PRINCIPAL FERRAMENTA É APLICATIVO QUE VAI INDICAR ENDEREÇOS EMBLEMÁTICOS
Por – SIMONE CÂNDIDA
RIO DE JANEIRO – Há quem prefira apagar da memória qualquer lembrança de que o Brasil — e, mais especificamente, o Rio de Janeiro — foi um dos principais destinos do tráfico de milhões de africanos escravizados, entre os séculos XVI e XIX. E há aqueles que acreditam valer muito a pena revisitar cada capítulo dessa história, recordando não apenas os horrores, mas os casos de resistência da cultura negra ao longo dos séculos. As pesquisadoras e professoras Martha Abreu, Hebe Mattos, ambas da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Keila Grinberg, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), fazem parte do segundo grupo.
À frente do projeto Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil, elas desenvolveram um programa de turismo com foco nesse período da escravatura no país. O objetivo é aproximar os visitantes dos marcos arquitetônicos e culturais que ainda podem ser vistos no Rio (quilombos, senzalas, casas de capoeira), além de permitir que o turista ouça relatos desse passado — contados pelos próprios descendentes de escravos. A principal ferramenta desta viagem que une o ontem e o hoje é um aplicativo que vai indicar endereços emblemáticos, entre eles quatro roteiros especiais.
Um deles fica no Centro do Rio e gira em torno do Cais do Valongo (sítio arqueológico encontrado durante as obras de revitalização da Região Portuária) e de todas as marcas do passado escravagista enraizadas na Zona Portuária.
Os outros três destinos levarão o visitante à cidade de Pinheiral (sede do Jongo de Pinheiral), ao Quilombo de São José, na Fazenda São José, em Valença, e ao Quilombo do Bracuí, em Angra dos Reis, um dos portos clandestinos que recebiam escravos quando o tráfico já estava proibido no país. Nesses locais, as pesquisadoras trabalharam com descendentes de escravos e construíram três memoriais permanentes, com exposições multimídias abertas à visitação.
— É um projeto acadêmico com dimensão de história pública. O objetivo é fazer com que as pessoas conheçam pessoalmente a história desses lugares, ouvindo os casos, vendo os prédios. Tudo com a ajuda do aplicativo — diz Martha.
APLICATIVO INCENTIVA VISITAÇÃO
Para incentivar a visitação física, as pesquisadoras contaram com a tecnologia. O acesso aos áudios e a algumas pérolas das exposições só será liberado aos visitantes que optarem por ir até lá. Os pontos de interesse histórico estão sinalizados com a logomarca de Passados Presentes e um código QR. O visitante deverá baixar o aplicativo, que será lançado em setembro, e aproximar o celular do código para ter acesso às informações. O software vai apontar 50 locais no estado, 20 deles na capital, além de endereços ligados ao patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, listados no Inventário UFF/Unesco dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e dos Africanos Escravizados no Brasil.
— Fizemos esta opção porque não queremos um passeio virtual. O aplicativo tem música, foto, vídeo, mas nada substitui a experiência de ir lá e conhecer aquelas pessoas — comenta Keila.
No dia 26 de julho, foi inaugurado o primeiro memorial, em Pinheiral. Em setembro, será aberto o do Quilombo São José, e em novembro, o do Bracuí. Nas três comunidades, o jongo ainda hoje é dançado.
— O memorial do Pinheiral foi montado junto ao casarão de José de Souza Breves, um dos maiores proprietários de terras e traficantes de escravos do país. O dono da fazenda tinha uma banda de música composta por escravos; na exposição, temos uma foto deles — conta Martha Abreu, acrescentando que a montagem dos trabalhos contou com participação de moradores, descendentes de escravos e do Centro de Referência Afro do Sul Fluminense.
Para a historiadora Hebe Mattos, os roteiros da memória da escravidão se completam.
— Eles são uma narrativa dessa história meio invisível de uma última geração de recém-chegados e uma homenagem aos que não sobreviveram. — diz.
MAIORIA DOS AFRICANOS DO CAIS DO VALONGO
Milhares de africanos desembarcaram no Brasil durante o século XIX. A maioria chegou pelo Cais do Valongo, onde hoje está a Zona Portuária do Rio de Janeiro. Depois de 1831, com a proibição do tráfico de escravos, muitos navios negreiros passaram procurar portos clandestinos do litoral. Um dos mais movimentados ficava junto à antiga fazenda do Bracuí, em Angra dos Reis, onde hoje está o Quilombo do Bracuí (ou Quilombo Santa Rita do Bracuí). O trabalho das historiadoras Martha Abreu, Hebe Mattos, e Keila Grinberg é divulgar estas historias. Além de recorrer a documentos, fotos e publicações, elas contaram com as narrativas dos descendentes de escravos, que dão vida ao memorial.
—Existe uma memória muito forte destas pessoas, principalmente sobre o período que vai do final do tráfico de escravos para o Brasil, desde quando ele ficou ilegal, em 1831, passando pela abolição, e ao longo do seculo XX. — diz Keila Grinberg — Não é um passado distante da gente, é presente. Os descendentes destes africanos estão lá, eles cultuam, eles têm esta memória do final da escravidão — completa.
Para a historiadora, a descoberta do Cais do Valongo deflagrou um sentimento de valorização da cultura negra:
— O Valongo é a ponta de uma iceberg de um movimento muito mais amplo de reconhecimento da identidade negra como algo positivo. Uma das coisas incríveis é a persistência do Jongo, que nestes três grupos que a gente está trabalhando teve um papel muito forte — explica
Keila Grinberg.