Decifre se for capaz! Requerimento assinado em 1744 por padre de vila no Ceará pede ao rei de Portugal, D. João V, para comprar ornamentos e paramentos para a igreja da vila, em situação de miséria devido à seca
Autor – Expedito Eloísio Ximenes
O original deste documento, datado de 20 de agosto de 1744, encontra-se no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Mas não é difícil acessar sua versão fac-similada nos arquivos públicos dos estados brasileiros.
O texto se inicia pelo vocativo Senhor abreviado, e as 22 linhas do documento são preenchidas até o fim da margem direita, com espaços regulares entre as linhas, ao fim das quais aparece a assinatura do reverendo padre João Saraiva de Araújo. Na margem esquerda inferior, há uma informação que parece escrita por outra mão. Na margem superior, dois despachos do Conselho Ultramarino – com seis rubricas dos conselheiros no primeiro, e quatro no segundo. À esquerda, mais duas informações escritas por outras pessoas.
A escrita é a humanista, em vigor desde o século XVI, de fácil leitura por sua simplicidade, apesar das variações conforme o grau de conhecimento e o estilo de quem escreve. O traçado é regular e inclinado para a direita, mas as hastes de algumas letras são caídas para a esquerda – caso da letrad. Em finais de palavras, a letra sapresenta uma cauda longa para a esquerda, semelhante ao formato doj interno, como nas palavras paramentos e hajão. No início e no meio de palavras, porém, o s tem formato diferente. O f tem formato semelhante ao L maiúsculo, como na palavra Leal, masé escrito da linha para cima, enquanto o L é da linha para baixo; da parte inferior do traçado vertical puxa-se outro para a esquerda formando um ângulo reto, como em falta e fallencia. A letra h tem forma de E maiúsculo, o grafemar no início de palavra tem formato grande e muitas vezes se confunde com maiúsculo.
Os escribas costumavam juntar as palavras clíticas – pronomes oblíquos, preposições e conjunções – com as palavras que seguem. A conjunção aditivae se emenda à palavra seguinte em casos como eoutros, e a preposição de, em degadosedoque.
O requerimento é bem escrito, com linguagem culta e um discurso convincente. A grafia não apresenta muitas variações, pois o autor tem bom domínio da língua por tratar-se de um padre com boa formação. Há falta de acentuação em algumas palavras e uso de letras maiúsculas desnecessárias, ocorrências típicas do período em que não havia normas ortográficas.
Expedito Eloísio Ximenes – é professor da Universidade Estadual do Ceará e autor de Fraseologias Jurídicas: estudo filológico e linguístico do período colonial (Appris, 2013).

Quando a seca é real
O requerimento assinado pelo padre João Saraiva de Araújo, da vila do Icó, no centro-sul do Ceará, é um pedido ao rei de Portugal, D. João V, para comprar ornamentos e paramentos para a igreja da vila, em situação de miséria devido à seca. Ele pede melhores condições de trabalho para administrar a vida espiritual dos vassalos de Sua Majestade, para que não lhes falte o “pasto espiritual”. O Ceará era uma das capitanias mais pobres do Brasil Colônia.
Além da situação caótica da vila do Icó, o documento é um testemunho da relação entre Igreja e Estado, quando os religiosos eram funcionários da Coroa e dela dependiam para tudo. O monarca era quase onipresente em qualquer rincão de seus domínios.

Fonte:http://cdlico.com – Fonte da foto – aldecyalves.blogspot.com.br/2012/01/igrejas-do-ceara-vii-patrimonio.html
Solução do “Decifre”
Haja vista o procurador da fazenda. Lisboa, 23 de janeiro de 1745.
[Rubricas dos conselheiros do Conselho Ultramarino]
Informe o provedor da fazenda real de Pernambuco
com seu parecer. Lisboa, 10 de fevereiro de 1745.
[Rubricas dos conselheiros do Conselho Ultramarino]
Este requerimento é de
graça a que Sua Majestade
deferirá como for servido.
[Rubrica – não é possível identificar]
Senhor
Provido no benefício de cura desta freguesia de Nossa Senhora da
Expectação do Icó, capitania do Ceará Grande, por provimento
de meu Prelado e Excelentíssimo Bispo de Pernambuco, entrei a exercer
o ofício pastoral, e tomando posse do curato no ano de mil sete-
centos e quarenta e dois achei a Igreja Matriz tão falta de
ornamentos, e paramentos necessários para cinco altares com o maior
e outras tantas portas com a principal, e um púlpito, que já
os não tem capazes com que se celebrem os sacrifícios nas festas
solenes, e ofícios funerais, sendo motivo e causa a grande pobre-
za desta terra, na qual suposto hajam alguns efeitos de gados
vacum e cavalar, estes há bastante anos não rendem dinheiro pela
falência do negócio, além de estar muito destruída, e vexada com secas
e esterilidades que tem experimentado, à vista do que brevemente ficará
o povo sem o pasto espiritual, se Vossa Majestade como monarca tão
zeloso do culto divino não posar os olhos de sua benigna piedade
e clemência em tanta necessidade, provendo a dita matriz com os ditos
ornamentos, e paramentos por esmola, para maior honra de Deus,
e salvação de seus católicos vassalos. Vila do Icó, 20 de agosto
de 1744.
Os pés de Vossa Real Majestade
os beija o mais reverente e leal vassalo
João Saraiva de Araújo
Do cura do Icó
Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/decifre/suplica-cearense
Sobre a Igreja Matriz de Icó – CE – http://iconacional.blogspot.com.br/2008/10/ic-cear-brasil-igreja-de-nossa-senhora.html