A HISTÓRIA DO TIROTEIO NO SÍTIO TATAÍRA E A INCRÍVEL RESISTÊNCIA DO CANGACEIRO MEIA-NOITE

Cangaceiro, de Portinari
Cangaceiro, de Portinari

Autor – Rostand Medeiros

Desde que comecei a ler livros, a me interessar pelas envolventes histórias dos cangaceiros nordestinos, uma passagem em particular me chama muito atenção. Foram as circunstancias envolvendo um intenso tiroteio entre um antigo cangaceiro do bando de Lampião, conhecido como Meia-Noite, que enfrentou praticamente sozinho, durante mais de cinco horas de fogo cerrado, um grupamento policial que chegou a ter mais de oitenta homens.

Ocorrido em uma data incerta, mas que se situa em algum dia da segunda quinzena de agosto, ou início de setembro de 1924, este desigual combate se desenrolou em uma propriedade rural chamada Tataíra, em meio às serras do então município paraibano de Princesa, na fronteira com Pernambuco.

O que chama atenção neste caso, além do imenso volume de fogo, foi a capacidade de resistência deste cangaceiro que, mesmo acuado em uma pequena casa rural, ferido, ainda conseguiu em um primeiro momento fugir e só foi morto alguns dias depois, através de um emboscada perpetrada por dois homens, um dos quais lhe ajudava no seu restabelecimento.

Ao ler estes fatos, no começo pensei ser mais uma das muitas fantasias que pululam os inúmeros livros escritos sobre o cangaço. Pensava que no caso da história ser verdadeira, certamente esta casa deveria ter sido derrubada há muitos anos e que, após mais de oitenta anos, não haveria ninguém que pudesse narrar algo deste incrível episódio.

Não sabia o quanto estava enganado.

AS ORIGENS DO CONFLITO 

Segundo a literatura relativa ao assunto, o tiroteio no sítio Tataíra tem origem em 27 de julho de 1924, quando um forte grupo de cangaceiros atacou com sucesso a cidade paraibana de Sousa, uma das mais importantes daquele estado.

Chico Pereira
Chico Pereira

As raízes deste ataque surgem a partir do desejo de vingança de um fazendeiro que vivia a alguns quilômetros de Sousa, em uma propriedade denominada Jacu, no então distrito de Nazareth, atual município de Nazarezinho. O nome deste homem sedento de retaliação era Francisco Pereira Dantas, conhecido como Chico Pereira.

Seu pai, o afamado coronel João Pereira, foi assassinado em meio a disputas políticas. O comentário na região fora que os mandantes seriam pessoas importantes de Sousa, dentre estes prováveis articuladores constava o nome de nome Otávio Mariz.

O clima na cidade estava pesado, na iminência de ocorrerem novas ações violentas, logo este membro da influente família Mariz se envolve em uma briga na feira da cidade, onde chicoteou severamente uma pessoa ligada a Chico Pereira.

Estado atual da Casa Grande da Fazenda Jacu, Nazarezinho, Paraíba - Fonte - http://nazarezinho.informecapital.com.br
Estado atual da Casa Grande da Fazenda Jacu, Nazarezinho, Paraíba – Fonte – http://nazarezinho.informecapital.com.br

Em sua fazenda, ao saber do ocorrido, Chico Pereira se exalta. Ele teria então enviado um portador para dialogar diretamente com o famoso chefe cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, solicitando seu apoio para a realização de um decisivo ataque contra os seus inimigos em Sousa. Após ouvir o portador vindo de Sousa, Lampião teria dado o aval para que dois dos seus irmãos, Antônio e Levino Ferreira, além de certa quantidade de cangaceiros, seguissem para o Jacu, unissem forças com o grupo de homens em armas mantidos por Chico Pereira e atacassem a cidade.

O coronel José Pereira, no destaque de gravata.
O coronel José Pereira, no destaque de gravata.

Por esta época Lampião convalescia de um forte ferimento, ocasionado inicialmente em um combate no lugar conhecido como Lagoa do Vieira, na zona rural do atual município pernambucano de São José de Belmonte. O mais importante cangaceiro brasileiro se recuperava na área da propriedade denominada Saco dos Caçulas, na zona rural da cidade de Princesa, na fronteira da Paraíba com Pernambuco. Esta propriedade pertencia a Marcolino Pereira Diniz, filho do poderoso Marçal Florentino Diniz, todos parentes de José Pereira de Lima, líder político e verdadeiro “dono” de Princesa.

Segundo relatos coletados na região, Marcolino Diniz, através da anuência de seu parente José Pereira, aparentemente firmou um acordo tácito com Lampião. O chefe cangaceiro estava protegido por estes homens poderosos na região da fazenda Saco dos Caçulas, em contrapartida os seus cangaceiros não deveriam criar problemas em suas áreas de interesse.

Rodrigues de Carvalho, autor do livro “Serrote Preto” (Rio de Janeiro,1974), afirma na sua página 273 que Sousa ficava distante “35 léguas” de Princesa, equivalente a 210 quilômetros. Provavelmente Lampião imaginou que o ataque a esta cidade não traria problemas junto aos seus protetores e assim ficaria mantido o pretenso acordo.

Entre os homens que Lampião cedeu a Chico Pereira estava a “fina flor” do cangaceirismo da época. Homens como Sabino, José Cachoeira, Lua Branca e um homem negro alto e forte, conhecido como Meia-Noite.

O cangaceiro Meia Noite
O cangaceiro Meia-Noite

Segundo o escritor Érico de Ameida, no livro “Lampeão-Sua História” (págs. 63 a 68), publicado em 1926, o cangaceiro Meia-Noite se chamava Antonio Augusto Feitosa, teria em 1924 a idade de 22 anos, sendo originário da região de Olho D’Água do Casado, próximo a Paulo Afonso, Alagoas e possuía a fama de ser extremamente valente.

Diante de uma horda composta de um número de cangaceiros que superava os oitenta homens, todos dispostos e bem armados, o assalto a Sousa foi um sucesso para o bando.

Foto do bando de Lampião nos primeiros anos da década de 1920.
Foto do bando de Lampião nos primeiros anos da década de 1920.

O saque foi tão desenfreado e até mesmo os aliados de Chico Pereira sofreram nas mãos dos cangaceiros. Casas comerciais, residências e qualquer local onde houvesse algo de valor foram “visitados”. A situação chegou a um ponto tal que durante o ataque, Chico Pereira deixou a função de chefe cangaceiro para buscar controlar as feras que ele mesmo incentivou a atacar a cidade. João Gomes de Lira, que foi oficial da Polícia do Estado de Pernambuco, antigo perseguidor de Lampião e autor o livro “Lampião-Memórias de um soldado de volante” (Recife,1990), afirma na sua página 143 que Chico Pereira foi “Quem muito defendeu Sousa de Piores desatinos”.

Até hoje perdura o desconforto em relação a esta página negra da história desta cidade. Em nossas pesquisas na região, em contato com filhos daqueles que vivenciaram os fatos, sem dúvida alguma é facilmente perceptível o desconforto destas pessoas em tecer algum comentário sobre este assunto.

Enquanto o grupo de atacantes retornava para Princesa, a repercussão do fato se espalhava pela Paraíba e pelo Nordeste.

Logo após saber dos estragos em Sousa, Lampião percebeu que enfrentaria a polícia paraibana e que dificilmente Marcolino Diniz e José Pereira continuariam lhe dando a mesma proteção e apoio de outrora.

Marcolino Diniz e seus cabras
Marcolino Diniz e seus cabras

Justamente nesta hora, em que o horizonte se mostrava repleto de nuvens negras, ocorreu no seio do bando de Lampião a saída de um dos seus mais destemidos membros.

Após retornarem para junto do chefe, durante um pernoite em uma fazenda denominada “Bruscas”, pertencente à família Lacerda, o intrépido Meia-Noite percebeu que algum companheiro havia lhe surrupiado a quantia de nove contos de réis, tão “arduamente” conseguida como “fruto do seu labor”.

Logo se iniciava uma discussão. Sem medo de nada o cangaceiro enganado pelos companheiros, apontou o dedo diretamente para os irmãos de Lampião, estes por sua vez afirmavam inocência. O clima esquenta, Meia-Noite logo se coloca pronto para o que viesse a ocorrer, empunhando seu fuzil Mauser. Lampião em pessoa intervêm no conflito, mas naturalmente se põem a favor dos irmãos e a situação quase chega a um desfecho trágico.

Lampião tinha enorme respeito pelo cangaceiro Meia-Noite
Lampião tinha enorme respeito pelo cangaceiro Meia-Noite

Sabendo o tipo de homem que Meia-Noite era, a quem ele conhecia já de alguns anos, Lampião decide então pagar os nove contos ao terrível cangaceiro.

Após a entrega do erário, Lampião impôs uma condição, que seu companheiro teria de entregar as suas armas para outros membros do bando. Meia-Noite percebeu que estando ele desarmado, fatalmente seria novamente roubado e morto. O valente negro não se fez de rogado, colocou uma bala na câmara de seu fuzil, apontou a arma para Lampião e “convidou” o chefe e quem mais lhe acompanhava a vir lhe tomar seu armamento.

Segundo relatos conseguidos por Rodrigues de Carvalho (Op. Cit. Págs. 274 e 275), junto ao fazendeiro Zuza Rodrigues, que anteriormente ouviu a história através do cangaceiro Lua Branca, que estava presente a cena, nesta hora todos ficaram quietos, admirados ante a valentia do negro, que mantinha o fuzil apontado diretamente para Lampião.  O chefe sempre admirava os valentes e, apesar de consternado ante a afronta, baixou a guarda. Além do mais não havia muito que fazer, pois se Meia-Noite atirasse, Lampião sabia que dali o seu destemido cangaceiro não sairia vivo, mas provavelmente ele, Lampião, também não.

O cangaceiro negro é então expulso do bando e foi embora pelas estradas do sertão.

Região da Serra do Pau Ferrado - Foto - Rostand Medeiros
Região da Serra do Pau Ferrado – Foto – Rostand Medeiros

Meia-Noite segue para a região da fazenda Saco dos Caçulas, através das veredas existentes na grande serra do Pau Ferrado, outro local de esconderijos dos cangaceiros na região.

Teria sido melhor para Meia-Noite sair da região, pois a perseguição policial crescia ainda influenciada pela repercussão do assalto a Sousa. Volantes policiais paraibanas, acrescidas de homens armados do séquito do coronel José Pereira, estavam alertas e prontas para caçarem sem piedade Lampião e seus cangaceiros.

Mas o que movia Meia-Noite a retornar a esta área perigosa, nada tinha haver com dinheiro, armas e brigas. Ele desejava estar próximo de sua amante, de nome Zulmira.

A REGIÃO DE PRINCESA E SUAS HISTÓRIAS 

Antes de prosseguir neste relato tenho que comentar que a partir de 2006, ao buscar subsídios para uma pesquisa que realizo relativa a ação do cangaceiro Chico Pereira, conheci a interessante cidade de Princesa Isabel, a antiga Princesa e a sua região. A 23 quilômetros desta cidade, em Manaíra, conheci e fiz amizade com uma verdadeira biblioteca viva em relação a estes acontecimentos e se chama Antônio Antas Dias.

O amigo Antônio Antas, apontando os caminhos da história da Tataíra
O amigo Antônio Antas, apontando os caminhos da história da Tataíra – Foto – Rostand Medeiros

Na sua juventude conviveu e conheceu na intimidade Marcolino Pereira Diniz, filho do poderoso Marçal Florentino Diniz, todos parentes do “dono” de Princesa, José Pereira. Além de Marcolino, Antonio Antas conviveu igualmente com Luiz Nunes de Souza, que ficou conhecido como o mítico cangaceiro “Luís do Triângulo”, de Manoel Lopes Diniz, o conhecido “Ronco Grosso” e de outro conhecido como “Tocha”. Todos estes homens de extrema valentia e de total confiança de José Pereira e Marcolino Diniz.

Altivo, tranqüilo, prestativo, através de Antonio Antas passei a conhecer aspectos interessantes da região, onde já estive em quatro ocasiões.

Em uma delas perguntei ao amigo Antonio sobre o combate da Tataíra. Para minha surpresa ele afirmou que a história da valentia de Meia-Noite era muito conhecida na região, que a casa ainda estava de pé, servindo de moradia até hoje, que aparentemente não tinha sido drasticamente reformada e, o mais importante, havia pessoas, filhos daqueles que vivenciaram os fatos, que poderiam transmitir de forma correta, aquilo que seus pais e parentes relataram do tiroteio de 1924.

Parti junto com Antonio Antas para visitar o local e buscar junto aos filhos das testemunhas, pessoas que atualmente se situam na faixa dos sessenta a oitenta anos, ainda lúcidos, a memória deste acontecimento. Estas pessoas, mesmo não sendo testemunhas diretas, ouviram as narrativas deste acontecimento em um ambiente mais tranquilo, anterior a massificação do rádio e da televisão, mais propício para que a lembrança dos fatos ocorridos pudesse ser mais rica em detalhes.

O resultado foi muito animador.

A TRANQUILIDADE NO SACO DOS CAÇULAS

Segundo o agricultor Anastácio de Souza de Moraes, de 69 anos a época de minha entrevista (2008), morador do sítio Bandeira, vizinho a Tataíra, me narrou que seu pai Manuel Moraes, assistiu de sua casa, onde até hoje Anastácio reside, todo o conflito ocorrido em setembro de 1924. Anastácio é calmo tranqüilo, calejado nas lides do campo, comentou que para as pessoas da região o apelido Meia-Noite não tinha origem apenas no fato dele ser negro, mas porque o valente cangaceiro possuía o hábito de circular na região sempre à noite.

Casa Grande dos Patos
Casa Grande dos Patos – Foto – Rostand Medeiros

Segundo o nosso entrevistado, nos dias em que Meia-Noite circulou por aquele setor, ainda junto a Lampião e seu bando, os cangaceiros consideravam aquele local o seu melhor refúgio. Percebemos isto ao circular na estrada de barro que liga a cidade de São José de Princesa e a fronteira de Pernambuco, pois em nenhum momento é possível visualizar, mesmo estando em altitude, à atual comunidade do Saco dos Caçulas, ou as casas da propriedade Tataíra.

São elevações se sobrepondo a elevações, criando no meio delas uma área quase que fechada, um verdadeiro “saco”.

Além do apoio de Marcolino Diniz, outra razão positiva para a região do Saco dos Caçulas ser considerado um ótimo esconderijo era a existência de um afamado armeiro e ferreiro chamado Zé Andre. Este sempre calibrava as armas, ajeitava uma agulha, um gatilho, trocava uma mola, uma coronha. Anastácio e Antonio Antas o conheceram atuando e são unânimes em afirmar que Andre era um verdadeiro artista.

É conhecido na região que muitas vezes Lampião saiu de seus esconderijos, acompanhado dos seus homens de maior confiança, como seus irmãos e Luís Pedro do Retiro, para jogar cartas com Marcolino Diniz, no casarão da fazenda Patos de Irerê. A tônica desta jogatina era de apostas com altas somas de dinheiro.

Os cangaceiros não ficavam fixos em uma casa, estavam sempre passando de um refúgio para outro. A casa que eles mais gostavam, segundo relatos do pai de Anastácio, era uma velha vivenda situada no sítio Pedra, cujo proprietário era conhecido como “Domingos da Pedra” e muito ligado a Marcolino Diniz. Neste refúgio era comum a presença de um sanfoneiro chamado Joaquim Preto, que vinha do sítio Covão, onde bailes eram freqüentemente realizados e o agricultor Manoel Moraes, pai do nosso entrevistado, frequentou muitas destas festas com outras pessoas da região.

Para ele sempre existiu muito respeito por parte dos cangaceiros em relação à população local, sendo provável que foi em um destes bailes que o afamado Meia-Noite conheceu Zulmira.

Igreja de Patos do Irerê
Igreja de Patos do Irerê – Foto – Rostand Medeiros

Sobre esta sertaneja, ela era natural da área da fazenda Saco dos Caçulas, onde morava com a sua família. Segundo Anastácio, os pais da jovem se posicionaram contrários ao relacionamento. Mas quem iria contra Meia-Noite? Logo ela fugiu com o seu cangaceiro.

A REGIÃO SE TORNA PERIGOSA

Mas depois do ataque a Sousa tudo mudou.

Lampião foi avisado a deixar a região do Saco dos Caçulas, logo ele e seus homens passaram a ser tenazmente acossados pela polícia e homens contratados por José Pereira.

Diante da nova situação e do seu retorno a região, Meia-Noite passou a circular com muito cuidado. Ele nunca dormia no mesmo local, seguia para vários esconderijos diferentes, levando a amada a reboque. Consta que Meia-Noite era visto circulando abertamente com um fuzil Mauser, pistola e punhal. Já Zulmira transportava um rifle modelo Winchester.

Manuel Moraes informou a seu filho que pela proteção e o silêncio do povo da região, Meia-Noite desembolsava certas quantias em dinheiro que satisfaziam aqueles que lhe acoitavam e deixavam outros se roendo de inveja. Para o pai de Anastácio, foi na ocasião em que o valente cangaceiro se encontrava homiziado em uma das casas do sítio Tataíra, que pertencia a um fazendeiro conhecido como Tibúrcio Barreto, que provavelmente algum proprietário vizinho se dirigiu a Princesa e delatou ao coronel José Pereira, onde Meia-Noite se encontrava.

A antiga Pincesa Isabel
A antiga Princesa, atual Princesa Isabel

Segundo Rodrigues de Carvalho (Op. Cit. Pág. 280), o coronel ordena a um dos seus homens de confiança, Manoel Virgulino, que fosse a Tataíra com doze homens, com a ordem de “-Trazer o negro de qualquer maneira, na corda ou no pau”. Esta ordem significava ou trazê-lo amarrado vivo, ou amarrado morto em uma vara e transportado por dois homens.

Às nove da noite Manoel Virgulino segue de Princesa junto com seu grupo. Demoram quatro horas em marcha discreta e ininterrupta. Anastácio Moraes informou que o grupo de captura passou por várias casas perguntando sobre o cangaceiro, logo chegavam à casa do ferreiro e armeiro Zé André. Este acordou com a movimentação ao redor de sua residência e homens batendo a sua porta. Ao abrir Zé Andre se assustou com os homens armados, que lhe perguntaram de forma ríspida se na sua casa Meia-Noite estava homiziado, ou se sabia onde ele estava. Ele negou conhecer o paradeiro do cangaceiro, eles aceitaram a informação e seguiram em direção as casas do sítio Tataíra.

Zé Andre não foi molestado, igualmente não teve dúvidas em relação ao que iria ocorrer e tratou de abandonar sua pequena vivenda em busca de refúgio na casa de parentes.

Casa do sítio Tataíra, onde ocorreu o feroz tiroteio. Na época a casa tinha uma divisão.
Casa do sítio Tataíra, onde ocorreu o feroz tiroteio. Na época a casa tinha uma divisão – Foto – Rostand Medeiros

Rodrigues de Carvalho (Op. Cit. Pág. 280) informa que realmente a volante bateu de casa em casa, recebendo sempre respostas negativas e que o grupo já estava desanimando com o resultado e prontos para retornarem a Princesa.

Em uma das últimas tentativas, o grupo encontrou duas casas lado a lado no sítio Tataíra, com uma grande palmeira na parte frontal. Não eram casas muito grandes, possuíam telhados típicos do sertão, em forma de “V” invertido, tipo conhecido como “Duas Águas”. Suas paredes eram bem rígidas, feitas com maciços e grandes tijolos a aparente. Perceberam que uma das casas era para moradia e a outra servia como local e transformação de mandioca em farinha, pois possuía uma chaminé no alto e apenas uma porta e uma janela na parte frontal. As casas estavam situadas em uma pequena elevação, onde os atacantes ficavam em desvantagem, pois quem estava no seu interior tinha o campo de tiro completamente aberto e facilitado.

O grupo passou a interpelar os que ali habitavam. Não tiveram uma resposta rápida, mas ouviram barulhos e aguardaram. Logo uma voz de mulher se apresenta. Os membros da volante pedem para entrar e a voz feminina afirma ser uma mulher idosa, que está sozinha e que não iria abrir. Os homens de José Pereira voltaram à carga, batendo com mais força a porta. A voz feminina pergunta “-Se são homens do coronel?”, diante da afirmativa Meia-Noite deixa de lado o disfarce e abre fogo em meio a toda uma série de impropérios, palavrões e baixarias.

Lateral da casa do sítio Tataíra
Lateral da casa do sítio Tataíra – Foto – Rostand Medeiros

Manoel Virgulino interpela o cangaceiro para que ele se entregue, pois eles vão pega-lo “-Vivo ou morto”. O cangaceiro, segundo Anastácio, respondeu “-Nem morto nem vivo e quem entrar leva tiro”.

Tem início aquele que é considerado um dos mais intensos, desiguais, longo e ferozes combates ocorridos no período do cangaço.

O INCRÍVEL “FOGO” DA TATAÍRA

Os membros do grupo atacante perceberam que estavam diante de um combatente destemido e preparado. Era tal a quantidade de disparos que saiam do interior da casa que ficava difícil acreditar que apenas uma arma era disparada por vez. Tanto as narrativas dos moradores da região, quanto à literatura existente, são taxativos em afirmar que Zulmira não atirou, mas municiava as armas do companheiro.

O esperto Meia-Noite tinha certeza que os homens de José Pereira desconheciam a sua saída do bando de Lampião e passou a admoestar os atacantes com a certeza que seus companheiros lhe atacariam pela retaguarda. Não é difícil imaginar que diante da possibilidade do seu grupo ser assim atacado, Manoel Virgulino tenha dividido o grupo atacante e esta atitude ajudou a prolongar o cerco.

Outra vista da casa
Outra vista da casa – Foto – Rostand Medeiros

O combate se prolongava, a madrugada estava findando e os atacantes certamente sabiam que com o eco do tiroteio se expandindo pelas serras, logo outros companheiros das volantes estariam chegando.

Em dado momento, Meia-Noite pede garantia de vida para sua companheira. Para a sertaneja Zulmira aquela zoada, aquela tensão era demais. Os homens de Manoel Virgulino informam que ela estava garantida, que nada de mal ocorreria à jovem e que, se Meia-Noite quisesse, ele também estava garantido para seguir para sua cela em Princesa. Valentão e ousado, ir para cadeia era a máxima das desonras para Meia-Noite e a sua resposta foi outra série de impropérios e mais chumbo.

Mas diante da situação da jovem e das palavras dos seus inimigos que diziam que ele era covarde por manter a mulher na casa, houve uma trégua e Zulmira deixou a casa de farinha com alguns poucos pertences. Após a saída da sua amada, Meia-Noite despeja fogo e novos insultos contra seus inimigos.

Tenente Manuel Benício
Tenente Manuel Benício

Já são quatro horas de troca de tiros quando ecoa na serra o toque de uma corneta. Segundo Érico de Almeida (Op. Cit.Pág.66) era a volante do tenente Manuel Benício, acrescida do pessoal de Clementino Quelé e Francisco Oliveira, que estavam aquartelados no alto da serra do Pau Ferrado. Já Rodrigues de Carvalho (Op. Cit.Pág.284) informa que este grupo se encontrava em um sítio denominado Baixio, a 15 quilômetros da Tataíra e próximo a fazenda Patos, cujo proprietário era Marcolino Diniz. O autor narra as inúmeras dificuldades do grupo de policiais para alcançar a região do conflito e neste aspecto ele estava correto.

Visitando a região, esplendorosa em sua beleza serrana, não foi difícil de perceber o enorme grau de dificuldade que os policiais enfrentaram para chegar a Tataíra. Segundo o mapa em escala de 1:100.000, produzido pela SUDENE, a altitude onde se localiza o sítio Baixio é de quase 900 metros, o grupo então desceu em torno de 400 a 450 metros, para o vale onde se situa o antigo casarão da fazenda Patos e tornar a subir a uma cota superior a 800 metros, seguindo para a casa onde se encontrava o terrível e valente cangaceiro, isto tudo em uma época em que a cobertura vegetal era bem mais cerrada.

Entrevistado apontando onde a polícia estava. A casa da Tataíra está nas costas do fotógrafo - Foto - Rostand Medeiros
Entrevistado apontando onde a polícia estava. A casa da Tataíra está nas costas do fotógrafo – Foto – Rostand Medeiros

Certamente nesta hora o cangaceiro Meia-Noite deve ter se imaginado perdido, pois sabia que aquela corneta significava a chegada de uma Força Policial, que segundo Érico de Almeida (Op. Cit.Pág.67) chegava a 84 homens. Para a população local o número de combatentes contra o solitário Meia-Noite fica em torno de 100 a 120 homens. Independente do número exato, a desproporção era enorme e logo uma sinfonia de disparos ecoava pelas serras.

Mesmo assim, nem com a chegada dos reforços policiais, o valente alagoano refreou seu ímpeto, continuando a dizer todos os palavrões que conhecia e mandando bala. Logo dois membros da polícia foram feridos.

Manuel Moraes informou a seu filho que depois do “fogo”, os policiais comentaram na região que “-O negro tanto atirava, como dizia baixarias, recitava versos e até cantava”. Provavelmente Meia-Noite, sozinho dentro da casa, cantava, dizia palavrões e recitava versos populares, para aguentar o cansaço, a tensão e ter forças para continuar a luta.

A noite se encerrava. Dentro da casa de farinha Meia-Noite via as munições do fuzil, da pistola e do rifle escassearem rapidamente. Só tinha duas saídas; ou se entregar, ou sair para o “campo da honra” e lutar até a morte. No final das contas Meia-Noite sabia que iria morrer de qualquer jeito.

Outra área onde se posicionou as tropas policiais - Foto - Rostand Medeiros
Outra área onde se posicionou as tropas policiais – Foto – Rostand Medeiros

Os atacantes atiravam incessantemente, quando Meia-Noite gritou que iria sair. Certamente um frêmito de vitória correu no meio da tropa e possivelmente alguns até devem ter comemorado antecipadamente. Ele ainda alertou que a polícia preparasse as armas “-Que ele iria sair”. Durante cerca de dez a quinze minutos o silêncio imperou no campo de luta. Os atacantes imaginaram que o cangaceiro estaria morto ou ferido.

Existem duas versões para o que ocorreu a seguir: Rodrigues de Carvalho (Op. Cit.Págs.286 e 287) afirma que os atacantes, já perturbados com o silêncio prolongado, achando que Meia-Noite estava ferido ou morto, entraram no recinto e descobriram que ele havia sumido, havia desaparecido. O autor afirma que a quantidade tiros era tão grande, que a fumaça produzida pelas armas foi “capaz de anular a visibilidade”, que o cangaceiro aproveitou este momento e fugiu, deixando um rastro de sangue.

Já as pessoas da região, como Anastácio, Antonio Antas e outros, são categóricos em afirmar que Meia-Noite, após anunciar que ia sair, deu um tempo e então atirou um objeto com certo volume diante da casa de farinha. Quem estava de arma pronta meteu bala no que se projetou para fora da casa. Para uns, o que Meia-Noite jogou foi uma mala, para outros um caçuá e para outros um saco.

Região do Saco dos Caçulas - Foto - Rostand Medeiros
Região do Saco dos Caçulas – Foto – Rostand Medeiros

Depois dos inúmeros disparos no objeto, o ágil alagoano de 22 anos aproveitou enquanto o grupo de atacantes se municiava e partiu para fora da casa em desabalada carreira. O comentário na região foi que ele saiu atirando, gritando, colocando nova munição na câmara do seu fuzil, atirando novamente, pulando no meio dos soldados e descendo o aclive onde se situa a casa da Tataíra. Manuel Moraes informou ao seu filho que dois soldados, vendo a figura de Meia-Noite se aproximando, abandonaram o posto onde estavam e fugiram.

Mesmo conseguindo furar o cerco inicial, o grupo de atacantes não era pequeno. Mesmo com a visibilidade limitada pela pouca luz, com seu alvo correndo, um policial mais atento fez pontaria com seu fuzil e abriu fogo. O tiro atingiu uma das pernas do cangaceiro. Ele caiu, mas logo se levantou, pulou uma cerca, caiu de novo e continuou a fuga em meio a outros tiros.

Não encontrei na região ninguém para corroborar a afirmação de Rodrigues de Carvalho, mas todos são unânimes em comentar, sempre com uma ponta de espanto, a segunda versão da escapada de Meia-Noite.

Para as pessoas da região o sucesso inicial da fuga de Meia-Noite, se deveu a ele espertamente aproveitar o lusco fusco da manhã, àquela hora onde a visibilidade ainda não é plena. Houve igualmente um excesso de confiança dos atacantes em relação a sua superioridade numérica, fazendo com que ficassem desatentos. Outra possível causa pode estar no fato que o grupo de Manoel Virgulino, como as tropas de Benicio, Quelé e Oliveira, já estavam muito cansadas. Uns pelo cerco prolongado e os outros pelo sobe e desce de serras elevadas.

O certo é que mesmo em grande vantagem numérica, a tropa não se movimentou para caçar o fugitivo, mesmo ele estando ferido.

BUSCA DE UM ABRIGO

Rodrigues de Carvalho (Op. Cit.Págs.286 e 287) afirma que depois de baleado, em meio à fuga desesperada pelas serras, Meia-Noite teria quebrado um braço ao pular uma cerca. Após isso ele se encontrou com um agricultor, a quem lhe entregou uma pequena soma de dinheiro para ser entregue a Zulmira.

Já Anastácio Moraes afirma que foi um amigo de sua família que realmente se encontrou com o fugitivo. Ele se chamava Olegário Bezerra, era conhecido do cangaceiro, sendo proprietário de um pequeno sítio no lugar Bandeira, considerado uma pessoa humilde e honrado. Diante da situação vexatória, Meia-Noite entregou a Olegário grande parte do dinheiro que transportava e disse “-Olegário, pegue esse dinheiro aí. Se voltar eu pego novamente e se não voltar é seu”, fugindo em seguida.

Zulmira em um primeiro momento foi transportada para Princesa, onde ficou presa.

Na seqüência, segundo a versão oficial, apresentada por Érico de Almeida (Op. Cit.Pág.67) e Rodrigues de Carvalho (Op. Cit.Pág.288), Meia-Noite caminhou cerca de doze quilômetros até a casa de um agricultor, que aparentemente lhe dispensou todo cuidado e apoio. O benfeitor avisou ao ferido que iria buscar uma pessoa de confiança, que trabalhava com ervas e que iria preparar alguma coisa para cuidar do ferido. Mas ao invés desta buscar ajuda, ele foi atrás do Inspetor de Quarteirão da povoação de Patos, o valente Manoel Lopes Diniz, o conhecido “Ronco Grosso”. Este teria então vindo à casa do agricultor, acompanhando de mais quatro homens, dado voz de prisão a Meia-Noite, que resistiu e depois fora trucidado.

Manoel Lopes Diniz, o conhecido “Ronco Grosso” e sua esposa. Foto provavelmente da década de 1950 - Foto - Aldo Lopes
Manoel Lopes Diniz, o conhecido “Ronco Grosso” e sua esposa. Foto provavelmente da década de 1950 – Foto – Aldo Lopes

Para Anastácio e Antonio Antas a história foi “-Mais ou menos assim”. Eles me aconselharam então a procurar falar com uma fonte mais categorizada e que foi muito próxima de Manoel “Ronco Grosso” Lopes, o seu próprio filho.

Morando próximo da comunidade do Saco dos Caçulas, encontrei um homem que se chama Manoel Lopes Filho. Este tem com mais de 1,80 de altura, magro, mas ágil de corpo, cara de poucos amigos, de bigode, com uma aparência onde não se percebe sua idade acima de 70 anos.

Em um primeiro momento me olhou de uma maneira que me pareceu estar desconfiado. Sua voz é de barítono, grave e forte, da mesma forma que seu pai. Conforme conversávamos e ele percebeu que eu tinha certo conhecimento dos fatos, foi relaxando e ficando mais a vontade. Minha sorte foi me encontrar na companhia de Antônio Antas, seu amigo de longa data, pois Lopes Filho me confessou depois que não gosta de falar sobre o pai a pessoas estranhas.

Mesmo estando em um local calmo, na “rua” de um vilarejo que não possui nem 500 habitantes, ele me disse que era melhor irmos para um bar mais afastado da pequena comunidade, onde poderíamos conversar mais a vontade, sem a presença de pessoas indiscretas. Ao chegarmos a um barzinho que mais parecia um depósito, sentamos em uma mesa simples de madeira, com tamboretes velhos. Lopes Filho prontamente procurou ficar de costas para a parede e de frente para a porta.

Manoel Lopes Filho e Antônio Antas - Foto - Rostand Medeiros
Manoel Lopes Filho e Antônio Antas – Foto – Rostand Medeiros

Ele adiantou que em várias ocasiões seu pai lhe narrou diversos acontecimentos, diálogos que manteve com Lampião e outros cangaceiros. Não negou de forma alguma que “Ronco Grosso” foi homem de extrema confiança de José Pereira, onde seu pai realizava “-O que fosse necessário” para o chefe. Sobre Meia-Noite, Lopes Filho comentou que seu pai o considerava o cangaceiro mais valente e perigoso de todo o bando de Lampião.

Outra vista da região do Saco dos Caçulas - Foto - Rostand Medeiros
Outra vista da região do Saco dos Caçulas – Foto – Rostand Medeiros

No dia do tiroteio “Ronco Grosso” estava realizando tarefas na sua propriedade, logo soube do ocorrido na Tataíra e ficou alerta. Seu filho afirma que o velho Manuel Lopes não sabia da caçada a Meia-Noite ordenada por José Pereira e continuou sua lide normalmente. Nesse meio tempo o cangaceiro alagoano ferido chegou à casa do agricultor Zé Sabino, e este ajudou a levar Meia-Noite ao sitio de Manuel Lopes que era relativamente próximo.

O valente combatente trazia um pano amarrado à perna para estancar o sangue, além do braço machucado. Manuel Lopes, no dizer do seu filho, era um “raizeiro”, logo começou a cuidar do ferimento em um barraco que existia nas proximidades. Fez logo uma mistura de farinha, mastruz e pimenta malagueta para o ferimento na perna, que já estava ficando preto e entalou o braço de Meia-Noite. Gradativamente, com a aplicação dos remédios naturais, o cangaceiro foi melhorando.

O FIM DE UM VALENTE

Logo Manuel Lopes toma conhecimento que a volante de Manuel Benício estava nas proximidades rondando atrás do fugitivo. Sem saber que seu patrão estava interessado na eliminação do cangaceiro, Manuel Lopes levou Meia-Noite para uma pequena gruta existente nas proximidades e localizada no alto de um serrote. Segundo Lopes Filho, coube a um amigo de seu pai chamado João Bezerra, então um jovem de 18 anos, levar duas vezes por dia alimentação e água. Em 2008, mesmo debilitado, João Bezerra estava vivo com 102 anos.

Foto - Rostand Medeiros
Foto – Rostand Medeiros

Manuel Benicio soube através de outras pessoas que Manuel Lopes estava dando apoio a Meia-Noite, seguiu para sua propriedade com a intenção de cercá-la e tentar capturar o fugitivo. Antes de chegar a casa do homem de confiança de José Pereira, encontraram João Bezerra transportando uma bolsa com alimentos e uma cabaça d’água. Começaram a “arrochar” o jovem e ele “abriu o bico”, sobre o que estava fazendo. Entre seguir para o esconderijo onde estava Meia-Noite e pegar informações com Manuel Lopes sobre o que estava ocorrendo, Benício optou pela segunda alternativa.

Lopes Filho informa que “Ronco Grosso” ao saber da aproximação da volante, deixou a sua casa e seguiu em direção a Princesa para dialogar com José Pereira e saber o que significava aquilo. Para o filho de Manuel Lopes, se havia uma classe de pessoas a quem seu pai mais desprezava, de todas as maneiras, eram os policiais.

Em Princesa, no casarão de José Pereira, o chefe lhe informou de toda situação. Com relação à polícia, José Pereira foi enfático e disse que “Ronco Grosso” não se preocupasse que eles não lhe perturbariam. Mas em relação ao caso envolvendo Meia-Noite, José Pereira foi categórico “-Ele tinha que trazer as duas orelhas do cangaceiro e ponto final”.

Manoel Lopes nada tinha contra o cangaceiro alagoano, até o admirava pela valentia e coragem. Mas desobedecer a uma ordem direta de José Pereira, principalmente em um caso como este, era o mesmo que praticar o suicídio. Sem outro jeito ele busca o apoio de outro homem, conhecido como “Tocha”, tido como valente e disposto.

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Foto – Rostand Medeiros

Cerca de cinco dias depois do “Fogo da Tataíra”, já à noite, os dois homens se encarregaram de levar a comida e a água do cangaceiro. Ao chegaram à gruta, o arisco Meia-Noite estranhou a ausência de João Bezerra. Estranhou mais ainda a presença daqueles dois homens armados e conhecendo quem eles eram ficou muito desconfiado. “Ronco Grosso” e “Tocha” prontamente acalmaram o valente Meia-Noite. Comentaram que estavam juntos para se protegerem da polícia, mas o fugitivo não baixou a guarda, levou uma bala a câmara do fuzil e ficou a espreita.

Os dois matadores se preparavam para sair, ou assim diziam, quando perceberam uma distração de Meia-Noite, sacaram suas armas e abriram fogo. Este ainda ensejou um salto com uma pistola na mão, mas novas descargas o abateram.

Sem muita cerimônia eles enterraram o cangaceiro na parte externa dos grandes blocos graníticos que formam a pequena cavidade natural, mas antes cortam as orelhas como prova.  Antonio Antas disse que escutou muitas vezes Manuel Lopes comentar que foi “Tocha” que havia realizado a primeira deflagração. Este por sua vez afirmava taxativamente que fora “Ronco Grosso” quem efetuara o primeiro disparo.

Em relação à “prestação de contas” a José Pereira, não apenas Lopes Filho, Antonio Antas, como outras pessoas na região afirmaram que na tarde posterior a morte de Meia-Noite, os dois matadores foram ao casarão do chefe político de Princesa. Este estava em uma reunião com “pessoas gradas” da sociedade local, todos sentados na sala principal da casa, entre estes algumas senhoras. Os dois homens valentes, mas simples nos gestos e no vestir, ficaram aguardando mais reservadamente o chefe com um pacote nas mãos. José Pereira manda que eles se aproximem e pergunta animadamente, diante de todos, o que eles desejam. Eles ficaram calados, um tanto acabrunhados. O dono da casa, imaginando ser o silêncio daqueles homens rudes resultado da timidez por se encontrarem diante dos doutores do lugar e de suas senhoras, incentiva novamente para que eles falem, mesmo diante de todos.

A partir daí “Ronco Grosso” não se faz de rogado, abre o pacote retira um pano ensanguentado, que vai desenrolando e apresenta a todos as orelhas de Meia-Noite.

O espanto é geral, o embaraço de José Pereira é evidente. Mas eles cumpriram a risca aquilo que foi mandado conclusão.

CONCLUSÃO

Após a saída de Lampião de Princesa, ele ainda circulou pela região por alguns anos. Em 1929 seguiu para a Bahia e pouco retornou a Paraíba.

Provavelmente, até o fim de sua vida na Grota de Angico em 1938, Lampião devotou um enorme ódio a José Pereira. Para alguns, parte deste ódio estava ligado a morte de Meia-Noite, a quem o chefe cangaceiro sempre tratou com enorme respeito.

Foto - Rostand Medeiros
Foto – Rostand Medeiros

Existe uma versão na qual a razão da morte de Meia-Noite envolvia uma raiva que José Pereira teve deste cangaceiro, por ele ter feito uma piada, ou observações baixas e indecorosas, sobre a esposa do líder política de Princesa.

Entretanto, o próprio Lopes Filho considera esta versão falsa, ou criada para encobrir as verdadeiras intenções do político José Pereira.

Para ele o desejo do “dono” de Princesa com a eliminação de Meia-Noite, bem como a expulsão de Lampião da região, era afastar esta gente, para evitar que seus adversários na capital paraibana o tacharem de ser um reles “coiteiro de cangaceiros”. Outra situação que o entrevistado aponta, com razão, é o fato de Meia-Noite ser um arquivo vivo e sua pretensa eliminação ser efetuada para evitar problemas futuros.

Já em relação a uma versão propagada por muitos pesquisadores do cangaço, na qual José Pereira e Marcolino Diniz se compactuaram com Lampião, lhe dando proteção e apoio, em troca de dividirem o apurado conseguido em roubos, assaltos e outras ações por parte de Lampião, servindo como uma espécie de “banco”. Com a consequente expulsão de Lampião da região, José Pereira e Marcolino ficaram com todo o dinheiro.

Lopes Filho já havia ouvido sobre esta versão, mas de seu pai, que lhe contou muita coisa sobre aquela época, ele nunca ouviu nada em relação a esta situação.

Ao longo dos anos a região de Princesa presenciou outros acontecimentos ligados o cangaço. Mas o fato histórico mais importante ocorrido nesta cidade em todo século XX ficou conhecido como a Revolta, Sedição ou Guerra de Princesa.

Este foi um curto, mas intenso conflito ocorrido no sertão paraibano, ocasionada basicamente por divergências entre o governador eleito da Paraíba em 1927, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, e os coronéis monopolizadores da economia e política do interior do estado, encabeçados principalmente por José Pereira.

Durante cerca de quatro meses, com o apoio do Governo Federal e dos governadores de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, respectivamente Estácio de Albuquerque Coimbra e Juvenal Lamartine de Faria, José Pereira sustentou um sangrento conflito contra as forças públicas estaduais comandadas João Pessoa e pelo seu Chefe de Polícia, José Américo de Almeida.

Foto - Rostand Medeiros
Foto – Rostand Medeiros

Além das pessoas ligadas diretamente por vários laços a José Pereira, inúmeros ex-cangaceiros e desertores da polícia paraibana, formavam suas tropas. Marcolino Diniz, Manuel “Ronco Grosso” Lopes, “Tocha”, “Luiz do Triangulo” foram figuras de liderança e destaque dos combates. As narrativas conseguidas na região sobre a participação destes homens neste conflito dariam para escrever no mínimo três artigos como este.

Com a morte de João Pessoa em Recife, a deflagração da Revolução de 30, com a chegada ao poder de Getulio Vargas, a maré muda de lado e o conflito se encerra. Logo tropas do Exército ocupam Princesa e José Pereira foge e fica incomunicável durante anos. Anos depois chegou a ocupar uma cadeira no legislativo estadual paraibano.

Não deixa de ser interessante observar como estes fatos ainda se mantêm ativos na memória da população do lugar, mesmo entre os mais jovens. Mas fora desta região este conflito é praticamente desconhecido.

Sobre os participantes do caso Meia-Noite, sua amada Zulmira, razão do seu retorno para uma região tão perigosa, onde veio a morrer, foi em pouco tempo liberada da prisão e voltou para o convívio de sua família no Saco dos Caçulas. Logo, devido ao volume de sua barriga, ficou claro que a mesma estava grávida. Não sabemos exatamente o que ocorreu com a jovem, a sua relação com a família, com a gente do seu lugar e nem o nome do seu filho. Poucos descendentes de seus familiares ainda vivem na região e apenas apuramos que após o nascimento do seu filho, ela se mudou para Campina Grande, onde casou, teve outros filhos e já é falecida.

Marcolino Pereira Diniz não soube expandir as inúmeras riquezas recebidas como herança do seu pai, o coronel Marçal e morreu na pobreza. Antes disso teve seu amor pela sua amada esposa, conhecida como “Xandu”, imortalizado na música “Xanduzinha” e interpretada pelo inigualável Luiz Gonzaga.

Manuel Lopes, o “Ronco Grosso” viveu inúmeras situações de perigo e atribulações. Mas Lopes Filho e Antonio Antas afirmam que ele proliferou, teve vários filhos, os viu crescer, assistiu o nascimento de vários netos e morreu na tranquilidade de sua velhice.

Sobre “Tocha” sabemos que o mesmo seguiu para o sul do país, falecendo idoso na cidade paulista de Cubatão.

Segundo Anastácio Moraes e Antonio Antas, a única pessoa que realmente ganhou alguma coisa nesta história toda foi o humilde e honrado agricultor Olegário Bezerra, que seguiu a risca o que Meia-Noite lhe pediu.

Aproveitando o conhecimento dos mais experientes, junto com um doce de leita do sertão paraibano, na tranquila hospitalidade do nosso povo
Aproveitando o conhecimento dos mais experientes, junto com um doce de leita do sertão paraibano, na tranquila hospitalidade do nosso povo

Dedicatória – Dedico este trabalho a André Vasconcelos, a quem tive oportunidade de convidar para participar do recente trabalho que realizamos junto ao pessoal da TV Brasil e que em 5 de setembro de 2013 estará na telinha. Desejo a ele igualmente um ótimo trabalho com a TV FUTURA. Parabéns.

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AS BATALHAS ENTRE CLEMENTINO QUELÉ E LAMPIÃO EM SANTA CRUZ DA BAIXA VERDE – PE

Lampião, o Rei do Cangaço
Lampião, o Rei do Cangaço

“HOJE SÓ SE SALVA QUEM AVÔA”

Autor – Rostand Medeiros

Em um dia de agosto de 2006, uma sexta feira, na cidade pernambucana de Santa Cruz da Baixa Verde, em Pernambuco, tivemos a oportunidade de conhecer um homem, nascido em 1912, que pela sua lucidez e saúde, foi como encontrar um verdadeiro tesouro da história oral do cangaço.

Clementino José Furtado, o Clementino Quelé.
Clementino José Furtado, o Clementino Quelé.

Seu nome era Antônio Ramos Moura, sua residência uma casa ampla no sitio Conceição e o assunto foi os dois ataques perpetrados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seus cangaceiros, contra a casa do seu antigo parceiro, Clementino José Furtado, o Clementino Quelé, que após estes embates se tornou um dos mais esforçados perseguidores do “Rei do Cangaço”.

Antônio Ramos Moura, então com doze anos, foi testemunha destes episódios e detalhou vários aspectos de sua vida na época e rememorou inúmeros fatos. 

A Santa Cruz 

O atual município de Santa Cruz da Baixa Verde está localizado na região do Sertão do Alto Pajeú, na fronteira com a Paraíba. Fica distante 455 quilômetros de Recife, possui um agradável clima serrano e a cidade se caracteriza por concentrar na atualidade a maior quantidade de engenhos de rapadura de Pernambuco. Já as origens do local são oriundas do antigo “sítio Brocotó” e a atual denominação tem origem na ação de um missionário nordestino que possui uma história extraordinária.

Nascido em 5 de agosto de 1806, na Vila de Sobral, Ceará, José Antônio Pereira Ibiapina teve uma origem confortável. Mas devido a participação do seu pai Francisco Miguel Pereira na insurgência conhecida como Confederação do Equador, este foi fuzilado em 1825, e o irmão Alexandre seguiu preso para a ilha de Fernando de Noronha, onde morreu pouco tempo depois. Ibiapina teve que assumir e manter financeiramente a família.

Imagem mais conhecida do Padre Ibiapina - Fonte - http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=852&Itemid=1
Imagem mais conhecida do Padre Ibiapina – Fonte – http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=852&Itemid=1

Algum tempo depois ingressou no Curso de Direito do Recife, concluindo em 1832. No ano seguinte exerce o cargo de professor substituto de Direito Natural na Faculdade de Olinda. Depois foi eleito Deputado Geral e nomeado, em dezembro, Juiz de Direito da Comarca de Campo Maior, no Ceará. Concluídos os trabalhos legislativos, em 1837, Ibiapina voltou para o Recife e resolve exercer a advocacia. No entanto, ele passa a trabalhar efetivamente na profissão no estado da Paraíba. Em 1840 volta ao Recife e continua sua luta junto aos tribunais.

A partir de 1850 Ibiapina resolve abandonar seus trabalhos forenses e inicia um período dedicado à meditação e exercícios de piedade. Após três anos de meditação e reflexão, Ibiapina decide-se pelo sacerdócio. Nesse sentido, em 12 de julho de 1853, aos 47 anos de idade, ele se torna o Padre Ibiapina. Logo após sua ordenação, o Bispo Dom João da Purificação o nomeia Vigário Geral e Provedor do Bispado, além de professor de Eloquência do Seminário de Olinda.

Mas contrariando seus superiores, opta pela vida missionária. Padre Ibiapina começou então seu trabalho missionário pelo interior do Nordeste. Em diversas vilas construiu casas de caridade, destinadas a moças pobres. Em cada lugar ele pregava, orientava, promovia reconciliações, construía açudes, igrejas, cemitérios, cacimbas e cruzeiros. Um destes cruzeiros foi erguido no sítio Brocotó e ficou conhecido como Santa Cruz, sendo esta a denominação na época do cangaço.

Região serrana de Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco.
Região serrana de Santa Cruz da Baixa Verde, Pernambuco.

Com o passar do tempo, pelo fato da pequena urbe está no alto da Serra da Baixa Verde, o lugar passou a denominar-se Santa Cruz da Baixa Verde e pertencia administrativamente à bela cidade serrana de Triunfo.

Careta 

O pai do nosso entrevistado chamava-se Miguel Moura, tinha uma pequena bodega, além de trabalhar como tropeiro, ou almocreve. Tinha uma tropa de animais e fazia a linha entre as cidades de Triunfo, Serra Talhada e Arcoverde, na época denominada Rio Branco, trazendo e levando cereais. Antônio Ramos comentou que seu pai viajava para vários locais, transportando rapaduras. Inclusive o Rio Grande do Norte foi um dos seus destinos, onde esteve em Mossoró para comprar sal e também em Caicó.

O autor e o memorioso Antônio Ramos Moura.
O autor e o memorioso Antônio Ramos Moura.

Para nosso entrevistado Clementino Quelé, era chefe de sua família, tinha como irmãos Pedro, Quintino, Antônio, José e Manuel (nezinho), todos considerados homens dispostos, valentes e que “gostavam da espingarda”. Antônio Ramos comenta que na sua infância tinha um enorme respeito por aquele homem. Pouco falou com ele, mas obteve muitas informações sobre Quelé através de seu sogro Joaquim de Fonte, sobrinho do chefe da família Furtado.

Clementino é descrito como um homem forte, de tez acentuadamente branca, que realmente ficava com a pele vermelha quando tinha raiva e esta teria sido a razão de Lampião apelidá-lo pejorativamente como “Tamanduá Vermelho”.

praça principal da atual Santa Cruz da Baixa Verde, com a estátua do Padre Ibiapina em destaque.
praça principal da atual Santa Cruz da Baixa Verde, com a estátua do Padre Ibiapina em destaque.

Já para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello (in “Guerreiros do Sol”, 2004, págs. 220 a 225), Quelé era natural da ribeira do Navio, onde seguiu jovem para Alagoas, afastando-se de Pernambuco por questões de disputa familiar. No retorno a sua família vem para Triunfo, no sítio Santa Luzia. O antigo membro de volante João Gomes de Lira (in “Lampião-Memórias de um soldado de volante”, 1990, págs. 123 e 124) comenta ser a Santa Luzia a morada do bravo pernambucano.

Fachada da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em santa Cruz da Baixa Verde.
Fachada da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em santa Cruz da Baixa Verde.

Para Antônio Ramos, na época das grandes “brigadas” de Quelé contra Lampião, ele morava no sítio Conceição.

Independente desta questão consta para nosso entrevistado que Quelé e seus irmãos eram analfabetos “-De tudo”. Do tipo que “-Não assinavam nem o A” e nem faziam “-Garrancho” do nome. Dizia Quelé ao tio de Antônio Ramos que ele era “careta”, outra denominação para seu analfabetismo. Pois quando olhava para qualquer texto escrito, franzia a testa, mostrava o rosto carregado, com uma careta, por não saber ler.

Mas se Quelé e seus irmãos não sabiam ler, sabiam atirar e muito bem. 

De Homem da Lei a Cangaceiro 

Para Mello (op. cit.), o bravo Quelé alcançou o posto de subdelegado do seu lugar e impunha a ordem, mas igualmente angariava inimigos. O autor informa que em uma diligência Quelé matou dois ladrões de cavalo, respondeu processo e foi destituído do cargo. Em seu lugar assumiu seu irmão Pedro José Furtado, ou Pedro Quelé.

Em 1922, para livrar o valente chefe da família Furtado do processo, o líder político Aprígio Higino D’Assunção solicita deste e de seus irmãos votos na próxima campanha eleitoral em Triunfo. Diante da recusa de Quelé em apoiá-lo, Aprígio ordena que uma força policial com um oficial e quatorze praças saíssem à caça do valente.

Na tranquilidade do alpendre de sua casa, o sertanejo Antônio Ramos contou que um dia, certo morador do lugar chamado Tomé Guerra, antigo amigo de Quelé, arranjou uma encrenca com o mesmo e entendeu de matá-lo. Tomé chamou outro morador do lugar, também “chegado na espingarda”, de nome Cícero Fonseca. Estes, juntos com um grupo de policiais, colocaram uma tocaia contra Clementino ás cinco da manhã, “-Para pegá-lo com as mãos”.

O "major" Aprígio Higino D’Assunção,  que por três ocasiões foi prefeito em Triunfo e dono de cartório.
O “major” Aprígio Higino D’Assunção,
que por três ocasiões foi prefeito em Triunfo e dono de cartório. Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Duana Rodrigues Lopes, pág. 234.

Quelé ao perceber o ardil, pulou desviando dos tiros e respondeu ao fogo, atingindo certeiramente a cabeça de Cícero Fonseca, tendo o mesmo caído mortalmente ferido em um barreiro. Os outros membros da emboscada “botaram” em Quelé, que conseguiu fugir para sua casa. Clementino teria escapado através de um local onde havia um curral que pertencia a um cidadão conhecido como Sebastião Pedreiro e por uma área onde existia certa quantidade de cactos do tipo palma, utilizados como comida para o gado.

De paletó claro vemos  Aprígio Higino.  Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello ele foi o pivô que levou Clementino Quelé  a entrar no cangaço.  Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Diana Rodrigues Lopes, pág. 373.
Aprígio Higino e parentes. Para o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello ele foi o pivô que levou Clementino Quelé a entrar no cangaço.
Foto reproduzida a partir do livro “Triumpho, a corte do sertão”, de Diana Rodrigues Lopes, pág. 373.

Mello (op. cit.) aponta que um “certo Tomé de Souza Guerra”, do sítio Santana e outros homens engrossaram a força policial que perseguia Quelé. Mas Cícero Fonseca era um companheiro de Quelé, onde os dois bebiam na bodega de Sebastião Pedreiro, quando a polícia cercou o lugar e deu voz de prisão. Na versão do respeitado pesquisador, que conseguiu suas informações através do relato de Miguel Feitosa, o antigo cangaceiro Medalha, o pobre Cícero ao colocar o pé para fora da bodega foi crivado de balas.

Vendo que a força policial e os paisanos não vinham para prendê-lo, mas para exterminá-lo, Quelé solicita aos gritos o apoio de amigos das proximidades, estes atenderam ao chamado e a balaceira foi grande. Diante da resistência inesperada a força policial e os paisanos batem em retirada. 

Independente de qual a versão correta, todos são unânimes em afirmar que a partir deste confronto os perseguidores passam a “apertar” Quelé, sendo esta a verdadeira razão para ele e seus irmãos entrarem no cangaço junto a Lampião. 

A Briga de Quelé com o Cangaceiro Meia Noite 

O comerciante e almocreve Miguel Moura nutria uma boa relação com Clementino, a quem chamava de “primo”. Este comentou com seu filho que a razão de sua saída do bando de Lampião foi uma briga com o valente cangaceiro “Meia Noite”. 

Este era alagoano, do lugar Olho D’água, atual Olho D’água do Casado, próximo a cidade de Piranhas. Seu nome verdadeiro era Antônio Augusto Correia e pelo fato de possuir a pele negra, recebeu a famosa alcunha. Para o genitor de Antônio Ramos, o negro Meia Noite foi o mais valente de todos os homens que andaram com Lampião, do tipo de gente que “-Dava medo só de olhar”.Segundo Mello (op. cit.), a razão da briga entre Quelé e Meia Noite foram dois irmãos cangaceiros chamados José e Terto Barbosa. Este último havia assassinado no Ceará o irmão de um chefe cangaceiro, tendo se refugiado com seu mano na serra do Catolé, a cerca de 30 quilômetros da cidade pernambucana de Belmonte, próximo às fronteiras do Ceará e da Paraíba.

A região montanhosa de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da estrada que liga esta a cidade ao vizinho município de Manaíra,  já na Paraíba.
A região montanhosa de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da estrada que liga esta a cidade ao vizinho município de Manaíra, já na Paraíba.

Em uma ocasião que os cangaceiros de Lampião e Quelé se encontravam na fazenda Abóbora, pertencente ao tradicional coiteiro Marçal Diniz, chegou uma mensagem de José e Terto para seus tios Neco e Chico Barbosa, igualmente cangaceiros do bando de Lampião. O que os dois sobrinhos solicitavam aos tios era uma maneira de salvarem a pele.

Neco e Chico sabendo que o chefe cangaceiro cearense, conhecido como “Casa Velha”, cujo irmão foi morto por Terto, era amigo de Lampião, acharam por bem pedir a Clementino Quelé que recebesse os dois sobrinhos. O chefe dos Furtados,  junto com seus irmãos, se sobressaía cada vez mais no cangaço e não pôs obstáculo à entrada dos dois rapazes no seu grupo.

Quando Meia Noite soube da história se colocou totalmente contrário, pois foi amigo do homem morto por Terto Barbosa e disse que se ele viesse para o bando iria atirar nele. O resumo da ópera foi que após Quelé tomar conhecimento da alteração de Meia Noite, este se coloca ao lado de Terto. Quelé corajosamente disfere uma saraivada de impropérios contra Lampião, Meia-Noite e os outros cangaceiros. Segundo Mello (op. cit), Clementino teria dito textualmente “-Que juntassem tudo que ele brigava do mesmo jeito”.

O chefe dos Furtados percebeu que após este fato, ficar ao lado de Lampião e seu bando seria o mesmo que praticar um suicídio, pois o mais famoso cangaceiro do Brasil era conhecido pelo seu rancor.

A região de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da PE-365, que liga Triunfo a Serra Talhada.
A região de Santa Cruz da Baixa Verde, a partir da PE-365, que liga Triunfo a Serra Talhada.

Já nosso informante Antônio Ramos transmitiu uma versão diferenciada. Na ocasião destes episódios, o chefe dos Furtados estava junto com Lampião e seu bando em um esconderijo próximo a povoação de Patos, já na Paraíba, onde o problema ocorreu no momento em os tios de Terto trouxeram uma carta dos sobrinhos para Quelé e lhe contaram o problema. Quelé então teria solicitado que alguém lesse a dita mensagem em voz alta. Nisto o cangaceiro Meia Noite ouviu sobre o conteúdo da missiva e desconfiou que Quelé fosse colocar aqueles indivíduos como integrantes do bando.

Vista da Serra do Catolé, em Belmonte, Pernambuco.
Vista da Serra do Catolé, em Belmonte, Pernambuco.

Segundo o entrevistado, Meia Noite conhecia os “Barbosas”, contra quem já havia brigado, era inimigo dos mesmos, principalmente de Terto. O negro alagoano ficou cismado que Quelé, ao colocar aquela turma de valentes no bando, seria um meio para Terto, dos “Barbosas da Serra do Catolé”, dar fim a sua vida.

Quelé ao saber do fato negou. Disse a Meia Noite que “-Gostava de homem valente”, que os “Barbosas” eram pessoas que ele tinha “-Para onde botar”. Meia Noite comentou que sendo Terto seu inimigo, se por acaso ele trouxesse os “Barbosas” para perto do bando, “-Sabia que ia ser uma desgraça, que nóis briguemo e ficou para quando nóis se encontrar, a bala cortar”. Antônio Ramos narrou que Quelé ponderou, afirmando que “-Quando o homem é valente, que pede uma proteção, eu gosto de amparar”.

A discussão entre estes guerreiros foi gradativamente aumentando de tom, crescendo na ferocidade, até que os dois valentes partiram para a luta corporal. Lampião chamou seus homens rapidamente dizendo “-Acode, acode, se não estes homens se matam” e conseguiram apartar a briga. Para o entrevistado Lampião disse a Quelé “-Que deixasse o negro Meia Noite com ele, pois parecia que ele tinha saído do inferno” e pediu a Clementino e seus irmãos para irem para o sítio Conceição. 

Antônio Ramos relata que depois da discussão, Quelé aparentemente não se satisfez com o posicionamento de Lampião e reclamou. No entendimento do chefe dos Furtados, Lampião “-Teria dado mais valor a um negro do que a ele”. Sentindo-se rebaixado no seu racismo tardio, Quelé abandonou a vida do cangaço e ficou marcado por Virgulino.Outra informação ouvida por Antônio Ramos dá conta que no momento em que Clementino Quelé e seus parentes saíram da região dos Patos e do bando de Lampião, um dos seus parentes, filho de certa “Luzia Lalau” e um tal de Ricardo, pessoas de Santa Cruz, ficaram no bando de Lampião.

Os tiroteios de Lampião contra Quelé 

Seja através de uma, ou de outra versão, o certo é que tempos depois desta desavença no seio do bando, o chefe Lampião, apoiado pelo fazendeiro Marcolino Diniz, filho do coronel Marçal, vem para Santa Cruz com o objetivo de matar Clementino e seus irmãos. Este encontro ocorreu no dia 5 de janeiro de 1924, um sábado.

Segundo informações coletadas em Santa Cruz da Baixa Verde, esta casa reformada teria sido a fortaleza de Clementino Quelé. Entretanto este dado ficou inconclusiva devido a divergências em relações a outras informações que foram apuradas na região.
Segundo informações coletadas em Santa Cruz da Baixa Verde, esta casa reformada teria sido a fortaleza de Clementino Quelé. Entretanto este dado ficou inconclusivo devido a divergências em relações a outras informações que foram apuradas na região.

Antônio Ramos informa que era um “-Meninote de doze anos”, que a sua casa antiga era próxima a sua atual morada e seu pai possuía uma bodega pequena, mas bem surtida. 

Era ainda de madrugada, quase amanhecendo, quando o jovem Antônio Ramos acordou com o barulho de muitas vozes de homens no oitão da sua casa. Era um grupo numeroso de cangaceiros. O garoto notou que todos vinham alegres, animados, equipados, armados e com muita munição. Muitos deles estavam embalados por aguardente e segundo suas próprias palavras, os cangaceiros pareciam estar “-Com fogo saindo pelas orelhas”.Eles pediram tudo que seu pai tivesse de comida no estabelecimento, além de mais cachaça. Este prontamente passou a servir o bando, especialmente Lampião. Os homens armados não fizeram nada com seu pai ou sua família nesta ocasião.

Antônio assistiu Lampião comendo uma rapadura com queijo e comentando alegremente com a rapaziada sobre a futura luta. Ele se apresentava animado, doido para brigar. Neste momento pronunciou uma frase que Antônio Ramos jamais esqueceu.

“-Da família de Quelé, hoje só se salva quem avoa”.

O Rei do cangaço ainda afirmou que “

 Hoje eu vou beber o sangue de todo mundo”.

Nesta ocasião, durante o nosso encontro, o nonagenário entrevistado alterou-se, ficando visivelmente emocionado. Ele recordou que se tremeu todo, no momento que escutou estas frases do famoso bandoleiro. Comentou veementemente que viu Lampião falar exatamente da forma anteriormente descrita e narrou este fato agarrando fortemente o braço do autor, tal a emoção.

Outra imagem da casa onde pretensamente ocorreu a batalha.
Outra imagem da casa onde pretensamente ocorreu a batalha.

Ele descreveu Lampião como sendo moreno, alto, rosto comprido, cego de um olho, não usava óculos naquele dia e que mesmo assim enxergava bem. Pouco tempo depois o bando saiu da bodega. 

A desproporção da luta que se avizinhava era enorme, pois Quelé tinha junto com ele apenas outros cinco companheiros para lhe ajudar. Para Antônio Ramos os cangaceiros seriam em torno de “-Uns cinquenta homens”. Já Carvalho (op. cit.) afirma que seriam quarenta e cinco.O pesquisador Geraldo Ferraz de Sá Torres Filho (in “Pernambuco no tempo do Cangaço-Volume I”, 2002, págs. 328 a 330) reproduz o “Boletim Geral nº 05”, emitido pela polícia pernambucana no dia 7 de janeiro de 1924, onde consta que o número de cangaceiros era de sessenta homens. 

Mas para os familiares de Antônio Ramos, naquele momento o que importava era buscar de alguma maneira se proteger dentro de casa diante do que iria acontecer e em pouco tempo “-A bala comeu”. Ele e seus familiares ficaram escutando o tiroteio, mas não lembra a duração, só comentou que “-Demorou muito”.

Falou que “-Quando deu fé”, chegou a sua casa um rapaz da família de Quelé com cerca de 16 anos, dizendo que estava dentro de um partido de mandioca quando os cabras chegaram e comentou que “-A bala tava cortando tudo”. Narrou que o rapazinho tinha escutado os gritos dos cangaceiros prometerem: “-Derrubar a casa” e o pessoal da casa avisando aos gritos para os atacantes que 

“- Se derrubar e entrar um, nóis mata na faca”.

A testemunha da batalha de 5 de janeiro de 1924 afirmou que este rapaz avisou que iria a Triunfo buscar uma volante. Nesta cidade o delegado era o tenente Malta e havia uma volante comandada pelo sargento Higino José Belarmino.

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Edição do jornal recifense “A Notícia”, de 14 de janeiro de 1924, existente na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, informando erroneamente sobre a ação da polícia, durante o segundo ataque de Lampião contra Quelé.
Edição do jornal recifense “A Notícia”, de 14 de janeiro de 1924, existente na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, informando erroneamente sobre a ação da polícia, durante o segundo ataque de Lampião contra Quelé.

O jovem disse que seguiria através de um caminho alternativo, evitando a vereda que levava normalmente para esta cidade, pois com certeza os cangaceiros deviam ter “-Botado uma emboscada aculá na frente”. O jovem deixou a casa de Ramos, seguindo em direção a serra dos Nogueiras, saindo no lugar chamado Gameleira e de lá para Triunfo.

Entretanto, para nosso entrevistado, a polícia ficou “insonando”. No seu linguajar típico, onde Antônio Ramos utilizava expressões difíceis de serem ouvidas atualmente no sertão nordestino, ele quis dizer que os homens da lei ficaram enrolando e só foram chegar a Santa Cruz por volta das 11 horas da manhã.

Esta volante levou várias horas para percorrer os seis quilômetros entre as duas localidades. Provavelmente para os policiais, a ocorrência em Santa Cruz era um problema entre bandidos e quanto mais deles se matassem entre si, melhor. Mas diante da resistência feroz realizada por Clementino e seus companheiros, a polícia se deslocou para evitar a pecha de conivência e covardia.

Apesar da evidente falta de vontade dos policiais de irem a lutar, ficamos imaginando o conflito dentro da própria volante, entre aqueles que queriam ir e dos que não queriam, pois certamente nem todos eram covardes e honravam a farda que vestiam.

Enquanto isso a família de Quelé, literalmente “comia chumbo” e o tiroteio não dava mostras de diminuir. A casa sofria diante da quantidade de tiros, em mais de seis horas de batalha ininterruptas. Antônio Ramos e seus familiares, até por razões bastante óbvias, não viram nada da refrega, apenas escutaram assustados a troca de disparos.

Nosso entrevistado comentou que nesta época morava na sua casa um primo chamado Augusto e foi este quem primeiro ouviu um tiro de fuzil. Esta arma possuía um som característico e bem diferente dos rifles Winchester, de calibre 44, ainda bastante utilizados pelos cangaceiros e pelo pessoal de Quelé. O som lhe chamou a atenção e mostrava que a polícia estava chegando, vindo pelo caminho que seguia para a pequena Santa Cruz, que nessa época era um simples arruado “-Com no máximo quatro casas”.

Aparentemente a Força Policial começou a atirar com seus fuzis muito antes de chegar ao local do confronto, esperando que assim os cangaceiros debandassem. Mas segundo o nosso informante, foi nesse momento que o tiroteio ficou ainda mais forte, “-Com a fumaça cobrindo tudo” e as balas “-Zunindo por riba de casa”, o que deixou os membros da sua família extremamente assustados. Podemos deduzir através de suas informações que, de alguma maneira, a sua casa ficou entre o fogo cruzado.

O aposentado coronel Higino José Belarmino,  em foto de Josenildo Tenório, de 1973.  Reprodução feita a partir da página 50 do livro “Lampião, o cangaceiro e o outro”, de Fernando Portela e Claudio Bojunga, edição 1982.
O aposentado coronel Higino José Belarmino,
em foto de Josenildo Tenório, de 1973.
Reprodução feita a partir da página 50 do livro “Lampião, o cangaceiro e o outro”,
de Fernando Portela e Claudio Bojunga, edição 1982.

Segundo Ferraz (op. cit.), no “Boletim Geral nº 05” encontramos a informação que o tiroteio morreu o irmão Pedro Quelé e Alexandre Cruz, ficando ferido Deposiano Alves Feitosa. Antônio Ramos narra que seu pai considerava Pedro Quelé como um homem valente. Na região ficou conhecido o fato que quando acabou a sua munição, este pediu garantias para sair, mas ao colocar a cabeça para fora da janela, foi impiedosamente morto.

Depois de toda uma batalha tenaz onde não tivera êxito, Virgulino Ferreira da Silva não refreou sua vontade de acabar com o atrevido Clementino Quelé.Ferraz (op. cit.) mostra que no “Boletim Geral nº 07”, da polícia pernambucana, emitido no dia 9 de janeiro de 1924, reproduz um bilhete do tenente Malta informando “Acha-se grupo de Lampião proximidade de Santa Cruz”. O militar ainda comentou na missiva que contava com “89 praças” para defender Triunfo e região.

Mesmo com esta força nas proximidades, seis dias depois, no dia 11 de janeiro, uma sexta-feira, Lampião e seus homens voltaram para aplicar uma segunda dose de chumbo em Quelé e seus companheiros.

Santa Cruz da Baixa Verde em 1951, durante uma visita de Frei Damião.
Santa Cruz da Baixa Verde em 1951, durante uma visita de Frei Damião.

Antônio Ramos recordou muito bem que em relação a este combate, percebeu que o sol já vinha saindo quando o tiroteio teve início e novamente a história se repetiu. De um lado os cangaceiros sedentos de sangue e do outro um pequeno grupo de homens se defendendo como podiam.

Segundo Lira (op. cit.), Lampião despejava todo tipo de impropérios e palavrões conhecidos contra o destemido Quelé e seu pessoal. Mas os sitiados respondiam, cantavam e assim irritavam o chefe dos cangaceiros.

Mesmo com uma força policial numerosa em Triunfo, novamente os agentes de segurança do Estado levaram outras seis longas horas para chegarem a Santa Cruz, repetindo-se o que ocorreu no domingo anterior. De toda maneira Clementino só conseguiu se safar pela chegada do destacamento policial baseado em Triunfo.
Para Antônio Ramos, consta que Quelé tinha um parente de nome José, apelidado “José Caixa de Fósforo”, que parece ter estado nos dois tiroteios.

Apesar do antigo cangaceiro de Lampião sair vivo nestes combates, a família Furtado foi praticamente exterminada. Segundo Mello (op. cit.), tanto neste, como em combates futuros, morreram três irmãos, dois genros e um sobrinho. Além destes seis parentes, segundo o pesquisador, mais cinco amigos do valente Quelé pagaram com a vida e inúmeros outras pessoas ligadas a Clementino ficaram feridos.

Casa antiga da região de Santa Cruz da Baixa Verde.
Casa antiga da região de Santa Cruz da Baixa Verde.

Em relação aos confrontos de janeiro de 1924, Antônio Ramos contou que uma das casas que foi palco dos dramas ainda existia e que na época era considerado um sítio afastado da então vila. Tentamos localizar o local. Chegamos a fotografar uma residência antiga, mas reformada. Entretanto houve divergências com outros informantes, que comentaram ter sido as casas da família de Quelé derrubadas há muito tempo. 

Independente da residência correta onde aconteceram os tiroteios, fomos informados por pessoas da região, nascidas anos após os episódios, que seus parentes mais velhos narravam que quando estes seguiam para capinar nas proximidades das antigas vivendas, a coisa mais comum era encontrar capsulas deflagrada de rifles e fuzis. 

O Vingador do Sertão 

Depois dos tiroteios, Quelé ficou meio perdido pela região, sendo protegido por Higino Berlarmino. Para Antônio Ramos, foi o coronel José Pereira, o chefe político da vizinha cidade paraibana de Princesa, que deu o apoio decisivo para Quelé se tornar um implacável caçador de Lampião.

Sentado vemos Marcolino Diniz e seus comandados durante a Guerra de Princesa.
Sentado vemos Marcolino Diniz e seus comandados durante a Guerra de Princesa.

Após o grande assalto de cangaceiros ocorrido na cidade de Sousa, em 27 de julho de 1924, Pereira exigiu que seu parente Marcolino Diniz não desse mais apoio a Lampião e o expulsasse da região dos Patos. Por indicação de alguém que Antônio Ramos não recorda, foi sugerido ao “dono” de Princesa o nome de Quelé, para que este servisse no comando de uma volante em perseguição a Lampião. A solicitação foi feita ao então governador paraibano João Suassuna e Clementino Furtado passa a ser conhecido como o Sargento Quelé. (Sobre um episódio envolvendo o Sargento Quelé na Guerra de Princesa ver – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/06/07/a-batalha-do-casarao-dos-patos/)

Sua volante, a famosa “Coluna Pente Fino”, ficou marcada na história do cangaço pela selvageria como combatia os cangaceiros e infligia o terror aos coiteiros. Muitos parentes fizeram parte do grupo. Se não faltam relatos de valentia do seu pessoal, infelizmente não faltam informações que inúmeros inocentes sofreram nas mãos dos homens de Quelé, além de inúmeros atos de pura rapinagem.

De toda maneira o “investimento” do governo da Paraíba em Quelé não foi em vão. Três anos e meio depois dos combates em Santa Cruz, no dia 14 de junho de 1927, ele e seus homens serão a primeira força policial a adentrar em Mossoró, após a fracassada tentativa de Lampião para conquistar a maior cidade do interior potiguar. Nesta ocasião consta que no currículo de combates de Quelé contra o Rei do cangaço, estavam listados vinte e um tiroteios.

Para Antônio Ramos, mesmo com toda coragem e capacidade para caçar cangaceiros, foi o analfabetismo de Quelé que deixou que ele permanecesse nas fileiras da polícia da Paraíba apenas com a graduação de sargento.

Provável túmulo do Sargento Clementino Quelé, na cidade da Prata, Paraíba.
Provável túmulo do Sargento Clementino Quelé, na cidade da Prata, Paraíba.

Quelé morreu já idoso na Paraíba, na cidade de Prata, próximo ao município de Monteiro. Segundo Antônio Ramos, ele sempre vinha visitar o sítio Conceição e a pequena Santa Cruz. (Ver – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/08/22/o-descanso-de-um-guerreiro-nordestino-no-riacho-da-prata/)

As histórias das lutas entre Clementino Quelé e Lampião se tornariam verdadeiras lendas no imaginário dos nordestinos. Aparentemente um destes que se encantou com as lutas de Quelé foi Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”. Em parceria com José Marcolino, o sanfoneiro de Exu compôs a música “No Piancó”, onde em um trecho diz;

“Lá viveu o Clementino / Que brigou com Lampião.”

Não posso garantir que o Clementino descrito na música do grande artista pernambucano, seja o mesmo homem que perseguiu implacavelmente Lampião.

Mas houve outro?

A morte do pai de Antônio Ramos

Um dia, em 1926, segundo o entrevistado, o terrível chefe bandoleiro Sabino, acompanhados dos cangaceiros Juriti, Ricardo e outros, vieram de um lugar próximo chamado Lagoa do Almeida, da família dos Marianos e seguiram para a casa do senhor Manuel da Cruz. Este era um fazendeiro, tendo sido comentado aos cangaceiros ser um homem que possuía muito dinheiro Como este não foi encontrado, os cangaceiros continuaram seguindo em direção a pequena povoação de Santa Cruz.

Sabino fotografado montado em 1927, na cidade cearense de Limoeiro do Norte,  logo após o fracassado ataque a Mossoró.
Sabino fotografado montado em 1927, na cidade cearense de Limoeiro do Norte,
logo após o fracassado ataque a Mossoró.

No caminho passaram adiante da casa de Miguel Moura. Como um dos cangaceiros era afilhado de batismo da mãe do entrevistado, por força do parentesco, pediu a Sabino, Juriti e Ricardo, que fossem na casa do sítio Conceição, ver se “arranjavam alguma coisa” com sua madrinha, que ele ficaria de fora.

A chegarem ao pequeno comércio, Sabino e os outros entram e passam a torturar Miguel Moura a ponta do punhal, para o mesmo dar conta do dinheiro que conseguia com o transporte nos burros. Na casa do pai do entrevistado se encontrava uma empregada da vizinha Isabel Correia, conhecida como Zabê e esta senhora foi a vivenda do entrevistado para moer milho. Os cangaceiros quiseram lhe arrebatar uma aliança, mas ela conseguiu tirar a joia do dedo e colocou-a na boca. Os cangaceiros exigiram o objeto de valor e a mesma recusou-se a entregar. Os bandidos passam a ação, tentando forçar a mulher a entregar a aliança e começa uma luta. A empregada lutou tão bravamente que teria quebrado o nariz do seu atacante. O próprio Sabino mandou soltá-la, tendo dito que “-Esta é uma desgraça que nem o diabo pode”. A mulher foi embora correndo com a aliança.Na casa da vizinha Zabê, que possuía certa quantidade de ouro, eles chegaram e arrastaram o que puderam, mandando inclusive a mulher tirar os brincos ou “-Cortariam com o pedaço da orelha”. O marido da mesma, Manuel Correia, foi chegando a casa e os cangaceiros o renderam com pistolas, que colocaram no pescoço do mesmo.

Para o pai do entrevistado a sorte não foi tão boa. Disseram que ele era rico, mas Miguel Moura comentou que gastava muito na propriedade. Daí Sabino ordenou que em oito dias ele conseguisse um conto de réis, sob pena de morrer.

O pai do entrevistado sofria do coração e diante de toda a tensão provocada pelas ameaças, veio a ter um ataque cardíaco. Sem assistência médica, que era muito difícil na época, morreu nove dias depois da “visita” dos cangaceiros.

Depois destes fatos, o nosso entrevistado e a família foram para Triunfo, onde perderam a roça e tiveram muitos prejuízos. Seguiram depois ao Juazeiro, para uma entrevista com o Padre Cícero, que os aconselhou a não voltar logo para casa.

Este fato foi testemunhado pela irmã de Antônio Ramos, criança a época, que se encontrava brincando defronte a casa no momento da passagem dos cangaceiros, tendo ela visto e escutado tudo.

Se para alguns, Sabino é apontado como “revolucionário”, para Antônio Ramos, ele é tão somente um arrogante bandido, cruel ladrão e frio assassino.

Me foi informado que esta antiga edificação amarela teria sido a casa comercial da família Campos em Triunfo, atacada por Sabino em 1926.
Me foi informado que esta antiga edificação amarela teria sido a casa comercial da família Campos em Triunfo, atacada por Sabino em 1926.

No dia 7 de julho de 1926, Sabino e seu grupo foram a Triunfo para assaltar a cidade. O bando fez muita bagunça, atacando a loja de tecidos de Antônio de Campos, o maior comerciante da cidade. Os cangaceiros levaram até um machado para furar o cofre, mas não conseguiram, passando a tocar fogo n estabelecimento. Segundo Ramos, na ocasião se encontravam na cidade dois soldados, de nome José Sabiá e José Piauí, que foram atacados pelo bando. O inusitado foi que Sabiá morreu com apenas um tiro e o Piauí, mesmo levando sete tiros, escapou com vida.

Início da extensa reportagem divulgada no jornal recifense “A Província”,  edição do dia 10 de julho de 1926, dando conta do ataque de Sabino a Triunfo.
Início da extensa reportagem divulgada no jornal recifense “A Província”,
edição do dia 10 de julho de 1926, dando conta do ataque de Sabino a Triunfo.

Para Lira (op. cit. pág.401) Sabino e seus homens entraram na cidade serrana quando se encontravam apenas quatro militares para protegê-la e corrobora a afirmação de Antônio Ramos quando escreve que “o soldado que foi morto tinha o apelido de Sabiá”.

A última vez que Antônio Ramos viu Lampião e seu bando

Depois que o nosso informante e sua família voltaram à antiga casa do sítio Conceição, eles procuraram seguir a vida. Mesmo diante da situação, o jovem Antônio Ramos não deixou de estudar. Em um dia de 1927, estava ele por volta das onze da manhã em uma escola nas proximidades de Triunfo, junto com um professor nascido na cidade de Floresta, quando chegou um grupo de cavalarianos armados e equipados. A princípio o mestre pensou que fossem policiais, mas o entrevistado comentou com segurança que “-Aquele ali é Lampião, eu conheço”. Segundo ele eram em torno de “-130 cangaceiros”, todos equipados, com chapéu de couro quebrado, cheio de medalhas, fuzis, cada um levando dois bornais e cartucheiras. Antônio Ramos ficou se perguntando como eles lutavam com tanto equipamento.

Antônio Ramos
Antônio Ramos

Entre os cangaceiros, nosso entrevistado conhecia um deles. Chamava-se Isaías Vieira, e era de um lugar conhecido como Xique-Xique. Havia sido ladrão de bodes, que após ser preso apanhou muito e havia entrado no cangaço por vingança.

Nesta ocasião todos os cangaceiros estavam a cavalo, pegando animais descansados e deixando os que estavam viajando. Comentou que apenas às seis da noite, uma volante da polícia de Alagoas passou na região seguindo o bando. Este grupo era comandado por um militar conhecido como “tenente Arlindo”. A ocasião desta visita foi próximo ao mesmo período em que ocorreu o ataque a Mossoró.

Cruz em Santa Cruz da Baixa Verde, que mostra um local onde alguém morreu de "morte matada".
Cruz em Santa Cruz da Baixa Verde, que mostra um local onde alguém morreu de “morte matada”.

A bibliografia mostra o quanto aparentemente nosso informante estava certo, mesmo com algumas pequenas alterações. O Pesquisador José Alves Sobrinho, da cidade de Serra Talhada, em Pernambuco (in “Lampião e Zé Saturnino-16 anos de luta”, 2006, pág. 112), comenta que na mesma época que Lampião seguia para Mossoró, passou na zona rural de Vila Bela, a antiga denominação do município de Serra Talhada, na fazenda Barreiras, de propriedade de Martins Venâncio Nogueira, conhecido como Martins da Barreira. Segundo o autor, o proprietário da fazenda Barreira conversou longamente com Lampião naquele dia e afirmou que junto ao chefe estavam “118 cangaceiros”. 

Segundo Lira (op. cit pág. 379.) comenta que em fins do mês abril de 1927, este grande grupo de cangaceiros estava sendo realmente sendo seguido por uma força volante comandada pelo militar Arlindo Rocha, que salvo engano seria da polícia pernambucana e possuía a patente de sargento. 

Antônio Ramos informou que nunca leu um livro sobre cangaço, que conta por que sabe e viu. Os fatos envolvendo Lampião e o cangaço era informação corrente na região. Tudo era narrado de boca em boca, nas feiras, nas ruas. Detalhes sobre a intriga dos Ferreiras com os Saturninos de Vila Bela, a história do chocalho, as brigadas e tudo mais que levou Lampião a entrar no cangaço, era muito repetido. Apenas em uma ocasião Antônio Ramos viu uma revista com a foto das cabeças cortadas em Piranhas, Alagoas, após o ataque que deu cabo de Lampião e acha que era ele mesmo.

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