GUERRA DO PARAGUAI – SOFRIMENTO INVISÍVEL – NA FRONTEIRA DO MATO GROSSO, MULHERES TORNARAM-SE ALVO DA VIOLÊNCIA DOS INVASORES

A imagem publicada na Semana Ilustrada, em 1865, mostra as vivandeiras da Guerra do Paraguai: mulheres que acompanhavam os deslocamentos das tropas de infantaria, vendendo alimentos e outros artigos aos soldados. (Imagem: FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL)
A imagem publicada na Semana Ilustrada, em 1865, mostra as vivandeiras da Guerra do Paraguai: mulheres que acompanhavam os deslocamentos das tropas de infantaria, vendendo alimentos e outros artigos aos soldados. (Imagem: FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL)

Autora – Maria Teresa Garritano Dourado

Fonte – http://revistadehistoria.com.br/secao/capa/sofrimento-invisivel 

Mães, esposas, prostitutas, viúvas, enfermeiras, soldadas, andarilhas, vivandeiras, prisioneiras, escravas. As mulheres desempenharam os mais diferentes papéis durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). Presentes nos quatro exércitos envolvidos na batalha – brasileiro, argentino, paraguaio e uruguaio – elas se tornaram indispensáveis ao garantir a realização de vários serviços necessários para o funcionamento de um exército em campanha: socorriam feridos, cuidavam das crianças, da alimentação, das roupas e comercializavam os produtos vendidos às tropas. Muitas outras sofreram com a violência em suas regiões e dentro de seus lares. Tiveram que lidar com graves provações físicas e psicológicas, mostrando resistência e inventividade. 

Com raras exceções, essas figuras femininas foram esquecidas pela história. Suas vidas dissolveram-se na vida dos homens, os guerreiros armados e seus grandes comandantes, que ocupam o centro da cena. Às mulheres restam as entrelinhas, um espaço casual nas narrativas das grandes batalhas. Mas nem tudo se perdeu. Por meio da análise de relatórios de refugiados e de documentos oficiais, ordens do dia, cartas, memórias, reminiscências e diários (inclusive em língua francesa, inglesa e espanhola), é possível conhecer, por exemplo, as dificuldades vividas pelas brasileiras que foram aprisionadas pelo inimigo na região fronteiriça do Mato Grosso. 

Guerra do Paraguai - Imagem meramente ilustrativa
Guerra do Paraguai – Imagem meramente ilustrativa

Os documentos revelam como elas reagiram diante da inesperada invasão, como se organizaram, as formas de fuga e os recursos utilizados para sobreviver, quando detidas. Falam ainda dos mecanismos de que dispunham para sua defesa, assim como do sofrimento de esperar pelo socorro das autoridades brasileiras competentes. O suplício das mulheres, bem como a visão das autoridades brasileiras sobre o inimigo paraguaio ficam evidentes nos ofícios do governo de Mato Grosso durante o conflito: “sendo castigadas corporalmente com laços e com espadas, e metidas em ferro sempre que cometiam qualquer falta […] os paraguaios, sendo eles de natureza bruta e sem a menor educação e moralidade, muito maltratavam as famílias prisioneiras com suas habituais imoralidades”. 

Em Corumbá, uma das regiões fronteiriças, a população viu-se sozinha diante do brusco ataque do exército paraguaio. Acreditando que a região lhes pertencia, as tropas inimigas penetravam e ocupavam o território que estava em litígio com o Brasil. Diante da impossibilidade de resistência, os habitantes, civis e militares, tornaram-se alvo fácil para prisões e saques. Muitos fugiam de modo desesperado, desordenado e precipitado, tentando alcançar Cuiabá, capital da província. Centenas de pessoas acreditavam que as zonas rurais poderiam oferecer refúgio e proteção. 

Guerra do Paraguai - Imagem meramente ilustrativa
Guerra do Paraguai – Imagem meramente ilustrativa

Contando com poucos recursos, fugindo a pé por trilhas ou embarcando em canoas, mulheres foram capturadas e aprisionadas pela tropa paraguaia, que percorria as fazendas saqueando, violentando, levando o gado e tudo mais que tivesse algum valor. Igualmente indefesos, velhos e crianças também se tornaram presas fáceis de hostilidades e crueldades. As mulheres que não conseguiam fugir e se escondiam em matas próximas acabavam por voltar à vila de Corumbá, fustigadas pela fome. Encontravam suas casas completamente saqueadas, eram presas, interrogadas (muitas vezes sob tortura) e mortas. Diante de um inimigo que costumava utilizar até a degola para manter o terror, passavam fome e frio, eram mantidas a ferros e castigadas constantemente. Muitas foram assassinadas ao tentar fugir. 

As que se mantinham a salvo dos invasores tinham que sustentar a si e aos seus plantando, lavando, cozinhando e transportando mercadorias, sob a angústia e o medo de encontrar uma patrulha paraguaia. O trânsito constante das mulheres pela fronteira levantava suspeitas nos soldados inimigos. Sempre preocupados com a reação brasileira, eles procuravam informações e notícias. Para isso, muitas vezes usavam de violência em seus interrogatórios. Fontes francesas detalham alguns casos, como o de Marcelina, Luisa e Isabel, condenadas a levar 60 golpes de chicote por não terem informações relevantes. Marta e Severina, menores de idade, receberam 25 chicotadas. Depois de ser presa e submetida a julgamento sumário, a uruguaia Maria Buscapé foi condenada a 30 golpes por ter declarado seu desejo de voltar ao país de origem. Após as punições essas mulheres foram soltas, mas com a advertência de que poderiam ser mortas caso omitissem informações. 

Guerra do Paraguai - Imagem meramente ilustrativa
Guerra do Paraguai – Imagem meramente ilustrativa

A historiografia tradicional não se dedicou a narrar a agonia e o pânico que as famílias brasileiras foram obrigadas a enfrentar, inclusive pela incerteza do futuro e pela angústia da perda ou do desaparecimento dos familiares e amigos. A descoberta de evidências documentais nos últimos anos permite o exercício a inúmeros pesquisadores, possibilitando a recuperação da história da participação das mulheres, seus espaços e seus papéis na Guerra do Paraguai que, no fim das contas, diz respeito não apenas àquela batalha, mas ao protagonismo feminino na construção do país. Contar a História do Brasil pelo olhar das mulheres é certamente um meio de redescobri-lo.

Maria Teresa Garritano Dourado é autora de “Mulheres comuns, senhoras respeitáveis: a presença feminina na Guerra do Paraguai” (UFMS, 2005) e A História esquecida da Guerra do Paraguai: fome, doenças e penalidades (UFMS, 2014).

Saiba Mais

CARVALHO, Maria Meire. Vivendo a verdadeira vida: vivandeiras, mulheres em outras frentes de combates. Tese de Doutorado em História, UnB, Brasília, 2008. 

LASSERRE, Dorothea Duprat de. Memórias de Mme. Dorothea Duprat de Lasserre. Rio Grande: Livraria Americana, 1893.

MATOS, Kelma. Jovita Feitosa. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.

TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle. Cartas da Campanha de Mato Grosso (1865-1866). Rio de Janeiro: Editora Biblioteca Militar, 1944.