O RETORNO DOS MERCENÁRIOS

Há Dois Séculos, os Exércitos Públicos Substituíram os Privados Como Instrumento Dominante de Guerra. Agora, os Exércitos Privados Estão de Volta e com Força Total!

Sean McFate

É uma história familiar – Uma superpotência entra em guerra e enfrenta uma insurreição mais forte do que o esperado em terras distantes, mas tem forças insuficientes para a combater devido a restrições políticas e militares. A superpotência decide contratar empreiteiros, alguns dos quais armados, para apoiar o seu esforço de guerra. Os contratantes armados revelam-se simultaneamente uma bênção e uma maldição, fornecendo serviços de segurança vitais para a campanha, mas por vezes matando civis inocentes, causando reveses estratégicos e prejudicando a legitimidade da superpotência. Sem estes empreiteiros, a superpotência não poderia travar a guerra. Com eles é mais difícil vencer.

Encenação com utilização de trajes de mercenários medievais Fonte – https://www.medievalchronicles.com/wp-content/uploads/2020/08/Medieval-Times-Soldiers.jpg

Os contratantes armados em questão não estão no Iraque ou no Afeganistão, mas no norte da Itália, e o ano não é 2007, mas 1377. A superpotência não são os Estados Unidos, mas o papado sob o Papa Gregório XI, lutando contra a liga antipapa liderada pelo ducado de Milão. O trágico assassinato de civis por empreiteiros armados não ocorreu em Bagdá, mas em Cesena, 630 anos antes. As empresas militares empregadas não eram DynCorp International, Triple Canopy ou Blackwater, mas sim a Company of the Star, a Company of the Hat e a White Company.

Conhecidos como empresas livres, estes guerreiros com fins lucrativos eram organizados como corporações, com uma hierarquia bem articulada de subcomandantes e maquinaria administrativa que supervisionava a distribuição justa do saque de acordo com os contratos dos funcionários. Capitães semelhantes a CEOs lideravam essas corporações militares medievais.

Mercenários do regimento Glarus vencem o rei Henrique IV da França no campo de batalha de Arques em 1589 – Fonte – https://www.swissinfo.ch/eng/culture/mercenary-trade-paid-for-peace-and-prosperity/31568266

Os paralelos entre as empresas militares privadas (PMCs) medievais e contemporâneas são fortes. Hoje, os Estados Unidos e muitos outros contratam empreiteiros para cumprir contratos relacionados com a segurança nos locais mais perigosos do mundo. No final da Idade Média, esses homens eram chamados de condottiere – literalmente, “empreiteiros” – que concordavam em realizar serviços de segurança descritos em contratos escritos, ou condotte.

Tanto os empreiteiros modernos como os medievais eram organizados como empresas, e os seus serviços estavam disponíveis para o maior ou mais poderoso licitante em busca de lucro. Ambos preencheram suas fileiras com homens de armas profissionais vindos de diferentes países e leais principalmente ao contracheque. Ambos funcionaram como exércitos privados, geralmente oferecendo competências de combate terrestres em vez de capacidades navais (ou aéreas) e mobilizando a força de forma militar e não como forças de aplicação da lei ou policiais.

Os Mercenários Estão de Volta

Outrora brandidos como bandidos vilões, estão a emergir das sombras para se tornarem mais uma vez num instrumento dominante da política mundial. Os Emirados Árabes Unidos (EAU) contrataram centenas de mercenários latino-americanos para combater os Houthis apoiados pelo Irão no Iémen. Depois de anos de luta contra o Boko Haram, a Nigéria finalmente contratou mercenários para fazer o trabalho, e eles o fizeram. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, enviou mercenários para “libertar” o leste da Ucrânia, um conflito que ainda ferve. Os mercenários estão supostamente trabalhando em partes do Iraque.

Os Estados não são os únicos consumidores no mercado da força. A indústria extrativista e as organizações humanitárias contratam mercenários para proteger as suas pessoas e os seus bens nos locais mais perigosos do mundo. Navios cheios de empreiteiros armados atuam como corsários no Golfo de Omã e em outras águas infestadas de piratas.

Os mercenários perseguem o ciberespaço como “empresas de hack-back”: ciber mercenários que hackearão aqueles que hackearem os seus clientes, dissuadindo os hackers em primeiro lugar.

Em 2008, a atriz Mia Farrow considerou contratar a Blackwater para realizar uma intervenção humanitária em Darfur para acabar com o genocídio ali. Alguns, como Malcolm Hugh em Privatizing Peace (2009), pensam que os mercenários deveriam aumentar a diminuição das forças de manutenção da paz das Nações Unidas, um argumento com algum mérito. Outros sugeriram que a comunidade internacional os utilizasse para derrotar o Daesh/ISIS, e os super ricos brincaram com a possibilidade de utilizar mercenários para os seus próprios fins.

Os mercenários lutam principalmente pelo lucro e não pela política ou pelo patriotismo. A palavra ‘mercenário’ vem do latim merces (‘salários’ ou ‘pagamento’); hoje, conota vileza, traição e assassinato. Mas nem sempre foi assim.

Ao Longo da História

Durante grande parte da história, ser mercenário foi considerado um ofício honesto, embora sangrento, e empregar mercenários para travar guerras era rotina: houve o exército do rei Shulgi de Ur (2.094-2.047 aC); O exército de mercenários gregos de Xenofonte conhecido como os Dez Mil (401-399 aC); e os exércitos mercenários de Cartago nas Guerras Púnicas contra Roma (264-146 aC), incluindo o exército de 60.000 homens de Aníbal, que marchou com elefantes sobre os Alpes para atacar Roma pelo norte. Quando Alexandre invadiu a Ásia em 334 a.C., o seu exército incluía 5.000 mercenários estrangeiros, e o exército persa que o enfrentou continha 10.000 gregos.

Aníbal lidera seu exército cartaginês, montado em elefantes, contra os romanos nesta pintura do século XVI – Fonte – https://warfarehistorynetwork.com/article/hannibal-and-the-failure-of-success/

Roma contou com mercenários durante todo o seu reinado de 1.000 anos, e Júlio César foi salvo em Alésia por mercenários alemães montados em sua guerra contra Vercingetorix na Gália. Quase metade do exército de Guilherme, o Conquistador, no século XI, era composto de mercenários, pois ele não tinha condições de pagar um grande exército permanente e não havia nobres e cavaleiros suficientes para realizar a conquista normanda da Inglaterra. No Egipto e na Síria, o sultanato mameluco (1250-1517) era um regime de escravos mercenários que tinham sido convertidos ao Islã.

Do final do século X ao início do século XV, os imperadores bizantinos cercaram-se de mercenários nórdicos, a Guarda Varangiana, que eram conhecidos pela sua lealdade feroz, destreza com o machado de batalha e capacidade de engolir grandes quantidades de álcool. Na Europa, os condottieres italianos, os landsknechts alemães, bem como as companhias suíças, bretões, gascões, picardos e outros mercenários dominaram a guerra dos séculos XIII a XVI. Durante pelo menos 3.000 anos, a força militar privada tem sido uma característica – muitas vezes a principal característica – da guerra.

Mercenários Escoceses na Guerra dos Trinta Anos – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/File:Scottish_mercenaries_in_the_Thirty_Years_War.jpg

A guerra começou a mudar no século XVI, transformando com ela a guerra privada. As batalhas europeias tornaram-se cada vez mais violentas à medida que os exércitos cresciam, as armas se tornavam mais destrutivas e as consequências mais graves. Durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), por exemplo, os principais combates envolveram normalmente 50.000 combatentes, como evidenciado pelas batalhas de White Mountain (1620), Breitenfeld (1631), Lützen (1632), Nördlingen (1634), Wittstock (1634), Wittstock (1634). (1636) e Rocroi (1643). Os exércitos eram um amálgama de mercenários com uma minoria de tropas nacionais. O patriotismo não estava ligado ao serviço militar.

Para satisfazer a crescente procura de tropas, surgiu uma nova espécie de empreendedores de conflitos – os “empreendedores militares” – que equiparam regimentos e os alugaram a quem necessitava de serviços marciais. Diferentes dos mercenários, os empreendedores militares formaram exércitos inteiros. Estes “regimentos de aluguer” ou exércitos contratados permitiram aos governantes travar guerras em grande escala sem reformas administrativas ou fiscais indevidas, reduzindo Efectivamente a barreira à entrada na guerra e encorajando batalhas cada vez maiores.

Ernst von Mansfeld (na imagem com a roupa amrela – 1580-1626), líder mercenário, empreiteiro militar contra os Habsburgos na Guerra dos Trinta Anos – Fonte – Duncker & Humblot, Berlim, 2010 Walter  Krüssmann.

Exemplos dos maiores empreendedores militares incluem o conde Ernst von Mansfeld, que reuniu um exército inteiro para o Eleitor Palatino; o empresário de Amsterdã, Louis de Geer, que forneceu uma marinha para a Suécia; o marquês genovês de Spinola, que administrou os assuntos militares do rei da Espanha na Holanda; e Bernard von Weimar, que produziu exércitos para a Suécia e depois para a França. O mais famoso é que o conde Albrecht von Wallenstein gerou um enorme exército para o Sacro Imperador Romano Fernando II e se tornou o homem mais rico da Europa. No final da guerra, o mercado tinha passado de oligarcas como Wallenstein para atores mais pequenos, como coronéis mercenários e financistas mercantis, fortalecidos por redes de crédito e de abastecimento baseadas em Amesterdão, Hamburgo e Génova.

Quando os negócios estavam lentos, os mercenários saqueavam o interior até serem contratados por um cliente ou pagos para partir. Um mercado livre para a força incentiva a guerra

A Batalha do Puig de Santa Maria, obra do pintor espanhol de Andrés Marzal de Sas. A Batalha do Puig de Santa Maria foi um combate da Reconquista Espanhola e da Conquista Aragonesa de Valência. A batalha ocorreu em 1237, colocando as forças da Coroa de Aragão, sob o comando de Bernat Guillem d’Entença, contra as forças da Taifa de Valência, sob o comando de Zayyan ibn Mardanish. A batalha resultou numa vitória aragonesa decisiva e na conquista de Valência pela coroa de Aragão. A pintura faz parte de um retábulo que conta a história de São Jorge. O que poucos sabiam era que mercernário mulçumanos participaram da batalha ao lçado dos cristãos – Fonte – https://www.medieval.eu/the-mercenary-mediterranean-sovereignty-religion-and-violence-in-the-medieval-crown-of-aragon/

Os empreendedores militares eram um híbrido de ambos. Tal como os mercenários, são intervenientes do sector privado envolvidos em conflitos armados e motivados principalmente pelo lucro. Ao contrário dos mercenários, eles normalmente trabalhavam em parcerias público-privadas monogâmicas com um cliente do governo para construir exércitos em vez de comandá-los. Os empreendedores são parcerias militares público-privadas, que combinam a motivação do lucro dos mercenários com a lealdade dos exércitos nacionais.

O Conflito é Mercantilizado

Os empresários militares mudaram o negócio da guerra, transformando-a de um mercado de força livre num mercado mediado. Num mercado livre, o conflito é mercantilizado: consumidores e fornecedores de guerra procuram-se, negociam um preço e travam a guerra. Ambos os lados do acordo eram geralmente irrestritos e o mercado era de natureza laissez-faire. Por exemplo, mercenários como os condottieres muitas vezes trabalhavam para quem pagava mais, mudavam de lado quando lhes convinha, procuravam guerras e ocasionalmente as iniciavam. Quando os negócios estavam lentos, muitas vezes saqueavam o interior até serem contratados por um cliente ou pagos para ir embora. Um mercado livre para a força incentiva a guerra.

Morte do rei sueco Gustavo II Adolfo, na Batalha de Lützen, em 1632. Pintura de Carl Wahlbom (1855) – Em 6 de novembro de 1632, Gustavo encontrou o Exército Imperial comandado por Albrecht von Wallenstein em Lützen , no que viria a ser uma das batalhas mais significativas da Guerra dos Trinta Anos. Gustavo foi morto quando, em um ponto crucial da batalha, se separou de suas tropas enquanto liderava um ataque de cavalaria em sua ala. Lützen foi uma vitória para os protestantes, mas custou-lhes o seu líder – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Gustavus_Adolphus

Isto contrasta com um mercado mediado por empresários militares, que imbuiu um mínimo de restrição aos fornecedores de força e aos seus patronos. Parcerias público-privadas exclusivas e de longo prazo alinharam os interesses de ambas as partes, tornando mais difícil para qualquer um dos lados desertar e infundindo estabilidade no mercado. Por exemplo, Albrecht von Wallenstein não teve incentivo para trair Fernando II. Pelo contrário, o governante era a sua principal fonte de receitas. Nem Fernando II estava motivado a quebrar o seu contrato com Wallenstein, já que o empresário era o seu principal fornecedor das forças armadas durante uma guerra de sobrevivência. Por outras palavras, eles eram codependentes de uma forma que os mercenários medievais e a sua clientela não eram. Tais relações existiram no passado, mas na época de Wallenstein eram dominantes. A presença de interesses partilhados e de longo prazo restringiu comportamentos corruptos e, portanto, mediou o mercado da força.

A transição dos exércitos privados para os exércitos públicos foi gradual, ao longo de séculos, à medida que os estados consolidavam o seu poder na política europeia. Em 1650, era claro que os serviços militares a pedido já não eram económicos para os governantes, dada a destruição que os mercenários causavam no campo e a ameaça que representavam para os seus empregadores. O que era necessário era um exército público de profissionais sistematicamente treinados e disciplinados, mantidos na paz e na guerra, no inverno e no verão, com meios regulares de obtenção de suprimentos e reposição. Criticamente, esta força militar seria paga e leal ao Estado.

Luís XIV em Douai, norte da França, na Guerra de Devolução de 1667 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/War_of_Devolution

Por exemplo, após a Paz dos Pirenéus (1659), a França formou um exército permanente, absorvendo a maioria dos oficiais de Luís XIV na gendarmaria e estabelecendo seis unidades de infantaria permanentes. Estes regimentos permitiram ao Rei Sol mobilizar rapidamente os seus exércitos na Guerra de Devolução (1667-1668) e invadir os Países Baixos espanhóis controlados pelos Habsburgos e a região de Franche-Comté, no leste da França. Luís XIV, por sua vez, criou um exército permanente ainda maior no final da guerra. Ao mesmo tempo, na Inglaterra, com seu Novo Exército Modelo, Oliver Cromwell estava criando um protótipo de exército permanente. Após a Restauração de 1660, Carlos II foi autorizado a reter cinco regimentos desta força, totalizando cerca de 3.000 homens. Estas forças especializadas relativamente pequenas foram o início das grandes forças armadas nacionais que se desenvolveriam ao longo dos séculos seguintes.

Período de Resseção

Nos três séculos seguintes, os estados continuaram a expulsar os mercenários. A pólvora também os prejudicou, pois desvalorizou a habilidade dos mercenários, permitindo que os camponeses os derrotassem. As crescentes burocracias estatais tornaram possível administrar grandes forças armadas e cobrar os impostos para mantê-las. As ideias iluministas e as revoluções políticas que as acompanharam também estimularam o desaparecimento dos exércitos privados, fortalecendo o vínculo entre o soldado e o Estado.

O “contrato social”, imposto em massa, as reformas napoleónicas, a ascensão do nacionalismo e outras ideias encorajaram o “serviço” militar como um dever patriótico fundamental. Esta norma permeia os exércitos públicos hoje. No final do século XVIII, os exércitos nacionais eram tão grandes que o Ministro Friedrich von Schrötter observou: “A Prússia não era um país com um exército, mas um exército com um país”.

Com o tempo, o Estado tornou-se o principal interveniente no mercado da força e proibiu a concorrência, como a dos mercenários. A única excepção a isto foi para os estados que desejavam “alugar” os seus exércitos a outros estados com fins lucrativos. Durante a Guerra Revolucionária Americana, a Grã-Bretanha duplicou o seu exército, contratando quase 30.000 soldados de estados alemães, principalmente de Hesse-Kassel, para reprimir a revolta colonial. Os rebeldes americanos chamaram esses soldados alemães de Hessianos.

Da mesma forma, embora a pirataria fosse ilegal e, se apanhados, os piratas enfrentassem à forca, os estados contrataram navios de guerra privados, ou corsários, emitindo uma carta de marca para atacar navios inimigos. Os corsários foram autorizados a roubar como parte do prêmio. A linha entre pirataria e corsário era tênue. Os atos de pirataria foram considerados ilegais porque, como explicou um jurista do século XIX, foram “realizados em condições que tornam impossível ou injusto responsabilizar qualquer Estado pela sua prática”. Em 1856, com o nacionalismo em ascensão, a Declaração de Paris sobre o Respeito do Direito Marítimo aboliu o corsário.

Soldados durante a Guerra da Crimeia, que ocorreu de 1853 a 1856 – Fonte – https://www.britannica.com/event/Crimean-War

Os Estados também delegaram assuntos militares a empresas comerciais quase estatais, como as Companhias Holandesas ou Britânicas das Índias Orientais, que comandavam as suas próprias forças armadas. Mas a última vez que um Estado reuniu um exército de estrangeiros foi durante a Guerra da Crimeia, em 1854, quando a Grã-Bretanha contratou 16.500 mercenários.

No século XX, o poder estatal atingiu o seu apogeu e empurrou para a clandestinidade o livre mercado da força. Os grandes conflitos do período – a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a Guerra Fria – foram travados entre nações de “grande potência” utilizando enormes forças armadas públicas.

Clandestinidade 

A presunção de que apenas os Estados podem legitimamente travar a guerra é tida como certa na teoria das relações internacionais e codificada nas “leis da guerra”, que regulam apenas a guerra interestatal, ignorando os intervenientes armados não estatais. Em Humanity in Warfare (1980), o historiador e jurista Geoffrey Best descreve o período de 1856 a 1909 como a “época de maior reputação” para a etiqueta de guerra, mas apenas ignorando as “pequenas guerras” por vezes genocidas nas colónias e nas fronteiras.

A Legião Estrangeira Francesa em marcha na Argélia antes de 1914 – Fonte – https://www.britannica.com/topic/French-Foreign-Legion.

Apesar do movimento no sentido da deslegitimação dos mercenários, o mercenarismo patrocinado pelo Estado continuou no século XX. A Legião Estrangeira Francesa recruta globalmente, mas continua a fazer parte das forças armadas francesas: recebe ordens exclusivamente de Paris, segue a doutrina militar francesa e é liderada por oficiais franceses.

Os Flying Tigers, que realizaram missões de combate contra as forças japonesas que ocuparam a China em 1940-41, eram compostos por antigos militares dos EUA e eram uma forma de os Estados Unidos combaterem o Japão antes da guerra ser formalmente declarada. A empresa militar privada britânica Watch Guard International, fundada em 1965 e a primeira de várias empresas militares privadas britânicas, é composta quase inteiramente por veteranos dos Serviços Aéreos Especiais (SAS). Especializaram-se em travar complicadas “guerras agrícolas” e trabalharam apenas em contratos favoráveis ​​ao interesse nacional britânico, oferecendo aos decisores políticos uma negação plausível no caso de uma operação secreta correr mal. Mas estes mercenários patrocinados pelo Estado são a excepção que desrespeita a norma do século XX.

Dois mercenários detidos por tropas indianas da ONU na África na década de 1960.

A maioria dos mercenários durante este período levavam vidas ilícitas, operando como guerreiros privados nas sombras e não como empresas com fins lucrativos no mercado aberto. Soldados da fortuna individuais oscilaram entre pontos geopolíticos críticos na China, na América Latina e especialmente na África.

Os seus empregadores incluíam grupos rebeldes, governos fracos, empresas multinacionais que operam em regiões precárias e antigas potências coloniais que desejavam influência clandestina nos assuntos das suas colónias passadas. A descolonização que se seguiu à Segunda Guerra Mundial ofereceu oportunidades particularmente ricas para estes guerreiros privados. A secessão de Katanga e a crise do Congo de 1960-1968 atraíram centenas de mercenários, alguns conhecidos como Les Affreux (‘Os Frightfuls’), e incluíam o belga Jean “Black Jack” Schramme (Sobre esse personagem veja no TOK DE HISTÓRIA sua biografia – https://tokdehistoria.com.br/2023/04/14/jean-schramme-o-lider-mercenario-belga-que-viveu-no-mato-grosso/), o irlandês ‘Mad’ Mike Hoare e o francês Bob Denard. Suas façanhas informaram os filmes influentes The Wild Geese (1978), do qual Hoare foi consultor técnico, e The Dogs of War (1980), baseado em um romance de Frederick Forsyth inspirado na vida de Denard.

Mercenários deixando a região de Katanga.

Foram estas guerras de descolonização africana que levaram a Terceira e a Quarta Convenções de Genebra a proibir os mercenários. A definição legal de mercenário mais amplamente aceite encontra-se no Artigo 47 do Protocolo I. A sua linguagem é tão restritiva e imprecisa, no entanto, que quase ninguém se enquadra nesta categoria. Como Best observa: “Qualquer mercenário que não consiga excluir-se desta definição merece ser fuzilado – e o seu advogado com ele!” Mais importante ainda, as definições não são o problema principal; é difícil para o direito internacional regular os mercenários porque eles podem dominar a aplicação da lei.

Decada de 1970 – Mercenários portugueses na África.

O Retorno

Pouco depois da Guerra Fria, o mundo testemunhou o ressurgimento da força militar privada. A primeira verdadeira empresa mercenária surgiu na África. Com a queda do regime de apartheid sul-africano, soldados desempregados de unidades de forças especiais como o 32º Batalhão e a polícia especial Koevoet (“pé-de-cabra” em africâner) formaram a primeira companhia militar privada moderna, apropriadamente denominada Executive Outcomes.

Membros do Executive Outcomes em Serra Leoa – Fonte – https://greydynamics.com/executive-outcomes-the-rise-fall-and-rebirth/

Ao contrário da WatchGuard, a Executive Outcomes não era uma empresa militar, mas uma verdadeira empresa mercenária, travando guerra pelo melhor lance. Operou em Angola, Moçambique, Uganda e Quénia. Ofereceu-se para ajudar a pôr fim ao genocídio no Ruanda em 1994, mas Kofi Annan – então chefe da manutenção da paz da ONU – recusou, alegando que “o mundo pode não estar preparado para privatizar a paz”. A ideologia de Annan era cara, dado o facto de 800 mil pessoas terem morrido. Em 1998, a empresa fechou as portas, mas o mercado mercenário da força cresceu.

Os membros do Executive Outcomes ajudaram a fundar a Sandline International, uma empresa com sede em Londres gerida pelo antigo tenente-coronel britânico Tim Spicer, pelo ex-oficial do SAS Simon Mann e pelo coronel aposentado das Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos, Bernard McCabe.

Sandline International Contractors – Afeganistão 1993Fonte – https://www.dayzrp.com/forums/topic/89073-sandline-international/

Em 1997, o primeiro-ministro da Papua Nova Guiné, Julius Chan, contratou a Sandline para recapturar minas de cobre detidas por separatistas na ilha de Bougainville por 36 milhões de dólares. Sandline foi rejeitado pelo exército da Papua Nova Guiné, que prendeu e deportou estes mercenários sem disparar tiros. Chan foi forçado a renunciar, e todo o espetáculo virou notícia mundial como o ‘Caso Sandline’.

Da mesma forma, o presidente deposto da Serra Leoa, Ahmad Tejan Kabbah, contratou a Sandline para treinar e equipar 40.000 milícias e forças de manutenção da paz do povo Kamajor para derrubar a junta militar e proteger as áreas diamantíferas. A Sandline também foi contratada para apoiar um golpe de Estado na vizinha Guiné. Isto também terminou em fracasso, resultando no escândalo das armas para África no Reino Unido.

Mais tarde, os guerreiros particulares passaram a trabalhar para lados diferentes. Em 2004, Mann liderou um grupo de mercenários com alegado apoio financeiro de Mark Thatcher, filho da antiga primeiro-ministro do Reino Unido, numa tentativa de derrube da Guiné Equatorial, rica em petróleo, também conhecida como Golpe de Wonga. Falhou e Mann foi enviado para a prisão.

McCabe deixou a Sandline para se tornar chefe de segurança da Marathon Oil Corporation no Texas, que investiu pesadamente na Guiné Equatorial. Quanto a Spicer, pouco depois dos Estados Unidos terem invadido o Iraque em 2003, fundou uma nova empresa chamada Aegis Defense Services em Londres e ganhou um lucrativo contrato de segurança no valor de 293 milhões de dólares com o governo dos Estados Unidos no Iraque. A descendência da Executive Outcomes continua viva até hoje.

A Volta do Mercado da Força

Foram os Estados Unidos e as suas guerras no Iraque e no Afeganistão que restauraram verdadeiramente o mercado da força. Os decisores políticos dos Estados Unidos, nomeadamente o Vice-Presidente Dick Cheney e o Secretário da Defesa Donald Rumsfeld, esperavam que as guerras “durassem semanas, não meses”. Claro, isso foi há mais de uma década.

As forças armadas dos Estados Unidos, totalmente voluntárias, descobriram rapidamente que não conseguiam recrutar americanos suficientes para as suas fileiras para sustentar estes esforços, deixando aos decisores políticos algumas opções desagradáveis. Primeiro, eles poderiam recuar e admitir a derrota. Em segundo lugar, eles poderiam instituir um recrutamento para preencher as fileiras. Terceiro, podiam esperar que os aliados e a ONU resgatassem os Estados Unidos das suas guerras. Por último, eles poderiam manter viva a guerra com os empreiteiros. As três primeiras opções eram suicídio político ou irrealistas, pelo que optaram por empreiteiros, uma política continuada pelo Presidente Barack Obama.

A contratação pode ser a nova forma americana de guerra. É uma forma que faz sentido para um país rico que quer projectar força no estrangeiro, mas cujos cidadãos não querem sangrar. Os empreiteiros representavam 50% da estrutura da força dos Estados Unidos no Iraque e 55% no Afeganistão. Este é um aumento notável em relação à Segunda Guerra Mundial, quando apenas 10 por cento da força foi contratada. Alguns interrogam-se se os Estados Unidos irão externalizar 80-90 por cento da sua força em conflitos futuros.

Os empreiteiros também são responsáveis ​​por 25 por cento de todas as mortes nos Estados Unidos desde o início das guerras no Iraque e no Afeganistão. Em 2003, as mortes de prestadores de serviços representaram apenas 4 por cento de todas as mortes. Em 2010, foram mortos mais empreiteiros do que militares, marcando a primeira vez na história em que as baixas corporativas superaram as perdas militares nos campos de batalha dos Estados Unidos. Além disso, estas são estimativas conservadoras, uma vez que os Estados Unidos não registam estes dados e as empresas subnotificam os seus feridos e mortos, pois isso é mau para os negócios.

A maioria dos empreiteiros no Iraque e no Afeganistão eram inofensivos, fornecendo apoio logístico desarmado. Apenas 12-15 por cento dos empreiteiros eram letais ou treinavam outros para matar. Mas os fracassos dos empreiteiros armados têm um impacto estratégico descomunal, como evidenciado pelos acontecimentos na Praça Nisour, em Bagdad, em 2007, quando um punhado de funcionários da Blackwater mataram 17 civis numa rotunda, marcando um dos pontos mais baixos da guerra.

O investimento dos Estados Unidos na indústria militar privada também tornou a guerra um negócio ainda maior. O valor do mercado permanece desconhecido; as estimativas dos especialistas variam enormemente entre US$ 20 bilhões e US$ 100 bilhões anualmente. Mais certamente, de 1999 a 2008, as obrigações contratuais do Departamento de Defesa dos Estados Unidos aumentaram de 165 milhões de dólares para 414 milhões de dólares.

Membros da Blackwater escoltando um político, ao lado de militares americanos no Iraque – Fonte –https://socialchangecourse.wordpress.com/2014/11/14/blackwater-in-iraq-the-changing-social-roles-of-mercenaries/

Em 2010, os militares dos Estados Unidos comprometeram 366 milhões de dólares em contratos, no valor de seis vezes todo o orçamento de defesa do Reino Unido. Além disso, isto envolve apenas contratos militares e não inclui aqueles celebrados por outras agências governamentais, como o Departamento de Estado ou a USAID, através dos seus “parceiros de implementação”. O montante real que os Estados Unidos pagaram por contratos puramente de segurança permanece desconhecido.

A dependência dos Estados Unidos em relação aos empreiteiros é tal que a superpotência depende estrategicamente do sector privado para travar guerras. Os Estados Unidos também legitimaram de facto a indústria militar privada, encorajando a Nigéria, os Emirados Árabes Unidos e a Rússia, por exemplo, a contratar mercenários. Até as companhias petrolíferas e as companhias marítimas os empregam agora. Estes acontecimentos suscitam pouca indignação pública (ou mesmo atenção), marcando a sua crescente aceitação nas relações internacionais. Resumindo, os mercenários estão de volta.

Decada de 1960 – Mercenário em Biafra.

Improvável Que Desapareçam

A guerra privada tem sido a norma e não à excepção na história, sendo os últimos 400 anos anómalos. As implicações deste retorno são significativas. Oferecer os meios de guerra a qualquer pessoa que possa pagar mudará a guerra, a razão pela qual lutamos e o futuro da guerra. Se o dinheiro puder comprar poder de fogo, então as grandes corporações e os indivíduos ultra ricos poderão tornar-se um novo tipo de superpotência. Novos mercenários surgirão para satisfazer esta procura, oferecendo serviços mais letais, sem serem impedidos pelas leis da guerra.

Mais mercenários significam mais guerra, pois são incentivados a iniciar e expandir guerras com fins lucrativos e a recorrer à criminalidade entre contratos. Também surgirá um novo tipo de guerra – a guerra contratual – que responde à lógica do mercado, como o suborno, as aquisições e o engano. Um mercado ativo da força tem o poder de alterar as relações internacionais. A ordem mundial irá parecer-se cada vez mais com a Idade Média Europeia, quando as guerras eram travadas com mercenários e os ricos podiam travar a guerra por qualquer razão que quisessem. Uma tal ordem mundial é melhor descrita como “desordem duradoura”: uma governação global que contém, em vez de resolver, os problemas.

Esse mundo já está sobre nós!

UM MILITAR EXEMPLAR

Tenente-brigadeiro Rui Moreira Lima
Tenente-brigadeiro Rui Moreira Lima

Herói de guerra e democrata, o brigadeiro Rui Moreira Lima soube posicionar-se nos melhores e piores momentos das Forças Armadas

Paulo Ribeiro da Cunha

Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/um-militar-exemplar

Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada a serviço do Direito”. Boa parte das gerações militares contemporâneas, bem como setores políticos e acadêmicos, parecem desconhecer o real significado destas palavras atualmente.

Rui Moreira Lima em fotografia de 1953, no Rio de Janeiro. O militar ganhou condecorações por sua participação na Segunda Guerra Mundial e foi torturado por se opor ao regime ditatorial de 1964. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Rui Moreira Lima em fotografia de 1953, no Rio de Janeiro. O militar ganhou condecorações por sua participação na Segunda Guerra Mundial e foi torturado por se opor ao regime ditatorial de 1964. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

Escritas em 1939 pelo juiz de direito Bento Moreira Lima numa carta para seu filho, o cadete Rui Moreira Lima, que aos 20 anos ingressava na Força Aérea Brasileira (FAB), elas parecem ter servido como uma declaração de princípios que nortearia a vida do futuro brigadeiro.

Tenentes Rui Moreira Lima, Alberto Martins Torres e Renato Goulart Pereira
Tenentes Rui Moreira Lima, Alberto Martins Torres e Renato Goulart Pereira

Poucos anos depois, Rui Moreira Lima seria um herói de guerra. Com outros jovens aviadores brasileiros, todos voluntários, integrou o grupo de aviação da FAB, o “Senta Púa”, unidade que recebeu uma das mais altas condecorações americanas em reconhecimento pela bravura de seus membros. Ao final da Segunda Guerra, sua folha de serviços computava 94 missões, pelas quais ganhou as mais altas condecorações militares do Brasil, da França e dos Estados Unidos. 

Representação do Republic P-47 Thunderbolt com que o tenente Rui combateu na Itália - Fonte -www.militar.org.ua
Representação do Republic P-47 Thunderbolt com que o tenente Rui combateu na Itália – Fonte -www.militar.org.ua

Sempre que podia, declamava com sabor de poesia a carta recebida de seu pai. Em um dos trechos, ela aconselhava: “Obediência a seus superiores, lealdade aos teus companheiros, dignidade no desempenho do que te for confiado, atitudes justas e nunca arbitrárias”. Nada mais válido nos tempos da Guerra Fria pra lá de quente que se iniciaria em 1947. O debate em que esteve imerso o jovem oficial trazia não somente o desafio de edificar uma nação, mas principalmente o de construir e defender uma democracia. Patriota, democrata e nacionalista, Rui Moreira Lima teve uma discreta empatia à esquerda, e uma identificação sem militância com o PSB (Partido Socialista Brasileiro), agremiação que tinha entre seus membros militares históricos, compromissados com a democracia e a nação, como o almirante Herculino Cascardo (1900-1967) e o general Miguel Costa (1885-1959).

Ao retornar da guerra, como tenente, Moreira Lima foi condecorado pelas missões na 2ª Guerra Mundial pela FAB (Foto: Agência Força Aérea/Arquivo)
Ao retornar da guerra, como tenente, Moreira Lima foi condecorado pelas missões na 2ª Guerra Mundial pela FAB (Foto: Agência Força Aérea/Arquivo)

Nos anos 1950 e 1960, atuou na defesa da legalidade democrática e em causas nacionalistas, como a do Petróleo é Nosso. Na polarização entre grupos políticos e ideológicos dentro da própria FAB, condenou tentativas golpistas – como a de abortar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek (1956) e as Revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) – e apoiou a posse de João Goulart por ocasião da renúncia de Jânio Quadros (1961). “O soldado não conspira contra as instituições a que jurou fidelidade. Se o fizer, trai seus companheiros e pode desgraçar a nação”, escreveu o pai. 

Jango assiste, em 1963, à demonstração da FAB, com a presença de Rui Moreira Lima, à sua esquerda. O militar se pôs em defesa da ordem democrática e da manutenção da legalidade nos momentos de ruptura. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Jango assiste, em 1963, à demonstração da FAB, com a presença de Rui Moreira Lima, à sua esquerda. O militar se pôs em defesa da ordem democrática e da manutenção da legalidade nos momentos de ruptura. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

A chegada de 1964 encontrou o militar no comando da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, a mais poderosa unidade de combate da FAB no período, cuja tradição ele ajudou a forjar como piloto de caça nos campos de batalha italianos.

Rui Moreira Lima acompanhava com preocupação os desdobramentos golpistas e lamentava a imobilidade do governo em reagir naquilo que era o princípio basilar das Forças Armadas: a hierarquia e a disciplina.

Reprimiu com rigor tentativas de envolver os comandados em aventuras, chegando a prender alguns de seus jovens oficiais. Em reação à movimentação das tropas do general Mourão, em março de 1964, sobrevoou em um rasante a coluna golpista já próxima de Areal (RJ), cuja tropa foi tomada por pânico. Na volta à unidade, confabulou com seus superiores que os rebelados poderiam ser dissolvidos em um ataque de precisão, sem maiores baixas. Mas só tomaria essa iniciativa se recebesse ordens para tanto. Diante do posicionamento do presidente João Goulart em não resistir e partir para o exílio, deu-se por encerrada qualquer possibilidade de reação.

1964 - Fonte - www.ocafezinho.com
1964 – Fonte – http://www.ocafezinho.com

Ali estava encerrada sua carreira militar, bruscamente interrompida. Antes, porém, teve ainda um ato de resistência: só aceitou passar  o comando da Base Aérea se fossem cumpridas todas as formalidades, postura que constrangeu seus algozes. “A honra é, para ele [o militar], um imperativo e nunca deve ser mal compreendida”. Pouco depois, Rui Moreira Lima foi preso em casa e teve de responder a três inquéritos policiais militares. Amargou um total de 153 dias no cárcere. Em uma das prisões, nos anos 1970, chegou a ser torturado.

30-12-1964

Diante do quadro de vilania que caracterizou o regime militar, qualificou de infame e covarde a figura do torturador – que, portanto, não deveria ser contemplado com a anistia. Visão compartilhada com o pai: “O soldado nunca deve ser um delator, senão quando isso importar a salvação da pátria. Espionar os companheiros, denunciá-los, visando a interesses próprios, é infâmia, e o soldado deve ser digno”.  

Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, após o golpe militar de 1964 - Fonte - https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)
Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, após o golpe militar de 1964 – Fonte – https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)

Inegavelmente a pátria estava em perigo, e o campo de batalha passou a ser outro para o então coronel. A perseguição foi uma constante para as centenas de cassados, entre oficiais e praças das Forças Armadas e das Polícias Militares. Todos os aviadores, por portarias secretas, foram proibidos de voar.

Rui 1964 (1)Rui 1964 (2)

JORNAIS DE 1964 MOSTRAM O QUE O BRIGADEIRO RUI MOREIRA LIMA SOFREU

Por convicção, não aderiu à opção de resistência armada ao regime militar: decidiu combater a ditadura na ação política. Foi um dos que ergueram a bandeira pela anistia ampla, geral e irrestrita. Ao lado do brigadeiro Francisco Teixeira e de outros oficiais, Rui Moreira Lima foi um dos fundadores da Adnam (Associação Democrática e Nacionalista dos Militares).

O Brigadeiro Rui de novo na cabine de um P-47 - Fonte - http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-mentira-que-insiste-em-sobreviver-8561.html
O Brigadeiro Rui de novo na cabine de um P-47 – Fonte – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-mentira-que-insiste-em-sobreviver-8561.html

A anistia saiu em 1979, mesmo ano em que faleceu seu pai. Mas ela veio restrita em relação aos militares cassados, inclusive o brigadeiro, a despeito de sua folha de serviços. 

À frente da Adnam, continuou intervindo na agenda política com o objetivo de aprofundar a democracia e a construção de um efetivo estado de direito. Buscava não só a ampliação da anistia como a reintegração, mas também a  reincorporação dos militares cassados. Em outra frente de luta, preocupava-se com a memória e a história. Escreveu Senta Púa e Diário de Guerra, e contribuiu com depoimentos em livros, teses e documentários. Por sua intervenção direta, o acervo da Adnam foi entregue para a guarda do Cedem – Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Acima, recebe pedido de desculpas por meio do ministro da Justiça, em 2011. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Acima, recebe pedido de desculpas por meio do ministro da Justiça, em 2011. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

Em seus últimos anos, através de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) patrocinada pela Adnam e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contestou a anistia aos torturadores e apoiou com entusiasmo a formação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012. Segundo ele, a CNV era um instrumento necessário para aproximar os militares e a sociedade civil, e não pode ser considerada expressão de revanchismo, mas sim de justiça e de um necessário resgate da história. Inclusive a sua história. 

Já com mais de 90 anos, não se furtou a outras polêmicas. Em 2012, subscreveu pela Adnam o manifesto “Aos Brasileiros”, confrontando um manifesto de golpistas elaborado por militares da reserva do Clube Militar. No ano seguinte patrocinou a “Carta do Rio de Janeiro”, documento endereçado à Presidência da República com vistas a equacionar em definitivo a questão de uma anistia ampla para os militares cassados e perseguidos após o golpe. 

Rui Moreira Lima * 12/06/1919 + 13/08/2013 - Fonte - revistaaerolatina.blogspot.com
Rui Moreira Lima * 12/06/1919 + 13/08/2013 – Fonte – revistaaerolatina.blogspot.com

Só depois de seu falecimento, em fins de 2013, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa a uma ação reparatória reconhecendo seus direitos. Não viveu, portanto, para ver o epílogo de uma longa trajetória militar e política: a promoção à patente de tenente-brigadeiro, último posto da Força Aérea.

A FAB o dignificara já no enterro, com toque de silêncio e voos rasantes de aviões de caça da unidade Senta a Púa. A homenagem ao oficial cassado seria um passo importante para a decisão posterior do STF. 

Reconhecimento ainda mais cheio de significado, particularmente para os cadetes da Academia da Força Aérea, seria se a instituição de ensino reverenciasse Rui Moreira Lima em um dos painéis de sua ampla entrada onde constam pronunciamentos de várias personalidades civis e militares. Como texto, o ensinamento da carta de Bento Moreira Lima, um conselho que retrata a vida do filho ao mesmo tempo em que serve de lição aos militares e cadetes das novas gerações: “O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas. Estas não devem esquecer que é este povo que deve inspirá-las nos momentos graves e decisivos”.   

Paulo Ribeiro da Cunha é professor de Teoria Política na Universidade Estadual Paulista e autor de Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa (Editora Unesp/Fapesp, 2014).

Saiba Mais

BONALUME NETO, Ricardo. A nossa Segunda Guerra: os brasileiros em combate, 1942 -1945. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995.

FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro/ São Paulo: Ed. Civilização Brasileira/ Expressão Popular, 2010 [1965].

Documentários

Senta a Pua! (Erik de Castro, 1999) 

A Cobra Fumou (Erik de Castro, 2003)

O Brasil na Batalha do Atlântico (Erik de Castro, 2012)

Internet

Carta de Bento Moreira Lima a Rui Moreira Lima: http://bit.ly/1I5lKCi