho de cana de açúcar na Paraíba na época da invasão holandesa

Mas nessa época a Inglaterra desejava à extinção do tráfico negreiro intercontinental para o Brasil, entretanto suas razões jamais foram por questões humanitárias. Estava no fato do açúcar produzido no Brasil, devido à mão de obra servil, ser bem mais barato do que o produzido nas colônias inglesas do Caribe. Além do que as áreas de plantação nestas colônias caribenhas eram pequenas comparadas com as brasileiras, havia um número de cativos baixo e a escravidão como força de trabalho nestas colônias estava em processo de extinção definitiva[1].

E para acabar com esse tráfico humano os ingleses estavam dispostos a utilizarem até mesmo os canhões de sua poderosa marinha de guerra, a Royal Navy. Dom Pedro I ratificou então um tratado em 13 de março de 1827, que definia um prazo de três anos para extinguir o tráfico de escravos para o Brasil. A partir desta data, quem fosse pego transportando seres humanos cativos no mar seria enquadrado como pirata e a punição básica existente nas leis inglesas para esse tipo de crime marítimo era a forca.

03. Dama em literia, carregada por escravos e suas acompanhantes_Carlos Julião_17xx_Crédito_Carlos Julião
Dama em liteira carregada por escravos e suas acompanhantes. A escravidão no Brasil foi um grave e grandiosos problema que até hoje se reflete no país de muitas maneiras – Foto Carlos Julião.

Essa situação de pressão estrangeira gerou um grande desconforto entre a elite política e agrária brasileira. Estes poderosos contestaram muito o Governo Imperial por ceder aos ingleses em algo que para eles “prejudicava o Brasil”. Até por que, antes mesmo do final do prazo de três anos, navios brasileiros que estavam vindos da África com escravos e não estavam com toda a parte burocrática em concordância com as regras impostas pelos ingleses, começaram a ser detidos pelas naves de guerra. Foram criadas duas comissões mistas com a finalidade de resolver estas questões de retenção e apresamento de navios. Uma das sedes destas comissões era no Rio de Janeiro e a outra na cidade de Freetown, na África Ocidental Inglesa, hoje capital de Serra Leoa[2].

O certo é que entre janeiro de 1827 e dezembro do ano seguinte, nada menos que doze navios negreiros, sendo nove brasileiros e três espanhóis, foram capturados apenas pela corveta inglesa HMS North Star, ocasionando a libertação de um número próximo a 2.000 escravos[3].

Slave_Ship
Navio negreiro – Fonte – http://criticallegalthinking.com/2014/05/22/slave-ship-embodies-whole-story-slavery/

Realmente os dias do nefando tráfico de homens, mulheres e crianças negras vindos da África para o Brasil estava chegando ao seu final.

O Defensor de Pedro

Mas se o trafico negreiro estava com seus dias contados, não faltava no Brasil quem quisesse pagar por mão de obra escrava para tocar suas fazendas. Com a consequente diminuição do fluxo e do número de cativos vindos da África, o preço por cada escravo começou a subir. O que atiçou a cobiça dos proprietários de barcos negreiros e dos seus capitães a cruzarem o Atlântico Sul, mesmo sem toda a papelada burocrática e a presença vigilante e perigosa da Royal Navy.

mea-00505
Rio de Janeiro, entrada da Barra perto do alto-mar, 1820 – Fonte – https://culturalrio.wordpress.com/2011/05/18/rio-ontem-e-hoje-bonito-por-natureza/

Não sei se o proprietário do barco brasileiro Defensor de Pedro havia cumprido todas as exigências da burocracia para satisfazer os ingleses, mas em novembro de 1827 este zarpou do Rio de Janeiro em busca de escravos na África[4]. 

O seu comandante era Pedro Maria de Souza Mariz Sarmento, mais conhecido como Pedro de Souza Mariz Sarmento, era um português de Lisboa, nascido em 1790 e que em 1808 fez parte da esquadra portuguesa que veio para o Brasil com Dom João VI. Na época Mariz Sarmento tinha o posto de primeiro tenente e seguiu para a grande colônia portuguesa a bordo da Nau Afonso de Albuquerque. Mas em 1827 sabemos que ele estava reformado na patente de capitão-tenente da Marinha Imperial do Brasil e sua única função naquele ano era o comando do navio negreiro Defensor de Pedro[5].

brigue

Já em relação ao Defensor de Pedro as informações também são bem limitadas. Algumas fontes apontam que ele seria uma nave do tipo Brigue, que era um modelo de veleiro de dois mastros principais, muito utilizado no comércio e podendo carregar de doze a vinte canhões. Já outras fontes apontam que este barco seria do tipo Bergatin, também um veleiro com dois mastros principais, pequenos, que foram utilizados nos séculos XVIII e XIX para o comércio e transporte normalmente em rotas curtas. Os dois tipos de barcos são bastante similares em dimensões, onde as tonelagens são bem próximas e eram muito rápidos e manobráveis. Populares não apenas entre mercadores, mas também entre piratas[6].

Um Corsário Brasileiro 

No dia 22 de novembro de 1827 o Defensor de Pedro se fez ao mar com destino a Molembo, atualmente o município costeiro de Cacongo, no enclave de Cabinda, Angola.

1 (1)
Descrição da carga do Defensor de Pedro antes de sair do Rio de janeiro.

A nave transportava várias toneladas de tecidos típicos daquela época, como zuarte e chita, além de caixas com 200 dúzias de lenços. Mas o Defensor de Pedro transportava itens mais explosivos. Tais como 100 barris de pólvora, 12 arrobas de balas de chumbo (equivalente a 180 quilos), 15 caixas com espingardas, 4.600 pederneiras para detonar as armas de fogo, 200 facas de cabo de ferro e 24 pipas (barris) de cachaça. Cada uma das pipas tinha capacidade para cerca de 500 litros, ou seja, aquele barco levava 12.000 litros da mais pura “branquinha” brasileira[7].

mea-00517
Panorama circular do porto do Rio de Janeiro, 1827 (detalhe), pintado pelo artista inglês Emeric Essex Vidal – Fonte – https://culturalrio.wordpress.com/2011/05/18/rio-ontem-e-hoje-bonito-por-natureza/

Na nota existente no Jornal do Commercio do Rio, temos a informação que o capitão Pedro de Souza Mariz Sarmento tinha uma licença, ou carta, de corso, o que significava que para as autoridades brasileiras o Defensor de Pedro era um barco corsário.

No período inicial do Império do Brasil, assim como noutras nações, nosso país teve a sua marinha corsária e é importante aqui fazer a distinção entre corsário e pirata. Os piratas agiam ilegalmente em tempo de guerra e de paz, sem qualquer regra, sem pertencer a reis ou a qualquer governo. Ao contrário dos corsários, que agiam de acordo com seu soberano, exclusivamente em período de conflito, onde seus navios eram armados por particulares, que possuía licença do rei para combater os inimigos do Estado, visando interromper seu comércio e sua navegação. Além de ganhar dinheiro com o que fosse capturado.

tour_du_monde_bouchard
Rota do La Argentina ao redor do mundo – Fonte – http://grupolagazette.com/al/index.php?option=com_content&view=article&id=567:hyppolite-bouchard&catid=9&Itemid=109

A Argentina, por exemplo, possuiu uma frota corsária e um de seus navios realizou uma viagem de circunavegação pelo globo entre 1817 e 1819[8]. Mas essa não foi uma viagem de adestramento de Guardas Marinhas, foi uma viagem para atacar barcos e colônias espanholas. Chamado La Argentina, esta nave era comandada pelo francês Hippolyte de Bouchard, esteve em locais como Madagascar, Indonésia, Filipinas, Havaí, costa da Califórnia, negociando com barcos amigos e atacando impiedosamente os espanhóis. Nessa aventura Bouchard capturou 26 barcos, mas acabou preso no Chile pelo almirante inglês Thomas Alexander Cochrane, que na época servia junto à neófita marinha chilena e depois foi o primeiro almirante da Marinha do Brasil, onde combateu os portugueses na Bahia. Na época o cruzeiro do La Argentina se tornou um fato muito conhecido e comentado nos portos do Atlântico Sul[9].

Consta que o capitão Mariz Sarmento pretendia navegar levando toda essa mercadoria para ser trocada por escravos nos portos africanos. A ideia era trazer de 200 a 300 “Peças” de escravos, como se dizia na época. Mesmo com a mortandade média de uns 80 a 100 prisioneiros, era considerado um negócio lucrativo. 

landing-of-slaves-in-cais-do-valongo-painted-by-rugendas-in-1835-e1431619895836
Comércio de escravos no Cais do Valongo, porto do Rio de Janeiro.

Para isso ele necessitava de uma tripulação experiente e foi no porto do Rio de Janeiro que o capitão arregimentou um grupo de 40 tripulantes onde constavam brasileiros, portugueses, franceses e espanhóis, a maioria deles renegados e fugitivos da justiça de suas nações.

Quando um dos 40 tripulantes soube da rota que o Defensor de Pedro iria seguir e viu o que aquele barco carregava, certamente começou a pensar diferente do seu capitão.

O Pirata Galego 

Benito Soto Aboal é considerado pelos espanhóis não o último pirata do Atlântico Sul, mas o último de todo Oceano Atlântico. 

e95f7fe73baedfc022803c72aab85140
Benito Soto Aboal

Mais conhecido como Benito Soto nasceu na área do porto marítimo que deu origem ao atual município de Pontevedra, na Região Autônoma da Galícia, Espanha[10]Desde o século XII Pontevedra era uma das cidades mais importantes da Galícia e, graças ao comércio marítimo e seus estaleiros, um dos mais importantes portos do Atlântico Ocidental na Península Ibérica. Naquele distrito de marinheiros, Benito Soto nasceu em 22 de março de 1805. 

Segundo o pesquisador espanhol Marcos Iglesias, este jovem galego era o sétimo de uma prole de catorze filhos de um pescador e uma dona de casa. Marinheiro desde precoce idade, junto com seu pai e irmãos realizou vários trabalhos nas costas galegas, em diferentes funções, algumas delas de legalidade duvidosa. Tais atividades o levaram a ser respeitado entre os ambientes portuários e de contrabandistas. Então, por volta de 1822, Benito Soto embarca em direção a Havana, Cuba.

unnamed
Pontevedra no século XIX – Fonte – https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

De acordo com algumas fontes foi nessa ilha do Caribe que o espanhol se envolveu primeiramente com piratas e corsários, onde lutou a bordo de barcos cubanos ou colombianos. Segundo outros ele era um marinheiro honesto envolvido com tráfico de escravos, atividade que na época era considerada lícita em vários lugares. Talvez todas as versões mostrem alguma verdade, já que ele poderia estar a bordo de barcos, atacando navios escravos de outras nações para roubar suas mercadorias e suas “Peças” de cativos. E tudo isso sem ter atingido a idade de 20 anos.

Seja como for, segundo o pesquisador espanhol Marcos Iglesias, em 1823 Benito Soto viajou de Havana para o Rio de Janeiro, a bordo de um navio mercante espanhol. Mas este barco foi capturado na área costeira de Salvador, Bahia, pela marinha brasileira, que acreditou ser aquele barco uma nave pirata. Neste ponto o pesquisador Marcos Iglesias aponta no seu trabalho que o rastro deste marujo torna-se nublado e ele só volta a comentar sobre Benito Soto apenas quando este embarca no Defensor de Pedro, quatro anos depois do encontro com a nossa antiga Marinha Imperial[11].

Batalha_de_4_de_maio
A Batalha de 4 de maio de 1823 foi o maior combate naval durante a Guerra de Independência do Brasil quando as frotas brasileiras e portuguesas se enfrentaram. A frota brasileira estava sob o comando do inglês Thomas Cochrane – Fonte – Wikipedia

Talvez Benito Soto e outros companheiros, certamente marujos com vasta experiência, tenham passado a atuar como mercenários contratados a bordo de alguma das naves de guerra da nossa recém-criada Força Naval. Não podemos esquecer que em 1823 nossos navios de guerra se bateram contra as naves lusitanas na costa baiana e na Baía de Todos os Santos, na luta pela consolidação de nossa Independência. Além disso, a maioria destes barcos brasileiros eram comandados por capitães oriundos principalmente da Inglaterra, sob o comando geral do inglês Thomas Alexander Cochrane. Então neste contexto, ter um espanhol a mais, ou a menos, não fazia muita diferença nos barcos brasileiros, contanto que ele fosse um bom marinheiro, soubesse usar com destreza a espada em uma das mãos e uma pistola de pederneira na outra.

5 taunay vista morro sto antonio
Quadro de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830)-‘Vista do Morro de Santo Antonio” – Museu Nacional de Belas Artes – Fonte – http://viticodevagamundo.blogspot.com.br/2013/03/rio-de-janeiro-by-nicolas-antoine-taunay.html

De toda forma pelos registros da época vamos encontrar Benito Soto como um homem livre no Rio de Janeiro em novembro de 1827 e pronto para zarpar. 

O Motim 

Para vários pesquisadores, talvez pela presença de patrulhas navais inglesas, ou por uma cobiça maior que a desejada, o capitão do Defensor de Pedro não seguiu para a costa do atual enclave de Cabinda, mas para o Golfo da Guiné, especificamente na atual Gana, aonde chegou em 3 de janeiro de 1828.

Para alguns pesquisadores o capitão Pedro de Souza Mariz Sarmento pode ter saído da área angolana para ultrapassar os limites do seu comércio e ganhar mais dinheiro. Ele seguiu para uma região onde provavelmente poderia comprar escravos a uma taxa muito menor do que seria a regular[12]. Sabemos que ele chegou a costa africana, conseguiu adquirir um número considerável de escravos, e, para completar a carga, baixou a terra para conseguir mais cativos. Foi aí o seu erro!

166
Piratas levando barris rum para trocar por escravos. No caso do Defensores de Pedro os escravos seriam trocados por cachaça e outros produtos.

Benito Soto transmitiu a ideia de tomar pela força o Defensor de Pedro ao colega Miguel Ferreira e torná-lo um barco pirata. Ferreira, um natural da Galícia, não só concordou em se juntar ao seu conterrâneo, mas declarou que ele próprio estava pensando em uma empresa similar durante a viagem.

Sem o capitão a bordo Soto e Ferreira enfrentaram o resto da equipe com gritos de “Abaixo com os portugueses”. Eles, de forma incisiva deram cinco minutos para os membros da tripulação tomar uma decisão – ou se juntavam aos amotinados para assumir o navio, ou eles seriam colocados em um barco com um par de remos. Alguns membros da tripulação leais a Mariz Sarmento recusaram o convite e tiveram de remar por dez milhas náuticas (cerca de dezoito quilômetros e meio) até a costa africana. 

Triton-Hasard-stitched
Quandro que mostra uma típica luta no convés. No caso a cena mostra o combate no barco Triton pelo corsário francês Hasard (ex- Cartier ), sob o comando de Robert Surcouf . No caso do motim do Defensor de Pedro esse tipo de luta não foi necessário.

Defensor de Pedro foi então renomeado La Burla Negra, tendo sido pintado desta cor. Existem versões que falam de um triunvirato para gerenciar o motins, com Miguel Ferreira (Cognominado pelos tripulantes como o Mercúrio e que por alguma razão foi apontado inicialmente como líder), Benito Soto (O Barredo), e um certo Victor Saint-Cyr de Barbazan (O François)[13].

Logo Benito Soto começou a entender que para impor sua autoridade em meio à corja com que convivia, só sendo mais bruto que todos aqueles brutos. E logo alguém iria sentir a sua força.

Pyle_pirate_handsome.jpg

Miguel Ferreira, o Mercúrio, como chefe dos piratas passou a agir como verdadeiro tirano. O olho agudo de Soto viu que aquele que tinha adulações com ele no dia anterior, no dia seguinte o governaria com uma barra de ferro na mão. Ele não pensou duas vezes e quando Miguel estava em um forte sono inebriado pela cachaça, colocou uma pistola em sua cabeça e atirou nele.

Soto se desculpou com a tripulação, afirmando que aquela atitude era para sua proteção e fez uma promessa a todos; que como seu novo líder traria uma colheita de ouro nos seus futuros “trabalhos”, desde que obedecessem a ele. 

pirate-ship-crew[9]
Piratas montando um ardil para atacar um barco mercante em alto mar.
Soto foi unanimemente saudado pela equipe do barco como seu capitão e reivindicou a honra de ser o último pirata real do século XIX no Atlântico.

Mas logo também impôs mão de ferro entre os homens. Alguns dos franceses reclamaram que não podiam falar na língua deles. Consta que Soto entendia os marinheiros portugueses e brasileiros, mas não os franceses, que geraram ocasionais altercações. Desconfiava destes quando falavam em “Petit comité”.

-font-b-Pirate-b-font-Ship-High-Seas-1800-s-Seascape-Lge-font-b-Oil
Fonte – http://www.aliexpress.com

O plano inicial foi cruzar o Atlântico para vender a carga de escravos no Caribe. Para este fim a pessoa necessária para o governo do barco era o brasileiro Manoel Antônio Rodrigues, que tinha prática de navegação e possuía a função de “piloto”[14]. Entretanto eu acredito que, se essa venda realmente aconteceu, o fato pode ter ocorrido na costa brasileira, mais precisamente em algum ponto na costa do Nordeste[15].

Independente desta questão, após o objetivo da venda dos escravos haver sido pretensamente alcançado, os piratas partiram para a região da Ilha de Ascensão, no meio do Atlântico Sul, abrindo a possibilidade de atacar navios que viam das ricas terras da Índia e dobravam o Cabo da Boa Esperança em direção a Europa.

Logo uma presa surgiu no horizonte.

As Chacinas e Crueldades no Morning Star 

De todos os ataques o mais conhecido e que ensejou uma forte perseguição ao La Burla Negra foi o ataque ao barco inglês Morning Star, o primeiro que Benito Soto realizou. 

Imagem2
Major William Logie

Seu capitão se chamava Thos Gibbs e havia partido de Colombo, no Ceilão, atual Sri Lanka, em 13 de dezembro de 1827, com uma carga de café, canela e alguns passageiros. O principal destes era o Major William Logie, um Representante Militar de Sua Majestade Jorge IV na Ceilão. Logie estava acompanhado de sua família, além de terem a companhia de um cirurgião assistente, dois civis, cerca de vinte soldados inválidos e três ou quatro de suas esposas e filhas. 

O navio cruzou o Cabo da Boa Esperança em 28 de janeiro de 1828 e avistou a Ilha de Ascensão ao amanhecer do dia 19 de fevereiro. Quando estavam a três milhas náuticas a oeste desta ilha, às sete da manhã, os tripulantes do Morning Star viram surgir no horizonte uma estranha nave negra. 

[The Sea: its stirring story of adventure, peril & heroism.]
Desenho do ataque do La Burla Negra contra o barco inglês Morning Star
O barco estava a seis ou sete milhas a popa, mas era rápido e logo diminuiu a distância. Os tripulantes perceberam que a nave escura era bem armada e trazia as cores britânicas. Quando este chegou a menos de meio quilômetro do Morning Star abriu fogo com seus canhões, destruindo velas e ferindo alguns marujos. Ao cruzar com a proa do barco inglês, os do barco negro içaram a bandeira argentina.

Não é a toa que vários autores apontaram o La Burla Negra, antigo Defensor de Pedro, como sendo de origem argentina, bem como o seu nefasto capitão ser cidadão argentino. Mas eu acredito que a utilização daquela bandeira tinha mais haver com a fama na época do cruzeiro do corsário La Argentina e também servia para, no caso de alguém conseguir se salvar, informar erroneamente as autoridades a origem do barco pirata pela bandeira desfraldada.

Imagem4
Foto do Morning Star no final de sua carreira – Fonte – http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

Logo ambos os veleiros ficaram a menos de cinquenta metros e os piratas jogaram ganchos com cordas e conseguiram emparelhar os barcos. As testemunhas sobreviventes narraram que os piratas eram homens atléticos e estavam todos armados. Cada um deles carregava pelo menos duas pistolas, facas e uma espada longa. Seu vestuário era composto de uma espécie de jaqueta de algodão grosseiro, camisas abertas até o peito, barretes de lã vermelha e cintos largos de lona, ​​nas quais estavam as pistolas e as facas.

172
Desenho representando a morte do capitão Thos Gibbs, do Morning Star.

Na sequência mataram o capitão do barco inglês e Benito Soto ordenou ao francês Barbazan que pilhasse o que pudesse e exterminasse todos os tripulantes a bordo. Ato contínuo os ganchos foram retirados e os barcos ficaram afastados por cerca de 100 metros. Barbazan e seus piratas começaram a matança com pistolas e espadas, pois os ingleses, mesmo em maior número, estavam completamente desarmados. Foi quando os atacantes deram conta da existência de mulheres. Estas ficaram trancadas na cabine do capitão.

Depois de prostrarem várias pessoas no convés, eles levaram a maioria dos sobreviventes para o porão principal e reservaram alguns para ajudar suas operações de pilhagem. Começaram a saquear o navio levando as velas, cordas, caixa de remédios, todos os materiais de navegação, dinheiro, sete pacotes de joias valiosas que faziam parte da carga e toda a bebida a bordo. Os piratas também saquearam os passageiros da maior parte de suas roupas, todo seu dinheiro e artigos valiosos que poderam encontrar. Durante duas horas trabalharam no saque, levando o botim em baleeiras até o La Burla Negra.

1830 De Soto - Rape
Desenho representando o ataque as mulheres no Morning Star.

Depois de muito trabalharem no transporte do material pilhado, enquanto seu capitão apreciava este material, Barbazan decidiu relaxar com seu grupo no Morning Star. Primeiramente obrigaram o mordomo a lhes servir vinhos e comestíveis, onde as testemunhas afirmaram que os Piratas se entregaram aos prazeres da garrafa por algum tempo. Depois Barbazan ordenou que seus companheiros “tratassem bem as mulheres”, então começou o terror para elas. Os gritos destas indefesas mulheres foram ouvidos durante horas por aqueles que estavam presos no porão.

Antes de voltar para o navio pirata, já de noite, depois de doze horas donos do Morning Star, Barbazan abriu buracos abaixo da linha d’água do veleiro, de modo que o barco afundaria e afogaria todos a bordo.

Imagem3
Anne Smith Logie, uma das mulheres que foram atacadas no barco inglês.

No meio da madrugada as mulheres seviciadas conseguiram arrombar a porta da cabine do capitão e libertaram o resto da tripulação. Estes conseguiram parar o afundamento, retiraram depois de penosa atividade a água a bordo, montaram algumas poucas velas e foram se arrastando em direção a Inglaterra. Pensaram em se dirigir primeiramente até Recife, mas tiveram medo de cruzar com outros piratas.

Quase um mês depois, no dia 13 de março, eles encontraram o navio inglês Guildford retornando da China e receberam provisões, instrumentos de navegação e o seu capitão emprestou marinheiros experientes para ajudar. O Morning Star chegou a Londres em 18 de abril de 1828 e sua desgraça foi notícia em todo o Império Britânico.

Navio Pirata

O La Burla Negra se tornou famoso em toda parte do Oceano Atlântico e passou a ser caçado sem dó e nem piedade por todas as marinhas de guerra, principalmente a Royal Navy.

John_Phillips_pirate
Vida de pirata – O capitão pirata John Phillips obrigando um prisioneiro sob uma arma a beber álcool.

Mas se Benito Soto era muito cruel, verdadeiramente insano, também era muito inteligente. Pois após o ataque ao Morning Star ele e sua tripulação vão continuar atacando e destruindo barcos ingleses americanos, espanhóis e portugueses.

Sabe-se que Benito Soto destruiu quase uma dúzia de navios, incluindo a galera americana Topaz, que navegava de Calcutá, na Índia, para o porto americano de Boston. Benito Soto atacou, saqueou, tocou fogo no Topaz e não deixou sobreviventes. Foram atacados também os barcos Cassnock (Capitão Thompson), o New Prospect (Capitão Cleland), o Simbry  (Ou Sumbury) e o barco português Melinda, cujos sobreviventes da tripulação afirmaram conhecer alguns membros do La Burla Negra, quando este ainda era o Defensor de Pedro e estava ancorado no Rio de Janeiro em novembro de 1827[16].

pirate_ship_a
Fonte – https://br.pinterest.com/pin/263249540694857998/

Estes portugueses certamente foram uma rara exceção de sobrevivência, pois a ideia principal de Benito Soto para navegar por mais tempo era não deixar sobreviventes para narrar as autoridades os ataques. Inclusive quando Soto soube que Barbazan não obedeceu a sua ordem explícita para matar todos no Morning Star, preferindo se divertir com as mulheres e confiar que o barco inglês afundaria pelos furos provocados, recriminou duramente seu comandado e lhe disse um velho ditado pirata – “Os homens mortos não contam contos”.

Mas agora era tarde[17]!

O barco carregava os porões e bodegas cheias e Soto decidiu ir à Galícia para reparar o La Burla Negra e vender o saque.

A1607
Luta em barco pirata – Fonte – http://www.rmg.co.uk/discover/explore/real-pirates-caribbean

Os piratas lidavam com a ideia de se aposentar, ou continuar com suas práticas. Em qualquer caso, qualquer decisão envolvia a venda dos bens. Assim, em 10 de abril de 1828, eles acabaram ancorando nas proximidades da praia de Beluso, perto de Pontevedra. Com a ajuda do tio materno de Soto, José Aboal, e pagando suborno, os piratas vendem grande parte do saque.

O movimento acabou levantando suspeitas, situação que lhes obrigou a deixar a região em direção ao porto de La Coruña. No caminho, em meio a uma situação particularmente desagradável, o La Burla Negra encontrou um pequeno barco que Soto saqueou e matou casualmente toda a tripulação – exceto por uma notável exceção: um indivíduo que havia dito a Soto que poderia encontrar o caminho mais rápido de volta a região de La Coruña, Espanha. Poucos dias depois, à vista da terra e depois de seguir o conselho desse homem, Soto, agradavelmente surpreendido, chamou-o para o olhar do Capitão:

“Amigo, esse é realmente o porto de La Coruña?”

“Sim, meu capitão”, respondeu o rapaz.

“Nesse caso”, Soto sorriu e disse, “você fez bem e agradeço seu serviço.”

Ele então atirou no homem morto e calmamente jogou seu corpo ao mar.

D6870_detail
Festa de piratas – Fonte – http://www.rmg.co.uk/discover/explore/real-pirates-caribbean

Seja esta história verdade, ou não, afirma-se que Benito Soto foi responsável por ferir e matar bem mais de 100 pessoas.

Mas em La Coruña as coisas também não correram positivamente. Mais subornos e mais obstáculos para se livrar do resto da mercadoria, para não mencionar os excessos cometidos por alguns marinheiros sob a influência do álcool, uma questão que resultou em algumas prisões. Eles então partiram para região de Gibraltar. 

O Fim Do Defensor de Pedro e Um Sortudo Pirata Brasileiro

Na noite de 9 de maio de 1828, Soto deu a ordem de encalhar propositalmente o La Burla Negra  ao sul da cidade de Cádiz, em uma praia chamada Santa Maria, na atual Comunidade Autónoma Andaluza, não muito longe de Gibraltar, até hoje uma colônia inglesa na entrada do Mar Mediterrâneo.

1 (2)
Notícia de jornal carioca de 1828 informando a destruição do Defensor de Pedro na Espanha e a condenação de Benito Soto e seus asseclas.

Quatro meses depois do início desse frenesi de loucura, o antigo Defensor de Pedro, transformado em La Burla Negra, chegou ao seu fim.

Soto rapidamente organizou a dispensa do dinheiro para possíveis subornos e forneceu ordens aos marujos para que se misturassem entre as pessoas comuns sem atrair atenção. O capitão tentou se passar por um honesto navegador de um barco naufragado, junto com seus marinheiros. Sua história foi ouvida com simpatia e durante alguns dias tudo aconteceu conforme os planos.

ce042ed35d9438b20ac28568093cf7d2
Desenho moderno representando Benito Soto sendo preso nas ruas de Gibraltar.

Mas a sorte desse grupo de piratas, com muito dinheiro para gastar nas bolsas, acabou. Os homens cometeram excessos e altercações de todos os tipos, foi quando surgiram suspeitas. Para completar a má sorte destes malfeitores, pesquisadores ingleses afirmam que, incrivelmente, um dos sobreviventes do Morning Star reconheceu um de seus algozes. A filosofia pirata de Benito Soto era, sob alguns aspectos, correta – Os homens mortos não contam histórias. Mas era impossível conseguir que uma pessoa que sobreviveu ao terrível assédio que foi vítima naquele barco inglês parasse de falar. Logo os tripulantes foram presos pelas autoridades espanholas.

Mas Soto e um membro da tripulação, que o pesquisador espanhol Marcos Iglesias aponta como sendo um brasileiro chamado “Dos Santos”, desapareceram instantaneamente de Cádiz[18].

1836 - Gibraltar Thomas Roscoe
Gibraltar, quadro de 1836, de Thomas Roscoe – Fonte – http://gibraltar-intro.blogspot.com.br/2011/10/normal-0-false-false-false-en-gb-x-none_25.html

Conseguiram fugir para Gibraltar, onde finalmente os ingleses pegaram o pirata galego. Ainda segundo Marcos Iglesias o único que escapou foi o brasileiro “Dos Santos”, o único usuário do saque, até provar o contrário, que se aproveitou do butim. Já os ingleses afirmam que este fugitivo seria um francês[19].

Charles Ellms, um autor britânico da época, que escreveu vários livros sobre piratas, parece ter conhecido Benito Soto na sua prisão em Gibraltar e visitou-o várias vezes enquanto estava detido. Ellms nos diz que, ao longo de sua permanência na colônia o antigo capitão do La Burla Negra  se vestia com roupas caras, ostentando meias de seda, calças brancas e um vistoso casaco azul. Seu chapéu branco inglês, impecavelmente limpo e da melhor qualidade. Sua aparência, longe de ser a de um bandido, era muito mais a de um comerciante de Londres, dando a impressão de ser um homem agradável e honesto.

1830 General George Don
General Sir George Don em 1830 – Fonte – http://gibraltar-intro.blogspot.com.br/2011/10/normal-0-false-false-false-en-gb-x-none_25.html

O antigo capitão foi julgado, considerado culpado de pirataria e condenado à morte. Enquanto ficou na prisão por um ano e meio, Benito Soto continuou a declarar sua inocência, reclamando constantemente sobre a injustiça que estava sendo vítima. Foi somente quando o governador de Gibraltar, o general Sir George Don, o sentenciou oficialmente a ser enforcado, esquartejado, sendo seus membros cortados e pendurados em ganchos, como aviso para todos os piratas da justiça que ali era feita. Só então Soto finalmente desistiu e admitiu sua culpa.

Ele fez uma confissão sem reservas de seus crimes e tornou-se verdadeiramente penitente. Soto entregou ao carcereiro a lâmina de uma navalha que ele escondeu entre as solas de seus sapatos para o propósito reconhecido de adicionar o suicídio como ato final de sua nojenta vida.

Kidd_compressed
Desenho representando o cadáver do famoso pirata capitão Kidd exibido após sua execução. No caso de Benito Soto o seu cadáver também foi exposto após ser enforcado, só que foi mostrado esquartejado.

Os que testemunharam sua execução no dia 25 de janeiro de 1830, entre eles Charles Ellms, parecem ter ficado impressionados com o seu comportamento, com sua calma e tranquilidade, enquanto ele avançava para facilitar as coisas para o carrasco. No final Soto parecia desejar o momento que seria colocado diante de seu Criador.

O pirata galego disse a plateia presente suas últimas palavras – Adeus, todos. Na época essas palavras criaram um grande debate em Gibraltar, pois foram ditas em bom português[20].

-font-b-Pirate-b-font-font-b-Ship-b-font-Attack-Sea-Battle-Ocean-Large
Navio pirata perseguindo sua presa – Fonte – http://www.aliexpress.com

Apesar da região da Galícia fazer fronteira com o norte de Portugal e o idioma galego possuírem proximidade linguística com o português, as pessoas do lugar achavam difícil acreditar que um espanhol teria falado em português no momento da sua morte.

Mas os que eles não sabiam na época, ou não perceberam, era que talvez para o pirata Benito Soto àquelas palavras ditas na hora da morte não tivessem ligações com fatos ocorridos em terras Lusitanas, mas lhe traziam a memória algo importante que aconteceu em uma grande e ex-colônia de Portugal no Novo Mundo[21].


NOTAS

[1] Fato que efetivamente se consumou em 1834.

[2] Ver o livro O tráfico de escravos no Atlântico. Herbert S. Klein. FUNPEC Editora, 2004.

[3] Os espanhóis transportavam escravos para suas plantações de cana de açúcar em Cuba. Já a HMS North Star era uma corveta da Classe Atholl, construída pela Woolwich Dockyard  em 1824, com 28 bocas de fogo. Ver o site http://www.pbenyon.plus.com/18-1900/N/03276.html.

[4] Apesar de todas as buscas eu não consegui apurar o nome do proprietário do barco Defensor de Pedro. Já Pedro de Souza Mariz Sarmento é apontado em todas as fontes como o capitão do barco. Ele até pode ter sido o proprietário, mas sem confirmação.

[5] Mesmo sem conseguir encontrar qualquer informação que aponte, ou conteste, a razão desse pensamento, é provável que essa situação seja um indicativo que o capitão Mariz Sarmento não conseguiu uma projeção maior na Armada Nacional. Mas qual, ou quais, seriam a causa: Talvez a sua origem portuguesa de Pedro de Souza Mariz Sarmento não tenha lhe ajudado muito na nossa Marinha? Ou ocorreu algo na sua carreira naval que o marcou de forma negativa ao ponto de ser precocemente reformado? Ou porque para ele era bem mais lucrativo transportar escravos pelo Atlântico Sul, do que está a bordo de uma nave pertencente a uma força naval que lhe pagava pouco e da qual ele não tinha espaço para progredir?

[6] Algumas fontes apontam que o Defensor de Pedro era um barco argentino, o que é errado, já que sua denominação remete especificamente ao imperador Pedro I do Brasil.

[7] Sobre aspectos da partida e da carga do barco ver o jornal Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, edições de 20 (terça-feira) e 23 (sexta-feira) de novembro de 1827, respectivamente nas páginas 2 e 4. Já sobre os detalhes das negociações para a compra de escravos, ver o livro O tráfico de escravos no Atlântico. Herbert S. Klein. FUNPEC Editora, 2004.

[8] Esses corsários argentinos deram muito trabalho aos brasileiros durante a Guerra da Cisplatina.

[9] Aparentemente, conforme narro no texto, o cruzeiro do La Argentina teve uma tênue ligação com o caso do Defensor de Pedro, quando este se tornou um barco pirata. Ainda sobre o barco La Argentina ver Nuevos Documentos sobre el Crucero de La Argentina a través del Mundo, Volumen I. Autores: Rossi Belgrano, Alejandro y Mariana, Buenos Aires, 2016.

[10] Segundo as lendas antigas o herói troiano Teucer, filho de Telamon e meio-irmão do Ajax, fundador da cidade, chegou a Terra em Pontevedra. Já de acordo com a história, também foi nesse local onde os romanos fundaram o Ad duo ponte, o atual Pontevedra.

[11] Sobre o interessante texto de Marcos Iglesias, em espanhol, ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html.

[12] Para alguns pesquisadores, pelo número de armas e pelo tipo de gente que comandava, é possível que o capitão Pedro de Souza Mariz Sarmento pretendesse retirar pela força o máximo de cativos que pudesse.

[13] Barbazan seria oriundo de uma aristocrática família francesa, sobrinho do marechal Laurent de Gouvion Saint-Cyr, chefe militar dos exércitos napoleônicos. Ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html.

[14] No futuro este homem vai declarar que foi obrigado a permanecer com aquela súcia durante o tempo da viagem e pilhagens. E de alguma forma isso deve ter sido verdade, pois ele foi um dos poucos que foram capturados e não morreram na forca.

[15] Em minha opinião existe uma dúvida na história deste barco. Uma viagem entre a costa africana e o Caribe parece ser muito longa, principalmente quando sabemos que o tempo total de ação do La Burla Negra como nave pirata foi de apenas quatro meses. Apesar desta viagem não ser impossível e algumas fontes consultadas afirmarem que esta nave vendeu os escravos no Caribe, eu acredito que a venda se deu mesmo foi no Nordeste do Brasil. Pois, além de haverem brasileiros no La Burla Negra que certamente conheciam a costa nordestina, nesta região não faltavam quem quisesse comprar escravos africanos de forma rápida e discreta.

[16] Ver Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3.

[17] Existem vários relatos do cruel ataque de Benito Soto ao barco inglês Morning Star. Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3. É possível encontrar este jornal no endereço eletrônico https://books.google.com.br. Existem dois textos bem detalhados no jornal carioca  ver o jornal Diário Fluminense, Rio de Janeiro, edições de 15 (terça-feira) de julho de 1828, páginas 51 e 52 e do dia 10 (segunda-feira) de maio de 1830, nas páginas 411 e 412. Mas o primeiro destes textos erra o nome do barco atacado. Existem igualmente bons sites ingleses que trazem inclusive reprodução dos depoimentos dos sobreviventes – Ver http://www.scarboroughsmaritimeheritage.org.uk/article.php?article=297 e http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

[18] Ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

[19] Ver os sites http://www.scarboroughsmaritimeheritage.org.uk/article.php?article=297 e http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

[20] Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3.

[21] Talvez o trabalho que reúne com mais precisão todos os eventos envolvendo Benito Soto foi escrito em 1892, pelo militar espanhol Joaquín Bautista Lazaga y Garay, que publicou o ensaio histórico intitulado “Los piratas del Defensor de Pedro. Extracto de las causas y proceso formados contra los piratas del bergantín brasileño Defensor de Pedro”.

PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

worldwar1somme-tl
A guerra nas trincheiras, verdadeiro moedor de carne humana, foi uma das situações marcantes da Primeira Guerra Mundial. – Fonte – http://www.sahistory.org.za/article/world-war-ihttp://www.sahistory.org.za/sites/default/files/article_image/worldwar1somme-tl.jpg

Envolvimento do país no conflito é pouco conhecido, mas digno de um bom enredo, que começa com o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães e termina com a participação na criação da Liga das Nações.

Por Luciana Fagundes e Sagran Carvalho.

Fonte – https://cafenofront.wordpress.com/2017/10/26/participacao-brasileira-na-primeira-guerra-mundial/

A Grande Guerra ou Primeira Guerra Mundial começou em agosto de 1914 e terminou em novembro de 1918. Tal evento dramático aglutinou, inicialmente, as forças aliadas da chamada Tríplice Entente, composta pelo reino da Grã-Bretanha, os impérios da Rússia e do Japão e a República da França, contra as forças da Tríplice Aliança, composta pelos impérios centrais da Alemanha e da Áustria Hungria, o império Turco-Otomano e o reino da Itália. No desenrolar do conflito, ambos os lados sofreram alterações em sua composição: a própria Itália entrou efetivamente na guerra ao lado da Tríplice Entente e não da Tríplice Aliança, e o Império Russo retirou-se da guerra em 1917 devido a graves problemas internos, ocupando seu lugar na Entente os Estados Unidos. A princípio neutro diante do conflito, o Brasil revogou a neutralidade em favor da França, Rússia, Grã- Bretanha, Japão, Portugal e Itália em junho de 1917, reconheceu o estado de guerra em novembro seguinte e enviou uma Divisão Naval em Operações de Guerra em maio de 1918.

world_war_one
Tropas alemãs com proteção contra gases – Fonte – http://www.emersonkent.com/wars_and_battles_in_history/world_war_I.htm

DA NEUTRALIDADE À PARTICIPAÇÃO

As preocupações com uma guerra generalizada na Europa mostraram-se frequentes já no final do século XIX. Um sinal da iminência da guerra foi a corrida armamentista que se acelerou no início do século XX, conduzida em grande medida pela situação internacional que lançou as nações em uma acirrada competição. A Europa dividiu-se gradualmente em dois blocos, derivados do surgimento no cenário europeu de um Império Alemão unificado, através de alianças e contra alianças. Tais blocos, fortalecidos por planos de estratégia e mobilização, tornaram-se mais rígidos, arrastando todo o continente europeu para a guerra através de uma série de crises internacionais.

A crise final veio em 1914, com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria quando se encontrava em visita a Sarajevo.

DC-1914-27-d-Sarajevo-cropped
O atentado ao arquiduque, o estopim da guerra de 1914 – Fonte – https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ea/DC-1914-27-d-Sarajevo-cropped.jpg

Quando eclodiu a guerra na Europa, o Brasil matinha relações bastante cordiais com os principais países beligerantes, como a Alemanha, que era seu principal parceiro comercial, seguida pela Inglaterra e depois França. Outro setor onde se fazia notar a influência alemã era o militar. Desde a ascensão do marechal Hermes da Fonseca ao Ministério da Guerra em 1906, o Exército brasileiro seria profundamente influenciado pela organização militar alemã, com o envio inclusive de jovens oficiais para servirem no Exercito alemão, considerado o mais bem organizado da época.

Deflagrado o conflito, o governo brasileiro adotou a completa neutralidade, fixando regras para sua observação. Ao optar pela neutralidade, o Brasil sofreu com uma série de restrições comerciais impostas pelos países beligerantes aos países neutros. Um exemplo de tal ação foi a imposição pelos países aliados da statutory list, ou lista negra, uma relação de empresas em países neutros com as quais estava proibido o comércio por manterem relação com a Alemanha. A aplicação da lista negra provocou violentos protestos contra a Inglaterra, pois as consequências foram desastrosas para a economia brasileira. Tais protestos, dirigidos ao Itamaraty ou diretamente ao presidente da República, vinham principalmente de associações comercias que contavam com capitais alemães, como por exemplo, firmas exportadoras de café, que foram incluídas na lista negra e exigiam a interferência constante do Itamaraty junto aos cônsules ingleses. A dificuldade de comércio com a Europa abriu amplas oportunidades para a entrada de produtos norte-americanos, possibilitando o crescimento dos Estados Unidos como principal parceiro econômico das nações latino-americanas, especialmente do Brasil. Outra implicação da guerra que afetou negativamente a economia brasileira do período foi a crise dos transportes marítimos, devido à falta crescente de navios de comércio e aos riscos da navegação para o exterior, o que dificultou ainda mais a exportação do café, limitando seus mercados consumidores.

hrvzk6by7ooogeeribxk
O teórico militar prussiano Carl von Clausewitz escreveu uma vez que “a guerra é uma continuação da política por outros meios”, e sendo isso verdade, então, para entender a Grande Guerra é preciso começar com a política da Europa. No final do conflito quatro impérios já não mais existiam e a contagem final de baixas militares e civis é estimada em mais de 37 milhões de seres humanos. Nesta imagem, um oficial francês é atingido por disparos de uma metralhadora durante um contra-ataque em Verdun, 1916 – Fonte – https://io9.gizmodo.com/11-intriguing-ways-world-war-i-could-have-turned-out-di-1652195903

“ALIADÓFILOS”, “NEUTRAIS” E “GERMANÓFILOS”

O posicionamento do Brasil no conflito mundial, além de problemas comerciais, suscitou um intenso debate que dividiu a opinião de intelectuais e políticos entre “aliadófilos”, “neutrais” e “germanófilos”. Eram evidentes, todavia, as simpatias pelos Aliados. A própria invasão da Bélgica pelos alemães em agosto de 1914, logo no início da guerra, provocou uma moção apresentada à Câmara dos Deputados pelo parlamentar Irineu Machado na qual o Brasil se colocava contrário à ação alemã, por tratar-se de clara violação de tratados e desconsideração das leis internacionais. A fundação, no ano seguinte, da Liga Brasileira pelos Aliados marcou claramente a preferência pela causa das nações da Entente. Para presidente da entidade foi escolhido Rui Barbosa, e para vice, o ensaísta e crítico literário José Veríssimo. Também integravam a Liga Graça Aranha, Barbosa Lima, Olavo Bilac e Manuel Bonfim.

3-5-768x474
Fonte – https://blogdoenem.com.br/primeira-guerra-mundial-historia-enem-2/

Entre os simpatizantes dos impérios centrais, a voz mais ativa era do deputado Dunshee de Abranches, que, quando do início do conflito, ocupava o posto de presidente da Comissão de Diplomacia da Câmara. Na visão de Abranches, a origem do conflito era puramente comercial e econômica, e tinha como objetivo a destruição da prosperidade nacional da Alemanha. Abranches criticou a ingenuidade dos aliadófilos que acreditavam no discurso inglês de defesa da civilização contra a barbárie, considerando fruto da propaganda britânica as denúncias de violências praticadas nas invasões alemãs à Bélgica e França. Tal postura acabou levando à sua renúncia à posição de presidente da Comissão de Diplomacia.

Quanto aos que defendiam uma posição neutra, seu principal argumento residia no fato de que a posição “aliadófila” significava um alinhamento automático aos Estados Unidos, o que colocava o Brasil em uma posição de dependência em relação àquele país. A manutenção da neutralidade também foi defendida pela imprensa carioca no início do conflito, justificada pela tradição pacifista nacionalista, e contava com figuras de destaque na opinião pública, como Assis Chateaubriand, Vicente de Carvalho, Jackson de Figueiredo, Azevedo Amaral, Carlos Laet e Alberto Torres.

9005711_orig
A aviação obteve um grande desenvolvimento com a Primeira Guerra – Fonte – Mrs. Warner’s 4th Grade Classroom

INTEGRIDADE DAS AMÉRICAS

À medida que o conflito se expandia pela Europa, propostas de alianças diplomáticas surgiram entre as nações americanas, como a ideia de um Tratado Pan-Americano, sugerida pelo presidente norte americano Woodrow Wilson com o objetivo de garantir a independência política e a integridade territorial de todos os países das Américas. Outra iniciativa foi a realização da Conferência Pan-Americana em Washington, com o objetivo de discutir uma reação hemisférica em caso de ameaça de ataques de submarinos alemães.

As negociações diplomáticas não prosseguiram, e a realização da conferência em Washington tornou-se inviável com o decorrer da guerra; já o Tratado Pan-Americano enfrentou dificuldades, como o posicionamento do ministro brasileiro Lauro Müller, que defendia a continuidade da neutralidade brasileira, embora a opinião pública nacional se inclinasse à adesão às forças da Entente.

22BOYD-jumbo
Soldados franceses em Verdun – Fonte Getty Images

Em janeiro de 1917, o quadro ficou mais complicado, quando o governo alemão resolveu declarar guerra submarina irrestrita com a finalidade de bloquear o comércio aliado. O governo brasileiro protestou, declarando não aceitar o bloqueio; já o governo norte americano rompeu relações diplomáticas com a Alemanha. A ruptura de relações diplomáticas dos Estados Unidos foi seguida de um convite do presidente norte-americano Woodrow Wilson às nações neutras para que estas acompanhassem tal atitude e também rompessem relações com a Alemanha. O Brasil não aceitou o convite, e por isso enfrentou severas críticas da imprensa brasileira, que exigia a mudança de posição do país no conflito.

Alguns meses depois, os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha, no mesmo momento em que o Brasil, após o torpedeamento do vapor brasileiro Paraná por submarinos alemães, decidiu romper relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, em 11 de abril de 1917. A ação brasileira incluiu também declarar sem efeito os exequatur de todos os funcionários consulares alemães.

I0011679-3Alt=006988Lar=004896LargOri=004896AltOri=006988
Notícia do afundamento do navio brasileiro Acary.

Após o afundamento do Paraná, o ministro Lauro Müller ficou em uma situação difícil. O rompimento de relações com a Alemanha não era suficiente, e crescia a pressão para a entrada do Brasil na guerra. A ascendência germânica do ministro e a oposição da opinião pública à sua atuação no ministério levaram à sua saída da pasta em 3 de maio de 1917.

Dois dias após assumiu o ministério Nilo Peçanha, admirador do aliadófilo Rui Barbosa. A entrada do novo ministro foi decisiva para a mudança da posição brasileira, para a qual contribuiu também o torpedeamento dos vapores brasileiros Tijuca Lapa por submarinos alemães.

BRASIL EM GUERRA

Após as agressões alemãs, o governo brasileiro pediu e obteve do Congresso autorização para declarar sem efeito o decreto que estabelecia a neutralidade brasileira na guerra dos Estados Unidos contra o Império Alemão e para utilizar os 46 navios mercantes alemães ancorados em portos nacionais.

17825752_303
O presidente da República Venceslau Brás declara guerra contra o Império Alemão e seus aliados. Ao seu lado, o ex-presidente da República e ministro interino das Relações Exteriores, Nilo Peçanha, e o presidente de Minas Gerais e futuro presidente da República, Delfim Moreira – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil_na_Primeira_Guerra_Mundial

O posicionamento ao lado dos Estados Unidos ficou claro, ressaltado na mensagem de Nilo Peçanha enviada em 2 de junho aos governos estrangeiros, justificando a revogação da neutralidade pelas práticas de solidariedade continental características da política externa brasileira. Também foram utilizadas como justificativa a Doutrina Monroe e a amizade tradicional com os Estados Unidos. A revogação da neutralidade em favor da França, Rússia, Grã-Bretanha, Japão, Portugal e Itália foi decretada ainda em junho de 1917 e apontou como justificava a reincidência de ataques de submarinos alemães a vapores brasileiros.

O reconhecimento do estado de guerra com o Império Alemão se deu após o torpedeamento do vapor brasileiro Macau e do aprisionamento de seu comandante. A lei de guerra foi sancionada em 16 de novembro de 1917, e proibiu aos alemães no Brasil todo comércio com o exterior, bem como o transporte de carga inimiga em navios nacionais e a remessa de fundos para o exterior. Foram cassadas também as licenças para o funcionamento de companhias de seguro e bancos alemães.

hqdefault

A entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial como nação beligerante colocou-o em um seleto grupo junto com os Estados Unidos e as repúblicas centro-americanas, uma vez que Uruguai, Peru, Equador e Bolívia apenas romperam relações diplomáticas com a Alemanha, e Argentina, Chile, México, Venezuela e Paraguai mantiveram-se neutros.

141110120316_primeira_soldados_624x351_publicdomain_nocredit
Participação militar brasileira na Primeira Guerra Mundial foi discreta, mas conflito deu início a mudanças substanciais na realidade do país – Fonte – http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141110_brasil_guerra_fd

Já como nação beligerante, o Brasil participou da Conferência Interaliada em Paris, realizada de 30 de novembro a 3 de dezembro de 1917, tendo como representante Olinto de Magalhães, ministro plenipotenciário junto ao governo francês. Nesse momento, o governo brasileiro resolveu participar efetivamente do conflito, através do envio de forças de guerra.

DNOG

A participação brasileira na Primeira Guerra ao lado das forças aliadas consistiu no envio de uma divisão naval composta dos scouts Rio Grande do Sul Bahia, dos destroyers ParaíbaRio Grande do NortePiauí Santa Catarina, e do transporte de guerra Belmonte.

141110121305_guerra_baia_624x351_dominiopublico_nocredit
Um dos navios enviados pelo Brasil para o conflito, o cruzador “Bahia” teria matado um bando de golfinhos por engano ao confundi-los com um submarino – Fonte – http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141110_brasil_guerra_fd

Sob o nome de Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG), e sob o comando geral do contra-almirante Pedro Max de Frontin, a divisão partiu com destino à Europa em 16 de maio de 1918. Outras providências tomadas pelo governo brasileiro foram o envio de nove oficiais aviadores da Marinha e do Exército para auxiliar nos combates aéreos, e de uma missão chefiada pelo deputado e médico Nabuco de Gouveia à França, composta de médicos-cirurgiões que, auxiliados por um corpo de estudantes e de soldados do Exército, constituíram o Hospital do Brasil para o tratamento de feridos de guerra. A instituição continuou prestando assistência aos feridos mesmo depois de encerrado o conflito.

Após muitas dificuldades técnicas, a Divisão Naval brasileira chegou a Dacar, onde a guarnição brasileira foi vítima de uma epidemia de gripe espanhola. Apenas parte da esquadra conseguiu seguir viagem e chegar a seu destino, o porto de Gibraltar, um dia antes do armistício (11 de novembro de 1918) que encerrou a Primeira Guerra Mundial.

141110121519_guerra_missao_624x351_dominiopublico_nocredit
Além das operações navais, participação brasileira ocorreu com envio de uma missão médica para frente europeia

Apesar de uma atuação inexpressiva militarmente, o Brasil foi o único país da América do Sul a participar do conflito, o que garantiu sua presença na Conferência de Paz, que seria realizada em 1919 em Versalhes, e na organização da Liga das Nações.

Implicações importantes da Primeira Guerra Mundial no Brasil foram a consolidação da política externa brasileira voltada para os Estados Unidos e a desilusão com civilização Belle Époque que marcou o pós-guerra, anunciando o declínio da cultura europeia e a aurora do novo mundo representado pela América.

FONTES: BARRETO, F. Sucessores; BUENO, C. Política; GARAMBONE, S.

Primeira; VINHOSA, F. Brasil.

GUERRA DO PACÍFICO: O MARTÍRIO DA BOLÍVIA

guerra-do-pacifico-01

Feriado mais importante no país é exigir o mar de volta ao Chile

TEXTO – Fábio Marton

FONTE – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/guerras/guerra-do-pacifico-o-martirio-da-bolivia.phtml#.WNux64WcHIV

Todo dia 23 de março, celebra-se na vizinha Bolívia o Dia do Mar. É uma espécie de Carnaval patriótico, em que adultos e crianças se vestem de marinheiro ou usam fantasias com chapéu de barco, ondas ou qualquer outro tema “oceânico” e desfilam rumo à plaza Eduardo Albaroa. Também valem roupas de soldado ou os trajes tradicionais dos povos de língua quéchua e aimará, etnias da maioria da população do país. O presidente faz um discurso. Acontecem salvas de canhões e paradas militares, inclusive da Marinha boliviana.

A Bolívia não tem mar. E esse é o ponto do Dia do Mar.

Um pedaço de Marte

A Guerra do Pacífico, como ficou conhecida, colocou Chile contra Bolívia e Peru de 1879 a 1883. Em números absolutos, foi mais modesta que a Guerra do Paraguai, envolvendo cerca de 70 mil combatentes, contra 350 mil.

guerra-do-pacifico-05
As Perdas territoriais da Bolívia desde a sua independência.

Mas suas consequências e seus ressentimentos seriam bem mais dramáticos. “Como a maioria dos conflitos no que posteriormente seria conhecido como Terceiro Mundo, a Guerra do Pacífico foi um grande momento para os povos envolvidos, mas acabou largamente ignorada fora da região”, afirma o historiador Bruce W. Farcau em The Ten Cents War.

Historicamente, a região não valia nada. Era um pedaço de terra seca, sem rios, no deserto mais inclemente do mundo – o Atacama, onde o período entre duas chuvas se mede em décadas. E uma precipitação anual 20 vezes menor que nas partes mais secas do deserto do Saara. Não há nenhuma vida vegetal ou animal ali, exceto no litoral, onde nevoeiros oferecem alguma umidade a líquens e cactos. A região é comumente usada por equipes de filmagem quando querem recriar o ambiente de Marte, como na série Space Odissey (2004), da BBC. (Perdido em Marte, de 2015, não; esse foi filmado na Jordânia).

guerra-do-pacifico-06

Fronteiras tensas

O Atacama é o deserto mais letal do mundo, mas não só por falta de água. Alguém tentando cruzar a fronteira entre Peru e Chile, ao norte de Arica, vai se deparar com uma “atração” inusitada: campos minados, marcados por placas em espanhol, inglês e aimará. 113 121 minas antipessoal e antitanque foram plantadas na fronteira pelo governo Pinochet (1973-1993) e vem sendo removidas desde 2000, mas apenas 9,34% do total foi desativado, segundo dados do governo chileno.

As encrencas do Chile não se limitaram ao norte. Em 1978, quando ditaduras militares dominavam ambos os países, Chile e Argentina quase entraram em guerra por causa de três ilhas minúsculas no canal de Beagle, que faz a passagem do oceano Atlântico para o Pacífico e corta os dois países.

batalla-tarapaca
Batalha de Tarapacá, em 27 de novembro de 1879.

A Argentina chegou a preparar uma invasão militar das ilhas, que considerava suas, mas desistiu na última hora. Até o papa teve de intervir: com o fim do regime militar argentino, o presidente Raúl Alfonsín assinou no Vaticano um acordo com Pinochet, entregando as ilhas ao Chile. Pinochet, de seu lado, plantou também minas na fronteira com a Argentina.

Mas mesmo um tirano como Pinochet teve seu momento de iluminação – ou, quem sabe, solidariedade a outros ditadores militares. Em 1972, quando a Bolívia estava sob a ditadura do general Hugo Banzer e o Peru sob a do general (de esquerda) Juan Velasco Alvarado, ele propôs entregar uma faixa de terra à Bolívia, ligando o país à cidade de Arica.

Os bolivianos deveriam entregar uma faixa equivalente ao Chile, incluindo aí o território da faixa marítima. Os bolivianos ficaram exultantes, mas, como Arica originalmente era parte do Peru, não da Bolívia, os acordos com o Chile exigiam a consulta ao Peru antes da entrega. O ditador peruano não gostou e propôs que os três países dividissem Arica. Acabou ficando tudo como estava – e está.

guerra-do-pacifico-08

No conturbado processo de independência das colônias da América do Sul, o deserto acabou dividido entre o Peru, que conquistou a independência, em 1821, e a Bolívia, liberada em 1825. Os países, que eram simplesmente o “Peru” na época colonial, unificaram-se em 1833, e isso levou a uma primeira guerra com o Chile, entre 1836 e 1839, separando-os novamente.

O Chile não queria um vizinho gigante ao norte, mas não levou nenhum território – e nem estava interessado. Isso mudaria radicalmente na década de 1840, quando começou a se explorar um recurso inusitado: o guano, excremento de aves marinhas que, sem chuvas para removê-lo e ressecado pelo sol, forma morros brancos em rochas perto do mar. “Os chilenos nunca se incomodaram com a questão de fronteiras até a descoberta do guano”, afirma o cientista político Waltraud Q. Morales em A Brief History of Bolivia.

AricaBandChile-02

O guano tem em sua composição o nitrato de sódio, ou salitre, que começava a ser usado em fertilizantes e era matéria-prima na produção de explosivos. Não apenas nas pedras brancas mas também enterrado no solo, havia enormes depósitos de salitre no Atacama. Isso tornou, da noite para o dia, o terreno morto em um dos pontos mais importantes da Terra.

A princípio, o Chile não precisou tomar territórios para se favorecer com isso. Com instituições privadas e governamentais bem mais sólidas que as dos vizinhos, foram as indústrias chilenas, fomentadas por capitais britânico, francês e americano, que rapidamente se instalaram na região, com mão de obra dos próprios chilenos e migrantes do mundo todo, inclusive da China.

guerra-do-pacifico-02

Acordo secreto

A situação mudou em 1878, quando o Congresso boliviano tornou nulo um acordo que isentava de impostos a chilena Compañia de Salitres y Ferrocarril de Antofagasta (ferrocarril é “ferrovia” em espanhol e Antofagasta era a cidade mais ao sul do litoral boliviano, na fronteira com o Chile). A Compañia deveria pagar 10 centavos de peso para cada 100 kg de salitre extraídos. A empresa se recusou, e o Congresso boliviano votou por confiscar suas propriedades, marcando o início do processo para 23 de fevereiro de 1879. No dia da execução, 500 soldados chilenos desembarcaram em Antofagasta para proteger a empresa – foram recebidos com festa, já que 95% da população da cidade era chilena.

A princípio, os bolivianos decidiram contornar a situação com eufemismos. A declaração de guerra contra o Chile foi aprovada pelo Congresso em 27 de fevereiro, mas não foi anunciada. Em vez disso, o presidente, Hilárion Daza, preferia falar em “estado de guerra”. Em 1º de março, anunciou a expulsão dos chilenos do país. Com ou sem declaração, os chilenos se mexeram. Em 23 de março, 554 soldados chilenos avançaram pelo deserto, rumo à cidade de Calama. Lá enfrentaram e massacraram 135 civis e soldados, comandados pelo engenheiro Eduardo Albaroa – que se tornou o mártir do Dia do Mar e herói na Bolívia.

campana-de-la-brena

O Peru também tentou evitar o pior. Desde 1872, tinha um acordo de defesa secreto firmado com a Bolívia, que exigia que honrasse o compromisso. Os peruanos tentaram sediar um congresso de paz em seu país, mas o Chile, tomando conhecimento do acordo de defesa, preferiu declarar guerra a ambos os países em 4 de abril de 1879.

Ofensiva brutal

Avançar pelo deserto era complicado. O Chile preferiu, então, fazer uma guerra focada em combates navais e invasões anfíbias. O país tinha 7 navios, e o Peru, 6 – a maioria comprada dos americanos após a Guerra Civil que funcionavam a vapor e eram modernos para a época.

f_2014-12-02_3

Em 5 de abril, os chilenos bloquearam o porto peruano de Iquique. Após uma troca de tiros, o Peru conseguiu expulsar os navios chilenos da cidade e afundar um dos 7 navios da Marinha chilena, mas a um enorme preço: o Independencia, um de seus dois navios mais bem armados, bateu em uma rocha e afundou. Com a retirada chilena, o segundo navio peruano mais poderoso, o Huáscar, passou a circular pelas guarnições costeiras chilenas e fazer ataques esporádicos, atrasando seu avanço. Em 8 de outubro, os chilenos conseguiram capturar o Huáscar, na Batalha de Angamos, e o usaram contra as forças peruanas. Depois disso, ficaram praticamente livres para desembarcar tropas. Em 2 de novembro, baixaram em Pisagua, 500 km ao norte de Antofagasta. Em 19 de novembro, conquistaram Iquique. Com um tanto de excesso de confiança, levaram o que foi seu maior revés na guerra: em 27 de novembro, na Batalha de Tarapacá, uma coluna chilena de 2,3 mil homens enfrentou 4,5 mil peruanos e bolivianos e foi massacrada. Apesar disso, os peruanos não conseguiram manter a posição e recuaram para Arica, e as notícias causaram uma enorme turbulência política. Em 23 de dezembro, um golpe de estado depôs o presidente peruano, Mariano Ignazio Prado, e o boliviano Hilárion Daza fugiu para a Europa no dia 27. Em 26 de fevereiro de 1880, os chilenos invadiram Ilo, isolando as tropas de reforços via Peru. Em 26 de maio, na Batalha de Tacna, destruíram a maioria do que restava do exército, fazendo com que a Bolívia se retirasse do conflito. Em 7 de junho, liquidavam a fatura na Batalha de Arica, em que 5 mil chilenos venceram 1 903 peruanos, deixando o inimigo sem exército.

combate-angamos

Em 23 de outubro, numa conferência mediada pelos americanos no navio USS Lackawanna, em Arica, tentou-se uma solução de paz sem resultados. Os chilenos decidiram ir até o fim. Em 17 de janeiro, 23 mil militares chilenos invadiam a cidade de Lima, defendida por 18 mil civis recrutados às pressas e por sobreviventes do exército. A cidade foi saqueada, as mulheres, estupradas, e mesmo a Biblioteca Nacional teve seu conteúdo transferido para o Chile – 3 778 livros, só devolvidos em 2007.

Paz ressentida

Aos peruanos, restou fazer uma campanha de guerrilha e revolta civil até 1883, quando o Tratado de Ancón encerrou as hostilidades. A Bolívia assinou uma trégua em 1884, e um tratado definitivo de “amizade”, cedendo todo seu litoral, em 1904, em troca de livre acesso ao porto de Arica e a construção de uma ferrovia ligando-a à capital, La Paz.

guerra-do-pacifico-09

O boom do guano durou pouco: no início do século 20, os alemães criaram formas sintéticas de nitrato e a região perdeu interesse comercial. Mas o Chile aproveitou: “Antes de o nitrato de potássio ser produzido sinteticamente, o Chile já havia explorado fontes naturais de nitratos por muitos anos, à custa das regiões ocupadas da Bolívia e do Peru”, afirma o historiador Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, da UFRGS. Em 1929, quando os bolsões de guano não tinham mais valor comercial, a região de Tacna, no extremo norte, foi devolvida ao Peru. Na década seguinte, o cobre seria descoberto na região. Hoje, o Peru é o segundo maior produtor do mundo, atrás do Chile. Talvez por isso o ressentimento lá sejam um pouco menor que na Bolívia.⇨ 

Todo mundo levou um naco da Bolívia, até o Brasil! 

campo-minado-peru
Campo minado no Peru na atualidade.

Os bolivianos nunca se esqueceram. Depois da guerra, perderam ainda territórios para o Brasil – o Acre, em 1903 – e para o Paraguai – a região do Chaco, em 1935, após outra guerra tola e sangrenta -, além de outros nacos para Chile e Argentina. A soma é cruel: em 1825, a Bolívia tinha 2,36 milhões de km2. Hoje sua área é pouco maior que 1 milhão de km2. Ou seja, o país perdeu mais da metade de suas terras. Essas regiões ainda aparecem nos discursos nacionalistas, mas o litoral é o topo das prioridades. Por todo o país, há murais e estátuas apontando para o mar, ilustrando os massacres da guerra, pedindo a devolução.

De 2002 a 2005, esse sentimento voltou a aflorar na “Guerra do Gás”, uma série de protestos e greves iniciada pela proposta de exportar gás natural através de uma linha até o Chile, em que sentimentos antichilenos se misturaram a anticapitalistas e antiamericanos. Evo Morales, que vinha de uma carreira em defesa dos plantadores de coca, liderou protestos pela nacionalização do gás e acabou eleito presidente, em 2005, fazendo reformas que incluíram uma nova Constituição.

A atual Constituição boliviana anuncia com todas as letras que “o Estado boliviano declara seu direito irrenunciável ao território que dá acesso ao oceano Pacífico e seu espaço marítimo”, a seguir toma o cuidado de acrescentar que isso se dará por “vias pacíficas”.

2015elcomercio.pe
Cerimônia realizada em tempos recentes, de transladação de restos mortais de combatentes boliviano mortos no Peru durante a Guerra do Pacífico

O Chile considera isso um entrave à retomada das relações diplomáticas dos países, paradas desde 1978. É fácil entender por quê: os departamentos ao norte do Chile têm a maior renda per capita e Índice de Desenvolvimento Humano do país graças ao cobre, e o metal responde por metade das exportações chilenas. “Além de uma questão de soberania nacional, isto faria da Bolívia um país competidor com o Chile pelo mercado aberto pelo Pacífico, o que é impensável nos termos atuais da economia latino-americana. Controlando as exportações que passam pelo seu país, os chilenos precisariam de compensações econômicas de vulto para ceder tais direitos”, afirma Guazzelli. Os tempos mudam, mas nem tanto.

O caso está no Tribunal de Haia desde 2013. A Bolívia está confiante na vitória. 

 

Saiba mais

The Ten Cents War: Chile, Peru, and Bolivia in the War of the Pacific, 1879-1884, Bruce W. Farau, Greenwood Publishing Group, 2000
Andean Tragedy: Fighting the War of the Pacific, 1879-1884, William F. Sater, University of Nebraska Press, 2007

O DIA EM QUE JOHN KENNEDY ESTEVE NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

66cb97f2fb180d8b7309bd088866867d
Kennedy no Rio junto com sua mãe Rose (D) e sua irmã Eunice (E).

Rostand Medeiros – Escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) 

Eu acredito que os países que possuem sistemas presidencialistas têm ao longo de suas histórias os seus mandatários relevantes, onde suas carreiras e suas vidas foram tão expressivas que eles nunca foram esquecidos e eles são sempre são lembrados no imaginário do seu povo.

Apontar quem seriam estes homens adentra no pantanoso e complicado terreno das paixões políticas, algo ao qual não tenho muito conhecimento e nem me interesse de explorar. Mas me arrisco a comentar que na vizinha Argentina o presidente mais marcante da história deste país foi Juan Domingo Perón. Já no Chile creio ser possível indicar Salvador Allende, ou não?. Mas e no nosso Brasil, teríamos, talvez, uma espécie de “empate técnico” entre Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek? E nos Estados Unidos, as indicações apontam para Franklin Roosevelt e John Kennedy?

john-f-kennedy-jackie-kennedy-nyc-broadway-ticker-tape-parade
John F. Kennedy e sua esposa Jackie desfilando na Broadway em carro aberto em Nova York.

Este último presidente estadunidense foi um homem de uma história de vida icônica, que remete a muitos sucessos e enormes tragédias. Vem de uma rica e famosa (ou infame) família, foi herói na Segunda Guerra, consagrou-se como um político respeitado e atuante, que assumiu a presidência do seu país com apenas 43 anos de idade e foi associado como mandatário que desenvolveu um governo inovador. Era casado com uma bela mulher, foi muito popular até mesmo fora dos Estados Unidos e teve sua vida abruptamente interrompida na cidade de Dallas, Texas, no dia 22 de novembro de 1963.

Sobre John Kennedy muito já se falou e foi escrito, sendo tema de inúmeros livros, documentários e filmes de Hollywood. Mas o que muitos brasileiros não sabem é que ele esteve no nosso país vinte anos antes de se tornar presidente.

E o que ele veio fazer no Brasil?

Berço de Ouro

John Fitzgerald Kennedy nasceu em 29 de maio de 1917, sendo filho do empresário, filantropo e político Joseph Patrick “Joe” Kennedy e da socialite Rose Elizabeth Fitzgerald Kennedy. Era descendente de imigrantes irlandeses católicos e vários de seus antepassados foram políticos no estado de Massachusetts, tendo seu avô, P. J. Kennedy, sido prefeito de Boston. 

2D23CBD600000578-3262024-All_in_the_family_The_Kennedy_clan_pose_for_a_photo_at_Hyannis_P-m-9_1444143176235
Os Kennedys

John Kennedy tinha um irmão mais velho, Joseph Jr., e sete irmãos mais novos; Rosemary, Kathleen, Eunice, Patrícia, Robert, Jean e Ted.

Sem problemas com dinheiro a família Kennedy mudou-se em 1927 para uma mansão majestosa, de estilo georgiano, na cidade de Nova York. Ali John frequentou a Riverdale Country School, uma escola particular para meninos. A família Kennedy passava seus verões em uma casa na área costeira de Hyannis Port, Massachusetts. Já durante as férias de Natal e Páscoa, muito frio nessa época na região de Nova York, os Kennedy seguiam para uma casa em Palm Beach, Flórida.

Durante a adolescência John Kennedy teve vários problemas de saúde, que culminaram com uma hospitalização de emergência em 1934, quando os médicos pensaram que ele poderia ter leucemia. Apesar do susto, no ano seguinte ele fez sua primeira viagem a Europa com seus pais e sua irmã Kathleen e no ano seguinte matriculou-se na Universidade Harvard.

Young-JFK-with-double-breasted-combination-collar-pin-with-father-Joe-and-siblings

Em julho de 1937, desejoso de conhecer outros lugares, John Kennedy viajou para a França e passou mais de dois meses junto com um amigo percorrendo a Itália, Alemanha, Holanda e Reino Unido.

Um Mundo Em Guerra

No ano seguinte seu pai foi designado pelo Presidente Franklin D. Roosevelt embaixador dos Estados Unidos na Inglaterra e John seguiu para trabalhar na embaixada americana em Londres. Este cargo de prestígio abriu novas avenidas sociais para a família Kennedy e eles assistiram na primeira fila a abertura do triste drama da Segunda Guerra Mundial. 

Os Kennedy acompanharam os esforços do governo britânico por uma política de apaziguamento, destinada a evitar a guerra a qualquer custo, principalmente após Adolf Hitler ocupar Áustria e a Tchecoslováquia. Essa ação política era firmemente apoiada pelo embaixador Joseph Kennedy e ele seria um feroz crítico dos apelos de Winston Churchill para uma ação mais contundente contra a ameaça nazista. 

Além desse posicionamento o pai do futuro Presidente dos Estados Unidos era declaradamente a favor do isolacionismo dos Estados Unidos em relação a guerra europeia e estridente antissemita. Uma irônica intolerância para um homem que havia sido vítima de muito sentimento antirreligioso por ser católico.

2D24531100000578-3262024-image-a-12_1444143893256
John Kennedy e seu pai, notório isolacionista e antissemita

Em 1938, porém, essas preocupações estavam mais no futuro. John Kennedy usou a posição de seu pai para organizar outra grande viagem, em preparação para sua tese final em Harvard. Esteve novamente na França e seguiu para a Polônia, União Soviética, os Bálcãs e chegou a ir até mesmo ao Oriente Médio. Viajante inveterado, Kennedy passou sete meses na estrada e só retornou a Londres em 1 de setembro de 1939, no mesmo dia em que a Alemanha invadiu a Polônia e teve início a Segunda Guerra Mundial.

O jovem Kennedy começou seu último ano em Harvard na primavera de 1940, com o campus universitário em grande efervescência com o que acontecia no outro lado do Oceano Atlântico. Ele se mostrava cada vez mais interessado na política, concentrando-se em assuntos internacionais e escreveu uma tese sobre a política externa da Inglaterra antes do início da guerra. Este material acadêmico foi bem recebido e ajudou John Kennedy a conquistar a graduação magna cum laude, a segundo maior possível no ranking de Harvard. Mais importante ainda, seu esperto pai aproveitou a tese como uma forma de tornar John uma figura pública. O embaixador puxou as cordas na indústria editorial e contratou um repórter de jornal para editar e polir a prosa. Logo, em julho de 1940, foi lançado o livro Why England Slept. O trabalho rendeu a John Kennedy um modesto best-seller e lhe concedeu seu primeiro gosto como celebridade.

BW SS Argentina
O S. S. Argentina, da respeitada empresa de navegação Moore-McCormack Lines – Fonte – http://www.moore-mccormack.com/images/BW%20SS%20Argentina.JPG

Na sequência John seguiu para a conceituadíssima Stanford Business School e decidiu realizar uma viagem pela América do Sul junto com sua mãe Rose e sua irmã Eunice. 

Eles embarcaram no final de abril de 1941 no luxuoso transatlântico S. S. Argentina, da respeitada empresa de navegação MooreMcCormack Lines, com grande experiência e tradição na ligação marítima entre os Estados Unidos e a América do Sul.

O suntuoso navio de passageiros realizava a rota Nova York ao Rio de Janeiro, seguindo sob bandeira americana, que na época era então um país neutro no conflito. Mas isso não significava que o S. S. Argentina não viesse a sofre um ataque por parte de submarinos nazifascistas, ou algum tipo de ocorrência com os próprios Aliados. E foi o que aconteceu naquela ocasião, quando a grande nave foi parada por um cruzador inglês de 10.000 toneladas e poderosamente artilhado, a 300 milhas da foz do rio Amazonas. A tripulação do S. S. Argentina foi obrigada a informar se a bordo havia entre os passageiros cidadãos de origem alemã ou italiana. Com a negativa a viagem do transatlântico foi liberada. 

Celebridades a Bordo 

Depois de dezesseis dias de viagem, às duas da tarde no dia 7 de maio de 1941, o grande navio aporta Rio de Janeiro, na época a Capital Federal.

ss-argentina-in-rio48.thumbnail
S. S. Argentina no Cais da Praça Mauá em 1948.

Como era praxe na época, durante o desembarque dos passageiros vários jornalistas corriam ao cais do porto da Praça Mauá em busca de saber quem estava a bordo, quem desembarcaria e se entre estes haviam figuras interessantes, o que chamamos hoje de “celebridades”.

Poderiam ser ricaços chegando de viagens, políticos patrícios retornando de suas férias para descansar do seu “pesado labor”, cientistas estrangeiros, ou astros e estrelas do cinema e da música do exterior com destino a Cidade Maravilhosa, ou de passagem para Buenos Aires. Serviam para aquelas verdadeiros “piranhas da notícia” até mesmo pessoas com notícias frescas sobre os tristes acontecimentos da guerra.

I0006154-3Alt=005320Lar=003403LargOri=004537AltOri=007093 - Copia
As celebridades que desembarcaram no Rio de Janeiro em 7 de maio de 1941.

Em meio aos flashes quem mais chamou atenção no desembarque foi a atriz Rosita Moreno. Nascida na Espanha ela já vivia há anos no México era filha de ator e estava radicada desde 1930 na Meca do cinema mundial – Hollywood. Rosita seguia para Buenos Aires a fim de realizar um filme e recebeu a todos saboreando uma “Coca-Cola gelada com batatas fritas”. Contou que já havia realizado muitos filmes mexicanos, argentinos e espanhóis e também foi destaque em versões em espanhol dos filmes de Hollywood.

I0005170-3Alt=005180Lar=003581LargOri=004775AltOri=006907 - Copia

Foi enaltecida pelo jornalista de O Imparcial por está exalando o suave odor do perfume francês “Arpège”, cujo frasco pequeno custava a bagatela de “180$000” (cento e oitenta mil réis). Além dela os repórteres descobriram entre os passageiros um renomado dentista que vinha dar um importante curso sobre dentaduras, um jornalista de Nova York e um violinista judeu de San Francisco que vinha para alguns concertos na cidade. Este possuía alguma fama em 1941, mas viria a se tornar nos anos vindouros um dos maiores violinistas do Século XX – Yehudi Menuhin. Além destes se encontrava a bordo um jovem que era filho de Joseph Kennedy, o ex-embaixador dos Estados Unidos na Inglaterra.

“Missão Especial do Governo Americano”

Descrito como magro, de cabelos claros, olhos azuis e muito calmo, John Kennedy não negou a ser interpelado pelos jornalistas e informou que veio ao nosso país basicamente como um simples turista a passeio e com “um desejo de conhecer outros países e outros povos”.

record-image_S3HT-6PVS-FHM
Ficha de entrada de John Kennedy no Brasil em 1941.

Ele foi logo recordado pelos homens da imprensa que seu pai era um dos maiores defensores do isolacionismo dos Estados Unidos na guerra, mas fugiu diplomaticamente do questionamento. Depois foi perguntado se acreditava na vitória dos súditos do Rei da Inglaterra contra os alemães e respondeu que sim. Mas acrescentou ponderadamente que “seria imprudente dar qualquer declaração categórica sobre o desenrolar dos acontecimentos”. Kennedy comentou bastante sobre seu livro, que também estava escrevendo para jornais e revistas nos Estados Unidos e pretendia escrever outros livros sobre a conjuntura internacional. Ele foi descrito pelos jornalistas como “possuidor de bom humor e comunicativo e logo se tornou simpático na roda dos jornalistas”. Apesar de jovem, John Kennedy já tinha bastante experiência para tratar com o pessoal da imprensa e sabia o que significava não atender corretamente aos jornalistas.

Na edição do Jornal do Brasil do dia seguinte (página 12) surgiu a notícia que um suposto companheiro de viagem de Kennedy teria confidenciado a um jornalista deste periódico que o filho do embaixador Joseph estava de viagem pelo Brasil e pela Argentina em uma “missão especial do governo americano”. Segundo este amigo o jovem Kennedy pretendia “examinar as pulsações sentimentais dos povos sul-americanos em face ao conflito europeu”.

d36c241b4744ae94e8915689a250255b

Essa informação não deve ser verdade, pois nenhuma fonte pesquisada cita, além de sua mãe e de sua irmã, algum pretenso companheiro de viagem de John Kennedy a América do Sul. Além disso, o governo americano tinha na região embaixadas com pessoas altamente treinadas e extremamente atentas a todos os movimentos e ações dos governos sul-americanos e dos seus povos em relação ao conflito que ocorria na Europa.

Aparentemente Kennedy, sua mãe e sua irmã realmente vieram para o Brasil fazer apenas turismo, conforme mostra a foto que abre este texto.

Mas se aqueles dias do primeiro semestre de 1941 a vida de John Kennedy foi de tranquilidade no Brasil e na América do Sul, no fim daquele mesmo ano a situação ficou bem diferente.

Mas isso é outra história.


Fontes 

https://mholloway63.wordpress.com/2013/08/02/what-happened-on-august-1st-john-f-kennedy-and-pt-109/

https://br.pinterest.com/pin/450289662722928980/

http://www.bbc.co.uk/history/people/john_f_kennedy

https://www.jfklibrary.org/JFK/Life-of-John-F-Kennedy.aspx

https://familysearch.org

http://millercenter.org/president/biography/kennedy-life-before-the-presidency

http://www.historyplace.com/kennedy/president.htm

http://jfks.de/about-jfks/history/the-history-of-the-john-f-kennedy-school/

http://www.dailymail.co.uk/news/article-3262024/My-story-collision-getting-better-time-ve-got-Jew-n-r-John-F-Kennedy-revealed-father-exploited-PT-109-incident-make-son-hero-pave-road-White-House.html

https://www.gentlemansgazette.com/president-john-f-kennedy/

O COMPASSO DO MUNDO: TUDO SOBRE A MAÇONARIA

Freemasonry-Masonic-Masonry
Fonte – https://openclipart.org/download/245371/Freemasonry-Masonic-Masonry.svg

Como a mais célebre sociedade secreta moldou a história dos últimos três séculos

AUTOR – Tiago Cordeiro

O primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington, era maçom. Depois dele, outros 16 líderes da nação mais poderosa do mundo também foram: a lista inclui John Edgar Hoover, diretor do FBI por 45 anos, e Harry Truman, o homem que autorizou o ataque com bombas atômicas sobre o Japão. Também fizeram parte da sociedade secreta dois políticos decisivos para a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial, o presidente americano Franklin Delano Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Eram maçons alguns dos mais importantes líderes da Revolução Francesa, como Jean-Paul Marat e La Fayette. O revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi e os libertadores da América espanhola, o argentino José de San Martín e o venezuelano Simon Bolívar, também. O articulador da independência do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva, pertencia à ordem, assim como o duque de Caxias e nosso primeiro presidente republicano, marechal Deodoro da Fonseca.

Freimaurer-sehendes-Auge-720x340
Fonte – http://xn--jl-3sulen-z2a.de/freimaurer-in-der-neuen-zuercher-zeitung/

Por tudo isso, não é exagero afirmar que o mundo em que vivemos foi definido por essa sociedade secreta, que por três séculos vem reunindo a elite política e militar (e cultural) do Ocidente em rituais cheios de códigos misteriosos.

Mas o que é maçonaria? Existem várias versões para a criação da organização. A mais confiável remete à Idade Média, quando o controle do comércio era feito pelas guildas, corporações de ofício que reuniam artesãos do mesmo ramo e funcionavam como um antepassado dos sindicatos. Um dos grupos mais poderosos era o dos pedreiros (em inglês, masons). Que era um trabalho de alto status então, pois eram responsáveis pela engenharia e pela construção de castelos e catedrais. Pedreiros tinham acesso aos reis e ao clero e circulavam livremente entre os feudos. Apelidados de free masons (pedreiros livres), se reuniam nos canteiros de obras e trocavam segredos da profissão. Um dos documentos mais antigos sobre essas guildas é a carta de regulamentos de Londres, 1356. Na época, era só um conjunto de regras para pedreiros. 

freimaurer
Fonte – https://www.star-of-africa.de/was-wissen-sie-%C3%BCber-freimaurerei/

Para se identificarem em locais públicos e evitarem o vazamento de suas conversas, criaram um sistema de gestos e códigos. Durante o Renascimento, os pedreiros livres ficaram na moda. Seus encontros passaram a acontecer em salões, chamados de lojas, que geralmente ficavam sobre bares e tavernas das grandes cidades, onde a conversa continuava depois. Intelectuais e membros da nobreza engrossaram a turma. Por influência deles, os debates passaram a abranger religião e filosofia. Em 24 de junho de 1717, numa reunião das quatro maiores lojas de Londres (então o maior centro maçom europeu), na taverna The Goose and Gridiron nasceu uma federação, a Grande Loja de Londres. Era o início oficial da maçonaria.

A Marselhesa

Em apenas três décadas, a organização já tinha se espalhado por toda a Europa ocidental e havia alcançado a Índia, a China e a América do Norte. Passou a ser conhecida, respeitada, mas, principalmente, temida. Não era para menos. Ficava difícil confiar em um grupo de homens ricos e poderosos, de diferentes áreas, que se reuniam a portas fechadas, usavam símbolos esquisitos (veja explicações ao longo da reportagem) e faziam juramentos de fidelidade à tal organização e ainda voto de silêncio. Também não ajudou muito o tanto de lendas que surgiu sobre a origem da maçonaria (em 1805, o historiador francês Charles Bernardin pesquisou 39 diferentes). Tinha para todos os gostos: alguns integrantes da ordem diziam que Noé era maçom, outros transformaram o rei Salomão ou os antigos egípcios em fundadores. Nem os templários escaparam (leia ao final). A Igreja Católica se incomodou tanto que, em 1738, divulgou uma bula papal atacando a ordem, que décadas depois foi perseguida pela Inquisição.

Mistérios revelados  Os principais símbolos da maçonaria

maconaria-670x421
Fonte – http://www.pnp900.de/freimaurerei.html

Compasso

Um dos instrumentos dos pedreiros. Representa a racionalidade científica. Por desenhar círculos perfeitos, também simboliza a busca pela perfeição moral

Esquadro

Outro instrumento da construção civil que lembra a capacidade transformadora do homem sobre a natureza. Seu ângulo reto é uma indicação para os homens de que eles devem ser honestos

Letra G

Vem de God, Deus em inglês. Os integrantes da fraternidade também o chamam de GAU, sigla para Grande Arquiteto do Universo

170228_Tomb_White_Header_R1a
Maçons ingleses – Fonte – http://www.freemasonrytoday.com/magazine

Olho

Geralmente representado dentro de um triângulo, tem o mesmo significado da letra G. É Deus, que tudo vê

Triângulo

Refere-se ao lema liberdade, igualdade e fraternidade, às virtudes fé, esperança e caridade, e nascimento, vida e morte. Por isso, os maçons também fazem três pontos em suas assinaturas

Martelo

Pequeno, simboliza o trabalho dos pedreiros que inspiraram a fraternidade, e também a força material que muda o mundo. É usado pelo grão-mestre durante as cerimônias

Sol/Lua

Como o chão de mosaico preto e branco (veja no rodapé da reportagem), usado nas lojas, simboliza a dualidade entre bem e mal, espírito e corpo, luz e trevas.

MasonicTemple-9
Templo maçônico da Filadélfia (EUA) construído em 1873 – Fonte – https://pamasonictemple.org/temple/

Além do sigilo, o que perturbava era a atitude sempre à frente de seu tempo. Setenta anos antes da Revolução Francesa, esses homens cultos e influentes já defendiam a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Tratavam-se sem distinção e aceitavam todos os credos religiosos, uma atitude tremendamente avançada para a época. Os ateus, porém, eram barrados. Não formamos uma religião, mas somos um grupo de pessoas religiosas.

Nosso lema é fazer os homens bons ficarem melhores, diz o maçom paulistano Cassiano Rampazzo, advogado de 35 anos. Com ele concorda a historiadora mineira Françoise Jean de Oliveira, coautora do livro O Poder da Maçonaria. A maçonaria não é religião, não tem dogmas. É um grupo que defende a liberdade de consciência e o progresso. Isso não quer dizer que cada participante possa agir como bem entende. Ao entrar na ordem, o membro é instruído sobre a moral universal, um conjunto de virtudes obrigatórias, como bondade, lealdade, honra, honestidade, amizade, tranquilidade e obediência, diz Françoise.

barkerville_masons
Membros de uma loja maçônica no oeste canadense em 1890 – Fonte – http://freemasonry.bcy.ca/textfiles/history.html

A falta de preconceito se restringia a diferenças políticas e religiosas. A fraternidade vetava analfabetos, deficientes e homens que não se sustentavam. As mulheres até hoje não são bem-vindas (com exceção da França).

Além disso, no passado como no presente, só entra na ordem quem for convidado e passar por uma avaliação rigorosa: nada de gente indiscreta, protagonistas de escândalos, bêbados, brigões e adúlteros notórios.

Ainda assim, para os aprovados, a maçonaria foi a primeira entidade a funcionar de acordo com os preceitos da democracia moderna. Eles estimulavam debates abertos, em que todos podiam participar, além das eleições livres e diretas. Nada disso estava na moda no século 18. E, muito por influência dos próprios maçons, tornou-se corriqueiro no século 21, afirma o historiador alemão Jan Snoek, professor da Universidade de Heidelberg e especialista no assunto.

1500-Freimaurer-in-der-Hamburger-Michaeliskirche
Grande ritual maçônico em Hamburgo, Alemanha – Fonte – http://www.abendblatt.de/hamburg/article109558266/1500-Freimaurer-bei-Ritual-im-Michel.html

Assim, nada mais natural que os líderes da Revolução Francesa de 1789 aderissem à maçonaria. Nos anos que antecederam a queda do Antigo Regime, os adeptos se multiplicaram. A influência foi tanta que uma canção composta e cantada na loja de Marselha foi batizada de A Marselhesa e transformada no hino do país. Nem todos os ideólogos da revolução foram maçons. Marat e La Fayette eram, Robespierre e Danton, não. Mas, entre os inimigos da monarquia, mesmo quem não participava da ordem tinha sido influenciado por suas ideias, afirma o historiador americano W. Kirk MacNulty, maçom há mais de 40 anos.

Nas verdinhas

Além de divulgar ideias que atraíam a elite progressista de seu tempo, a maçonaria era também um espaço propício à conspiração política. Ao ingressar na ordem, os integrantes prometiam (e até hoje prometem) não divulgar seus segredos e nem mesmo revelar a nenhum profano (como são chamados os não iniciados) o que é dito nas reuniões.

Was-ist-Freimaurerei-1200x440
Trajes maçônicos – Fonte – al-prudens.de

As lojas maçônicas eram o lugar ideal para membros da elite de diferentes pensamentos políticos se encontrarem, diz o pesquisador Jesus Hortal, reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Além disso, quanto mais a maçonaria era acusada de ser um local de conspiração política, mais ela era procurada por conspiradores. A proteção das lojas ajudou a garantir o sucesso de um dos movimentos históricos mais influenciados pela organização: a independência americana, episódio que muitos historiadores chamam de revolução maçônica.

Grandes maçons – Algumas figuras centrais que se juntaram à ordem

image
George Washington – Fonte – https://www.star-of-africa.de/was-wissen-sie-%C3%BCber-freimaurerei/

George Washington (1732-1799)

Juntou-se bem jovem, enquanto ainda era soldado do Exército britânico, em 1752. Ocupado com sua luta, nunca foi muito ativo. Recusou o cargo de Grande Mestre na Virgínia em 1777, para se dedicar à luta contra a dominação britânica. Deram o cargo mesmo assim, sem seu consentimento, em 1788. Washington gostava do programa iluminista dos maçons, e também do fato de, nos EUA, serem menos anticlericais que na Europa. 

Voltaire (1694-1778)

O filósofo iluminista atacava a monarquia francesa e defendia princípios maçons. Acabou sendo iniciado em uma loja de Paris em abril de 1778, só dois meses antes de morrer. Voltaire, que tinha 83 anos, entrou no local apoiado no braço do americano Benjamin Franklin.

Goethe_(Stieler_1828)
Johann Wolfgang von Goethe – Fonte – https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0e/Goethe_%28Stieler_1828%29.jpg

Goethe (1749-1832)

O escritor e poeta alemão foi aceito em uma loja de Weimar em 1780. Escreveu vários poemas em homenagem à maçonaria. Os mais famosos são A Loja Maçônica e Symbolum (composto quando seu único filho, Auguste, foi iniciado).

Mozart (1756-1791)

O compositor austríaco entrou para a ordem em Viena, aos 28 anos. Compôs várias peças para serem executadas durante cerimônias maçônicas. Sua última ópera, A Flauta Mágica, tem tantas referências à ordem que Mozart foi acusado de revelar segredos maçons.

Gustave Eiffel (1832-1923)

Além de projetar a Torre Eiffel, em Paris, o engenheiro francês desenhou a Estátua da Liberdade, enviada como presente de comemoração dos 100 anos da independência americana . O projeto foi executado em parceria com o escultor Frederick Bartholdi (1834-1904), que também era maçom.

download
Charles Lindbergh – Fonte – https://www.usnews.com/photos/famous-freemasons?slide=8

Charles Lindberg (1902-1974)

O aviador foi aceito por uma loja de Saint Louis em 1926. No ano seguinte, tornou-se o primeiro homem a fazer um voo solitário transatlântico sem escalas. Durante a viagem, ele teria levado consigo um distintivo com os símbolos da régua e do compasso.

Buzz Aldrin (1930)

O segundo homem a pisar na Lua em 1969, após Neil Armstrong, pertence a uma loja maçônica no Texas. Queria ter levado um anel maçom de seu avô para a Lua, mas o perdeu antes da viagem. Mas ninguém sabe se ele teria mesmo levado uma bandeira com símbolos da ordem para lá.

Benjamin Franklin, um dos grandes responsáveis pela criação dos Estados Unidos da América, era grão-mestre (o líder máximo na hierarquia) na Filadélfia e responsável pela publicação no país do livro Constituições, escrito pelo britânico James Anderson em 1723 e considerado a declaração de princípios da entidade. O líder dos rebeldes, George Washington, e o principal autor da Declaração de Independência, Thomas Jefferson, também eram membros ativos, assim como um terço dos 39 homens que aprovaram a primeira Constituição do país. Os três usaram seus contatos com as maçonarias de outras nações, em especial da Inglaterra, para garantir o sucesso da rebelião.

Beschürzte-Brüder-Freimaurerei
Trajes maçônicos na Europa – Fonte – http://www.katholisches.info/2013/04/freimaurer-suchen-neuen-grosmeister-geht-es-logen-wirklich-nur-um-ethik-oder-auch-um-politik/

Há quem diga que a nota de 1 dólar, com seu olho solitário, é inteiramente marcada por símbolos maçons o olho, por exemplo, simbolizaria Deus (leia sobre os símbolos no decorrer da reportagem), coisa que os autores da cédula nunca confirmaram. Reza a lenda que George Washington teria vestido um avental da ordem durante a inauguração da capital, em 16 de julho de 1790, batizada em sua homenagem. Ele ainda teria orientado os engenheiros a encher a cidade de símbolos secretos da entidade. Por exemplo: algumas pessoas identificam o desenho de um compasso unindo a cúpula do Capitólio, a Casa Branca e o Memorial Thomas Jefferson.

Pelo mundo

No século 19, a maçonaria deu outras provas de sua capacidade de mudar a história. Por volta de 1810, um grupo de defensores da unificação italiana se reuniu com o nome de Carbonária. Inspirado nas estratégias e na hierarquia maçons, a sociedade secreta, que continuou atuante até 1848, tentava estimular uma rebelião espontânea dos trabalhadores, que implantariam os ideais liberais. Dois dos maiores heróis da construção da Itália unificada participaram desse grupo e depois foram aceitos pela maçonaria. Um deles, Giuseppe Mazzini (1805-1872), acabou rompendo com os maçons por acreditar que a ordem mais debatia que agia. Outro, Giuseppe Garibaldi (1807-1882), seria mais tarde condecorado o primeiro maçom do novo país.

c6024050e3c3f577421fa4c7390b8a91
Giuseppe Garibaldi – Fonte – https://br.pinterest.com/pin/116038127878095348/

Depois de participar de um levante malsucedido em Gênova, Garibaldi fugiu para o Rio de Janeiro em 1835. Encontrou um grupo de carbonários exilados que mantinha contatos com a maçonaria brasileira. Através deles conheceu o maçom Bento Gonçalves, o líder da Revolução Farroupilha. Em 1840, Garibaldi instalou-se no Uruguai, onde se tornou oficialmente participante da sociedade secreta. Quando morreu, em seu país, deu nome a lojas no Uruguai, Brasil, França, Estados Unidos, Inglaterra e Itália. Nas décadas seguintes, os democratas italianos de esquerda, cujos integrantes cerrariam fileiras na maçonaria, se destacaram pela defesa do sufrágio universal, da educação gratuita de qualidade e da independência do Estado com relação à Igreja.

É fácil entender como Garibaldi se tornou maçom na América do Sul. Desde o começo do século 19, a ordem cresceu a ponto de ser fundamental para a independência dos países da região. Nos países de língua espanhola, um dos precursores do pensamento pela soberania foi o venezuelano Francisco de Miranda (1750-1816), que, depois de participar da Revolução Francesa, foi iniciado na maçonaria por George Washington. Miranda fundou uma loja em Londres, batizada de Gran Reunión Americana.

csm_freimaurer_logo_mauer_715_pixabay15_4490d3245b
Fonte – http://www.idea.de/gesellschaft/detail/ezw-die-freimaurer-in-deutschland-legen-zu-92634.html

Ali, atuou na formação de três libertadores da América: o chileno Bernardo O’Higgins (1778-1842), o venezuelano Simon Bolívar (1783-1830) e o argentino José de San Martín (1778-1850). Eles frequentavam a mesma loja, Latauro, com sede em Cádiz, Espanha, e filiais latino-americanas. Seus membros se denominavam cavaleiros da razão e previam a independência, o fim da escravidão e a proclamação de repúblicas. Estima-se que a iniciação de Bolívar tenha ocorrido na Europa, entre 1803 e 1806. San Martín, adepto desde 1808, fundou lojas no Chile, no Peru e na Argentina (que já abrigava casas maçônicas desde 1775). O’Higgins frequentava a de Mendoza.

Em terras brasileiras

A fraternidade existia em nosso país desde o início do século 19 e contava com confrades de altos cargos da colônia. Entre os maçons decisivos para a separação de Portugal estava José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). A ideia de conceder o título Defensor Perpétuo e Imperador do Brasil ao príncipe herdeiro da coroa portuguesa surgiu na própria Latauro, mesmo lugar que organizou as primeiras festas de rua pela independência, no Rio, em 12 de outubro de 1822.

Brasil maçonaria
Fonte – http://robertomacom.blogspot.com.br/2015_02_01_archive.html

O envio de emissários às grandes províncias brasileiras para articulação da Independência foi organizado pelo Grande Oriente do Brasil, a federação maçônica nacional fundada em 17 de junho do mesmo ano, de onde José Bonifácio foi grão-mestre. Em 2 de agosto de 1822, o próprio dom Pedro I entrou para a entidade, sob o codinome Pedro Guatimozim, uma homenagem ao último rei asteca. Apenas três dias depois de iniciado, ele já tinha sido alçado a mestre. Mais dois meses e já era o grão-mestre do país. Passados apenas 17 dias da promoção, Pedro, já imperador, abandonou a fraternidade e proibiu suas atividades no Brasil. A melhor explicação dos especialistas para a atitude é a insatisfação do monarca com uma entidade onde a hierarquia era submetida a regras e podia ser questionada.

Em 1831, de volta legalmente à ativa, após a renúncia de dom Pedro e seu retorno a Portugal, a maçonaria brasileira se multiplicou. Em 1861, a ordem se mobilizou em apoio ao movimento abolicionista. No Ceará, lojas se reuniram para comprar e libertar escravos. Eusébio de Queiroz (1812-1868), que batizou a lei que proibia o tráfico de escravos, era maçom. O visconde do Rio Branco (1819-1880), abolicionista e chefe de Gabinete Ministerial entre 1871 e 1875, foi grão-mestre. Quando a Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel (1846-1921), em 1888, o presidente do Conselho de Ministros era o grão-mestre João Alfredo Correa de Oliveira (1835-1919). Das lojas também veio o apoio à mudança no regime de governo. Em 1889, a República foi proclamada pelo confrade marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), que formou um ministério só com maçons. Dos 12 chefes de Estado até 1930, oito eram maçons; dos 17 governadores de São Paulo durante a República Velha, 13 pertenciam à ordem.

689769-entenda-os-significados-dos-simbolos-maconicos
Fonte – http://www.mundodastribos.com/entenda-os-significados-dos-simbolos-maconicos.html

Caça aos bruxos

A partir de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder, a maçonaria brasileira passou a ser estigmatizada. Os delírios do integralista Gustavo Barroso (1888-1959), de que a entidade unira-se ao judaísmo para controlar a humanidade, faziam sucesso. O mesmo surto ocorreu em outros países. Na União Soviética, Leon Trótski (1879-1940) denunciou um suposto complô maçom-judaico para dominar o planeta. Adolf Hitler (1889-1945), que dizia que a maçonaria era uma arma dos judeus, mandou fechar todas as lojas alemãs, prendeu líderes e, em 1937, organizou a Exposição Antimaçônica. Aberta em Munique pelo ministro da propaganda, Joseph Goebbels, a mostra reunia peças de lojas invadidas. Na Espanha, em 1940, o general Francisco Franco (1892-1975) proibiu a existência dos grupos e condenou seus membros a seis anos de prisão.

Nem só a perseguição fez organização perder poder. A maçonaria não se adaptou aos novos tempos, diz Françoise Souza. Ela foi poderosa enquanto era um local único de reunião de pessoas. Com a consolidação da sociedade civil, surgiram outros espaços associativos, como partidos, sindicatos e organizações não governamentais. Além disso, causas clássicas da maçonaria, como a liberdade religiosa, viraram direitos. Mas ainda existem locais onde a segurança e a valorização da liberdade de expressão são fundamentais. É o caso de Israel. Em Jerusalém, as lojas reúnem cristãos, judeus e muçulmanos, que conversam abertamente, trocam experiências e sabem que podem confiar uns nos outros, afirma o historiador Jan Snoek. Em lugares assim a maçonaria continua, como era em suas origens, uma organização inovadora.

Fundadores legendários  Estes seriam os primeiros maçons, segundo as lendas

Adão

Alguns integrantes da ordem defendem que Deus foi o primeiro maçom afinal (como um bom pedreiro) ele construiu o mundo inteiro em seis dias. Para outros, esse cargo cabe a Adão. Ao ser expulso do paraíso, ele teve de encontrar uma forma de construir abrigo. Seus ensinamentos teriam sido levados adiante por seu filho Caim.

Noé

De acordo com a Bíblia, depois de construir um barco e escapar do grande dilúvio com um casal de cada espécie animal, Noé precisou começar tudo do zero. Para alguns maçons, isso faz dele um pioneiro na arte da construção logo, um fundador da maçonaria.

Egípcios

Só mesmo grandes engenheiros seriam capazes de construir as pirâmides do Egito antigo. Por isso, não falta quem diga que entre os egípcios também estavam os primeiros maçons. Por essa versão, eles teriam criado ritos ocultos, os mesmos que teriam usado na construção da Grande Pirâmide de Quéops.

Hiram Abiff

Segundo a Bíblia, o rei Salomão teria contratado um outro rei, chamado Hiram Abiff, para ser o engenheiro-chefe de seu templo. De acordo com a maçonaria, Hiram foi morto por funcionários que queriam roubar os segredos de Salomão. Assim, Hiram acabou virando um mártir e também um exemplo de discrição.

Pitágoras

Além de fundador da Matemática como disciplina de estudos, o grego fundou a escola pitagórica, que tratava seus seguidores como uma irmandade sem superiores e seguia rígidos princípios religiosos e de comportamento. Assim, não é difícil entender a ligação que fizeram entre ele e a maçonaria.

Templários

Os sobreviventes da poderosa ordem, destruída em 1312 a mando do papa Clemente V, teriam continuado a se reunir em segredo até voltar a público em 1717, na forma da maçonaria. Algumas palavras em código dos maçons seriam inspiradas nas senhas usadas pelos templários.

SAIBA MAIS:

►A Maçonaria Símbolos, Segredos, Significado, W. Kirk MacNulty, Martins Fontes, 2007
►Arquivos Secretos do Vaticano e a Franco-Maçonaria, José Ferrer Benimeli, Madras, 2007
►O Poder da Maçonaria, Françoise Jean de Oliveira e Marco Morel, Nova Fronteira, 2008

Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/o-compasso-do-mundo-tudo-sobre-a-maconaria.phtml#.WL39T4WcHIW

A HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

Autor – Rostand Medeiros

A história dos judeus no Brasil é longa e complexa, uma vez que se estende desde o início da colonização européia no novo continente. Mas antes de tudo é uma vergonhosa história de intensas perseguições religiosas.

Inicialmente os judeus sofreram com os tribunais eclesiásticos da Inquisição na Espanha a partir de 1478 e a partir de 1492, quando tem inicio às expedições colonizadoras espanholas para o Novo Mundo, é um ano que também marca o início da Segunda Diáspora, quando os judeus foram expulsos da Espanha.

Em 1497, seguindo o exemplo dos vizinhos, os portugueses baniram os judeus de seu país e muitos fugiram para um país europeus mais hospitaleiro, como a Holanda.

moriscos4
Expulsão de judeus na Espanha em 1492 – Fonte – http://www.alertadigital.com/

Os que continuaram em Portugal buscaram sobreviver como “Cristãos-novos” (também conhecidos como Conversos ou Marranos, judeus obrigados a converter-se ao catolicismo romano pela coroa Portuguesa). Alguns destes Marranos, embora publicamente “convertidos”, mesmo com o risco de captura e morte pela Inquisição, assumiram o risco e continuaram secretamente a praticar o criptojudaísmo (estes eram grupos que praticavam a fé judaica e seus costumes em segredo, por receio de perseguições religiosas).

Outros que haviam concordado em desistir do Judaísmo parecem ter realmente colocado sua religião de lado para sobreviver – pelo menos exteriormente – como cristãos.

Dois anos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral a Bahia, na condição de “cristãos-novos”, foi oficialmente sancionada e concedida a vinda de um primeiro grupo destas pessoas para se instalarem no Brasil e exportar a madeira para Portugal. Em terras tupiniquins os Marranos também desenvolveram práticas agrícolas com resultados positivos. Acredita-se que o primeiro exemplar de cana-de-açúcar foi trazida para o Brasil em 1532, por um fazendeiro judeu da Ilha da Madeira.

Conforme a colonização avançava, assumindo abertamente, ou não, a sua religião, em vários locais no Novo Mundo se desenvolveram comunidades judaicas. Além da colônia portuguesa do Brasil, existiram pequenos grupos nas colônias espanholas que se tornariam países como Colômbia, Cuba, Porto Rico, México, Peru e República Dominicana. São conhecidos grupos no Suriname e Curaçao holandês, e nas colônias inglesas da Jamaica e Barbados. Estas comunidades judaicas se desenvolveram mais fortemente nas áreas sob controle holandês e inglês, povos bem mais tolerantes em relação ao Judaísmo do que os portugueses e espanhóis. Tanto assim que em meados do século XVII, uma das maiores comunidades judaicas do Hemisfério Ocidental estava localizada no Suriname colonizado pelos holandeses.

Expulsos de Portugal

Enquanto isso em Portugal, a partir de 1536, é implantado oficialmente a Inquisição. Assim, a maioria dos Marranos portugueses evitou imigrar para o Brasil, porque também nas terras tropicais seriam perseguidos por este tribunal eclesiástico.

Pinturas-de-Frans-Post-10
Quadro do holandês. Frans Janszoon Post (Leyden, 1612 — Haarlem, 1680) mostrando o Brasil Holandês – Fonte – http://cultura.culturamix.com/arte/pinturas-de-frans-post

Muitos judeus portugueses se refugiaram em países mediterrânicos (Norte de África, Itália, Grécia) e região do Oriente Médio. Já outros emigraram ainda com mais força para países que toleravam o Judaísmo como a Inglaterra, Alemanha e a sempre presente Holanda.

Muitos judeus que chegaram ao conhecido País Baixo tinham ótimas qualificações na produção de açúcar e, em um futuro nem tão distante assim, suas habilidades seriam positivamente apreciadas por uma empresa holandesa que se instalaria a força no Nordeste do Brasil. Era a Companhia das Índias Ocidentais (West Indian Company).

No início dos anos 1600 o Brasil já possuía uma população com cerca de 50.000 europeus, alguns deles descendentes dos conversos. Em 1624 parte do Nordeste do Brasil ficou sob o domínio holandês, capitaneado pelo investimento bélico da Companhia das Índias Ocidentais.

Vista do Recife - 1630-1631 - Johannes de Laet
Recife, capital de Pernambuco, foi um grande centro judaico da América Latina – T’RECIF de PERNAMBVCO’ ca. 1630 fonte: Ilustração do livro de Johannes de Laet – 1644 – Fonte – http://bairrodorecife.blogspot.com.br/2014/02/a-rua-do-bode-dos-judeus-da-cruz-e-do.html

Esta foi uma boa notícia para a comunidade judaica no Novo e Velho Mundo, pois os holandeses eram, por assim dizer, simpáticos ao povo judeu e permitiram a imigração judaica para a região. Judeus que tinham praticado a sua religião de forma clandestina por décadas na América do Sul, celebraram tão exuberantemente sua liberdade com desfiles e marchas pela cidade de Recife, que os holandeses tiveram de lhes pedir para restringir a sua alegria e evitar conflitos com Luso-brasileiros católicos.

Os judeus do Nordeste do Brasil tornaram-se membros de uma sociedade numerosa, bem estabelecida e prosperaram economicamente. O inglês Adam Smith atribuiu grande parte do desenvolvimento da indústria de açúcar do Brasil a chegada dos judeus portugueses a região de Pernambuco.

Rua dos Judeus - Mercado de Escravos - 1641
Rua dos Judeus, em Recife, e seu mercado de escravos. Quadro Rua dos Judeus – Slavenmarkt, de Zacharias Wagener – 1641 – Fonte – http://bairrodorecife.blogspot.com.br/2014/02/a-rua-do-bode-dos-judeus-da-cruz-e-do.html

Para o Nordeste do Brasil começaram a chegar judeus vindos da Polônia, Turquia e Hungria, bem como muitos da Espanha e de Portugal. Em 1636 no Recife, capital de Pernambuco, os judeus construíram escolas e uma sinagoga. Este é considerado o primeiro templo judaico das Américas. Em 1642, um grande grupo de judeus chegou a Recife vindos de Amsterdã, capital da Holanda. Neste grupo estavam o rabino Isaac Aboab da Fonseca e Cantor Moisés de Aguilar. Autores apontam que a população de Recife atingiu um ponto alto em 1645, respondendo por cerca de 50% da população branca da cidade.

Desenvolvimento e Expulsão do Nordeste

Os judeus que tinham se estabelecido logo no início no Brasil foram os proprietários de terra e barões do açúcar. Aqueles que chegaram mais tarde se envolveram no comércio. Judeus brasileiros formaram uma rede de comércio exterior com os judeus em Amsterdã, desenvolvendo parcerias para levar suprimentos para o Brasil. Alguns destes judeus se tornaram bem-sucedidos comerciantes de escravos.

Em 1645 foi concedida pela Companhia das Índias Ocidentais a permissão para um judeu exercer a advocacia em Recife, mas o Supremo Tribunal na Nova Holanda (em holandês Nieuw Holland, também conhecida como Brasil Holandês) se recusou a aceitar sua licença. A comunidade judaica em Amsterdã intercedeu em seu nome e ele acabou sendo autorizado a praticar a lei no Brasil.

Diante do sucesso dos comerciantes judeus, especialmente no lucrativo comércio de escravos, empresários cristãos Luso-brasileiros mais de uma vez pediram ao governo da Nova Holanda para limitar a prática de comércio judaico em Recife. O governo de ocupação recusou-se a tomar medidas para prejudicar de alguma forma os negócios dos judeus, pois o dinheiro gerado por eles era muito importante para a economia da colônia.

Os Luso-brasileiros queriam de volta seu valioso território no Nordeste do Brasil. A situação para os judeus tomou um rumo para pior em 1654, quando os portugueses, através de uma vitoriosa luta, reafirmaram sua autoridade sobre os holandeses.

Em seu tratado de rendição os holandeses haviam exigido que os judeus deveriam ser tratados da mesma maneira que outros cidadãos holandeses: eles teriam que deixar a região dentro de três meses e seriam autorizados a vender sua propriedade e negócios.

Alguns voltaram para Amsterdã, entre eles o rabino Aboab da Fonseca e Cantor De Aguilar. Um barco cheio deles, soprado fora do curso tradicional, se estabeleceu em New Amsterdam (mais tarde Nova York, Estados Unidos), sendo estes os primeiros judeus a desembarcarem e fundarem a primeira comunidade judaica neste país. Muitos partiram para outras ilhas ou colônias do Caribe, tais como Curaçao, Barbados e Suriname (mais tarde Guiana Holandesa). Apenas alguns permaneceram no Brasil.

O Esquecimento Dos Que Ficaram

Muitos dos que não conseguiram sair, fosse por razões financeiras, ou principalmente pessoais, foram mortos pelos portugueses. Para sobreviver alguns tornaram a praticar o criptojudaísmo. Estes viviam longe das autoridades, no interior do Brasil. Alguns se tornarão donos de glebas no ermo sertão nordestino, convivendo com indígenas bem diferentes dos existentes no litoral, criando bovinos, caprinos, plantando algodão, fumo e tocando a vida.

DSC_0457
É possível que alguns dos judeus que buscaram refúgio no interior do sertão do Nordeste do Brasil tenha construído vivendas fortificadas, como esta casa existente na região de Serra Talhada, Pernambuco, que aqui é apresentada meramente como exemplo. Foto – Rostand Medeiros

Por esse tempo, no entanto, os poucos remanescentes dos Marranos já tinham de tal forma assimilado a cultura católica brasileira que perderam grande parte do conhecimento das práticas e costumes judaicos. Conforme se deu o avanço da massa de novos colonizadores no sertão nordestino, com forte presença da autoridade da Igreja Católica, foi que este esquecimento se ampliou. Permaneceram em algumas comunidades mais distantes e isoladas no sertão nordestino algumas práticas de uma antiga cultura, pequenos sinais na verdade, que muitos desconheciam a razão e origem, mas que os diferenciavam de outros grupos que existiam em suas regiões.

Esse desconhecimento se explica, pelo menos em parte, devido às perseguições contra os judeus por parte das autoridades portuguesas. Consta que no distante ano de 1713, várias centenas de judeus foram extraditados do Brasil para Portugal por causa da Inquisição. Finalmente, em 1773, um decreto real acabou com as práticas da Inquisição no paí dos Lusos.

DSC05270
A cidade potiguar de Venha Ver, no oeste do estado, teria estes sinais indicativos de uma presença judia em seu passado. Sobre este tema ver o link desta postagem no TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.com.br/2011/06/30/a-cidade-potiguar-de-venha-ver-e-a-sua-possivel-tradicao-judaica/

Apesar deste fato, existe a informação que no final do século XVIII, alguns judeus Marranos vieram de Portugal para a região sudeste do Brasil com a intenção de trabalhar nas minas de ouro. Muitos foram presos acusados de judaísmo.

Somente em 1822, quando o Brasil se tornou independente de Portugal, começou a ocorrer mudanças.

Um Novo Recomeço No Brasil

Após a primeira constituição brasileira em 1824, que concedeu a liberdade de religião, os judeus começaram a retornar bem lentamente ao Brasil.

Muitos judeus marroquinos chegaram no século XIX, principalmente em razão do boom da borracha na Amazônia, onde seus descendentes continuam a viver por lá.

07-nota[4]
Sinagoga Shaar Hashamaim de Belém do Pará. Foto de Moisés Unger – Fonte – http://menorahbrasil.blogspot.com.br/2014/03/judeus-no-brasil.html

A maioria das fontes afirma que a primeira sinagoga de Belém, capital do Grão-Pará, seria a Sha’ar Hashamaim (“Porta do Céu”) e teria sido fundada em 1824. Há, no entanto, controvérsias; Samuel Benchimol, autor do livro “Eretz Amazônia: Os Judeus na Amazônia”, afirma que a primeira sinagoga criada na cidade de Belém foi Eshel Avraham (“de Abraão Tamargueira”), fundada em 1823 ou 1824, enquanto a Sha’ar Hashamaim teria sido fundada em 1826 ou 1828. Independente desta questão sabe-se que a população judaica na região cresceu a ponto de ter sido estabelecido uma necrópole exclusiva para os judeus no ano de 1842.

Cerca de quarenta anos depois, principalmente a partir de 1881 e se prolongando até 1900, ocorreu um grande fluxo de imigração internacional para o Brasil. Mas a imigração judaica no período foi bastante baixa, pois muitos judeus europeus decidiram imigrar para países mais industrializados.

Maurice_de_Hirsch_-_Tableau
Barão Maurice Hirsch Von Gereuth – Fonte – http://www.wikiwand.com/fr/Maurice_de_Hirsch

Mas em razão das condições desfavoráveis na Europa, principalmente diante de perseguições, a partir da década de 1890 os judeus daquele continente começaram a debater o estabelecimento de assentamentos agrícolas no Brasil, tendo o primeiro sido criado em 1902, na área de Itaara, no município de Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul.

Este empreendimento era apoiado pela Jewish Colonization Association (JCA), entidade fundada em setembro de 1891 e presidida pelo Barão Maurice Hirsch Von Gereuth, banqueiro de origem judaico alemã. O objetivo desta entidade era proporcionar aos judeus da Europa Oriental estudos agrícolas básicos, transporte para países sem restrições raciais e religiosas, lotes de terra para cultivo, equipamentos e animais para o início dos trabalhos e escolas para as crianças. Em contrapartida o imigrante se comprometia a reembolsar as suas despesas com a instituição em um prazo estipulado entre 15 a 20 anos, garantindo assim financiamento para novas famílias buscarem uma oportunidade na América.

87442865
Antiga entrada da Fazenda Philippson, no atual município gaúcho de Itaara – Foto de Ubirajara Buddin Cruz – Fonte – http://www.panoramio.com/user/2815684?with_photo_id=87442865

O primeiro assentamento foi denominado Fazenda Philippson, aonde primeiramente 148 pessoas, de 37 famílias, vindas da Bessarábia (região histórica da Europa Oriental, localizada entre os atuais territórios da Moldávia, Ucrânia e Romênia), estavam dispostos a se estabelecer na colônia experimental. Estes receberam lotes de 25 a 30 hectares, equipados com casas de madeira, animais, instrumentos agrícolas e sementes. 

Mas a temporada de colheitas de 1904 falhou devido à inexperiência, fundos insuficientes e mau planejamento.

Em 1911 houve uma nova tentativa, quando a JCA  adquiriu a Fazenda dos Quatro Irmãos Pacheco, para transformá-la em uma colônia judaica, com uma nova leva de imigrantes. Mas a iniciativa falhou novamente.

1436193758-Praca Onze 1930 (2)
Nas quatro primeiras décadas do século XX, judeus do Leste Europeu e negros vindos da Bahia e da região cafeeira do Estado do Rio dividiam ruas, escolas e mesmo casas no bairro Praça Onze, em Porto Alegre. Eles vendiam mercadorias, produziam boa música e boa comida. Ao redor da praça, os judeus criaram sinagogas e escolas. Esta história quase esquecida foi contada pela jornalista e pesquisadora Beatriz Coelho Silva, no livro “Negros e Judeus na Praça Onze. A história que não ficou na memória” (Editora Bookstar) – Fonte – http://www.conib.org.br/blog/noticias/1061/negros_e_judeus_na_praa_onze_rio_de_janeiro_a_histria_que_quer_ficar_na_memria

No ano de 1910, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, diante do crescente número de judeus que vinham viver e negociar na cidade, muitos ex-colonos da Fazenda Philippson, uma escola judaica foi aberta e em 1915 foi criado um jornal em idioma iídiche, o “Di Menshhayt” (Humanidade).

Até a Primeira Guerra Mundial cerca de 7.000 judeus vieram viver no Brasil. Em 1916 a comunidade judaica do Rio de Janeiro formou um comitê de ajuda para as vítimas do conflito.

Pós Holocausto

A maioria das nações latino-americanas era relativamente aberta aos imigrantes judeus entre as décadas de 1910 e 1930. Mas durante a Grande Depressão os líderes políticos e os governos em toda a região exploraram a crise econômica para desenvolver bases populistas.

Novos governantes refletiram esta tendência política, o que incentivou o desenvolvimento de partidos antimigração ou plataformas e campanhas de imprensa fortes contra a imigração.

maxresdefault
Nazismo na Alemanha, terror para os judeus.

Em 1933, após a tomada do poder na Alemanha pelos nazistas, a busca de refúgio na América Latina se intensificou, bem como aumentou a resistência popular e oficial à aceitação dos judeus europeus e outros estrangeiros. Essa situação gerou a criação de leis de imigração cada vez mais rígidas em toda a América Latina no final da década de 1930.

Além disso, a simpatia de alguns latino-americanos de descendência alemã para as teorias raciais da ideologia nazista também contribuiu para o aumento do anti-semitismo. Os governos latino-americanos oficialmente permitiram a entrada de cerca de 84.000 refugiados judeus entre 1933 e 1945, menos de metade do número admitido entre 1918 e 1932.

No caso do Brasil, por exemplo, 96.000 imigrantes judeus foram admitidos no país entre 1918 e 1933, mas apenas 12.000 entre 1934 e 1941. Geralmente o governo brasileiro não cumpria a sua própria legislação de imigração.

Muitos outros judeus entraram nos países latinos através de canais ilegais.

Mesmo com estes problemas é inegável que a América Latina foi um importante destino para muitos sobreviventes do Holocausto.

Nazis singing to encourage a boycott of the allegedly Jewish-founded Woolworths, 1933
1933 – Nazistas cantando para incentivar um boicote a um loja de judeus na Alemanha – Fonte – rarehistoricalphotos.com

Mais de 20.000 judeus imigraram para a região entre 1947-1953. Seu principal destino foi a Argentina, que se tornou o lar de pelo menos 4.800 sobreviventes do Holocausto. Outros se radicaram no Brasil, Paraguai, Uruguai, Panamá, Costa Rica, entre outros países.

Uma nova constituição no Brasil, promulgada em 1945, ajudou a garantir os direitos dos cidadãos judeus, e em 1947, o Brasil lançou o seu voto favorável para a criação de um Estado judeu na recentemente criada ONU.

Novos Tempos no Brasil

Os judeus no Brasil desenvolveram fortes estruturas de apoio e oportunidades econômicas, o que atraiu a imigração judaica polaca e européia oriental. No final dos anos 1950, outra onda de imigração trouxe milhares de judeus norte-africanos. Hoje em dia as comunidades judaicas prosperam tranquilas no Brasil, onde um completo espectro de instituições sociais, religiosas, vários clubes e escolas estão em permanente atuação.

news_13712201643852_20
Ficha Consular de Qualificação para entrada no Brasil do judeu de origem egípcia Armand Toueg Soriano – Fonte – https://judeusarabes.wordpress.com/

Os judeus brasileiros possuem ativo papel na política, nos esportes, no meio acadêmico, no comércio, na indústria e estão bem integrados em todas as esferas da vida brasileira. A maioria dos judeus no Brasil vivem no estado de São Paulo, mas também há comunidades consideráveis no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraná.

No início do século XXI cerca de 500.000 judeus vivem na América Latina, estando concentrados na Argentina, Brasil e México, com o primeiro pais sendo considerado o centro da população judaica nesta parte do mundo. Já o Brasil possui a nona maior comunidade judaica, com mais de 107.000 pessoas em 2010, de acordo com o censo do IBGE. Entretanto a Confederação Israelita do Brasil (CONIB) estima que existam mais de 120.000 judeus no país.

Familia-judeus-marroquinos-morar-Santarem_ACRIMA20120521_0017_15
Família de judeus marroquinos no Brasil – Fonte – http://www.coisasjudaicas.com/2013/01/os-judeus-marroquinos-no-brasil.html

De acordo com um relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos, o anti-semitismo no Brasil continua a ser raro. Mas infelizmente alguns atos e eventos anti-semitas menores ainda ocorrem. Um deles foi durante a Guerra do Líbano de 2006, com o vandalismo de cemitérios judaicos.

O Brasil condena estritamente anti-semitismo e tal ato é uma violação explícita da lei. De acordo com o Código Penal Brasileiro é ilegal escrever, editar, publicar ou vender literatura que promova o anti-semitismo ou o racismo. A lei prevê penas de até cinco anos de prisão por crimes de racismo ou intolerância religiosa e permite aos tribunais multar ou prender de dois a cinco anos quem exibir, distribuir ou transmitir material de anti-semita ou racista.

Também em 1989, o Senado brasileiro aprovou uma lei que proíbe o fabrico, comércio e distribuição de suásticas com o propósito de disseminar o nazismo. Qualquer pessoa que quebra essa lei é susceptível de servir a uma pena de prisão de dois a cinco anos (Lei n. 7.716 de 05 de janeiro de 1989).

2013-608418923-2013-608281910-2013042708929.jpg_20130427.jpg_20130428
GUm mal que ainda persiste no Brasil – Grupo de neonazistas brasileiros presos na 77ª DP, em Icaraí, Niterói, Rio de Janeiro. Este grupo foi acusado em 2013 e aqui eles estão ao lado do material de propaganda nazista apreendido pela polícia: maioria tem tatuagens de suásticas e a cabeça raspada – Foto – Luiz Ackermann – Fonte – http://oglobo.globo.com/rio/estado-tem-pelo-menos-quatro-grupos-neonazistas-8519436

Os resultados de uma pesquisa global sobre os sentimentos anti-semitas, divulgado pela Liga Anti-Difamação, colocou o Brasil entre os países menos anti-semitas no mundo. De acordo com esta pesquisa global realizada entre julho de 2013 e fevereiro de 2014, o Brasil tem o menor “Índice de Anti-semita” (16%) na América Latina e no terceiro mais baixo em todas as Américas, atrás apenas do Canadá (14%) e Estados Unidos (9%).


VEJA MAIS POSTAGENS SOBRE TEMAS LIGADOS A JUDEUS NO TOK DE HISTÓRIA 

https://tokdehistoria.com.br/2015/11/11/lei-pode-dar-cidadania-a-brasileiros-descendentes-de-judeus/

 https://tokdehistoria.com.br/2015/05/08/diaspora-descubra-como-os-judeus-se-espalharam-pelo-mundo/

https://tokdehistoria.com.br/2014/03/23/sobrenomes-de-judeus-expulsos-da-espanha-em-1492-veja-se-o-seu-esta-na-lista/ 

https://tokdehistoria.com.br/2012/04/18/a-expulsao-dos-judeus-de-portugal/

 https://tokdehistoria.com.br/2015/06/08/the-first-synagogue-in-the-americas-itamaraca-1634/


FONTES DESTA POSTAGEM

https://www.ushmm.org/wlc/en/article.php?ModuleId=10007824

http://sefarad.org/lm/010/bresil.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Judeus_em_Portugal

http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/vjw/Brazil.html

http://www.esteditora.com.br/MemoriasdeQuatroIrmaosColonizacaojudaica

http://ensina.rtp.pt/artigo/breve-historia-da-inquisicao-em-portugal/

https://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_Colonization_Association

http://hypescience.com/10-corajosos-diplomatas-da-segunda-guerra-mundial-que-salvaram-a-vida-de-milhares-de-judeus/

http://blog.webjudaica.com.br/santa-maria-rs-sedia-mostra-sobre-imigracao-judaica-rio-grande-sul/

HÁ 100 ANOS, FIM DA SANGRENTA GUERRA DO CONTESTADO

imagem_materia
Grupo de vaqueanos (milícia armada privada) defende madeireira de ataques de revoltosos na Guerra do Contestado. Esta e as demais fotos desta galeria são do fotógrafo sueco Claro Jansson, que imigrou para o Brasil em 1891 e viveu na região na época da guerra Acervo Dorothy Jansson Moretti

Adeodato Ramos havia passado boa parte do gelado inverno catarinense de 1916 embrenhado na mata, fugindo de seus perseguidores. Depois de uma noite de geada, o último líder rebelde da Guerra do Contestado estava exausto. Ao sair da mata e sentar-se à beira da estrada para se aquecer ao sol, foi flagrado por uma patrulha. O “temido facínora”, o “sanguinário chefe dos fanáticos”, o “flagelo de Deus”, como o descreviam os jornais da época, entregou-se sem nem sequer esboçar resistência.

A captura dele, na virada de julho para agosto, marcaria o fim da guerra, que se arrastou por quatro anos e transformou a região do Contestado (área disputada por Santa Catarina e Paraná) no palco da revolta mais sangrenta do século 20 no Brasil.

mapa-Sul

Os rebeldes chegaram a se espalhar por uma área equivalente ao tamanho de Alagoas. Entre 1912 e 1916, eles enfrentaram as forças policiais e militares dos dois estados e do Exército. Os insurgentes eram movidos por motivos que iam do messianismo à luta pela terra. Eram contra o poder público e os coronéis locais. Reagiam ao impacto da construção de uma estrada de ferro, que os expulsou da terra onde viviam.

 

Estima-se que pelo menos 10 mil pessoas pereceram na região do Contestado, tanto nos combates quanto de fome e de doenças como o tifo, que se alastrou pelas “cidades santas” erguidas pelos revoltosos. Entre os mortos, milhares de mulheres e crianças.

A guerra mobilizou metade do efetivo do Exército: mais de 7 mil soldados, nos momentos de luta mais intensa. 

Messianismo 

A indefinição dos limites territoriais entre Santa Catarina e Paraná vinha desde o Império, e até a Argentina pleiteava a posse de áreas dos dois estados. O Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa aos catarinenses em 1904 e reafirmou sua decisão nos anos seguintes, mas a sentença era ignorada pelo governo paranaense. Nesse cenário de conflito, a revolta prosperou.

IMG_20160704_172723773
Curandeiro José Maria

A guerra começou pequena, com um grupo reduzido de sertanejos (moradores desses campos do Sul, chamados de sertão na época) que em 1912 reuniu-se em torno de um curandeiro. José Maria seguia a tradição de outros dois curandeiros que haviam passado por lá anos antes e eram considerados “monges” pelos sertanejos. Ele também fazia profecias: anunciava uma monarquia celestial em que todos viveriam em comunhão, dividindo bens.

Dos seguidores do novo monge, muitos eram posseiros, sitiantes e pequenos lavradores que haviam sido expulsos das terras em que viviam pelo grupo americano responsável pela construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, do megaempresário Percival Farquhart.

Além da concessão, Farquhart ganhou do governo brasileiro as terras situadas às margens da ferrovia, uma vasta faixa de 15 quilômetros de cada lado.

IMG_20160704_172708092

Entroncamento da Brazil Railway, durante a construção de linha férrea entre o porto de São Francisco e São Bento, emSanta Catarina.

Depois da construção da estrada de ferro, a região, coberta de matas de árvores nobres como a araucária, começou a ser desmatada. O empresário ergueu lá a maior madeireira da América do Sul na época e uma companhia colonizadora que, depois do desmate, venderia as terras a imigrantes europeus. Famílias que viviam no local foram expulsas por milícias armadas da empresa, com apoio das autoridades brasileiras.

Primeira batalha

O monge José Maria e os fiéis se instalaram em Taquaruçu, nos arredores de Curitibanos (SC). Temendo que o grupo fosse usado por inimigos políticos, um poderoso coronel da cidade pediu ao governo catarinense tropas para dispersar um “ajuntamento de fanáticos” que supostamente queria proclamar a Monarquia no Sul do Brasil.

Ao saber que a força policial havia sido chamada, os fiéis fugiram para Irani (SC), localidade que na época estava na área do Contestado.

imagem_materia (1)
Barricada de madeira protege serraria dos ataques rebeldes em Três Barras (SC) Acervo Dorothy Jansson Moretti

A chegada do grupo foi vista pelo Paraná como uma investida de Santa Catarina para forçar a posse do território contestado. Em resposta, o Paraná enviou um destacamento policial para expulsar os supostos invasores. Em outubro de 1912, a ação terminou de forma trágica, com 21 mortos. Entre eles, o monge José Maria e o comandante das forças de segurança do Paraná, coronel João Gualberto.

Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado mostram a reação dos senadores ao conflito. Dois dias depois da batalha, a morte do comandante foi anunciada no Plenário do Senado, sediado no Palácio Conde dos Arcos, no Rio.

imagem_materia (10)
Serraria Lumber, maior da América do Sul na época, pertencia ao empresário americano Percival Farquhar Acervo Dorothy Jansson Moretti

O senador paranaense Generoso Marques falou aos colegas sobre a “horda de bandidos e fanáticos” que havia invadido o Paraná e leu um telegrama enviado pelo governador do Paraná, Carlos Cavalcanti, ao Congresso. O governador comunicava que o estado havia pedido ao presidente da República, Hermes da Fonseca, a intervenção de forças federais.

O senador catarinense Abdon Batista apoiou o colega: — Esse acontecimento, ao mesmo tempo em que nos cobre de pesado luto, nos anima e nos incita na obrigação de secundar as forças do estado vizinho para que, de uma vez, sejam extirpados os elementos maus que procuram perturbar nossa vida de trabalho e progresso.

imagem_materia (2)
Trem carregado de toras enfrenta enchente do Rio Negro, em Três Barras (SC)

Ao longo do conflito, os dois estados trocariam acusações de incentivar os revoltosos e até de fornecer-lhes armas.

Exército encantado

Depois da morte do monge, os devotos se dispersaram. O messianismo, porém, permaneceu. No ano seguinte, difundiu-se a crença de que José Maria voltaria do céu, acompanhado do “Exército Encantado de São Sebastião”. Uma criança de 11 anos dizia ver o monge em sonhos pedindo aos fiéis que se preparassem para uma guerra santa. O grupo rebelde voltou a se reunir em Taquaruçu.

Agora não eram apenas os antigos seguidores do monge José Maria que se prepararam para a luta.

Somaram-se a eles descontentes em geral: mais colonos expulsos, fazendeiros que se opunham aos coronéis, tropeiros sem trabalho, desempregados da obra da ferrovia e até ex-combatentes da Revolução Federalista (1893–1895), que tinham experiência com armas e contestavam a República.

— Num determinado momento, torna-se uma guerra de pobres contra ricos — diz o historiador Paulo Pinheiro Machado, autor do livro Lideranças do Contestado. — Uma guerra daqueles que queriam formar suas comunidades autônomas, onde todos viveriam em comunhão de bens, o que era uma negação da própria ordem republicana, da concentração fundiária, do poder dos coronéis da Guarda Nacional e da força da polícia, do Exército e da companhia norte-americana ferroviária sobre eles.

imagem_materia (3)
Milícia armada de um coronel em Canoinhas (SC), em 1914 – Acervo Dorothy Jansson Moretti

Machado contesta a visão de que o fanatismo religioso de sertanejos pobres e ignorantes foi o principal combustível da revolta. O pesquisador sustenta que, paralelamente à crença na guerra santa, os rebelados haviam desenvolvido uma nítida consciência de sua marginalização social e política e de que “lutavam contra o governo, que defendia os interesses dos endinheirados, dos coronéis e dos estrangeiros”.

“Novo Canudos”

Na época, porém, a visão predominante na imprensa, refletida no Congresso Nacional, ignorava os problemas que motivaram a insurreição sertaneja. Em setembro de 1914, o senador Abdon Batista desqualificou no Plenário denúncias do deputado federal Maurício de Lacerda, do Rio de Janeiro, que afirmava que a usurpação de terras era a principal causa do conflito: — É uma lenda. Essa gente não tem terras nessas zonas, o que querem é viver sem trabalhar.

Uma das poucas vozes dissonantes no Congresso, Lacerda disse à imprensa que o Contestado era “um novo Canudos” e defendia os revoltosos, “brasileiros donos de suas terras e que foram usurpados por uma empresa estrangeira”.

IMG_20160704_172635966
Messianismo presente – Na foto vemos Nhá Emídia, famosa curandeira que morava em uma grata em Três Barras, SC. Fanatismo nascido da miséria.

— As vítimas, como era natural, defenderam-se. O que se devia esperar? Que o Estado fosse em socorro daqueles homens, mas verificou-se o contrário — declarou aos jornalistas.

O deputado denunciava que dois influentes políticos paranaenses, “protetores da empresa estrangeira que havia se apoderado à força das terras dos sertanejos”, conseguiram que o governo mandasse forças para “defender os ladrões e matar brasileiros que licitamente defendiam suas propriedades”.

Esses políticos eram o senador Alencar Guimarães (que havia governado o Paraná) e o vice-governador Affonso Camargo.

Guimarães defendeu-se no Plenário do Senado. — Nunca fui homem de negócios, jamais advoguei interesses de qualquer companhia nacional ou estrangeira que colidissem com interesse do Estado.

“Pavor e pena”

Expedições militares tentaram desmobilizar o movimento, atacando Taquaruçu. Depois de várias tentativas, o reduto foi destruído em fevereiro de 1914. A força militar bombardeou a comunidade de longe. Atingiu principalmente mulheres, crianças e idosos, pois a maior parte dos homens havia partido para formar outro reduto, o de Caraguatá.

imagem_materia (4)
Comandante João Gualberto (montado) a caminho da batalha, pouco antes de morrer em combate Acervo Dorothy Jansson Moretti

Foi um massacre. Metralhadoras, canhões e até granadas foram usados no ataque. No livro A Campanha do Contestado, o militar Demerval Peixoto, que participou dos combates como soldado, reproduz o relatório do médico que acompanhou a expedição: “Pernas, braços, cabeças, casas queimadas… Fazia pavor e pena o espetáculo que se desenhava aos olhos. Pavor motivado pelos destroços humanos; pena das mulheres e crianças que jaziam inertes por todos os cantos”.

A revolta da população contra o massacre só fez fortalecer o movimento, e os sertanejos começaram a expandir suas ações. Milhares de novos adeptos se mudavam para os redutos. Novas “cidades santas” surgiam. A maior delas, Santa Maria (que não tem relação com o município gaúcho homônimo), tinha 25 mil pessoas.

Ao mesmo tempo, o movimento se militarizou, com líderes “de briga” aliados aos religiosos. No inverno de 1914, os sertanejos começaram a saquear fazendas, roubando gado e comida e arregimentando pessoal (até sob ameaça) para reforçar os redutos. Passaram a atacar e ocupar cidades. Nos ataques, estações de trem e repartições públicas eram queimadas.

Com apoio dos governadores de Santa Catarina e Paraná, em 1914 o governo federal decidiu empreender uma grande operação militar para aniquilar a insurreição. Sob o comando do general Setembrino de Carvalho, 6 mil soldados rumaram para o sul do país. Além deles, 2 mil civis (chamados vaqueanos), a maioria integrantes das guardas privadas armadas mantidas pelos coronéis da região, foram contratados para auxiliar o Exército. A ordem do governo era clara: “acabar com os fanáticos”, como contou o próprio general Setembrino em suas memórias.

imagem_materia (5)
Artilharia das forças paranaenses que seria usada nos ataques contra os sertanejos Acervo Dorothy Jansson Moretti

Quando o cerco aos redutos se apertou, começou a faltar comida, remédios e munição para os rebeldes. Sobreviventes relataram que, no final, comeram até couro de cintos e arreios para não morrer de fome. Para evitar deserções, alguns líderes, como Adeodato, impuseram um regime de terror nos redutos, executando os suspeitos de traição.

O reduto de Santa Maria foi destruído na Páscoa de 1915. Em telegrama a Setembrino, o capitão responsável pelo ataque detalha: “Tomei e arrasei 13 redutos com enormes sacrifícios do meu heroico destacamento. Matamos em combate perto de 600 jagunços, não contando o grande número de feridos. Arrasei perto de 5 mil casas e 10 igrejas”.

Fotos produzidas por Terceiros
Guerra do Contestado: forças legais acampadas às margens do Iguaçu em Porto União da Vitória (PR).

Os últimos combates ocorreram em dezembro de 1915, e os rebelados, derrotados, se dispersaram. Houve rendições em massa das famílias sertanejas.

Os vaqueanos começaram então uma caçada aos últimos líderes rebeldes. Muitos deles foram mortos em execuções sumárias, mesmo depois de rendidos. Alguns vaqueanos ganharam fama por retirar sertanejos da cadeia para executá-los.

Acordo de limites

Com a captura de Adeodato Ramos, o último e mais temido líder dos rebelados, a guerra foi encerrada de vez, naquele inverno de 1916. Logo em seguida, em outubro, finalmente veio a assinatura do acordo de limites entre Santa Catarina e Paraná. Pressionados pelo presidente Wenceslau Braz, cada um dos dois estados teve que ceder um pouco. A partilha, porém, foi vista como favorável aos catarinenses, que ficaram com 28 mil dos 48 mil quilômetros quadrados da área contestada.

imagem_materia (6)
Em janeiro de 1915, um dos chefes rebeldes, Bonifácio Papudo, se rende às forças policiais. O militar que conversa com o rebelde era o tenente Castelo Branco. Acervo Dorothy Jansson Moretti

Na assinatura do acordo, no Palácio do Catete, no Rio, o governador de Santa Catarina, Felipe Schmidt, comemorou a paz, encerrando um “passado amargo” que fazia os dois estados se olharem com desconfiança, como “dois povos estranhos que aguardassem, de arma em punho, a hora da peleja”.

O governador do Paraná, Affonso Camargo, também exaltou a paz, mas deixou claro o ressentimento com um desfecho que considerava injusto. Ele justificou sua decisão de assinar o acordo mesmo assim citando a necessidade urgente de encerrar uma “luta fratricida sem precedentes”: — Ali caíram sem vida oficiais do Exército, bravos soldados das forças nacionais e estaduais e milhares de sertanejos, na sua maioria laboriosos, em uma confusão desumana que dolorosamente impressionou todo o país.

Ao citar os sertanejos “em sua maioria laboriosos”, o governador reconhecia que o movimento, hoje visto como uma das maiores revoltas camponesas do Brasil, era mais que uma combinação de fanatismo e banditismo.

Essa consciência se ampliaria a partir dos anos 1970, explica o historiador Paulo Pinheiro Machado. Com a redemocratização do país, criou-se um ambiente favorável para a retomada da memória e dos estudos sobre a Guerra do Contestado.

imagem_materia (7)
Família de sertanejos se rende às forças oficiais em Canoinhas (SC), em 1915 Acervo Dorothy Jansson Moretti

No Senado, essa releitura histórica ficou patente numa sessão especial realizada em agosto de 2009 para lembrar a guerra. No Plenário, os senadores ressaltaram o caráter de revolta social do movimento, as injustiças cometidas contra a população pobre do Contestado e a ausência do Estado.

“Quando o Estado falta, não cumpre com seu dever, se omite, o resultado é este: as pessoas reagem”, disse o senador Raimundo Colombo, hoje governador de Santa Catarina.

O então senador Flavio Arns, do Paraná, afirmou que o governo desconsiderou uma população pobre para privilegiar empresários e fazendeiros.

Fotos produzidas por Terceiros
Guerra do Contestado – Sertanejos após a rendição. Canoinhas (SC), janeiro de 1915

Na época da guerra, uma rara visão lúcida do conflito veio justamente de um comandante do Exército, o jovem capitão Mattos Costa. Idealista, ele defendia uma solução pacífica e morreu em combate, em 1914. Ficou registrada em relatos militares sua concepção da guerra: “A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança. A questão do Contestado se desfaz com um pouco de instrução e o suficiente de justiça, como um duplo produto que ela é da violência que revolta e da ignorância que não sabe outro meio de defender o seu direito”.

Fotos produzidas por Terceiros
Guerra do Contestado: Adeodato Ramos, o último líder rebelde (entre os dois policiais), é preso, em agosto de 1916.

Último líder dos rebeldes ganhou fama de “demônio”

A Guerra do Contestado começou com um líder considerado santo — o monge José Maria — e terminou com outro tido como o próprio diabo — Adeodato Ramos.

“O demônio está encarcerado”, anunciou em agosto de 1916 o jornal O Imparcial, de Canoinhas (SC), referindo-se à captura de Adeodato, que tinha fama de assassino e era temido pelos próprios companheiros.

O repórter do jornal O Estado, de Florianópolis, porém, se surpreendeu ao entrevistar Adeodato na prisão.

imagem_materia (8)
General Setembrino de Carvalho (de quepe branco) em estação em União da Vitória (PR)

“Nós, que esperávamos ver o semblante perverso de um bandido, cujos traços fisionômicos estivessem a denotar sua filiação entre os degenerados do crime, vimos, pelo contrário, um mancebo em todo o vigor da juventude, de uma compleição física admirável, esbelto, olhos de azeviche [pretos], dentes claros, perfeitos e regulares, e ombros largos”, escreveu, destacando a postura recatada do “célebre bandoleiro”.

O jornal O Dia, de Florianópolis, relatou que ele respondia aos policiais de forma serena e “tinha o olhar suave”.

Adeodato era uma figura controvertida. “É evidente que ele cometeu muitas atrocidades nos redutos, mas não era muito diferente de outros líderes rebeldes”, escreveu o historiador Paulo Pinheiro Machado, ressaltando que houve uma “demonização” do último líder rebelde, alimentada pelos próprios sertanejos.

imagem_materia (9)
Milícia armada (vaqueanos) protege serraria de ataques, em Três Barras (SC)

Conta-se que, no julgamento, após a ouvir a sentença de 30 anos de prisão, o réu declamou no tribunal versos irônicos:

“Para tirar o mal do mundo / Tinha feito uma jura / Ajudei nosso governo / A quem amo por ternura / Acabei com dez mil pobres / Que livrei da escravatura / Liquidei todos os famintos / E os doentes sem mais cura / Quem é pobre neste mundo / Só merece sepultura.”

Adeodato foi morto em 1923, numa suposta tentativa de fuga da prisão.

Autora – Tatiana Beltrão
Fonte – AGÊNCIA SENADOhttp://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/07/01/ha-100-anos-o-fim-da-sangrenta-guerra-do-contestado

A VERDADE SOBRE CHE

d3va.deviantart.comartChe-65685962
Fonte – d3va.deviantart.comartChe-65685962

Se Che Guevara fosse uma marca, estaria entre as mais valiosas do mundo até hoje, meio século depois da Revolução Cubana. A imagem dele continua em todo lugar – tatuagens, camisetas, na capa da SUPER… Por quê?

Como um guerrilheiro latino-americano se transformou em El Che, a lenda?

Quem é o homem de verdade por trás do mito?

É o que você vai ver aqui.

Ernesto e seu fim

Mas antes, vamos fazer uma escala onde a lenda começou a tomar forma: a Sierra Maestra, quartel-general dos rebeldes cubanos em 1958. Lá, Fidel, Che outros líderes resistiram a todo tipo de ataque. E foi de onde Guevara saiu para comandar uma batalha cujo resultado mudaria a história de Cuba. E marcaria a da humanidade.

che_guevara_by_dannycg
Fonte – http://d3va.deviantart.com

O tenente boliviano Mario Terán empunhou seu fuzil semiautomático. Tinha diante de si o guerrilheiro Ernesto Guevara de la Serna, que havia sido capturado no dia anterior e agora esperava pela morte numa escola de La Higuera, sudeste da Bolívia. Terán tinha fama de durão, mas não conseguiu puxar o gatilho. Ficou paralisado ao ver o homem esquálido, o cabelo grudado, as roupas em trapos e os pés cobertos de lama seca. Estava ferido, mas intimidava. “Achei que ele se lançaria sobre mim. E, quando me olhou fixamente, fiquei tonto”, disse depois. Mas Guevara o encorajou: “Fique calmo e aponte bem! Você vai matar um homem”. Terán fechou os olhos e lançou a primeira rajada. Ernesto caiu com as pernas destroçadas, jorrando sangue. Terán disparou outra leva de balas. Uma delas perfurou o coração, fazendo-o parar com 39 anos. Era 9 de outubro de 1967. Data do nascimento da divindade Che Guevara uma figura lapidada pelo próprio Ernesto.

O médico errante

Ele nasceu como mais um garoto de classe média. Os pais descendiam de nobres europeus e latifundiários argentinos, mas não herdaram muito mais que os sobrenomes. Quando Celia de la Serna deu à luz seu primogênito em Rosário, em 1928, seu marido, Ernesto Guevara Lynch, investia numa plantação de erva-mate na província vizinha de Misiones.

adelanto-che-1-izqda
Celia de la Serna e seu primogênito Ernesto, em Rosário, Argentina, em 1928 – Fonte – http://www.revistaanfibia.com/cronica/segun-su-madre-fue-un-alumno-normal/

Lynch era um empresário mambembe: uma hora plantava mate, na outra construía iates, e aos poucos foi torrando as posses da família.

Para complicar, o filho tinha saúde precária. “A asma furiosa de Ernestito determinou grande parte de nossa vida. A cada dia ficávamos mais à mercê dessa maldita doença”, disse Lynch em 1967. O garoto passava dias na cama, sem poder ir à escola, e acabou aprendendo a ler com a mãe.

01-Che
Outra imagem de Ernesto e sua mãe – Fonte – http://aristeguinoticias.com

Nos anos 40, os negócios da família iam mal, e os Guevara foram tentar a vida na cidade de Córdoba. Lá, as garotas se encantavam com o bonitão tímido de ombros largos, que sabia francês, jogava rúgbi para superar a asma e se fantasiava de Gandhi no Carnaval. Ernesto era um galã diferente: enquanto os amigos caprichavam na roupinha engomada, ele andava de blusa larga e capa de chuva, declamando poesias e orgulhoso de não tomar banho o que lhe valeu o apelido de Chancho (Porco). Mas, vai entender era dele que as meninas gostavam mais. “Todas nós estávamos apaixonadas por Ernesto”, disse depois Miriam Urrutia, colega dele naqueles tempos.

03-Che
A familia Guevara completa em Mar del Plata. O futuro Che é o primeiro a esquerda – Fonte – http://aristeguinoticias.com

Mas quem inaugurou oficialmente o rapaz, na época com 14, 15 anos, não foi nenhuma delas, e sim a empregada de um amigo, conhecida como La Negra Cabrera. No dia da primeira vez, os amigos espreitaram pelo buraco da fechadura e viram que Ernesto interrompia o ato, de tempos em tempos, para aliviar ataques de asma um espetáculo que virou motivo de piada entre a turma. Mas não para a senhorita Cabrera, que continuou encontrando Ernesto por anos.

No curso de medicina, em Buenos Aires, ele chamou a atenção dos colegas por outro motivo: a falta de ativismo político. “O país vivia um golpe militar atrás do outro, mas Ernesto se recusava a protestar nas ruas. Apesar da curiosidade pelo socialismo, ele até então não demonstrava qualquer inclinação por se afiliar à esquerda””, diz o jornalista americano Jon Lee Anderson, autor do livro Che Guevara – Uma Biografia. O que fascinava mesmo o rapaz eram os livros e as viagens. Lia de tudo de Freud a Aldous Huxley, filosofia grega e indiana, resumindo as ideias em seu Dicionário Filosófico. E gostava de enfiar o pé na estrada: antes de terminar a faculdade, acoplou um motor numa bicicleta e rodou pelo seu país.

05-Che
Ernesto Guevara de la Serna no curso de medicina na Universidade de Buenos Aires – Fonte – http://aristeguinoticias.com

Assim Ernesto cresceu na Argentina como um cara qualquer. Che ainda estava adormecido lá dentro. E só começaria a acordar quando ele saiu de moto pela América do Sul com o amigo Alberto Granado. Nessas andanças, pediu comida e abrigo em beira de estrada, atravessou o rio Amazonas de balsa e estreou como médico numa colônia de leprosos no Peru. Enquanto isso, afiava suas leituras de Karl Marx e de filósofos socialistas, como o peruano José Mariátegui e a polonesa Rosa Luxemburgo. E, à medida que se distanciava da Argentina branca e metropolitana, descobria a outra cara do continente.

“-Quando fizemos a viagem, tudo o que tínhamos lido se multiplicou por 100”, recordaria Granado anos depois.Uma coisa é ler sobre a miséria e a perseguição política; outra é ver um casal passando fome e frio.”

04-Che
Alberto Granado e Ernesto Guevara na sua primeira viagem pela América Latina (1951-1952) – Fonte – http://aristeguinoticias.com

Granado voltou à vida de médico, mas Ernesto seguiu sua jornada rumo à América Central. A essa altura, já se dizia discípulo de San Karl (como chamava Marx) e queria viver na Guatemala, onde o presidente Jacobo Arbenz iniciava uma reforma agrária. Quando chegou lá, com 25 anos e US$ 3 no bolso, ele conheceu a pessoa que mudaria sua vida: a peruana Hilda Gadea, líder exilada da Aliança Popular Revolucionária Americana. Hilda se apaixonou por ele, mas nunca foi correspondida à altura. Como o próprio Che confessou anos depois a um amigo russo, os dois só se casaram em 1955 porque ela engravidou. A relação entre os dois tinha um caráter mais fraterno e ideológico que romântico ou erótico, diz o cientista político mexicano Jorge Castañeda, autor da biografia Che Guevara.

Che_Granados
Alberto Granados e Che durante viagem pela América Latina. – Fonte – http://www.sintesecubana.com.br

O mais importante, porém, é que Hilda o apresentou a Nico López e outros exilados cubanos que tinham atacado o Quartel de Moncada, em Cuba, na esperança de deflagrar uma rebelião contra o ditador Fulgencio Batista. Foram eles que o apelidaram de Che (tirando sarro da coisa de os argentinos chamarem os outros de chê, como os gaúchos fazem). Os cubanos lhe contaram sobre as proezas dos irmãos Fidel e Raúl Castro, líderes do movimento, presos após o assalto. “Pela primeira vez, Ernesto se identificava abertamente com uma causa política”, diz Jon. Boa ou má, ele tinha escolhido a revolução esquerdista da Guatemala.”

che-hilda
Che com sua primeira mulher, Hilda Gadea – Fonte – http://www.latinitude.com.br

Os EUA não estavam dispostos a tolerar um regime socialista em seu quintal. Assim, quando Arbenz expropriou os latifúndios da empresa americana United Fruit Company, a resposta da CIA não tardou: pilotos mercenários bombardearam a capital para forçar a renúncia do presidente. Ernesto ficou excitado sob o fogo. “Me senti envergonhado por me divertir como um macaco”, confessou à mãe numa carta, dizendo que Arbenz era corajoso e morreria defendendo o país.

E aí veio a mudança: até então um espectador anônimo, Ernesto resolveu partir para a ação ao ver a inércia do governo. “Pegou lápis e papel e começou a traçar um sistema defensivo, com batalhões de operários”, diz o jornalista argentino Hugo Gambini na biografia El Che Guevara. Ele acreditava que a revolução só sobreviveria se armasse o povo. E saiu por bares e alojamentos estudantis chamando as pessoas a pegar em armas. Não funcionou.

Che então se juntou a uma milícia armada da juventude comunista, esperando chegar à frente de batalha. Depois foi trabalhar em um hospital onde mais uma vez se ofereceu para combater. Resultado: ficou conhecido como vermelho, acabou expulso do emprego e precisou viver escondido na casa de conhecidos. Sua vida corria perigo. O diplomata argentino Nicácio Sánchez advertiu que parasse de defender a luta armada, pois estava na mira de agentes americanos”, diz Gambini. Além do mais, Arbenz tinha renunciado e não havia mais nada a fazer. Essa frustração marcou Ernesto.

Guatemalan-junta_1954
Junta militar que tomou o poder na Guatemala em 1954 – Fonte – http://www.lawyersgunsmoneyblog.com

Por uns anos, ele deu fim a sua busca filosófica. Declarou que os EUA eram inimigos da humanidade e se transformou num jovem mais dogmático e doutrinário, afirma Jon. Isso lhe deu forças para se converter em Che, deixando para trás o Ernesto Guevara. A embaixada argentina ofereceu repatriá-lo, mas ainda não era hora de voltar para casa. Sua bússola apontava para o México, o santuário dos exilados políticos da América Latina. Lá ele conheceria Fidel Castro e descobriria o caminho rumo à glória e à morte.

Guerrilheiro

O encontro aconteceu no apartamento da cubana Maria Antonia González, uma espécie de quartel-general dos revolucionários. Depois de 22 meses preso em Cuba, Fidel acabara de chegar à capital mexicana para reorganizar seu grupo guerrilheiro o Movimento 26 de Julho (de 1953, data do assalto ao Moncada) e arrecadar fundos para a compra de armas com outros cubanos que queriam derrubar Batista.

ernesto-che-guevara-14a
Na prisão mexicana, incluindo Fidel e Che – Fonte – http://www.cubadebate.cu

Quando convidou o excitado argentino a participar da expedição, ele topou na hora. Seria o médico da tropa.

Na verdade, a decisão final não foi tomada naquela noite. Em cartas à família, ele ainda expressava seu desejo de continuar viajando e, quem sabe, estudar em Paris. Mas tudo isso ficou para trás ante o novo projeto. “A paixão de Fidel por Cuba e as idéias revolucionárias de Guevara se uniram como a chama de uma centelha”, disse Lucila Velazquez, ex-namorada de Fidel.

11-Che
Em pleno debate. Ernesto Guevara e Fidel Castro – Fonte – http://aristeguinoticias.com

Olhando bem, Che e Fidel pareciam dois opostos. Um era médico, o outro, advogado. Um vinha de uma família aristocrata falida, o outro era filho de um proprietário de terras emergente. Che nunca tinha feito militância, ao passo que Fidel, apenas dois anos mais velho, já despontava como líder do Partido Ortodoxo (antigovernista) em Cuba. Guevara era um marxista convicto, enquanto Fidel ainda era contra o comunismo. Por outro lado, havia semelhanças: ambos tinham sido mimados pela família, compartilhavam um inimigo comum (os EUA) e queriam fazer revoluções.

O treinamento do M-26-7 ficou a cargo do cubano Alberto Bayo, antigo oficial do exército republicano espanhol. Durante três meses, Bayo ensinou-lhes os segredos da guerrilha na fazenda Santa Rosa, que reproduzia as condições geográficas da Sierra Maestra, em Cuba.

ernesto-che-guevara-12
A prática de tiro ao alvo em 1956. A partir do verão de 1955, Ernesto se juntou ao destacamento de cubanos no México, em preparação para a guerra revolucionária em Cuba contra a brutal ditadura de Fulgencio Batista – Fonte – http://www.cubadebate.cu

Eles aprenderam  atirar com pistola, rifle e metralhadora, fabricar bombas, explodir barricadas, e se camuflar na selva. Apesar da asma, Che foi o melhor aluno do grupo um belo estímulo para quem havia sido dispensado do Exército argentino. Assim, no final daquele ano o grupo zarpou para Cuba a bordo do iate Granma (do inglês grandmother, avó). Pequeno e instável, o barco não deveria levar mais de 20 guerrilheiros. Acabou suportando 82, além de comida e um arsenal que incluía dois canhões antitanque, 35 rifles, 55 fuzis e 40 metralhadoras. Arriba la revolución!

A semente do mito

A missão começou mal. Depois de 7 dias vomitando no iate, os revolucionários foram descobertos ao se aproximar da costa cubana. Nos 3 dias seguintes, caminharam em pântanos tentando despistar os aviões de Batista, comendo só cana-de-açúcar. Finalmente alcançaram o lugarejo de Alegria del Pio, onde foram surpreendidos pelo fogo inimigo. Che se viu num dilema. “Tinha diante de mim uma caixa de remédios e outra de balas, e as duas eram pesadas demais para que as carregasse juntas. Apanhei a caixa de balas”, diz ele no livro Nossa Luta em Sierra Maestra.

Granma1
Granma, iate que fez a travessia do México para Cuba – http://www.mccrow.org.uk

Não se sabe o número exato de sobreviventes do Granma. Dos 82 homens, Jon Lee Anderson estima que 22 se reagruparam na sierra (os relatos oficiais falam em 12, numa alusão aos apóstolos). Certo é que o grupo aproveitou o isolamento na mata fechada para se recompor aos poucos. Atraiu novos combatentes e recebeu apoio dos camponeses, que ofereciam suas choças como esconderijo e seus cavalos para matar a fome. Não só eles: salvo a alta burguesia, o país inteiro estava unido contra Batista. A Revolução Cubana não foi feita apenas pelo M-26-7 mas também por outras forças, como o Partido Socialista Popular (comunista) e os social-democratas, que tinham em comum a rejeição ao ditador.

O sujeito estava praticamente sozinho: o exército de Batista se recusava a sair dos quartéis. E, quando saía, não queria combater. Sofria de desânimo generalizado e já não contava com o apoio dos EUA.

ernesto-che-guevara-15
Guerrilheiros cubanos – Fonte – http://www.cubadebate.cu

Mesmo assim, eram 10 mil soldados contra algumas centenas de guerrilheiros que tinham de se virar para arranjar armas. Um dos lugares para consegui-las era o quartel El Uvero. E foi lá, num ataque para tomar o quartel em maio de 1957, que o mito de Che germinou entre os guerrilheiros. Ernesto se destacou no combate e no cuidado de feridos dos dois lados, e Fidel o promoveu a comandante da 2a coluna do Exército Rebelde. Só Castro tinha um posto tão alto. Che montou sua base de operações em El Hombrito, onde improvisou um hospital, deu aulas de alfabetização a camponeses, fabricou granadas e editou o jornal El Cubano Libre. Além do trabalho na retaguarda, ele lutou na linha de frente e se tornou especialista em destruir pontes para bloquear o acesso de guarnições inimigas. Os jornalistas ficaram fascinados com o comunista radical que se tornava o emblema da revolução.

As mulheres também. Para variar, se derretiam por ele. Che não costumava se aproveitar disso e evitava que seus homens frequentassem bordéis. Mas mandou a ética às favas com Zoila Rodríguez, uma bela mulata de 18 anos. Depois, uma companheira de armas, Aleida Marsh, viraria também companheira de lençol.

07-Che-OK
Feliz ano novo! Os guerrilheiros e a chegada de 1958 em plena selva. Havía pouco mais de um ano que iniciaram a sua luta e exatamente um ano depois conseguiriam seu triunfo – Fonte – http://aristeguinoticias.com

De volta ao front: além de Che, Raúl Castro, Camilo Cienfuegos e Juan Almeida ganharam postos de comando, e assim os rebeldes foram ocupando as montanhas em direção às cidades. No fim de 1958, as tropas do governo estavam cercadas. Logo a cidade de Santa Clara cairia. E viria o desfile de tanques em Havana.

Herói fora, vilão em casa

Em 1959, a revolução finalmente triunfou o problema era o que fazer com ela. Algumas centenas de homens foram fuzilados na fortaleza de La Cabaña muitos sem ter nada a ver com a história. Che incumbiu Miguel Angel Duque de Estrada de dirigir a Comissão de Depuração dos suspeitos de crimes de guerra, embora a maioria dos detidos não passasse de chivatos (delatores). Nem sabíamos o nome de todos os presos. Mas tínhamos um trabalho a fazer, disse Estrada. É nesse ponto que os historiadores se dividem. Alguns acusam Che de ser um carniceiro no cargo de promotor supremo de La Cabaña. Outros dizem que ele perdoou quantos pôde.

FusilamientoMultiple
Fuzilamento executado por guerrilheiros cubanos em 1959 – Fonte – http://cubanexilequarter.blogspot.com.br

O certo é que, com Hilda Gadea, Ernesto não foi exatamente sensível. Enquanto ele dava seus tiros, sua mulher tinha ficado no continente cuidando da filha do casal. Aí, logo que a guerra acabou, Hilda correu para Cuba. Mas Che não tinha boas notícias: avisou que queria o divórcio. Estava pronto para casar com Aleida, que lhe daria mais quatro filhos.

Quando a poeira assentou, Ernesto virou presidente do Banco Nacional de Cuba – o Banco do Brasil de lá. Quem diria: o argentino errante agora era banqueiro. Fidel sabia que Che entendia pouco de economia, mas não confiava em nenhum economista para o cargo. Erro: Ernesto reduziu o salário dos funcionários, que eram considerados honestos e competentes. Muitos pediram demissão, mas ele não ligou, dizendo que estivadores e camponeses dariam conta do trabalho. Depois percebeu na prática que não, eles não tinham como, e mudou de ideia. Mesmo com fiascos desse tipo no currículo, acabou nomeado ministro da Indústria  sabendo que também não aguentaria muito tempo.Ficaremos cinco anos aqui e depois vamos embora fazer uma guerrilha, disse a um assessor.

5077689w-640x640x80
Che Guevara como ministro da Industria de Cuba – Fonte – cheguevara.forumfree.it

Vocação à parte, essa foi a época de ouro de Che na ilha. Sua popularidade bateu no auge com o combate da baía dos Porcos, onde seus soldados frustraram um plano da Casa Branca para derrubar Fidel. Publicou livros como Guerra de Guerrilhas e fez de seu gabinete uma passarela de intelectuais. Por ali desfilou gente como o escritor argentino Ernesto Sabato e o filósofo francês Jean-Paul Sartre, que mais tarde o exaltaria como o ser humano mais completo da nossa época. A imagem de Che começava a ficar maior que a da revolução: ele agora era o guerreiro ilustrado e francófono, o estrategista bonito e cobiçado pelas mulheres. Em suma, um popstar adulado por gente tão distante quanto o político mexicano Lázaro Cárdenas e o ex-presidente Jânio Quadros que o condecorou com a Ordem do Cruzeiro do Sul.

46abca9eb74d39fa4761888d504fa6b3 (1)
O presidente brasileiro Jânio Quadros condecora Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Capa da extinta revista “Manchete” – Veja em – https://br.pinterest.com/pin/336714509614116260/

Mas ele logo se sentiu sozinho na ilha. Fez inimigos dentro do partido, e sua relação com Fidel se complicou. Che era um sujeito incômodo. Não se calava nunca, diz o historiador argentino Felipe Pigna. Já não aceitava a ingerência da URSS em Cuba, cada vez mais forte depois do bloqueio americano e da expulsão da Organização dos Estados Americanos.”

Enquanto as divergências aumentavam, o mito de Che ganhava alcance mundial. Suas viagens eram acompanhadas de multidões gritando “Cuba sim, ianques não!”, como aconteceu na cúpula da OEA em Punta del Este, no Uruguai. No discurso que fez na sede da ONU, em 1964, ele deixou claro sua opção pelos países pobres não alinhados; e, logo depois, na Argélia, acusou a URSS de ser cúmplice do imperialismo. Claro que isso enfureceu comunistas dentro e fora do Kremlin.

Simone-de-Beauvoir-Jean-Paul-Sartre-e-Ernesto-‘Che’-Guevara-em-1960-em-Cuba
Che com filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em Cuba – Fonte – spotniks.com

De volta a Cuba, Che percebeu que não estava contra Fidel, mas tampouco com ele. Nem casamento nem divórcio, definiu. E então os dois chegaram a um acordo. Che queria continuar fazendo a revolução em outros países. Não nasci para ser ministro nem avô, já tinha dito. E Fidel deu sinal verde.

Tragédia anunciada

O Congo parecia o destino ideal: no coração da África, ele serviria para irradiar a guerrilha por todo o continente. Mas, quando chegou lá, em 1965, a principal insurreição já havia terminado. Sua única participação num combate acabou em derrota. Foi tudo a história de um fracasso, escreveu Che em seu diário. Pudera: ele quis repetir na África a epopeia da Sierra Maestra, mas acabou num país 20 vezes maior que Cuba e ceifado por lutas tribais.

Teve que dar ordens a comandantes que não queriam ir à frente de batalha e soldados que se recusavam a carregar suprimentos, dizendo “Mimi hapana motocar” (Não sou caminhão). Com o tempo, diziam “Mimi hapana cuban” (Não sou cubano). Che reconheceu: chegou lá sem ser convidado. Mas não desistiu. Saiu da África disposto a realizar seu sonho: fazer a revolução na Argentina. O problema é que nem a URSS e nem os Partidos Comunistas queriam saber de luta armada na América Latina. Os cubanos buscaram então uma alternativa que não resultasse em novo fracasso. E ainda precisavam convencer Che de que o país escolhido seria apenas uma escala rumo a sua terra natal. Acabaram optando pela Bolívia, cujo Partido Comunista manifestou menos rechaço à luta armada que os demais.

che-and-his-crew-bolivia
Che e seus companheiros na selva boliviana – Fonte – adst.org

Che chegou à Bolívia incógnito, disfarçado como um homem de 60 anos e com passaporte falso arranjado pelo serviço de inteligência cubano. Sofisticado, mas a operação foi outro tiro na água. Os índios bolivianos não se uniram aos guerrilheiros. Não entendiam o idioma nem objetivo deles naquelas terras. Ao contrário da Sierra Maestra, na Bolívia a guerrilha acabou denunciada pelos próprios camponeses. Eles sentiram que viera uma invasão, diz Pigna.

tche
Che Guevara capturado na Bolívia – Fonte – http://www.profjuliososa.com.br

Bastaram 11 meses para que as tropas de Che fossem dizimadas. Um dos poucos sobreviventes, Dariel Alarcón Ramirez o comandante Benigno, acusou Fidel de ter abandonado Che à própria sorte. Assim, Castro teria se livrado do homem que o ofuscava em Cuba. Outros discordam, dizendo que Che nunca pretendeu suplantar Fidel. É provável que Fidel tenha decidido que um Che mártir na Bolívia serviria mais à revolução do que um Che vivo, abatido e melancólico em Havana. O primeiro permitiria a criação de um mito. O outro acarretaria enormes discussões e divergências, todas insolúveis, diz Castañeda.

g1-che-foto-divulgacao
Corpo de Che Guevara exibido por militares bolivianos – Fonte – g1.globo.com

Julgar Fidel incapaz de um cálculo de tamanha frieza e cinismo seria desconhecer os meios que garantiram sua permanência no poder por mais de 40 anos. Segundo Castañeda, Fidel não enviou o Che à morte. Nem o traiu. Nem o sacrificou. Só deixou que a história seguisse seu curso, com plena consciência de qual seria o desfecho.

Jon Lee e Pigna também concordam que Che se autocondenou à morte quando partiu para a Bolívia. Suas chances de vitória eram mínimas. O próprio Benigno notou que o Che seguiu uma estratégia irracional em seus últimos dias, quando a asma sugava suas últimas forças. Precisava-se de remédios, por que não ordenou que seus homens assaltassem uma farmácia? Na opinião de Benigno, Che pretendia se sacrificar num último e glorioso combate. Ele aconteceu na manhã de 8 de outubro, quando Che e seus homens se viram cercados por militares bolivianos na Quebrada del Churro, uma garganta cheia de arbustos.

che-guevara
Fonte – http://www.celebritymorgue.com

O argentino disparou sua carabina até que ela levou um tiro no cano e ficou inutilizada. Uma segunda bala perfurou sua perna esquerda. Ernesto ainda tentou fugir pela margem da garganta, mas deu de cara com a arma do sargento Bernardino Huanca, que o ouviu dizer: Não atire. Valho para você mais vivo do que morto”.

Alvoroçados com a captura, os militares levaram o guerrilheiro para uma escola de La Higuera. No dia seguinte, o tenente Mario Terán se ofereceu para dar cabo dele. Ansioso por vingar a morte de três companheiros, não teve dúvidas: escolheu um fuzil semiautomático. Matou o guerrilheiro Ernesto. Tirou a vida do argentino aventureiro, obstinado e devorador de livros. Só que deu à luz algo bem maior – um mito ancestral, cuja história se repete desde o início dos tempos: o mito do herói para quem os ideais são algo acima da vida e da morte. O mito do santo que se sacrifica para salvar a humanidade. O semideus. O Cristo. Deu à luz Che Guevara.

d3va.deviantart.com2
Fonte – d3va.deviantart.com

Che Guevara nem Combate

Depois de conquistar adeptos na mata, o médico Ernesto Guevara parte para a batalha que selaria a vitória rebelde. E se torna Che, o mito.

Depois de virar mito, ele chegou ainda mais alto: tornou-se uma divindade. Como um garoto argentino de classe média e com espírito aventureiro conseguiu tanto mesmo tendo feito um monte de besteiras (e de atrocidades).

1. Recrutamento
Estamos no ano de 1958. Gente do país todo peregrinava até a Sierra Maestra, aqui, para aderir à guerrilha. Tudo começara dois anos antes com cerca de 20 homens. Agora já eram centenas.

2. Treino
Mesmo assim era pouco em comparação com os 10 mil homens do Exército cubano. Então os treinos eram intensivos, com bastante prática de tiro ao alvo, para que cada rebelde pudesse valer por soldados.

3. De grão em grão
Os rebeldes esperavam ser atacados. Na selva, é bem mais fácil matar se você está na defensiva, já que quem avança tem de fazer isso em fila indiana. Atiradores nas árvores tinham a missão de alvejá-los. E campos minados também ajudavam.

4. Vira-casaca
O exército de Batista era grande, mas desmotivado (quase todo cidadão cubano odiava o ditador). Então muitos soldados viraram a casaca e reforçaram a guerrilha.

5. Assaltos
Fidel e seus “generais”, Raúl Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos, sistematicamente lideravam ataques a comboios do Exército. Objetivo: cortar o suprimento de armas aos quartéis e reforçar o arsenal da guerrilha.

6. Guerra urbana
Fidel decidiu atacar: mandou Cienfuegos tomar a cidade de Yaguajay e Che dominar Santa Clara. Camponeses se juntaram aos guerrilheiros no caminho. Cienfuegos saiu com 60 homens e chegou com 450, mais do que o número de soldados em Yaguajay. Ernesto juntou 300. Só que 3,5 mil soldados esperavam por ele aqui, em Santa Clara.

7. Jogada de mestre
O comando do Exército tinha mandado um trem com 400 soldados, 600 rifles, bazucas e canhões para reforçar Santa Clara. Che, esperto, ficou sabendo e destruiu os trilhos. O trem descarrilhou e os rebeldes acabaram armados até os dentes.

8. Franco-atiradores
Fortalecidos pelas armas do trem, os homens de Che usaram táticas aperfeiçoadas na floresta: franco-atiradores em lugares altos, como a torre da igreja, aterrorizavam o inimigo. E bazucas detinham os tanques do Exército.

9. Fim de papo
Depois de 3 dias de batalha, o Exército cubano se rendeu a Che Guevara. Fulgencio Batista viu que estava tudo acabado e, no dia seguinte, 1° de janeiro de 1959, fugiu do país. Fidel e Raúl, então, tomaram conta de Santiago de Cuba, perto da Sierra Maestra.

10. Rumo a Havana!
Depois da vitória, as tropas de Cienfuegos se uniram às de Che em Santa Clara e todos partiram para o destino final: Havana. O caminho foi tranquilo: um passeio de caminhões, jipes e tanques tomados pelos rebeldes. E, quando chegaram à capital…

11. Na Sapucaí
Che e Cienfuegos chegaram a Havana no dia 2 de janeiro de 1959 recebidos com festa. Fidel e Raúl viriam, e desfilariam, no dia 8. E os rebeldes tomavam o controle do país – coisa que não largaram até hoje.

c6c9b8e034bc8513495d82507632f1f3
Che, By Lobo – Fonte – http://www.pinterest.com

O Che herói… 

Anos 1930 – Bom samaritano

O menino Ernesto tinha uma sensibilidade distinta da dos colegas. Sempre saía em defesa dos mais fracos. Muitas vezes voltava da escola sem o casaco, pois tinha dado a alguém que precisava no caminho, diz o historiador argentino Felipe Pigna.

1952 – Médico gente boa
Na viagem que fez com o amigo Alberto Granado pela América do Sul, Che trabalhou num leprosário no Peru. Foi sua estreia na medicina. Jogava bola com os leprosos e os acompanhava em excursões pela selva. Gratos, construíram uma balsa e lhe deram de presente.

1956 – Fiel aos princípios
Foi preso no México com Fidel e outros cubanos por posse ilegal de armas. Mas não ficou quieto atrás das grades. Em vez de dissimular sua fé marxista, se vangloriou dela, tentando converter os guardas. Resultado: foi o último a sair da prisão, depois de 57 dias.

1956 – Melhor sobrado
Apesar da asma, foi considerado o melhor aluno do grupo guerrilheiro treinado pelo militar cubano Alberto Bayo no México. Disparou 650 cartuchos e conquistou a admiração do professor. Sem dúvida, Guevara é o melhor aluno, anotou Bayo em seu livro de memórias.

1958 – Líder exemplar
Ficava sempre na linha de frente dos combates e não media riscos para proteger seus homens. Alberto Castellanos, um dos soldados rebeldes, conta que Che correu em direção ao fogo inimigo para buscá-lo de volta quando ele estava sob perigo.

1959 – Senhor da guerra
Esquadrões com 1.200 exilados cubanos financiados pela CIA tentaram invadir Cuba pela praia de Girón, na baía dos Porcos, esperando desestabilizar o governo de Fidel Castro. Mas a operação foi por água abaixo: soldados treinados por Che repeliram a invasão.

1959 – Executor justo
Centenas de pessoas foram fuziladas nos seis meses em que Che ficou encarregado das execuções de presos políticos. Mesmo assim, alguns consideram que ele perdoou o quanto pôde: Até surpreende que a quantidade de execuções tenha sido tão pequena, diz Jorge Castañeda.

1959 – Salva a lavoura
Imprimiu sua marca na lei de reforma agrária, promulgada antes de Cuba virar comunista. O texto foi muito além do projeto original de Fidel: proibiu o latifúndio e limitou as terras privadas em até 400 hectares. As propriedades seriam distribuídas entre os camponeses.

1960 – Cérebro
Virou capa da Time. A revista americana disse: Castro é o coração da Cuba atual. Seu irmão Raúl é o primeiro a segurar a adaga da revolução. O presidente do Banco Nacional, Che Guevara, é o cérebro. Ele é o mais fascinante e o mais perigoso membro do triunvirato”.

1961 – Incansável
Quando se tornou um dos chefes do governo cubano, chegava ao escritório de manhã e só saía de madrugada. Tinha aulas de matemática, economia e russo. E trabalhava como voluntário, em tarefas braçais, aos domingos. “Ele realmente via o trabalho como diversão, diz um amigo.

1967 – Mártir
Depois da morte, o corpo de Che foi exposto no leito de um hospital boliviano. Com o rosto lavado pelos soldados, a barba aparada e a cabeça na lápide de concreto, sua imagem ficou parecida com a do quadro Lamentação sobre o Cristo Morto. Morreu o homem, nasceu o deus.

d3va.deviantart.com1
Fonte – d3va.deviantart.com

…E o Che vilão.

1943 – Muy amigo
Ernesto se recusou a marchar na rua pela liberdade do amigo Alberto Granado, preso num protesto estudantil contra a ditadura. Disse que a marcha era um gesto inútil e os estudantes levariam uma surra com cassetetes e que só iria se lhe dessem um revólver.

1957 – Matador frio
Durante a luta em Sierra Maestra, Che suspeitou que o camponês Eutimio Guerra estava traindo o grupo. Acabei com o problema dando-lhe um tiro com uma pistola calibre 32 no lado direito do crânio, com o orifício de saída no lobo temporal direito, escreveu Che em seu diário.

1959 – Psicopata
Mandou matar um menino de 15 anos acusado de grafitar muros com mensagens contra Fidel. Quando a mãe foi pedir clemência, ordenou a execução imediata. Para alguns hitoriadores, casos como esse mostram como foi a atuação de Che ao julgar presos políticos.

Anos 60 – Ditador
A revolução substituiu uma ditadura, a de Batista, por outra, comandada por Fidel, Raúl e Che. Em 1961, o país se tornou comunista. Milhares perderam suas propriedades  muitos fugiram ou acabaram mortos. Por isso, hoje 20% dos 11 milhões de Cubanos vivem fora da ilha.

1961 – Moratória burra
Quase enfiou Cuba num buraco financeiro quando decidiu romper com o FMI. Seu assessor Ernesto Betancourt advertiu: se pulasse fora, o país teria que pagar ao Fundo um empréstimo de US$ 25 milhões e ficaria sem um tostão até a próxima safra de açúcar. Só aí Che voltou atrás.

1962 – Diplomacia zero
No auge da Guerra Fria via os EUA como inimigos. E a URSS também. Criticou publicamente os russos por não apoiarem a industrialização da ilha. Chegou a acusá-los de cúmplices dos americanos a maior ofensa que os soviéticos poderiam ouvir.

1962 – Estratégia suicida
A URSS instalou mísseis na ilha, apontados para o território americano. Os EUA exigiram a retirada, e o mundo ficou à beira de uma guerra nuclear. Os soviéticos voltam atrás. Fidel aprovou. Mas Guevara não: queria os mísseis lá, custasse o que custasse.

1962 – Suicida mesmo!
Defendeu a guerra nuclear dizendo que ela era necessária. Foi um pouco de excesso de oratória, talvez dentro da tradição latina de exagerar, diz Jon Lee Anderson. Ok: Che cresceu numa época apocalíptica, em que o assunto bomba atômica era banal. Mas exagerou mesmo.

1962 – Plano furado
Guevara enviou o jornalista argentino Jorge Masetti (que o havia entrevistado na Sierra Maestra) para formar uma base guerrilheira na Argentina. A missão era preparar o terreno para que Che então assumisse o comando. Mas o grupo foi liquidado pelo governo argentino.

1967 – Morte patética
Ao levar a guerrilha para outros cantos do mundo, se desligou da realidade. Na Bolívia, não sabia se teria apoio popular ou condições de vencer. Não teve nenhum dos dois. E morreu encurralado. Do ponto de vista de quem reprova Che, seu final não poderia ter sido mais humilhante.

Para saber mais
Che Guevara – Uma Biografia
Jon Lee Anderson, Editora Objetiva.
Che Guevara – A Vida em Vermelho
Jorge Castañeda, Companhia das Letras.

AUTOR – EDUARDO SZKLARZ

FONTE – http://super.abril.com.br/historia/a-verdade-sobre-che?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_super

JOÃO GAMBARRA E A LUTA PELA MEMÓRIA DOS QUE LUTARAM

O responsável pelo TOK DE HISTÓRIA, junto com o Sr. João Gambarra, no monumento aos combatentes brasileiros da Segunda Guerra Mundial em Santa Luzia, Praíba
O responsável pelo TOK DE HISTÓRIA, junto com o Sr. João Gambarra, no monumento aos combatentes brasileiros da Segunda Guerra Mundial em Santa Luzia, Paraíba-CLIQUE PARA AMPLIAR AS FOTOS.

Um ex-combatente de 96 anos, que mantém vivo no sertão a memória dos paraibanos que lutaram na Segunda Guerra Mundial 

Junto a Rudolf Thales Diniz Lourenço e German Zaunseder, bons amigos que gostam de história, estivemos recentemente no sertão da Paraíba, mais precisamente na cidade de Santa Luzia, também conhecida tradicionalmente como Santa Luzia do Sabugy, onde conhecemos um ser humano muito especial.

Através da minha querida prima Fátima Cavalcanti, respeitada odontóloga que residente em João Pessoa, conseguimos chegar ao Senhor João Bezerra da Nóbrega Gambarra, um odontólogo aposentado, muito respeitado profissionalmente na sua terra e nascido no longínquo ano de 1919.

Rostand Medeiros, Seu João e Dona Dagmar
Rostand Medeiros, Seu João e Dona Dagmar

Verdadeira memória da viva da sua região, tivemos o privilégio e a honra de sermos muito bem recebidos em sua casa, onde ele e sua esposa, Dona Dagmar, foram de extrema cortesia e atenção.

Junto a Seu João conversamos algumas horas sobre a história do nosso sertão nordestino, o cangaço na Paraíba, as antigas revoluções ocorridas na primeira metade do século XX e a Segunda Guerra Mundial.

O interessante foi que descobri que seu pai, o vaqueiro José Alves Bezerra, no início do século XX negociava gado entre a Paraíba e a região do Seridó Potiguar (Santa Luzia é próxima a fronteira do Rio Grande do Norte). José Alves também trazia gado do distante Piauí, percorrendo antigos caminhos coloniais, aonde seus negócios chegavam a alcançar a região da Serra da Rajada, próximo ao Rio Carnaúba e da pequena vila homônima ao rio. Ali mantinha negócios e tinha amizade com o fazendeiro Joaquim Paulino de Medeiros, conhecido como coronel Quincó da Ramada e meu bisavô. Através de Seu João soube interessantes detalhes do ataque que a minha família sofreu de cangaceiros supostamente comandados por Chico Pereira, no dia 1 de fevereiro de 1927, na Fazenda Rajada, município de Acari. O papo rolou solto!

O amigo German Zaunseder, argentino de Buenos Aires e descendente de alemães, conhecendo o sertão potiguar. Ao fundo a Serra da Rajada.
O amigo German Zaunseder, argentino de Buenos Aires e descendente de alemães, conhecendo o sertão potiguar. Ao fundo a Serra da Rajada.

Já em relação a segunda Guerra Mundial Seu João contou que foi o terceiro sargento Gambarra, lotado entre os anos de 1942 e 1945 no 40º Batalhão de Caçadores da cidade de Campina Grande. Ele não seguiu para a Itália com a FEB – Força Expedicionária Brasileira, mas vivenciou a partida de amigos e a tristeza da perda de alguns deles em combate. Esteve vigilante nas nossas praias, patrulhando extensas faixas do então praticamente deserto litoral paraibano.

Mas o fato mais intenso e relevante da nossa visita foi quando Seu João, com extremo orgulho e satisfação, levou os três amantes da história vindos de Natal até o monumento existente em sua cidade para honrar a memória dos ex-combatentes paraibanos que participaram da Segunda Guerra Mundial.

Localizado as margens da BR-230, que corta toda Paraíba de lesta a oeste, o monumento impressiona bela beleza e singeleza. Encimado por três grandes pilares retangulares que sustentam uma grande coluna, possui no alto uma estátua que representa um combatente brasileiro da Segunda Guerra. Nos três pilares que servem de base estão os nomes dos paraibanos que seguiram para a Itália e dos que protegeram nosso litoral, além dos símbolos da FEB e do 5º Exército dos Estados Unidos. Não faltam os nomes daqueles que participaram do conselho gestor para a existência deste monumento, entre eles está o nome de João Gambarra. Foi uma visita muito especial.

German, Rudolf e Seu João no monumento de Santa Luzia
German, Rudolf e Seu João no monumento de Santa Luzia

Após o fim da guerra Seu João estudou em Recife, onde se formou em odontologia. Foi amigo de turma do respeitado odontólogo potiguar Sólon Galvão.

O Seu João Gambarra é sempre prestigiado pelo Exército Brasileiro
O Seu João Gambarra é sempre prestigiado pelo Exército Brasileiro

Seu João é um homem que possui uma lucidez, uma vitalidade e um prazer pela vida que são fantásticos!

Rijo, lúcido, ativo, seus olhos brilham ao relembrar o passado. Ao lembrar-se do velho sertão que não existe mais, da época da guerra e dos que partiram. Mas Seu João vive a vida cada momento intensamente, onde memorizar este passado não é um peso, mas uma satisfação. Uma satisfação que ele faz questão de dividir, principalmente com os mais jovens. Mas ele se entristece ao comentar que atualmente poucos se interessam pela história.

Rudolf junto ao AT-26 Xavante da FAB, espetado em Parelhas, Rio Grande do Norte, ao lado da Igreja de São Sebastião
Rudolf junto ao AT-26 Xavante da FAB, espetado em Parelhas, Rio Grande do Norte, ao lado da Igreja de São Sebastião

Espero na minha vida poder encontrar outras pessoas como João Gambarra.

Um encontro destes não seria tão especial se não tivesse ao meu lado amigos que também gostam de história. Rudolf Lourenço é paraibano de Campina Grande, radicado em Natal, estudou economia na UFRN, é casado com a minha amiga Erika Leite e possui um grande interesse na história Segunda Guerra por influência de seu pai Josemar Lourenço da Silva, tenente da reserva da FAB.

Já German Zaunseder é argentino de Buenos Aires, estudou direito na Universadad Federal de Buenos Aires, reside em Natal há seis anos, é casado com uma potiguar, tem um filho de quatro anos e um grande interesse na história da Segunda Guerra Mundial por razões pessoais. Sua família é originária da Bavária, mas emigrou para a cidade de Duseldorff, onde nasceu seu tataravô Siegfredo.

1Gambarra (7)

Por uma razão que German desconhece, seu tataravô colocou em um dos seus filhos o nome muito pouco germânico de Antônio Zaunseder, avô do nosso amigo. Fugindo da crise que se abateu sobre a Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, a família Zaunseder emigrou para a Argentina no início da década de 1920. Mas em 1939 os homens em idade de servirem as forças armadas de Hitler retornaram ao país de origem para lutar na guerra. Segundo German os irmãos do seu avô morreram em combate, mas Antônio sobreviveu, falecendo na Alemanha em 1954. Entretanto nosso amigo desconhece como foi a história do seu avô na Wehrmacht.  

O POUSO DO “BUENOS AIRES” EM BARRA DE CUNHAÚ

image003

Autor – Rostand Medeiros 

No dia 24 de maio de 1926, decolava da base aeronaval americana de Miller Field, em Nova York, um hidroavião Savoia-Marchetti S 59, pintado com as cores azul e branco, sendo conduzido por três ocupantes e seguindo em direção sul, estava decolando o “Buenos Aires”. 

O Projeto de um Herói da Aviação na Primeira Guerra Mundial 

A ideia desta viagem tivera início em 1925 e tinha como objetivo abrir uma rota aérea para futuros voos com passageiros. Os autores desta ideia foram os pilotos Eduardo Olivero, e Bernardo Duggan.

Eduardo Olivero
Eduardo Olivero

Olivero nasceu em 2 de novembro de 1892, em Tandil, uma cidade argentina localizada na província de Buenos Aires, a cerca de 350 km da capital do país. Ele era filho de italianos emigrados para o país platino e durante a Primeira Guerra Mundial utilizou-se de sua segunda nacionalidade para lutar entres as tropas italianas, atuando na função de piloto de combate. Ascendeu ao posto de tenente na denominada “Esquadrilha Baracca” e completou 553 voos de combate. Destes voos 156 foram missões de caça, 262 patrulhas de combate, 61 escoltas de reconhecimento e de aviões de bombardeio. 11 missões de reconhecimento estratégico, 14 missões de ataque terrestre contra concentrações de infantaria austríacos e uma missão para derrubar um balão de observação do tipo Draken. Documentos apontam que Olivero participou de 25 combates aéreos, em que derrubou nove aviões inimigos. No fim da guerra é promovido a capitão.

Julio Campanelli, Eduardo Olivero e Bernardo Duggan
Julio Campanelli, Eduardo Olivero e Bernardo Duggan

Entre o fim da Primeira Guerra e o ano de 1924 Olivero participa de diversos raids aéreos na Argentina e experiências de voo em grande altitude, visando um melhor aproveitamento aéreo sobre a Cordilheira do Andes. Em uma delas sofreu um grave acidente que lhe deixou sequelas. Em 1924 realiza diversas experiências com radiofonia aérea. Em 1925 inicia os preparativos, junto com Duggan, do Raid aéreo Nova York – Buenos Aires.

Por aqueles dias a incipiente rota Nova York – Buenos Aires era uma das mais difíceis, recheada de inconvenientes e problemas, principalmente diante das características técnicas dos aviões existentes na época. Olivero e Duggan, concluíram que, para terem um melhor êxito deveriam tentar repetir o trajeto realizado pelo tenente do Corpo de Aviadores dos Estados Unidos, Walter Hinton. Vale lembrar que Hinton, junto com o brasileiro Euclides Pinto Martins, haviam partido, em 1922, da mesma Nova York, em direção ao Rio de Janeiro, no hidroavião Curttis, batizado como “Sampaio Correa”, sendo esta a primeira aeronave a voar sobre o território potiguar. O americano, o brasileiro e mais três tripulantes conseguiram realizar o seu intento, mesmo com muitos problemas.

Na foto vemos o norte americano Walter Hilton e o cearense Euclides Pinto Martins, que possuía forte ligação com o Rio Grande do Norte – Fonte – Coleção do autor
Na foto vemos o norte americano Walter Hilton e o cearense Euclides Pinto Martins, que possuía forte ligação com o Rio Grande do Norte – Fonte – Coleção do autor

Com os dados das viagens de Hinton, os argentinos começaram a traçar a sua rota. Decidiram, como a maioria dos aviadores da época, por utilizar um hidroavião. Concluíram que a aeronave ideal seria o Savoia-Marchetti S 59.

Na Itália, acompanham a construção e entrega de sua aeronave que contava com motores de 400hp de potência, a portentosa velocidade máxima de 176 km/h, autonomia de 1.400 km e uma carga de total de 900 litros de combustível. Isso tudo sem rádio e outras máquinas de apoio ao voo.

Finalmente o hidroavião é completado com as tradicionais cores nacionais argentinas e despachado através de navio para Nova York. Neste momento junta-se aos dois argentinos Julio Campanelli, executando o trabalho de mecânico. 

Partindo da Terra do Tio Sam 

Nos Estados Unidos são tratados com honras, recebendo apoio incondicional das autoridades locais, inclusive com liberação de aterrissagem em bases americanas durante o trajeto.

O hidroavião Buenos Aires
O hidroavião Buenos Aires

Realizam várias provas e no dia 24 de maio de 1926, decolam em direção sul, com a primeira parada será em Chaleston, no estado da Carolina do Sul, depois Miami, seguindo para Havana, em Cuba. Neste país passam ainda pelas cidades de Cienfuegos e Guantanamo. Depois seguem para Porto Príncipe, no Haiti, aonde são ovacionados por grandes multidões, depois Santo Domingo, na Republica Dominicana, seguindo na seqüência para San Juan (Porto Rico), Ilhas Virgens, Montserrat, Guadalupe, Martinica e Trinidad e Tobago. Neste ponto deixam de sobrevoar as paradisíacas ilhas caribenhas e atingem a América do Sul pela Guiana Inglesa (atual Guiana), chegando a capital Gorgetown, depois Paramaribo, na Guiana Holandês (atual Suriname), em seguida Caiena, na Guiana Francesa. A partir deste ponto ocorreria o incidente mais grave de todo o trajeto.

Barca paraense "Juruna", vendo sentados, da esquerda para direita, Duggan, Olivero, Mestre Josino Campos (comandante do barco) e Campanelli, no porto de Belém em 1926.
Barca paraense “Juruna”, vendo sentados, da esquerda para direita, Duggan, Olivero, Mestre Josino Campos (comandante do barco) e Campanelli, no porto de Belém em 1926.

Existem duas versões para o que aconteceu com o hidroavião ao sobrevoar o trecho Caiena – Belém.

Uma delas afirma que o “Buenos Aires” teve um problema no motor e teve que pousar no Oceano Atlântico, de frente as costas brasileiras, sendo resgatados por um pequeno barco pesqueiro, o “Juruna”, que os reboca para uma ilha, na qual o mecânico Camapanelli pode concertar a aeronave e seguirem para Belém.

A outra versão afirma que as faltas de mapas detalhadas da região para uma melhor navegação, além de chuvas torrenciais, fazem a tripulação do “Buenos Aires”, aparentemente, perder seu rumo, pois os mesmos se vêm com uma completa falta de combustível, tendo que pousar em um rio da região aonde os pilotos são resgatados pelo mesmo “Juruna”. O certo é que durante alguns dias o mundo desconhece o paradeiro dos três argentinos, preocupando todos que acompanhavam o raid, Após os sete dias de parada eles seguem para Belém e lá são recepcionados como heróis.

Visão atualizada do que os aviadores do Buenos Aires observaram de Natal
Visão atualizada do que os aviadores do Buenos Aires observaram de Natal

Na continuidade do seu trajeto no Brasil seguiram a costa norte brasileira em direção ao Rio Grande do Norte e no dia 11 de julho de 1926 pousam no Rio Curimataú, na região da Praia de Barra de Cunhaú. Mas apenas sobrevoaram Natal as 11:20 da manhã, do dia 11 de julho de 1926. 

A Segunda Aeronave em Céus Potiguares 

Qual teria sido a razão dos argentinos terem ido direto para Barra de Cunhaú e não para a capital?

Natal (30.000 habitantes na época) possuía razoáveis serviços de apoio e o Rio Potengi era uma ótima opção para pouso, mas provavelmente neste ponto de uma viagem já bem atrasada, os aviadores tenham decidido utilizar os mesmos locais de pouso e trajeto realizados no mês de janeiro do mesmo ano, pela tripulação espanhola do Dornier Val “Plus Ulta”, que concluirá seu raid Espanha – Argentina, em 10 de fevereiro de 1926. Apesar de Olivero e Duggan não estarem na Argentina no momento da chegada dos espanhóis, foi repassado a eles o roteiro dos pousos do aeroplano espanhol em terras brasileiras. Nesse caso Recife, e não Natal, era o destino normal após a decolagem do Ceará. Outra razão poderia ser creditada a falta de um conhecimento mais apurado das qualidades de Natal como destino. Recife, por ser uma cidade mais desenvolvida e conhecida no exterior naquele período, era o destino mais correta para os pioneiros aviadores. Vale lembrar que o raid dos aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, mesmo após os acidentes ocorridos no trajeto, seguiram direto para Recife.

image009

Quem tem a oportunidade de voar sobre a costa potiguar, entre a Natal e a fronteira da Paraíba, percebe que além do Rio Potengi e da Lagoa de Guaraíras, o Rio Curimataú, que desemboca em Barra de Cunhaú, é um dos melhores pontos para o pouso de um hidroavião. Devido a estes fatos, parece-nos razoavelmente possível acreditar que, neste período (primeira metade do ano de 1926), Natal ainda não gozava de todo reconhecimento e prestígio no meio aviatório mundial. Fato que mudaria consideravelmente já no ano de 1927.

11

Na bela região de Barra de Cunhaú os aviadores receberam total apoio do coronel Luiz Gomes, chefe político da cidade mais próxima, Canguaretama, e só seguiram viagem na manha de 13 de julho. Eles partiram para Cabedelo, na Paraíba, depois Recife, Maceió e Aracaju. Na sequência realizaram um percurso mais longo até a cidade litorânea de Prado, na Bahia, pousando no rio Jucuruçu. De Prado, seguem para o Rio de Janeiro, Santos, Cananéia, Florianópolis e Porto Alegre.

Na capital gaúcha Olivero recebe a notícia que fora promovido a major do exército italiano. Apenas outra jogada de marketing do histriônico ditador italiano Benito Mussolini, aproveitando as manchetes mundiais sobre este voo.

10

Depois do Brasil, os argentinos seguem para Montevidéu e depois a Buenos Aires. São escoltados na chegada pelo hidroavião espanhol Dornier Val “Plus Ultra”, orbitam sobre a capital Argentina e pousam com suavidade no Rio da Prata, tendo percorrido 14.856 km, em 114 horas de voo efetivo. A cidade parou para receber os seus heróis, tendo muitas bandeiras nos edifícios e muitas autoridades presentes no desembarque dos aviadores.

Atualmente o Museu do Forte Independência, em Tandil, guarda peças históricas do mais importante raid argentino de longa duração. 

– Dedico este texto ao amigo German Zaunseder, compatriota dos aviadores do “Buenos Aires” e um grande pesquisador da aviação potiguar e da Segunda Guerra Mundial em Natal, cidade em que decidiu viver com muita satisfação.

A AVIAÇÃO PIONEIRA NOS CÉUS POTIGUARES – DOS PRIMEIROS RAIDS AO INÍCIO DA AVIAÇÃO COMERCIAL

1

A localização estratégica de Natal, nas rotas aéreas entre as Américas e os continentes africano e europeu, chamou atenção dos pioneiros da aviação. Cidade foi base para aventuras e rotas comerciais.

Autor – Rostand Medeiros

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Norte, Natal, Rio Grande do Norte, edição de domingo, 26 de janeiro de 2014. Mas o presente artigo que apresento está completo e não foi colocado desta maneira no jornal por questões de espaço. 

Não existem dúvidas que a história do voo é a história de um sonho: o sonho dos homens de voarem através dos céus como pássaros. Não existem dúvidas que a história do voo é a história de um sonho: o sonho dos homens de voarem através dos céus como pássaros.

Pintura do holandes Jacob Peter Gowi, denominada "A queda de Ícaro". Do século XVII, se encontra no Museu do Prado, Madrid e retrada o antigo sonho do homem de voar através da história da fuga de Ícaro e Dédalos.
Pintura do holandes Jacob Peter Gowi, denominada “A queda de Ícaro”. Do século XVII, se encontra no Museu do Prado, Madrid e retrada o antigo sonho do homem de voar através da história da fuga de Ícaro e Dédalos.

Este sonho vai se concretiza utilizando tecnologias revolucionárias, que culminam na invenção do avião. Este momento da história inaugura o período onde os humanos não estariam definitivamente mais ligados à superfície da Terra. Foi o início de uma viagem onde a pura alegria de voar capturou a imaginação de muitos. Logo a vontade ir além do horizonte crescia. Seguir pelo vasto céu azul, atravessar milhares de quilômetros de terra, superar montanhas e, da mesma forma como fizeram os antigos navegadores, cruzar os oceanos passou a ser o objetivo e o desejo nas mentes dos primeiros aviadores. Para muitos este desejo era pura aventura, busca de reconhecimento, notoriedade, ou simplesmente porque deveria ser feito. Mas para outros aviadores havia um lado prático; a busca de pontos estratégicos para encurtar distâncias entre os continentes e ganhar dinheiro voando.

E é neste ponto que Natal, uma pequena capital localizada na porção nordeste do Brasil, vai despontar para o mundo da aviação como um dos mais importantes e estratégicos pontos de apoio para aquele novo empreendimento da aventura humana.

A primeira indicação do RN como ponto de apoio

Pouco depois das primeiras aeronaves deixarem o solo, o desejo dos aviadores de vencer as distâncias, principalmente sobre os oceanos, era noticiado em Natal. Na edição de 5 de abril de 1910, do jornal natalense A República, vemos a reprodução de um artigo de uma revista inglesa onde era debatido o futuro da aviação.

Mapa do Rio Grande do norte e dos estados vizinhos no início do século XX
Mapa do Rio Grande do norte e dos estados vizinhos no início do século XX

Entre posições positivas e negativas, já era exposto que o seu desenvolvimento logo iria proporcionar a “travessia entre o Velho e o Novo Mundo pelo ar” e que isso poderia se fazer em “75 horas”. Mas o debate, a propagação das ideias e o desenvolvimento da aviação são drasticamente interrompidos com o início da carnificina que foi a Primeira Guerra Mundial.

5 de abril de 1910
5 de abril de 1910, Jornal “A República”

Apesar disso, é inegável que o fim do conflito impulsionou de maneira extraordinária a aviação. Mesmo com a precária estrutura e potência dos motores dos aviões existentes, o grande número de máquinas e pilotos excedente permite o início da exploração de novos horizontes e até mesmo de rotas aéreas comerciais. Em 23 de outubro de 1918, poucos meses após o fim da Primeira Guerra, o jornal A República reproduziu uma reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”, onde o Comandante José Maria Magalhaes Almeida, adido naval brasileiro na Itália e futuro governador do Maranhão, declarou que ao realizar uma visita oficial a fábrica de aviões do industrial Giovanni Battista Caproni, este comentou que tinha o “grande sonho de voar através do Atlântico”.

Gianni Caproni, de terno, na nacele de um de avião fabricado pela sua empresa.
Gianni Caproni, de terno, na nacele de um de avião fabricado pela sua empresa.

O italiano, conhecido como Gianni Caproni, coletou de Magalhaes Almeida informações sobre a nossa costa. O plano de Caproni era para uma travessia aérea em um “colossal hidroplano, entre Serra Leoa (África) e Rio Grande do Norte ou Pernambuco”. Provavelmente esta foi a primeira vez que uma pessoa com forte atuação no meio aeronáutico mundial apontava a importância estratégica da costa nordestina para a aviação.

23 de outubro de 1918, jornal "A República"
23 de outubro de 1918, jornal “A República”

Apesar da elite potiguar fazer questão de propagar nos jornais locais qualquer notícia positiva sobre o nosso estado produzida lá fora, acredito que ninguém levou a sério a informação do Comandante Magalhaes Almeida.

Provavelmente colocaram a possibilidade de um aeroplano Caproni chegar a nossa região voando sobre o Oceano Atlântico apenas no campo dos sonhos.

A 1ª aeronave em céus potiguares

Mas, lá fora, a aviação progredia.

A primeira travessia aérea do Atlântico Sul foi concluída com sucesso em 17 de junho de 1922, pelos aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, como parte das comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil. Os lusos realizaram a travessia oceânica cobrindo uma distância de 1.890 milhas com muitas dificuldades, onde tiveram que utilizar três aeronaves.

Sacadura Cabral e Gago Coutinho em 1922
Sacadura Cabral e Gago Coutinho em 1922

Os aviadores portugueses não passaram por Natal e seguiram de Fernando de Noronha direto para Recife.

Apesar da frustração por não receberem a dupla Coutinho/Cabral, no dia 21 de dezembro de 1922 os potiguares viram pela primeira vez uma aeronave sobrevoar sua terra. Era um hidroavião biplano Curtiss H 16, batizado como “Sampaio Correia II” (o primeiro fora destruído em Cuba, sem ferimentos nos aviadores). A tripulação era de cinco pessoas. O piloto era o oficial da marinha americana Walter Hinton e o copiloto era Euclides Pinto Martins, um cearense de Camocim, que havia morado no Rio Grande do Norte e aqui tinha muitos amigos.

O norte americano Walter Hinton e o cearense Euclides Pinto Martins, piloto e copiloto do hidroavião "Sampaio Correia II", a primeira aeronave a voar sobre o Rio Grande do Norte
O norte americano Walter Hinton e o cearense Euclides Pinto Martins, piloto e copiloto do hidroavião “Sampaio Correia II”, a primeira aeronave a voar sobre o Rio Grande do Norte

O “Sampaio Correia II” tocou as águas do rio Potengi as 12:45, atracando no Cais Tavares de Lyra, diante da aclamação popular e muitas homenagens prestadas pelas autoridades do Estado. Pelo fato de Pinto Martins ser conhecido em Natal, muita gente pensou que o cearense iria ficar aqui algum tempo com seus amigos, participando de inúmeras homenagens típicas da época. Mas o “Sampaio Correia II” partiu no dia posterior a sua chegada, ás sete da manhã, sem dar muitas satisfações ao povo natalense.

Entretanto Hinton e Pinto Martins não deixaram a terra potiguar tão rapidamente como desejavam. Perceberem falhas em um dos motores da aeronave e tiveram de amerissar no mar, próximo a comunidade de Baía Formosa. Analisado o motor descobriram que algumas engrenagens estavam irremediavelmente danificadas e tinham que ser substituídas. Só conseguiram o conserto das peças em Pernambuco, mais exatamente em Recife.

7

O hidroavião decolou dias depois de Baía Formosa rumo  a Recife. Existe a informação que a saída da aeronave foi realizada com muitas dificuldades e, aparentemente, gerou uma nova pane que os forçou descer em Cabedelo, já na Paraíba. Ao final o “raid” do hidroavião de Hinton e Pinto Martins demorou 75 dias para ser concluído no Rio de Janeiro.

Pássaros de aço que passam e não param

Apesar do Comandante Magalhães Almeida haver apontado para o italiano Caproni que as terras potiguares era um ótimo ponto estratégico na eventualidade de uma travessia aérea do Oceano Atlântico, os potiguares ficaram um tempo sem testemunhar a passagem de aviões. Só veriam outra aeronave no ano de 1926.

Mapa do trajeto do hidroavião espanhol "Plus Ultra"
Mapa do trajeto do hidroavião espanhol “Plus Ultra”

Primeiramente houve uma grande expectativa no mês de fevereiro com a possibilidade da  chegada em Natal do hidroavião espanhol “Plus Ultra”, comandando por Ramon Franco, irmão do futuro ditador espanhol Francisco Franco Bahamonde. Mas este e sua tripulação repetiram a rota dos lusos Gago Coutinho e Sacadura Cabral e seguiram de Fernando de Noronha direto para Recife, aparentemente sobrevoando o território potiguar sem tocá-lo.

Os argentinos do Raid Nova York-Buenos Aires, passaram por Natal e pararam em na praia de Barra de Cunhaú, município de Cangauaretama.
Os argentinos do Raid Nova York-Buenos Aires, passaram por Natal e pararam em na praia de Barra de Cunhaú, município de Canguaretama. Na imagem aspectos da chegada desta aeronave no Rio de Janeiro

Nas primeiras semanas de julho de 1926 um hidroavião de fabricação italiana, com uma tripulação argentina e batizado como “Buenos Aires”, era por aqui aguardado. Eles realizavam um “raid” de Nova York a capital argentina. Mas a aeronave com seus três tripulantes, comandados por Eduardo Oliviero, após vários acidentes no trajeto entre Havana e a região norte do estado do Pará, apenas sobrevoou Natal no dia 11 de julho, as 11:20 da manhã.

11

Mas tal como aconteceu com o “Sampaio Correia” não deixou rapidamente o Rio Grande do Norte. Devido a uma forte tempestade tiveram de amerissar na região de Barra de Cunhaú. Os aviadores receberam total apoio do coronel Luiz Gomes, chefe político da cidade mais próxima, Canguaretama, e só seguiram viagem na manha de 13 de julho.

O ano em que tudo mudou

Em fevereiro de 1927 chega a notícia que um hidroavião bimotor italiano, modelo Savoia-Marchetti S 55, estava atravessando o Atlântico em direção a capital potiguar. A aeronave havia sido batizada como “Santa Maria”, tinha como piloto o herói de guerra Francesco De Pinedo, tendo como companheiros o capitão Carlo Del Prete, e o sargento Victale Zachetti.

Francesco De Pinedo - Fonte - www.aeronautica.difesa.it
Francesco De Pinedo – Fonte – http://www.aeronautica.difesa.it

Haviam partido do porto de Elmas, Itália, em 13 de fevereiro, bordejaram a costa oeste africana até Porto Praia, capital da atual República de Cabo Verde. Somente no dia 22 alçaram voo em direção a Natal. Mas em Fernando de Noronha houve problemas com a quantidade de combustível e De Pinedo teve de fazer um pouso de emergência. Foi apoiado pelo Cruzador “Barroso”, da Marinha do Brasil. No dia 24 de fevereiro, pelas 7 horas decolavam para Natal.

Foi com um estrondoso repicar dos sinos das igrejas que Natal recebeu a notícia da partida daquela nave do arquipélago. Logo o comércio, as repartições públicas, as escolas fecham suas portas e uma multidão calculada em 10.000 pessoas, vai se aglomerar desde o Cais da Tavares de Lira, até a então conhecida praia da Limpa, onde atualmente se localizam a áreas do prédio histórico da Rampa, o Iate Clube de Natal e as dependências do 17º Grupamento de Artilharia de Campanha.

O "Santa Maria" - Fonte - www.aeronautica.difesa.it
O “Santa Maria” – Fonte – http://www.aeronautica.difesa.it

No alto da torre da igreja matriz, na Praça André de Albuquerque, escoteiros estão posicionados, vasculhando os céus com binóculos e lunetas em busca do hidroavião. No mastro ali existente tremulam as bandeiras italiana e brasileira. Finalmente, às nove e vinte da manhã, um ponto é avistado para além da praia da Redinha, ao norte da cidade. Os escoteiros estouram rojões, novamente os sinos das igrejas repicam e navios ancorados no porto apitam ruidosamente, deixando Natal em polvorosa.

O hidroavião sobrevoa a cidade, segue em direção a região do atual bairro de Igapó, retornando na direção do porto. Vai baixando devagar, extasiando a todos ao amerissar tranquilamente no sereno rio Potengi.

Apesar de toda pompa e circunstancia com que o aviador foi recebido em Natal, De Pinedo parecia cansado, com aspecto carrancudo. Mesmo sem externar maiores emoções típicas dos latinos, em um banquete oferecido pelo governo estadual, De Pinedo ergueu um brinde de agradecimento à acolhida efetuada pelos natalenses, à figura heroica do aviador potiguar Augusto Severo e comentou entre outras palavras que “Natal seria a mais extraordinária estação de aviação do mundo”.

???????????????????????????????

De Pinedo foi o primeiro aviador a se pronunciar publicamente sobre a positiva condição que Natal possuía para a aviação mundial, sendo este pronunciamento repetido em diversos jornais nacionais e estrangeiros.

Um italiano realizava o sonho de outro italiano, Giovanni Battista Caproni, da travessia aérea do Oceano Atlântico entre a África e o Brasil, tendo a costa potiguar como ponto de apoio.

A vinda de De Pinedo a Natal tornou conhecida a capital potiguar no cenário da aviação mundial e mostrou ao co-piloto e navegador Carlo Del Prete, que nesta cidade havia um ponto seguro para receber qualquer aeronave que desejasse se aventurar a cruzar o vasto Oceano Atlântico.

Raids que eram uma festa e entraram para a história

Vinte dias após a passagem do “Santa Maria”, a cidade de Natal recebe outro “raid” histórico. Era um hidroavião bimotor, modelo alemão Dornier DO J Wall, batizado como “Argos”. A nave pertencia ao governo português, era pilotado por José Manuel Sarmento de Beires, um major do exército, que tinha como auxiliares os militares e patrícios Jorge de Castilho e Manuel Gouveia.

Da esquerda para direita temos Sarmento de Beires, Castilho e Gouveia, os portugueses do "Argus"
Da esquerda para direita temos Sarmento de Beires, Castilho e Gouveia, os portugueses do “Argus”

Seu feito foi haver realizado a travessia Atlântica à noite. Decolaram de Bolama, na atual Guiné Bissau, às 17 horas do dia 12 de março de 1927 e pousaram em Fernando de Noronha na manhã do dia 18, uma sexta feira, por volta das 10:15. A parada no arquipélago foi rápida e às 12:55 o hidroavião português já evoluía várias vezes sobre Natal. Depois amerissaram no rio Potengi e prenderam seu hidroavião em boias defronte á pedra do Rosário.

Foram recebidos com muita atenção pela população de Natal. Os aviadores lusos estiveram em várias recepções. A mais importante foi no palacete do comerciante Manoel Machado, o mais abonado da cidade naquela época e nascido em Portugal. No domingo, dia 20 de março, pelas oito da manhã o “Argos” partiu. Em Recife, em uma entrevista ao Diário de Pernambuco, Beires declarou que “Natal era um excelente ponto para aviação”.

Hidroavião da esquadrilha Dargue
Hidroavião da esquadrilha Dargue

No mesmo dia da partida do “Argos”, mas por volta das quatro da tarde, de uma maneira um tanto surpreendente para grande parte da população de Natal, surgem sobre as dunas do Tirol três hidroaviões monomotores pintados de azul escuro e amarelo. Estes realizaram um voo a 300 metros de altitude sobre a Natal de pouco menos de 40.000 habitantes e amerissaram tranquilamente no rio Potengi. Era a esquadrilha comandada pelo Major Herbert Arthur Dargue, que havia partido dos Estados Unidos ainda no ano anterior e percorria toda a costa da América Latina.

Oficialmente a esquadrilha era denominada Pan-American Goodwill Flight, sua equipe original era composta, além do major Dargue, de três capitães e seis primeiros tenentes. Todos vinham acomodados em cinco hidroaviões modelo Loening OV-1 e cada aeronave havia sido batizada com o nome de uma grande cidade americana.

Este Loening OV-1, o "San Francisco", que esteve em Natal, está preservado no Smithsonian's National Air and Space Museum, em Washington D. C.
Este Loening OV-1, o “San Francisco”, que esteve em Natal em 1927, está preservado no Smithsonian’s National Air and Space Museum, em Washington D. C.

Haviam partido de Kelly Field, no Texas, no dia 21 de dezembro de 1926 e progrediram de forma relativamente lenta em direção sul. Tinham como missão levar mensagens de amizade dos Estados Unidos para os governos e os povos latino-americanos, promover a aviação comercial dos Estados Unidos na região e forjar rotas de navegação aérea através das Américas. Extra oficialmente esta esquadrilha voava para “mostrar a estrela” abaixo de suas asas. Ou seja, demonstrar aos países abaixo da fronteira sul dos Estados Unidos a capacidade e alcance de seu aparato aéreo militar.

Major Herbert Arthur Dargue
Major Herbert Arthur Dargue. Morreu durante a Segunda Guerra Mundial

Sobrevoaram a costa do Oceano Pacifico desde o México a Argentina, sempre em meio a muitos festejos. Em Buenos Aires, durante uma apresentação no aeroporto de Palomar, dois hidroaviões se chocaram em voo e caíram. Um capitão e um primeiro tenente morreram no desastre. Deste ponto as aeronaves da marinha americana seguem em direção norte, acompanhando a costa Atlântica da América do Sul. Em decorrência do acidente trágico na Argentina voam de forma discreta, sem festividades nas suas paradas. Além disso, os jornais de Natal haviam sido informados que estas aeronaves não amerissariam no rio Potengi, seguindo de Recife direto para São Luís do Maranhão. Por isso houve tanta surpresa na capital potiguar no domingo, 20 de março de 1927.

General Ira C. Eacker, comandante da 8th Air Force, a grande força de bombardeiros americanos baseados na Inglaterra durante a II Guerra, era um dos membros da esquadrilha Dargue e esteve em Natal em 1927
General Ira C. Eacker, comandante da 8th Air Force, a grande força de bombardeiros americanos baseados na Inglaterra durante a II Guerra, era um dos membros da Esquadrilha Dargue e esteve em Natal em 1927

A viagem do Pan-American Goodwill Flight como ficou conhecido, foi amplamente divulgado na época, com cobertura de primeira página em todos os principais jornais dos Estados Unidos e de outros países, durante quase todos os dias do trajeto aéreo. Em outubro de 1927 a conceituada revista National Geographic dedicou 51 páginas para o épico voo. Na edição de 22 de março de 1927 do jornal A Republica, o Major Dargue foi entrevistado pelo engenheiro agrônomo Octavio Lamartine, filho do político Juvenal Lamartine, que por realizar uma especialização na Universidade de Geórgia, Estados Unidos, dominava perfeitamente o idioma inglês. O oficial aviador americano declarou entre outras coisas que “Natal era um ponto ideal para a aviação”. Para ele a posição geográfica da cidade, o clima e a condição do rio Potengi para os hidroaviões apontavam que a capital potiguar viria a ser “Necessariamente uma base intercontinental de aviação mundial”.

No centro da foto vemos o general Muir S. Fairchild, membro da Divisão de Planos Estratégicos em Washington durante a II Guerra e outro membro da Esquadrilha Dargue em Natal no ano de 1927
No centro da foto vemos o general Muir S. Fairchild, membro da Divisão de Planos Estratégicos em Washington durante a II Guerra e outro membro da Esquadrilha Dargue em Natal no ano de 1927

Em pouco mais de 15 anos, com a implantação da grande base americana de Parnamirim Field, as palavras do Major Dargue se tornaram verdadeiras.

Interessante comentar que dois dos comandados de Dargue que estiveram em Natal, o então Capitão Ira Clarence Eaker e o Primeiro Tenente Muir Stephen Fairchild, se tornaram oficiais generais de extrema relevância durante a Segunda Guerra Mundial. O primeiro foi comandante da 8º Força Aérea de bombardeiros, onde muitos dos seus quadrimotores B-17 e B-24 passaram por Natal a caminho de bases na Inglaterra, de onde atacavam com suas bombas o coração do Terceiro Reich. Já o outro foi um renomado membro da Divisão de Planos Estratégicos em Washington, um dos grandes planejadores das ações aéreas americanas e que certamente deve ter opinado sobre a construção de uma grande base aérea em Natal durante aquele conflito.

Um voo que nunca chegou e outro que marcou

Os próximos “raids” a passarem por Natal é uma grande marca na história aeronáutica brasileira e da aviação mundial. Enquanto isso, o que não faltava nos céus de todo o planeta eram aeronaves realizando “raids”.

O aviador norte americano Charles Lindbergh. Ele esteve em Natal na década de 1930, realizando um Raid em um hidroavião monomotor, junto a com a sua esposa
O aviador norte americano Charles Lindbergh. Ele esteve em Natal na década de 1930, realizando um Raid em um hidroavião monomotor, junto com a sua esposa

Pretendendo a travessia do Atlântico Norte estava os franceses Nungesse e Coli, com o seu avião batizado “Pássaro Azul”. Da Inglaterra os Tenentes Carr e Gilman preparavam o voo que ligaria a Inglaterra a Índia. Da Espanha chegavam notícias da volta ao globo pretendia por Ruiz Alba e Padelo Roda e voando de New York para Paris, buscando ganhar um prêmio no valor de 25.000 dólares, havia um desconhecido piloto chamado Charles Lindbergh.

O "Jahú”- Fonte – Coleção do autor
O “Jahú”- Fonte – Coleção do autor

O Brasil estava em uma extrema expectativa com o voo através do Atlântico Sul do hidroavião brasileiro “Jahú”. Era um aparelho Savoia Marchetti S-55, de fabricação italiana, comandado por João Ribeiro de Barros, paulista da cidade de Jaú. Tinha como companheiros João Negrão, Vasco Cinquini, e o Capitão Newton Braga. Em meio a inúmeros problemas, que incluíram inclusive sabotagem, o “Jahú” decolou às quatro e meia da manhã, do dia 28 de abril de 1927, de Cabo Verde. Os natalenses e pessoas de várias cidades dormiram nas calçadas dos jornais, aguardando notícias. Somente no dia seguinte, soube-se que o “Jahu”, pelas 17:30, amerissou a 100 milhas de Fernando de Noronha. Natal aguardava com ansiedade o brasileiríssimo “Jahú” e, enquanto ele não vinha, foi noticiado que outro voo estava programado para chegar a Natal e desta vez a nave viria pilotada por um nobre francês: o capitão Pierre Serre de Saint-Roman, filho do Conde de Saint-Roman e sua ideia era vir a América do Sul para percorrer 52 cidades do continente e a primeira seria Natal.

O aviador francês Pierre Serre de Saint-Roman, aquele que nunca chegou a Natal
O aviador francês Pierre Serre de Saint-Roman, aquele que nunca chegou a Natal

Os momentos iniciais do voo de Saint-Roman foram atribulados. Talvez por ele possuir apenas 250 horas de voo como experiência anterior a um salto sobre o Atlântico. Talvez pelo seu avião Farman F.60 Goliath, um biplano bimotor, batizado como “Paris-Amérique-Latine” e concebido originalmente como bombardeiro, não ser a nave ideal. Em todo caso, ele e mais dois companheiros decolam de Saint-Louis (Senegal), no dia 5 de maio de 1927, às seis da manhã. Em Natal muitos imaginam que Saint-Roman vai chegar primeiro que o “Jahú”, mas o “Paris-Amérique-Latine” e seus tripulantes jamais foram vistos novamente. Somente no dia 29 de junho, restos do avião de Saint-Roman foram encontrados entre o Maranhão e Pará, bem distantes da rota planejada pelos aviadores desaparecidos.

Apesar da competitividade reinante entre os voos do “Jahú” e do “Paris-Amérique-Latine”, percebe-se lendo os jornais da época que Natal sentiu o desaparecimento do avião francês.

O “Jahú”, um hidroavião Savoia-Marchetti S.55, o último de seu modelo no mundo, atualmente se encontra no Museu de aviação da TAM, em São Carlos, São Paulo – Fonte - http://www.panomario.com
O “Jahú”, um hidroavião Savoia-Marchetti S.55, o último de seu modelo no mundo, atualmente se encontra no Museu de aviação da TAM, em São Carlos, São Paulo – Fonte – http://www.panomario.com

Mas logo ele seria esquecido com a triunfal chegada do “Jahu”.

Os pilotos brasileiros partiram de Fernando de Noronha no dia 14 de maio e por volta das 13 horas ouviu-se o crescente ronco dos motores e uma silhueta vermelha surgiu no horizonte vindo do mar. A chegada desta aeronave a capital potiguar foi algo marcante na população local.

24

Dois meses depois, em 18 de julho de 1927, Natal foi surpreendida com a chegada de uma aeronave de rodas, um autêntico avião. Ele era francês, biplano monomotor, do tipo Breguet, e pertencia a uma empresa comercial francesa chamada Latecoère. Percorriam o litoral brasileiro em busca de locais para construção de campos de aviação para uso comercial, através de um convênio com o governo brasileiro para fazer o transporte do correio internacional.

Paul Vachet no centro da foto
Paul Vachet no centro da foto

O problema era que o biplano só poderia aterrar em um campo de pouso, que não existia ainda na cidade e o piloto Paul Vachet, acompanhado de Dely e Fayard, aterrissou na praia da Redinha.

Com eles, começou a aviação comercial em Natal e a aventura de voar, aos poucos, foi ficando no passado.

NOTA  – Todos os direitos reservados

É permitida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de

comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.

PRISIONEIROS ALEMÃES DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL CONSTRUÍRAM BAIRRO NOBRE DE GOIÂNIA

Prisioneiros alemães capturados por tropas norte americanas, em junho de 1944
Prisioneiros alemães capturados por tropas norte americanas, em junho de 1944

Protocolo assinado entre governos goiano e inglês resultou na vinda de 50 oficiais das Forças Armadas alemãs aprisionados no Reino Unido para Goiás. Supostos nazistas teriam desenhado planta urbanística ao estilo alemão

Autor – Frederico Vitor

Não é segredo que de­pois da derrocada da Alemanha nazista do ditador Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), dezenas de partidários do nacional-socialismo — Partido Nazista —, a maioria criminosos de guerra e genocidas, se refugiaram na América Latina. Muito deles se esconderam na Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Brasil. Porém é pouco conhecida a história de uma leva de oficiais da Wehrmacht — forças armadas da Alemanha hitlerista — que desembarcou em Goiânia. Mais desconhecido ainda — e surpreendente — é que eles teriam desenhado a planta e construíram as avenidas e ruas do que é hoje o Setor Jaó, bairro nobre da capital goiana.

Tal história, que é rodeada de enigmas e muito segredo, não é muito explorada pelos historiadores locais. Contudo é fato que 50 prisioneiros alemães vieram do Reino Unido para Goiás em 1947, durante a administração do governador Jerô­ni­mo Coimbra Bueno.

Prisioneiros alemães ajudando na colheita em solo britânico. Existiram 1.026 campos de prisioneiros na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial – Foto - Hulton Archive/Getty Images
Prisioneiros alemães ajudando na colheita em solo britânico. Existiram 1.026 campos de prisioneiros na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial – Foto – Hulton Archive/Getty Images

O início desta fas­cinante saga germânica por terras goia­nas se deu em uma visita do che­fe do Executivo estadual ao em­bai­xador britânico, na sede da embaixada, no imponente palácio localizado na Rua São Clemente, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, que nos anos 40 ainda era capital federal.

Durante a conversa, regada por muito “scotch” — legítimo uísque escocês —, o embaixador pediu ao governador de Goiás um favor um tanto quanto inusitado: acolher no Estado 50 prisioneiros de guerra alemães. Coimbra Bueno, surpreendido e desconcertado com o pedido, elegantemente, teria acatado o desejo do representante inglês no Brasil. Assinado o protocolo junto à embaixada britânica, numa data desconhecida de 1947, um avião que provavelmente pertencia à Royal Air Force (RAF) — Força Aérea Real — aterrissou em Goiânia com os 50 militares alemães a bordo.

Palestra de um oficial inglês, junto a prisioneiros alemães.
Palestra de um oficial inglês, junto a prisioneiros alemães.

Ao desembarcarem da aeronave, um capitão do Exército britânico teria estendido o braço a uma autoridade estadual, passando-lhe um recibo que deveria ser assinado. O documento atestaria ao governo de Vossa Majestade a posse dos prisioneiros alemães por parte do Estado de Goiás. Ao pisarem em solo goiano, os alemães, todos oficiais e de elevado nível intelectual, não vieram apenas com a roupa do corpo. Eles trouxeram malas e demais pertences pessoais que, juntamente com eles, foram transportados para a penitenciária de Goiânia — à época localizada na Avenida Independência, atual área de treinamento da Delegacia de Operações Especiais, Grupo Tático 3 (GT3) da Polícia Civil e antiga Casa de Prisão Provisória (CPP) —, no Centro da capital.

Típico oficial alemão durante a Segunda Guerra Mundial
Típico oficial alemão durante a Segunda Guerra Mundial

Toda a operação de traslado dos europeus até a prisão foi realizada de forma secreta, sem mídia e sem alardes. O vazamento da no­tícia de que o governo de Goiás teria recebido um grupo de prisioneiros “nazistas” poderia se transformar em um grande escândalo, provocaria um alvoroço sem precedentes. Por isso, para não chamar muita atenção e para primar pelo sigilo que o caso exigia, os alemães foram transferidos da penitenciária para a Fazenda Retiro da Interestadual Mercantil S/A, pertencente a José Maga­lhães Pinto, banqueiro e político mi­neiro da antiga UDN, que depois seria go­vernador de Minas Gerais (1961-1966), e principal acionista do então Banco Nacional, uma das maiores instituições bancárias do País.

Surge o Jaó

Coimbra Bueno, formado na Escola Politécnica de Engenharia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1933, especialista em urbanismo, teve a ideia de urbanizar a Fazenda Retiro, às margens do Rio Meia Ponte, que servia de acampamento aos alemães. Magalhães Pinto aprovou a ideia e o governo goiano teria total autonomia nas decisões do projeto. O único pedido do banqueiro foi a denominação das avenidas Pampulha e Belo Horizonte, para homenagear a capital mineira, no que viria ser o Setor Jaó.

Advogado Artur Rios é entusiasta e pesquisador  do assunto: "Estado deve ter lista com o nome dos 50"
Advogado Artur Rios é entusiasta e pesquisador do assunto: “Estado deve ter lista com o nome dos 50”

O advogado e morador do bairro Arthur Rios é um pesquisador do assunto e detém uma cópia da planta original do setor que, provavelmente, teria sido desenhada pelos alemães e assinada pelo engenheiro Tristão Pereira da Fonseca, já que os europeus não tinham registro no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea) para tal. Ele conta que os prisioneiros ficavam acampados em barracas às margens do que é hoje a represa Jaó, e eram vigiados pelo Estado. Mais tarde, todos eles empregados pelo loteador, ganhariam a liberdade. “Apresentem o mapa do loteamento a um urbanista brasileiro, vão notar ideias alienígenas para o Brasil em 1947 e 1950”, diz Arthur Rios.

Livres para decidirem como seria o novo bairro, os alemães adotaram o nome Setor Jaó, em alusão a um pássaro comum à região. Eles impuseram os padrões germânicos aos logradouros, com ruas e avenidas largas e encurvadas, com os espaços verdes extremamente valorizados. Com exceção das Avenidas Belo Hori­zon­te e Pam­pulha, os nomes das demais vias começavam o “J” de Jaó, uma característica alemã de não atribuir nomes aos endereços. Esse sistema de nomenclatura também era usado em outras áreas, como por exemplo, nos submarinos na Segunda Guerra Mun­dial. A temida força U-boat sempre denominava os submergíveis de “U” sucedido de frios três dígitos. O mesmo sistema seria adotado para batizar as ruas do recém-criado loteamento de Goiânia, como Rua J-33, por exemplo, e assim em diante.

Soldados ou criminosos?

Mesmo hoje, o traçado do Setor Jaó impressiona. O conceituado arquiteto e urbanista Luiz Fernando Cruvinel Teixeira, responsável pelo projeto urbano da cidade de Pal­mas, capital do Estado do To­cantins, ao analisar a planta original do Jaó desenhada pelos alemães, afirma que o projeto valoriza o orgânico, ou seja, houve um alto aproveitamento da natureza do local.

O arquiteto e urbanista Luiz Fernando Cruvinel Teixeira ressalta que planta urbanística valorizou o orgânico
O arquiteto e urbanista Luiz Fernando Cruvinel Teixeira ressalta que planta urbanística valorizou o orgânico

“Isso mostra certa diferença do que se fazia antes aqui, embora o Setor Sul seja um dos projetos mais interessantes que eu vejo em Goiânia”, diz. “Essa característica de organicidade do desenho prova que tirou-se partido da natureza. Até hoje os alemães são muito mais ligados à natureza do que nós latinos. Florestas já foram replantadas na Alemanha e o próprio Partido Verde começou por lá.”

Ao término dos trabalhos de loteamento do Setor Jaó, em 1952, os alemães receberam uma recompensa pela colaboração. A maioria foi convidada pelo presidente Juan Domingos Perón a mudar-se para Argen­tina. Outros, por conta própria, foram para São Paulo. Em Goiânia permaneceram apenas três: Werner Sonnenberg, Otto Hoffmann e Paul Boetcher. Pouco se sabe do paradeiro do restante. Possivelmente, os arquivos do Estado de Goiás devem ter a lista com os nomes dos 50. Há a possibilidade real de que alguns deles possam ser de fato nazistas ou criminosos de guerra, da mesma forma que possam ser apenas militares aprisionados pelo inimigo.

A dedução se baseia no fato de que vários genocidas partidários do nacional-socialismo se refugiaram na América do Sul após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Muitos deles foram presos pelo Mossad — serviço secreto israelense — em Buenos Aires e na Patagônia argentina. Uma parte destes fugitivos esteve no Paraguai durante regime do ditador Alfredo Stroessner, e até mesmo no Brasil. O caso mais emblemático foi o de Josef Mengele, morto por afogamento em 1979, em Bertioga, no litoral paulista. O médico alemão, conhecido como “anjo da morte”, foi acusado de ter cometido atrocidades vis contra prisioneiros judeus e ciganos no complexo de Aus­chwitz-Birkenau, campo de concentração operado pelos nazistas no sul da Polônia.

Parque Beija Flor; avenidas curvas e muita área verde ao estilo alemão
Parque Beija Flor; avenidas curvas e muita área verde ao estilo alemão

Mas, nem todos os alemães que lutaram na Segunda Guerra eram partidários do nazifascismo. O advogado Arthur Rios alerta para este detalhe no caso dos 50 prisioneiros germânicos que construíram o Jaó. Ele afirma que o engenheiro Tristão Pereira lhe confidenciou que, naquela época, era vítima de desconfiança de terceiros por não esconder sua admiração e simpatia pela técnica aprimorada dos alemães do Jaó. “A verdade é que a história é contada pelos vencedores e não pelos vencidos. Fica a dúvida se a maioria deste grupo era de nazista ou eram apenas soldados alemães, conhecidos por serem bons cumpridores de ordens.”

Atual planta urbanística do Setor Jaó; bairro idealizado por prisioneiros alemães privilegia área verde do local
Atual planta urbanística do Setor Jaó; bairro idealizado por prisioneiros alemães privilegia área verde do local

O professor de História da Universidade Federal de Goiás (UFG) Luís Sérgio Duarte da Silva ressalta que não há importância se os alemães do Jaó eram ou não nazistas. Para ele, o fundamental é que o fato reforça a história de uma nova cidade que acolhia a todos e que abria novas fronteiras, neste caso, o da imensidão do Brasil Central. “Goiânia foi uma cidade que abrigou comunistas nos anos 30 e 40, Pedro Ludovico os protegia. Agora mais essa notícia de que outro governador trouxe supostos nazistas. Uma característica importante é que o governo, naquela época, trazia qualquer um que pudesse ajudar na construção da cidade.”

Técnicos estrangeiros

Em novembro de 1934, os irmãos Abelardo e Coimbra Bueno, originário de Rio Verde, aceitam a proposta de tocar o projeto de urbanização de Goiânia por meio da empresa Coimbra Bueno & Pena Chaves Ltda. Na década de 40, a empresa trouxe técnicos do exterior para dar continuidade ao projeto, entre eles o engenheiro civil belga Gustav von Aderup, responsável pelos cálculos das estruturas de vários edifícios, como por exemplo, o Cine Teatro Goiânia.

Mapa de Goiânia, mostrando a área onde os alemães trabalharam
Mapa de Goiânia, mostrando a área onde os alemães trabalharam

A empresa dos irmãos Coimbra Bueno também trouxe para seu corpo técnico Salvador Trotta, arquiteto italiano que trabalhou como desenhista na seção de arquitetura. Jan Wladyslaw Kaufer Wisniewski, engenheiro cartógrafo polonês, demarcou o Setor Aeroporto. O engenheiro e sanitarista alemão Werner Sonnemberg, um dos integrantes da leva dos 50 prisioneiros que desenharam o Jaó, foi o responsável pelo projeto de água e esgoto da cidade. O arquiteto e agrimensor alemão Josef Neddermeyer dirigiu a seção técnica de arquitetura e topografia das obras. Stefan Szucs, pintor húngaro, trabalhou no acabamento do Palácio das Esmeraldas, sede do governo goiano.

Desenho urbanístico de Goiânia é do arquiteto e urbanista Atílio Correa Lima sob modelo francês
Desenho urbanístico de Goiânia é do arquiteto e urbanista Atílio Correa Lima sob modelo francês

Em relação ao Setor Jaó, antes de abandonar o projeto de Goiânia, Atílio teria sugerido a utilização da represa para uma base de hidroaviões, comum naquela época, já que o transporte por terra era muito deficiente. Mas, de fato, naquele leito, mais especificamente na cachoeira Jaó, foi construída a primeira usina que produziria eletricidade para a nova capital. A usina começou a ser construída no dia 4 de janeiro de 1935, mas a obra esteve paralisada por longo período por falta de verba até ser inaugurada em 1938.

No dia 3 de abril de 1945, o excesso de chuvas danificou seriamente a estrutura e os equipamentos da usina. Goiânia enfrentou grande período de falta de energia elétrica e a alternativa encontrada foram os geradores particulares. Para suprir a iluminação pública, se usou motor de um submarino alemão. Por breve período, a máquina foi o responsável pela geração de energia que iluminaria as noites da capital. Para que pudesse ser refrigerado, o propulsor foi instalado às margens do córrego Botafogo. Já a usina do Jaó só foi completamente reconstruída em 1947, justamente o ano da chegada dos 50 prisioneiros alemães. Hoje, a construção em que se encontrava o antigo maquinário está completamente abandonada.

Ás alemão trabalhou para o governo goiano e ajudou na construção de Brasília

A relação de Goiás com ex-oficiais alemães que combateram os Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, não ficou restrita aos alemães que ajudaram a construir o Setor Jaó.

O alemão Martin Drewes, que combateu na Segunda Guer­ra Mundial como piloto de caça noturno, teve Goiás como primeiro destino em terras brasileiras. No país desde 1949, esteve a serviço do governo estadual em 1951, e trabalhou na aerofotogrametria do Estado, inclusive fez fotos aéreas para a construção de Brasília. Sua carreira começou no Exército alemão, teve breve passagem pela divisão Panzer — regimento de tanques de guerra —, mas sua vo­cação o levou para a força aérea,  alcançando o posto de major.

Martin Drewes
Martin Drewes

Durante o conflito, o aviador abateu 52 aeronaves aliadas em 235 missões de combate.  Um de seus artilheiros de bordo, Walter Scheer, se tornou presidente da Alemanha Ocidental em 1974. Ele chegou ser prisioneiro dos ingleses na Alemanha ocupada e mudou-se para o Brasil depois da guerra, onde trabalhou como piloto civil. Em sua casa, na cidade catarinense de Blumenau, guardava na parede um telegrama recebido do próprio Hitler, em abril de 1945, que lhe concedia uma das maiores condecorações militares alemãs. Em entrevista à televisão brasileira, Drewes negou-se a comentar sobre a política da época: o nazismo e o holocausto.

O piloto alemão morreu no dia 16 de outubro deste ano, aos 94 anos, por falência múltipla dos órgãos. Viúvo, ele teve uma filha na Alemanha e um filho no Brasil.

Fonte – http://jornalopcao.com.br/posts/reportagens/prisioneiros-alemaes-da-segunda-guerra-mundial-construiram-bairro-nobre-de-goiania#.UnXEDYYjqxI.facebook

P.S. – AGRADEÇO DE CORAÇÃO A AMIGA CARINA DOURADO, O ENVIO DESTE INTERESSANTE MATERIAL. CARINA,  UMA ORGULHOSA FILHA DE GOIÁS, É UMA COMPETENTE E ATENCIOSA JORNALISTA DA TV BRASIL, A QUAL TIVE O PRIVILÉGIO DE PERCORRER, JUNTO COM A SUA COMPETENTE EQUIPE, O CINEGRAFISTA OSVALDO SANTOS E O TÉCNICO ALEXANDRE, OS CAMINHOS DO CANGAÇO PELO NOSSO NORDESTE. VEJAM ESTE TRABALHO NESTE LINK – https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/09/11/link-para-o-programa-caminhos-da-reportagem-e-a-rota-do-cangaco-na-tv-brasil/

A RAMPA E O RIO POTENGI EM FOTOS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Um hidroavião Martin PBM Mariner sendo baixado para o Rio Potengi pela rampa existente na Naval Air Statin Natal (NAS Natal), hoje conhecida como Ramoa
Um hidroavião Martin PBM Mariner sendo baixado para o Rio Potengi pela rampa existente na Naval Air Station Natal (NAS Natal), local hoje conhecido simplismente  como Rampa

NA ÚLTIMA SEMANA PAUTEI NESTE ESPAÇO ALGUNS MATERIAIS SOBRE O  SÍTIO HISTÓRICO DA ANTIGA RAMPA, NO BAIRRO DA RIBEIRA, EM NATAL. HOUVE UMA REPERCUSSÃO MUITO POSITIVA E UM GRANDE RETORNO POR PARTE DAQUELES QUE VISITARAM O NOSSO TOK DE HISTÓRIA E ASSIM CONHECERAM UM POUCO MAIS SOBRE ESTE LOCAL, TÃO LIGADO A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL.

Pátio da Rampa e seus hidroaviões
Pátio da Rampa e seus hidroaviões

NO NOSSO BLOG TOK DE HISTÓRIA, ESPAÇO NA INTERNET PAUTADO PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO HISTÓRICA, TRAGO AOS MUITOS AMIGOS E AMIGAS QUE APRECIAM NOSSO TRABALHO, ALGUMAS FOTOS DA VELHA RAMPA DURANTE A GUERRA, EM MEIO A HIDROAVIÕES DA U.S. NAVY, O RIO POTENGI E SEUS BARCOS A VELA, OU A “PANO”, COMO DIZEM ATÉ HOJE OS PESCADORES.

Decolagem no rio Potengi
Decolagem no rio Potengi
Os barcos típicos do rio Potengi
Os barcos típicos do rio Potengi
Flutuante da Panair, onde os hidroaviões eram amarrados quando no rio
Flutuante da Panair, onde os hidroaviões eram amarrados
Hidroavião na água
Hidroavião na água
Desembarque
Desembarque
Embarque
Embarque
Hidroavião subindo a rampa
Hidroavião subindo a rampa
Natal em uma das principais rotas aéreas durante a Segunda Guerra Mundial
Natal em uma das principais rotas aéreas durante a Segunda Guerra Mundial, o “Trampolim da Vitória”
Um piloto da U.S. Navy e seus óculos Ray-Ban
Um piloto da U.S. Navy e seus óculos Ray-Ban

Fonte das fotos – U.S. Navy

Todos os direitos reservados

É permitida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de
comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.

A IMPORTÂNCIA DO SÍTIO HISTÓRICO DA RAMPA PARA A AVIAÇÃO BRASILEIRA E SUA SITUAÇÃO ATUAL

O autor deste artigo no prédio histórico da Rampa em 2009 - Foto - Leonardo Dantas
O autor deste artigo no prédio histórico da Rampa em 2009 – Foto – Leonardo Dantas – CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR

Autor – Rostand Medeiros

Segundo apontam os principais estudos relativos à história da aviação no Brasil na primeira metade do século XX, a importância da cidade de Natal para o desenvolvimento desta atividade sempre esteve ligada a sua privilegiada localização geográfica.

Entre o final da década de 1920, até o primeiro semestre de 1942, em meio a uma cidade provinciana, com uma população que variou neste período entre 40.000 a 60.000 pessoas, importantes empresas aéreas chegaram a capital potiguar para desenvolveram suas atividades.

A provinciana Natal - Fonte - Coleção do autor
A provinciana Natal – Fonte – Coleção do autor

Estas eram de origem francesa, alemã, norte americana e italiana. Aqui construíram instalações diversas, vieram com seu pessoal técnico especializado e trouxeram um panorama de modernidade para a pequena capital nordestina. Estas ações tornaram a área de Natal um dos pontos de apoio mais importantes para o desenvolvimento da atividade aérea comercial no mundo.

Chegam os Norte-americanos

As empresas se dividiram basicamente entre dois locais; um no Campo de Parnamirim, afastado da cidade e exclusivo para aviões e o outro destinado às amerissagens dos hidroaviões, nas margens do estuário do rio que banha a cidade de Natal, o Potengi.

Neste rio, no setor situado entre as instalações do Porto de Natal e as proximidades da secular Fortaleza dos Reis Magos foi o local escolhido pelos alemães e norte-americanos para as instalações de suas respectivas estações aéreas.

Um cartaz informativo da Nyrba Lines - Fonte - Coleção do autor
Um cartaz informativo da Nyrba Lines – Fonte – Coleção do autor

A primeira aeronave americana de uma empresa aérea a chegar a Natal foi o hidroavião batizado “Washington”, em 5 de julho de 1929. Nos comandos estava o norte-americano Ralph O’Neill, veterano piloto de caça da Primeira Guerra Mundial e líder da empresa New York-Rio de Janeiro-Buenos Aires Lines, mais conhecida como Nyrba Lines. Em 13 de novembro de 1929, amerissava no rio Potengi o hidroavião “Baía”, da mesma empresa e durante mais três meses, vários outros hidroaviões da Nyrba Lines passam por Natal. Seus tripulantes estudavam as rotas aéreas, aspectos ligados à operação de apoio e um maior conhecimento da bacia do rio Potengi. No dia 25 de janeiro de 1930 a Nyrba Lines vai inaugurar oficialmente a sua rota Rio de Janeiro-Fortaleza, que tinha Natal como ponto de passagem.

Em pouco tempo, mais precisamente em 19 de agosto de 1930, a Nyrba é obrigada a se fundir com empresa Pan America Airways, a famosa Pan Am. Nesta época, segundo Paulo Pinheiro de Viveiros, autor do livro “História da aviação no Rio Grande do Norte” (págs. 31 a 38, 1ª Ed. 1974), os hidroaviões americanos permaneciam atracados em flutuadores estacionados à margem direita do rio Potengi, defronte ao local denominado Passo da Pátria. Era conhecido como “Estação Fluctuante da Panair”.

O homem sob o flutuador da aeronave é o mítico aviador norte-americano Charles Lindbergh, que juntamente com a sua esposa Anne Morow, amerissaram seu hidroavião monomotor Lookheed 8 Sirius no rio Potengi na tarde de 5 de dezembro de 1933, amarrando sua aeronave no flutuante da Panair
O homem ao lado da hélice do hidroavião é o mítico aviador norte-americano Charles Lindbergh, que juntamente com a sua esposa Anne Morow amerissaram seu hidroavião monomotor Lookheed 8 Sirius no rio Potengi na tarde de 5 de dezembro de 1933. na foto vemos sua aeronave sendo amarrada no flutuante da Panair. Eles realizaram um longo “raid” aéreo naquele ano.

Enquanto estas mudanças ocorriam com os norte-americanos, os alemães abrem a sua agência em Natal. Na 2ª página, da edição de quinta feira, 6 de fevereiro de 1930, do jornal natalense “A República”, na pequena nota intitulada “Movimento Aviatório”, existe a informação que um hidroavião da empresa área Syndicato Condor Ltda era esperado ás 15 horas daquele dia, inaugurando a linha aérea entre Natal e Porto Alegre. As instalações desta empresa, de origem e direção germânica, ficaram localizadas em uma área conhecida como praia da Limpa, na região onde atualmente se localiza as instalações do 17º GAC – Grupamento de Artilharia de Campanha.

Em 1934 a Pan Am decide criar uma subsidiária no Brasil, denominando-a Panair. Em Natal a empresa decide melhorar a sua estrutura de apoio onde é construída uma pequena estação de passageiros que desembarcavam dos hidroaviões através de um píer de concreto.

fdm1 (2)

O local foi edificado em um terreno cedido pela Marinha do Brasil, conforme podemos ver na foto da nota jornalística de um jornal de Natal em 1938.

A Tempestade se Aproxima

Logo os tambores de guerra passam a tocar mais alto na Europa e Ásia. O Brasil, nação de tradição pacífica em relação à convivência com outras nações, logo se vê diretamente envolvido na Segunda Guerra Mundial, o maior conflito bélico da história da humanidade.

Enquanto a guerra se expandia em várias partes do mundo, em Natal, a Panair apresentava sua estação de passageiros a margem do rio Potengi - Fonte - Coleção do autor
Enquanto a guerra se expandia em várias partes do mundo, em Natal, a Panair apresentava sua estação de passageiros a margem do rio Potengi – Fonte – Coleção do autor

Relatórios preliminares desenvolvidos pelas forças armadas dos Estados Unidos, antes mesmo da entrada deste país na guerra, corroboravam a importância geográfica de Natal. Informavam que a projeção do litoral nordeste do Brasil, o chamado Saliente Nordestino, onde Natal está localizado, era considerado um importante ponto estratégico militar.

Logo o Brasil e os Estados Unidos firmam acordos diplomáticos em relação ao momento turbulento. Inicialmente estes acordos focaram na defesa territorial do Saliente Nordestino, com a criação de unidades militares do Exército Brasileiro na região, criação de bases navais para a nossa Marinha de Guerra e o desenvolvimento de bases aéreas que seriam utilizadas pelos norte-americanos e pela recém-criada Força Aérea Brasileira, a FAB.

Hangar de nariz da base de Parnamirim, ou Parnamirim Fiel, durante a Segunda Guerra Mundial - Fonte - NARA
Hangar de nariz da base de Parnamirim, ou Parnamirim Fiel, durante a Segunda Guerra Mundial – Fonte – NARA, Washington D.C.

Um dos pontos fortes desta cooperação de defesa foi sem dúvida a Base Aérea de Parnamirim, em Natal. Além da defesa da área da capital potiguar, esta base foi essencial para o trânsito de milhares de aviões militares aliados, que seguiam dos Estados Unidos em direção a África, Europa e Extremo Oriente, transportando homens e todos os tipos de materiais essenciais para os aliados. O transporte por Parnamirim foi importante para a conquista do Norte da África e do Oriente Médio, além da invasão do sul da Europa. Daí surge à expressão que apontou a cidade de Natal como o “Trampolim da Vitória”.

A Base Militar no Rio Potengi e a presença Militar dos Estados Unidos no Brasil

A área da Panair a margem do rio Potengi não deixou de dar a sua contribuição para a defesa da nossa região, bem como dentro do espírito de cooperação entre brasileiros e norte-americanos.

Em 11 de dezembro de 1941, um mês e meio antes do Brasil decretar o rompimento das relações diplomáticas e ocorrer o reconhecimento do “Estado de Beligerância” e oito meses antes da declaração formal de guerra contra as potências do Eixo, chegam ao rio Potengi de seis hidroaviões militares PBY-5 Catalina, do esquadrão de patrulha marítima VP-52, da Marinha dos Estados Unidos (United States Navy-U.S. Navy). Já a área as margens do rio Potengi que pertencia aos alemães, passa a ser utilizada pelos americanos.

Foto da construção da nova estação de passageiros - Fonte - Tribuna do Norte
Foto da construção da nova estação de passageiros da Panair com seus arcos característicos – Fonte – Tribuna do Norte – http://tribunadonorte.com.br/news.php?not_id=245971

Neste período é construída a edificação com arcos e torre de controle que marcam este local histórico. Paralelo a esta situação são construídas rampas de acesso para a retirada dos hidroaviões da água e manutenção em terra. Por esta razão o lugar passou a ser conhecida pelos natalenses simplesmente como Rampa.

Um hidroavião  Martin PBM Mariner, da U.S. Navy, visto através dos arcos do prédio histórico da Rampa - Fonte - Tribuna do Norte
Um hidroavião Martin PBM Mariner, da U.S. Navy, visto através dos arcos do prédio histórico da Rampa – Fonte – Tribuna do Norte – http://tribunadonorte.com,br/news.php?not_id=245971

Além da base de Parnamirim e da área as margens do rio Potengi em Natal, dentro do processo de cessão de áreas militares no Brasil, os norte-americanos passaram a operar em 15 outros pontos do território brasileiro, em uma abrangência que ia do Amapá ao Rio Grande do Sul.

Para termos uma ideia da grandeza desta ação, o documento que apresentamos a seguir foi produzido em 14 de maio de 1944 e mostra a disposição das áreas de operações que a 4ª Frota (Fourth Fleet) da U.S. Navy possuía no Brasil.

Listas das bases da U.S. Navy no Brasil em 1944 - do Amapá ao Rio Grande do Sul.
Listas das bases da U.S. Navy no Brasil em 1944 – do Amapá ao Rio Grande do Sul.

É importante apontar que além da U.S. Navy, operava no nosso país a Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force-USAAF), com grande quantidade de homens e aviões, principalmente na função de transporte.

Nova Utilização 

Após o final da Segunda Guerra Mundial, diante dos progressos técnicos da aviação, do crescimento do fluxo de passageiros e das mudanças em relação à forma de utilização da aviação comercial, a necessidade de estações de hidroaviões como a existente as margens do rio Potengi decresceu vertiginosamente.

Nova estação da Panair, mas sem utilização após a guerra - Fonte - Tribuna do Norte
Nova estação da Panair, mas sem utilização após a guerra – Fonte – Tribuna do Norte – http://tribunadonorte.com.br/news.php?not_id=245971

Como havia sido anteriormente acordado entre o governo brasileiro e o norte-americano, as áreas militares utilizadas a margem do rio Potengi foram devolvidas aos brasileiros, fato que ocorreu em 1946.

O destino desta área militar foi uma parte entregue ao Exército Brasileiro (Que ali criou o aquartelamento atualmente denominado 17º GAC) e outra a FAB. Esta última Força ali implantou uma área de lazer para seus membros, que se tornou uma forte geradora de diversas atividades sociais, tanto para os militares, quanto ao povo natalense.

Um restaurante operou no prédio da Rampa - Fonte - Tribuna do Norte
Um restaurante operou no prédio da Rampa – Fonte – Tribuna do Norte

Com o passar do tempo, em parte devido às mudanças do eixo de expansão da cidade de Natal, bem como diante de diversas mudanças de caráter social, cultural e de comportamento da nossa sociedade, a área da Rampa foi gradativamente perdendo sua importância e sua utilização pública cessou.

Nos últimos anos o local ficou sob a responsabilidade da União Federal e em 2009 foi repassada para a responsabilidade do estado do Rio Grande do Norte, que tem planos de ali abrigar um museu ligado a história da aviação e da Segunda Guerra Mundial.

Esperança de Recuperação

Em 2 de junho de 2013, em mais uma visita relâmpago ao Rio Grande do Norte, a Presidente Dilma Rousseff assinou a ordem de serviço para a obra, que está orçada em R$ 7,2 milhões, com a conclusão do serviço prevista para 12 meses.

Visita do historiador e brasilianista Frank McCann a Rampa - Fonte - Coleção do autor
Visita do historiador e brasilianista Frank McCann a Rampa – Fonte – Coleção do autor

Segundo reportagem do periódico Novo Jornal, de 3 de junho de 2013, o histórico prédio da Rampa não passa por uma reforma há mais de dez anos. Levantamentos realizados pela equipe técnica da Secretária de Turismo mostra que a estrutura apresenta problemas. O piso cimentado não tem condições de uso, as vigas e pilares que compõem todos os prédios do complexo estão em estado de oxidação e o antigo cais tem de ser demolido e construído um novo. A expectativa dos órgãos de turismo é que “o futuro Museu da Rampa e o Memorial do Aviador, que fazem parte do complexo, resgatem do esquecimento o antigo reduto das tropas aliadas na Segunda Guerra Mundial, transformando-se em atração turística”.

Na época da assinatura da ordem de serviço, antes do início das grandes manifestações que atualmente ocorrem no país, a expectativa era que a empresa responsável pela obra, a Ramalho Moreira Ltda, começasse os trabalhos já no dia 10 de junho corrente.

O autor deste artigo com o professor McCann na Rampa - Fonte - Coleção do autor
O autor deste artigo com o professor McCann na Rampa – Fonte – Coleção do autor

Na última sexta feira, 28 de junho de 2013, estive no local com o historiador norte-americano Frank McCann, professor da universidade de New Hampshire, um dos mais respeitados brasilianistas e profundo conhecedor da história do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Infelizmente nada, nenhuma obra física havia sido iniciada. Bem, pode-se argumentar que “Construção no Brasil é assim mesmo”. Ou então que “Diante das manifestações tudo atrasou”. Melhor seria que já estivesse sendo feito algo.

FrankD (87)

Para Frank McCann, a visão atual da Rampa foi um impacto. Esse americano, cujas obras literárias são referência no estudo sobre as relações políticas entre o Brasil e os Estados Unidos, sobre o Exército Brasileiro, sobre a nossa participação na Segunda Guerra Mundial e que desenvolve pesquisas históricas em nosso país há mais 50 anos, é um absurdo que aquele local, com tamanha bagagem histórica para a aviação brasileira e mundial, esteja naquele estado.

Espero que em breve estas mudanças ocorram e que aquele local seja preservado.

Todos os direitos reservados

É permitida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de
comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.

A HISTÓRIA DA AVIAÇÃO NO RIO GRANDE DO NORTE – CONTADA POR TARCÍSIO MEDEIROS

Mapa mostrando a proximidade da região Nordeste do Brasil com a África e a Europa – Fonte – Coleção do autor

A situação geográfica do Rio Grande do Norte no saliente Sul-americano ficou mais em evidência perante o mundo no período de 1922-1937, em decorrência do desenvolvimento aviatório ocorrido logo após o término da 1ª Grande Guerra. De 1920, sobretudo, á busca de pontos estratégicos para encurtar distâncias entre os Continentes, em razão da precária estrutura e potência dos motores dos aviões de então, constituía a preocupação dos países líderes na exploração das rotas aéreas comerciais.

Antiga nau portuguesa – Fonte – Coleção do autor

O litoral do Estado, que fora ponto de convergência das naus do movimento de expansão marítima do passado, vai ser o ponto de reunião das novas naus do espaço para o salto sobre o atlântico Sul, meta de todos os grandes vôos entre Europa, África e América.

E que inexplicável coincidência do destino! A terra de Augusto Severo, pioneiro da aviação, marcaria, mais uma vez, a sua presença no momento consagrador de sua evolução, testemunhando rasgos de audácia, coragem, sacrifícios, fracassos, daqueles que buscavam a glória em luta com o tempo. Os fenômenos meteorológicos e os das correntes marítimas existentes no corredor Atlântico entre Natal e Dakar foram descritos desde o ano de 1860 por Robert-Avé-Lallemant como perigosos na área do litoral potiguar, provocadores de situações difíceis e capazes de atrair as suas costas embarcações desconhecedoras dessas particularidades.

O médico e explorador alemão Robert Christian Barthold Avé-Lallemant – Fonte – http://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Christian_Av%C3%A9-Lallemant

Também do outro lado, a começar do Cabo Bojador para o sul, abrangendo o cotovelo africano, existe o chamado “Mar da Escuridão” dos antigos navegantes. Paul Herrman (A Conquista do Mundo) descreve a região como consequência da água do mar que, lançada sobre recifes e bancos de areia por quilômetros de oceano, de forma violenta, agitada pelos ventos, provoca uma cortina de vapor que escurece tudo, até grande altitude. A região, por tal, passou a ser conhecida como “Pot-au-Noir” para qualquer espécie de navegação, sobretudo aérea ao tempo das primeiras travessias, quando os aviões não tinham condições para atravessá-la. Aí seria o túmulo de muitos aviadores e o de Mermoz, em 1936. Esse obstáculo originou a que as tentativas iniciais do vôo transatlântico partissem da costa africana em demanda de Natal, porque em sentido contrário os ventos soprando, ainda, rijos contra o nariz do avião, consumindo, pelo esforço, mais combustível, complicava a conclusão do “raid”.

Natal, uma cidade que cresceu sobre asas – Fonte – Coleção do autor

Por isso, Natal acolheu muitos desses aviadores vindos da África, ou em vôos percorrendo as Américas. Poucos ficaram para o retorno, apenas franceses e alemães em competição para exploração do correio aéreo internacional. Os franceses, inicialmente, mantiveram o serviço percorrendo o caminho de volta por meio do “Aviso Postal”, pequeno navio rápido, tripulado por senegaleses brancos e negros, até Mermoz conseguir realizar a façanha direta com o “Arc-em-Ciel”. Os alemães da Syndikat kondor, reabastecendo os seus aviões no meio do Atlântico com o navio catapulta “Deustchland”, depois o “Westfalen”, finalmente com o dirigível “Graf Zepellin” e os aviões da Lufhansa “Dornier-Wal”, dois motores, de 1.500HP, também, diretamente.

Gago Coutinho e Sacadura Cabral partindo de Lisboa em direção ao Brasil Natal, uma cidade que cresceu sobre asas – Fonte – Coleção do autor

A travessia das 1.890 milhas entre a África e o Brasil (Natal) foi iniciada em 1922 pelos portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que executaram o trajeto com muitas dificuldades entre Lisboa e Rio de Janeiro, em etapas, arrebentando aviões até Fernando de Noronha. Daí rumaram para Recife, passando sobre Natal. Como outrora as caravelas de Cabral, agora eles percorriam roteiro semelhante, porém com as novas “Caravelas dos Ares”. Depois, outros seus patrícios repetiram o feito, com mais sucesso. Nesse ano de 1922, já o estuário do Potengi abrigava os primeiros hidroaviões que começavam a percorrer as Américas.

Na foto vemos o norte americano Walter Hilton e o cearense Euclides Pinto Martins, que possuía forte ligação com o Rio Grande do Norte – Fonte – Coleção do autor

Assim, no dia 21 de Dezembro, amerissava o Sampaio Correia-II, tripulado pelo brasileiro Euclides Pinto Martins e o norte americano Walter Hilton, num “raid” Nova York-Rio de Janeiro, percorrendo 5.587 milhas. Pelas 14 horas, “a libellula de aço”, no dizer de “A República”, tocava as águas do rio, atracando no Cais Tavares de Lyra debaixo de aclamação popular e homenagens prestadas pelas autoridades do Estado. No dia imediato, rumava para o sul. O percurso anterior tinha sido feito de Aracati (Ceará) para Natal.

Hidroavião espanhol “Plus Ultra” e sua tripulação – Fonte – Coleção do autor

Somente de 1926 em diante, o movimento aviatório é intensivo em Natal. Alvoroçada ficou a cidade, desde o mês de fevereiro, porque estava no roteiro dos aviões “Plus Ultra” comandando por Ramon Franco e Ruiz de Alda y Duran, pretendendo a travessia Espanha-Buenos Aires, e do “Buenos Aires” comandando por Bernado Duggan acompanhado de Olivieri e Ernesto Campanelli, italianos, no intuito do “raid” Nova York – Buenos Aires. O primeiro, depois de partir de Dakar e haver percorrido 2.950 Ks, caiu em Fernando de Noronha. Reparado, seguiu para Recife- Rio de Janeiro- Buenos Aires.

Hidroavião “Buenos Ayres”, que apenas sobrevoou Natal em 1926 e aterrissaram na Barra de Cunhaú – Fonte – Coleção do autor

O segundo, iniciando viagem em maio, após vários acidentes no trajeto Havana-Pará, chegou ao litoral do estado no dia 11 de julho, pousando sem maiores consequências na Baía de Cunhaú. Socorrido com o necessário, partiu, depois, para Cabedelo, Paraíba.

Hidroavião “Santa Maria” – Fonte – Coleção do autor

No ano de 1927, em 24 de fevereiro, chega o “Santa Maria” de propriedade do Marquês de Pinedo, tendo como companheiros o cavaleiro Carlo Del Prete, Capitão de aeronáutica, e Victale Zachetti, “motorista”, todos italianos. “A República abria notícias:” Natal é o primeiro porto brasileiro em que pisa o marquês De Pinedo. Há três dias a alma da cidade vibra de emoção para saudar o grande aviador italiano. O coração do povo queria aplaudir o feito do famoso conquistador dos ares que hoje é considerado uma das verdadeiras glórias da aviação universal “”. De Pinedo, partira de Elmas, em 13 de fevereiro, chegando a Vila Cisneiros (Colônia do Rio do Ouro), 14 do mesmo mês, pelas 16 horas. Largou para Bolama, na Guiné portuguesa, aonde chegou no dia 15 as 7.30. Depois seguiu para Dakar a 17, decolando daí na noite do dia 18 para Porto Praia, local em que amerrissou no dia 19, pelas 9,30.

O italiano De Pinedo – Fonte – Coleção do autor

Somente no dia 22, levantou voo para Natal. Em Fernando de Noronha, como outros, faltando gasolina, teve de fazer um pouso de emergência. Foi reconhecido pelo Cruzador “Barroso”, no qual se hospedou. No dia 24 de fevereiro, pelas 7 horas decolava para Natal, chegando ás 9,30.

Como os anteriores, recebeu grandes manifestações. Desfilou em carro aberto pelas ruas da cidade, com as autoridades. A Assembléia Estadual, pelas 12 horas, ofereceu um almoço de 40 talheres. No seu discurso de agradecimento, De Pinedo foi profético: “Natal será a mais extraordinária estação da aviação mundial”. Carlo Del Prete e Victale Zachetti não desceram a terra, tendo permanecido todo o tempo a bordo do avião, procedendo á limpeza interna do aparelho, no qual foram ajudados por dois marinheiros da Capitania dos Portos. “A Rotisserie Natal” forneceu-lhes almoço a bordo por conta do governo do Estado. Carlo Del Prete voltaria a Natal, em 5 de julho de 1928, em companhia de Arturo Ferrarin, quando bateriam o “recorde” na travessia Roma – Natal (Praia de Touros). Partiram pelas 15:30, rumando para Recife.

O hidroavião português “Argos” – Fonte – Coleção do autor

O “Argos”, sob a direção do Major Sarmento de Beires, e tendo como auxiliares de navegação Jorge de Castilho e Manuel Gouveia, foi um dos aviões mais festejados que tocaram em Natal, por serem seus tripulantes portugueses. Tendo decolado de Bolama às 17 horas do dia 12 de março de 1927, amerrissou 150 quilômetros adiante. Recomeçou o voo para também pousar em Fernando de Noronha, no dia 18 de março pelas 10:15 às 12:55, contudo, do mesmo dia, estava em Natal, saudando a população em nota distribuída á imprensa: “A tripulação do avião” Argos “saúda o povo brasileiro que tão intensamente sabe vibrar sob a impressão resultante de qualquer tentativa levada a feito por homens dessa raça única e que pertencem os povos brasileiros e portugueses. Que o nosso esforço possa contribuir para o estreitamento da união luso-brasileira, tal é a nossa aspiração”.

Depois, Sarmento de Beires autografou um álbum de Sérgio Severo, filho de Augusto Severo, com a significativa mensagem: “Se não tivesse havido toda essa coorte de sacrifícios, entre os quais Severo fulge com cintilação imorredoura, as asas humanas não poderiam hoje singrar no espaço com segurança que nos permitiu atravessar o Atlântico numa noite inteira de voo . Pelas 16 horas, um após outro, suavemente, baixaram no Potente, amarrando em boias frente á pedra do Rosário.

Hidroavião norte-americano Loening OA-1A, da conhecida “Esquadrilha Dargue”, que estiveram em Natal em 1927 – Fonte – http://earlyaviators.com/eloenin2.htm

Comandante: Major Herbert A. Dargue, natural de Brooklin, Nova York. Sub-comandante, Capitão Artur B. Mac Doniel, de Santo Antônio, Texas, 1.o Tenente, Bernad S. Thompsom de Begdad, Flórida 1.o Tenente, Charles Mac Robson, de Columbus Ohio. 1.o Tenente, Luiz Fairchind, de Bellingham, Washington. A esquadrilha tinha feito o trajeto: Santo Antônio (Texas), Tambicu, Vera Cruz e Santa Cruz, no México; Guatemala, S. Salvador, Honduras, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, Brasil, passando pelo Rio Grande do Sul, Florianópolis, Santos, Rio, Bahia, Recife e Natal. Segui para o norte até completar o percurso nos Estados Unidos. Ao sair dos Estados Unidos, era composta de cinco aviões. Na Argentina houve um desastre, quando perdeu dois: o “New York e o Detroit”, que se chocaram no aeroporto de Palomar.

A capital potiguar parou para receber os brasileiros do “Jahú”- Fonte – Coleção do autor

Fins de abril, maio, junho de 1927, foram dias movimentadíssimos em Natal e para o mundo, por acontecimentos inusitados, envolvendo a avião da época. Ao mesmo tempo, em regiões diferentes, era programados vários vôos transoceânicos, abrindo “manchetes” nos jornais de todos os países.

O “Jahú”, tendo a frente o piloto Ribeiro de Barros- Fonte – Coleção do autor

Para a travessia do Atlântico Sul, interessando o brasil particularmente, estava o avião brasileiro “Jahu”, tripulado e de propriedade de João Ribeiro de Barros, paulista de 26 anos; com os companheiros João Negrão, de 26 anos; Vasco Cinquini, filho de italianos, porém brasileiro de nascimento, com 27 anos, mecânico do campo dos Afonsos e o Capitão Newtom Braga, com 42 anos. O raid seria Gênova-Dakar – Natal até Rio de Janeiro.

Preparado para o mesmo salto, de Rue (França) -Dakar-Natal, também desde abril, estava pronto o Marquês de Saint-Roman, com o “Paris-Amérique-Latine”. Pretendendo a travessia do Atlântico Norte, Europa – América do Norte, os franceses Nungesse e Coli tinham preparado o “Pássaro Azul”, e de New York para Paris, Charles Lindbergh, o “Saint-Louis, estando em jogo um prêmio no valor de 25.000 dólares. Da Inglaterra, os Tenentes Carr e Gilman preparavam o vôo Inglaterra-Índia. Da Espanha, chegavam notícias da circunavegação do globo pretendia por Ruiz Alba e Padelo Roda.

Outra imagem do “Jahú”- Fonte – Coleção do autor

Como se nota, estava-se presenciando um momento histórico da aviação: A conquista do espaço intercontinental contra o tempo numa provação de coragem humana e valorização de suas máquinas. O “O Jahu” depois de fazer o percurso Gênova – Dakar sem acidentes, pelas 3,45 do dia 29 de abril, largava de Porto Praia para Natal. Estações de rádio mais variadas, montadas por todo o brasil e, especialmente em Fernando de Noronha, espalhavam notícias constantes da travessia, esperando-se que batesse o feito anterior do “Argos”, então festivamente acolhido no Rio de Janeiro, e que chegasse primeiro a Natal do que de Saint-Roman.

Durante à tarde do mesmo dia, silenciaram as comunicações. O povo dormia nas calçadas dos jornais de várias cidades, aguardando notícias. Somente no dia seguinte, soube-se que o “Jahu”, pelas 17:30, caíra a 100 milhas de Fernando de Noronha, por Ter rompido uma hélice de um dos motores. O navio “Belvedére”, que passava no local, radiografou a triste nota, e que o “Angel Losi”, mais próximo do sinistro, estava rebocando o “Jahu” para a ilha nada tendo acontecido aos tripulantes. O jornal “Á Pátria”, que então era editado no Rio de Janeiro, achou de dar a notícia do acidente como motivado pela imperícia dos tripulantes do “Jahu”, fato que não ocorrera com o “Argos”. O povo que sofria apreensivo com o possível fracasso do avião brasileiro, rompeu num protesto violento contra o jornal, quebrando tudo, morrendo gente na confusão.

O “Jahú”, um hidroavião Savoia-Marchetti S.55, o último de seu modelo no mundo, atualmente se encontra no Museu de aviação da TAM, em São Carlos, São Paulo – Fonte – http://www.trekearth.com

No dia 5 de maio, Ribeiro de Barros ainda aguardava a nova hélice em Fernando de Noronha, quando a imprensa anunciou a largada de Dakar para Natal do “Paris-Amérique-Latine” de Saint-Roman. Então, o suspense foi martirizante. Recife, 5 – “De Dakar informa que o” Paris-Amérique-Latine “passou alto, pelas 12 horas, sobre os rochedos de S. Pedro e São Paulo” – Expectativa.

Recife, 6 – “Depois das 18 horas de ontem, nenhuma notícia positiva veio mais sobre o” Paris-Amérique-Latine “. As estações de rádio de Olinda e Fernando de Noronha têm estado em comunicação com os navios que cruzam o Atlântico, não conseguindo nenhuma informação do aparelho. O cabo francês também não recebeu notícia alguma. Parece que Saint-Roman anda fora de rota comum de navegação”. Consternação geral.

Natal esperou um nobre francês que viria pelo ar e que jamis chegou- Fonte – Coleção do autor

Depois, de todo o mundo, chegavam pedidos de informações sobre o paradeiro do “louco sublime”, como fora apelidado o simpático marquês. Organizaram-se buscas e mais buscas por todo o litoral brasileiro. Navios de vários países vasculharam o Atlântico Sul, e nada. Os mais desencontrados boatos davam Saint-Roman nas praias do Recife, Fortaleza, Maranhão até ás margens do São Francisco; ou que os destroços tinham batido no litoral de Massachusetts  Estados Unidos. Tão somente em 29 de junho, os restos do avião de Saint-Roman eram identificados no litoral brasileiro, entre o Maranhão e Pará. Mas um herói para a galeria da França, cujo drama emocionou as nações, especialmente o Rio Grande do Norte, que o esperou sempre. Enquanto isto, no dia 10 de maio, chegavam informações de Paris de que o drama de Saint-Roman não abatera o ânimo dos tripulantes do “Pássaro Azul”. No dia anterior, tinham partido para o “raid”. Paris-Nova-York. Idêntico destino estava reservado para eles: Desapareceram também nas águas frias do Atlântico Norte. A 14 de maio, finalmente, Natal aguardava a chegada do “Jahú”, que, recuperado, partira de Fernando de Noronha, ás 9,10.

Como um jornal pernambucano estampou a chegada do “Jahú” a Natal – Fonte – Coleção do autor

Multidão. Toda a cidade estava ás margens do Potengi. Navios, embarcações de todos os tipos, engalanados em arcos de bandeiras multicores. Pelas 13 horas, o ronco dos motores cresce á medida que a silhueta vermelha avulta no horizonte, vinda do mar. Quando numa curva sobrevoou Natal, o delírio foi indescritível: Palmas, gritos. Baixando após a ponte de Igapó, na altura da Pedra do Rosário, suavemente, uma, duas vezes, toca as águas do Potengi e depois desliza até ás proximidades do Cais Tavares de Lyra, onde atracou numa bóia.

O desembarque desses homens em terra foi um pandemônio. Ninguém conteve a multidão. Arrebatados, percorreram ruas de Natal nos ombros do povo. Depois, manifestações oficiais e particulares intermináveis. Durante dias, estafaram-se em um nunca acabar de festas, os solteiros arrebatando os corações das moças da terra… De tal modo que a poesia de cordel do tempo cantou… De forma irreverente. Pretendia Ribeiro de Barros deixar Natal depois do dia 20 para tanto distribuiu á imprensa uma nota: “Quando de perto sentimos a grandeza da alma, o civismo e a hospitalidade desse povo, embora de passagem, só temos um pensamento: Ficar. Só um compromisso do dever elevado e os reclamos de outros brasileiros podem ser uma força capaz de nos fazer partir, levando no coração um sentimento que nem a palavra saudada traduz”. a) Ribeiro de Barros – Newton Braga – João Negrão – Vasco Cinquini. A 24, pretendeu decolar. Tentativas e mais tentativas, e o “Jahu” teimava em ficar. E ficou até junho, revisando os motores.

Charles Lindbergh – Fonte – Coleção do autor

No mesmo dia 24 de maio, os jornais de todo o mundo saudavam um novo herói: Charles Lindgergh, o “ás” que realizou, sem etapas, diretamente, a travessia Nova York – Paris, fazendo jus ao prêmio “Orteig” de 25.000 dólares. A recepção do aeródromo de Bourget foi uma coisa nunca vista em Paris, quando Lindbergh aterrissou já á noite. Os cordões de isolamento foram rompidos e o povo carregou o aviador nos braços, também. Cansado, arrebentado, dormiu 14 horas seguidas, depois. Só mais não fez, porque foi acordado pela multidão que reclamava sua presença na sacada do hotel. Tarde de 3 de junho de 1927, o “Argos” voltava a Natal em sua viagem de regresso á pátria. O “Jahu” continuava em reparos. Domingo 5, pelas 7:30, com a presença dos tripulantes do “Argos”, autoridades e povo, o “Jahu”, finalmente, decolava rapidamente em demanda do Recife, aonde chegou pelas 9,30 do mesmo dia.

No dia seguinte o “Argos” seguiu para o Pará. Lá sofreria um acidente, danificando-se. Toda a equipagem, porém, safou-se para chegar em Lisboa, via Marítima.

Paul Vachet, terceiro a partir da esquerda, pousou com seu avião na praia da Redinha. Aqui o vemos em Buenos Aires – Fonte – http://sterlingnumismatic.blogspot.com.br

No mês de julho de 1927, continuava Natal em constantes surpresas ao receber aviadores inesperados. Em 18, é a vez de um Breguet da Latecoère. Companhia francesa de aviação, em busca de fixar-se na cidade, a fim de tentar o salto á África, e com isso conseguir o privilégio de um convênio com o governo para fazer o transporte do correio internacional, de vez que aos alemães haviam conseguido o mesmo no sul do país. Esse avião, que era um biplano terrestre, ou um aeroplano, somente podia aterrar em campo apropriado que não existia ainda na cidade. Partindo de Alagoas, chegou a Natal nessa data, aterrissando na Praia da Redinha, por não encontrar local melhor. Era comandado por Paul Vachet, acompanhado de Dely e Fayard.

Paul Vachet em um dos seus voos – Fonte – http://www.ladepeche.fr

O “Diário de Natal”, em duas edições de março de 1966, sob o título “Primeiro Avião em Natal”, publicou a tradução em trechos esparsos do livro desse aviador, então Coronel da Aviação francesa, já setuagenário, em que diz: “O voo foi efetuado a 17 de julho de 1927(e não 18) de 1927: esta é, portanto, a data da descoberta de Natal, do ponto de vista aeronáutico, de Natal que jamais recebera um avião e devia ser nossa cabeça de linha transatlântica para a América do Sul até o armistício de 1945. Evidentemente, por tudo que foi dito anteriormente, a afirmativa do velho Coronel, data vênia, constitui uma lastimável inverdade, justificável, apenas, para que lhe seja atribuído o mérito do pioneirismo da missão. Antes dele, pelos dramas heroicos de que fora testemunha da história, Natal já estava nas manchetes dos jornais de todas as nações, fazendo justiça àquela afirmativa de De Pinedo: “a mais extraordinária estação da aviação mundial”. E foi por isso que ele veio para cá.

Campo de Parnamirim na década de 1930 – Fonte – http://embuscadenovoscaminhos.blogspot.com.br

Paul Vachet, não resta dúvida, foi quem primeiro trouxe a Natal um aeroplano, o qual, por falta daquelas condições, aterrou na Redinha, e para atender os interesses de sua Companhia, por indicação do então Capitão Luiz Tavares Guerreiro conheceu o local no qual ergueria “PARNAMIRIM”. O terreno de propriedade da família Machado foi-lhe doado em seu próprio nome, mais tarde sendo lavrada a escritura para a Latecoère, que, sendo Companhia francesa sem personalidade jurídica reconhecida no Brasil, não poderia Ter recebido, naquele tempo, a doação.

Juvenal Lamartine – Fonte – http://encantosdoserido.blogspot.com.br

“Parnamirim”, a partir de então, tornou-se o Aeroporto Internacional maior da América do Sul, famoso em todo o mundo, especialmente por ocasião da Segunda Grande Guerra. A glória de sua fundação deve-se a Paul Vachet e a Latecoère. Prevendo o futuro do Estado que iria governar, Juvenal Lamartine, desde 21 de maio de 1927, apresentou na Câmara Federal, posteriormente aprovado e sancionado, o projeto de lei autorizado o poder Executivo criar no Porto de Natal um AVIÓDROMO que de acordo com a navegação aérea, teria oficinas para reparos, depósitos de material e combustível.

Avião Francês Laté-25 – Fonte – http://www.airwar.ru

Concretizando os trabalhos iniciados por Paul Vachet, Dely e Fayard, “Parnamirim” com pistas de grama e barro, estava em condições de receber os aviões da Latecoère. Assim, no dia 14 de outubro de 1927, aterrissava o “Nungesser-et-Coli”, com Costes e Le Brix, concluindo o pulo ATLÂNTICO de São Luís do Senegal a Natal. EM 20 de novembro do mesmo ano, o Laté-25 iniciava a linha regular, com Pivot, Pichad e Gaffe.

Logotipo da Condor – Fonte – Coleção do autor

No ano de 1928, os alemães que haviam fundado uma sociedade denominada “Syndikat Kondor”, desde 1.o de dezembro de 1927, estendem suas linhas na rota Porto Alegre – Rio de Janeiro- Natal. Em 14 de junho desse ano, amerissava no “Potengi”, um “Junkers” trimotor.

Festividade em Natal para os aviadores italianos Ferrarin e Del Prete. Da esquerda para direita vemos o Cônsul italiano em Recife, Arturo Ferrarin, Juvenal Lamartine, Carlo del Prete e a cientista Berta Lutz

Também os italianos entram na competição atlântica. A 5 de julho de 1928, Arturo Ferrarin e Carlo Del Prete, com um avião Savóia-64, conseguem bater o “Recorde” de distância Roma-Natal, caindo, porém, na Praia de Touros. Recebidos com carinho e entusiasmo pelos natalenses, a Itália reconhecida, oferecida, quando da chegada de Ítalo Balbo em 6 de janeiro de 1931, a Coluna Capitolina a fim de perpetuar a façanha inusitada, e por muitos anos insuperável, dos seus dois filhos heróis.

Ainda em 1928,29 de dezembro, pelo Dr. Juvenal Lamartine, Presidente, Dr. Dioclécio Duarte, Vice-Presidente, Dr. Adauto Câmara, 1.o Secretário, era fundado o “Aero Club” do Rio Grande do Norte, no bairro do Tirol, com o seu pequeno campo de pouso ao lado do poente da sede social. Participaram das festividades, numa revoada de Parnamirim a Natal, um “Blue-Bird”, pilotado pelo Diretor-Técnico, Comandante Djalma Petit, trazendo a bordo o Sr. Fernando Pedroza, e um aparelho da Générale Aéropostale (C. G. A.), pilotado por Depecker, conduzido o Sr. J. Pinon e dois mecânicos. Na ocasião, foi batizado o primeiro aeroplano do “Club”, com o nome de Natal.

De gravata borboleta vemos o piloto Djalma Fontes Cordovil Petit, oficial da Aviação Naval e diretor do Aero Clube do Rio Grande do Norte, tendo a sua esquerda o governador Lamartine

A partir de 1929, quando, possuindo o campo de “Parnamirim” e o estuário do Potengi, com meios de pouso para aeroplanos e hidroaviões, Natal passou a ser a capital do Brasil mais em evidência, eixo das rotas aéreas, sobretudo internacionais, é possível, como resumo dos fatos principais, fixar em EFEMÉRIDES, os seguintes:

Avião Bellanca CH-200, igual ao que os aviadores peruanos Carlos Martínez de Pinillos e Carlos Zegarra Lanfranco estiveram em Natal – Fonte – http://zonamisterio.site90.com

Em 8 de janeiro de 1929 – pretendendo fazer o circuito das Américas, passa o “Peru”, um Wright de 220 HP, de nacionalidade peruana, pilotado por Martinez e Zagarrra, que declararam, em a “República” de 9 do mesmo mês: “Natal confirma, dia a dia, o prognóstico de quantos asseveraram para si um posto de merecido destaque na América, como centro aviatório de interesse nacional e internacional”. Em 16, decolava com destino a São Luís do Maranhão.

Avião Breguet XIX GR, batizado como “Jesús del Gran Poder” em exposição no Museu del Aire de Cuatro Vientos, em Madrid, Espanha – Fonte – http://www.lasegundaguerra.com

Em 22 de janeiro de 1929 – Os primeiros campos de pouso são inaugurados no interior do Estado: _ (Ararinha) e Mossoró. Logo no dia 27, o de Ceará-Mirim. Em 28 de março – passa sobre Natal o avião Jesus Del Grand Poder, vindo da costa da África para aquatisar em Salvador, Bahia. Pretendia bater o recorde de distância e permanência no ar, de posse de Ferrarin e Del Prete. Em 9 de abril o aviador Chernu, partindo de Parnamirim, bate o “recorde” Natal – Rio de Janeiro, em 6 dias e 10 horas de voo, com escalas.

Hidroavião Consolidated Commodore da empresa New York, Rio & Buenos Aires Line (NYRBA) – Fonte – http://www.edcoatescollection.com

Em 5 de julho o hidroavião “Washington” amerrissa no Potengi, iniciando a linha Nova York – Rio- Buenos Aires, tripulação: Ralph A. O’Neill, acompanhado da esposa; M.M. Cloukey, piloto; H. Lelis, engenheiro; e miss Jane, secretária. Tinha a aeronave ainda capacidade para mais oito passageiros. No dia 6 demandou Recife. Em 7 de setembro – “A República” transcreve a reportagem traduzida do “The Sportman Pilot”, assinada por Miss Desbriere Irwin, de passagem por Natal para estudar as condições de instalação da “Pan-American Aiways”, na qual declarou: Natal é o ponto de escala das linhas comerciais e possui um clima agradável. Por sua posição geográfica foi escolhido como “Pivot” da linha aérea francesa. Tenho certeza que, futuramente, se tornará um dos grandes aeroportos internacionais do mundo “”. Em 13 de novembro O “Bahia”, pertencente á “Nyrba Line”, da rota Nova York – Rio – Buenos Aires, amerrissou no Potengi e depois decolou para Parnamirim onde aterrissou demonstrando ser um avião anfíbio já em uso. No dia 14, o “Tampa” da mesma Companhia, passou com destino ao norte. Foram demonstrações da nova técnica de fabricação da indústria aeronáutica norte-americana, caminhando para vencer a competição com os franceses e alemães. Em 20 de novembro A companhia Générale Aéropostale publica anúncio nos jornais advertindo á compra de passagens do tráfego regular entre Natal – Buenos Aires, até 11 horas das quintas-feiras.

Local da queda do avião que tinha como tripulantes o uruguaio Tydeo Larre Borges e o francês Leon Chale , na zona rural do município de Santo Antônio – Fonte – http://www.pilotoviejo.com

Em 6 de dezembro o “Aero Club” abre a matrícula para a sua escola de voo  sob a direção do Comandante Djalma Petit seu diretor técnico. Em 16 de dezembro de 1929 Cai em “Maracajá”, município de S. Antônio, distante de Nova Cruz quatro léguas, o biplano do aviadores Chelle e Larre Borges, que tentava o “raid” Sevilha-Buenos Aires. De Natal, seguiram para o local do sinistro, o Dr. Joaquim Inácio com uma ambulância e medicamentos, acompanhados pelo Sr. Ramade, Chefe do Aeroporto da CGA (Compagnie General Aeropostale), mecânico Chaulet. No avião do Aero Club, também partiram para o local do acidente, Djalma Petit e André Depecker. O aparelho ficou completamente destruído, sendo os destroços removidos para Natal, bem como o mais ferido Chelle. No dia 21 de dezembro, voltavam á pátria pelo Laté da linha regular.)

Em 10 de janeiro de 1930 o estuário do Potengi recebe o avião da “Pan -American Aiways” trazendo o sr. e sra. Georg Rihl e W. M. Cullbertson, 1.o piloto, Barnett Boyd, 2.o piloto e W. W. Ihma, radiotelegrafista, que iniciava o tráfego dessa Companhia com transportes de passageiros. Pelas 15:15, seguiu para Recife.

Jean Mermoz – Fonte – http://www.contre-info.com

Em 11 de janeiro Jean Mermoz começa a sua carreira de grande “ás” na América do Sul. Notícias de Buenos Aires afirmavam haver, no dia anterior (10), pilotando um Laté-28, n.o 926, com motor Hispano – Suíço de 500 C. V., em companhia do mecânico Colenot e como passageiro o banqueiro Macel-Bouilloux-Lafont, com a velocidade média de 228 quilômetros por hora, conseguido bater o “recorde” em 11 horas e 8 minutos do rio a Buenos Aires. Natal passava a conhecer o nome do homem famoso, que faria dela sua própria cidade.

Hidroavião de fabricação alemã, modelo Dornier Do J “Wal”, utilizado pela Condor – Fonte – mhttp://www.influindo.com.br

Em 22 de janeiro – O “Guanabara” hidroavião da “Sindicato Condor”, com sete passageiros, começou o tráfego costeiro e estabeleceu em Natal sua Agência, tendo como representantes Gurgel, Luck e companhia. Em 20 de fevereiro – Anúncio da vinda do “Conde Zeppelin” pela primeira vez no Brasil na rota Angola-Natal – Rio. Conforme notícia da imprensa, Natal tinha sido escolhida a cidade brasileira como base de suas futuras travessias. Por falta de meios do governo local para construir a torre de atracação, transferiu o local para Recife. Em 26 de fevereiro- “A República”- “Os que viajaram na Condor “. Dia 21, pelo Pirajá, de Natal para Recife: Simplício Cristino e Plínio Saraiva. De Recife para Natal: Luiz Pimentel Ribeiro e Jorge Kyrillus.

Em 16 de março (Domingo)- Pelas 15:30 o primeiro “Show aéreo” com Djalma Petit, pilotando o Natal-I, levando o acrobata Charles Cester, que passou pelas asas do aeroplano, ficou de cabeça para baixo, fez trapézio e L’enlévement du drapeau, ou seja, suspenso em trapézio, colocado abaixo das rodas do avião, de cabeça para baixo, arrancou, de passagem, uma bandeira suspensa do solo entre dois postes. Em 1.o de maio-Inaugura a Companhia Aeronáutica Brasileira a sua rota Recife – Natal, interligando-se com os aviões da Laté para transporte de malas postais á Europa.

Hidroavião Latécoère 28-3, pintado de vermelho, com o qual Mermoz e seus companheiros conseguiram atravessar o Atlântico – Fonte – http://jn.passieux.free.fr

Em 13 de maio de 1930 – Jean Mermoz faz sua primeira travessia de São Luís do Senegal para Natal pela “Cia. Générale Aéropostale” num Laté-28 com flutuadores. Tendo partido ás 8,55 (hora brasileira), chegou ás 18,20 depois de percorrer 3.100 quilômetros. A partir de então, ficou em Natal para tentar o percurso em sentido contrário, ainda não tentado por outros.

Em 20 de maio-Parte de Servilha com destino ao Brasil, o “Graf Zeppelin”. Dia 21, sobrevoava as Canárias e São Luís do Senegal. Dia 22 esperado em Natal, em vão. No dia 23, pelas 18:30, amarrava em Recife (Jiquiá). Partiria, depois, para o trajeto Recife-Nova York, sob o comando do Dr. Hugo Eckner.

Queda do avião do Aeroclube do Rio Grande do Norte que vitimou Edgar Dantas – Fonte – Coleção do autor

Em 23 de maio de 1930 – O primeiro desastre fatal na Escola de Voo do “Aero Club”. Falece no sinistro do “Natal-I”, Edgar Dantas, pertencente á tradicional família potiguar. Consternação geral na cidade.

Dirigível alemão “Graf Zeppelin” sobre a igreja Bom Jesus, no bairro da Ribeira – Fonte – http://aldeiapoti.blogspot.com.br/

Em 28 de maio de 1930 – Desamarrou de Recife com destino á Havana, pelas 11 horas, o “Graf Zeppelin”. Pelas 14 horas, sobrevoa Natal sob aclamação popular na praça “Augusto Severo”, sobre a qual deixou cair uma coroa de flores artificiais com os dizeres: “Homenagem da Alemanha ao Brasil na pessoa do seu grande filho Augusto Severo”. No momento era comboiado pelo Laté-25, n.o 616, pilotado por Velle e Dupont.

Em 8 de julho de 1930 – Pelas 16,30 após diversas tentativas na Lagoa do Bonfim (município de Nísia Floresta), próxima a Natal, decolou o grande hidroavião “Laté-28”, tripulado por Jean Mermoz, Gimié e Dabray, para a travessia Natal – São Luís do Senegal. A tentativa não foi completada, porque o avião caiu pelas 10,30 do dia 9, á altura de Dakar, no terrível “Pot-au-Noir”, em pleno mar. Sendo socorrido, voltou a Natal.

Aviadora norte-americana Laura Ingalls Houghtaling, a primeira grande aviadora a passar por Natal – Fonte – http://en.wikipedia.org/wiki/Laura_Ingalls_(aviator)

Em 8 de abril de 1934 – Aviadora Laura Ingalls- Prosseguindo seu “raid” sensacional através do Continente, passa em Natal, aterrando em Parnamirim, a aviadora Laura Ingalls, que foi recebida pelos senhores Etienne Duthuron, gerente da Air France e R. H. Dacuart, gerente da Standard Oil, demorando-se apenas o tempo indispensável á retribuição dos cumprimentos, havendo externado seu entusiasmo pela terra brasileira: Aterrissou em Parnamirim, pela curiosidade de conhecer o campo, do qual se falava muito nas rodas aviatórias dos Estados Unidos, tendo verificado que, realmente, pelas condições naturais de que o mesmo dispõe, é dos melhores do mundo. Uma hora, após o “AWAY” (andorinha americana), levantou vôo para Fortaleza.

O jovem espanhol Juan Ignácio Pombo e seu pequeno avião British Klemm Eagle 2, batizado como “Santander” – Fonte – http://cabeceras.eldiariomontanes.es

Em 22 de maio de 1935 – Pilotando o pequeno avião de turismo “Kienim”, pelas 15:10, em Parnamirim, aterra Juan Ignácio Pombo, concluindo a travessia Balhurst-Natal, no “raid” Espanha-México. Tinha, então, 21 anos e desde os 16 foi aviador mais moço de Espanha, sendo filho de aviador civil de sua pátria. O avião possuía um motor de 130HP, media 12 metros e 7 cm de comprimento, e peso de 1.350 quilos. Partiu no dia 26, pelas 8 horas, sendo obrigado a descer em Camocim (CE), á falta de gasolina. Ao aterrissar  capotou quebrando uma hélice e o trem de aterragem. Depois dos reparos, com material enviado de Natal, prosseguiu viagem.

A bela aviadora neozelandesa Jean Batten – Fonte – http://www.ianmackersey.com

Em 13 de novembro de 1935 – AVIADORA JEAN BATTEN- Parnamirim recebe, pelas 16:40, a aviadora Jean Batten, natural de Nova Zelândia que levantara voo de Lympne, na Inglaterra, ás 6,20 do dia 11; de Dakar, ás 3 horas do dia 12 (hora G.M.T.), tendo feito a viagem com o tempo favorável, chegou, porém estafada, e logo se recolheu á residência do Sr. William Scolchbrook, em Petrópolis  de quem foi hóspede nesta capital. A destemida aviadora fez percurso sozinha, sem rádio, sem pára-quedas, nem colete salva-vidas, tampouco canoa, em um aeroplano tipo “Percival-Grull”, de fabricação inglesa, monomotor de 200 cavalos, com condições para vôos a longa distância. No dia seguinte, partiu para o Rio de Janeiro.

Em 13 de novembro – Ainda nesse dia, o “Graf Zepelim”, procedente de Balhurst, pelas 19:20, sobrevoa a praia da Limpa em Natal, deixando cair às malas postais procedentes da Europa. Um hidroavião da Sindicato Condor tomando-as, rapidamente decolou para o sul levando as mesmas para distribuição. Esse método passou a ser adotado, todas as vezes que o grande dirigível veio ao Brasil, inclusive quando foi substituído pelo “Hindemburg”.

Um grande avião do seu tempo, o francês Latécoère 521, batizado “Lieutenant de Vaisseau Paris” – Fonte – http://jn.passieux.free.fr

Em 14 de dezembro de 1935 – “LIEUTENANT DE VAISSEAU PARIS”. Voou sobre Natal, indo aquatizar na hidrobase da” Air France “em frente ao Réfoles, o gigantesco hidroavião “Lieutenant de Vasseau Paris”, o mais potente aparelho desse tipo até hoje construído no mundo. A poderosa aeronave de seis (6) motores de 900 cavalos de força, o que lhe dá maior capacidade que o “DOX”, o qual apenas o supera em proporções e peso, tendo aquela a tonelagem de 40.000 quilos. A sua tripulação era composta de oficiais da Marinha e do Exército da França, devendo ir de Natal direto á Ilha de Martinica, possessão francesa nas Antilhas, onde assistiria ás festas patrióticas que ali seriam realizadas. Comandante, Capitão-tenente Bonnot; capitão-de-corveta Jozan,1.o piloto;1.o brigadeiro Castellari, 2.o piloto; 1.o brigadeiro Morvan, mecânico; Emont, radiotelegrafista, e mecânicos civis, Dessendi e Durutty.

Em 9 de janeiro de 1936 – A “Air France”, sucessora da Laté, faz realizar importante melhoramento no seu serviço aéreo, no Brasil. A Companhia que possui a mais extensa rede do mundo, ligando os quatros Continentes, estabeleceu no seu serviço de ligação entre Natal e Dakar, e vise e versa, cada semana, além dos hidroaviões transatlânticos “Santos Dumunt”, “Croix du Sud” e o quadrimotor “Centaure”, acaba de incorporar á sua frota o “Ville de Rio de Janeiro”, “Ville de Buenos Aires” e “ville de Santiago”.Todos esses aparelhos são munidos de quatro motores e já deram prova de sua eficiência com a perfeita regularidade com que asseguram seu serviço bimensal inteiramente aéreo durante o ano de 1935. A partir de então, os pequenos navios “Avisos Postais”, que faziam a travessia Natal-Dakar, começam a desaparecer do nosso porto. Não tinham mais utilidade. Como herança funesta, tinham deixado o “anofelis-gambiae”, ainda sendo combatido em nossos sertões.

Em 15 de janeiro – Naufragou no ancoradouro de Pensacola, Estados Unidos, o hidroavião “Lieutenant de Vaisseau Paris”, não havendo perda de vidas. No dia 16, estava sendo içado.

O aviador cubano Antonio Menéndez Peláez – Fonte – http://asociacioneltrichorio.blogspot.com.br

Em 17 de janeiro de 1936 – “Raid” Cuba – Servilha- Em Natal, o aviador Menendez Pelaéz. Tendo partido de Cuba e, após fazer escalas em Trinidad, nas Guianas, em Belém, São Luís e Fortaleza, chegou a esta capital o avião “4 de setembro”, pertencente á Marinha de Guerra Cubana, e pilotado pelo Capitão Antônio Mendez. O aviador cubano destinava-se a Sevilha, na Espanha. A partida realizou-se três dias depois, quando foram concluídos os trabalhos de revisão dos motores de 550 HP WASP. Foi abastecido com 2.000 litros de gasolina.

O grande dirigivel “Hindenburg”, que sobrevoou Natal – Fonte – http://lingeriehistorica.blogspot.com.br

Em 20 de julho -Procedente de Dakar, chegou pelas 23,35 horas o hidroavião transatlântico “Ville de Santiago”, sob o comando do piloto Guerrero. Com essa viagem completou a “Air France” a centésima travessia direta do Atlântico Sul. Em 29 de agosto – Pela primeira vez, passa em Natal, pelas 19:12, o grande dirigível alemão Hindemburg, sob o comando do Capitão Pruss, em sua Sexta viagem ao Brasil. Após evoluir sobre o aeroporto da Condor (Praia da Limpa), deixou cair às malas postais e seguiu para o Rio de Janeiro. Trazidas as malas do correio para o hangar da Condor, estas foram transportadas para o “Anhangá”, que levantou voo com destino ao sul. Enquanto esteve em atividade, esse dirigível, todas as vezes que veio ao nosso país, passou sempre por Natal, para essa finalidade.

Aviadora inglesa Amy Mollinson – Fonte – http://www.dieselpunks.org

Em 20 de outubro- AVIADOR AMY MOLLISON- Notícias de Paris dizem que, ao levantar voo o avião da famosa aviadora Amy Mollison, caiu ao solo deixando-a gravemente ferida. Restabelecida, Amy Mollison, em data posterior, esteve em Natal, depois da travessia do Atlântico Sul.

Em 10 de dezembro – A Condor-Lufhansa comemorava a 200 travessia aérea do Atlântico Sul, no serviço de transporte do correio internacional. Entretanto, é preciso fazer-se ressalva de que iniciara com escalas, fazendo baldeação das malas postais em plano Atlântico, com os seus navios catapultas.

Hidroavião Latécoère 300, batizado como “Croix du Sud” – Fonte – http://www.lesmanantsduroi.com

Em 11 de dezembro de 1936 – O DESAPARECIMENTO DE MERMOZ – Os jornais de Natal, abriram manchetes para anunciar. “Vem sendo infrutíferas todas as pesquisas no Atlântico, através da rota seguida pelo hidroavião da Air France, a fim de se encontrar Mermoz e seu “Croix du Sud”. As últimas esperanças se vão desvanecendo e no espírito de todos os que admiravam em Mermoz o esplendor de uma bela e gloriosa mocidade, já se firmou a implacável certeza do seu desaparecimento. Assim, aprofunda-se no sorvedouro ignorado um dos heróis mais queridos da aviação francesa. Jean Mermoz, 35 anos, brevetado em plena adolescência e possuidor de um grande e brilhante tirocínio….” “Esse homem que a França hoje lamenta, o Brasil também se solidariza, particularmente, nesta dor, pois centenas de vezes os céus foram cruzados por ele, nos seus vôos de incansável bandeirante do espaço. Natal bem conhecia Mermoz, pois aqui era um dos seus ninhos preferidos. Teve ele um fim digno de sua vida. Morreu como um grande pássaro, acompanhado o colapso do aparelho que dominava e dirigia. Morte de Condor, precipitado do azul, Banhado na ofuscante luz oceânica e aos estertores de uma tragédia para sempre ignorada.

Jena Mermoz desapareceu no “Pot-au-Noir”, quando, mais uma vez, retornava da África para Natal. Pelas 10,40 em rápida mensagem, disse que o motor da direita estava falhando. Depois, silêncio.

Antoine de Saint-Exupéry em Toulouse, França, 1933 – Fonte – http://en.wikipedia.org/wiki/Antoine_de_Saint-Exup%C3%A9ry

Antoine de Saint ‘Exupéry, seu antigo aluno e companheiro, pelo que lhe contou Mermoz na primeira vez que atravessou, descreve o “Pot-au-Noir”: “Trombas marinhas elevavam-se ali, acumuladas, imóveis, na aparência da escura e baixa da tempestade; mas através dos rasgões da abóbada, feixes de luz caminham e a lua cheia brilhava, entre os pilares, nas lajes frias do mar. E Mermoz seguiu sua rota através daquelas ruínas desabitadas, obliquamente, pelos canais de luz, contornando os pilares gigantes onde bramia a ascensão do marchando quatro horas, ao longo da esteira da lua, para a saída do tempo. E o espetáculo era tão esmagador que Mermoz, uma vez transposto o “Pot-au-Noir”, percebeu que não tivera medo”. Agora, Mermoz que havia decifrado as areias, as montanhas, à noite e o mar; que havia soçobrado mais de uma vez nas areias, nas montanhas, na noite, no mar, voltando sempre para partir outra vez, traído pelo encantamento do “pot-au-Noir, enfrentando a morte como enfrentou a vida, com arrojos, caiu, e, pela primeira vez não voltou mais. Ficou no seio das ondas do Atlântico, velho palco de suas epopeias.

A aviadora francesa Maryse Bastié- Fonte – http://en.wikipedia.org/wiki/Maryse_Basti%C3%A9

Em 30 de dezembro de 1936 – A AVIADORA MARYSE BASTIÉ – A aviadora francesa sem abater-se a tragédia de Mermoz e seus companheiros, concluiu o “raid” Paris-Dakar-Natal, em apenas 12 horas e 7 minutos, tripulando, solitária, um “Caudron-Simon”, do Ministério do Ar da França, sob prefixo “Fenxo”, sem rádio, com um só motor de 220 C.V. – A partida de Mlle. Bastié de Dakar verificou-se ás 4,23 (hora brasileira), tendo chegado ao campo de Parnamirim, ás 16,30. Era a Segunda vez que Natal hospedava a destemida aviadora francesa, detentora de vários “recordes” femininos entre os quais avultam o de permanência no ar, com a duração de 30 horas, e o assinalado nesta travessia atlântica.

Amélia Earhart em 1936- Fonte – http://www.archives.gov

Em 7 de junho de 1937 – Procedente de Fortaleza, chegou a Natal, pilotando o seu monoplano “Lockhead-Electra”, miss Amélia Earhart que realizava um voo em redor do mundo. Pouco antes das 9 horas, a arrojada aviadora norte-americana descia no campo de Parnamirim, sendo ali cumprimentada pelas autoridades e jornalistas. Em seguida viajou de automóvel para esta capital, onde permaneceu durante o resto do dia, recebendo as homenagens da colônia britânica.

“Ontem, pela madrugada, ás 3,13 minutos (hora local), miss Amélia Earhart reiniciou o seu voo  para cobrir uma das maiores etapas dessa audaciosa tentativa, a travessia do Atlântico Sul. Segundo informações telegráficas, a destemida aviadora havia alcançado Dakar, ontem mesmo, ás 16,15 (hora local), estabelecendo, assim, na travessia o tempo de 13 horas e 2 minutos. Acompanhava miss Earhart o seu piloto ajudante, capitão Fred Noonan”, informava “A República , de 8 junho de 1937. O monoplano de Amélia Earhart tinha capacidade para 4.800 litros de gasolina, dos quais 1.600 nos tanques das asas e 3.200 nos da fuselagem, podendo alcançar cerca de 9.000 metros de altitude.

Amélia no cockpit do bimotor Lockheed Model 10 Electra – Fonte – http://en.wikipedia.org/wiki/Amelia_Earhart

Amélia Earhart, nascida em Atchison-Kansas, em 24 de julho de 1898, morreu no mês seguinte (julho) ao desse “raid”, desse ano, sobre o pacífico, em condições misteriosas, dizem a serviço da espionagem americana, sobre ilhas próximas ao Japão. Professora em Massachusetts abandonou o magistério, em 1927, sendo a primeira mulher a participar de um voo solitário sobre o atlântico, em 1932. Repetiu a façanha sobre o pacífico, 1935, voando do Havaí á Califórnia. Escreveu as obras “20 Hs. e 40 minutos” 1928, “Último Voo , publicado posteriormente por seu marido George Palmer Putman.

A partir de 1938, em face do constante aperfeiçoamento das estruturas e potência dos aviões, bem como dos novos meios de comunicações, a travessia direta do Atlântico Sul, em ambos os sentidos deixou de constituir atrativo para constantes aventuras. A rotina tornou-se evidente ante o desbravamento da rota suicida até então, pois a região “Pot-au-Noir” já não constituía um risco ante aviões tipos usados por Marise Bastié e Amélia Earhart, que podiam alcançar até 9.000 metros de altura, transpondo-se sem dificuldades. Por outro lado, o “Rádio Farol de Natal”, instalado desde 1936, na Praia da Limpa, frente ao Atlântico, emitindo de meia em meia hora, em ondas médias, o seu prefixo P.X.N., permitiu orientação segura por intermédio do “radiogoniômetro” do momento em que a aeronave ou navio partisse do litoral africano.

Grande base aérea de Parnamirim Field – Fonte – http://moraisvinna.blogspot.com.br

Todavia, Natal não perdeu a sua importância estratégica como cabeça de linha transatlântica para a América do Sul, uma das esquinas do mundo. Confirmaria, mais uma vez, o seu determinismo geográfico necessário á segurança das Américas, logo mais por ocasião da Segunda Grande Guerra, quando, no dizer de Paul Vachet – “ia transformar-se numa das maiores importantes bases aéreas do mundo, de onde se lançaram, aos milhares para África, Europa e Oriente, os bombardeios americanos e aliados”, e Parnamirim passou a ser conhecido como o “Trampolim da Vitória”. Por tudo isto, Natal foi e continua sendo: “Ninho de Ases de todas as Bandeiras”.

Este texto foi transcrito do livro de Tarcísio Medeiros, “Aspectos Geopolíticos e Antropológicos da História do Rio Grande do Norte”, capítulo 17, páginas 160 a 186, lançado em Natal no ano de 1973, pela Imprensa Universitária.

O BRASIL NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL – MILITARES BRASILEIROS TEMIAM UMA INVASÃO DA ARGENTINA

Não são tropas alemãs na frente da Casa Rosada apesar do capacete de estilo prussiano. São tropas argentinas desfilando na frente da Casa Rosada, o palácio presidencial, nos anos 40. Esse modelo de capacete perdurou até a segunda metade dos anos 50.

Documentos secretos revelam que Brasil não conseguiria conter um ataque no Rio Grande do Sul

FONTES – http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,militares-temiam-invasao-da-argentina,921562,0.htm E http://blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/peron-e-o-terceiro-reich/

O fantasma de uma possível invasão argentina assombrava as mentes dos militares brasileiros no período que antecedeu o início da 2.ª Guerra Mundial. Documentos secretos do Conselho de Segurança Nacional mostram que o governo brasileiro sabia que seria impossível impedir um ataque argentino pelo sul do País, tamanha era a fragilidade das tropas nacionais no local. Além disso, a precariedade do sistema ferroviário fazia com que o governo brasileiro tivesse a consciência de que tampouco seria possível organizar a tempo um contra-ataque contra os argentinos.

Documento de 11 de janeiro de 1938, classificado como secreto, trata dessa situação. Nele é proposta a construção de uma segunda via férrea até a região para garantir a mobilidade de transportes e, principalmente, das tropas brasileiras. “O Estado-Maior do Exército insiste pela realização desses empreendimentos, que solicita há vários anos, como imperiosamente necessários à defesa nacional”, diz o documento.

A Argentina não só recebeu refugiados, antes, abasteceu a Alemanha nazista com altos funcionários. O argentino que atingiu o cargo mais elevado foi Ricardo Walter Oscar Darré, que se tornou ministro da agricultura de Adolf Hitler. Darré, junto com Alfred Rosenberg (nascido na Lituânia), foi autor das leis raciais que condenaram à morte milhões de judeus, ciganos e demais civis que ele considerava “inferiores”.

O Conselho de Segurança Nacional simula nesse trabalho a eventual evolução das tropas argentinas, caso houvesse a decisão de ataque pelo Sul. “Em cerca de 40 dias, a contar da declaração de guerra, a totalidade do exército ativo argentino estará concentrado em Corrientes e poderá invadir o Rio Grande do Sul”, diz o texto. “Em face de tais possibilidades, quais são as do Brasil?”, questiona o conselho. “Como valor, o Exército de campanha brasileiro é muito inferior ao argentino”, define categoricamente o documento.

A partir daí, descreve em tom de angústia a incapacidade do Brasil em deslocar seus efetivos em tempo hábil para reagir à invasão dos vizinhos. “Em 270 dias, depois de declarada a guerra, a Argentina poderá ter no Rio Grande do Sul 12 divisões do exército, 4 de cavalaria e outros elementos. E o Brasil só poderá ter 7 a 8 divisões de infantaria e 3 de cavalaria. Quer isso dizer que dificilmente se poderá impedir a invasão do território brasileiro”, diz o estudo. “A situação é extremamente angustiante! Metade do Estado do Rio Grande do Sul terá sido perdido.”

Mapa que mostra o plano de Hitler para reconfigurar a América do Sul. O mapa foi encontrado em um táxi que bateu em Buenos Aires em 1941. Posteriormente, descobriu-se que havia sido forjado pela inteligência britânica. Mas, os historiadores indicam que, apesar da falsidade do mapa, ele ilustra bem como o vegetariano austríaco que transformou-se em genocida queria reconfigurar o mundo.
“Duvido que os alemães pensassem seriamente em uma invasão da América do Sul, mas fizeram o possível para estimular o surgimento de governos favoráveis ao Reich, de forma a incomodar os EUA”, afirma o historiador Uki Goñi.

Outro documento secreto de 7 de julho de 1937 já tratava do problema, recusando a proposta argentina de fazer parceria com Brasil e Uruguai para a construção de uma usina hidrelétrica no Rio Uruguai. Para o Conselho de Segurança, a obra só beneficiaria os argentinos e ainda ampliaria a superioridade estratégica do vizinho. O texto também analisa a proposta sob o ponto de vista militar. “Sob esse aspecto, o empreendimento é de todo desfavorável ao Brasil. Primeiramente, a Argentina possui organização militar e meios bélicos superiores aos do Brasil”, descreve. “No caso de guerra Brasil-Argentina, o Brasil não poderá utilizar a via marítima para levar tropas ao Rio Grande do Sul. A esquadra argentina, por ser mais forte que a nossa, barrará essa via.” / M.M.

KHL – IR DE NATAL PARA A EUROPA EM ALTO ESTILO

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Natal hoje tem voo internacional para a Europa, o que é uma maravilha. Mesmo este voo não alcançando muitas cidades do velho continente, ninguém discute a enorme vantagem de se pegar um avião Airbus ou Boeing, jatos de alto padrão de segurança e conforto, para depois desembarcar em oito ou dez horas no seu destino. Às vezes é necessário sair de Natal e “descer” para Recife, Salvador, São Paulo, pegar uma conexão e atravessar o Atlântico. Dá um pouco mais de trabalho, mas se chega com enormes vantagens.

Não se pode desprezar a evolução das coisas, mas nada impede dar uma olhada no passado, para saber como nas primeiras décadas do século XX  um abonado natalense seguia para a Europa. Esta pessoa poderia até pegar algum barco de carga em Natal e se virar com o que houvesse. Mas o melhor era seguir para Recife, onde navios de grandes empresas de navegação e as melhores rotas, estavam disponíveis.

Propaganda do Lloyd Holandês publicada em Natal no ano de 1914.

No passado, os navios de passageiros brasileiros, os conhecidos “Navios de Linha”, ou “Paquetes de Cabotagem”, pertencentes principalmente a Companhia Costeira e do Lloyd Brasileiro, serviam como o principal elo entre as capitais localizadas na costa do Brasil e os rios da região amazônica. Quem daqui seguia para a escala em Recife, pegava um destes barcos e na capital pernambucana fazia uma transferência para navios que impressionavam pelo tamanho, qualidade, conforto e detalhes.

Uma destas empresas que ligavam a região Nordeste com a Europa, era conhecida como Lloyd Holandês, ou Koninklijke Hollandsche Lloyd, que tinha a sigla KHL. Esta empresa era representada em Recife pelo pernambucano de descendência holandesa Julius von Sohsten, que tinha fortes ligações com o Rio Grande do Norte, já tendo possuído na nossa cidade uma casa de comércio no bairro da Ribeira.

A KHL foi fundada em 1899, destinada a levar gado e outras mercadorias entre Amsterdam e a América do Sul, principalmente a Argentina. Devido à proliferação da febre aftosa no vizinho platino, a empresa passou a trabalhar com transporte de passageiros e carga. Seus navios levavam desde passageiros de alto poder financeiro, a pobres imigrantes desejosos de tentar uma nova vida no hemisfério sul.

Viajar de navio, com a brisa soprando, a paisagem mudando como um filme, era uma situação bem interessante. Mas as viagens eram bem demoradas, bem ao estilo da velocidade em que o mundo vivia na época.Naqueles tempos a quantidade de passageiros transportadas dentro de um navio destes mal chegavam a 1.500 pessoas. As naves eram decoradas com extremo luxo e bom gosto, tinha em seus salões obras de artistas famosos e muito requinte.

A empresa KHL chegou a criar em Amsterdam um local de hospedagem exclusivo para seus passageiros, e não apenas os mais ricos utilizavam este serviço. Este era o Lloyd Hotel, que foi concluído em 1921 e que custou oito vezes mais do que o planejado.

De certa forma este hotel foi utilizado como alojamento temporário para imigrantes, cuja a maioria era formada por judeus pobres da Europa Oriental, que fugiam de perseguições tanto na Alemanha, como na União Soviética. Estas naves partiam em média a cada vinte dias da Holanda e, enquanto aguardavam o momento do embarque, os passageiros ficavam no hotel.

Entre os navios da KHL, que faziam a escala de Recife, estavam o SS Frisia, o SS Gelria, o SS Zaanland e o SS Tubantia.

O SS Zaanland tinha 7.995 toneladas de peso, quase 135 metros de comprimento, foi lançado em 1910 e continuou em serviço na KHL até março de 1918. Durante a Primeira Guerra Mundial os norte-americanos o arrendaram e ele foi transformado em transporte de tropas. Voltou a servir a KHL até 1935.

O SS Frisia tinha um porte de 7.400 toneladas, divididos em quase 130 metros de comprimento, com uma velocidade de até 13 nós e transportava 1.000 passageiros. Foi construído em 1909 e sua viagem inaugural começou em Amsterdan, depois seguiu para Boulogne, Plymouth, La Coruña, Lisboa, Las Palmas, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu.

Já o SS Gelria foi construído em 1913, deslocando 13.868 toneladas de porte bruto, em um comprimento de 170 metros. Tinha alojamentos para quase 1.500 pessoas. Foi vendido em 1935 a uma empresa italiana e foi utilizado como navio transporte de tropas na guerra da Abissínia e, ocasionalmente, como um navio hospital. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi tomada pelos alemães quando a Itália se rendeu e usado como um navio-hospital. Acabou sendo capturado por um submarino britânico em 1944 e levado para Alexandria, no Egito.

Mas de todos estes navio que aportavam no Nordeste, o que teve a pior sorte foi o SS Tubantia. Era uma nave  com dimensões e características semelhantes ao SS Gelria. Foi lançado ao mar em 1913, mas na madrugada do dia 16 de março de 1915,  na costa holandesa,  foi atingido por torpedos do submarino alemão UB-13 e afundou. Três navios responderam aos pedidos de socorro e todos a bordo foram salvos. Durante a Primeira Guerra Mundial a Holanda ficou neutra e seu serviço de transporte de passageiros e carga continuou, mas não para este navio. Foi a maior nave de um país neutro torpedeada e destruída neste grande conflito.

Devido às consequências do conhecido crash da bolsa de Nova York, em 1929, associada ao alto custo do Hotel Royal, fez com que a KHL fechasse suas portas e uma nova empresa de navegação foi criada.

Não tenho maiores dados relativo a frequência com que os membros da sociedade potiguar utilizavam estes navios em viagens a Europa. Mas é normal vermos notas nos antigos jornais natalenses, onde pessoas da elite local faziam questão de anunciar que partiam, ou retornavam da Europa em naves da KHL.

© 2011 Copyright Tok de História

Todos os direitos reservados

O ÁS DA AVIAÇÃO ALEMÃ NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL QUE TRABALHOU EM NATAL

Rostand Medeiros – Escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

A história da aviação em Natal, no período anterior a Segunda Guerra Mundial, é emocionante e inigualável. Entretanto, pouco destes fatos históricos são conhecidos do público em geral. Poucos são os livros que contam as aventuras dos aviadores durante as décadas de 1920 e 1930, quando eles cruzavam os céus em suas precárias máquinas aéreas, viajando através do Atlântico Sul quase sem equipamentos e chegando a nossa provinciana capital.

Ao realizar uma pesquisa no Arquivo Público do Rio Grande do Norte, acabei me deparando com um extenso arquivo contendo fichas de pedido de vistos, para passaportes de vários pilotos estrangeiros que vinham trabalhar em Natal. Pesquisando em outros centros de informações, descobri que um destes pilotos viria a se tornar um dos principais ases da aviação de caça noturna alemã na Segunda Guerra Mundial, superaria a derrota da Alemanha e terminaria sua carreira como general da nova Força Aérea Alemã, na então Alemanha Ocidental.

Um dos aviões Dornier DO-26 sendo posicionado no Rio Potengi. Ao fundo a Praia da Redinha.

Os alemães chegam a Natal

Esta história tem início com a chegada da aviação comercial alemã no Brasil em 1926, quando foram iniciados estudos técnicos para implantação de linhas aéreas. Neste mesmo ano, um hidroavião Dornier Wall, chegava ao Rio de Janeiro, realizando o primeiro vôo comercial no país. Diferentemente dos franceses, os alemães pouco deram atenção à região Nordeste no início de suas operações, tanto que a empresa Sindikat Condor, estabeleceu em 1927 linhas aéreas entre Porto Alegre e o Rio de Janeiro e outras rotas para o interior do estado gaúcho, com serviços de transportes de passageiros e cargas.

Apenas em 1930, conduzido pelo diretor Fritz Hammer, o hidroavião “Guanabara” chegava a Natal. Este alemão vinha com a missão de instalar uma base de hidroaviões na cidade. O então governador Juvenal Lamartine apoiou incondicionalmente o projeto, isentou de taxas a empresa e cedeu uma área para a instalação de uma base próxima à foz do rio Potengi, na conhecida Praia da Limpa (Montagem). Em fevereiro de 1930 é inaugurada a linha entre Natal e Porto Alegre e em Março deste mesmo ano tem início os planejamentos para uma ligação entre a América do Sul e a Europa.

Em 3 de fevereiro de 1934, a Deutsche Lufthansa implanta o primeiro serviço aéreo transoceânico do Mundo, onde em dois dias e meio uma carta viajava entre Berlin e o Rio de Janeiro, sendo este um avanço espantoso para a época. O defeito deste sistema estava no fato das aeronaves vindas da Europa necessitarem amerissarem no meio do Oceano Atlântico, para depois ser içada por um navio-catapulta, abastecida e depois catapultada em direção a Natal. Algum tempo depois este sistema foi desativado com a entrada de novos aviões com maior raio de alcance.

A atuação dos alemães crescia fortemente na região, chegando a ponto de, em 1936, estarem transportando quase 16.000 pessoas. Sobre este dado é importante lembrar que a capacidade de muitas aeronaves neste período, não era superior a 20 passageiros.

Horário da Condor em Natal.

Condor tinha vôos semanais para Rio e Buenos Aires

Em Natal os vôos da Condor eram semanais, com o fechamento da mala postal às dezoito horas da quarta-feira e a partida na quinta, sempre às cinco da manhã. A empresa prometia que o passageiro estaria no Rio de Janeiro em um dia. Para Buenos Aires se chegava em dois dias. Já o serviço transatlântico era uma operação conjunta Condor-Lufthansa, com saídas ás dezoito horas da quinta-feira e chegada em quatro dias a Europa, com escalas em Bathust (na atual Gâmbia), Las Palmas (Ilhas Canárias), Sevilha, Barcelona (Espanha) e Frankfurt (Alemanha). Muitas vezes os horários e dias de partida mudavam, onde a propaganda nos jornais locais sempre solicitava aos interessados, entrar em contato com o agente das empresas na cidade, que em 1935, tinha esta função exercida pela firma Filgueira & Cia, que ficava na Rua Quintino Bocaiuva, próximo à igreja do Rosário.

Em 1939, os alemães implantaram o avião que provou ser o mais confortável, o mais silencioso e o mais caro do mundo na sua época, o quadrimotor Focker Wulf 200. Transportava quatro tripulantes, vinte e oito passageiros e era considerado um fantástico salto de qualidade em termos de viagens aéreas. Para efeito de comparação seria como Natal, nos dias de hoje, fosse rota normal para o novo super-avião Airbus A-380.

O piloto Ernst Wilhelm Modrow.

Alemães se mantinham à distância

Em 2 de janeiro de 1939, o piloto Ernst Wilhelm Modrow, de 30 anos, natural de Stettin (atualmente Szczecin, na Polônia), recebia a sua autorização de viagem para Natal. Provavelmente este não era o primeiro pedido de ingresso de Modrow em Natal, pois desde 1930 ele já trabalhava na América do Sul, primeiramente na empresa aérea colombiana SCADTA, uma empresa de aviação com controle alemão, e a partir de 1937, como responsável pelas rotas turísticas da Lufthansa.

Neste período, a aviação se profissionalizava cada vez mais. Em Natal o movimento de aviões seguindo para o sul do país, ou em direção a Europa, fazia parte do dia a dia, bem como a presença de pilotos e equipes de apoio na cidade. Muitos deles aproveitavam as benesses da cidade, principalmente às praias de águas quentes.

Ficha de entrada no Brasil do futuro ás alemão.

Lendo os jornais da época, percebe-se que os aviadores alemães, talvez pela sua própria natureza mais comedida, não interagiam tão fortemente com a população. Diferentemente dos franceses e italianos, os germânicos ficavam alojados na sua base na Praia da Limpa, mais distantes da convivência direta com a cidade.

Em relação à Modrow, poucas foram às informações sobre a estada deste piloto em Natal. Era apenas mais um dos muitos aviadores estrangeiros de passagem pela cidade. Seu trabalho na América do Sul durou até agosto de 1939.

A partir de setembro, com a eclosão da guerra, Modrow é convocado para a Força Aérea Alemã (Luftwaffe). Segue primeiramente para a frente norueguesa, servindo em um esquadrão de transporte, o KGr. Z.B.V. 108, que utilizava o hidroavião Dornier DO-26. Primeiramente efetuou missões de reconhecimento e de abastecimento de tropas na região de Narvik. Em maio de 1940 seu avião havia amerissado para descarregar equipamentos no fiorde Rombakken, quando foi atacado por caças Spitfire, da Força Aérea Britânica (RAF), e destruído. Mesmo ferido, Modrow foi o único sobrevivente da tripulação.

O hidroavião Blohm & Voss Bv 222

Após sua recuperação, passa um período como instrutor de vôo, seguindo ao encontro de sua unidade, que em 1942 se encontrava sediada na Itália. A ele é destinado o grande hidroavião de seis motores Blohm & Voss Bv 222, um dos maiores aviões de transporte da Segunda Guerra Mundial. Tinha a missão de realizar vôos para a África do Norte, no abastecimento das tropas alemãs do Afrika Korps e retirada de feridos. Modrow concretiza mais de 100 missões de transporte, sendo esta quantidade de missões considerada um verdadeiro prodígio, pois devido a suas dimensões e baixa velocidade, o BV 222 era considerado um alvo fácil para os caças aliados.

Devido as suas habilidades, em 1943 é transferido para um grupo de caça noturna, que tinha a função de destruir bombardeiros ingleses que atacavam diretamente o coração da Alemanha. É designado para o II Grupo do esquadrão NJG 1, baseado em bases na França ocupada.

Símbolo do NJG 1.

Em uma noite de março de 1944, Modrow faria sua primeira vítima sobre a localidade de Venlo, Holanda, provavelmente um caça noturno bimotor do tipo “Mosquito”. Sua segunda vítima é um bombardeiro quadrimotor britânico “Halifax”, seguido por outro bombardeiro quadrimotor do tipo “Lancaster”, também britânico.

Um caçador de Aviões aliados, nos céus noturnos da Europa

O Hauptmann (capitão) Modrow.

O caça de Modrow era um Heinkel HE 219, uma das melhores aeronaves na categoria de caças noturnos já fabricados. No chão a sua aparência não era das melhores, pois a aeronave fora construída com um grande e desajeitado trem de pouso, um conjunto de antenas na parte dianteira e a cabine para piloto e operador de radar bem à frente da aeronave.

Mas esta aparência era enganadora, no ar este avião era quase imbatível. Possuía um moderno sistema de radar frontal FuG 212C-1 “Lichtenstein”, que servia para a localização dos lentos bombardeiros noturnos aliados. Para derrubá-los, o HE 219 utilizava um revolucionário e inovador modelo de canhões duplos conhecido como “Schräge Musik”, tradução para “Jazz Music”, numa alusão ao ritmo acelerado das bandas de swing norte-americanas.

Heinkel HE 219

Era uma arma impressionante, cujo diferencial estava no fato dela disparar para o alto. Tratava-se de dois canhões de calibre 30 milímetros, instalados na parte traseira da fuselagem, possuindo uma inclinação de 65 graus e disparavam contra a parte baixa e desprotegida dos bombardeiros ingleses.

A ação de caça ocorria normalmente da seguinte maneira; um piloto de caça noturno alemão voava sozinho na noite, sempre apoiado por radares em terra que tinham a função de localizar um bombardeiro. Após marcarem o alvo, transmitiam para o operador de radar do avião atacante a posição da vítima. O piloto do avião caçador seguia para área de ataque, localizava visualmente o alvo, posicionava-se atrás e abaixo de sua presa, passava exatamente sob a “barriga” da desprotegida aeronave, abria fogo e o alvo normalmente era destruído.

Modrow vai desenvolvendo sua capacidade de caçador de forma notável, tanto que em junho de 1944, em duas noites distintas, derruba sete bombardeiros quadrimotores, sendo condecorado com a Ritterkreuz (Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro). Os combates prosseguiram nos meses seguintes e ele novamente obteria grande sucesso na noite de 23 para 24 de setembro de 1944, derrubando quatro quadrimotores ingleses, próximo a Düsseldorf, Alemanha. De suas 34 vitórias confirmadas, 33 foram durante o ano de 1944. Em janeiro de 1945 ele seria condecorado com a Deutsches Kreuz (Cruz Germânica), uma das mais elevadas honrarias da Força Aérea Alemã na Segunda Guerra.

Deutsches Kreuz (Cruz Germânica).

Na noite de 1 de fevereiro de 1945, seu avião HE-219 teve problemas, Modrow e o seu auxiliar, Alfred Staffa, utilizaram o novo sistema de assento ejetável, sendo uma das primeiras tripulações a usar esta nova invenção. Este ás alemão abateria sua última vítima na noite de 5 para 6 de janeiro de 1945, vindo a se render para os aliados ocidentais quando da assinatura do Armistício, em maio daquele ano.

Ao ás Modrow foi creditado 34 vitórias, em 259 missões, incluindo 109 missões como piloto de caça noturno. Na década de 1950, com a reconstrução das Forças Armadas Alemãs, Modrow juntou-se à Bundesluftwaffe, a nova Força Aérea Alemã, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1964, quando passou para a reserva no posto de tenente-coronel.

Com relação a sua aeronave de caça, atualmente existe apenas um exemplar do HE 219 sobrevivente em todo o mundo e encontra-se no famoso Museu Smithsonian, em Washington, capital dos Estados Unidos.

Ernst-Wilhelm Modrow faleceu de causas naturais na cidade portuária de Kiel (Alemanha) aos 82 anos de idade, em 10 de setembro de 1990.

Todos os direitos reservados

É permitida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de
comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.

ASAS ALEMÃS SOBRE O RIO POTENGI

Hidroavião Dornier DO-26, batizado “Seefalk” (Falcão do Mar), da empresa aérea alemã Lufthansa, pousado na margem do Rio Potengi, na chamada Paraia da Limpa.

A Presença Germânica Em Natal Antes da Segunda Guerra Mundial

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Publicado originalmente no jornal TRIBUNA DO NORTE.

A importância de Natal como ponto estratégico para a aviação mundial já foi apontada de diversas formas, principalmente no período da Segunda Guerra Mundial. Entretanto no período anterior ao conflito, mas especificamente sobre a atuação da aviação comercial alemã na nossa cidade, a sua base e os motivos da sua implantação e desativação, são fatos hoje pouco conhecidos.

Durante a segunda metade da década de vinte do século passado, se desenrolava uma forte disputa comercial entre estrangeiros pelo Mundo afora. Competia-se por vantagens no novo e promissor negócio do transporte do correio aéreo e de passageiros. No Rio Grande do Norte, inicialmente os primeiros atores envolvidos foram franceses e alemães, sendo seguidos pelos norte-americanos e italianos.

Os franceses iniciaram suas atividades em 1927, com um serviço de transporte de cartas e encomendas que ligava a França e a Argentina. Nesta operação, aviões partiam de Paris em direção a Dacar, capital da então colônia francesa do Senegal, na costa africana. Os malotes com correspondências, eram então embarcados em navios pequenos e bastante velozes, conhecidos como os “Avisos Rápidos”, que atravessavam o oceano até Natal. Daqui, outros aviões transportavam o correio aéreo até Buenos Aires. Antes deste novo  serviço, uma carta transportada em linhas de navegação normais, poderia demorar até trinta dias entre a França e a Argentina. Com a mala postal aérea francesa, este tempo caiu para no máximo 8 dias.

Os Alemães em Natal e a sua “Rampa

Já os alemães, através da empresa “Sindicato Condor”, que desde janeiro de 1927 operava no Brasil, logo perceberam o enorme potencial que Natal possui como ponto estratégico para a aviação comercial. Em setembro de 1928 eles realizam visitas a cidade, planejando a instalação de uma “hidro-base” na região, mas somente em janeiro de 1930, com irrestrito apoio do então governador Juvenal Lamartine de Faria, esta base de operações e uma linha aérea que transportava cargas e alguns poucos passageiros, passou a funcionar com regularidade semanal. O local escolhido pelos alemães para construírem suas instalações era conhecido como “Praia da Limpa”, as margens do rio Potengi. Ali foram erguidos dois grandes hangares, com rampa de acesso para hidroaviões, alojamento para tripulantes, sala de leitura, e uma estação de rádio. Os hidroaviões eram trazidos para os hangares através de uma rampa, onde uma espécie de carroça puxada por um cabo era colocada no rio, sendo esta colocada embaixo da aeronave, então através de um sistema de trilhos a aeronave era puxada para fora do rio. Este sistema de retirada e acesso de aeronaves, através de uma rampa as margens do Potengi, precede a famosa “Rampa americana”, que seria construída algum tempo depois ao lado da base alemã. Os jornais da época apontam que a população de Natal, passou a denominar o local como “Base da Condor” ou “Base da Limpa”.

Já em relação às cargas vindas da Europa, primeiramente os alemães desenvolveram uma operação trabalhosa e perigosa; um hidroavião saia de Natal em direção a Fernando de Noronha, amerissava ao largo da ilha, encontrando-se com um navio de passageiros e cargas, de forma arriscada eram passadas mercadorias e malotes em meio às ondas. O hidroavião então decolava para Natal, reabastecia e seguia em direção ao sul do país. Durante algum tempo esta operação continuou, mas na noite de 11 de setembro de 1931, um destes hidroaviões do “Sindicato Condor”, batizado como “Olinda”, após retornar de Fernando de Noronha, sofre uma pane na tentativa de decolagem para Recife e explode na margem esquerda do rio Potengi, ocasionando a morte de todos os três tripulantes. Percebendo os riscos e as desvantagens desta operação, os alemães decidem desenvolver novos meios para que a ligação aérea entre a Alemanha e os países sul-americanos fossem mais segura, prática e rentável.

Em 1933, com uma concepção audaciosa para a época, a empresa alemã “Lufthansa”, que controlava administrativamente o “Sindicato Condor”, decide utilizar dois “navios-catapulta”, como ponto de apoio e reabastecimento de hidroaviões. Chamados “Schwabenland” e “Westfalen”, estas naves se revezavam em uma posição no meio do Oceano Atlântico, entre a costa africana e o Brasil, onde a idéia básica seria receber um hidroavião vindo da Europa, para que suas malas postais fossem repassadas para um outro aparelho, que seria catapultado para Natal e depois esta carga seguiria em outras aeronaves em direção sul. O hidroavião que havia chegado da Europa, era então reabastecido e catapultado para o Velho Continente com as cartas vindas do sul.

O Incremento do Transporte Aéreo Alemão

Este revolucionário serviço é inaugurado no dia 3 de fevereiro de 1934, quando uma aeronave decolou de Stuttgart, no norte da Alemanha, para a Espanha, transportando 100.000 cartas. Um outro aparelho transportou as malas postais em direção à cidade africana de Bathurst, na então colônia britânica da Gâmbia e finalmente um dos hidroaviões seguiu por 1.500 km até o “Westfalen”. No dia 7 de fevereiro a tripulação deste navio catapultou com sucesso um hidroavião modelo “Dornier Wal”, batizado “Taifun”. Este aparelho possuía dois motores, montados sobre asas altas, tinha 23,20 metros de envergadura, 18,20 metros de comprimento, raio de alcance de 2.000 mil quilômetros e desenvolvia uma média de 225 km/h. A tripulação alemã era formada pelo comandante Joachim Blankenburg, co-piloto Walter Blume, mecânico de vôo Otto Gruschwitz e o rádio-operador Guenther Fechner. Após um cansativo voo o arquipélago de Fernando de Noronha é sobrevoado e o comandante Blankenburg amerissa na baía da ilha.

Hidroavião alemão pousado no Rio Potengi, em uma área onde atualmente se encontra o quartel do 17º GAC, do Exército Brasileiro.

Neste local um segundo hidroavião da empresa aguarda o “Taifun”. Algum tempo depois os dois aparelhos decolam em direção ao território potiguar. Segundo os jornais da época, eram duas horas da tarde em Natal, quando os dois hidroaviões sobrevoaram o rio Potengi. Autoridades potiguares e um grande número de populares aguardavam na praia da Limpa a chegada do vôo histórico, mas para surpresa de todos, o racionalismo técnico dos alemães, entrou em ação; dez minutos após o pouso, antes mesmo de serem iniciadas as diversas homenagens previstas, as malas postais foram prontamente passadas para um hidroavião modelo Junkers trimotor, batizado como “Tietê”, que rapidamente seguiu em direção ao sul do país. Se para os natalenses a chegada das aeronaves era quase uma festa, para os alemães tudo não passava de negócios.

Mesmo depois de voarem quatorze horas sobre o oceano, a tripulação que havia decolado do “Westfalen”, participou do evento, onde foi coberta de atenções pelo povo de Natal e tratados como heróis. Autoridades visitaram o “Taifun”, foram erguidos brindes pela realização do vôo e a banda da Polícia Militar tocava para os presentes.

A Influência Alemã na Cidade

Com o passar do tempo, à chegada e a partida de hidroaviões alemães no rio Potengi, se tornou mera rotina. Todas as sextas-feiras havia aeronaves amerissando ou decolando no tranquilo rio que banha a capital potiguar. Em meio ao crescimento do movimento aviatório em Natal, aumenta o número de germânicos vivendo na pequena urbe de 35.000 habitantes. O expoente mais importante desta comunidade, além de ser um dos alemães que há mais tempo viviam em Natal, era o empresário Ernest Walter Lück.

Base alemã em Natal.

Nascido em 1883, na cidade de Gevelsberg, estado da Westfalia,  Alemanha, Lück chegou a Natal em 1911, em companhia de um amigo chamado Richard Bürgers, vinham com a intenção de trabalhar em uma firma inglesa que efetuava perfurações no interior do Rio Grande do Norte. Ao desembarcarem descobriram que a firma havia falido, mesmo assim permaneceram na região. Em 1922 Lück e um outro sócio fundaram a empresa “Gurgel, Lück & Cia. Ltda”, com a intenção de importarem produtos alemães e exportarem matérias-primas potiguares para aquele país. Logo os horizontes se ampliaram e a empresa tornou-se representante de linhas de navegação alemã, bem como das empresas aéreas “Lufthansa” e do “Sindicato Condor”. O empresário Lück foi designado cônsul alemão na cidade e coube a ele a ligação entre empresas e o governo da Alemanha, junto às autoridades potiguares.

A comunidade germânica cresce. Logo uma “Escola Alemã” foi fundada sob os cuidados do professor Alonso Meyer. Funcionando na antiga “rua do Norte”, esta escola informava através dos jornais, que oferecia o curso primário completo e o curso de língua alemã, sempre com “Disciplina, ordem e respeito garantidos”. Na ocasião da chegada do hidroavião “Taifun”, o hino alemão entoado pelas crianças desta escola, emocionou a experiente tripulação do comandante Blankenburg.

A partir de 1933, a nova ideologia nazista implantada com a ascensão de Adolf Hitler ao governo alemão, chega à colônia germânica no Rio Grande do Norte. Segundo a edição do jornal “A Republica”, de 25 de abril de 1934, quatro dias antes, em uma festa ocorrida pela dupla comemoração do aniversário de Hitler e da morte de Tiradentes, na chácara pertencente a Richard Bürgers, esteve presente a totalidade da colônia alemã em Natal. Entre estes o Sr. Lück e o diretor da base da Condor, Sr. Neulle. Este último era veterano da Primeira Guerra Mundial e estava na festa com suas medalhas de combate e o traje tradicional nazista. O ponto alto ocorreu às vinte horas, quando após serem entoados os hinos alemão e brasileiro, os participantes postaram-se solenemente diante de um rádio de ondas curtas, para através da emissora de rádio oficial da Alemanha, escutarem um discurso proferido por Joseph Goebbles, o todo poderoso ministro da propaganda do governo de Hitler. Este discurso era destinado especificamente às comunidades alemãs existentes na América do Sul. A importância dessa festa pode ser medida pelo fato de estarem presentes altos membros do governo e da sociedade potiguar da época, entre estes o chefe do executivo estadual, o Interventor Mario Câmara.

Apesar de toda esta movimentação cívica, de forma geral, o comportamento dos membros da colônia alemã em Natal, era extremamente discreto.

O fim da “Base da Condor”

A operação aérea da base alemã em Natal continuou ativa e rotineira até o início da Segunda Guerra Mundial. Foram efetuadas quase 500 travessias utilizando os “navios catapulta” como ponto de apoio entre a Europa e a América do Sul. Grandes pilotos germânicos trabalharam nesta travessia e estiveram na capital potiguar, como Richard Heinrich Schimacher, que por possuir muita experiência nas travessias oceânicas, entre 1938 e 1939 é convocado para participar da grande expedição cientifica alemã a Antártica. Em um “Dornier-Wal” batizado como “Borea”, este aviador realizou diversos voos pioneiros, no praticamente inexplorado continente gelado. Outro piloto foi Ernst-Wilhelm Modrow, que durante a guerra se tornou um às da aviação de caça noturna da “Luftwaffe” (Força Aérea Alemã), onde abateu 34 aviões aliados.

Hidroaviões da marinha dos Estados Unidos baseados no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial

Com o crescimento do conflito, o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães e a entrada oficial do Brasil na guerra, a “Base da Condor” e a comunidade alemã na cidade foram igualmente afetados pela conflagração. O local foi primeiramente ocupado por forças navais norte-americanas.

Segundo o jornalista Roberto Sander, autor do livro “O Brasil na mira de Hitler”, após a chegada das forças norte-americanas a Natal, Ernst Walter Lück, Richard Bürger e um outro alemão de nome Hans Weberlig, foram formalmente acusados e presos pelo FBI, como agentes de espionagem alemães.

Com o fim do conflito, a Marinha Norte-americana entregou grande parte das antigas instalações aéreas ao Exército Brasileiro. Atualmente a área é ocupada pelas instalações do Iate Clube de Natal e pelo 17º Grupamento de Artilharia de Campanha e quase nada mais resta da antiga base alemã na velha praia da Limpa.

* Como em relação à pesquisa histórica nada é realizado sem a fraternal ajuda de outras pessoas, o autor deste artigo gentilmente agradece ao pesquisador Luiz G. M. Bezerra pela seção de fotos e informações.