NORDESTE À SOMBRA DO PASSADO – QUESTÕES FAMILIARES: CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

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Fonte – http://evans1309.blogspot.com.br/2012/12/a-cruz-da-estrada-castro-alves.html

Autor – ADAUTO GUERRA FILHO

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Norte, Natal-RN, edição de domingo, 20 de agosto de 1982, página 12. 

A defesa da honra e moral da família é tão antiga quanto a própria história. O interesse pelo crescimento da família desde os primórdios dos tempos, não é apenas um fator ligado ao trabalho. Paralelo a isso, a honra e proteção de bens e pessoas. Então as questões familiares marcaram presença no Nordeste do Brasil a partir de sua organização social e política até os nossos dias. Essas questões não deixaram como consequências apenas larga margem de mortandade, em ambos os lados e quase extinção de algumas delas, mas deram origem a bandidos famosos. Folheando as páginas da história do cangaço no Nordeste ou conversando com os mais velhos, vendo o s nomes dessas famílias repetidas vezes:

ALVES E LIMÕES: PATU-RN; FERREIRAS E SATURNINOS DE BARROS – VILA BELA (SERRA TALHADA-PE); CARVALHOS E PEREIRAS – PE; ROCHAS E PEREIRAS – SÃO GONÇALO-PB; NITÕES LACERDAS E GINIPAPOS: ITAPORANGA-PB; e as mais badaladas nos dias atuais (1982), SARAIVAS E ALENCAR – EXU-PE.

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Professor Adauto Guerra – Foto: Melina Soares – Fonte – http://correiodoserido.com.br/legado-literario-do-professor-adauto-guerra-sera-lancado-nesta-quinta-em-caico/

Quando não eram causas políticas, eram sociais, porém o fim era sempre o mesmo — crime de vindita.

O binômio viuvez e orfandade se associavam para se equacionarem com extinção de dinastia. A figura venerável e heroica de Jardelina, esposa de Chico Pereira, viúva desde os 17 anos vem comprovar a veracidade dos fatos:

— Estado civil? — Viúva.

— Pai? — Assassinado.

— Esposo? — Assassinado.

— Sogro? — Assassinado.

— Cunhado? — Assassinado.

E meio a tantas cordilheiras de inimizades que floresciam, tornava-se quase impossível a vida no sertão. E o povo lamentava: aqui no sertão, quando não é ano de seca é ano de Cangaço. Numa região em que a vingança era um dever sagrado, o homem era infeliz mais pelo próprio homem que pela natureza, (livro Vingança não – P. Pereira Nóbrega).

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Lampião em seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução – Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwJ3ojyvXP

Bem no início da segunda década do século (07/05/1921) cresce o expoente máximo de todos os conflitos: Lampião. Foi um tipo que se encarnou perfeitamente nessa era (Vingança Não – P. Pereira Nóbrega). “Assassinou mais de mil vidas, incendiou umas quinhentas propriedades, matou mais de cinco mil rezes, violentou a mais de duzentas mulheres e tomou parte em mais de duzentos combates. E assim é que só em Pernambuco, foram mortos e presos mais de mil cangaceiros, pertencentes às hordas de Virgulino”. (LAMPIÃO – OPTATO GUEIROS 4° EDIÇÃO – PÁG. 16).

Não se podia esperar paz e prosperidade nos sertões nordestinos onde o rifle e o punhal eram sempre as respostas às agressões e o luto era substituído pela indumentária do cangaço.

A reportagem vai a Patu e procura um sobrinho de 2° grau de Jesuíno Brilhante.

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A característica serra que rodeia a cidade de Patu e a Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores.

Sentado na calçada de um armarinho, o vereador Antonele Rodeiro cumprimenta os que passam. Depois, levanta-se e vai até o carro atendendo ao chamado. Conta toda história do conflito ALVES X LIMÕES desde o início, como o garoto sabido repete a lição. O repórter ouve com atenção e faz anotações. No final o Alves diz: Olha; vá a Janduís-RN, que lá você encontra Chico Alves sobrinho legítimo de Jesuíno Brilhante e converse com ele, pois ele sabe mais a história de que eu. O carro já ia partir quando o repórter lembra-se de uma pergunta importante:

— Ei, espere aí, e os Limões?

— Ah! Não existem mais; Jesuíno acabou com todos.

Depois, coçou a cabeça e falou surpreso: Ah! Sim; ainda tem um descendente deles por aqui. Dioclécio Barbeiro.

Mas não ficou só por aí. Após a morte de Jesuíno na fazenda Santo Antônio, município de Brejo do Cruz-PB, a viúva foi para o Amazonas com os cinco filhos e nunca mais se teve notícias. A fazenda Tuiuiu não deixou marcas da passagem da influente família Alves de Melo Calado. Até o casarão foi derrubado.

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Neste local, na fazenda Tuiuiú, zona rural de Patu, ficava a casa de Jesuíno Brilhante.

Quanto ao Camucá onde moravam os Limões a 3 km. do Tuiuiú — Os Limões do Camucá — assim conhecidos, não se tem notícias. A reportagem interrogou várias pessoas e ninguém dá notícias. Uma habitante assim falou: Quem sabe, talvez seja o Pelego. Se assim o é, significa que até o nome da fazenda mudou.

As causas mais simples trouxeram graves consequências. Uma simples reclamação do velho João Alves pai de Jesuíno ao garoto empregado dos Limões por está com o pé em cima de uma cadeira, provocou uma resposta do “moleque atrevido”. Depois, a surra dada por Jesuíno no “moleque” para aprender a respeitar os mais velhos.

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1879-Jesuíno Brilhante ataca a fazenda Curvelo, em Catolé do Rocha, Paraíba, e mata um estudante de direito.

Depois o desaparecimento de uma cabra do alpendre da fazenda dos Alves, atribuído aos Limões. Depois a represália dos Limões a ofensa. Vem a surra do Honorato Limão em Lucas Alves, irmão de Jesuíno numa festa em Patu. Enfim, a vingança de Jesuíno matando Honorato Limão. Agora, Jesuíno Cangaceiro.

Para o sertanejo, o herói dos cinco irmãos, pois o herói não é aquele que perdoa, mas sim aquele que se vinga. Agora não é mais Jesuíno Alves de Melo Cardoso, o poeta romântico, agricultor, boiadeiro, hábil equestre e sim Jesuíno Brilhante (homenagem a seu tio, o Cangaceiro José Brilhante de Alencar, avô do falecido Padre cearense Antônio Alves de Alencar, conhecido por Pe. Brilhante).

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Interior da Casa de Pedra de Patu, ou Casa de Pedra de Jesuíno Brilhante, local utilizado por esse cangaceiro como esconderijo.

Os Alves de Melo tinham uma coisa contra si; pertenciam ao desprestigiado Partido Liberal e, enquanto os Limões pertenciam ao Partido Conservador, que lhe dava ampla cobertura. A perseguição ao Alves era intensa.

A história não muda se repete. O que muda são as datas e os personagens. Na segunda década do século, o desaparecimento de uns bodes da família Ferreira, na fazenda Passagem das Pedras, em Vila Bela (Serra Talhada-PE), atribuído a um morador de José Saturnino de Barros, trouxe de início apenas pequenas represálias; — troca de palavras e vingança em animais. Depois tiroteios, incêndio e grandes emboscadas.

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Ruínas a casa de José Ferreira, no Sítio Passagem das Pedras, década de 1970.

Depois, o assassinato do velho José Ferreira pelo Zé Lucena, tenente da polícia alagoana, em Piraconhas – AL (22/04/1920). O resto foi citado. E as mortes serviram de inspiração para o poeta Zabelê que fazia parte do bando. 

No lugar por onde passa,

o bando de Virgulino;

o sacristão da igreja,

vai logo bater no sino.

 

O rifle de Lampião,

dá cem tiros num minuto;

já fez aqui no sertão,

muita gente botar luto.

 

A Bahia está de luto,

Pernambuco de sentimento;

Sergipe de porta aberta,

e Lampião sambando dentro.

 

Querendo fazer sapato,

inté sou bom sapateiro;

querendo entrar no cangaço,

inté sou bom cangaceiro;

qui esse negócio de matar gente,

é serviço mais maneiro.

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Notícia do ataque do bando de Lampião a fazenda Tapera, em Floresta, Pernambuco.

Lá na Tapera alguém às vezes sente dificuldades em dormir.

O ódio e o desejo de vingança parece que aproveita o silêncio das caladas da noite para perturbá-lo. É Cassimiro de Gilo, único sobrevivente de uma família assassinada por Lampião e seus cabras. O fato passou-se assim: O cangaceiro Horácio Novais tinha uma inimizade com Manoel de Gilo por conta de uns burros. Escreveu uma carta com assinatura de Manoel de Gilo a Lampião, cobrindo-o de desaforos e concluindo que estava disposto a recebê-lo à bala. O chefe do banditismo descansava com os cabras em Floresta do Navio e ao ler a carta, seguiu com o bando para Tapera.

Cercou a casa e abriu fogo. Manoel de Gilo resistia ao cerco e pedia explicação. Lampião mostrava a carta. Gilo negava. Quando parecia convencer Lampião foi tarde. Estava ferido mortalmente por uma bala de Horácio Novais. No final, 14 inocentes corpos estendidos ao solo Lampião ao saber não gostou e expulsou imediatamente Horácio Novais do bando. Hoje ele é fazendeiro em Goiás.

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Entrada do cemitério da Fazenda Gilo – Foto – Sérgio Azol

Começou a terceira década do século. E naquela fatídica tarde-noite de 11 de setembro de 1922, Zé Mutuca, Zé Dias, Chico Dias e um Campineiro armaram uma cilada e assassinaram o Coronel João Pereira na sua venda em Nazarezinho-PB. Apenas um filho estava presente: Aproniano viera em defesa de seu pai com Nobilino e seu irmão João Fernandes.

Só Nobilino morreu. Quando aos inimigos, Zé Dias escapou ileso, Chico Dias desapareceu com o ventre de fora, o Campineiro e Zé Mutuca faleceram depois. O verdadeiro assassino entre os quatro foi Zé Mutuca. No final da luta, ferido, fingiu-se morto. O coronel confiante passou por ele julgando-o cadáver. Ele aproveitou-se e disparou uma arma ferindo-o mortalmente. O coronel caiu por cima dele. Veio a falecer na fazenda Jacu ao lado da esposa e de seus filhos pedindo para não se vingarem.

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Fazenda Jacu, Nazarezinho, Paraíba.

Mas os comentários do povo incomodavam o filho mais velho Chico Pereira, que trabalhava na construção do açude São Gonçalo-PB. Siziam “Ô vingança demorada!”. “Fosse meu pai não ficava por isso mesmo”. “Chico? Abdon? Abdias? Aproniano? “De que vale a pena quatro homens dentro de casa”. “Era melhor vestir saia”. Como a polícia se omitisse, Chico Pereira foi atrás de Zé Dias, uma vez que Chico Dias era figura apagada e pouco interessava. Chegaram a Delegacia, Zé na frente, Chico Pereira atrás e o revólver no meio (Livro Vingança Não). Não foi preciso muito tempo para Zé Dias estava perambulando pela rua, livre desimpedido.

E agora?

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Chico Pereira

Chico Pereira preferia as palavras do pai “Não se vinguem”. Mas não queria ficar desmoralizado, era uma questão de oportunidade. Armou a emboscada. Zé Dias, parecia adivinhar tudo e deixou o esconderijo apontando do outro lado da serra. Chico Pereira, porém, era bom na canhota de modo que a distância não era problema. Não acabou-se apenas o pobre Zé Dias que nada tinha a ver com a encrenca. Acabou-se também o almocreve, o conquistador, o dançarino, o romântico, o hábil cavaleiro, o herdeiro da fazenda Jacu, o comerciante (Chico comprava cal no Rio Grande do Norte e vendia na Paraíba). Agora, Chico Pereira, Cangaceiro, despatriado, considerado fora de ordem pelas autoridades, que só tinham a lhe oferecer uma dura perseguição e até a morte.

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Um típico cangaceiro nordestino na década de 1920

Zé Dias, guarda do IFOCS, (hoje DNOCS), morreu sem descobrir o autor intelectual da sua morte. Mas fica sem duvidar que um dos autores indiretos fosse João Rocha, ligado ao Dr. Otávio Mariz. Uma vez João Rocha fora a venda do Cel. João Pereira e não o encontrando, destratou Aproniano. A simpatia do Cel. João Pereira, ameaçara o prestígio político de João Rocha. Já o Dr. Otávio Mariz, por sua vez, era um homem temperamental, tinha uma grande dívida para com os Pereiras. A inimizade com a família o fez surrar impiedosamente o pobre Chico Lopes, comerciante de Nazarezinho, no meio da rua de Souza – PB. No final falou: Agora vá chamar os Pereiras para apanhar também.

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Foto da parede da grande barragem de São Gonçalo, local onde a desgraça da família de Chico Pereira teve início.

Chico Lopes era protegido do falecido Cel. João Pereira. Chico Lopes foi mesmo chamar Chico, mas também alguém mais forte, que estava escondido numa serra em Pernambuco, se curava de um ferimento provocado por uma bala: Lampião: Este não podendo vir mandou 40 cangaceiros liderados pelos seus irmãos. Faltava unir-se ao bando de Chico Pereira, Ele chamou sua mãe aflita e falou; Mamãe, os irmãos de Lampião estão aí. Este é Antônio Ferreira, este é Levino.

— Meu filho! O bando de Lampião em minha casa?

— Não fui eu quem chamei, mas também não vou botar pra fora. (Livro Vingança Não).

Aproniano incentivava: Vá Chico; pegar Otávio Mariz. Esta surra estava preparada para você.

Logo o bando que desaparecia nos cordões da Serra cantando: Olé muié Rendeira, olé muié Rendá (composição feita por Lampião em homenagem a sua avó paterna, a velha Jacosa Lopes que fazia renda). Dona Maria Egilda, por sua vez, ficava amargurada: — Meu Deus! Que horror! Meu filho no bando de Lampião! Que vergonha! Ontem eu era esposa de um coronel pacato, hoje, mãe e tia de cangaceiros. Eu bem que dizia que depois que João morreu a desgraça entrou nesta casa (Livro Vingança Não).

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Se Chico pereira queria vingança, os cangaceiros de lampião queriam matar, assaltar e roubar moça. O cangaceiro “Meia Noite” estava mais interessado em joias. Paizinho tinha uma rixa com o Juiz e se regozijava com a oportunidade de matá-lo. E dizia: o juiz de direito não mais vai condenar ninguém.

O resultado foi um ataque que marcou a História de uma das principais cidades da Paraíba e toda a culpa do episódio recaiu sobre Chico Pereira, que nunca mais encontrou paz e anos depois foi assassinado no Seridó Potiguar, em um fato vergonhoso para a História da Polícia Militar do Rio Grande do Norte e do então governador Juvenal Lamartine.

BRUTAL LAMPIÃO – DESPIDO DO MITO, CANGACEIRO ESTAVA MAIS PARA NARCOTRAFICANTE DO RIO QUE PARA ROBIN HOOD

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Em seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução – Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwJ3ojyvXP

AUTOR – Lira Neto

FONTE – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwIlYjyvXP

Eles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal, de até 80 centímetros de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base da clavícula – a popular “saboneteira” – da vítima. A lâmina pontiaguda cortava a carne, seccionava artérias, perfurava o pulmão, trespassava o coração e, ao ser retirada, produzia um esguicho espetaculoso de sangue. Era um policial ou um delator a menos na caatinga – e um morto a mais na contabilidade do cangaço. Quando não matavam, faziam questão de ferir, de mutilar, de deixar cicatrizes visíveis, para que as marcas da violência servissem de exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em forma de cruz na testa de homens, desfiguravam o rosto de mulheres com ferro quente de marcar o gado.

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Lampião, o segundo que está sentado da esquerda para direita, nos primeiros tempos do cangaço – Fonte – http://www.1000dias.com

Quase 80 anos após a morte do principal líder do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, a aura de heroísmo que durante algum tempo tentou-se atribuir aos cangaceiros cede terreno para uma interpretação menos idealizada do fenômeno. Uma série de livros, teses e dissertações acadêmicas lançados nos últimos anos defende que não faz sentido cultuar o mito de um Lampião idealista, um revolucionário primitivo, insurgente contra a opressão do latifúndio e a injustiça do sertão nordestino. Virgulino não seria um justiceiro romântico, um Robin Hood da caatinga, mas um criminoso cruel e sanguinário, aliado de coronéis e grandes proprietários de terra. Historiadores, antropólogos e cientistas sociais contemporâneos chegam à conclusão nada confortável para a memória do cangaço: no Brasil rural da primeira metade do século 20, a ação de bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos traficantes de drogas que hoje sequestram, matam e corrompem nas grandes metrópoles do país. Guardadas as devidas proporções, o cangaço foi algo como o PCC dos anos 1930. 

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Outro grande chefe cangaceiro foi Corisco, o primeiro a esquerda, tendo ao seu lado a companheira Dadá e integrantes do seu grupo – Fonte – Coleção do autor

Cangaceiros e traficantes

Foram os cangaceiros que introduziram o sequestro em larga escala no Brasil. Faziam reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes. Caso não recebessem o resgate, torturavam e matavam as vítimas, a tiro ou punhaladas. A extorsão era outra fonte de renda. Mandavam cartas, nas quais exigiam quantias astronômicas para não invadir cidades, atear fogo em casas e derramar sangue inocente. Ofereciam salvo-condutos, com os quais garantiam proteção a quem lhes desse abrigo e cobertura, os chamados coiteiros. Sempre foram implacáveis com quem atravessava seu caminho: estupravam, castravam, aterrorizavam. Corrompiam oficiais militares e autoridades civis, de quem recebiam armas e munição. Um arsenal bélico sempre mais moderno e com maior poder de fogo que aquele utilizado pelas tropas que os combatiam.

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“A violência é mais perversa e explícita onde está o maior contingente de população pobre e excluída. Antes o banditismo se dava no campo; hoje o crime organizado é mais evidente na periferia dos centros urbanos”, afirma a antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. A professora aponta semelhanças entre os métodos dos cangaceiros e dos traficantes: “A maioria dos moradores das favelas de hoje não é composta por marginais. No sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas, nos dois casos, a população honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime de terror imposto pelos bandidos, que ditam as regras e vivem à custa do medo coletivo”.

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Lampião – Fonte – http://www.itribuna.com.br

Além do medo, os cangaceiros exerciam fascínio entre os sertanejos. Entrar para o cangaço representava, para um jovem da caatinga, ascensão social. Significava o ingresso em uma comunidade de homens que se gabavam de sua audácia e coragem, indivíduos que trocavam a modorra da vida camponesa por um cotidiano repleto de aventuras e perigos. Era uma via de acesso ao dinheiro rápido e sujo de sangue, conquistado a ferro e a fogo. “São evidentes as correlações de procedimentos entre cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor, são velhos professores e modernos discípulos”, afirma o pesquisador do tema Melquíades Pinto Paiva, autor de Ecologia do Cangaço e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Homem e lenda

Virgulino Ferreira da Silva reinou na caatinga entre 1920 e 1938. A origem do cangaço, porém, perde-se no tempo. Muito antes dele, desde o século 18, já existiam bandos armados agindo no sertão, particularmente na área onde vingou o ciclo do gado no Nordeste, território onde campeava a violência, a lei dos coronéis, a miséria e a seca. A palavra cangaço, segundo a maioria dos autores, derivou de “canga”, peça de madeira colocada sobre o pescoço dos bois de carga. Assim como o gado, os bandoleiros carregavam os pertences nos ombros.

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Um dos precursores do cangaço foi o lendário José Gomes, o endiabrado Cabeleira, que aterrorizou as terras pernambucanas por volta de 1775. Outro que marcou época foi o potiguar Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesuíno Brilhante (1844-1879), famoso por distribuir entre os pobres os alimentos que saqueava dos comboios do governo. Mas o primeiro a merecer o título de Rei do Cangaço, pela ousadia de suas ações, foi o pernambucano Antônio Silvino (1875-1944), o Rifle de Ouro. Entre suas façanhas, arrancou os trilhos, perseguiu engenheiros e sequestrou funcionários da Great Western, empresa inglesa que construía ferrovias no interior da Paraíba.  

Bonnie e Clyde do sertão

O amor de Maria Bonita e Lampião provocou uma revolução no cotidiano dos cangaceiros

 

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Uma sertaneja amoleceu o coração de pedra do Rei do Cangaço. Foi Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa, também conhecida como Maria Bonita. Separada do antigo marido, o sapateiro José Miguel da Silva, o Zé de Neném, foi a primeira mulher a entrar no cangaço. Antes dela, outros bandoleiros chegaram a ter mulher e filhos, mas nenhuma esposa até então havia ousado seguir o companheiro na vida errante no meio da caatinga.

O primeiro encontro entre os dois foi em 1929, em Malhada de Caiçara (BA), na casa dos pais de Maria, então com 17 anos e sobrinha de um coiteiro de Virgulino. No ano seguinte, a moça largou a família e aderiu ao cangaço, para viver ao lado do homem amado. Quando soube da notícia, o velho mestre de Lampião, Sinhô Pereira, estranhou. Ele nunca permitira a presença de mulheres no bando. Imaginava que elas só trariam a discórdia e o ciúme entre seus “cabras”. Mas, depois da chegada de Maria Déa, em 1930, muitos outros cangaceiros seguiram o exemplo do chefe. Mulher cangaceira não cozinhava, não lavava roupa e, como ninguém no cangaço possuía casa, também não tinha outras obrigações domésticas. No acampamento, cozinhar e lavar era tarefa reservada aos homens.

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Lampião e Maria Bonita – Fonte – blogdomendesemendes.blogspot.com

Elas também só faziam amor, não faziam a guerra: à exceção de Sila, mulher do cangaceiro Zé Sereno, não participavam dos combates – e com Maria Bonita não foi diferente. O papel que lhes cabia era o de fazer companhia a seus homens. Os filhos que iam nascendo eram entregues para ser criados por coiteiros. Lampião e Maria tiveram uma filha, Expedita, nascida em 1932. Dois anos antes, aquele que seria o primogênito do casal nascera morto, em 1930.

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Cangaceiros – Fonte –  http://www.grupoimagem.org.br

Entre os casais, a infidelidade era punida dentro da noção de honra da caatinga: o cangaceiro Zé Baiano matou a mulher, Lídia, a golpes de cacete, quando descobriu que ela o traíra com o colega Bem-Te-Vi. Outro companheiro de bando, Moita Brava, pegou a companheira Lili em amores com o cabra Pó Corante. Assassinou-a com seis tiros à queima-roupa. A chegada das mulheres coincidiu com o período de decadência do cangaço.

Desde que passou a ter Maria Bonita a seu lado, Lampião alterou a vida de eterno nômade por momentos cada vez mais alongados de repouso, especialmente em Sergipe. A influência de Maria Déa sobre o cangaceiro era visível. “Lampião mostrava-se bem mudado. Sua agressividade se diluía nos braços de Maria Déa”, afirma o pesquisador Pernambucano de Mello. Foi em um desses momentos de pausa e idílio no sertão sergipano que o Rei do Cangaço acabou sendo surpreendido e morto, na Grota do Angico, em 1938, depois da batalha contra as tropas do tenente José Bezerra. Conta-se que, quando lhe deceparam a cabeça, a mais célebre de todas as cangaceiras estava ferida, mas ainda viva.

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Fonte – nosrevista.com.br

Lampião sempre afirmou que entrou na vida de bandido para vingar o assassinato do pai. José Ferreira, condutor de animais de carga e pequeno fazendeiro em Serra Talhada (PE), foi morto em 1920 pelo sargento de polícia José Lucena, após uma série de hostilidades entre a família Ferreira e o vizinho José Saturnino. No sertão daquele tempo, a vingança e a honra ofendida caminhavam lado a lado. Fazer justiça com as próprias mãos era considerado legítimo e a ausência de vingança era entendida como sintoma de frouxidão moral. “Na minha terra,/ o cangaceiro é leal e valente:/ jura que vai matar e mata”, diz o poema “Terra Bárbara”, do cearense Jáder de Carvalho (1901-1985).

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No mesmo ano de 1920, Virgulino Ferreira entrou para o grupo de outro cangaceiro célebre, Sebastião Pereira e Silva, o Sinhô Pereira – segundo alguns autores, quem o apelidou de Lampião. Como tudo na biografia do pernambucano, é controverso o motivo do codinome. Há quem diga que o batismo se deveu ao fato de ele manejar o rifle com tanta rapidez e destreza que os tiros sucessivos iluminavam a noite. O olho direito, cego por decorrência de um glaucoma, agravado por um acidente com um espinho da caatinga, não lhe prejudicou a pontaria. Outros acreditam na versão atribuída a Sinhô Pereira, segundo a qual Virgulino teria usado o clarão de um disparo para encontrar um cigarro que um colega havia deixado cair no chão.

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Sinhô Pereira (sentado) e Luiz Padre – Fonte – http://blogdomendesemendes.blogspot.com.br/2012/08/sinho-pereira-o-comandante-de-lampiao.html

O cangaço não tinha um líder de destaque desde 1914, quando Antônio Silvino foi preso após um combate com a polícia. Só a partir de 1922, após assumir o bando de Sinhô Pereira, Virgulino se tornaria o líder máximo dos cangaceiros. Exímio estrategista, Lampião distinguiu-se pela valentia nas pelejas com a polícia, como em 1927, em Riacho de Sangue, durante um embate com os homens liderados pelo major cearense Moisés Figueiredo. Os 50 homens de Lampião foram cercados por 400 policiais. O tiroteio corria solto e a vitória da polícia era iminente. Lampião ordenou o cessar-fogo e o silêncio sepulcral de seu bando. A polícia caiu na armadilha. Avançou e, ao chegar perto, foi recebida com fogo cerrado. Surpreendidos, os soldados bateram em retirada.

1- Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião

A capacidade de despistar os perseguidores lhe valeu a fama de possuir poderes sobrenaturais e, após escapar de inúmeras emboscadas, de ter o corpo fechado. No mesmo mês da tocaia de Riacho de Sangue, Lampião e seu bando caíram em nova emboscada. Um traidor ofereceu-lhes um jantar envenenado, numa casa cercada por policiais. Quando os primeiros cangaceiros começaram a passar mal, Virgulino se deu conta da tramóia e tentou fugir, mas viu-se acuado por um incêndio proposital na mata. O que era para ser uma arapuca terminou por salvar a pele dos cangaceiros: desapareceram na fumaça, como por encanto.

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Alegria dos cangaceiros para a câmera

Mas o maior trunfo de Lampião foi o de cultivar uma grande rede de coiteiros. Isso garantiu a longevidade de sua carreira e a extensão de seu domínio. A atuação de seu bando estendeu-se por Alagoas, Ceará, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Lampião chegou a comandar um exército nômade de mais de 100 homens, quase sempre distribuídos em subgrupos, o que dava mobilidade e dificultava a ação da polícia. Em 1926, em tom de desafio e zombaria, chegou a enviar uma carta ao governador de Pernambuco, Júlio de Melo, propondo a divisão do estado em duas partes. Júlio de Melo que se contentasse com uma. Lampião, autoproclamado “Governador do Sertão”, mandaria na outra.

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Lampião – Fonte – lounge.obviousmag.org

Há divergências – e discussões apaixonadas – em torno da figura histórica de Virgulino. Ele comandava sessões de estupro coletivo ou, ao contrário, punia indivíduos do bando que violentavam mulheres? Castrava inimigos, como faziam outros tantos envolvidos no cangaço? Há controvérsias. “Lampião não era um demônio nem um herói. Era um cangaceiro. Muitas das crueldades imputadas a ele foram praticadas por indivíduos de outros bandos. Entrevistei vários ex-cangaceiros e nenhum me confirmou histórias a respeito de estupros e castrações executadas pessoalmente por Lampião”, diz o pesquisador Amaury Corrêa de Araújo, autor de sete livros sobre o cangaço. 

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As narrativas de velhos cangaceiros contrapõem-se à versão publicada pelos jornais da época, que geralmente tinham a polícia como principal fonte. Com tantas histórias e estórias a cercar a figura de Lampião, torna-se difícil separar o homem da lenda. “Acho que está justamente aí, nessa multiplicidade de olhares e versões, a grande força do personagem que ele foi. É isso que nos ajuda inclusive a entender sua dimensão como mito”, explica a historiadora francesa Élise Grunspan-Jasmin, autora de Lampião: Senhor do Sertão (Edusp).

Bandido social?

Já foi moeda corrente entre os especialistas interpretar o “Rei do Cangaço” como um “bandido social”, expressão criada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm para definir os fora-da-lei que surgiam nas sociedades agrárias em transição para o capitalismo.Em Bandidos (Forense Universitário), de 1975, Hobsbawn cita Lampião, Robin Hood e Jesse James como exemplos de nobres salteadores, vingadores ousados, defensores dos oprimidos.

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Marcas do cangaço – Cabeças cortadas e uma estética própria nos equipamentos – Na foto vemos as cabeças dos cangaceiros Mariano, Pai Véio e Zeppelin, mortos em 25 de outubro de 1936, na fazenda Cangalexo, Porto da Folha, Sergipe.

A imagem revolucionária começou a se desenhar em 1935, quando a Aliança Nacional Libertadora citou Virgulino como um de seus inspiradores políticos. A tese foi reforçada em 1963 com o lançamento de um clássico sobre o tema, Cangaceiros e Fanáticos, no qual o autor, Rui Facó, justifica a violência física do cangaço como uma resposta à violência social. Na mesma época, o deputado federal Francisco Julião, representante das Ligas Camponesas e militante político pela reforma agrária, declarava que Lampião era “o primeiro homem do Nordeste a batalhar contra o latifúndio e a arbitrariedade”.

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O responsável pelo blog TOK DE HISTÓRIA junto a Frederico Pernambucano de Mello.

“Lampião não era um revolucionário. Sua vontade não era agir sobre o mundo para lhe impor mais justiça, mas usar o mundo em seu proveito”, afirma a também a historiadora Grunspan-Jasmin, fazendo coro a um dos maiores especialistas do cangaço da atualidade, Frederico Pernambucano de Mello. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e autor de Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Mello diz que o cangaceiro e o coronel não eram rivais. Os coronéis ofereciam armas e proteção aos cangaceiros, que, em troca, forneciam serviço de milícia. Dois dos maiores coiteiros de Lampião foram homens poderosos: o coronel baiano Petronilo de Alcântara Reis e o capitão do Exército Eronildes de Carvalho, que viria a ser governador de Alagoas. “Aprecio de preferência as classes conservadoras: agricultores, fazendeiros, comerciantes”, disse Virgulino em uma entrevista de 1926.

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Marqueteiro da caatinga

A ideia de que Lampião fosse um vingador também é contestada por Mello. Ele argumenta que, em quase 20 anos de cangaço, Lampião nunca teria se esforçado para se vingar de Lucena e Saturnino, o policial e o antigo vizinho responsáveis pelo assassinato de seu pai. De acordo com um dos homens de Virgulino, Miguel Feitosa, o Medalha, Saturnino chegara a mandar um uniforme e um corte de tecido com o objetivo de selar a paz entre eles. Um portador teria agradecido por Lampião. O mesmo Medalha dizia que o ex-soldado Pedro Barbosa da Cruz propôs matar Lucena por dinheiro. “Deixe disso, essas são questões velhas”, teria respondido Lampião. Segundo o autor de Guerreiros do Sol, os cangaceiros usavam o discurso de vinganças pessoais e gestos de caridade como “escudos éticos” para os atos de banditismo.

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Exposição macabra de cangaceiros do bando de Lampião que foram mortos por civis liderados por Antonio Manuel Filho, o Tenente Antonio de Amélia, que cumpriu a promessa de vingar a morte de um amigo.Em pé amarrados a troncos de madeira estão os corpos dos quatro cangaceiros: Suspeita, Limoeiro, Fortaleza, Medalha e no caixão abaixo o corpo de Félix Alves, um civil que morreu durante o combate – Fonte – http://beradeirocurioso.blogspot.com.br/2014/08/10-fotos-marcantes-e-as-historias-por_24.html

Apesar da vida árdua, quem entrava no cangaço dificilmente conseguia (ou queria) sair dele. Havia um notório orgulho de pertencer aos bandos, revelado também na indumentária dos cangaceiros. O excesso de adereços, os enfeites nos chapéus, os bordados coloridos foram típicos dos momentos finais do cangaço. Lampião era um homem bem preocupado com sua imagem pública, o que colaborou para que permanecesse na memória nacional. O Rei do Cangaço também era o rei do marketing pessoal. Assim como adorava aparecer em jornais e revistas, deixando-se inclusive fotografar e até filmar, fazia de seu traje de guerreiro uma ostensiva e vaidosa marca registrada. “Nisso, talvez apenas o cavaleiro medieval europeu ou o samurai oriental possa rivalizar com o nosso capitão do cangaço”, escreveu Pernambucano de Mello.A antropóloga Luitgarde Barros enxerga aí um outro ponto em comum com a bandidagem atual: “Os traficantes também gostam de ostentar sua condição de bandidos e possuem um código visual característico, composto por capuzes e tatuagens de caveiras espalhadas pelo corpo”.

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A violência policial é outro aspecto que aproxima o universo de Lampião do mundo do tráfico. Como ocorre hoje nas favelas dominadas pelo crime organizado, a truculência dos bandoleiros sertanejos só encontrava equivalência na brutalidade das volantes – as forças policiais cujos soldados eram apelidados pelos cangaceiros de “macacos”. Nos tempos áureos do cangaço, não havia grandes diferenças entre a ação de bandidos e soldados. Não raro, eles se trajavam do mesmo modo – o que chegava a provocar confusões – e uns se bandeavam para o lado dos outros. Cangaceiros como Clementino José Furtado, o Quelé, abandonaram o grupo e foram cerrar fileiras em meio às volantes. O bandido Mormaço fez o movimento contrário. Havia sido corneteiro da polícia antes de aderir a Lampião.

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Cangaceiros mortos em Angicos. Foto colorida por Rubens Antônio – Fonte – http://www.jeremoabo.com.br/web/index.php/noticias/21-politica/1866-semana-do-cangaco-de-piranhas-sera-de-24-a-27-de-julho

Como é comum à história da maioria dos criminosos, uma morte trágica e violenta marcou o fim dos dias de Virgulino. Traído por um de seus coiteiros de confiança, Pedro de Cândida, que foi torturado pela polícia para denunciar o paradeiro do bando, Lampião acabou surpreendido em seu esconderijo na Grota do Angico, Sergipe, em 28 de julho de 1938. Depois de uma batalha de apenas 15 minutos contra as tropas do tenente José Bezerra, 11 cangaceiros tombaram no campo de batalha. Todos eles tiveram os corpos degolados pela polícia, inclusive Lampião e Maria Bonita. Durante mais de 30 anos, as cabeças dos dois permaneceram insepultas. Em 1969, elas ainda estavam no museu Nina Rodrigues, na Bahia, quando foram finalmente enterradas, a pedido de familiares do casal mais mitológico – e temido – do cangaço.

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Os verdadeiros cangaceiros.

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As estratégias e técnicas para despistar os inimigos

Embora seja inadequado referir-se aos cangaceiros como guerrilheiros – eles não tinham nenhum propósito político –, é inegável que lançaram mão de táticas típicas da guerrilha. Habituados a viver na caatinga, não eram presa fácil para a polícia, especialmente para as unidades deslocadas das cidades com a missão de combatê-los no sertão. Uma das maiores dificuldades de enfrentá-los era a de que preferiam ataques rápidos e ferozes, que surpreendiam o adversário. Também não tinham qualquer cerimônia em fugir quando se viam acuados. Houve quem confundisse isso com covardia. Era estratégia cangaceira.

4-Lampião gostava de mostrar-se um homeme inteligente perante as câmeras
Lampião

 Tropa de elite: Os bandos eram sempre pequenos, de no máximo 10 a 15 homens. Isso garantia a mobilidade necessária para a realização de ataques-surpresa e para bater em retirada em situações de perigo.

 Calada da noite: Em vez de se deslocar a cavalo por estradas e trilhas conhecidas da polícia, percorriam longas distâncias a pé em meio à caatinga, de preferência à noite. Para evitar que novas vias de acesso ao sertão fossem abertas, assassinavam trabalhadores nas obras de rodovias e ferrovias.

 Os apetrechos: Todos os pertences do cangaceiro eram levados pendurados pelo corpo. Como não se podia carregar muita bagagem, dinheiro e comida eram colocados em potes enterrados no chão, para serem recuperados mais tarde.

 Raposas do deserto: Cangaceiros eram mestres em esconder rastros. Alguns truques: usar as sandálias ao contrário nos pés. Pelas pegadas, a polícia achava que eles iam na direção contrária (detalhe); andar em fila indiana, de costas, pisando sobre as mesmas pegadas, apagadas com folhagens; pular sobre um lajedo, dando a impressão de sumir no ar.

 Peso morto: Com exceção de sequestrados, quase nunca faziam prisioneiros em combate, pois isso dificultaria a capacidade de se mover com rapidez. Também não mantinham colegas feridos ou com dificuldade de locomoção.

 Seu mestre mandou: Para resolver discórdias internas no bando, Lampião sempre planejava um grande ataque. Todos os membros do grupo se uniam contra o inimigo e deixavam de lado as divergências entre si.

 Os infiltrados: Quem dava abrigo e esconderijo aos cangaceiros era chamado de coiteiro e agia em troca de dinheiro, de proteção armada ou mesmo por medo. Coiteiros que traíam a confiança eram mortos para servirem de exemplo.

 Rota de fuga: As principais áreas de ação do cangaço eram próximas às fronteiras estaduais. Em caso de perseguição, eles podiam cruzá-las para ficar a salvo do ataque da polícia local.

 Fogo amigo e inimigo: Durante os combates, havia uma regra fundamental: em caso de retirada, nunca deixar armas para o inimigo; nas vitórias, apoderar-se do arsenal dele.

2-O bando de Lampião
O bando de Lampião

A saga de Lampião na caatinga

1898: Virgulino Ferreira da Silva nasce em 4 de junho, na comarca de Vila Bela, atual Serra Talhada, Pernambuco. É o terceiro dos nove filhos de José Ferreira e Maria Lopes.

1915: Começa a briga entre a família Ferreira e a do vizinho José Saturnino.

1920: José Ferreira é morto. Virgulino e três irmãos (Ezequiel, Levino e Antônio) entram para o cangaço. Durante um tiroteio em Piancó (PB), ele é ferido no ombro e na virilha: são as primeiras cicatrizes de uma série que colecionará na vida.

 1922: Sinhô Pereira abandona o cangaço e Lampião assume o lugar do chefe. A primeira grande façanha é um assalto à casa da baronesa Joana Vieira de Siqueira Torres, em Alagoas.

1924: Toma um tiro no pé direito, em Serra do Catolé, município de Belmonte (PE).

1925: Fica cego do olho direito e passa a usar óculos para disfarçar o problema.

1926: Visita Padre Cícero no Ceará e recebe a patente de capitão do “batalhão patriótico”, encarregado de combater a Coluna Prestes. Em Itacuruba (PE) é ferido à bala na omoplata.

1927: Ataque do bando a Mossoró (RN). A cidade resiste. É uma das maiores derrotas de sua carreira.

1928: A ação da polícia de Pernambuco faz com que atravesse o rio São Francisco e passe a agir preferencialmente na Bahia e em Sergipe.

 1929: Primeiro encontro com Maria Bonita, na fazenda do pai dela, em Malhada do Caiçara (BA).

1930: Maria Bonita torna-se sua mulher e ingressa no bando. O governo da Bahia oferece uma recompensa de 50 contos de réis para quem o entregar vivo ou morto. Em Sergipe, é baleado no quadril.

1932: Nasce Expedita, sua filha com Maria Bonita.

 1934: Eronildes Carvalho, capitão do Exército e coiteiro de Lampião, é nomeado governador de Sergipe.

1936: O libanês Benjamin Abraão, ex-secretário de Padre Cícero, convence Virgulino a se deixar filmar no documentário Lampeão. O filme é recolhido pelo Estado Novo.

 1938: Em 28 de julho, o bando é cercado em Angico (SE). Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros são assassinados.


Saiba mais
Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Frederico Pernambucano de Mello, 2004

Lampião: Senhor do Sertão, Élise Grunspan-Jasmin, 2006

A GRUTA DO CANGACEIRO JESUÍNO BRILHANTE – PATU-RN

Mapa do Rio Grande do Norte, mostrando no quadrado negro, a localização da cidade de Patu

Autor – Rostand Medeiros

No Município de Patu, Rio Grande do Norte, encontramos a cavidade natural conhecida como Casa de Pedra de Patu. Na segunda metade do século XIX este local passou a ser utilizado como abrigo pelo cangaceiro Jesuíno Brilhante e seu bando.

Maciço rochoso granítico da Serra do Lima. A cidade de Patu fica na base desta elevação

Esta cavidade natural passou a ser citada por folcloristas, historiadores e pessoas que pesquisam o cangaço e a vida deste cangaceiro, porém nunca havia sido abordada em um estudo que integrasse o lado histórico-cultural, com a sua relevância em relação ao patrimônio espeleológico nacional. Esta lacuna começou a ser preenchida em abril de 1998 pela organização não governamental de pesquisas espeleológicas SEPARN-Sociedade para Pesquisa e Desenvolvimento Ambiental do Rio Grande do Norte, que iniciou uma série de levantamentos espeleológicos na gruta e seu entorno, tendo as pesquisas continuado em visitações ocorridas respectivamente em fevereiro de 2002, março e maio de 2005, junho de 2007 e setembro de 2008.

1998-Foto da primeira visita da SEPARN a gruta do cangaceiro Jesuíno Brilhante, em época de chuva. Da esquerda para a direita estão os amigos Adeilton Rigaud Lucas Santos, Joaquim das Virgens Neto e o autor deste artigo. Adeilton e Joaquim atualmente são respectivamente geólogos da Petrobrás e do CPRM

Foi possível avaliar as condições de preservação do local, alvo de visitações irregulares, e também foi possível produzir o mapeamento topográfico do interior da cavidade, auferir sua posição exata, produzir estudos sobre a geologia da área, além de lançar as bases e diretrizes para elaboração de um pretenso plano de aproveitamento turístico racional da área.

Serra do Cajueiro, na verdade uma continuidade geológica do maciço rochoso da Serra do Lima

A gruta está localizada na Serra do Cajueiro, no imóvel Fazenda Cajueiro, propriedade rural às margens da RN-078 distante 5,6 Km do centro urbano, sendo o proprietário o Sr. Jorge Pereira de Castro, que é conhecido na região como Jorge Baiano. Durante o chamado período do ciclo do algodão no Nordeste, mais de 150 famílias chegaram a viver na propriedade, sendo um importante centro produtor desta malvácea. Atualmente ainda existem as benfeitorias da época, como a casa sede, capela, os currais e outras casas diversas.

Casas principais da fazenda Cajueiro. Todas com mais de um século

Já a história do cangaceiro Jesuíno Alves de Melo Calado (1844-1879), o Jesuíno Brilhante, está associada à Casa de Pedra de Patu por influências familiares, uma vez que o descobridor da gruta foi seu tio materno, José Brilhante (1824-1873), igualmente cangaceiro e conhecido como “Cabê”. A pouca bibliografia existente sobre a vida de Jesuíno Brilhante conta que o velho cangaceiro José Brilhante, estava abrindo veredas de fuga em meio a uma grande mata e topou com a entrada da gruta.

A trilha de acesso a fonte de água e a cavidade

Se a história é verdadeira não sabemos, mas é nítido como o local é um esconderijo seguro e estratégico. Devido principalmente à sua altitude, a parte superior da cavidade proporciona uma bela visão de todo a região, dando condições de visualização contra seus potenciais perseguidores, numa evidente vantagem tática. Associado a este fator o local onde se encontra a cavidade é de difícil acesso. O fato de existir uma saída lateral, o que proporcionaria uma área de escape do local em caso de emboscada, foi criada pela remoção de blocos graníticos e é creditada a uma intervenção dos cangaceiros na gruta.

Em 2005, este foi o estado em que os membros da SEPARN encontraram a entrada da gruta. As maiorias das pichações foram feitas com carvão e corretivo branco, modelo escolar

Inúmeras informações foram colhidas através de entrevistas junto aos moradores da região, onde foi possível conhecer a associação entre seus antepassados e gruta, além do conhecimento das práticas comuns daqueles que viviam a vida no cangaço.

No interior da gruta encontramos estas duas estacas de baraúna. Segundo o pessoal da região, estas estacas estão aqui desde o tempo do cangaceiro Jesuíno Brilhante e serviam para armar uma rede. Posso garantir que desde 1998 elas estão lá, mas se foram colocadas na década de 1870, aí é outra história

Na gruta não estão caracterizados sinais evidentes de ocupação por indígenas, mas nada impede que eles tenham utilizado a gruta, vistos os mesmos terem deixados vários registros rupestres nas redondezas e o fato da cavidade ser um abrigo natural próximo à água.

5 de agosto de 2005-Participação no Seminário Jesuíno Brilhante, promovido pela SBEC-Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, em Mossoró. Da esquerda para direita Ricardo Sávio (SEPARN), Kidemyr Dantas (na época presidente da SBEC) e o autor deste artigo.

Os elementos que apontam a entrada de Jesuíno Brilhante na vida do cangaço são os comuns neste tipo de situação; injustiça social, perda da posse da terra, afronta aos valores socioculturais ligados ao meio e consequências ligadas ao fenômeno das secas. Até 1871 Jesuíno trabalhou como lavrador e vaqueiro, era casado e possuía cinco filhos. Porém seus problemas tiveram início com o roubo de alguns de seus caprinos, fato atribuído aos seus vizinhos, a família Limão.

No local do olho d’água encontramos esta árvore marcada por disparos. As pessoas da região afirmam terem sido produzidas pelos cangaceiros. Mas esta versão, sem uma análise mais apurada, não pode ser confirmada.

Não bastasse o sumiço dos animais, alguns dias após o acontecido, um irmão de Jesuíno foi agredido por um membro da família Limão na feira da então Vila de Patu. Movido pela defesa da honra, Jesuíno matou o agressor de seu irmão e com poucas alternativas à sua disposição, tornou-se o cangaceiro mais famoso do Rio Grande do Norte.

Perseguido, seu principal refúgio era a gruta, escondendo-se com o seu bando e sua família, tendo travado combates com policiais. Nunca foi capturado no local, tendo sido morto na Paraíba em 1879, no sítio Riacho dos Porcos, do município de Brejo do Cruz (PB). Morreu em combate aos 35 anos de idade.

No alto da Gruta do Cangaceiro Jesuíno Brilhante, em 2008, ano de muita chuva. O cenário aponta em direção à sede da fazenda Cajueiro

Conforme comentamos anteriormente, são diversos os escritores e pesquisadores do fenômeno do cangaço atestam a utilização desta gruta por este cangaceiro, dentre eles Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) com o seu livro “A Flor de Romances Trágicos”. O primeiro livro publicado que faz inúmeras vezes alusão a esta caverna, é a do escritor cearense Rodolfo Teófilo (1853-1932) com o seu romance, “Os Brilhantes” de 1895. Depois vieram outros literatos, escritores e pesquisadores como Eloy de Souza (1873-1959), Gustavo Barroso (1888-1959).

Em 19 de janeiro de 1969, o escritor Raimundo Nonato (1907-1993) visitou a caverna com a intenção de coletar dados mais fidedignos para a realização do seu livro “Jesuíno Brilhante – O Cangaceiro Romântico”.

Operação de limpeza da pichação encontrada na gruta

O escritor Raimundo Nonato relata o quanto foi difícil o acesso e compreende a razão do cangaceiro haver resistido a várias incursões de forças do governo, dentre estas uma comandada pelo então oficial de polícia e futuro senador e ministro Amaro Bezerra Cavalcanti.

Pichação na entrada

Já a literatura de cordel versa muito pouco sobre o local, já que os poetas populares fixaram-se na figura do cangaceiro e sua vida de lutas, deixando muitas vezes de referir-se ao seu esconderijo.

Resultado do trabalho

Não existem registros fotográficos de Jesuíno Brilhante, contudo a sua caverna-esconderijo é um dos símbolos mais importante de suas aventuras e desventuras.

Restou a fama de cangaceiro romântico, que não desonrava as senhoras, supostamente roubava dos mais ricos e doava aos mais pobres e protegia os sertanejos dos abusos dos coronéis.

Resultado da limpeza. Participaram moradores da fazenda, professores da rede de ensino de Patu e o então secretário de turismo da cidade, Fany Carlos

Na Serra do Cajueiro, desde a base até as altitudes mais elevadas, existem abrigos criados pelo rolamento de blocos de granito. Estes blocos são formados devido ao intemperismo e falhamentos que atuam na rocha. Um destes abrigos é a caverna de Jesuíno Brilhante.

Durante da visita conjunta SEPARN, foi realizada uma topografia preliminar que definiu como área total de progressão da caverna de 60,46 metros, desnível de 6,72 metros, extensão norte a sul de 14,64 metros, extensão leste a oeste de 14,22 metros e altura média de 2 metros. As seções transversais são irregulares, pela acomodação dos blocos. Sua localização em coordenadas geográficas em UTM ficou definida em: área 24 648736E 9319399N. Da sede da propriedade para a caverna percorre-se uma distância de 1.800 metros.

Caminhos utilizados na região de Patu

Atualmente, apesar da visitação desordenada, podemos adiantar que a gruta encontra-se em razoáveis condições de preservação e com real potencial para a sua utilização dentro do contexto de turismo ecológico.

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