HIGINO BELARMINO – AS HISTÓRIAS DE UM INIMIGO DO CANGACEIRO LAMPIÃO

O Início – Primo Cangaceiro – A Luta Contra Os Bandos de Antônio Silvino e dos Sipaúbas – Em Fernando de Noronha – Combates Contra os Seguidores do Padre Cícero na Sedição de Juazeiro – Confrontos Contra os Chefes Cangaceiros Sinhô Pereira e Luís Padre.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Higino José Belarmino foi um homem que veio ao mundo no dia 11 de novembro de 1895, no sertão alagoano, em meio a uma origem muito humilde, sendo filho do agricultor José de Moura Belarmino e da dona de casa Agda Maria da Conceição. Em um extenso depoimento realizado ao jornal recifense Diário da Noite de 1952, essa figura pouco comentou sobre sua família, mas disse que dos três filhos do humilde casal só ele “vingou”, ou seja, só ele sobreviveu as secas, a fome e as doenças que grassavam no interior nordestino o final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, mostrando que desde cedo era um forte.

Frederico Pernambucano de Mello informou que Higino Belarmino era primo de um cangaceiro cognominado André Tripa, um homem que buscou a sobrevivência com um “Pau de fogo” nas mãos[1].

Sobre ele Frederico escreveu – Notório bandido de região fértil, a zona de transição mata-agreste de Pernambuco, nos anos relativamente calmos do início do século XX, terá sido também André Tripa, a quem Pereira da Costa distingue com o título de “célebre cangaceiro”, adiantando que se tratava do “terror” da zona sul do Estado. Na memória do nosso principal informante, Miguel Feitosa, fomos buscar a explicação para o vulgo curioso do bandido, em estanca dotada de admirável movimento, cuja autoria lamentavelmente ignorava:

Havia nas Alagoas

Uma tal Joana Fateira

Não tenho ciência certa

Se era casada ou solteira

Sei que tinha um bom menino

Que ajudava, por contínuo

A vender tripa na feira

Jornal comentando sobre a morte do cangaceiro André Tripa.

Essa “tal Joana Fateira”, segundo Miguel nos adiantou com toda segurança, além de mãe do Tripa, era tia do famoso comandante de volantes da polícia pernambucana Higino José Belarmino, o Nego Gino, que após duros combates na década dos 20 contra bandidos, principalmente Lampião, chegaria a patente mais alta da força, a demonstrar o quanto era vária e imprevisível a sorte de um menino do mato naquela época. Sim, porque a de seu primo valente muito cedo teria fim na vertigem da violência a que se entregou, sem ser socorrido nem mesmo pelas suas orações:

E certo que as orações

Não servem para ofender.

Mas fazem quem as traz consigo

Com elas se enfurecer,

Como André Tripa fazia,

Pois crendo que não morria

Matou gente até morrer”

Talvez temendo alguma perseguição pelo fato do parentesco com André Tripa, José de Moura Belarmino e Dona Agda deixaram o solo alagoano e passaram a residir na cidade pernambucana de Correntes, não muito distante de Garanhuns. Trabalhavam nas terras do Dr. Eutrópio Gonçalves de Albuquerque e Silva[2], juiz de direito aposentado e pessoa de muito prestígio na região.

Nessa convivência o juiz Eutrópio se afeiçoou do jovem Higino e passou, com a anuência de seus pais, a lhe ensinar elementos básicos da educação. Depois o patrão dos seus pais conseguiu para o garoto de quinze anos de idade um emprego na empresa Carlos de Britto & Cia., mais conhecida como Fábrica Peixe. Essa firma havia sido fundada por Maria da Conceição Cavalcanti de Britto e Carlos Frederico Xavier de Britto, no ano de 1898, na cidade pernambucana de Pesqueira. Começou como um pequeno negócio destinado a produção de doces de goiaba, mas em poucos anos se tornaria uma grande empresa e um marco da industrialização do Nordeste[3].

Logo Higino Belarmino deixa esse trabalho na Fábrica Peixe em 1911 e vem para o Recife com a intenção de ingressar como soldado raso na Força Pública de Pernambuco, atual Polícia Militar. Contou que tinha sido aberto o voluntariado, pois, como não era algo anormal das primeiras décadas do século XX, havia estourado uma nova revolta política no Brasil. Dessa vez o movimento ocorreu no Nordeste e foi comandada pelo general Emídio Dantas Barreto.

Busto do general Dantas Barreto – Fonte – http://bibianosilva.org/bibiano_pt/general-dantas-barreto

Esse militar havia decidido concorrer naquele ano contra Francisco de Assis Rosa e Silva, então governador de Pernambuco. Dantas Barreto perdeu a eleição, mas seus correligionários não aceitaram a derrota e o Recife testemunhou inúmeros acontecimentos violentos que deixaram a sua população apavorada. Tiroteios, brigas, fechamento do comércio, paralisação dos bondes e o povo sem ir às ruas. Até mesmo tropas federais do 49º Batalhão de Caçadores, junto com populares, realizaram ataques contra os quartéis da Polícia e o próprio Palácio do Governo. Finalmente, em 19 de dezembro de 1911, Dantas Barreto assumiu o cargo de Governador de Pernambuco[4].

Quanto a Higino Belarmino, apenas em 1º de março de 1912 quando a revolta já tinha sido encerrada, efetivamente se tornou um militar.

Realmente parece que Higino José Belarmino não havia nascido para ser operário de uma fábrica de doces, mas para viver com um “pau de fogo” nas mãos, tal como seu pretenso primo André Tripa. A diferença era que enquanto o Tripa apodrecia em uma cova, Higino utilizou sua farda e seu fuzil pelo resto de sua longa vida!

Trocando Tiros com Antônio Silvino e em Fernando de Noronha

Mal havia entrado na polícia Higino Belarmino já foi deslocado para a Zona da Mata Norte de Pernambuco, sob o comando do alferes Nicolau Pinto Teixeira,  com ordens de perseguir o cangaceiro Antônio Silvino e seu bando. A sua volante tinha sede na cidade pernambucana de Timbaúba e por lá o antigo operário de Pesqueira chegou em julho de 1912 e lá permaneceu um ano inteiro. Higino comentou que entre suas perseguições ao célebre cangaceiro, ele foi ferido por um balaço na coxa direita em um combate ocorrido nas imediações da cidade paraibana de Pedra de Fogo.

Vista atual de São Vicente Ferrer – Fonte – https://www.facebook.com/saovicenteferrerpe/

Ao cruzamos essa informação com os jornais pernambucanos e paraibanos de julho de 1912, não encontramos nenhuma referência sobre algum combate nessa cidade paraibana. Mas sabemos que no começo desse mesmo mês Antônio Silvino e seus cangaceiros estiveram próximos da vila pernambucana de São Vicente, atual cidade de São Vicente Ferrer, localizada a cerca de 60 quilômetros de distância de Pedra de Fogo. Nessa aproximação supostamente houve um tiroteio e depois os cangaceiros se homiziaram nas matas dos engenhos Patos e Condado, locais que estavam localizados na área do município pernambucano de Bom Jardim. Os jornais afirmaram que o cangaceiro Silvino conhecia bem aquelas brenhas, que utilizava aquela área como base para ataques aos lugares Macapá (atual Macaparana), Pirauá (hoje um distrito de Macaparana), São Vicente (atual São Vicente Ferrer) e Vicência[5].

Fernando de Noronha no início do século passado.

Após o ferimento Higino segue para o Recife para se reestabelecer e receber ordens. Não demorou e lhe foi informado que deveria seguir para o Arquipélago de Fernando de Noronha com um grupo de prisioneiros. Nessa época o mais belo e paradisíaco conjunto de ilhas oceânicas brasileiras possuía um dos mais temidos presídios do país. Era comum o tráfego de condenados, pessoal administrativo e guardas penitenciários entre Recife e a Vila dos Remédios, a capital de Fernando de Noronha. Para isso era utilizado o vapor de pesca “Alberto Maranhão”, pertencente à Companhia de Pesca do Norte do Brasil.

Esse barco havia sido construído na Inglaterra, sendo originário do porto de Grimsby, na região de North East Lincolnshire, leste da Inglaterra e batizado como Grover. Foi comparado em 1910 pelo empresário pernambucano, de origem holandesa, Julius von Shösten. Tinha 32 metros de comprimento, pesava 180 toneladas brutas, comportava uma tripulação de 12 homens, pescava com redes de arrasto que poderiam conseguir até 60 toneladas de peixes. Sabemos que Shösten tinha negócios no Rio Grande do Norte e isso talvez possa explicar a bajulação em batizar esse barco como “Alberto Maranhão”, então governador potiguar em 1910[6].

Mas aparentemente o negócio de pesca com o “Alberto Maranhão” não parece ter sido muito favorável para o empresário Shösten, pois no segundo semestre de 1912 essa nave basicamente fazia a ligação administrativa entre Recife e Fernando de Noronha e abastecia o faroleiro que atuava no Atol das Rocas.

Não temos indicação da data quando o soldado Higino Belarmino participou da viagem a bordo do vapor de pesca “Alberto Maranhão”, mas em 26 de agosto de 1912 essa nave retornou de Fernando de Noronha com nada menos que 42 detidos, que iriam concluir suas penas na Casa de Detenção de Recife[7].

Imagem antiga da Vila dos Remédios, em Fernando de Noronha.

Não sabemos como era realizado o transporte desses condenados em um barco originalmente destinado a pesca, nem como a escolta trabalhava, ou se os compartimentos de guardar pescados, que certamente deveriam existir em um barco de pesca, haviam sido adaptados como celas parza trazer os prisioneiros. Deveria ser o tipo de viagem que deixaria com calafrios o pessoal que atualmente trabalha nas audiências de custódia pelo Brasil afora.

Versos e Balas Contra os Seguidores do “Padim Ciço”

Após conhecer o Oceano Atlântico e Fernando de Noronha, em 5 de dezembro de 1912 o soldado Higino recebeu ordens para se deslocar para a cidade de Exu, distante 600 quilômetros de Recife. Ele ficou por dois anos compondo a guarnição local[8]. Foi quando no Ceará estourou a Sedição do Juazeiro de 1914.

No contexto das lutas entre as oligarquias pela conquista do poder político na época da Primeira República (1889 a 1930), os poderosos coronéis da região do vale do Cariri, utilizaram a influência que o médico e deputado federal Floro Bartolomeu tinha sobre a figura do padre Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço do Juazeiro”. Com isso eles insuflaram os sertanejos da região a pegarem em armas para derrubar do poder o governador do estado do Ceará, o coronel Marcos Franco Rabelo. O governo de Pernambuco então envia homens da sua polícia para evitar a invasão do território pelos sediciosos do Juazeiro[9].  

Padre Cícero Romão Batista

Higino conta no seu relato de 1952, mesmo sem detalhar, que ocorreu uma luta no lugar Cana Brava, no município de Exu, Pernambuco, entre a força policial e os homens armados de Juazeiro. Contou que durante essas lutas os combatentes trocavam muitos insultos, palavrões e declamavam versos para ridicularizar os oponentes. O militar recordou essa quadra, criada e declamada pelo “Povo do Juazeiro”:

Eu num arrespeito puliça,

Sordado nunca foi gente,

Espero morrê de véio,

Dando carreira em tenente[10].

Higino animava seus companheiros, mandava bala e também afrontava os oponentes. Tirava a longa baioneta do seu fuzil, colocava no cano e dizia ”fulano, olha aqui a tua vela. Olha que vais ser sangrado”. Na mesma hora vinha a resposta do outro lado – muita bala e outro verso:

Cûm carne seca e farinha,

Rapadura no borná,

Eu mi apronto na caatinga,

Mas mió que um generá.

Membros da Sedição de Juazeiro.

Uma roupa de azulão,

Um bom cobertor baêta,

Faz parte do cangaceiro,

Como o punhá e o cruzeta[11].

Segundo relatou o soldado Higino, ou Nego Gino, como ficou mais conhecido, recebeu por participar dessas ações de combate a patente de anspeçada e logo depois a de cabo. Mas houve outro prêmio – Segundo o relato de Higino, os homens do padre Cícero criaram uma quadra enaltecendo sua valentia…

Eu sei que quando morrer,

Nos inferno vou pará,

Me valha padim Ciço,

Se eu encontrar Gino pru lá.

Não sabemos maiores detalhes da entrada dos sertanejos seguidores do padre Cícero em território pernambucano e de suas lutas com a força policial daquele estado, mas sabemos que o grosso da “Gente do padre Cícero” marchou e combateu desde o Cariri até Fortaleza e foram vitoriosos. Franco Rabelo foi deposto em 15 de março de 1914, ficando no poder apenas três meses.

Contra os Sipaúbas

No ano seguinte, nos primeiros dias de outubro de 1915, Higino Belarmino estava servindo sob as ordens do então tenente José Caetano de Mello, um oficial brioso e valente. Nessa época esse militar atuava na cidade de Cabrobó e juntos com outros policiais passaram a perseguir um grupo de cangaceiros que se encontrava atuando nessa região[12]. Este era o bando dos Sipaúbas, ou Cipaúbas, cuja grafia muda conforme a fonte pesquisada.

Um jornal de época e o depoimento de Higino Belarmino comentaram que esses cangaceiros atuavam nas caatingas dos municípios pernambucanos de São José de Belmonte, Salgueiro e Cabrobó. Já a prisão ocorreu no lugar Jacaré, cerca de duas léguas (16 quilômetros) de Cabrobó, próximo ao sítio Barro Vermelho. Foram presos os irmãos Cassiano e José Sipaúba.

Segundo Jorge Mattar Villela, autor do interessante livro O povo em armas : violência  política no sertão de Pernambuco, esses bandoleiros formavam um “microgrupo de base familiar cujas façanhas, já em 1915, os retirava das pequenas intrigas e fazia seus nomes migrarem para as preocupações das autoridades policiais litorâneas”. Villela informa que José Sipaúba foi a julgamento em 1916 e foi inocentado por unanimidade. Nos anos vindouros esse cangaceiro vai lutar ao lado de Sinhô Pereira e de Lampião[13].

Ainda sobre os Sipaúbas não podemos deixar de comentar que em Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, Frederico Pernambucano de Mello informou que o grupo dos Sipaúba era composto por parentes e amigos, sendo naturais da famosa serra d’Umã, município de Floresta, Pernambuco. Essa era a terra dos índios da tribo Aticum-Umã, que se misturaram com um grupo de negros fugidos e ali aquilombados ainda no século XIX.

Notícia do ataque realizado em 25 de setembro de 1926, quando os Sipaúba mataram seis soldados de uma volante pernambucana que era chefiada pelo sargento José Alves de Barros, o Zé Saturnino.

Frederico conta que a serra d’Umã possuía uma “tradição de selvageria” e que muitos assaltos ocorriam nas estradas da região. Para esse autor o principal expoente desse bando foi Livino Sipaúba. Em 25 de setembro de 1926, os Sipaúba mataram seis soldados de uma volante pernambucana que era chefiada pelo sargento José Alves de Barros, o Zé Saturnino. Mas nos primeiros meses de 1927 o tenente Arlindo Rocha, também da polícia de Pernambuco, prendeu Livino Sipaúba e em seguida o fuzilou[14].

Não sabemos se os Sipaúbas capturados em Cabrobó pelo tenente José Caetano e seus policiais eram do mesmo grupo familiar dos Sipaúbas da serra d’Umã.

Combate da Quixaba, ou Queixada?

O relato de Higino José Belarmino então nos leva a 6 de novembro de 1919, na zona rural de São José de Belmonte, em um momento de seca tremenda. Nessa região o cabo Higino fazia parte de uma numerosa volante composta por mais de 70 militares e paisanos, comandados pelo agora capitão José Caetano de Mello e os tenentes Manuel da Costa Gomes e Augusto de Lira Guedes[15].

Antiga Rua do Comércio, em São José de Belmonte – Fonte – Arquivo de Valdir Nogueira, Belmonte-PE, através do pesquisador Artur Carvalho.

Os policiais receberam a informação que um grupo com cerca de 45 cangaceiros, comandados pelos chefes Sinhô Pereira e Luís Padre, estavam arranchados em uma propriedade que eles denominaram como Quixaba, a cerca de 8 léguas (48 quilômetros) de São José de Belmonte, tendo esses bandoleiros passado no dia anterior pelo lugar Olho D’Água[16]. Essa propriedade Quixaba pertenceria então a Antônio Pereira de Araújo, conhecido como Antônio Maroto, primo de Sinhô Pereira e Luís Padre.

Ao realizar essa pesquisa, nada descobri com o cruzamento de informações sobre a existência de alguma propriedade denominada Quixaba, localizada na zona rural de São José de Belmonte e que pertencia a Antônio Maroto. Diante da dúvida realizei um telefonema para meu amigo Valdir José Nogueira, a quem considero um dos maiores e mais abnegados pesquisadores nas questões sobre as lutas das famílias Pereira e Carvalho, sobre o cangaço na região do Pajeú pernambucano e sobre a história de São José de Belmonte, sua querida cidade.

Para Valdir o fato de não encontrar uma fazenda denominada Quixaba, que tenha pertencido a Antônio Maroto, reside em uma situação bem simples – Nunca existiu em São José de Belmonte uma propriedade com esse nome e que tenha pertencido a essa pessoa. Para esse pesquisador o fazendeiro Antônio Maroto tinha sim uma grande propriedade, mas essa era a Queimada Grande, com uma parte de suas terras pertencendo a São José de Belmonte e outra na área territorial do vizinho município de Jardim, já no Ceará[17].

Matriz de de São João, Mirandiba, Pernambuco – Foto – Kelvis Filipe.

Em relação ao combate de 1919, Valdir afiança que ele se desenrolou não muito distante de um pequeno arruado em desenvolvimento, denominado Queixada, e não Quixaba, atualmente a sede do município autônomo de Mirandiba[18]. Para o pesquisador belmontense, seja por erro de interpretação, ou de grafia, nos telegramas emitidos para o quartel da polícia em Recife, posteriormente divulgados para a imprensa local, sempre aparece o nome Quixaba.

Valdir Nogueira afiança também que o combate de 6 de novembro de 1919 se deu na área da serra da Forquilha, uma elevação com cerca de 600 metros de altitude, próximo da serra Comprida e ao norte do riacho Terra Nova. Essa região fica cerca de 16 quilômetros da antiga comunidade da Queixada, atual Mirandiba.

E realmente tudo parece ter bastante fundamento, pois segundo Valdir Nogueira a distância da região de São José de Belmonte para a Queixada equivale a 8 léguas (48 quilômetros). Próximo da área da serra da Forquilha existe até hoje uma propriedade denominada Olho D’Água. Valdir me recordou também que o local desse combate fica próximo das antigas comunidades de Bom Nome, Santa Maria (atual Tupanaci) e São Francisco (pequena vila que foi coberta pelas águas do açude da Serrinha, cuja população mudou para uma comunidade denominada Pajeú). Esses locais eram pontos de forte apoio e concentração de membros da família Pereira, onde Sinhô Pereira e Luís Padre contavam com bastante proteção.

Antiga ermida de São Francisco.

Ainda em relação ao combate da serra da Forquilha, Valdir Nogueira apontou que no Folheto XVII, intitulado A Primeira Caçada Aventurosa, do Romance D’ A Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta, 2ª Ed. 1972, p. 83, o escritor Ariano Suassuna, rememorou esse acontecimento:

“Saímos, tomando o lado do qual se avista, do terraço (do casarão da fazenda Carnaúba), a célebre “Serra da Forquilha”, aquela na qual um dos Pereiras mais valentes do nosso tempo, Sinhô, Chefe venerado de Virgolino Ferreira Lampião, tinha obtido vitória num sangrento combate contra a Polícia e os Carvalhos”.

Visual da caatinga na zona rural de São José de Belmonte – Foto – Rostand Medeiros.

Voltando para o combate de 6 de novembro de 1919.

O numeroso grupo de 45 bandoleiros estava na área da Quixaba, ou Queixada, porque esse local, segundo os estudiosos do tema Cangaço, pouco tempo antes tinha sido atacado por Cindário e outros inimigos da família Pereira. Sinhô Pereira então acreditava que nem a polícia e nem seus inimigos retornariam ao lugar naquele momento. Mesmo assim ele e Luís Padre dividiram seus homens pelos serrotes existentes, em um riacho próximo e em uma casa que havia sido anteriormente queimada, mas que possuía boas condições de proteger parte de seu grupo.

Em seu depoimento de 1952, Higino Belarmino afirma de maneira categórica que entre os cangaceiros que estavam ao lado de Sinhô Pereira nesse combate temos o vilabelense Virgulino Ferreira da Silva e dois de seus irmãos, que cada vez mais aprendiam sobre as táticas de combates na caatinga.

Enquanto os cangaceiros descansavam, a volante com mais de 70 militares e paisanos avançavam atrás deles!

Naquele dia Cindário e seu grupo de homens armados estavam entre os paisanos que acompanhavam os policiais. O nome real de Cindário era Jacinto Alves de Carvalho, sendo também conhecido como Cindário Carvalho, ou ainda Cindário das Piranhas. Esse homem é tido por Frederico Pernambucano de Mello como um “Cangaceiro vingador”, que havia se tornado o braço armado da família Alves de Carvalho em sua sangrenta luta contra a família Pereira[19].

Higino Belarmino narra então que a volante chegou na área onde se concentravam os cangaceiros ainda com dia claro, tendo ele seguido junto com o capitão José Caetano. O grupo se aproximou da casa semidestruída, onde os soldados desconfiavam que estivessem os bandoleiros. Quando estavam a dez metros do local os cangaceiros abriram fogo cerrado e oito militares tombaram ao solo, ficando sete feridos e um morto. Esse último foi o cabo José de Souza Oliveira, que segundo Higino recebeu um tiro na carótida e morreu nos seus braços.

Higino Belarmino

O tiroteio continuou forte, com os policiais em campo aberto e os cangaceiros, em número superior a vinte, atirando do interior da casa e gritando que os militares eram “filhos da besta torta”. Os soldados feridos gemiam e pediam ao capitão José Caetano que não os deixassem serem mortos a punhaladas pelos cangaceiros. Higino narra que aqueles pedidos desesperados tornaram seus companheiros mais aguerridos. Nesse momento o capitão chamou Higino e lhe disse que eles deviam tomar aquela casa “de qualquer maneira”. Mesmo com a munição escasseando, o cabo comandou um grupo de dez policiais em um ataque direto contra a casa. Entraram lutando pelos fundos da vivenda e se misturando aos cangaceiros, que fugiram pelas janelas, aos gritos[20].

Por volta das seis da tarde chegou na área do combate o capitão Theophanes Ferraz Torres, com um reforço de homens e munições. Esse militar informou ao comando da força policial em Recife que o combate durou duas horas e, além da morte do cabo José de Souza Oliveira, ficaram feridos os soldados Izidoro Leite da Silva, João Mathias Santos, José Soares da Costa, Henrique Ludgero Santos, Firmino Jeronymo Silva, Antônio Francisco Xavier e o cabo Antônio Marques Silva. O capitão Theophanes informou que o cabo Marques levou um tiro no crâneo, mas estava vivo quando o encontrou[21].

Na página 29 do livro de Nertan Macedo Sinhô Pereira – O Comandante de Lampião, publicado em 1975 (Ed. Artenova, São Cristóvão-RJ), o autor trás o depoimento de Sinhô Pereira sobre esse combate.

O antigo combatente das caatingas afirmou que o combate se deu realmente na propriedade Quixaba, que a mesma pertencia a seu primo Antônio Maroto e que o bando teria “23 ou 24 homens” e não 45 como Belarmino afirmou em 1952. Sinhô confirmou que a casa do lugar havia sido anteriormente depredada por Cindário e seu grupo e nela se encontrava seu primo Luís Padre com cinco ou seis homens. Já Sinhô estava em um riacho próximo com outros dezessete cangaceiros, deitados no chão, descansando. A polícia e Cindário chegaram e cercaram a casa, pensando que todos os cangaceiros estavam lá e para Sinhô Pereira a volante teria “20 e tantos homens”. Já o tiroteio teria durado três horas, em meio a um sol bastante quente. Ficaram feridos cinco cangaceiros: Zé Preto, Moreno, Teotônio, Chiquito e Zé Piutá. Além desses outro ferido foi Luís Padre, atingido de raspão na pestana, ferimento esse que sangrou bastante. Sinhô confirmou que um soldado ficou morto no terreiro e um dos policiais feridos ficou “todo aleijado”. Em nenhuma linha do seu depoimento a Nertan Macedo o ex-chefe cangaceiro afirmou que Virgulino Ferreira da Silva e seus irmãos estiveram presentes nesse combate.

Parte da entrevista concedida por Higino em 1952.

Em seu extenso depoimento realizado ao jornal recifense Diário da Noite de 1952, Higino Belarmino afirmou que após o termino do tiroteio o capitão José Caetano solicitou ao capitão Theophanes Ferraz a promoção do cabo Higino pela sua bravura e seu comportamento naquele combate. Mas o capitão Theophanes negou, visto não ter o inferior “morto o chefe dos bandidos Sebastião Pereira[22].

CONTINUA…………………………………………………………………………………………………………………………………………

NOTAS DESTE TEXTO..…………………………………………………………………………………………………………………………


[1] Ainda sobre André Tripa, Frederico Pernambucano de Mello nos conta o seguinte – Foi Morto com uma manulixa de um Tenório, da localidade Gentio, e também Miguel quem nos revela como isto se deu, a partir, como sempre, de uma denúncia:

Levaram fresca a noticia,

Na Pedra, ao capitão Basto,

Este tirou dez soldados,

Ver se o Tripa tinha gasto.

Seguiram para Santo Antonho,

Onde tem cabra medonho,

Bom de espingarda e de rasto.

Famoso e legendário ainda em vida, como costumava acontecer com os bandoleiros que mais se destacavam, Tripa mereceria, por morte, citação no relatório anual do chefe de polícia de Pernambuco, Manuel dos Santos Moreira, dirigido ao governador Sigismundo Antônio Goncalves, com data de 31 de janeiro de 1905:Nos limites da Pedra com o município de Garanhuns, deu-se o encontro da força com o grupo chefiado pelo célebre bandido André Tripa, resultando a morte deste e de uma praça.

Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, páginas 355 a 357.

[2] Eutrópio Gonçalves de Albuquerque e Silva foi juiz em várias cidades do interior pernambucano, como Flores e Cimbres, tendo sido aposentado por problemas de saúde em 1905, conforme se descreve na primeira página, da edição de 7 de julho de 1905, do Diário de Pernambuco. O Dr. Eutrópio passou a receber uma pensão anual de três contos, oitocentos e sessenta mil e quinhentos e dezoito réis (3:860$518).

[3] Sobre a história da Fábrica Peixe ver – https://docplayer.com.br/35458755-Tomaticultura-industrial-no-cerrado-25-e-uma-visao-futura.html

[4] Sobre a Revolução de 1911 em Pernambuco e a vida de Dantas Barreto, ver http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=249&Itemid=1

[5] Ver Jornal do Recife, Recife-PE, edições de 20 de julho de 1912, pág. 2, e 24 de julho de 1912, pág. 2.

[6] Ver jornal A República, Natal-RN, edição de 19 de julho de 1910, pág. 1.

[7] Ver Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de 26 de agosto de 1912, sem indicação de página.

[8] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 19 de abril de 1952, pág. 1.

[9] Ver Diário de Pernambuco, edição de 18 de fevereiro de 1914, pág. 1

[10] A declamação de versos em meio aos tiroteios na caatinga nordestina era algo comum e prática antiga, destinada a animar os combatentes no meio da refrega, ou “fogo”. Frederico Pernambucano de Mello nos conta – Rio Preto, no quartel final do século XIX, foi cangaceiro e cantador apreciado na fronteira da Paraíba com Pernambuco, dele não se sabendo se mais temido por conta dos desafios ou das brigadas em que se envolveu. Findo o combate, armas ainda em brasa, do bando de Sinhô Pereira – de atuação na mesma área mas já no século XX – alteava-se uma voz que fazia a perfeita crônica em versos de todo o combate. Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, página 24.

[11] O termo cruzeta aqui empregado, se refere a uma denominação utilizada no Nordeste do Brasil, para determinados modelos do rifle de fabricação norte-americana da marcar Winchester.

[12] José Caetano de Mello nasceu em 18 de julho de 1872 no distrito de Papagaio, na cidade pernambucana de Pesqueira, sentou praça na então Força Pública de Pernambuco em 1893 nas patentes mais baixas e durante as três décadas em que esteve na corporação ascendeu as patentes mais elevadas pela sua capacidade na luta contra o cangaço. Esteve em atuação em mais de vinte cidades pernambucanas e travou lutas com célebres cangaceiros como Antônio Silvino, Sinhô Pereira e Lampião. Aparentemente foi aposentado em 1926 por um problema na mão esquerda, em decorrência de um tiro recebido. Escolheu viver na cidade de Angelim, no agreste pernambucano, a 25 quilômetros de Garanhuns, onde constitui família e findou seus dias em 5 de novembro de 1964. Apesar dos seus feitos como policial é um homem praticamente esquecido pelos que estudam o tema do Cangaço no Nordeste do Brasil. Exceção do pesquisador e escritor pernambucano Júnior Almeida, que em junho de 2018 participou, juntamente com a Polícia Militar do Estado de Pernambuco e da Prefeitura Municipal de Angelin, de uma tocante cerimônia em memória desse valente militar.

Ver – https://www.portalagresteviolento.com.br/2018/06/11/oficial-das-volantes-sera-homenageado-em-angelim/ 

–   https://www.portalagresteviolento.com.br/2018/06/14/oficial-das-forcas-volantes-foi-homenageado-em-angelim/ 

–   http://senhorcariri.blogspot.com/2018/06/homenagem-in-memoriam-ao-capitao-das.html

[13] Ver Vilella, J. M. O Povo em Armas : violência  política no sertão de Pernambuco. 1ª ed. Rio de Janeiro-RJ, 2004, páginas 178 e 178. O trabalho de Vilella é muito interessante, onde durante suas pesquisas entrevistou participantes diretos ou indiretos de movimentos armados ocorridos no sertão pernambucano e pesquisou em vários processos judiciais arquivados nos fóruns das cidades interioranas.

[14] Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, página 234.

[15] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 22 de abril de 1952, sem indicação de página.

[16] Sobre as informações referentes a distância e quantidade de cangaceiro ver jornal A Província, Recife-PE, edição de 13 de novembro de 1919, pág. 1.

[17] Para Valdir José Nogueira, com as divisões territoriais que afetaram inúmeros municípios nordestinos ao longo das últimas décadas, as terras da fazenda Queimada Grande que se encontram no Ceará atualmente pertencem ao município de Penaforte, criado em 31 de outubro de 1958.

[18] Segundo informações existentes a primeira casa da atual sede do município de Mirandiba foi construída em 1915, por um proprietário rural chamado Elizeu Campos e queixada é a denominação de um tipo de porco selvagem existente no Nordeste do Brasil, cujo nome cientifico é Tayassu pecari. Depois a localidade foi crescendo e teve sua denominação alterada para São João de Campos (1915) e na sequência para Mirandiba (1938), que é uma denominação indígena para porco selvagem ou porco queixada. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Mirandiba

[19] Cindário, segundo Frederico Pernambucano de Mello, perdeu nas lutas sangrentas seus irmãos José e Antônio e fizeram parte do seu grupo os sertanejos José Cipriano, Vicente Moreira, João Porfírio, João Juvino, Barra de Aço, Eliziário e os irmãos Pedro. Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, página 227.

[20] Ver – Gueiros, O. Lampeão – Memorias de um Oficial Ex-comandante de Forças Volante. 4ª ed. Livraria Progresso Editora, Salvador-BA, 1957, páginas 119 a 120.

[21] Torres Filho, G. F. de S. Pernambuco no tempo do cangaço (Antônio Silvino Sinhô Pereira, Virgulino Ferreira “Lampião”) : um bravo militar : a vida e a época do tenente-coronel Theophanes Ferraz Torres : 1894-1925. 1ª ed. CEHM, Recife-PE, 2002, páginas 222 a 224.

[22] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 22 de abril de 1952, sem indicação de página.

BENTO QUIRINO, A VIOLÊNCIA NO SERTÃO DE OUTRORA E A BUSCA PELA HISTÓRIA

Vaqueiro nordestino – Fonte – IBGE.

Rostand Medeiros – IHGRN.

Para uma pessoa que faça parte de uma família que tenha sido seriamente atingida pela violência e lhe tenha sido negado o direito ao conhecimento desses episódios, normalmente essa pessoa tem dois posicionamentos clássicos – Ou cria um total desinteresse por tudo ligado ao passado, ou passa a ter uma vontade extrema de buscar conhecer tudo que ocorreu com a sua família, para assim compreender como se desenrolou a história.

Eu me coloco no segundo caso!

Sou neto por parte do meu pai de Joaquim Paulino de Medeiros Filho, um pequeno fazendeiro conhecido como Jaco, que viveu na região entre as cidades potiguares de Acari, Carnaúba dos Dantas e Jardim do Seridó. Em 13 de abril de 1952 ele foi brutalmente assassinado a punhaladas por um primo. O assassino se chamava José Quintino de Medeiros, e o caso se deu em decorrência de uma suposta dívida. Meu avô foi morto diante do meu pai, Calabar Medeiros, que na época tinha apenas 12 anos de idade. Essa terrível ação sangrenta, algo extremamente pesado na existência dos meus familiares e na minha própria formação, teria sido influenciada e apoiada a mando de um soba regional, que desejava a morte do meu avô por questões de terra e política. Mas antes mesmo desse terrível assassinato, meu avô sofreu toda uma série de perseguições e dissabores que atingiram a sua vida e a de seus familiares desde novembro de 1935. 

Na nossa história familiar essa ação sangrenta ficou indelevelmente marcada. Mas igualmente ficou marcada entre nós os nomes daqueles que realizaram ações de apoio ao meu avô.  Um dos nomes que ouvi da minha avó era de um homem chamado Bento Quirino.

Há pouco tempo, ainda no mundo anterior ao COVID-19, eu parti numa busca para tentar encontrar algo sobre essa figura, saber sobre sua história e ter ideia de sua relação com meu avô.

Encontrei muito material sobre um homem chamado Bento Quirino, um sertanejo típico dos primeiros anos do Século XX. Ele era disposto, lutador, que se meteu em confusões e sofreu a perda violenta de toda a sua família no sertão da Paraíba. Na sequência foi para a cadeia e até participou de uma revolta organizada por um homem letrado.

Casa grande da fazenda Rajada, entre as cidades potiguares de Acari e Carnaúba dos Dantas, pertencente a Joaquim Paulino de Medeiros, bisavô do autor desse texto.

Teria sido esse mesmo Bento Quirino o mesmo homem que ajudou meu avô e que no sertão de outrora viveu em meio a tragédias extremas?

Quem Foi Bento Quirino?

Sou nascido em Natal, capital do Rio Grande do Norte, onde o começo de minha vida foi no bairro operário das Rocas, na beira do Oceano Atlântico. Poderia nunca ter me importando com o sertão. Mas certamente por toda a minha história familiar, na minha mente eu sempre achei que o sertão possuí algo de verdadeiramente mágico.

É uma região que gravita entre o árido e o belo, em meio a paisagens únicas e uma natureza ressequida e dura. Onde vivem homens e mulheres criativos, trabalhadores, prestativos, persistentes e corajosos, que não têm medo nem de cara feia e nem de enfrentar as dificuldades da vida!

Talvez mais no passado do que agora, onde valores e tradições mudam tão rápido quanto a velocidade ditada pela internet e o meio digital, os sertanejos admiravam fortemente aqueles que mantinham a palavra, os que lutavam pela sua honra e os que não aceitavam serem desmoralizados. Tinham muita estima por aqueles que, por mais humilde que fosse a sua existência, eram ousados, valentes, que brigavam para conservar a própria altivez e daqueles que não tinham medo do limite entre a vida e a morte para manter intacta sua dignidade e seus valores. Valores que hoje em dia são considerados arcaicos!

Nesse sertão do passado não foram raros os episódios que terminaram em terríveis cenas de sangue para reparar a honra atingida. Normalmente essas situações limite tinham dois lutadores que travaram lutas épicas, permeadas de muito ódio. Muitas vezes os resultados dessas contendas eram tão impactantes, que chamavam a atenção de comunidades e regiões inteiras. Mormente essa curiosidade se dava pela maneira tranquila dos adversários encararem a morte. Na sequência esses casos eram propagados de forma intensa e com forte apelo popular.

Típico punhal do sertão do Nordeste.

Essa divulgação poderia acontecer de várias maneiras, principalmente nos encontros sociais que aconteciam nas feiras sertanejas, ou nos alpendres das casas centenárias. Os primeiros comentaristas geralmente eram aqueles que estavam mais próximos dos acontecimentos, dos fatos. Mas logo a narrativa avançava e os episódios narrados cresciam tanto em grandiloquência como em popularidade.

Não demorava muito e um talentoso poeta do povo escutava o caso e em pouco tempo a terrível cena de sangue se metamorfoseava em uma bela estrofe, no formato de uma sextilha, ou de uma décima de sete sílabas, ou de um martelo alagoano. Depois os versos poderiam ser impressos no formato de um tradicional folheto de cordel. Isso dava condições daquelas histórias ganharem a eternidade que o material impresso possui. Mas isso não significava que todas as histórias de lutas figadais do Nordeste do Brasil, de adversários que “se pegavam no Campo da Honra”, se tornariam versos populares, ou seriam impressas em cordel. Até onde sei esse foi o caso de Bento Quirino.

Vaqueiros em uma antiga fazenda no sertão.

Mas para contar corretamente essa história precisamos voltar para o ano de 1910, um ano bastante seco no sertão[1].

O local é a cadeia pública da cidade paraibana de Patos, onde uma pessoa que desconhecemos seu nome ali esteve para conhecer um dos prisioneiros. Esse desconhecido certamente era um homem de letrado, pois na primeira página do jornal paraibano O Norte, edição de 21 de setembro de 1913[2], ele narrou com riqueza de detalhes sobre esse encontro.

Lhe apresentaram um homem cujo nome de batismo era Bento José de Guimarães, mas era conhecido por todos como Bento Quirino. Foi descrito como sendo alto, com músculos fortes, de espaduas largas e bonito na fisionomia. Ainda segundo o desconhecido articulista o detido falava com altivez, tinha a palavra desembaraçada, se exprimia com gestos fortes e seus olhos azuis movimentavam-se de forma rápida e rítmica, acompanhando as suas ideias inteligentes. E continuou apresentando o encarcerado nas páginas de O Norte da seguinte forma:  

Na Chronica pavorosa dos delictos, que enche pintada em sangue a história do sertão parahybano, Bento Quirino é figura única pela exquisita caracteristica de sua modalidade criminal. Nem Adolfo, Nem Jesuíno Brilhante, nem Antônio Silvino reúne como elle as qualidades maximas de fôrça, de bravura, de mal orientado heroismo selvagem. Se é mais longa a vida de cada um daquelles e mais variada de peripécias monstruosas e ruins, a de Bento Quirino tem a originalidade mascula que reflecte o grau alto e bruto de sua energia organica.

Elle só mata a punhal”       

Fazia então quase quatro anos que Bento Quirino estava preso na Cadeia Pública de Patos, aguardando um julgamento por dois assassinatos. O detalhe é que até o momento do encontro, em 1910, ele ainda não tinha sido julgado e poderia receber uma pena de até trinta anos de cárcere. Mesmo diante dessa situação, Bento Quirino não demonstrou ao homem que lhe visitou esperança. Mas também não exprimiu a menor contração de tibieza, ou de fragilidade.

Foto meramente ilustrativa de um típico vaqueiro do sertão – Fonte – IBGE.

Contou que seu primeiro problema com a justiça ocorreu anos antes, na cidade paraibana de Campina Grande, quando foi acusado de furtar um cavalo, situação que Bento Quirino apontou como sendo “calumniosa”. Respondeu à justiça por esse caso e foi absolvido. Logo voltou a se encontrar com o aparato jurídico paraibano daqueles tempos, quando respondeu por um crime de assassinato. Nesse caso, que provavelmente também ocorreu em Campina Grande, ele foi atacado por um grupo de homens e apunhalou um deles, levando seu agressor a óbito. Novamente Quirino foi absolvido, pois o caso foi enquadrado como legítima defesa.

No mesmo jornal paraibano O Norte, edição de 21 de setembro de 1913, soubemos que após esse caso de legitima defesa, houve um terceiro encontro entre Bento Quirino e a justiça, só que dessa vez o caso estava ligado a uma cidade da região do Seridó do Rio Grande do Norte.

Consta que Bento Quirino decidiu seguir para uma aldeia menor. Estava nesse lugar levando a vida, quando recebeu um chamado de um primo e amigo para ir até a cidade potiguar de Jardim do Seridó. Ali seu parente havia se metido em confusões e ao destemido paraibano foi solicitado que protegesse essa pessoa em uma viagem pelos caminhos do sertão. Quirino aceitou a empreitada.

Uma noite partiu de Jardim do Seridó pelas estradas sertanejas com seu parente, quando em um determinado lugar foram emboscados por três homens que possuíam armas de fogo. Mesmo diante dessa situação desvantajosa, o paraibano não se perturbou e partiu para cima dos atiradores. Atacou a todos valentemente com seu punhal, enterrando sua arma até o cabo nos corpos daqueles infelizes, em meio a tiros, gritos e muita confusão. Ao raiar do dia os três espingardeiros estavam mortos e Bento Quirino e seu parente vivos. Novamente esteve diante da justiça, nesse caso não sei se a paraibana ou a potiguar, onde foi novamente absolvido.

Depois de tanto bater na porta da justiça, segundo o desconhecido articulista do jornal O Norte, Bento Quirino decidiu buscar paz. O valente paraibano seguiu com sua família (da qual não temos nenhuma informação anterior) para uma área que foi assim apresentada, conforme está no original: “Foi assentar a tenda de agricultor no fertil valle dos Ferros, frauda acidental da borburema, sobre os ultimos fios dagua do Pinháras”. Foi nessa região que Quirino comprou algumas braças de terras, levantou uma tosca casa de taipa e por lá ficou vivendo e sobrevivendo.

A Hecatombe de Taperoá[3]

Aparentemente a região onde a casa foi erguida não seria muito distante da então da cidade de Taperoá, antiga vila de Batalhão. A partir desse ponto vamos incorporar as fontes dessa história o jornal natalense A República, que em 12 e 15 dezembro de 1906 publicou duas interessantes notas da tragédia que envolveu Bento Quirino e sua família[4].

1906 foi um ano de boas chuvas e aquele momento poderia ser muito positivo na vida de Bento Quirino. Mas ele começou a ter problemas por questões de terra com um cidadão de nome Benedicto Leite.

Aparentemente a coisa toda desandou de forma intensa para uma situação extremamente radical, certamente pelo espírito bélico dessas duas figuras sertanejas. Pois os jornais apontam que por essa questão Quirino e Leite haviam se tornado “inimigos irreconciliáveis, jurando matar-se ao primeiro encontro, sendo ambos peritos no manejo das armas e de uma coragem de leões”.

A questão desbancou para a violência sangrenta quando um dia, ao retornar para sua casa de uma pequena viagem, Bento Quirino soube que suas filhas foram “insultadas” por parentes de Benedicto Leite. Os jornais não narram os detalhes e nem a natureza desses “insultos”, mas em uma época e em uma região onde a honra de mulheres era algo sagrado, nem necessitaria que as filhas de Bento Quirino sofressem alguma violência mais intensa e ampla, como a sexual, para que fosse possível uma resposta violenta de seu pai.

Lhe foi narrado com detalhes o ocorrido, mas Quirino não disse absolutamente nada. Apenas esperou chegar o sábado, dia 25 de novembro de 1906, dia de feira em Taperoá.

Uma das fontes pesquisadas aponta que ele seguiu para o lugarejo com um filho, outra aponta que ele foi só mesmo. O certo é que chegou na cidade e passou a circular pela praça, em meio ao burburinho dos vendedores e clientes. Por lá se encontravam o filho e um genro de Benedicto Leite. Estes logo foram informados da presença do desafeto, mas não se alteraram e nem partiram.

Depois de um tempo, Quirino, sem maiores alardes, levou seu burro até a casa onde estava hospedado o filho de Benedicto e, após iludir o dono da vivenda, chegou sem dificuldades ao quintal onde encontrou o rapaz e lá o inquiriu sobre o acontecimento envolvendo suas filhas. Logo os dois partiram para a luta armados de punhais e não demorou para Quirino matar seu oponente a estocadas.

Na sequência saiu para a rua ainda sujo do sangue do inimigo abatido e com o punhal pingando rubro líquido. Logo estava diante do genro de Benedicto, que igualmente não fugiu. Ambos partiram para a luta na frente de toda a comunidade e novamente Quirino venceu seu adversário, mas dessa vez ficou ferido.

Nesse ponto as fontes pesquisadas (Jornais A República, de 1906, e O Norte, de 1913) são unanimes sobre a vingança de Benedicto Leite.

Depois de velarem e enterrarem os cadáveres do filho e do genro, Benedicto partiu para a propriedade de Quirino com seus familiares na terça-feira, 28 de novembro. O seu inimigo obviamente não se encontrava na vivenda, mas os Leites não perderam a viagem!

Em meio a gritos de dor e desespero, começaram surrando todos na casa. Na sequência estupraram brutalmente a mulher de Quirino, que depois foi morta a punhaladas no pescoço, isso tudo diante do terror e desespero de suas filhas. Estas foram logo seviciadas e depois mortas com várias estocadas. Um filho de 12 anos e um cunhado de 17 foram igualmente assassinados com armas brancas. Depois os cadáveres foram arrastados para o terreiro e colocados sob o sol inclemente do sertão paraibano para tostarem e serem comidos pelos urubus.  

No caminho de casa os Leites, roupas tingidas de vermelho e sem nenhum remorso ou medo pela barbárie cometida, gritavam informando que quem enterrasse aqueles cadáveres sofreriam as mesmas consequências.

Mesmo com o recado dado pelos assassinos da família de Quirino, quatro ou cinco dias depois, um membro da comunidade de Taperoá conhecido como Capitão Sulpício mandou enterrar os cadáveres já completamente destroçados. Certamente o triste espetáculo de aves de rapina banqueteando-se com os restos mortais dos familiares de Quirino foi maior que a ameaça dos Leites. Consta que enterramento dos restos mortais daqueles miseráveis foi difícil, tal o estado como se encontravam.

Consta nos jornais que Bento Quirino jurou matar a todos da família Leite.

A Prisão em Nova Cruz

Benedicto sabia da terrível vingança que se abateria sobre ele e sua família e decidiram partir para o Ceará. Essa inclusive foi a última referência que encontrei sobre essa família[5].

Já em relação a situação de Bento Quirino sabemos que quatro meses após a matança de sua família ele foi preso no dia 13 de fevereiro de 1907, na cidade potiguar de Nova Cruz. Provavelmente quem o deteve foi o delegado Anísio Alípio de Carvalho e depois Quirino foi enviado para a Cadeia Pública de Natal[6].

Não sabemos o que Bento Quirino veio fazer em Nova Cruz, talvez buscar algum tipo de apoio? Ou refugiar-se da perseguição da polícia paraibana? Ou procurar membros da família Leite? Mas sabemos que o então Chefe de Polícia da Paraíba, o desembargador Antônio Ferreira Balthar, comemorou muito a captura daquele homem. Entretanto nenhuma nota, informação, ou qualquer outra coisa foi divulgada sobre uma possível prisão, ou abertura de algum inquérito contra Benedicto Leite e sua família[7].

Bento Quirino então ficou detido na Cadeia Pública de Patos, sem julgamento, até o dia 24 de maio de 1912, quando um bacharel em direito, formado na tradicional Faculdade de Direito de Recife, lhe tirou de sua cela. Mas isso não aconteceu com um Habeas Corpus na mão, mas com um rifle calibre 44 e uma cartucheira de balas!

O Dr. Augusto Santa Cruz e a “Guerra de 12”[8]

Augusto de Santa Cruz Oliveira nasceu em Alagoa do Monteiro, atual Monteiro, Paraíba, em 1º de novembro de 1873, sendo oriundo de uma tradicional família de latifundiários e políticos. Seguiu para o Recife onde se formou bacharel em direito no ano de 1895 e três anos depois era promotor público em sua cidade natal.

Nos primeiros anos do Século XX a política na Paraíba era um grande caldeirão fervescente, onde não faltavam ações violentas com perseguições, espancamentos, invasões de vilas, tiroteios e mortes. Em meio a busca de espaços políticos, no ano de 1910 Augusto Santa Cruz arregimentou homens para se “proteger”, mas igualmente atacar adversários[9].

Por suas ações Augusto Santa Cruz foi pronunciado pela justiça paraibana em 25 de janeiro de 1911. Foi preso, levado para a capital e perdeu o cargo de promotor. Após sua soltura através de um Habeas Corpus, retornou a sua terra. Seu julgamento, onde ele estava certo que seria uma farsa realizada para prendê-lo, iria se realizar em 6 de maio de 1911. Só que nessa data Augusto Santa Cruz atacou Alagoa do Monteiro com um grupo que para alguns era formado por cerca de 200 homens armados. Várias figuras importantes da comunidade foram feitas reféns, sendo levados para sua fazenda chamada Areal[10].

Casa grande da fazenda Areal, próximo a Monteiro, Paraíba. Anos atrás visitei esse local com a ajuda do amigo Ary Prata, grande estudioso da história da região de Monteiro – Foto – Rostand Medeiros.

Consta que Augusto Santa Cruz tinha a intenção de trocar a liberdade de seus prisioneiros por uma anistia pelos crimes nos quais estava sendo acusado. Mas o então governador paraibano João Lopes Machado fez ouvidos moucos aos pedidos de negociação do “Doutor Rebelado” e mandou a força policial atacar sua fazenda, prender Santa Cruz e libertar os reféns. Depois de forte troca de tiros, Augusto Santa Cruz, seus homens e seus reféns conseguiram fugir[11]. O chefe decidiu seguir para o Ceará, para Juazeiro do Padre Cícero. No caminho foi soltando os reféns aos poucos e depois passou mais de seis meses na meca dos romeiros nordestinos.

Serra de Teixeira – Fonte – IBGE.

Augusto Santa Cruz não havia conseguido sua tão desejada anistia e retornou com vários de seus homens para Alagoa de Monteiro, onde aliou-se com o médico Franklin Dantas, do município paraibano de Teixeira, igualmente desprestigiado pelas lideranças locais e pelo Estado. Juntos organizaram um novo grupo armado, que era constituído desde amigos e parentes, passando por moradores e empregados, tendo espaço até para fugitivos da justiça e cangaceiros. Consta que dessa vez o grupo alcançou a cifra de 400 a 500 homens. Estava tendo início um conflito armado que ficaria conhecido como “A Guerra de 12”.

Revista carioca mostrando uma charge de Augusto Santa Cruz e sua luta.

Em 24 de março de 1912, uma sexta-feira, Augusto Santa Cruz comandou os primeiros ataques as fazendas de seus inimigos em Alagoa de Monteiro. Depois atacou a cidade de Taperoá, que se defendeu durante cinco dias antes de render-se. O próximo alvo foi a cidade de Patos. Os revoltosos de Augusto Santa Cruz chegaram a essa cidade por volta de duas da tarde. Os 16 a 18 praças da polícia que defendiam o lugar, comandados pelo alferes José Ramalho fugiram, assim como muitos habitantes. Foram alguns jovens que tentaram uma resistência a partir da igreja local, mas diante de um grupo com cerca de 400 homens, logo depuseram armas, que foram tomadas pelos homens de Santa Cruz, mas os defensores não foram maltratados.  

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Patos, Paraíba. Não sei se foi essa a igreja que foi utilizada como baluarte de defesa quando da invasão do grupo de Augusto Santa Cruz – Fonte – IBGE.

Um dos que mais sofreu em termos de prejuízos foi o coronel José Jeronimo de Barros Ribeiro, conhecido como “Coronel Tota”. Sua casa e seu comércio foram intensamente saqueados, com prejuízos na ordem de 150 contos de réis. O coronel José Jeronimo e seus familiares ficaram escondidos por dois dias em um quarto na casa de amigos e ele só conseguiu fugir de Patos no domingo, dia 26. Tomou destino para o Rio Grande do Norte, onde percorreu junto com amigos mais de 300 quilômetros até a antiga Baixa Verde, atual cidade de João Câmara. De lá pegaram um trem da Estrada de Ferro Central até Natal e depois um outro trem, desta vez da Great Western, até a capital de Pernambuco[12].    

Foto de Patos na década de 1950, onde vemos a Avenida Sólon de Lucena e a Praça Edvaldo Mota – Fonte – IBGE.

Foi na ocasião que Augusto Santa Cruz tomou a cidade de Patos que Bento Quirino e outros prisioneiros foram libertados! Consta em um jornal que Quirino desejava assassinar o “juiz Fenelon”. Esse não era outro se não o juiz Fenelon Ferreira da Nóbrega, magistrado da cidade de Patos[13].

Bento Quirino não conseguiu seu intento e permaneceu junto ao pessoal de Augusto Santa Cruz e Franklin Dantas. Estes atacaram as cidades e vilas de Santa Luzia do Sabugi, Soledade (29/05/1912) e São João do Cariri (30/05/1912) e pensaram em atacar Campina Grande. A desse ponto, com escassez de munição e diante da resistência oferecida pelo governo estadual, os líderes dispersaram a cabroeira. Augusto Santa Cruz fugiu para Pernambuco e em março de 1913 foi submetido a júri popular em Alagoa de Monteiro, com os irmãos Miguel e Arthur atuando na defesa, sendo absolvido por unanimidade[14].

Após a dispersão do grupo, somente quatro meses depois vamos ter notícias de Bento Quirino.

O alferes Irineu Rangel soube de sua permanência no distrito de Pocinhos, hoje município autônomo, mas que na época pertencia a Campina Grande. A informação era que o foragido procurava um inimigo e não estava com nenhuma arma de fogo, apenas com seu mortal e eficaz punhal. Rangel seguiu com uma tropa que chegou a mandar bala em Quirino, que estava sozinho e conseguiu fugir[15].

Cinco Anos Foragido, Uma Nova Prisão e o Desaparecimento

Então, apesar da sua propalada periculosidade, Bento Quirinio some do mapa. Durante cinco anos nada é divulgado sobre ele. Não temos notícia se ele formou um bando de cangaceiros, ou passou a fazer parte de algum bando, ou que tenha praticado algum assalto, ou tenha assassinado seus inimigos. Parecia que ele havia se escondido e assim tentar viver em paz!

Mas o braço da justiça é longo e pouco dado a esquecimentos, quando isso não convém. Então, em uma pequena nota publicada no jornal O Norte do dia 24 de dezembro de 1918, o delegado de polícia da cidade paraibana de Soledade, o Sr. Genésio Nóbrega, capturou Bento Quirino. Nem o então Chefe de Polícia da Paraíba, Manuel Tavares Cavalcanti, fez qualquer menção sobre essa prisão!

Desse ponto em diante a pesquisa em jornais, livros e outros meios parou. Por esses caminhos nada mais encontrei sobre essa figura. E não tinha resposta se foi esse Bento Quirino que ajudou meu avô na década de 1930.

Comecei então uma busca junto aos ditos ”Cangaceirófilos”, os que se arvoram de pesquisadores do Cangaço. Outra perda de tempo e uma fonte de chateação diante da ignorância, canalhismo e da total falta de educação de alguns desses ditos “cientistas”.

Então o jeito era pegar a estrada!

A Busca Pela História e a Descoberta de um Esconderijo de Pistoleiros

Antes do COVID-19 tomar conta do Planeta Terra, eu segui para a Paraíba com meu primo Hélio de Medeiros Vianna, tentando descobrir se esse personagem tinha relação com nosso avô.

O autor e seu primo Hélio de Medeiros Vianna em busca da História de nossa família.

Seguimos adiante com os poucos dados que a nossa tradição familiar tinha deixado. Primeiramente estivemos na cidade paraibana de Frei Martinho, na Microrregião do Seridó Paraibano, onde uma fazenda na região poderia ter relação com a figura de Bento Quirino.

Casa de Memória Vicente Ferreira de Macedo, na propriedade Várzea verde, Frei Martinho – PB.

Estivemos na dita fazenda e comprovamos que ela tem relação com uma outra pessoa que ajudou nosso avô Jaco Medeiros, mas nada sobre Bento Quirino. Entretanto a visita a Frei Martinho e região foi muito proveitosa. Chamou a nossa atenção a existência de um local denominado “Casa de Memória Vicente Ferreira de Macedo”, na propriedade denominada Várzea verde, destinada a preservar a história da família Ferreira de Macedo.

Outra situação interessante nessa pequena cidade de pouco mais de 3.000 habitantes foi a existência em uma de suas praças principais de um memorial em honra dos frei-martinenses que participaram da Força Expedicionária Brasileira – FEB, durante a Segunda Guerra Mundial.  

Dessa cidade seguimos para a cidade de Cuité, com cerca de 20.000 habitantes, onde contatamos uma pessoa que nos passou uma referência interessante sobre uma propriedade onde viveu um cidadão cuja história se enquadrava ao personagem Bento Quirino. Comentou também que essa propriedade ficava alguns quilômetros da vizinha cidade de Barra de Santa Rosa.

Com seus mais de 15.000 habitantes, Barra de Santa Rosa se mostrou uma localidade interessante e acolhedora. Lá conhecemos o Senhor José Severino de Oliveira Lima, conhecido como Zé de Nininha, comerciante local, que de uma forma tranquila e prestativa se prontificou a nos apresentar pessoas que poderiam ampliar nosso conhecimento. Através desses contatos descobrimos que nas propriedades denominadas Passagem do Salgado e Gangorra, cerca de 35 quilômetros de distância dessa cidade, poderíamos encontrar boas informações.

Plantação de sisal na zona rural de Barra de Santa Rosa – PB.

Buscamos o caminho que segue em direção ao município paraibano de Olivedos. Ao percorremos essa estrada de barro avistamos muitas plantações de sisal e após um tempo chegamos nessas propriedades. Ali fomos recebidos de maneira magistral e calorosa pelos membros da família Viriato.

Em uma conversa bem tranquila, na sala de uma antiga casa de fazenda, cercada de pessoas altamente atenciosas e receptivas, descobrimos que ninguém possuía nenhuma referência se meu avô se refugiou naquelas propriedades, ou se um cidadão conhecido como Bento Quirino viveu naquele setor. Segundo as pessoas do lugar, quem poderia dar alguma informação já se encontrava em outro plano espiritual.

Fazenda Gangorra.

Infelizmente não consegui descobrir nada que pudesse elucidar a questão se o Bento Quirino que encontrei nos jornais antigos, que viveu momentos tão intensos e violentos em sua vida, foi a mesma pessoa que ajudou meu avô Jaco Medeiros.

José Antônio Maria da Cunha Lima Filho – Fonte – httptrilhasdeareia.blogspot.com201002major-cunha-lima-o-barbado-de-areia.html

Mas os membros da família Viriato me garantiram que a tradição oral local informou que no passado, antes deles chegarem por lá, aquelas propriedades serviram de esconderijo para pistoleiros que trabalhavam para o “Coronel Cunha Lima”, da cidade paraibana de Areia. Acredito que eles se referiam ao fazendeiro e líder político José Antônio Maria da Cunha Lima Filho, um importante político paraibano, eleito deputado estadual em várias ocasiões, elegendo prefeitos em Areia e foi fundador da UDN naquele estado. Para os membros da família Viriato, o poder desse homem era tanto que bastava alguém pegar em um mourão da cerca dessas propriedades que estava protegido e nem a polícia poderia fazer nada contra essa pessoa.

Como esse não era o objetivo da nossa pesquisa, demos a busca por encerrada.

Uma antiga balança de pesagem de algodão.

Mesmo com o resultado sendo negativo, em nenhum momento me senti decepcionado. Havia realizado uma maravilhosa viagem com meu primo Hélio, tinha conhecido pessoas super prestativas e atenciosas, onde a tradicional hospitalidade do sertanejo nordestino esteve presente de maneira magistral.

Pesquisar história é assim mesmo. Tem dias que funciona e em outros não, mas o que valeu nessa empreitada foi o caminho e não o destino!

Continuo com a minha busca!

NOTAS –


[1] Sobre a cronologia histórica das secas na Região Nordeste, ver o interessante trabalho Secas no Nordeste: registros históricos das catástrofes econômicas e humanas do século 16 ao século 21, de José Roberto de Lima, Antonio Rocha Magalhães, acessível em – http://seer.cgee.org.br/index.php/parcerias_estrategicas/article/viewFile/896/814

[2] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB. edição de 21 de setembro de 1913, pág. 1. Sobre quem teria escrito esse texto permanece um mistério, mesmo após extensas buscas. Entretanto me chamou a atenção a forma muito bem escrita do texto e a maneira como o autor apresenta Bento Quirino.

[3] O termo “Hecatombe de Taperoá” certamente causará estranheza nas pessoas oriundas dessa interessante cidade, pois até onde sei essa terminologia não existe por lá, foi uma criação minha para esse texto. Na verdade, eu nem sei se esses horrendos e sangrentos crimes são de conhecimento da população local. Entretanto, eles estão claramente referenciados em pelo menos dois grandes jornais da Paraíba e Rio Grande do Norte do início do Século XX.

[4] Ver A República, Natal-RN, edições de 12 e 15 de dezembro de 1906, sempre nas páginas 2 dessas respectivas edições.

[5] Ver A República, Natal-RN, edição de 15 de dezembro de 1906, pág. 2.

[6] Na Mensagem entregue pelo governador potiguar Alberto Maranhão ao Congresso Legislativo do Estado, atual Assembleia Legislativa, no ano de 1904, encontramos na página 16 que Anísio Alípio de Carvalho havia sido empossado para o cargo em 15 de outubro de 1903.

[7] Sobre a prisão de Bento Quirino ver a Mensagem Apresentada a Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, em 1º de setembro de 1907, pág. 7.

[8] A melhor fonte de informações sobre Augusto Santa Cruz e sua revolta em 1912 é o livro Guerreiro togado – Fatos históricos de Alagoa de Monteiro, de Pedro Nunes Filho, Editora UFPE, Ed. 1997, Recife-PE.

[9] Um desses inimigos foi José Pereira de Gouveia, o capitão Zé Gouveia, que em 10 de outubro de 1910 se envolveu em um tiroteio contra o pessoal de Santa Cruz na sua propriedade Cachoeirinha, perto da vila de São Tomé, atual cidade paraibana de Sumé. Desse embate Gouveia saiu ferido, quase perde a perna e por essa razão se retirou da região e foi viver em Pernambuco.

[10] Durante o ataque a Alagoa do Monteiro os homens de Santa Cruz dominaram a cadeia, libertaram os presos e o chefe deixou seus homens agirem com liberdade pela cidade contra tudo que pertencesse aos seus inimigos.

[11] Nesse episódio a polícia paraibana queimou a fazenda de Santa Cruz totalmente.

[12] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB, edição de 7 de junho de 1912, pág. 1.

[13] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB, edição de 8 de junho de 1912, pág. 1.

[14] Depois disso, exerceu o cargo de juiz de Direito em várias localidades de Pernambuco e ganhou fama de magistrado realmente justo. Aposentou-se em Limoeiro-PE, onde faleceu, em 31 de outubro de 1944, aos 69 anos de idade.

[15] Segundo o amigo Sérgio Augusto de Souza Dantas, Irineu Rangel era um destacado e valente policial paraibano, tendo combatido Antônio Silvino, Lampião no Ceará após ao ataque a Mossoró de 1927 e combatido as tropas do coronel José Pereira na chamada Guerra de Princesa de 1930.

COM FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO EM RECIFE, ENTREGANDO MEU LIVRO “1927 – O CAMINHO DE LAMPIÃO NO RIO GRANDE DO NORTE”

Rostand Medeiros – IHGRN

Depois de quase sete meses recluso na minha residência em Natal devido ao atual problema da pandemia, por esses dias eu tive a grata oportunidade de pegar a estrada BR-101 e seguir para Recife, onde visitei o amigo Frederico Pernambucano de Mello.

Como já aconteceu em outras oportunidades e apesar do distanciamento em relação a questão do COVID-19, eu fui muito bem recebido pelo amigo e a conversa foi bastante ampla e excepcional. E só tiramos as máscaras para bater uma chapa e registrar o momento!

Sempre é bom encontrar alguém com amplo conhecimento em determinados temas e mais ainda quando essa pessoa, como é o caso de Frederico, possuí algumas qualidades simples e que parecem faltar nos dias de hoje – Transmitir conhecimentos de forma clara e objetiva, além de escutar com atenção ideias e opiniões. Isso tudo em meio a muita simplicidade, algo que lhe é próprio e normal. Pude aprender mais sobre a História do nosso querido Nordeste.

Na ocasião lhe ofertei um exemplar do meu novo livro “1927 – O Caminho de Lampião no Rio Grande do Norte”. Fiquei muito agradecido pela atenção, respeito e fidalguia dispensada a esse potiguar.

Realmente valeu a viagem!

Segundo o Wikipédia, Frederico Pernambucano de Mello nasceu na cidade do Recife, capital do estado brasileiro de Pernambuco, é Procurador federal aposentado, é formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela tradicional Faculdade de Direito do Recife e em 1988 foi eleito para a Academia Pernambucana de Letras e foi superintendente da Fundação Joaquim Nabuco. Tem entre suas obras Rota Batida: escritos de lazer e de ofício, Guerreiros do sol: o banditismo no Nordeste do Brasil, Quem foi Lampião, A Guerra Total de Canudos, Delmiro Gouveia: desenvolvimento com impulso de preservação ambiental, Guararapes: uma visita às origens da pátria, A tragédia dos blindados: um episódio da Revolução de 30 no Recife, Estrelas de couro: a estética do cangaço, Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros, Na trilha do cangaço: o sertão que Lampião pisou, Guerra em Guararapes & outros estudos, Apagando o Lampião: Vida e Morte do Rei do Cangaço.

LEMBRANÇAS DE LAMPIÃO, SABINO, MASSILON E JARARACA NO LIVRO “1927 – O CAMINHO DE LAMPIÃO NO RIO GRANDE DO NORTE”

Rostand Medeiros – Sócio efetivo do IHGRN e autor do livro “1927 – O Caminho de Lampião no Rio Grande do Norte”.

Em 2010 encontrei a consultora Kátia Lopes, do Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Micro e Pequenas Empresas do Rio Grande do Norte – SEBRAE/RN. Através de Kátia soube do desenvolvimento do “Projeto Território Sertão do Apodi – Nas Pegadas de Lampião”, do qual ela era a gestora. No diálogo soube que ela planejava criar um grupo para percorrer o mesmo caminho palmilhado por Lampião e seus cangaceiros, como parte de um amplo reconhecimento histórico. Ali estava uma oportunidade imperdível de realizar um antigo sonho que desejava realizar.

Em grande parte do trajeto a motocicleta foi o meu transporte, como na ladeira do Riacho Preto, em Felipe Guerra, Rio Grande do Norte.

Com o apoio institucional da Sociedade Espeleológica Potiguar – SEP, através de Sólon Almeida Netto, pudemos apresentar a Kátia Lopes e a outros técnicos do SEBRAE, como seria possível coletar de forma sistemática as informações relativas ao caminho percorrido pelo bando de Lampião na sua invasão ao Rio Grande do Norte e as ações ali ocorridas.

Descobrimos que na antiga divisão territorial do Rio Grande do Norte, o bando de Lampião havia percorrido seis municípios – Luís Gomes, Pau dos Ferros, Martins, Caraúbas, Apodi e Mossoró. Para a realização deste projeto observamos que o antigo caminho está atualmente localizado na área territorial de dezenove territórios municipais potiguares. São eles Luís Gomes, Major Sales, Paraná, José da Penha, Tenente Ananias, Marcelino Vieira, Pilões, Pau dos Ferros, Serrinha dos Pintos, Antônio Martins, Frutuoso Gomes, Lucrécia, Umarizal, Caraúbas, Apodi, Felipe Guerra, Governador Dix-sept Rosado, Mossoró e Baraúnas.

No Povoado Cruz, na zona rural de Frutuoso Gomes, Rio Grande do Norte.

E teríamos de passar por todos esses locais.

Nesta área previamente delimitada procuramos identificar, documentar e catalogar o maior número de informações, tais como a descrição do trajeto percorrido pelos cangaceiros, a situação do patrimônio que eles atacaram, como também compilar as informações transmitidas pelas testemunhas e descendentes daqueles que presenciaram os episódios de 1927. Junto a essas informações utilizamos a bibliografia existente, complementada por informações de jornais e mapas.

Após esta fase, buscamos entrar em contato com as prefeituras, entidades e pessoas nos dezenove municípios listados, com o intuito de corroborar as informações coletadas e sobre ações realizadas no sentido de preservar a memória destes fatos.

Na bela cidade serrana de Martins-RN.

Munidos destas informações foi planejada a sequência de viagens de campo, a logística envolvida para a execução desta fase do trabalho e, no momento certo, seguimos adiante pelas estradas do sertão!

Durante a realização da pesquisa de campo pelo oeste do Rio Grande do Norte, fossem nas cidades, distritos, localidades e propriedades visitadas, buscamos contatar primeiramente as testemunhas da passagem do bando ainda vivas e que se encontravam mais lúcidas. Mesmo sendo poucas as pessoas enquadradas nesse grupo que conseguimos encontrar, foi possível coletar alguns interessantes relatos destes acontecimentos. Percebemos que o muito do que essas pessoas guardavam em suas mentes sobre aqueles dias sombrios, estavam relacionados ao choque da passagem daqueles cangaceiros, com a quebra total de suas rotinas, suas perdas pessoais e materiais, das humilhações, das sevícias, deixando terríveis lembranças.

Às margens da rodovia estadual RN-117, na zona rural do município de Mossoró, no Sítio Lagoa dos Paus, encontramos o agricultor Expedito Evangelista de Oliveira, que narrou as agruras que seu sogro, João Abdias de Araujo, passou junto ao bando.

Mas foi com aqueles que não haviam nascido no momento da passagem de Lampião e seus homens, que em 2010 estavam na faixa entre os 70 a 80 anos de idade, que tivemos oportunidades de escutar ótimos relatos. Estas pessoas viveram em uma época anterior a existência massificada do rádio e da televisão, onde os relatos de viva voz feitos pelas testemunhas dos episódios de 1927, muitas vezes em inesquecíveis diálogos nos alpendres das casas sertanejas, que marcaram profundamente suas lembranças.

Em meio a esta coleta de informações, buscamos realizar a maior quantidade possível de registros fotográficos, para apresentar o que restava dos locais invadidos pelo bando. Infelizmente constatamos, desde a nossa primeira passagem, que uma taxa bastante elevada deste patrimônio já não mais existia.

Com a conclusão desta etapa, percebemos que havíamos seguido pelo caminho correto, pois foi possível elucidar dúvidas existentes na bibliografia tradicional, descartar informações duvidosas e descobrir novos detalhes da passagem deste grupo de cangaceiros pelos nossos sertões.

Buscamos então apresentar um relatório ao SEBRAE sobre a marcha do bando de forma cronológica, sequenciando os locais onde os cangaceiros estiveram apresentando fotografias dos pontos visitados e detalhando as informações conseguidas. Depois de 2010 eu tive a oportunidade de percorrer esse caminho em mais outras quatro ocasiões.

Fazenda Campos, Umarizal-RN.

Uma experiência rica e maravilhosa.

Gostaria de abrir um parêntese aqui, para comentar algo percebido durante o trajeto percorrido para a conclusão desta pesquisa.

Principalmente no trecho compreendido entre as cidades de Umarizal e de Governador Dix-sept Rosado. Percebi, por meio dos vários relatos transmitidos pelos descendentes dos que testemunharam os fatos de 1927, que a figura do cangaceiro Lampião assumiu uma interessante conotação positiva. Ouvi várias vezes que ele “Não era tão ruim”, “Que ele não era tão mal”.

No entendimento da maioria das pessoas entrevistadas, eram os “outros cangaceiros”, ou “o resto da tropa”, aqueles que realmente praticaram as ações mais negativas, mais malévolas, especialmente Sabino, Jararaca e Massilon. Praticamente quase não ouvi a menção dos nomes de outros cangaceiros ao longo do caminho, ficando esses três celerados como os mais recordados negativamente.

Sei, por meio da tradição oral e dos materiais publicados nos livros existentes sobre esse tema, que Lampião pontualmente praticou alguns gestos de boa vontade ao longo desse largo caminho, principalmente com mulheres gestantes ou que se encontrava em estado de resguardo. Observei que aparentemente essas suas “boas ações” lhe granjearam entre os potiguares da zona rural invadida uma imagem que ao longo de décadas cada vez mais foi se transformando em positiva.

Lampião

Em relação a Sabino, como todos naquela turba, foi um cangaceiro que praticou toda sorte de crimes por onde passou no Rio Grande do Norte, principalmente surras, e alguns desses acontecimentos são aqui narrados. Contudo, percebi que, aparentemente, a imagem negativa dele tinha uma forte ligação com a cor de sua pele. Para se referir a Sabino, não foi nem um pouco raro encontrar relatos em que sobraram termos como: “O safado do negro Sabino”, “O negro medonho do Sabino”, “O negro nojento do Sabino” e outros que descambaram para termos impublicáveis. Seja qual for o termo, sempre havia o adjetivo “negro” presente.

Jararaca é um caso à parte! O negro valente de Buíque (PE), alto e forte, que, segundo os estudiosos, seguia quase sempre à frente do grupo de bandoleiros, tem a sua figura associada a um crime verdadeiramente assombroso, que foi repetido muitas e muitas vezes durante meu deslocamento.

Cangaceiro Sabino.

Quando Jararaca se encontrava preso e indefeso na cadeia de Mossoró, foi-lhe questionado se tinha algum arrependimento pelos erros passados. Ele comentou que se arrependia apenas de uma coisa: em determinado lugar (que nunca é especificado), ao se encontrar em uma casa que estava sendo assaltada pelo bando, ele pegou um risonho bebezinho nos braços e o lançou para o alto. Quando a criança vinha caindo, o cangaceiro sumariamente o apunhalou, ou “aparou” no dizer do sertanejo, utilizando seu longo punhal. A criança teria morrido rindo, pois na sua inocência imaginava que Jararaca a teria jogado para o alto como parte de uma brincadeira.

Na sequência desse relato, quando Jararaca morreu, muitos fizeram questão de dizer que ele tinha “Pago por esse crime terrível” quando ele morreu nas mãos dos policiais potiguares no Cemitério de Mossoró.

Para muitos entrevistados, o fim violento, covarde e cruel de Jararaca nas mãos dos agentes do Estado serviu como redenção do hediondo crime praticado contra a criancinha. Para corroborar com essa suposta redenção, muitos fizeram questão de me lembrar do fato de Jararaca ser considerado um “santo” pelo povo de Mossoró.

Mesmo a história dessa punhalada sendo repetida à exaustão ao longo do trajeto, esse crime nunca foi comprovado pelos principais estudiosos que se debruçaram sobre o tema.

Nos casos de Sabino e Jararaca, percebi que as violências praticadas pelo primeiro, principalmente por meio de suas inúmeras surras com chicotes, colocaram-lhe numa situação de repulsa muito intensa e logo surgia a lembrança de sua negritude. Já o segundo, Jararaca, mesmo sendo igualmente negro como Sabino, ele é pouco recordado pela cor de sua pele, mas sim pelos episódios narrados anteriormente.

O cangaceiro Jararaca ao lado de dois soldados, em Mossoró, Rio Grande do Norte

Já em relação ao cangaceiro Massilon, que era branco e – desde a fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba, dependendo do lugar visitado e de acontecimentos ocorridos no passado – sua memória se alternou entre positiva e negativa.

Por um lado, nos locais onde anteriormente Massilon foi destratado pelos ricos proprietários e que, consequentemente, sofreram sua vingança já como cangaceiro, ele foi lembrado principalmente com termos como “moleque safado”, “cabra de peia” e “marginal”.

Por outro lado, nos locais onde ele realizou positivas ações de proteção dos velhos amigos, soltura de presos conhecidos, ou a preservação de patrimônios, houve definições que iam desde “um homem correto e de palavra”, até outras que apontavam Massilon como “uma pessoa boa que entrou na vida do cangaço por conta dos outros”. Ao questionar quem seriam esses “outros”, invariavelmente a resposta foi “os que tinham dinheiro e lhe trataram mal antes de ser cangaceiro”.

Bem amigos e amigas, a jornada foi percorrida e agora, em 2020, como que fechando um ciclo, através do apoio de SEBRAE/RN, apresento o que vi!

MEMÓRIAS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ – JOÃO MANOEL FILHO E A TRINCHEIRA DO SOBRADINHO

João Manuel Filho – Foto – Francisco Rodrigues

Rostand Medeiros – Sócio efetivo do IHGRN e autor do livro “1927 – O Caminho de Lampião no Rio Grande do Norte”.

Ele chegou caminhando de forma lenta, mas firme. Trazia uma bengala na mão, um chapéu de cor clara na cabeça, tinha a pele curtida pelo sol da região oeste do Rio Grande do Norte e um semblante onde denotava uma vida de muita ação e experiência.

Estamos na cidade de Mossoró, na primeira metade de 1977, onde o cidadão João Manoel Filho concedeu uma entrevista ao jornalista Alexis Gurgel, do extinto jornal dominical natalense O Poti, onde narrou sua participação na “Resistência cívica” do povo mossoroense contra o bando de cangaceiros comandados pelo pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Fato ocorrido em 13 de junho de 1927.

O cenário da entrevista, mostrado nas fotografias existentes na página 23, da edição de 5 de junho de 1977 de O Poti, foi realizada em um dos locais onde se vendia bebidas e comidas no tradicional Mercado Público de Mossoró, perto da igreja de Santa Luzia. João Manoel declarou a Alexis Gurgel que todos os dias pela manhã saia de sua casa na Rua Felipe Camarão, 853, perto da antiga rodoviária da cidade, com a intenção de conversar com os velhos amigos no Mercado Público e, às vezes, fazer uma “fezinha” no jogo do bicho. A tarde seu destino era a Prefeitura Municipal de Mossoró, onde na época da entrevista tinha um cargo no setor de abastecimentos. Fez questão de ressaltar que nem seus 78 anos bem vividos e nem a sua bengala eram problemas para o desenvolvimento do seu trabalho.

Alexis Gurgel informou que encontrou João Manoel ainda muito lúcido, com ótima memória e relembrando com clareza acontecimentos de uma vida pontuada de momentos bem agitados.

Bando de Lampião, conforme foram vistos no Rio Grande do Norte em junho de 1927.

Soube da Chegada dos Cangaceiros em Pau dos Ferros

Nascido em 1899 na cidade potiguar de Apodi, veio com seus familiares viver em Mossoró seis anos mais tarde. No ano de 1927 vamos encontrá-lo como funcionário da firma Tertuliano, Fernandes & Cia, uma tradicional empresa que atuava no ramo algodoeiro e salineiro.

Segundo informações existentes no Diário de Natal, edição de 26 de fevereiro de 1908 (pág. 1), o principal acionista dessa firma era o empresário Francisco Tertuliano Albuquerque, tendo como sócios Raimundo Nonato Fernandes, Vicente José Tertuliano Fernandes, Francisco Xavier Filho e Rodolfo Fernandes de Oliveira Martins. Não consegui uma informação definitiva se esse quadro societário era o mesmo em 1927, mas não podemos esquecer que Rodolfo Fernandes de Oliveira Martins era o Prefeito de Mossoró no dia do ataque de Lampião e seus homens a Mossoró[1].

Caminhão abarrotado de fardos de algodão. A plantação desta malvácea foi um grande impulsionador da economia nordestina e potiguar.

João Manoel Filho narrou a Alexis Gurgel que dois dias antes do ataque dos cangaceiros contra a “Capital do Oeste”, ele estava a serviço da empresa na cidade potiguar de Pau dos Ferros, cerca de 150 quilômetros ao sul de Mossoró, junto com o gerente José de Oliveira Costa, conhecido como “Costinha Fernandes”, quando souberam que Lampião e seus cangaceiros estavam chegando.

Talvez eles tenham escutado algo sobre as invasões e depredações ocorridos nos sítios e fazendas da região, como os sofridos nas propriedades Nova, Aroeira e Panati. Ou o combate entre policiais e cangaceiros no lugar Caiçara, com a derrota dos primeiros. O certo foi que João Manoel e Costinha Fernandes trataram logo de voltar para Mossoró e para a sede da empresa, que nessa época se encontrava muito abastecida com algodão. Eles seguiram pela velha estrada que ligava as duas principais cidades do Oeste Potiguar e acredito que o destino evitou um desagradável encontro com os cangaceiros ao longo do caminho.

Capelinha da fazenda Caricé, local atacado pelo bando de Lampião em 11 de junho de 1927, Ao fundo o grande maciço rochoso do qual fazem parte, entre outras, as serras de Portalegre e Martins – Foto – Rostand Medeiros.

Lampião e seus homens, após passarem próximo do povoado Vitória[2], em meio aos saques e ataques em várias propriedades rurais, divisaram ao longe um enorme e elevado maciço rochoso, que em alguns pontos alcança quase 900 metros de altitude. Eles poderiam seguir adiante e ultrapassar essa elevação por algumas trilhas existentes, mas realizariam uma cansativa ascensão para seus animais de montaria e existia a real possibilidade de se defrontarem com piquetes de homens armados em uma ótima posição de disparo. Os cangaceiros então poderiam seguir em direção mais a leste, contornando a Serra de Martins, ou mais a oeste, margeando a Serra de Portalegre. Só que esse último caminho os levaria próximo a cidade de Pau dos Ferros, onde estavam aquarteladas tropas policiais. Tropas essas que sabiam da presença daquele bando de facínoras circulando pela região e da derrota dos seus companheiros de farda no combate da Caiçara.

Certamente sob as orientações do cangaceiro Massilon, seu guia em terras potiguares, Lampião ordenou aos seus homens seguir em direção mais a leste, contornando a Serra de Martins e depois rumando para Mossoró. Talvez essa decisão tenha evitado um encontro dos funcionários da Tertuliano, Fernandes & Cia com os cangaceiros de Lampião.

Mas não por muito tempo.

A Trincheira do Sobradinho e o Encontro com Luiz Formiga

João Manuel Filho – Foto – Francisco Rodrigues.

João Manoel comentou na entrevista a Alexis Gurgel que na manhã do dia 13 de junho, uma segunda-feira, o clima em Mossoró estava tenso, onde todos estavam compreensivelmente nervosos. Coube a ele o comando da trincheira que ficava na área dos armazéns da firma Tertuliano, Fernandes & Cia, “no fim da rua Frei Miguelinho, já na praça Felipe Guerra”. Seu grupo era formado por ele e mais seis participantes, onde João Manoel estava armado com um fuzil e todos os outros com rifles.

Fuzil Mauser modelo 1908 – Fonte – https://edelweissarms.com/dwm-brazilian-contract-1908-mauser-sn-6xxx/

Observando as fotos dos eventos ocorridos em 13 de junho de 1927, percebemos que os fuzis utilizados pelos defensores foram principalmente os modelos Mauser modelos 1894 e 1908, de fabricação alemã, calibre 7 milímetros e municiamento por ação de ferrolho. Já os rifles apresentados são em sua maioria os modelos Winchester modelos 1873 e 1892, em calibre 44, fabricados nos Estados Unidos e com ação de municiamento através do uso de alavanca. Essas últimas armas eram muito comuns nos sertões nordestinos.

Rifle Winchester modelo 1873 – Fonte – https://www.sportsmans.com/shooting-gear-gun-supplies/rifles/winchester-model-1873-short-lever-action-rifle/p/1414207

O grupo ficou de prontidão e bem protegidos por volumosos fardos de algodão, colocados no alto de um imóvel que João Manoel denominou como “Sobradinho”. E foi com esse nome que esse baluarte de defesa ficou conhecido no combate de Mossoró contra os cangaceiros.

Ainda sobre essa trincheira o entrevistado narrou em 1977.

Era uma trincheira pequena, é verdade, se fosse comparada as do coronel Rodolfo Fernandes, em frente à igreja de São Vicente, ou a de Saboinha[3], na Estrada de Ferro. Mas ali estavam homens dispostos a tudo, e por isso havia certa intranquilidade”.  

Ao ler a íntegra de sua entrevista, posso perceber que essa “intranquilidade” narrada por João Manoel parece ter mais haver com ansiedade para que o combate logo se iniciasse. Já que ele próprio comentou.

Defensores de Mossoró em 13 de junho de 1927.

Ninguém aguentava mais. Ou Lampião invadia logo, chamava para a briga, ou nós íamos atrás dele. O clima criado até que favoreceu a disposição dos homens. Porque, como se sabe, o medo transforma todo mundo. Ficam todos valentes”.

Outra possibilidade para essa ansiedade estava no fato deles possuírem poucas munições.

Nesse meio tempo um homem chamado Luiz Joaquim de Siqueira, um pernambucano natural da cidade de Afogados da Ingazeira, que trabalhava em Mossoró na erradicação de formigueiros, sendo por essa razão conhecido popularmente como Luiz Formiga, ficou no caminho do bando antes deles chegarem a Mossoró e foi capturado pelo temido bandoleiro Jararaca, junto com um cidadão chamado Amadeu Lopes. Aparentemente pela mesma origem estadual, o dito Luiz Formiga caiu nas graças de Lampião e se tornou antes do início dos combates, uma espécie de “estafeta”, ou “menino de recados” entre Lampião e Rodolfo Fernandes. Numa dessas idas e vindas do mensageiro dos cangaceiros, João Manoel ficou frente a frente com esse elemento e narrou a seguinte situação quase 50 anos depois.

Lampião e seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução – Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwJ3ojyvXP

Conversei muito com Luiz Formiga, o homem que trazia os bilhetes do coronel Virgulino Ferreira. No entanto, o Luiz Formiga foi logo mentindo, ao dizer que Lampião pretendia entrar em Mossoró com 150 homens que trazia. Não era verdade, e logo desconfiamos. O coronel Virgulino poderia trazer, no máximo, cerca de 50 homens, como alias ocorreu”.

O Combate e o Enterro de Colchete

João Manoel Filho recordou que o bando invadiu a cidade por volta das quatro da tarde, com o céu nublado, caindo uma chuva fina, antecipando um pouco a noite.

Aqui eu prefiro até mesmo reproduzir na íntegra o interessante depoimento de João Manoel ao competente jornalista Alexis Gurgel.

Combatentes de Mossoró.

Os tiros começaram e foram aumentando aos poucos. Ouvíamos o papoucar aqui e acolá, talvez nas duas maiores trincheiras, as de Rodolfo Fernandes e da Estrada de Ferro. Depois de meia hora, mais ou menos, o tiroteio se intensificou e ficou praticamente fechado, ninguém ouvia mais nada, a não ser os estampidos dos fuzis e rifles. Nessa ocasião aproximou-se um grupo de cangaceiros de nossa trincheira, e então abrimos fogo. Mas o tiroteio com a nossa trincheira foi por pouco tempo, pois os cabras de Lampião logo debandaram. Eu então mandei que parassem de atirar, para poupar munição, coisa preciosa naquele dia e naquelas circunstâncias. Aliás, durante a noite, quando tudo estava terminado, aquele silêncio danado, chegaram mais munição para nós, na trincheira do Sobradinho. Muita munição, mas tudo já estava terminado.   

Logo eles ficaram sabendo da morte do cangaceiro Colchete e durante a noite ninguém pregou o olho com receio do retorno dos bandoleiros.

João Manuel Filho – Foto – Francisco Rodrigues.

Para Seu João Manoel a morte de Colchete ocorreu devido a sua ousadia, que assim ele narrou.

Estava aquela luta dos infernos em frente à trincheira de Rodolfo Fernandes. Um tiroteio cruzado, ninguém ia pra frente nem pra trás. Então Colchete decidiu logo resolver a parada. Sacou de um punhal e investiu contra os homens que estavam do outro lado da trincheira. A intenção era “comer” todo mundo no punhal, acabar logo com aquilo. No entanto, quando estava mesmo no meio do pátio da igreja, foi atingido entre os olhos por uma bala”. Morreu instantaneamente, sem apelação”.   

Já sobre de onde partiu o disparo que matou o cangaceiro, Seu João Manoel Filho foi taxativo na resposta a Alexis Gurgel, informando que a bala não poderia ter vindo do alto da igreja de São Vicente, mas da casa de Rodolfo Fernandes, onde estava concentrado o maior número de defensores.

Igreja São Vicente de Paula – Construída por retirantes na Seca de 1915. Aqui vemos as marcas de balas no campanário onde se posicionaram alguns combatentes de Mossoró.

Olha, dali (da igreja) era mais fácil ser alvejado do que alvejar alguém. Quem tivesse coragem de atirar contra os cangaceiros, teria que se expor, mostrar metade do corpo, então era baleado tranquilamente”.

No outro dia, quando o sol raiou ainda bem cedo, em meio a muito silêncio em Mossoró, lhe foi solicitada uma missão diferenciada – Enterrar o cangaceiro Colchete no Cemitério Público. Para isso ele foi acompanhado de um homem de certa idade e dois outros operários da empresa onde trabalhava e que em 1977 já eram falecidos.

Túmulo do cangaceiro Jararaca, um dos locais mais visitados do Cemitério Público de Mossoró no dia de finados. Durante anos se conjecturou que o cangaceiro Colchete estaria enterrado nessa mesma cova, mas João Manoel, que enterrou esse cangaceiro foi categórico em negar essa versão na reportagem de O Poti de 1977 – Foto – Rostand Medeiros

O cadáver do cangaceiro ainda estava estirado na frente da igreja e segundo o entrevistado era “Forte, musculoso, tipo mediano, cabelos enrolados e de cor moreno escura”. O grupo então amarrou os pés e as mãos do falecido e passou um tronco entre seus braços e pernas. Depois o corpo de Colchete foi levantado até os ombros dos defensores de Mossoró e levando para o cemitério da mesma forma como os sertanejos transportam um animal morto.  

No campo santo eles rapidamente abriram uma cova e jogaram aquele cadáver para dentro sem maiores cerimônias. Após a conclusão da tarefa João Manoel comentou que alguém começou a tocar sinos em uma das igrejas da cidade e isso deixou os quatro defensores em extremo estado de alerta, pois esse era um alarme designado para apontar o retorno dos bandidos. Mas era o contrário. A cidade começava a comemorar a vitória contra o “Rei dos Cangaceiros”[4].

Orgulho Pela Vitória e as Comemorações dos 50 Anos da “Resistência cívica”

Com o passar dos anos João Manoel trabalhou como padeiro, foi comerciante, soldado de polícia, investigador, delegado e vereador por seis legislaturas, sendo apontado como um homem de positiva reputação em meio a sociedade mossoroense[5].

Durante toda a entrevista pouca coisa discorreu sobre seus antigos trabalhos, mas o que ele não evitou comentar foi sobre seu orgulho por ter participado da defesa de sua querida cidade.

Perguntado se tinha orgulho de sua participação no combate, a sua resposta foi bem incisiva “-Aí, sim. A gente deve se orgulhar, pois foi uma causa nobre, nós estávamos defendendo um direito nosso, a nossa gente. Aliás, Mossoró sempre soube se defender quem é contra ela”.

Já em relação as comemorações pela passagem do 50º aniversário da resistência do povo de Mossoró contra Lampião, na mesma edição do jornal O Poti, onde João Manoel foi entrevistado, consegui uma relação dos eventos que estavam programados entre os dias 7 e 12 de junho de 1977. Entre estes havia destaque para uma exposição no museu local sobre aqueles acontecimentos, aberta pelo então prefeito João Lauro da Escóssia, uma apresentação no Teatro do SESI da peça “A Derradeira Ceia”, encenada pelo Grupo Expressão, da TV Universitária, Canal 5, de Natal. Estava prevista uma exposição do desenhista natalense Eliphos Levi Bulhões, na Galeria de Arte Mossoroense, do jornal O Mossoroense, sendo um evento promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Universidade Regional do Rio Grande do Norte e Prefeitura Municipal de Mossoró. Bandas de músicas tocariam pela cidade e uma outra atividade programada foi um concurso de músicas alusivas ao ataque de Lampião, realizado pelos alunos do Colégio Diocesano Santa Luzia e com apresentação no adro da capela da instituição. Havia na programação a apresentação no Colégio Diocesano de violeiros potiguares e dos violeiros pernambucanos Otacílio e Dimas Batista, de São José do Egito, e Oliveira de Panelas. Havia na programação apresentações de um grupo de xaxado vindo da Paraíba e de um Grupo Folclórico de Boi Calemba. O hoje extinto BANORTE – Banco nacional do Norte, organizou um concurso literário para estudantes do 1º e 2º graus sobre a defesa de Mossoró em 1927 e prometia realizar as premiações nas festividades dos 50 anos do episódio. Outro ponto alto era uma palestra com o médico Raul Fernandes, filho de Rodolfo Fernandes, que prometia lançar no ano seguinte um interessante livro sobre a história da resistência em Mossoró.

O grande dia evidentemente era o 13 de junho, dia do cinquentenário, que se iniciaria pela manhã cedo com apresentações das bandas de músicas do município e da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte. Depois, as 8 horas, haveria uma missa de ação de graças, oficiada pelo capelão da igreja de São Vicente, padre Sátiro Cavalcanti Dantas. As 9 horas haveria uma cerimônia em homenagem ao prefeito Rodolfo Fernandes no Cemitério Público, com colocação de flores em seu túmulo e toque de silêncio por um corneteiro da Polícia Militar. Encerrando os festejos, aconteceu uma Sessão Magna, com entrega de “Medalha da Resistência” pelo Prefeito João Newton da Escóssia e o Governador Tarcísio de Vasconcelos Maia. Havia na lista a apresentação de um evento teatral denominado “Espetáculo da Resistência”, com texto original do professor Tarcísio Gurgel e direção de Carlos Furtado.

Eram outros tempos. Muito me chamou atenção que nas comemorações fossem utilizados muitos artistas e elementos da cultura popular.

NOTAS


[1] Seguramente a firma Tertuliano, Fernandes & Cia foi uma das mais importantes empresas de Mossoró e do Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do Século XX.

[2] Hoje é o atual município de Marcelino Vieira.

[3] Diretor superintendente da estrada de ferro, Vicente Saboia Filho.

[4]João Manuel não especificou de qual igreja vieram o som das badaladas.

[5] Neste texto eu poderia discorrer muito sobre sua trajetória pessoal e política, bem como de um de filho de criação que teve grande sucesso nessa área, mas preferi focar no tema proposto.

AUTOR NATALENSE REFAZ CAMINHO DE LAMPIÃO PELO RIO GRANDE DO NORTE

Capa do livro “1927: O Caminho de Lampião no Rio Grande do Norte”

Rostand Medeiros refez o caminho cinco vezes e colheu depoimentos de pessoas que viveram à época, além de jornais e inquéritos.

26 de agosto de 2020

Publicado no site de cultura potiguar Típico Local – https://tipicolocal.com.br/

Por Cinthia Lopes | Editora e redatora

FONTE – https://tipicolocal.com.br/noticia/autor-natalense-detalha-caminho-de-lampiao-pelo-rio-grande-do-norte-em-livro?fbclid=IwAR1Q_oNLdGZlfO4MQlmiBT-uIit03xGDqBSJGlHVijkzmIoVGOuAA7O763Q#.X0Z_W2j0XI8.whatsapp

Quando o chapéu estrelado de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, cruzou a vista dos primeiros alpendres no sertão do Rio Grande do Norte, vindo da Paraíba, o destino do cangaceiro e seu bando já estava traçado: o plano era entrar em Mossoró, a cidade mais próspera do oeste potiguar em busca de dinheiro dos coronéis, tendo a ajuda do jagunço nativo Massilon que já tinha praticado assalto na região um mês antes. Mas a invasão fracassou e o fatídico 13 de junho de 1927 entrou para a história e o folclore do cangaço. A expulsão de Lampião foi registrada por historiadores e também pelos poetas nos versos de cordel, ressaltando o heroísmo dos mossoroenses que rechaçaram o famoso bando de cangaceiros de porteira afora.

Mas até chegar a Mossoró, por onde mais Lampião andou?  Em menos de uma semana, o bando cruzou a cavalo um território que compreende 14 municípios do Rio Grande do Norte, incluindo Pau-do-Ferros e Martins, deixando um rastro de violência e impacto que o tempo não apagou da memória dos sertanejos. Foi preciso refazer todo esse chão para trazer à luz novas histórias, um desafio para o escritor e pesquisador Rostand Medeiros que agora chega ao livro “1927: O Caminho de Lampião no Rio Grande do Norte” (Caravela Selo Cultural, 375 págs.), com patrocínio do Edital de Economia criativa do Sebrae.

“1927: O Caminho de Lampião no Rio Grande do Norte” é divido em capítulos por dia em que os cangaceiros passaram pelas cidadezinhas. Era manhã de sexta-feira, dia 10 de junho de 1927, quando Lampião cruza a fronteira por Luís Gomes, trecho que hoje seria a BR-405. Sem polícia no encalço, eles então assassinam o lavrador Mané Chiquinho, dono da propriedade chamada Vaquejador. Foi a partir desse crime que as polícias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará passaram a acompanhar o bando. Fatos importantes foram acontecendo no caminho até o ataque a Mossoró (dia 13) e a prisão e morte de Jararaca no dia 14 seguindo-se a fuga de Lampião para o Ceará.

Imagem dos defensores da frustrada invasão de Lampião: “Eram quatro para 1 cangaceiro”, relata o autor

Algo que se destaca neste livro é a reconstituição dos cenários mais antigos a partir das propriedades rurais. São sítios e fazendas centenárias de nomes curiosos que traçam um caminho de contornos semidesaparecidos: Sítio Bom Jardim, Sítio Diamantina, Fazenda Aroeira, Sítio Corredor, Sítio Gangorrinha, Fazenda Ausente, Sítio Saco, Fazenda Picada, Passagem de Oiticica, Fazenda Cacimba, Caboré, dentre muitas outras.

Um dos locais da passagem é o Sítio Ponta de Serra, com traços preservados. Ao fundo, a Serra de Martins. Foto: Rostand Medeiros.

Idas e vindas

Há mais de dez anos Rostand segue o rastro de Lampião pelo Rio Grande do Norte. Só de viagens foram cinco. De motocicleta, de carro e com diferentes propósitos. A primeira em 2010 a convite do Sebrae-RN, para criar o roteiro de turismo cultural. “A pesquisa fez parte do projeto Pegadas de Lampião, uma ideia do superintendente do Sebrae Zeca Melo, que inclusive prefaciou o livro que estou lançando”, destaca. 

 Ao final da primeira jornada, o pesquisador entregou o resultado para a instituição e desde então vinha tentando publicar o texto. Até que em 2015 pegou novamente na estrada para participar das filmagens do documentário “Chapéu Estrelado”, do diretor Silvio Coutinho, como principal consultor. “Participei ativamente das filmagens a convite de Silvio, Iaperi Araújo e Valério Andrade e foram vários dias de muito chão, poeira e aprendizado”, conta o escritor.

Vale lembrar que ‘Chapéu Estrelado’ foi apresentado em Natal e exibido no Canal Brasil, que era o co-produtor do documentário junto com a Locomotiva Cinema e Arte. “Quando estava sendo preparado para percorrer os circuitos de festivais de cinema, inesperadamente Sílvio Coutinho faleceu de um ataque cardíaco no Rio e aí tudo parou. Hoje eu nem sei como está a situação dessa obra cinematográfica, lamenta.

Em 2017, de volta a estrada em companhia do artista plástico e fotógrafo potiguar Sérgio Azol, focado em uma coleta de material fotográfico para o desenvolvimento de uma exposição em São Paulo, onde Azol é radicado. A exposição também passou por Natal.

A clássica foto do bando de Lampião em Limoeiro, após a fuga do Rio Grande do Norte.

Histórias coletadas

Após esse tempo de vivência, o autor se voltou aos registros em cartórios, jornais de época e bibliografia anterior. Rostand destaca o livro de Sérgio Augusto de Souza Dantas, que foi “muito elucidativo sobre o caminho”. O livro em questão é “Lampião e o Rio Grande do Norte: A História da Grande Jornada” (Ed.: Gráfica Real, esgotado).

Além desse autor, foram consultados trabalhos de Raul Fernandes e Raimundo Nonato.  E ainda os processos criminais abertos em Pau dos Ferros e Martins sobre os ataques dos cangaceiros, reproduzindo depoimentos dos cangaceiros Mormaço, Casca Grossa e Jararaca, nomes famosos que estavam no bando de Lampião à época.

“Nos depoimentos eles declararam que vieram para o Rio Grande do Norte por instância do cangaceiro Massilon e em nenhum dos depoimentos informaram alguma motivação diferente das ações que normalmente os cangaceiros efetuavam na época”, pontua.

Rostand ficou impressionado com o destaque dado pelos jornais de todo Brasil ao ataque a Mossoró e como a passagem do bando marcou de forma intensa as muitas comunidades que visitou. “Encontrei poucas pessoas que foram testemunhas diretas dos episódios, mas delas colhi depoimentos preciosos. Principalmente os filhos, que escutaram essas histórias nos alpendres das casas sertanejas antes da chegada do rádio e da televisão, que consegui ótimas memórias da passagem do bando”. O autor confrontou o depoimento dos sertanejos às informações que estavam nos livros, jornais e processos.

Noticiário relatado no jornal A República de 16 de junho de 1927.

No livro Rostand reforça que o objetivo de Lampião no Rio Grande do Norte não era guerrear, mas tentar conseguir dinheiro com alguma aliança com os coronéis. “Lampião normalmente só se envolvia em contendas de outras pessoas se isso de alguma forma lhe trouxesse vantagem. Não podemos esquecer que Lampião sequer conhecia o Rio Grande do Norte e aqui não tinha inimigos.”

Para o autor a tentativa de invasão a Mossoró foi o maior combate da história do Cangaço em área urbana e, apesar de haver quatro defensores para cada cangaceiro, a chamada Resistência Cívica do povo de Mossoró contra Lampião e seu bando merece todas as loas.

Mas em acontecimento dessa magnitude não poderia deixar de existir controvérsias. “Uma foi sobre o destino do jovem cangaceiro Menino-de-Ouro. Este teria sido gravemente ferido no combate em Mossoró e por não suportar a dor teria pedido a Lampião que o executasse e assim foi feito. Mas o pesquisador Hilário Lucetti encontrou um idoso Menino-de-Ouro morando no sul do Ceará e sua história foi contada em um interessante livro de 1995”.

Outros temas

Rostand Medeiros é escritor, pesquisador e formado em Turismo, e escreve no blog Tok de História. Temas como Segunda Guerra também fazem parque do seu foco de pesquisa. Escreveu “Lugares de Memória: edificações e estruturas históricas utilizadas em Natal durante a Segunda Geurra” (Caravela), “Os Cavaleiros do Céu: A Saga do Vôo Ferrarin Del Prete” (Caravela), “João Rufino: Um Visionário de Fé”, dentre outros.

NO RASTRO DAS CAVERNAS DO CANGAÇO NO SERTÃO PERNAMBUCANO

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Sólon R. A. Netto

Pesquisas históricas indicavam que na região do Sertão do Pajeú, em Pernambuco, uma grande quantidade de abrigos e possíveis cavernas formadas por blocos graníticos seriam antigos refúgios de bandoleiros famosos, que durante anos vagaram pelo sertão e hoje fazem parte do mais autêntico folclore nordestino. Aqueles locais espeleológicos associados à vida desses homens eram certamente sítios de grande importância histórica, os quais nunca foram documentados.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco – Foto de Rostand Medeiros.

Tempos atrás percorremos em pouco mais de três dias quase dois mil quilômetros! Uma jornada puxada, com poucas horas de sono, para descobrir os esconderijos de Antônio Silvino, a gruta onde Lampião abrigara-se ferido e outro local bem interessante.

Início

Saímos altas horas da noite de Natal e seguimos para a fronteira da Paraíba, na área que esta se delimita com o Seridó Potiguar. O nosso grupo era composto por mim, Alex Gomes e Rostand Medeiros e horas depois estávamos avançando pelas últimas cidades da Paraíba e cruzando a divisa com Pernambuco. Quando as estrelas da madrugada foram ofuscadas pela alvorada, já íamos firmes ao primeiro objetivo: a Fazenda Colônia.

Esta propriedade está historicamente muito associada à cidade pernambucana de Afogados da Ingazeira, mas atualmente se localiza na zona rural do município de Carnaíba, a cerca de quatro quilômetros da fronteira com a Paraíba. Neste local nasceu o famoso chefe cangaceiro Antônio Silvino.

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Fazenda Colônia – Foto de Rostand Medeiros.

A história deste guerreiro das caatingas se inicia quando seu pai, o fazendeiro Pedro Batista Rufino de Almeida, conhecido popularmente como “Batistão”, foi assassinado por Desidério José Ramos e alguns de seus parentes em 3 de janeiro de 1897.

Meses depois os assassinos de “Batistão” são absolvidos em um júri controlado por famílias poderosas que apoiavam os seus matadores. A família de Antônio Silvino não desiste e impetra uma apelação e os acusados são recambiados à Casa de Detenção, em Recife. Quando os assassinos do fazendeiro são novamente trazidos escoltados para a região para um novo júri, o policial que comandava o grupo facilitou a fuga de todos. Revoltado, o jovem Manoel Batista de Moraes, então com 23 anos, e um irmão buscam fazer justiça com as próprias mãos. Para conseguir sua desejada vingança eles se tornam cangaceiros e entram em um bando comandado por um parente conhecido como Silvino Aires.

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Antônio Silvino.

Apenas um ano depois, em 1898, o chefe Silvino Aires é preso e Manoel Batista assume o bando, passando a ser conhecido como Antônio Silvino. O nome Antônio é uma referência ao santo de sua devoção, o mesmo da capela da Fazenda Colônia, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras.

Conforme nos aproximávamos da Fazenda Colônia víamos que a geografia local consistia em elevações com trezentos metros de altura em média. Ao chegarmos a entrada da propriedade topamos com três cruzes.

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Foto de Alex Gomes.

Paramos para algumas fotos e logo um vaqueiro se aproximou. Quando indagado sobre aquele antigo marco ficamos sabendo que aquelas eram apenas algumas marcas de memória das muitas “mortes encomendadas” que já se fizeram na região. Segundo o nosso informante aquelas eram cruzes de três pessoas que foram mortas a mando de um dono de engenho, que mandou seus sicários matá-los ingerindo melaço quente. Logo à frente, surgiu um descampado central, revelando uma igreja e um imponente casario. Foi lá que conhecemos os irmãos Antônio e Damião Braz.

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Conhecendo as histórias da Fazenda Colônia com os irmãos Braz – Foto de Solon R. A. Netto.

Após os contatos iniciais e de explicações do porque viemos de tão longe para a Colônia, para nossa surpresa, os irmãos Braz informaram que não existia apenas uma gruta para visitarmos, mas quatro cavidades que os mais velhos afirmaram terem sido utilizadas pelo bando de cangaceiros do chefe Antônio Silvino.

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Vista da antiga casa sede da propriedade – Foto de Solon R. A. Netto.

Não havia condições de conhecer todos os locais comentados e decidimos, então, visitar as grutas do Morcego e a da Pedra Rajada, as mais próximas. Ambas estão localizadas em um setor da Serra da Colônia conhecido pelos moradores como Serra da Lagoa, mas dentro das terras da Fazenda Colônia.

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Iniciando o caminho para o alto da serra – Foto de Rostand Medeiros.

Passava do meio dia, quando nossos anfitriões se ofereceram para nos guiar até as cavernas que os cangaceiros de outrora haviam usado. De início, a trilha estava muito bem definida e seguíamos parando para admirar a fazenda que se perdia bem distante. Por certo ponto, a mata fechou e a subida tornou-se bem íngreme. Em meio às histórias, a caminhada alternava momentos mais íngremes com outros suaves. Chamou a atenção avistar árvores como “barrigudas de espinho” (Chorisia crispifolora), atualmente raras nos sertões potiguares.

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Nas trilhas da serra – Foto de Alex Gomes.

Ao chegar a um ponto onde alguns grandes blocos graníticos, rolados pelas intempéries, uniram-se ao longo de milênios para formar uma cavidade natural, nosso guia Damião foi logo avisando: “Essa daí é a que o povo chama de Gruta do Morcego e tem que entrar se entortando”. Vimos, então, em meio a uma cerrada vegetação típica da região, a entrada da cavidade, na forma de uma estreita fenda diagonal na junção dos matacões. Para espanto maior do grupo descobrimos que aquilo era muito mais do que um simples abrigo de grandes blocos de granito!

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Entrada da Gruta do Morcego – Foto de Rostand Medeiros.

Internamente encontramos um lugar amplo e arejado, com uma saída lateral que, no passado, certamente serviu como rota de fuga para outros locais. Os Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na gruta e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781”. Encontrar tais moedas não é tão raro no Nordeste, mas as circunstâncias de sua descoberta, naquele local, podem apontar para uma série de possibilidades como, até mesmo, à utilização mais antiga do abrigo como possível esconderijo de bandoleiros.

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Saímos satisfeitos com aquela interessante cavidade e seguimos os guias em direção ao alto da serra e a Gruta da Pedra Rajada.

Nas Terras Que Viram Surgir Antônio Silvino

Segundo Antônio Braz os mais velhos narraram que os cangaceiros de Silvino se abasteciam em um antigo poço no alto da serra e ele nós levou até esse local. Atualmente nesse ponto existe uma cacimba e nós experimentamos da água cristalina e saborosa. Segundo os Braz, até hoje esse poço é utilizado pela população local. A água era realmente refrescante! Alguns goles e meia dúzia de cajus maduros nos fizeram repor a energia da subida.

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Antigo poço no alto da serra que, segundo a tradição oral local, é muito antigo e teria sido utilizado pelos cangaceiros de Antônio Silvino – Foto de Rostand Medeiros.

De lá pudemos observar uma espécie de grande piscina natural criado no solo rochoso, o tradicional “tanque” no linguajar dos sertanejos. No dia de nossa visita o local estava seco, mas segundo Damião era bastante frequentado durante os períodos de chuvas. O local é conhecido na região como “Lajedo do Tanque” ou “da Lagoa”.

Mais adiante chegamos ao ponto culminante daquela elevação, onde foi possível divisar toda a região, até mesmo a cidade de Afogados da Ingazeira, a cerca de vinte quilômetros de distância. Ficamos diante de uma bela vista da fazenda, com a igreja, pequena, parecendo uma casinha de brinquedo. A visão é maravilhosa e estratégica, mostrando que bastaria a Antônio Silvino colocar um homem vigilante naquele ponto para saber de toda a movimentação nos arredores.

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Os irmãos Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na Gruta do Morcego e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781” – Foto de Alex Gomes.

Voltamos para a trilha em direção a Gruta da Pedra Rajada, porém o caminho simplesmente desapareceu em meio uma vegetação muito fechada. O trajeto era nítido aos guias, mas a nós, tudo se resumia a um contínuo esquivar-se de galhos e espinhos. Uma mata muito cerrada, escondendo o sol, e logo nos pusemos numa descida que se traduziu num escorrego brecado somente pelo cipoal. Foi desse modo que chegamos à Pedra Rajada, o segundo ponto a ser visitado, um abrigo de difícil acesso numa das encostas da serra.

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Abrigo da Pedra Rajada – Foto de Solon R. A. Netto.

Diferentemente da Gruta do Morcego, a Pedra Rajada não é uma caverna, mas apenas um abrigo granítico formado por uma das faces de um imenso bloco que se encontra com a lateral de outro matacão rolado. É bem protegido e um pequeno grupo de homens poderia se acomodar naquele local com o intuito de buscar um esconderijo de difícil acesso. Mas se aquele local foi realmente utilizado pelos cangaceiros, pela exuberância da vegetação existente atualmente, é fácil deduzir que desde a época de Silvino poucos se atreveram-se a chegar ao local.

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Capela de Santo Antônio da Fazenda Colônia. O nome Antônio é uma referência ao santo da devoção de Manoel Batista de Moraes, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras. Foto de Solon R. A. Netto.

O retorno até a sede da fazenda deu-se nos mesmos moldes: uma descida medonha que, em diversos momentos, simplesmente se convertia em rolamentos ou escorregos. Era soltar o corpo, proteger o equipamento e livrar-se dos espinhos da caatinga misturada com árvores de grande porte. Coisas de serra.

Ao fim do primeiro dia, seguimos para a Paraíba, sendo recebidos na cidade de Manaíra pelo Senhor Antônio Antas Dias, nosso grande amigo e grande conhecedor das histórias dos cangaceiros na região. Ele então se juntou ao nosso grupo.

Em Busca da Serra do Catolé

No segundo dia, pela madrugada, já estávamos cruzando a fronteira da Paraíba com Pernambuco pelo barro, rumo a Santa Cruz da Baixa Verde. A meta era o município de São José do Belmonte, um dos locais mais interessantes do sertão pernambucano.

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Em São José de Belmonte visitamos a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto” – Foto de Rostand Medeiros.

Inicialmente nesta cidade visitamos uma casa histórica, localizada na praça central desta cidade. Era a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto”.

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Lampião – Fonte – lounge.obviousmag.org

Consta que Gonzaga mandou um oficial de polícia do Ceará, o tenente Peregrino Montenegro, e a sua tropa surrar Ioiô Maroto. Feita a desonra, Maroto jurou vingança, solicitando ajuda ao primo cangaceiro. Por essa época, Sinhô Pereira estava deixando a região para viver em Goiás e pediu para Lampião, seu antigo comandado e agora o chefe do bando, realizar a feitura “do serviço”.

Como não poderia deixar de ser, o ataque à residência de Gonzaga foi implacável. A resistência ofertada pelo proprietário e por policiais da guarnição de São José de Belmonte arrastou-se longo tempo, mas o local foi invadido e o comerciante sumariamente executado em sua própria sala.

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Distrito de Boa Esperança, São José de Belmonte – Foto de Rostand Medeiros.

Após esta visita seguimos para a zona rural de São José do Belmonte, em direção a área onde as fronteiras dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba se encontram, tendo como destino o Distrito de Boa Esperança. Soubemos que ali vivia o Senhor Francisco Maciel da Silva, testemunha daqueles tempos difíceis.

Vivendo em uma casa simples do lugarejo, idoso, mostrou-se um homem de baixa estatura, lento nos gestos e utilizando um par de óculos com grossas lentes. Apesar disso, a firmeza da voz, a lucidez e o forte aperto de mão, não deixaram transparecer os noventa e sete anos de idade que ele tinha na época de nossa visita.

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Francisco Maciel da Silva, ainda fumando um cigarro de palha com quase cem anos de idade, deu uma interessante entrevista sobre o tempo do cangaço na sua região e na Serra do Catolé – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos contou algumas histórias da época que viu os cangaceiros na sua região, que durante anos viveu no alto da Serra do Catolé e que, na sua propriedade, existia uma gruta que fora utilizada como esconderijo de cangaceiros. A cavidade é conhecida como Casa de Pedra, uma grutinha formada por grandes blocos na encosta da serra.

Já sua filha, Maria do Carmo Rodrigues da Silva, de sessenta e seis anos, informou que, quando moravam no alto da serra, muitas vezes seus filhos traziam daquela cavidade cápsulas de balas de fuzis, havendo, em uma ocasião, achado uma espécie de chave de fendas, aparentemente utilizada na manutenção de rifles. Dona Maria recordou passagens em que, noutro sítio da mesma serra, trabalhadores encontraram próximos a uma pequena gruta, dentre as rochas, “um mundo de rifles socados nas furnas”.

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Serra do Catolé – Foto de Alex Gomes.

Na época de nossa visita, devido à idade, o Senhor Maciel não pôde nos acompanhar, mas informou que um amigo por nome de Luiz Severino dos Santos, morador do Sítio Catolé, sabia muita coisa sobre os esconderijos.

Mais uma vez enfrentamos estradas quentes e poeirentas. Visto que o lugar era muito ermo e havia grande quantidade de casas abandonadas na beira do caminho, surgiu outra dificuldade: a de encontrar pessoas para prestar informações.

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Buscando informações em uma casa verdadeiramente “antenada” – Foto de Rostand Medeiros.

Seguimos mais de uma hora sem a noção exata de onde estávamos. No trajeto só casas abandonadas e portas fechadas. Pequenas passagens vicinais seguiam para lugarejos ignorados e logo ficamos perdidos. As poucas pessoas avistadas se mostravam arredias, desconfiadas com quatro estranhos em um carro. Era um jeito arisco e esquisito, tão diferente da receptividade tradicional do sertão e que talvez se explicasse pelo isolamento do local e a proximidade de três fronteiras estaduais, por onde “passa todo tipo de gente e bicho”, como nos disse um lavrador local, um dos poucos com quem conseguimos informações. Se hoje é assim, imaginemos, então, no tempo do cangaço.

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Os catolés da serra – Foto de Rostand Medeiros.

Apesar dos percalços, o horizonte fazia surgir a elevação imponente. Logo na subida, a Serra do Catolé mostrou-se mais extensa do alta, além de coberta por pequenas palmeiras conhecidas por coqueiro catolé (Syagus cromosa). Essa árvore, comum nos cerrados, é igualmente vista em praticamente toda a região Nordeste do Brasil, principalmente em locais com maior altitude.

Quando, enfim, chegamos ao cume da Serra do Catolé encontramos o Senhor José Marcos. Ele não somente nos ensinou o caminho, como também nos levou à propriedade de Luís Severino dos Santos.

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Bate papo com o Senhor Luís Severino dos Santos, no Sítio Catolé, neto do famoso chefe cangaceiro Luís Padre – Foto de Solon R. A. Netto.

Encontramos então um homem tranquilo, forte para sua idade, que nasceu e vive na serra. Desse local raramente se afasta, apenas para ir, ocasionalmente, até São José de Belmonte ou Serra Talhada. Para nossa surpresa, no começo do diálogo descobrimos que ele era neto de Luís Padre, um dos doutrinadores de Lampião, e que não havia apenas a Casa de Pedra para se conhecer, na verdade existem várias cavidades na Serra do Catolé, uma delas bem próximo de sua casa e que um dia abrigou um cangaceiro ferido.

Pedra de Dé Araújo

Segundo o Senhor Severino, a família de Luís Padre era dona do Sítio Catolé antes mesmo do início das “brigadas” contra os Carvalhos. Entre uma pausa e outra da luta, Luís Padre, Sinhô Pereira e o bando seguiam para aquele local, onde se refaziam para novos combates. Entre essas pausas, Luís Padre iniciou um relacionamento com a Ana Maria de Jesus. Desse encontro, nasceram duas filhas do célebre cangaceiro, Emília e Agostinha Pereira da Silva. A última foi a genitora do nosso informante, sendo ela quem narrou ao mesmo as peripécias e as andanças do seu pai no cangaço.

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Foto dos antepassados do Senhor Severino. O calvo a direita da foto é Luís Padre, seu avô – Foto de Rostand Medeiros.

As características de isolamento e as dificuldades naturais de acesso a serra, proporcionaram aos cangaceiros um verdadeiro local de descanso e apoio. Mas por medo da polícia descobrir esses locais, o Senhor Severino relatou que sempre a estadia do grupo era rápida e contida. Todos os caminhos eram muito vigiados, ninguém entrava ou saía sem que Luís Padre e Sinhô Pereira soubessem. Ali, estavam a somente dezoito quilômetros do Ceará e a três da Paraíba, mostrando que daquele ponto as fronteiras poderiam ser facilmente ultrapassadas, dificultando a atuação das forças estatais.

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Religiosidade sertaneja no Sítio Catolé – Foto de Solon R. A. Netto.

Em relação às cavidades, o Senhor Severino comentou sobre a existência de várias na região e que, segundo os mais velhos, os cangaceiros refugiavam-se nestes locais quando havia notícias da proximidade da polícia, ou quando algum dos cangaceiros estava ferido.

Devido ao nosso curto tempo, pedimos para conhecer alguma mais representativa e o Senhor Severino nos guiou, primeiramente, até a Pedra de Dé Araújo.

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Entrada da Gruta de Dé Araújo – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos guiou, então, a um local que sua mãe, Agostinha da Silva, contou-lhe ter conhecido ainda criança, quando foi levada pelo pai para ver um dos companheiros de luta, que se recuperava de um balaço recebido.

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Na gruta do cangaceiro baleado – Foto de Solon R. A. Netto.

Nessa época, Dona Agostinha falou ao Senhor Severino que o cangaceiro se chamava “Dé Araújo” e que fora ferido no combate das “Piranhas”, havendo sido trazido pelos companheiros para ali ser tratado. A medicina daqueles guerreiros utilizava-se de uma erva nativa cicatrizante facilmente encontrada na serra, conhecida como “cipó de baleado”, o qual era pilado e posto sobre a ferida.

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Vista a partir da gruta – Foto de Rostand Medeiros.

A cavidade de Pedra de Dé Araújo é formada por um matacão granítico rolado e internamente bem desplacado, que se apoiara formando um vão abrigado, com vistas ao vale. No centro havia uma área arenosa e plana, onde sua mãe lhe apontou como o “leito” do cangaceiro Dé Araújo, que, mais tarde, voltaria plenamente recuperado à luta. Porém, o Senhor Severino não soube informar se o lugar onde o cangaceiro fora atingido era a referida Fazenda Piranhas, atacada pelo bando dos Pereiras em junho de 1917.

Lampião Baleado

Na sequência o Senhor Luís Severino dos Santos nos acompanhou, também, até à famosa Casa de Pedra, a alguns minutos de carro de sua propriedade.

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No ponto mais alto da Serra do Catolé, da esquerda para direita, Rostand Medeiros, Antônio Antas e Luiz Severino dos Santos – Foto de Alex Gomes

Segundo o nosso guia foi um agricultor chamado Chico Barbosa, que possuía uma pequena propriedade na Serra do Catolé e morava próximo ao Senhor Severino que revelou o momento em que chegou à região: foi na passagem do bando de Lampião pelo lugar, quando o chefe foi ferido no pé, uma dos momentos mais terríveis da vida desse líder cangaceiro.

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Salão da Gruta da Casa de Pedra, onde supostamente Lampião esteve durante alguns dias se recuperando de um ferimento – Foto de Rostand Medeiros

Chico Barbosa já faleceu, mas foi um grande amigo do Senhor Severino e lhe narrou ter sido durante algum tempo cangaceiro de Lampião. A razão da entrada no bando, de onde ele veio, ou “nome de guerra” que adotou, ou como saiu do cangaço, ele nunca declinou essas coisas ao amigo Severino e nem este lhe questionou. Ocasionalmente, quando queria, Chico Barbosa comentava ao vizinho suas andanças “nos tempos dos clavinotes”. Em um dos relatos narrou como o “Rei do Cangaço” veio parar naquela cavidade.

Os doutos estudiosos da vida de Virgulino Ferreira da Silva narram que em 23 de março de 1924, por volta das dez horas da manhã, uma volante comandada pelo major da polícia de Pernambuco, Theophanes Ferraz, teve um encontro com Lampião e outros cangaceiros nas proximidades da Lagoa do Vieira, distante cerca de cinco quilômetros da Serra do Catolé. Na luta, o cangaceiro foi seriamente atingido no pé e morta sua montaria, tombando o animal sobre sua perna. Apesar disso, o bandoleiro conseguiu fugir. Seu bando, então, seguiu para o alto de uma serra, onde o chefe iniciou sua recuperação. O boletim oficial feito pelo major Theophanes Ferraz, conta que, alguns dias após, às cinco e meia da tarde do dia 2 de abril, uma tropa do seu setor de ação atacou o acampamento dos cangaceiros e morreram dois perigosos bandidos, Lavadeira e Cícero Costa.

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Foto de Alex Gomes

Já Lampião, ao fugir, abriu o ferimento, iniciando-se uma séria hemorragia. O chefe se escondeu nas moitas, por pouco não sendo descoberto pela polícia. Durante três dias, padeceu ao relento, sem água ou alimentos, com a grave ferida aberta. Por sorte, um garoto o encontrou e chamou o pai, que começou a cuidar do cangaceiro.

Após se recuperar, Lampião mandou comunicar aos seus irmãos, cangaceiros como ele. Eles chegaram ao local com um bando calculado em cinquenta homens, dentre eles, Chico Barbosa. Nesse ínterim, a polícia sabendo do estado de saúde do cangaceiro, intensificou as buscas. Sem condições de seguir para algum local mais seguro, para um tratamento melhor, o grupo rumou em direção a Serra do Catolé. Chico Barbosa comentou que, assim, Lampião refugiou-se na gruta da Casa de Pedra.

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Foto de Alex Gomes

O que vimos a partir do ponto onde se encontra a gruta na Serra do Catolé foi era estonteante, sendo possível visualizar parte do Ceará e da Paraíba. Já a Casa de Pedra tratava-se da entrada da pequena e estreita gruta, um vão alargado no meio de dois blocos de granito, num dos cumes da serra.

Segundo o mesmo Chico Barbosa, Lampião foi transferido para outras cavidades na Serra do Catolé, como a Furna da Onça, localizada na Fazenda Ingá. Porém, foi na Casa de Pedra que ele passou mais tempo se recuperando. A razão era o isolamento do lugar e sua localização privilegiada.

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Da esquerda para direita – Alex Gomes, Solon Netto, Luiz Severino dos Santos, Antônio Antas e Rostand Medeiros.

Um mês após essa peregrinação, o chefe cangaceiro seguiu protegido por muitos homens, para a propriedade “Saco dos Caçulas”, em Princesa, na Paraíba, onde o fazendeiro Marcolino Diniz lhe deu todo o apoio. Lampião se recuperou desse grave ferimento e continuou combatendo por mais quatorze anos, até ser liquidado em julho de 1938, na Grota de Angicos, em Sergipe.

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Pedra do Reino – Foto de Rostand Medeiros.

Interessante apontar que a Casa de Pedra fica perto da famosa área histórica conhecida como Pedra do Reino, retratada no romance de Ariano Suassuna – O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. A Pedra do Reino foi palco, em 1838, de um massacre iniciado por messiânicos que pregavam a volta do rei português Dom Sebastião, desaparecido numa antiga batalha. Para os fanáticos seguidores do sertão pernambucano, era preciso tingir os dois imensos monólitos, que lá estão dispostos, com sangue humano, para que um reino encantado se iniciasse na Terra. O desfecho dessa história foi macabro, quando, após o sacrifício de mais de cinquenta pessoas, boa parte crianças, o grupo foi dizimado pela força policial.

Porém, dali, era imprescindível, ainda, procurar pela Lagoa do Vieira, lugar onde Lampião se ferira ao confrontar a polícia de Pernambuco. Seria muito longe da caverna o local onde se deu o ferimento do cangaceiro?

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Região da Lagoa do Vieira – Foto de Rostand Medeiros.

Continuamos na estrada até que, quase pelo final da tarde, chegamos a uma pequena comunidade rural nas margens de um baixio quase seco. Muito provavelmente, o cenário modificou-se pouco da época dos combates aos dias atuais. Assim, estava lá a lagoa, apenas a alguns quilômetros da Casa de Pedra da Serra do Catolé.

Memórias do Ataque de Sabino a Triunfo

À noite, voltamos por Triunfo, uma cidade serrana construída a quase mil metros de altitude para no dia seguinte, conhecer o Museu do Cangaço. Este estabelecimento funciona em um prédio histórico, bem conservado, abrigando importante acervo sobre o cangaceirismo, além de objetos criados pela cultura regional.

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Punhal de Corisco no Museu do Cangaço de Triunfo – Foto de Rostand Medeiros.

São peças antigas da história do Nordeste, fotografias de um tempo não tão distante, mas pouco abordado pelos livros de história geral. Vale anotar que, também em Triunfo, há pequenas grutas graníticas associadas ao cangaço, mas como o tempo da expedição era muito limitado, não fomos visitá-las.

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Rostand Medeiros e o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, e,m Triunfo – Foto de Solon R. A. Netto.

Entretanto, nas cercanias do museu, pudemos conhecer e entrevistar o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, que, apesar dos seus noventa e oito anos de vida e da fraca audição que ele tinha na época de nossa visita, com lucidez nos contou sua rica história, que foi toda gravada.

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Prédio onde funcionou a loja do pai de Seu Nélson – Foto de Rostand Medeiros.

Em maio de 1926, a loja de seu pai, Antônio Campos, foi atacada por um grupo de cangaceiros do bando de Lampião. A desavença teve origem numa dívida com Marcolino Diniz, fazendeiro e famoso coiteiro de cangaceiros. Diniz, então, acertou o crime com Sabino, bandido de maior confiança de Lampião, para que a loja fosse saqueada e o proprietário morto.

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Notícia do ataque do cangaceiro Sabino a Triunfo, fato presenciado pelo Senhor Nélson.

A guarnição policial de Triunfo era pequena e os cangaceiros adentraram destruindo tudo no estabelecimento. O Senhor Nelson, na época um adolescente, teve a ideia de atirar ao fogo uma caixa de fogos de artifício. Os cangaceiros, ao escutarem uma sequência de tiros e estampidos, acreditando tratar-se do reforço policial, bateram em retirada. Na verdade, o que se passou foi um grande engodo e o jovem foi aclamado como o herói que livrou a cidade dos bandidos.

O Vale do Cafundó de Flores 

No regresso para o Rio Grande do Norte paramos em Flores, a quarta cidade mais antiga de Pernambuco, onde buscávamos conhecer a Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, onde foi construído um casebre aproveitando-se de uma reentrância escarpada em um abrigo rochoso. Esse local nada tinha haver com histórias de cangaceiros, mas valeu a visita pelo interessante cenário.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco.

Nosso guia, Luiz Gonzaga, conduziu o grupo ao Vale do Cafundó, onde a beleza natural da região nos encheu os olhos. Ficamos acima de um vale com dezenas de metros de profundidade, que se estendiam por uma vasta área, feições que lembraram Sete Cidades, no Piauí.

Certamente, no período das chuvas, muita água passaria pela bacia e, ante os enormes paredões de arenito capazes de fazer a vista perder-se, foi impossível deixar de pensar que deveriam existir inúmeras cavernas naquela região.

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Junto a Seu Zequinha Marinheiro – Foto de Solon R. A. Netto.

Fomos então apresentados a Zequinha Marinheiro, filho do homem que construiu a morada no abrigo do Cafundó. Ele contou que, apesar de não morar mais naquela casa, ainda a utiliza para estocar alimentos e, ocasionalmente, passar a noite. Relatou que a casa foi construída por volta de 1940, havendo morado lá por toda infância.

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Vale do Cafundó, Flores, sertão pernambucano – Foto de Solon R. A. Netto

O abrigo rochoso tornou a casa mais protegida dos elementos naturais. Mesmo após edificar uma forte residência mais próxima da estrada, até hoje o Senhor Marinheiro se vale da Casa do Cafundó, vez que a utiliza como depósito para colheitas ou mesmo refugiar-se nas horas mais quentes do dia.

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Vale do Cafundó – Foto de Alex Gomes.

E na trilha para o Cafundó, confirmando nossas expectativas, encontramos nossa primeira caverninha exatamente no vale! Ensaiamos uma incursão sem equipamentos, mas havia muitas vespas, que nos impeliram a sair apressadamente.

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Caverna do Cafundó – Foto de Solon R. A. Netto

A Caverna do Cafundó – como é conhecida – aparenta somente possuir duas entradas e (provável) curto desenvolvimento. Na rápida observação, percebemos um forte desnível positivo a partir da entrada principal.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Mais alguns passos, ali perto, descortinou-se uma situação ímpar: construída na encosta de uma formação arenítica, vimos a fachada de uma casa perdida em meio a uma imensa parede de vale, dentro de um abrigo natural. Adentramos e, apesar do intenso calor nordestino, os cômodos apresentavam temperatura amena. Dentro, alguns utensílios da rude vida sertaneja e muitos grãos.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Do lado de fora, cercados por cajueiros, ficamos sentados admirando a paisagem do rio que dividia o vale: um vasto serpenteio de areia muito fina e branca rasgando a caatinga. Diferentemente dos outros locais vistos, a Casa de Pedra do Cafundó não estava ligada ao cangaço. Era apenas um capricho da natureza, que escavou a rocha, do qual o homem se valeu para construir, dentro, um lar, perdido num rincão isolado. Ali, após décadas de edificada, servia ao mesmo propósito: nos proteger do calor.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Eis que o sentimento, comum a todos os que entram em cavernas, foi nos invadindo: a sensação de que estávamos protegidos, de que aquela cavidade natural denotaria sempre uma ideia de casa ao ser humano. Justamente isso a ligava às cavidades que havíamos visitado nos dias anteriores, àquelas utilizadas pelos cangaceiros.

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Foto de Alex Gomes.

O Cafundó abre-se com grande potencial espeleológico e turístico a todos os amantes da beleza natural e resume o que as cavernas pernambucanas têm de mais precioso: a singularidade.

Após noites mal dormidas e dias tão intensos, encerrava-se uma viagem com grande bagagem histórica, espeleológica, fotográfica e um serviço à nossa cultura nordestina e brasileira.

ENCONTRO COM O MESTRE FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO

Rostand Medeiros – IHGRN

Normalmente as pessoas que gostam de um determinado tema histórico possuem em suas casas livros sobre o assunto de sua preferência. Certamente que nestas estantes alguns destes livros se destacam de outros pelo constante manuseio e a frequência com que seus proprietários vasculham suas páginas em busca de respostas para certas indagações. São aqueles livros que se tornam referência. Evidentemente que diante dessa situação, surge naturalmente uma positiva admiração pelos autores destes maravilhosos trabalhos.

Na minha estante sobre livros do cangaço, que nem é tão numerosa assim, existem alguns poucos livros que se enquadram perfeitamente nesta situação, cujos autores são verdadeiros Mestres para mim. Um deles é “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello.

Nessa minha busca pelo conhecimento do que significa o fenômeno do cangaço, sem dúvida alguma esta obra é uma grande ferramenta que me ajuda a ampliar o meu conhecimento sobre o tema.

Com o tempo fui incorporando ao meu acervo outros interessantes livros de Frederico Pernambucano de Mello, todos de alto nível.

E hoje, em Recife, eu tive o privilégio de conhecer Mestre Frederico.

Fui recebido de maneira extremamente atenciosa, em um momento muito agradável, muito salutar, onde pudemos debater de maneira tranquila e aberta sobre o universo do cangaço e da história de nossa região.

Conheci um homem com amplo conhecimento sobre esse tema, mas com uma natural simplicidade, enorme fidalguia e extrema atenção a este seu admirador.

Eu só tenho o mais franco agradecimento ao Mestre Frederico por este agradável encontro.

A HISTÓRIA DO CANGACEIRO SERIDOENSE CHICO JARARACA

CHICO JARARACA, ex-cabra de Antonio Silvino
CHICO JARARACA, ex-cabra de Antonio Silvino

 Rostand Medeiros – Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

A região do Seridó Potiguar nunca foi pródiga na formação de cangaceiros, nem ocorreram surtos sérios deste fenômeno de banditismo social. Contudo, existiram alguns cangaceiros originários desta região, basicamente ligados ao bando de Antônio Silvino. Um deles foi Gitirana, cujo nome real era Bento Gomes de Lira. Nascido em Catolé do Rocha em 1889, entrou no bando de Silvino aos 18 anos de idade, permanecendo nas correrias pelo sertão até 1910. Segundo o pesquisador Adauto Guerra Filho, autor do livro “O Seridó na memória de seu povo”, Gitirana faleceu em 1978, sem ter concedido nenhuma entrevista sobre o assunto, pois não gostava de falar de sua passagem pelo cangaço. Apenas declamou versos sobre o seu ex-chefe e suas lutas. Aparentemente Gitirana viu muita coisa interessante no período que esteve no bando, mas calou-se e praticamente se encontra esquecido para aqueles que se debruçam sobre este tema.

Diferentemente foi o caso de Francisco Nicácio da Silva, nascido em 9 de dezembro de 1893, na Fazenda Coelho, atualmente município de São Fernando, Rio Grande do Norte. Nicácio vivia com seus pais e quatro irmãos uma infância aparentemente tranquila, caçando nas terras das Fazendas Coelho e na vizinha Saboeiro, nas imediações dos riachos da Roça e da Pitombeira. Um dia foi mordido por uma jararaca, passando a ser conhecido pelo apelido que o tornaria conhecido no cangaço; Chico Jararaca.

A propriedade Coelho pertencia a familiares de Joaquim Saldanha, conhecido como Quincas Saldanha, rico fazendeiro que tinha Catolé do Rocha como sua área de atuação política. Quincas Saldanha era um chefe político de atitudes violentas e prepotentes, possuindo numeroso bando de “cabras” a sua disposição e prontos a cumprir suas ordens.

Controvérsias  

Como sua família era “gente” de Quincas Saldanha, seguindo a risca as ordens do chefe, não é difícil de compreender a razão de Chico Jararaca fazer parte de um grupo de sete “cabras” que seu patrão levou para Serra Negra do Norte, no Rio Grande do Norte, para colocar este pessoal ao grupo de Silvino.

Aqui abro um parêntese na história de Chico Jararaca para apontar ao leitor a dificuldade de se levantar uma história baseada, na sua totalidade, em entrevistas orais. Os pesquisadores Carlos Lyra e Adauto Guerra Filho, que entrevistaram o ex-cangaceiro em diferentes anos das décadas de 70 e 80 do século passado, não são coincidentes nas informações básicas.

Um assunto controverso é a data de nascimento de Nicácio, bem como o período em que Chico Jararaca entrou e participou do bando de Silvino. Entre os dois pesquisadores existe uma diferença de dez anos sobre a data de nascimento do cangaceiro seridoense.

Sobre a entrada do mesmo no cangaço, Carlos Lyra indica, através do depoimento prestado em 1972 pelo ex-cangaceiro, que o mesmo permaneceu nas hostes de Antônio Silvino dois anos, de 1911 a 1913. Já Adauto Guerra aponta, através de entrevista concedida por Chico Jararaca em junho de 1982, que ele teria pertencido ao bando por quatro anos, de 1909 a 1913.

Saber quando e em qual período Chico Jararaca entrou no bando é difícil. Acredito que neste aspecto Carlos Lyra obteve mais sorte, devido ao fato do próprio Chico Jararaca ter lhe fornecido uma data, 30 de maio de 1911.

Sem adentrar mais nesta questão, mesmo com controvérsias, é possível traçar um relato da vida de Chico Jararaca.

Junto com Antônio Silvino

Sua entrada no cangaço deu-se quando o mesmo tinha entre 18 e 26 anos.

Antonio Silvino
Antonio Silvino

Quando Quincas Saldanha forneceu seus homens para Antônio Silvino, o chefe quadrilheiro buscava reforçar seu grupo para ajudar um parente de nome Manoel Godê. Este seria irmão de Antão Godê, nome de guerra de Idelfonso Godê de Vasconcelos. Estes irmãos eram parentes de Silvino, homens valentes ao extremo e que buscavam apoio para atacar um grupo de inimigos comuns na região da Serra da Colônia, em Afogados da Ingazeira, Pernambuco. Este local era especial para Antônio Silvino, pois no sopé desta serra existe a Fazenda Colônia, local de seu nascimento.

O grupo de jovens do Rio Grande do Norte seguiu para o lugar “Santo Agostinho”, nas proximidades da Serra da Colônia. Os inimigos dos Godê, que Chico Jararaca denomina apenas de “negos” ou “mulatos”, eram protegidos do coronel Desidério Ramos, homem poderoso em Afogados da Ingazeira. Em 3 de janeiro de 1897, Desidério matou, juntamente com outros capangas, o pai de Antônio Silvino, Pedro Baptista Rufino de Almeida, conhecido como “Batistão”.

Ao chegar à região, Chico Jararaca descobriu que o grupo dos “mulatos” tinha 33 homens em armas, enquanto o grupo de Silvino e dos Godê apenas 16 “cabras”.

Logo ocorreram tiroteios entre os grupos no lugar “Jasmim” e em outros locais. Mas este trabalho, tão próximo à morte, não estava nos planos do jovem Nicácio. Decidido a deixar o bando, Chico Jararaca avisou a Antônio Silvino sua intenção de voltar para o Seridó. O problema é que o jovem cangaceiro não sabia o caminho de retorno, tinha medo de cair “no oco do mundo” e o jeito foi ficar no bando, na “vida do rifle”.

Silvino após sua captura em 1914
Silvino após sua captura em 1914

Chico Jararaca estava em uma ocasião participando de uma tocaia, junto com o chefe Antão Godê, quando avistam a figura do inimigo “Bem-te-vi”, que vinha por uma várzea galopando em um cavalo baixo. “Bem-te-vi” era um combatente já veterano em outras lutas e não se alterou quando Godê ordenou ao comandado mandar bala no inimigo. Chico tremeu diante da tranqüilidade do seu oponente, ele atirou várias vezes, mas o inimigo não foi atingido, não reagiu e ainda tirou o chapéu de couro e disse corajosamente “-Vão lá para casa que vocês almoçam bala, jantam bala, e se há bala, dormem com a bala na mão”.

Combate na Atual Santa Maria do Cambucá, Pernambuco

Quando entrou no cangaço, junto com o pessoal de Quincas Saldanha, fazia parte do grupo Estevam, Cassimiro, Peitada, Joaquim Cigano, Neco Domingo, Mané Barão e Mané Pequeno. No bando de Silvino conheceu Serrote, Pau Reverso, Zé Pedro, Manuel Pequeno, Severino, Girondo, Gavião, Biano, Salvino, Bacurau, Manoel e Antão Godê. Para Chico Jararaca todos eram valentes por igual, mas os Godê se sobressaíam. Já o negro Serrote era extremamente perverso, gostava de buscar os soldados da polícia feridos e sangrá-los cruelmente. Entretanto, na hora da defesa, todos participavam.

Jornal do Recife, Sexta Feira, 19 de julho de 1912
Jornal do Recife, Sexta Feira, 19 de julho de 1912

O combate que mais fortemente permaneceu na memória de Chico Jararaca foi o realizado em 1912, contra a vila de Santa Maria (atual Santa Maria do Cambucá, Pernambuco).

O bando com 22 cangaceiros dormira em Vertentes, próximo a Taquaritinga do Norte, onde pretendia ir a Santa Maria para ajustar umas contas com o tenente-coronel José Braz Pereira de Lucena, conhecido como coronel Zé Braz, que desdenhara dos pedidos de dinheiro do chefe quadrilheiro e ainda respondia desaforadamente as ameaças de Antônio Silvino. Este soubera também que o coronel acolhera em sua casa uma volante da polícia pernambucana, comandada pelo capitão João Nunes e isto tornara o coronel Zé Braz seu inimigo.

A vila se localizava em uma área baixa, de onde os cangaceiros contemplavam a urbe e sua feira semanal. Neste momento se aproxima do bando um velhinho que voltava da feira, Silvino ordena que o mesmo retorne a vila e avise ao coronel Zé Braz que o bando vai entrar. O velho desce para vila, os cangaceiros observam quando ele se encontra com o coronel e retorna para onde está o bando. Zé Braz e o sargento Georgino mandaram avisar que por lá eles não passariam.

O povo se assusta com a movimentação, Chico Jararaca afirma que Antônio Silvino só ordenou o inicio dos disparos depois que o povo da feira houvesse deixado a praça pública. Outros autores afirmam que os cangaceiros não esperaram por nada e nem por ninguém. Entraram na feira distribuindo chicotadas no povo, atirando para o alto, derrubando bancas e barracas. A feira acaba e o tiroteio começa.

Santa Maria do Cambucá hoje - Fonte - santamariacambuca.blogspot.com
Santa Maria do Cambucá hoje – Fonte – santamariacambuca.blogspot.com

Para o ex-cangaceiro, os homens do coronel Zé Braz atiraram primeiro, depois a resposta do bando de Silvino foi “empurrar o dedo” nos defensores. O tiroteio teria durado quatro horas para Chico Jararaca, para outros pesquisadores a resistência durou pouco mais de uma, ou no máximo duas horas, e acabou pelo fato do grupo de defensores de Santa Maria haver esgotado sua munição.

Com o fim da resistência, familiares de Zé Braz pediram garantias ao seu parente, que foram concedidas e ele foi obrigado a explicar as razões de ter admitido a volante em sua casa. Satisfeito com a explicação, Silvino exigiu três contos de réis pela vida do coronel (jornal da época fala em um conto de réis), que foi pago.

Sargento Alvino, promovido a alferes após a captura de Antonio Silvino
Sargento Alvino, promovido a alferes após a captura de Antonio Silvino

Chico Jararaca nada comenta sobre o saque e a total destruição do comércio de José Alvino Correia de Queiroz, que teve tudo que possuía roubado e queimado. Este comerciante sentou praça na polícia de Pernambuco, conseguindo o posto de sargento e passa a perseguir Antonio Silvino. Quando este foi um capturado, em 28 de novembro de 1914, na propriedade Lagoa da Laje, em Taquaritinga, Pernambuco, José Alvino só não matou o chefe bandoleiro por insistente ordem do tenente Theophanes Ferraz Torres.

Memórias Controversas

Chico Jararaca possuía um rifle Winchester, calibre 44 e normalmente transportava 600 cartuchos. Ele comentou que não faltava munição ao bando, onde Silvino adquiria o material através dos fazendeiros amigos. Entretanto nunca declinou o nome destas pessoas.

Silvino, de roupa escura no centro da foto, após sua captura
Silvino, de roupa escura no centro da foto, após sua captura

Uma afirmação controversa dada pelo ex-cangaceiro foi que em 1912, em uma oportunidade que o bando retornava para Afogados de Ingazeira e descansou nas proximidades de Vila Bela (atual Serra Talhada), Chico Jararaca afirmou que “conheceu Lampião”. O encontro se deu na casa do velho José Ferreira, pai do futuro “Rei do Cangaço”, sendo um momento de muita alegria, pois, segundo Chico Jararaca, “Antônio Silvino era primo da mãe de Lampião”. Na ocasião deste encontro, Chico Jararaca viu Virgulino Ferreira da Silva quando este retornava de uma viagem como almocreve, o futuro chefe cangaceiro teria entre 12 e 16 anos.

O oficial Theophanes Ferraz Torres, comandante da volante que capturou Silvino. Valente e destemido, seria um grande perseguidor de Lampião.
O oficial Theophanes Ferraz Torres, comandante da volante que capturou Silvino. Valente e destemido, seria um grande perseguidor de Lampião.

Segundo o depoimento de Chico Jararaca, ele já tinha ouvido muito falar na intrigante história do “cangaceiro que comeu sal”, que vivia sendo narrada pelos cantadores de viola que declamavam as valentias do chefe Silvino pelo sertão afora. Ele afirmou que não foi testemunha deste fato, mas acreditava que esta história havia ocorrido de verdade. Em uma ocasião o grupo chegou à casa de uma mulher muito pobre, ela se encontrava só e seu pai estava em um roçado a três quilômetros de distância. O chefe quadrilheiro a tranquilizou, lhe deu garantias de vida e ordenou que matasse uma galinha para saciar a fome do grupo de cangaceiros. No medo, a mulher esqueceu de colocar sal. Após degustarem a alimentação insossa, o chefe pagou a senhora e quando saiam da casa, perguntou ao grupo o que acharam da comida e a cabroeira respondeu que estava boa. Silvino repetiu a pergunta três vezes e em todas as ocasiões à resposta foi idêntica. Contudo, na última vez, um dos rapazes comentou que “estava boa, mas um pouco insossa”, nisto o chefe alterou o semblante e disse ameaçadoramente “por causa disso, o companheiro vai comer um litro de sal”, mas a ameaça não se concretizou. Provavelmente Silvino desejava chamar a atenção dos seus “cabras” com esta incerta história.

Deixando o Bando

Para Chico, Antônio Silvino era um homem muito bom, tratava todos bem no bando, não obrigava ninguém ficar ao seu lado e detestava quem bebia cachaça.

Antônio Silvino e Lampião eram muito diferentes nas suas maneiras de praticarem o cangaço, mas compartilhavam o mesmo ódio em relação à polícia, aos rastejadores e aos delatores.

Chico Jararaca afirmou, sem maiores detalhes, que durante o período que esteve com Antônio Silvino presenciou a realização de muitos casamentos, onde o comandante bandoleiro não deixava um “cabra safado”, que supostamente “buliu” com uma menina, sair incólume e não assumir as responsabilidades do matrimônio.

Outra declaração bem contraditória do ex-cangaceiro foi que em uma ocasião, quando Antônio Silvino esteve no Ceará, o grupo assistiu em Juazeiro a uma missa realizada pelo padre Cícero Romão Batista. Chico Jararaca afirmou que Antônio Silvino tinha ótimas relações com os padres José Cabral e Aristides, respectivamente párocos e chefes políticos de Gurinhém e Piancó, ambas as localidades na Paraíba.

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Mas a maré começaria a mudar para o bando. No dia 25 de dezembro de 1912, ocorria uma importante reunião em Recife, onde pela primeira vez seria efetivamente concretizada a união das polícias dos Estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba e Pernambuco, para conjuntamente darem cabo de Antonio Silvino e seu bando.

Em 1913, como resultado desta nova iniciativa governamental, ocorreu uma forte perseguição ao grupo. Para Chico Jararaca, estas perseguições produziam fome e lhe mostrava a pouca perspectiva de continuar nesta vida. O cangaceiro seridoense pediu a Antônio Silvino para deixar o grupo. O chefe não criou problemas e em 1913 eles se viram pela última vez.

O Descanso do Antigo Cangaceiro

Chico Jararaca retornou para a fazenda Coelho e escondeu seus apetrechos do cangaço. Mas sua nova vida não seria tão fácil, pois teve que viver 48 dias escondidos da polícia na Serra da Forquilha, onde se deslocava até o Boqueirão de Porteiras, para se abrigar em uma caverna granítica com duas entradas.

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Houve até um encontro com a força volante do tenente Zacarias Neves, mas Chico conseguiu enganar o oficial e seus homens, passando por um simples caçador. O próprio oficial lhe ofereceu para sentar praça na polícia, mas o “caçador” recusou.

Após estes episódios, Chico Jararaca voltou a ser Francisco Nicácio da Silva, casou em 1917 com Rita Antonina da Silva, tiveram quatro filhos, mas a dura realidade das carências do sertão provocou a morte de todos os seus filhos.

Chico enviuvou em 1964, passando a viver numa casinha de barro, na mais franciscana condição, junto com outros parentes e amigos. Guardava na sua humilde vivenda retratos de Nossa Senhora da Conceição e de São Sebastião. Nunca se esqueceu de mandar rezar, em todo mês de janeiro, uma novena para o santo de devoção.

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Sua vida como cangaceiro lhe proporcionou algumas situações interessantes; ele teve oportunidade de conhecer vários lugares na Paraíba, Pernambuco, Alagoas e no Ceará, numa época onde muitos dos seus semelhantes mal tinham oportunidade de conhecer a fazenda vizinha e após o cangaço viveu apenas na fazenda Coelho. Conheceu poderosos do seu tempo, sentou-se à mesa de muitos que, de forma subserviente, atendiam seu chefe e morreu apoiado apenas por uma parca aposentadoria.

Os livros que adentram mais detalhadamente na vida de Antônio Silvino são pouco informativos sobre aventuras ligadas ao cangaceiro Chico Jararaca, o que mostra ter sido discreta sua passagem pelo bando, provavelmente rápida, sem maiores façanhas, a não ser acompanhar o chefe Silvino.

No seu depoimento a Carlos Lyra, Chico Jararaca se dizia um homem “que atirava muito mal”, “que correu muito” e por isto “nunca havia matado ninguém”. A Adauto Guerra ele mostrou uma cicatriz no peito, produzido por uma bala “varada” e sem rumo.

O que tornou Chico Jararaca conhecido foi sua comprovada condição de ter sido o último membro sobrevivente do bando de Antônio Silvino, além de sua abertura aos pesquisadores aqui mencionados e a outras entrevistas que ele participou, proporcionando aos que se debruçam sobre a história do cangaço, um melhor detalhamento sobre a realidade do cangaço de Antônio Silvino.

Francisco Nicácio da Silva, o Chico Jararaca, faleceu em 18 de dezembro de 1984, estando enterrado no cemitério São Vicente de Paulo, no bairro Paraíba, em Caicó.

VEJA TAMBÉM NO TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.com.br/2013/11/13/fotos-da-prisao-de-antonio-silvino/

JUNTO COM A TV BRASIL NAS TRILHAS DE LAMPIÃO EM PERNAMBUCO

Diante da centenária capela da Fazenda Colônia, onde nasceu o cangaceiro Antônio Silvino. Da esq. para a dir. Carina Dourado, André Vasconcelos, Osvaldo Alves, o autor deste blog e Alexandre Souza
Diante da centenária capela da Fazenda Colônia, onde nasceu o cangaceiro Antônio Silvino. Da esq. para a dir. Carina Dourado, André Vasconcelos, Osvaldo Alves, o autor deste blog e Alexandre Souza

Na última semana tive oportunidade de percorrer o nosso sertão nordestino para estar junto com o pessoal da TV BRASIL, de Brasília, fazendo parte do programa “CAMINHOS DA REPORTAGEM” sobre o Cangaço e Lampião.

A Equipe era composta pela repórter brasiliense Carina Dourado, o cinegrafista goiano Osvaldo Alves e o auxiliar técnico carioca Alexandre Souza e o motorista Fred Silva, este do Ceará. Todos pessoas maravilhosas, ótimos companheiros de jornada e unidos na busca da informação. Foi uma honra estar com eles.

As cangaceiras do grupo folclórico de xaxado de Triunfo
As cangaceiras do grupo folclórico de xaxado de Triunfo

No sertão pernambucano estivemos juntos em Triunfo, Afogados da Ingazeira e em uma fazenda em Carnaíba e outra em Serra Talhada. Todos locais incríveis, alguns sendo revisitados e outros sendo descobertos.

Mas especialmente em Serra Talhada ficamos hospedados na Fazenda Barreiros, onde passamos ótimos momentos junto com o proprietário, o fotojornalista Álvaro Severo, uma grande figura que produz cultura no nosso sertão e com muitas ideias fantásticas.

Cangaço - História e cultura nordestina
Cangaço – História e cultura nordestina

Nesta propriedade seguimos para a Serra Grande, palco do maior combate da história do cangaço no Brasil, onde Lampião, segundo algumas fontes, contava com 85 homens no seu bando e venceu várias volantes que totalizavam 300 policiais. Foram 900 metros de altitude (Mais elevada que a Serra de Martins) que tivemos de encarar e assim compreender o que ocorreu neste local em novembro de 1926. A Fazenda Barreiros está localizada a 38 km de Serra Talhada, possui 1.200 hectares, dos quais 800 são área de preservação permanente. Na grutas da Serra Grande, esconderijo de cangaceiros armas e utensílios tem sido encontradas ao longo dos anos pelo pessoal da fazenda e agora pertencem a coleção privada do Álvaro Severo (Autorizado pelo Exército). Ali já acharam até uma máquina de costura que os cangaceiros utilizavam para consertar seus uniformes. O Álvaro trabalha duro para criar um museu e uma pousada rústica para que os visitantes compreendam o que é o sertão, sua gente e sua história.

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Foram 1.400 km de estrada, ida e volta do Pajeú, queimando trecho, comendo onde dava, andando em estrada esburacada, subindo serra, quebrando mato, deixando a família em Natal a pé e na casa de parentes. Mas descobrir estes locais, é igual a propaganda do Mastercard,…Não tem preço!

Início da minha viagem, passando por Santa Cruz-RN e a grande estátua da padroeira da cidade
Início da minha viagem, passando por Santa Cruz-RN e a grande estátua da padroeira da cidade

Em Soledade-PB, buscando o caminho
Em Soledade-PB, buscando o caminho

Fazendas centenárias do sertão
Fazendas centenárias do sertão

Em Taperoá-PB, a lembrança da obra do grande Ariano Suassuna
Em Taperoá-PB, a lembrança da obra do grande Mestre Ariano Suassuna

Finalmente em Triunfo-PE e seu maravilhoso e diferente friozinho sertanejo
Finalmente em Triunfo-PE e seu maravilhoso e diferente friozinho sertanejo

Juntos André e Carina transmitindo para os telespectadores as histórias da "Casa das Almas" de Triunfo. Dizem que a fronteira da Paraíba e de Pernambuco passa no meio desta casa e que na época do cangaço Lampião podia ficar em um dos lados da fronteira dentro da casa que a polícia não o perturbava. Será?
Juntos André e Carina transmitindo para os telespectadores as histórias da “Casa das Almas” de Triunfo. Dizem que a fronteira da Paraíba e de Pernambuco passa no meio desta casa e que na época do cangaço Lampião podia ficar em um dos lados da fronteira dentro da casa que a polícia não o perturbava. Será?

Filmado em Triunfo o grupo de xaxado organizado pela amiga e pesquisadora triunfense Diana Pontes
Filmado em Triunfo o grupo de xaxado organizado pela amiga e pesquisadora triunfense Diana Pontes

Em Afogados da Ingazeira, na praça principal, junto com o jovem poeta Alexandre Morais, que criou e declamou um maravilhoso poema sobre Antônio Silvino
Em Afogados da Ingazeira, na praça principal, junto com o jovem poeta Alexandre Morais, que criou  especialmente para o programa um maravilhoso poema sobre Antônio Silvino

A caminho da Fazenda Colônia, onde nasceu Antônio Silvino
A caminho da Fazenda Colônia, onde nasceu Antônio Silvino

Casa Grande da Fazenda Colônia, onde nasceu Manoel Baptista de Morais, futuro "Rifle de Ouro", cangaceiro Antônio Silvino
Casa Grande da Fazenda Colônia, onde nasceu Manoel Baptista de Morais, futuro “Rifle de Ouro”, cangaceiro Antônio Silvino

Reencontrando o amigo Braz de Buíque, grande vaqueiro, afamado na sua ribeira e homem simples por natureza
Reencontrando o amigo Braz de Buíque, grande vaqueiro, afamado na sua ribeira e homem simples por natureza

Centenária moenda de cana da Fazenda Colônia
Centenária moenda de cana da Fazenda Colônia

Procurando transmitir o que aprendi desde a primeira vez que aaqui vim, em 2008, com o amigo, pesquisador e escritor Sérgio Dantas, que escreveu o melhor livro biográfico sobre Antônio Silvino
Procurando transmitir o que aprendi.

A Fazenda Colônia é um local que parou no tempo e daria um ótimo local para filmagens de época
A Fazenda Colônia é um local que parou no tempo e daria um ótimo local para filmagens de época

A noite na Fazenda Barreiros, zona rural de Serra Talhada. A galera animada para a Serra Grande
A noite na Fazenda Barreiros, zona rural de Serra Talhada. A galera animada para a Serra Grande

O Alexandre, carioca da Tijuca, deleitando a todos com o puro chorinho em pleno sertão
O Alexandre, carioca da Tijuca, deleitando a todos com o puro chorinho em pleno sertão

Armas de fogo, munições e armas brancas encontradas em grutas que serviram de abrigo aos cangaceiros na Serra Grande
Armas de fogo, munições e armas brancas encontradas em grutas que serviram de abrigo aos cangaceiros na Serra Grande

Serra Grande, local do maior combate do cangaço
Serra Grande, local do maior combate do cangaço

Típico café sertanejo
Típico café sertanejo…..

Degustando um maravilhoso queijo, ao lado do amigo Álvaro Severo, proprietário da Fazenda Bezerros.
Degustando um maravilhoso queijo, ao lado do amigo Álvaro Severo, proprietário da Fazenda Bezerros.

André e os carros de bois típicos do Pajeú
André e os carros de bois típicos do Pajeú

Instruções para encarar a subida com o guia local
Instruções para encarar a subida com o guia local

Pelas mesmas trilhas dos cangaceiros
Pelas mesmas trilhas dos cangaceiros

A caminho
A caminho

No meio da mata
No meio da mata

Como se diz - "Rapadura é doce, mas não é mole não!"
Como se diz – “Rapadura é doce, mas não é mole não!”

Não foi fácil..
Não foi fácil..

..Mas no final tranquilos e realizados com o esforço.
..Mas no final tranquilos e realizados com o esforço.

Carina e seu achado...
Carina e seu achado…

O retorno...
O retorno…

No final junto com as crianças do Pajeú
No final junto com as crianças do Pajeú

Um grande agradecimento ao amigo André Vasconcelos pelo apoio e atenção no sertão do Pajeú. Já duas vezes que viajo com André e a nossa convivência e trabalho foram enormemente positivos. Eu fui contatado pelo pessoal da TV Brasil por conta do nosso blog TOK DE HISTÓRIA e os textos que aqui se encontra sobre o cangaço e eu fiz questão de contatar o André e colocá-lo na produção. Ele teve um ótimo espaço no programa apresentando a sua cidade (a famosa “Casa das Almas” e uma residência que nunca foi mostrada na imprensa e serviu para Lampião se recuperar do tiro no pé em 1924). Trabalhamos juntos e foi muito bom, ele é uma grande figura e, se Deus quiser, vamos repetir a dose em breve!

O grande André, extremo conhecedor do tema cangaço na região e um ótimo violeiro. Sem sua ajuda a gente não conseguiria
O grande André, extremo conhecedor do tema cangaço na região e um ótimo violeiro. Sem sua ajuda a gente não conseguiria

Foi em dezembro de 2010 que criei o TOK DE HISTÓRIA, com a ideia de ter um espaço na internet para escrever sobre coisas que gosto, sempre buscando democratizar a informação histórica. Nunca ganhei um centavo com este trabalho, mas o que ganhei em informações, conhecimento e principalmente amigos, já perdi as contas.

Rostand Medeiros

O GRANDE FOGO DA CAIÇARA – INÍCIO DA RESISTÊNCIA AO BANDO DE LAMPIÃO NO RN

TEXTO – Angelo Dantas

O episódio acima citado, ocorrido no dia 10 de junho de 1927, na então Vila Vitória, atual Município de Marcelino Vieira/RN, precisamente no lugar denominado Caiçara dos Tomáz, está muito bem relatado por Carlos Rostand França de Medeiros, no blog Lampião Aceso e pelo Sargento Gama no blog Toxina.

Mas ainda tem muita novidade sobre tal ocorrência.

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Rostand Medeiros recebendo a medalha junto com descendentes dos participantes do combate.

Em razão de o soldado  José Monteiro de Matos ter sido cruelmente assassinado pelo bando do célebre cangaceiro Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, naquele fatídico dia, o Governador Juvenal Lamartine autorizou a construção de um túmulo em sua memória, conforme lei que segue abaixo.

Embora deva ser considerado como um dos seus maiores heróis, pouca coisa a PM tem feito para enaltecê-lo.

Diante disto, estou concluindo um projeto para que seja criada a Medalha de Bravura  da PM-RN, cuja denominação será CRUZ DE BRAVURA SOLDADO MATOS.

Conforme tratado na 1ª parte, em 1928 o governador Juvenal Lamartine autorizou a construção de um monumento em memória do destemido soldado José Monteiro de Matos.

Placa do antigo monumento. Repare a data errada (16-06-1927). Foto do autor – março/2007

Com a construção do açude de Marcelino Vieira, cuja lâmina d’água encobriu o local onde ocorreu o grande confronto travado com o bando de Lampião o monumento teve que ser relocado. Acreditamos que isto ocorreu no governo de Dinarte Mariz. Possivelmente tenha sido mandado fazer uma outra placa de bronze com os dizeres necessários. E erraram exatamente a data do episódio. A placa permaneceu exibindo a data 16 DE JUNHO DE 1927 por muitos anos até que, no inicio de 2007, por iniciativa deste pesquisador e apoio do prefeito Francisco Iramar o equivoco foi sanado.

No dia 10 de junho de 2007, no transcurso dos “Oitenta Anos do Grande Fogo da Caiçara” o monumento foi mais uma vez relocado, assunto que será tratado mais adiante.

De acordo com os autos do histórico processo crime movido contra Virgolino Ferreira e seu bando  na Comarca de Pau dos Ferros, sentenciado no ano 2002, pelo MM Juiz de Direito João Afonso Morais Pordeus, o cadáver do soldado da PM-RN José Monteiro de Matos fora examinado no dia 11 de junho de 1927, na povoação de Victória, atual Município de Marcelino Vieira/RN, cujo lado pericial, manuscrito, compõe o caderno  processual.

Antigo monumento ao soldado Matos. Foto do autor – março/2007

Como sou um ferrenho defensor de que o bravo soldado Matos é um verdadeiro herói e mártir da nossa querida corporação achei por bem publicar as peças atinentes à referida perícia. Tal documento é um dos diversos embasamentos do anteprojeto de decreto que estamos elaborando, com vistas a ser instituída a medalha de bravura da PM-RN e me foi generosamente cedido em forma de cópia pelo colega Epitácio de Andrade Filho, capitão médico e cangaceirólogo.

No dia 10 de junho de 2007 comemoramos solenemente o transcurso  dos 80 anos do primeiro confronto travado entre o bando de Lampião e a polícia em solo potiguar, cujo evento ficou conhecido como O Grande Fogo da Caiçara, ocorrido no atual Município de Marcelino Vieira. Lá padeceu o destemido soldado José Monteiro de Matos, jovem policial que ainda não havia completado 40 dias de serviço.

A fim de bem marcar tão significativo acontecimento, elaborei e apresentei ao Dr. Iramar de Oliveira, respectivo prefeito municipal, uma proposta de Medalha Comemorativa, o que foi plenamente aceito e aprovado.

Medalha Fogo da Caiçara

Contando com a importante colaboração do sargento PM Francisco das Chagas Alves, meu colega de corregedoria, a arte da referida medalha ficou assim definida:

I – Insígnia: formada por um escudo redondo, dourado, medindo 40mm de diâmetro, tendo ao centro um octógono encravado num circulo, carregado pela representação da Serra do Panatis. Em contra-chefe, duas setas horizontais apontando em sentidos opostos e, logo acima, à destra, duas garruchas em santor, e à sinistra um chapéu de cangaceiro,  encimados pela representação do  monumento erigido em memória do Soldado José Monteiro de Matos. Circundando a bordadura da medalha,  as inscrições PMMV, acima, e COMEMORATIVA DOS 80 ANOS DO FOGO DA CAIÇARA, abaixo, e entre estas dois ramos de folhas de carvalho. No reverso, a inscrição “10 de junho de 2007 – 80 anos”.

II – Fita: confeccionada em gorgorão de seda chama lotada, com listras nas cores verde, azul, amarela, branca, azul e verde, medindo 35m de largura por 45mm de comprimento útil.

III – Barreta: confeccionada com o mesmo tecido e cores da fita, medindo 10mm de altura por 35mm de largura.

IV – Diploma: confeccionado em papel apergaminhado, de acordo com o modelo em apenso.

Simbologia

A simbologia  da Medalha  é a seguinte:

I – Octógono: Representa o algarismo “8”;
II – Círculo: lembra o algarismo “0”, de 80 anos.
III – Serra do Panatís; Simboliza o Município de Marcelino Vieira;
IV – Monumento tipo cruzeiro: evoca o Soldado José Monteiro de Matos, morto durante o Fogo da Caiçara;
V – Chapéu de cangaceiro: significa o fenômeno social que assolou os sertões nordestinos, sobretudo na década de 1920.
VI – Garruchas cruzadas (em santor): representa a força legal que combateu aos cangaceiros no povoado Caiçara, da qual fazia parte o bravo Soldado José Monteiro de Matos;
VII – Cores azul, amarela e verde: predominantes da bandeira de Marcelino Vieira;
VIII – Setas em sentidos opostos: indicam que houve combate entre as duas facções;
IX – Folhas de carvalho: simbolizam força, coragem e intrepidez;

Foi muito interessante e proveitoso o engajamento de diversas pessoas e Órgãos durante aquele movimentado mês de junho do ano 2007, quando foram realizados alguns eventos que marcaram o transcurso dos 80 anos da investida de Virgolino Ferreira em terras norte-rio-grandenses.
Descerramento do memorial do cangaço
Em Marcelino Vieira, onde ocorreu verdadeiramente o 1º confronto de Lampião com a polícia potiguar, houve durante toda a tarde daquele 10 de junho inúmeras comemorações. A prefeitura municipal mandou erigir uma espécie de memorial do cangaço e eu tive a satisfação de descerrar a respectiva placa, em companhia do então prefeito municipal, o meu amigo Francisco Iramar.

A entrega solene da medalha acima descrita ocorreu na tarde daquele 10-junho-2007, ao lado do monumento erigido em memória do soldado José Monteiro de Matos, com a presença de diversas autoridades , convidados e pessoas do povo.

2º Sgt PM Francisco das Chagas Alves e Ten Cel Angelo

Cerca de 30 personalidades foram agraciadas, dentre autoridades, pesquisadores, militares estaduais e parentes de policiais que participaram do combate.

No dia 10 de junho de 2007, em significativa solenidade, o Dr. Francisco Iramar de Oliveira, prefeito de Marcelino Vieira concedeu a cerca de 30 pessoas a Medalha Comemorativa dos 80 Anos do Grande Fogo da Caiçara.

O evento marcou os oitenta anos da passagem do bando de Lampião pelo lugar.

Naquele distante 10 de junho de 1927, Lampião e seus cabras  travaram ferrenho combate com uma fração de tropa da PM, resultando mortos o soldado José Monteiro de Matos e o cangaceiro Azulão.

As pessoas agraciadas foram indicadas em face de suas valiosas e destacadas contribuições para com o resgate da história do Município de Marcelino Vieira.

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UM OUTRO PRÊMIO PELA CABEÇA DE LAMPIÃO

QUANDO UMA CONCEITUADA PERFUMARIA CARIOCA OFERECEU MUITO DINHEIRO PELO FIM DO “REI DO CANGAÇO”

Autor – Rostand Medeiros

Um oferecimento para corajosos

Quem lê e se debruça sobre o tema cangaço, certamente já teve oportunidade de visualizar um famoso anúncio onde o governo do estado da Bahia oferecia 50 contos de réis pela captura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, também conhecido como “O Rei do Cangaço”.

Mas aquele anúncio de captura não foi o único. Em 1932 houve outro, que oferecia o mesmo valor, cuja iniciativa partiu de uma perfumaria que tinha sede na carioquíssima Praça Tiradentes, em pleno centro do Rio de Janeiro, então Capital Federal.

Muito dinheiro

Creio que quem primeiro comentou sobre este interessante fato foi o pesquisador e escritor baiano Oleone Coelho Fontes, no seu livro “Lampião na Bahia”. Nas páginas 198 a 207 (4ª edição) desta interessante obra, o autor lista inúmeros casos de pessoas, alguns destes antigos militares, que através de jornais cariocas informavam que estavam a disposição de seguirem para o longínquo sertão, na intenção de capturar, ou matar, o mais temido bandido brasileiro. Percebemos que estas pessoas procuravam muito mais a promoção midiática, do que tentar realmente resolver o caso Lampião.

Lampião e seus homens nos seus primeiros passos na Bahia, em foto de Alcides Fraga

Entre outras iniciativas de captura apontadas por Oleone, se encontrava uma feita por uma empresa, a Perfumaria Lopes. Esta conceituada casa comercial, inaugurada no início da década de 1920, informava através de um anúncio publicado na imprensa carioca (reproduzido no jornal soteropolitano “A Tarde”, edição de 12 de junho de 1931), que oferecia 50 contos de réis pela captura do famoso cangaceiro.

A empresa anunciava que o prêmio poderia ser conquistado por qualquer pessoa, civil ou militar, desde que provasse ter alcançado seu êxito através da apresentação de documentação autenticada por autoridade competente (Ver Fontes, O. C. Pág. 207, nota nº 272).

O jornal em que a nota foi publicada em Natal

Aparentemente a Perfumaria Lopes gostou da iniciativa, pois no ano seguinte, na mesma época, renovava a publicação do anúncio de 50 contos pela captura do “Rei do Cangaço”. Consegui encontrar este anúncio na edição de 13 de junho de 1932, do jornal natalense “A Republica”.

Mas enfim, isso era a sério? Ou seria apenas uma ação de marketing?

No meu entendimento, toda esta movimentação era puramente uma ação de propaganda. Não sei o que o operoso proprietário da empresa pensava sobre Lampião e suas ações, mas morando no distante Rio de Janeiro, certamente ele deve ter percebido que dificilmente alguém da sua região ganharia a premiação.

Mas se aparecesse um cidadão queimado do sol nordestino, trazendo a cabeça de Lampião em uma lata de querosene da marca “Jacaré”, em meio a uma grande quantidade de cal virgem para não apodrecer tão rápido, certamente o proprietário desta conceituada casa lhe pagaria, pois dinheiro não lhe faltava.

Fonte – Revista Careta, número 935, 22 de maio de 1926

A perfumaria Lopes pertencia ao Comendador José Gomes Lopes, que também era proprietário da Fábrica de Cosméticos Beija-Flor, era um imigrante português que enriqueceu no Rio de Janeiro. A sede principal da Perfumaria Lopes S. A. se situava na Praça Tiradentes, em um grande ponto comercial que ia do número 34 ao 38 e ainda possuía uma filial na Rua Uruguaiana, igualmente no Rio de Janeiro.

Mas havia sucursais por todo o Brasil e seu produtos tinham refino e qualidade.

Nas memórias de José Bento Faria Ferraz, que foi secretário particular do escritor Mário de Andrade por 11 anos, lembra que um dos mais importantes intelectuais da cultura brasileira era um homem “muito refinado”, mas tinha sérios apertos financeiros. “Apesar de sua pobreza”, como dizia José Bento, o escritor sempre solicitava que o colaborador fosse a Perfumaria Lopes, situada à Rua José Bonifácio, para comprar uma loção “para passar na careca”.

O Comendador Lopes tinha uma visão muito positiva em relação à propaganda. Vamos encontrar a sua casa comercial como o primeiro anunciante da famosa Rádio Nacional, transmitidas em ondas médias, enquanto o tradicional “Leite de Colônia” patrocinava em ondas curtas. A perfumaria foi também um dos patrocinadores do igualmente famoso “Repórter Esso”.

Fonte – paniscumovum.blogspot.com

Não encontrei mais nenhuma informação sobre esta iniciativa e o destino dos 50 contos de réis. Não tenho certeza, mas tudo indica que o sargento Bezerra, o homem que comandou os policiais que exterminaram Lampião em 1938, não foi ao Rio solicitar o prêmio.

Mas a simples existência deste tipo de anúncio em jornais de grande circulação da Capital Federal mostra o quanto a figura de Lampião era conhecido nacionalmente. Mas foi também esta fama, principalmente após a divulgação do famoso filme do libanês Benjamim Abrahão, que indubitavelmente chamou a atenção das autoridades federais do período do Estado Novo.

Os poderosos do Rio passaram a cobrar uma ação mais efetiva das autoridades estaduais nordestinas e para concretizar a derrocada deste cangaceiro. E assim foi feito.

O já conhecido anúncio de recompensa por Lampião, pretensamente oferecido pelo governo baiano.

Em Natal, a Perfumaria Lopes era representada pela firma César Comércio e Representações Ltda. Empresa criada pelo empresário Júlio César de Andrade em 07 de Março de 1932, com sede na travessa México, 85, no tradicional bairro da Ribeira.

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UMA CARTA DE LAMPIÃO E A HISTÓRIA DO SOLDADO VOLANTE QUE SE TORNOU AMBIENTALISTA

Rostand Medeiros – IHGRN

Em seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução – Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwJ3ojyvXP

Artur Carvalho é da cidade de Floresta, sertão de Pernambuco. Recentemente o amigo Artur trouxe dois interessantes materiais históricos sobre o tema, que trago para os amigos que prestigiam o nosso “Tok de História”.

Carta de Lampião ao dono da Tabuleiro Comprido.

O primeiro material é uma das famosas cartas escritas por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, a um fazendeiro de nome Cantidiano Valgueiro dos Santos Barros, dono da propriedade Tabuleiro Comprido, conforme podemos ver na foto que segue, extraída da página 192, do livro “Relação dos Estabelecimentos Ruraes Recenseados no Estado de Pernambuco”, de 1925.

Na carta, escrita na peculiar maneira de Lampião se expressar, ele pede a Cantidiano dois contos de réis, de forma extorsiva, a fim de serem evitados “prejuízos”.

Segundo Artur Carvalho, que utilizou os conhecimentos profissionais de um especialista em paleografia , a “tradução” é a seguinte;

Ilmo. Sr Cantidiano Valgueiro,

Eu (ou “le”) faço esta para “vc” mandar-me dois “conto dereis”, isto sem falta, não tem menos, para “vc” saber se assinar em telegrama contra mim como “vc” se assinou em um com “Gome” jurubeba. Eu ví e ainda hoje tenho ele. Sem mais, resposte logo para “envitar” muito prejuízo. Sem mais assunto.

Cap. Virgulino ferreira Lampião. [sic]

Na carta encontramos o nome do policial Gomes Jurubeba, grande inimigo de Lampião e certamente ligado a Cantidiano Valgueiro. Provavelmente esta ligação possa explicar o segundo regalo enviado pelo amigo Artur Carvalho.

Esta é uma interessante e rara foto, provavelmente da década de 1930, onde vemos três homens membros de um grupo de volantes, equipados e armados para combaterem os cangaceiros de Lampião e de outros bandos, em meio as caatingas nordestinas.

Os três soldados volantes

O grupo é formado (Da esquerda para a direita) por Geronso Calaça e Natanael Valgueiro, ambos da cidade de Floresta, e por Luiz Capuxu, de Serra Talhada.

Na imagem Natanael e Capuxu portam fuzis Mauser, mas pelas munições, na qual todos carregam em profusão, acredito que o Geronso também deveria ter este tipo de armamento. Além disso, trazem cantis, bolsas, apetrechos para dormirem no mato, punhais e outros materiais.

Podemos ver que portam armas de fogo curtas, sempre no lado esquerdo de seus cintos. Geronso e Natanael estão com o que aparentam ser duas pistolas F.N., modelo 1910, em calibre 7,65mm (.32 AUTO). Com Capuxu é possível ver um volumoso cabo de um revólver, mas sem maiores detalhes só podemos especular que era provavelmente algum modelo em calibre 32 ou 38.

Pistolas F.N., modelo 1910, em calibres 7,65 mm (.32 AUTO) e 9 mm Browning Curto (.380 ACP). Em versões “presentation”, com placas de cabo em madre-pérola, e a oxidada em negro com placas de cabo em ebonite preto Fonte – http://armasonline.org/armas-on-line/as-pistolas-browning/

Sobre as andanças de Natanael e os seus companheiros, sobre suas lutas contra cangaceiros não sei de nada.

Segundo Artur, Natanael era sobrinho e genro de Cantidiano Valgueiro, casado com sua filha Dona Zelfa Valgueiro Barros. Diante das ameaças feitas pelo “Rei do Cangaço” a seu parente, entrou em uma volante para dar combate aos cangaceiros.

Não sei se Lampião chegou a cometer algum tipo de crime contra seu parente, ou contra a propriedade Tabuleiro Comprido, mas o fato dele estar em uma volante pode apontar que esta hipótse é bastante plaussível.

Independente do que ocorreu nesta época, mais interessante foi a bela atitude que Natanael tomou em relação a sua amada Tabuleiro Comprido vários anos após o fim do cangaço.

Segundo uma matéria assinada por Josélia Menezes, em 1 de Abril de 2003, temos a interessante história.

“A história de vida e as atitudes do fazendeiro pernambucano Natanael Valgueiro Barros, 89 anos, nunca foram pautadas pelo conformismo e pelo convencional. Ainda garoto, nos anos 30, entrou nas chamadas Forças Volantes, que combatiam o Cangaço. Acabado os horrores dos combates, ele era um homem mudado, um pacifista. Desde então, em meio à luta contra a seca para salvar os rebanhos de gado, bode e ovelha, no semiárido, onde está sua fazenda, Tabuleiro Comprido, município de Floresta, ele encampou outra batalha solitária e pioneira: proteger as espécies ameaçadas da caatinga, especialmente emas. Caça e desmatamento soava como heresia aos seus ouvidos. Acabou virando o primeiro ambientalista daquelas paragens. Há 34 anos ele já cercava a fazenda, palco de confrontos sangrentos da Coluna Prestes, de olho na preservação.

Passado o tempo e reduzidas as emas a umas poucas unidades pela ação de caçadores e espertalhões, seu Valgueiro acaba de ter uma vitória significativa. O Ibama decretou recentemente a criação da primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) no Vale do São Francisco em Pernambuco, com área de 285 ha, nas terras de seu Valgueiro.

O trabalho pioneiro realizado por ele sempre teve o apoio da família e foi justamente as três filhas e a nora que, diante de seu estado de saúde precário, encamparam sua luta pela criação da reserva. A ideia surgiu num momento de desespero, quando os registros do Incra apontavam a fazenda como improdutiva, passível de reforma agrária, apesar da tradicional criação de gado, ovelha e bode, dentro da filosofia de desenvolvimento sustentável, um conceito concebido só recentemente, mas já praticado na área. “Todo um longo trabalho de respeito ao meio ambiente era distorcido e em vez de premiação, éramos punidos”, observa a filha Adália. A ameaça de desapropriação chamou a atenção do grupo ambiental SOS Caatinga, que já vinha exercendo campanhas protecionistas na região, idealizador da criação da RPPN. A parceria estava formada. O grupo iniciou uma campanha de denúncia da situação junto a órgãos federais, como o Incra e Ibama, e as entidades ambientais Fundação Biodiversitas (MG) e Aspan (PE). “Os assentamentos do Incra em área de caatinga não têm muita preocupação ambiental. Seria um desastre socioambiental criar mais um justo nesta área”, observa Cláudio Novaes, membro do SOS Caatinga. Deu efeito. Relatório do escritório do Ibama em Salgueiro desaconselhou a desapropriação e comprovou o excelente estado de conservação da área, grande biodiversidade e beleza cênica.

Lampião o “Rei do Cangaço”

SOS Caatinga, Fundação Biodiversitas (MG) e Aspan (PE) formaram uma parceria para evitar um desastre ambiental e formar uma das mais importantes RPPN na área do rio São Francisco.

Através do SOS Caatinga, a família entrou com pedido de criação da reserva. “O apoio do representante federal do programa de RPPN em Pernambuco, Luiz Guilherme Façanha, foi decisivo porque ele nos orientou e estimulou o tempo todo”, revela Adália Valgueiro. O Ibama através da Portaria nº 177/02, de 31/12/2002 aprovou a criação da reserva, que leva o nome “Cantidiano Valgueiro de Carvalho Barros”, único filho homem do “seu” Valgueiro, morto há 3 anos. O órgão declarou a área como “de interesse público e em caráter de perpetuidade”.

O documento faz referência clara às agressões que a propriedade vem recebendo por parte dos caçadores. “As condutas e atividades lesivas à área reconhecida sujeitarão os infratores a sanções administrativas cabíveis, sem prejuízo de responsabilidade civil e penal”. A área preservada acaba de ser registrada no cartório de registro de imóveis. Também já se encontra em andamento a primeira pesquisa científica no local, sobre beija-flores, realizada pela mestranda em Biologia, Fabrícia Leal, pela UFPE.

A reserva de “seu” Valgueiro é a segunda em área de caatinga em Pernambuco. A primeira, chamada “Maurício Dantas”, fica no município de Betânia, criado há quatro anos pelo funcionário público Fábio Dantas, que também homenageou o filho morto em acidente.”

Ver o site Folha do Meio Ambiente http://www.folhadomeio.com.br/publix/fma/folha/2003/04/valgueiro.html

Apesar do texto anterior conter erros relativos a história da passagem da Coluna Prestes pela região, temos que dar os parabéns a Natanael (Seja neste ou em um plano superior) e a sua família pela notável ação com a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural Cantidio Valgueiro, na Ecoregião denominada “Depressão Sertaneja Setentrional”.

Segundo indicações do ICMBIO, a RPPN da Fazenda Taboleiro Comprido é na área da foto. No canto esquerdo o Rio Pajeú e a estrada mostrada é a PE-390. Fonte – http://www.earth.google.com/intl/pt/

Aparentemente o filho de Natanael tinha o mesmo nome do sogro e tio do seu pai e era dentista segundo eu apurei.

A preservação deste local deixa para as futuras gerações, um pedaço da caatinga próxima ao Rio Pajeú que foi autênticamente pisado tanto pela Coluna Prestes, como pelo bando de Lampião e seus perseguidores.

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AS GRUTAS DA FAZENDA COLÔNIA

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Uma viagem de pesquisa sobre a vida do cangaceiro Antonio Silvino, o grande bandoleiro das caatingas.

O cangaceiro Antônio Silvino

Para quem gosta da história da região Nordeste, um convite destes é tentador e seguimos para o sertão de Pernambuco, mais precisamente na região do Pajeú, área de onde surgiram os maiores expoentes do movimento de banditismo rural, que ficaria conhecido como cangaço.

A primeira parte da nossa pesquisa buscava conhecer o local de nascimento de Manoel Batista Moraes, este o nome verdadeiro de Antonio Silvino, procurando assim conhecer suas origens e entender a sua trajetória. A informação que possuía era que o cangaceiro havia nascido em uma fazenda chamada Colônia, que estaria na zona rural da cidade pernambucana de Afogados da Ingazeira. A partir desta cidade soubemos que a fazenda Colônia se localizava próxima a um distrito chamado Ibitiranga, já em território do município de Carnaíba, ainda em Pernambuco, a apenas quatro quilômetros da fronteira com o município paraibano de Tavares.

A história do cangaceiro Antônio Silvino se inicia quando seu pai, o fazendeiro Pedro Batista Rufino de Almeida, conhecido como “Batistão”, é assassinado por Desidério José Ramos e membros de sua família, em 3 de janeiro de 1897. Meses depois, escandalosamente os assassinos de “Batistão” são absolvidos em um júri controlado por famílias poderosas que apoiavam os Ramos. A família de Antonio Silvino impetra uma apelação, os acusados são recambiados para a Casa de Detenção, em Recife. Quando os assassinos do fazendeiro são novamente trazidos escoltados para a região, para enfrentarem um novo júri, o policial que comandava o grupo facilitou a fuga de todos. Revoltado o jovem Manoel Batista de Moraes, então com 23 anos, e outro irmão, buscam fazer justiça com as próprias mãos. Eles entram no bando de cangaceiros de um parente conhecido como Silvino Aires para conseguir sua vingança.

Fazenda Colônia. Foto-Alex Gomes

Um ano depois Silvino Aires é preso e Manoel Batista assume o bando, passando a ser conhecido como Antônio Silvino. Antônio em homenagem ao santo de devoção, o mesmo da capela da fazenda Colônia e Silvino em homenagem ao parente que o adotou nas hostes cangaceiras e de quem herdou o bando em 1898, iniciando sua vida de estripulias.

Seguimos em nossa busca a vida deste homem por estradas de terra em bom estado, até Ibitiranga, onde logo encontramos uma pessoa que se colocou a disposição para nos mostrar o caminho até a fazenda Colônia. Conforme nos aproximávamos do local, já avistávamos três grandes serras de granito, uma delas chamada de Serra da Colônia.

Cobertas com farta vegetação, juntas formavam uma espécie de “ferradura”, onde na base desta se encontra a fazenda. Logo percebemos que só havia uma entrada e uma saída daquele local e observamos que quem estivesse no alto daquelas elevações teria total condição de monitorar a chegada de estranhos.

Em meio a uma paisagem muito bonita fomos seguindo e vendo surgir algumas habitações que a distância já se apresentava imponentes.

Para nossa surpresa, pensávamos encontrar uma fazenda acanhada, simples, sem maiores demonstrações de riqueza. Encontramos na verdade quatro antigas e bem preservadas edificações, que claramente nós mostrava que a origem de Manuel Batista Moraes, não era tão singela ou humilde como imaginávamos.

Na entrada da fazenda, recebendo os visitantes, tínhamos uma casa onde ainda existe uma imponente moenda puxada a bois, em madeira maciça, ainda com plena capacidade de funcionamento. A fazenda Colônia era então uma área de grande produção de cana-de-açúcar e criação de gado.

Ao lado da moenda, com grossas paredes e uma bela arquitetura colonial que impressionam a vasta casa grande. Próximo tem o que se chama no Nordeste da “casa do vaqueiro”, ou a casa do capataz, que diferente de muitas que existem por aí, esta era grande, bem construída e confortável. Acima de todas, construída no plano mais elevado do largo pátio gramado, está a simples, mas imponente capela de Santo Antonio, onde a imagem do santo, trazida de Portugal em fins do século XIX, sendo até hoje venerada por muitas pessoas na região no dia do santo padroeiro.

Jornal de época informando uma ação de Antônio Silvino

Recebidos de forma tranqüila pelos moradores do lugar, fomos levados a conhecer a igreja, a casa grande e os outros locais. Nesta visita, travamos um animado diálogo com um dos trabalhadores da fazenda, que nos comentou que os mais velhos narravam às peripécias deste cangaceiro. Daí surgiu à história que nas encostas de uma das serras existe uma gruta que foi inúmeras vezes utilizadas por Antônio Silvino e seu bando como esconderijo. O vaqueiro que nos comentou este fato falou que quem conhecia bem poderia narrar muito bem esta história eram os “irmãos Braz”, que moravam no lugar, mas não se encontravam no momento.

A informação inédita em relação à história de Silvino logo despertou o interesse de conhecer o local, mas como a pesquisa que realizava era sobre um tema específico, que não envolvia nada no sentido espeleológico, associado à falta de material para subir a serra, além do tempo exíguo, mostravam que não existiam condições de conhecer o local naquele momento.

Prometi ao pessoal do local retornar em momento oportuno, subir a serra e visitar esta cavidade que guardava lembranças da história deste cangaceiro.

Voltando a Fazenda Colônia

Nos primeiros momentos como chefe de bando, Antonio Silvino ainda tentou matar os assassinos de seu pai, buscando esta vingança inicialmente nas zonas rurais das cidades pernambucanas de Afogados da Ingazeira e Flores. Consta que nesta época, quando perseguido tenazmente pela polícia, o bando misteriosamente desaparecia de circulação, para desespero das autoridades. Uma das hipóteses dos esconderijos utilizados nestes períodos de inatividade poderia ser a caverna comentada na Serra da Colônia.

Retornando a Natal, algum tempo depois, transmiti aos companheiros da SEP-Sociedade Espeleológica Potiguar e da SEPARN-Sociedade para Pesquisas e Desenvolvimento Ambiental, Cultural e Histórico do Rio Grande do Norte, sobre as indicações deste local e a intenção de retornar para conhece as grutas. A minha ideia foi acolhida de forma positiva por todos.

Mas outros projetos e viagens tinham prioridade. Além do que as entidades espeleológicas do Rio Grande do Norte, sem vínculos governamentais, possuem fortes limitações orçamentárias. Diferentemente dos órgãos governamentais de “proteção” das cavernas, que possuem forte aporte de dinheiro da nação, para gastar em extensas diárias de viagem, produzindo pouco, ou quase nada, de prático para a preservação destes ambientes, que ainda se associam a empresas de exploração mineral, deixando este pessoal agir da forma que quiserem. Mas isto é outra história.

Igreja de Santo Antônio. Foto-Alex Gomes

Finalmente em dezembro de 2008, acompanhado de Sólon Almeida e Alex Gomes, seguimos em direção a Pernambuco, equipados e motivados para conhecer estes locais e trazer estas informações para os leitores da revista eletrônica “Lajedos” (www.lajedos.com.br).

Na fazenda Colônia o grupo foi recebido pelos afamados irmãos Antônio e Damião Braz de Araújo, aqueles que conheciam maiores detalhes sobre a utilização da gruta pelo bando de Antônio Silvino. Nascidos neste local, eles nunca se afastaram muito tempo da região. Seu Antônio comenta que desde criança ouviu muitas histórias sobre o chefe cangaceiro através de um velho vaqueiro da fazenda, que se dizia contemporâneo de Antônio Silvino, conhecido como João Adriano.

De saída os irmãos Braz informaram que não existia apenas uma gruta para visitarmos, mas quatro cavidades que João Adriano contava terem sido utilizadas pelo bando. Elas são a Gruta dos Morcegos, considerada a maior delas e a Gruta da Pedra Rajada, estando localizadas na serra que os mapas apontam como Serra da Colônia, mas é conhecida na região como Serra da Lagoa. As outras duas cavidades estão na Serra do Lava Pés, onde são conhecidas como Furna do Caboclo e Furna da Laje do Mamão. Todas localizadas dentro da área que compõem as terras da fazenda Colônia.

O altar da velha igreja.

Percebemos que dentro do nosso planejamento não havia condições de conhecer todos os locais comentados. Decidimos então visitar as Grutas dos Morcegos e a da Pedra Rajada, as mais próximas. Ainda na sede da fazenda, os irmãos Braz nos mostram ao longe os pontos onde existem duas grandes concentrações de blocos de granito, não muito distantes um do outro, são estes os nossos objetivos.

Encontrando a Gruta do Morcego

Iniciamos a subida da serra no pior horário possível; ao meio dia, com sol a pino. Para compensar a conversa rola solta, segundo seu Damião Braz, após a morte de “Batistão” e a entrada de Antônio Silvino no cangaço, a fazenda Colônia é adquirida pelo “coronel” Luís de Góis e sua mulher, conhecida como Dona Sinhá, para quem seu pai vem trabalhar na década de 1930 e a sua família passou a viver neste local desde então. Até hoje a fazenda Colônia pertence à mesma família, sendo seu atual proprietário o senhor Zeti Góis.

Ele nos conta que após a morte de Luís de Góis, quem assume a fazenda é a Dona Sinhá. Mulher altiva, valente, politicamente bem relacionada e sua voz era lei no seu feudo. Costumava proteger pessoas perseguidas por políticos e policiais da região. Era nota corrente que se uma pessoa estivesse dentro de suas terras, sob sua proteção, nenhum policial entrava em sua propriedade e ela era regiamente obedecida.

Antônio Braz diante da Gruta do Morcego. Foto-Alex Gomes.

Em meio às histórias, a caminhada prossegue por um terreno que primeiramente se mostra bem acentuada, com a trilha da serra bem marcada. Depois o trecho melhora, tornando-se de fácil locomoção. Durante o trajeto encontramos grande quantidade das interessantes “barrigudas de espinho” (Chorisia crispifolora), árvores de grande porte e atualmente rara em grande parte do Rio Grande do Norte. Possui como característica principal a parte média do tronco bem espinhoso e dilatado, dcomo caracteristica m lhe contou muitas histo como Joda Colonia,daí seu nome característico.

A subida segue até um ponto onde grandes blocos graníticos estão encobertos por cerrada vegetação típica da região. A união destes blocos rolados pelas intempéries forma a Gruta dos Morcegos. A entrada é uma fenda diagonal, onde temos que entrar “se entortando” segundo seu Damião. O local é amplo, arejado, com uma saída pela lateral esquerda, agora coberta por vegetação, mas que no passado servia como rota de fuga para outros locais da Serra da Lagoa. Apesar da toponímia, não vimos um único morcego, mesmo existindo na área uma grande quantidade de árvores frutíferas.

Os irmãos Braz comentam que ao longo dos anos várias pessoas que caçavam naquelas serras, encontraram objetos na Gruta do Morcego. Foram, talheres, estribos, estojos de munição deflagrados e moedas. Entre estes objetos eles nos mostraram pedaços de talheres e estribos, além de três modas de bronze do período colonial, onde em uma delas se lê claramente o ano de “1781”. Estas moedas não são tão raras de serem encontradas no Nordeste, mas a sua descoberta pode apontar para uma série de possibilidades, até mesmo a utilização mais antiga deste abrigo como possível esconderijo de bandoleiros.

Gruta do Morcego. Foto-Solón Almeida

No Abrigo da Pedra da Rajada

Sem querer especular mais sobre estes achados, saímos da Gruta dos Morcegos em direção ao alto da Serra da Lagoa, onde o GPS apontava uma altitude de 814 metros. Nossos guias nos mostraram um poço de água bastante cristalina, segundo eles o local até hoje é utilizado, sendo bastante antigo. O informante de seu Antônio Braz, o falecido João Adriano, comentou que os cangaceiros de Antônio Silvino se abasteciam desta água e neste dia nós igualmente utilizamos a limpa e boa água do poço.

Alto da Serra. Foto-Alex Gomes.

Próximo ao poço existe uma capa de sedimentos, formado por uma areia fina, que os agricultores locais aproveitam para plantar cereais para a sua subsistência. Estamos nas proximidades do ponto culminante da serra, onde é possível divisar toda a região, até mesmo a cidade de Afogados da Ingazeira, a quase vinte quilômetros de distância. A visão é maravilhosa, mostrando que a idéia que tínhamos ao chegarmos à fazenda era correta. Bastaria Antônio Silvino colocar um homem vigilante neste ponto e seria possível visualizar muitos quilômetros da área ao redor e saber quem estaria chegando.

Entrada da Gruta da Pedra Rajada. Foto-Solón Almeida

A partir do poço, seguimos a conhecer a Gruta da Pedra Rajada. Antes tivemos oportunidade de passar por um imenso lajedo de rocha granítica, onde existe um reservatório natural de água, conhecido na região como “tanque”, ou “piscina”, ou ainda “lagoa”, por esta razão eles chamam aqueles montes de “Serra da Lagoa”, onde a água acumulada serve para enfrentar os difíceis períodos de secas.

A caminhada para a próxima cavidade é bem mais difícil, pois mesmo o caminho sendo em declive, não existe uma trilha aberta e uma grande quantidade de árvores e cipós dificultam o acesso. Se o local foi realmente utilizado pelos cangaceiros, pela quantidade de vegetação dificultando a locomoção, é fácil deduzir que desde a época de Antônio Silvino, poucos se atreveram a chegar ao local.

Seu Antônio Braz comenta que esta gruta era um ponto que os cangaceiros utilizavam de forma temporária, esporádica, até mesmo pelas suas características. No local vemos dois grandes blocos graníticos rolados, que criam um pequeno abrigo, bem protegido, onde um pequeno grupo de homens poderia se acomodar com o intuito de buscar um esconderijo de difícil acesso a pretensos perseguidores.

Moedas e outros materiais encontrados na Gruta do Morcego. Foto Solón Almeida

Há muitos anos um caçador, amigo dos nossos guias, encontrou neste local uma alavanca de remuniciamento do famoso rifle “Winchester”, já bem enferrujada. Conhecido no Brasil como “Papo-Amarelo”, este modelo de arma era a mais utilizada pelos cangaceiros do bando de Antônio Silvino. Não tivemos oportunidade de ver esta peça, pois a mesma atualmente se encontra na casa do proprietário da fazenda Colônia, em Recife.

Conclusão da Visita

Fomos encerrar nossa caminhada às quatro da tarde, onde percorremos, segundo o GPS, três quilômetros entre subidas e descidas.

Analisando nossa visita podemos observar que estes abrigos, sob muitos aspectos, lembram os mesmos locais, bem como o mesmo modo de utilização, que fez com que o cangaceiro potiguar Jesuíno Brilhante buscasse esconderijos em cavidades localizadas na Serra do Cajueiro, na cidade de Patu, no Rio Grande do Norte.

Mesmo sabendo que as razões, período, motivações para a entrada e permanência no cangaço por parte de Jesuíno Brilhante é distinta de Antônio Silvino, vemos muitos pontos em comum na utilização destes locais.

Igualmente como o bando de Antônio Silvino, Jesuíno usava pelo menos três grutas, em áreas de altitude, com ótimos pontos de observação, interligadas por trilhas, com acesso a locais com água, que poderiam garantir a permanência do grupo nestes pontos por um tempo mais largo. Mas Jesuíno Brilhante atuou principalmente na década de 1870, quando a quantidade de estadas e caminhos eram mais limitados, tornando sua mobilidade restrita, ficando sua área de atuação centralizada na região da fronteira entre a Paraíba e o seu estado de origem. Conseqüentemente a utilização destas grutas por parte do grupo de Jesuíno Brilhante como esconderijos era mais freqüente.

Pelas informações dos moradores da fazenda Colônia, aparentemente Antônio Silvino utilizou estes locais como esconderijos secundários, alternativos a sede da fazenda de sua família.

Nota sobre o tiroteio que resultou na captura de Antônio Silvino

Depois de 1898, provavelmente com o incremento das perseguições, a existência de novos caminhos fará o bando seguir novos horizontes. Logo estará atuando principalmente na região da zona canavieira de Pernambuco, Paraíba e no Rio Grande do Norte, aonde chega próximo da zona litorânea.

Segundo informações dos moradores da fazenda Colônia, após algum tempo, Antônio Silvino deixou a região e nunca mais voltou à antiga propriedade do seu pai.

Ele continua como chefe cangaceiro até o dia 27 de novembro de 1914, quando foi ferido no lugar denominado Lagoa da Laje, então pertencente ao município pernambucano de Taquaritinga do Norte, sendo detido pela volante do Alferes Teófanes Ferraz Torres. Depois de 18 anos de cangaço, Antônio Silvino é preso, julgado e condenado a trinta e nove anos de prisão, a serem cumpridos na Casa de Detenção de Recife.

Nota sobre a prisão do famoso cangaceiro.

Durante seu tempo de reclusão foi considerado um prisioneiro calmo, uma liderança entre os apenados, que realizava trabalhos artesanais para sustentar os estudos dos filhos, onde nenhum deles seguiu seus passos no cangaço e um deles chegou a ser um membro respeitado dos quadros da Marinha do Brasil. Durante esta época, muitos estudiosos estiveram junto ao antigo chefe, entrevistando-o sobre suas andanças, entre estes o potiguar Câmara Cascudo. Somente foi libertado em fevereiro de 1937, depois de 23 anos de cárcere.

Morreu pobre, em 1944, em uma casa simples na cidade paraibana de Campina Grande.

A sua atuação no cangaço foi considerada, mais tranqüila, com menor grau de violência, sendo lembrado por muitos cantadores de viola, por repentistas e escritores como um “injustiçado”. Apesar disto, nunca conseguiu vingar a morte do seu pai.

Sem ter a mesma fama do famoso Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, Antônio Silvino é uma das figuras basilares do imaginário criado em torno do cangaço e da história nordestina. Sua vida é hoje tema de variadas teses acadêmicas de sociólogos, antropólogos e historiadores, até mesmo fora do Brasil.

Lembranças que os Medeiros da Rajada têm de Antônio Silvino

Quando criança eu escutei várias vezes a minha avó paterna, Benícia Jacob de Medeiros, narrar que na época em que ela e o meu avô Joaquim Paulino de Medeiros, conhecido como Jaco, moravam em Campina Grande, teve oportunidade de ver o idoso Antônio Silvino. Ela nunca falou com ele, mas me disse que ele era alto, não andava de cabeça baixa como se estivesse se escondendo, pelo contrário, andava empertigado, ereto e todos sabiam quem ele era. Recordou também que o velho cangaceiro tinha sempre um semblante fechado, uma cara dura, sem sorrisos e sem muita conversa.

Sofrimento para visitar as grutas esconderijo.

Mas não era a primeira vez que pessoas da minha família tinham contato com Antônio Silvino. Na nossa história oral ficou guardado o episódio que em uma das passagens do cangaceiro e seu bando por Acari, ele esteve na casa que servia de sede da fazenda Rajada, que pertencia ao meu bisavô, o fazendeiro e coronel da guarda nacional, Joaquim Paulino de Medeiros, conhecido como Coronel Quincó, ou Quincó da Rajada. Consta que Silvino não fez nenhuma alteração, deixou o bando afastado da casa, chegou tranquilo e pediu certa quantia em dinheiro, pois afirmou que “o governo não o deixava trabalhar”. O coronel o recebeu sem afrontas e lhe deu o que podia que a memória da família não guardou o valor.

Esta história está na nossa família a gerações e só posso afirmar sua veracidade dentro dos aspectos complicados que giram em torno da questão da tradição oral. Entretanto em uma ocasião ocorreu uma situação bem irônica sobre este encontro.

Certo pesquisador do tema do cangaço, ao realizar uma pesquisa sobre este cangaceiro pernambucano, soube desta história através da minha pessoa. O ilustre detetive da história procurou saber detalhes, como foi, como não foi, onde aconteceu, etc. Se mostrou educado, mas me disse com bastante segurança, que “esta história só tinha valor se fosse acompanhada de documentos comprobatórios”.

Aí eu ri por dentro e pensei o quanto tolo era aquele pesquisador.

Fiquei imaginando se ele pensava que por acaso meu bisavô se sentou em um tamborete no alpendre da fazenda Rajada, com ninguém menos que Antônio Silvino, que pacientemente esperou o velho fazendeiro preparar um documento de três laudas e depois este pediu ao cangaceiro para sapecar a sua assinatura nas três folhas que comprovavam o gasto do dinheiro dado?

O que eu achei mais engraçado é que certamente muito do que ele conseguiu em sua pesquisa foi através de história oral e quase com certeza sem documentos.

Mas assim é a humanidade.

O autor deste artigo junto a cruzes de “morte matada”. Foto-Alex Gomes
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