SECA – 1877 – 1977

O Blog Tok de História Traz um Interessante Trabalho do Jornalista Ricardo Noblat, que Visitou o Nordeste Durante a Seca de 1977. Em Breve esse Artigo e Essa Seca Completarão 50 anos, Mas o que Esse Jornalista Escreveu Mostra que pouco Mudou. E o Pior é Que nos Dias Atuais, com o Fantasma das Mudanças Climáticas Globais, Provavelmente o Povo Nordestino Vivenciará Situações Piores.

Autor – Ricardo Noblat.

Fonte – Diário de Pernambuco, Domingo, 28 de agosto de 1977 – Pág. D-4.

Um dia, em janeiro do ano passado, anunciada pelo pau d’arco que não floriu, pelo jabuti que não pós e pelo pássaro joão-de-barro que fez a sua casa com a porta para o nascente, a seca reapareceu no Nordeste e plantou-se primeiramente em Irecê, na Bahia.

Família de retirantes informando a sua condição a um funcionário do governo na década de 1950.

Dali espalhou-se pelo centro do estado e consumiu terras de 140 municípios. Com duas semanas, tomou a cidade de Xique-Xique da influência do rio São Francisco. Depois, saltou para o Norte de Minas Gerais e apoderou-se de 40 cidades. Então retrocedeu, cortou o sul da Bahia e insinuou-se pelo Sudeste do Piauí. Dormiu muitas noites em São Raimundo Nonato e acordou de outras tantas em São João do Piauí, Simplício Mendes, Paulistana, Jaicós e Picos. Ocupou em seguida o oeste de Pernambuco.

Foi vista chegando ao oeste do Rio Grande do Norte em dias de março e encontrou bom abrigo na região dos Inhamuns, no Ceará. Depois trilhou o sertão da Paraíba, alastrou-se pelo oeste de Alagoas e pelo noroeste de Sergipe. E, a essa altura, já engloba 811 mil quilômetros quadrados de 763 municípios, atingindo cerca de 12 milhões de pessoas, das quais 142 mil socorridas pelas frentes de trabalho da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

Crianças em uma frente de emergência.

Repete-se nas terras áridas do Sertão o fenômeno que se sucede desde 1538 para cá: a seca atacando o Nordeste brasileiro, a espaços médios de tempo de dez anos.

Guimarães Duque, decano da agronomia da região, calcula que em 400 anos o Nordeste sofreu 34 secas, sendo 27 parciais e sete arrasadoras. A de 1877, que ficou na memória coletiva e que agora completa seu primeiro centenário, foi a que provocou a morte de mais gente: cerca de 800 mil pessoas.

Fotos de retirantes nordestinos na época da seca de 1877.

Invariavelmente, o flagelo se dá numa extensa área que a SUDENE batizou de Polígono das Secas. Ela é “o maior e mais resistente bolsão de pobreza e de atraso relativo do Brasil e talvez da América Latina“, segundo a Secretaria de Planejamento da Presidência da República.

Sua influência abrange 94,8% da área total do Ceará, 97,6% da Paraíba, 92% do Rio Grande do Norte, 88,7% de Pernambuco, 43,7% de Alagoas, 47,1% de Sergipe e 56,6% da Bahia, se estendendo ainda pelo norte de Minas Gerais.

Frente de emergência na construção de uma estrada.

Sua população é de 18 milhões de habitantes (seis milhões economicamente ativos) e representam 55% da população do Nordeste e 16% do Brasil. Sua densidade demográfica é de 15 habitantes por quilômetro quadrado, sendo considerada alta. A renda média do habitante do polígono é a metade da encontrada em outras partes do Nordeste e perto de 1/4 do resto do País.

A escassez de água nesta região resulta da ação convergente de vários aspectos: chuvas predominantemente de origem convectiva-oгоgráfica, concentradas numa única estação úmida de 3 a 5 meses e com uma média muito irregular de 750 mm, apresentando coeficiente de variação de 30%.

Rio seco no Nordeste do Brasil.

Temperaturas médias muito elevadas, com amplitudes térmicas diárias de 10 graus centígrados, mensal de 5 a 10 e anual de 1 a 5. Insolação muito forte, com uma média de 2.800 horas/ano. Aridez acentuada, fazendo com que somente 8% da chuva que cai se escoe superficialmente, sendo o restante consumido, praticamente, pela evapotranspiração.

Terrenos cristalinos impermeáveis, que ocupam 50% de toda a área, com solos pouco desenvolvidos, rasos, pedregosos e de baixa capacidade de armazenamento de água. Cursos d’água que atingem um ponto de esgotamento no mês seguinte ao término do período das chuvas, com exceção dos rios São Francisco e Parnaíba.

Construção de um açude em uma frente de emergência.

A economia da zona Semiárida nordestina “apresenta-se como um complexo de pecuária extensiva e agricultura de baixo rendimento“, segundo o clássico estudo do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste – GTDN – que deu origem à SUDENE. “Do ponto de vista do trabalhador rural“, de acordo com o GTDN, “a atividade mais importante é a agrícola; do ponto de vista do proprietário das terras, é a pecuária”.

Na fazenda típica da região, combinam-se criação e cultura de algodão mocó, atividades que se destinam ao mercado e dão origem a um fluxo de renda monetária. A renda criada pela pecuária é apropriada, em sua quase totalidade, pelo fazendeiro. A que provém do algodão mocó divide-se quase sempre em partes iguais entre o dono da terra e o cultivador. Para o trabalhador rural, importa menos a meação de algodão que a agricultura de subsistência.

Crianças e adultos na construção de um açude.

Assim, está claro que o núcleo central da economia das zonas Semiáridas é a lavoura de subsistência, já que dela depende a grande maioria da população. Como, no entanto, ao proprietário da terra interessa dispor do máximo de mão-de-obra nas atividades ligadas ao mercado (a pecuária e o algodão), a sua tendência é para fragmentar as áreas aptas à produção de alimentos, arrendando-as e piorando as condições de vida do conjunto da população. A seca que, como está dito no GTDN, “se traduz numa contração da produção que, geralmente, alcança graves proporções“, incide com maior intensidade justamente sobre a lavoura de subsistência.

Se as repercussões diretas de uma seca na economia nordestina constituem, como acham os técnicos da SUDENE, “em uma crise de produção de magnitude limitada”, todavia, se analisadas do ponto de vista social, essas repercussões assumem o caráter de tragédia, pois se abatem justamente sobre a faixa populacional mais frágil e mais desprovida de condições de defesa.

Carro pipa atuando em frente de emergência.

São os pequenos e médios agricultores, rendeiros e parceiros. A grande maioria sem títulos de propriedade, plantando em terra alheia só para comer, sem nenhuma assistência técnica do Governo, sem direito a empréstimos em bancos oficiais. Enfim, fora do sistema, como os classifica Nilson Holanda, presidente do Banco do Nordeste.

Um estudo realizado por técnicos internacionais para a SUDENE, deu bem um retrato do que é a estrutura fundiária do Nordeste. O Semiárido, com 839.400 quilômetros quadrados, corresponde a 51% da área total da região, onde 80% da força de trabalho empregada na agricultura nordestina não possui terras.

Trabalhadores de uma frente de emergência no Nordeste.

Os minifúndios com menos de 10 hectares representam quase 70% do número total de propriedades rurais, mas somam menos de 60% da área total e menos de 40% das terras cultiváveis são exploradas por seus proprietários.

As medidas governamentais contra as secas nordestinas ao longo de 400 anos, sempre foram de duas espécies: as emergenciais e as estruturais, estas últimas de efeitos a longo prazo. No primeiro grupo, enquadram-se desde a repartição de terras nas margens de rios com os flagelados da seca de 1766, determinada pelas Cortes Portuguesas, às atuais frentes de trabalho organizadas pela SUDENE para empregar as populações rurais, evitando mortes por fome e a migração para os grandes centros urbanos. Essas frentes foram criadas no Brasil pela primeira vez em 1932, pelo paraibano José Américo de Almeida, então ministro de Viação e Obras Públicas.

A água tão necessária, que vai na lata.

Das medidas estruturais que o Governo Federal se dispôs a tomar contra as secas nordestinas, pelo menos uma delas, a da construção de poços e açudes em larga escala, foi testada na prática e ainda é utilizada até hoje, embora com uma nova orientação técnica.

Pensou-se, por muito tempo, que principalmente os açudes, acumulando bilhões de metros cúbicos de água, resolveriam os problemas da agricultura e da pecuária na área do Polígono das Secas. Segundo o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), desde 1906, quando foi concluído o açude do Cedro, em Quixadá, Ceará, até 1975, foram construídos 250 açudes públicos, com uma capacidade total para 12 bilhões de metros cúbicos de água e mais 600 açudes em cooperação com particulares.

Ponte recém construida, sob um rio seco.

Os açudes não resolveram os problemas das secas no Nordeste e nem poderiam ter resolvido, admitem estudos da SUDENE, simplesmente porque não foram complementados com obras que proporcionam a utilização das suas águas para irrigação. Existe um consenso entre os técnicos da SUDENE e do DNOCS que os açudes utilizados para irrigação em escala reduzida, ajudam a combater os efeitos das secas e a fortalecer a frágil economia da zona Semi Árida, mas nunca sozinhos significaram uma solução.

As soluções para os problemas gerados pelas secas nordestinas, estão na política de desenvolvimento económico para a região proposta pela GTDN em 1958, assegura Jorge Jatobá, professor do curso de Mestrado em Economia da Universidade Federal de Pernambuco e PHd pela Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos.

Em linhas gerais, o GTDN definia como objetivo central de toda a sua política para a zona Semi Árida nordestina “a determinação da unidade típica de produção dessa área para o estabelecimento de funções de produção mais compatíveis com as condições ecológicas ali predominantes“. Pedia, depois disso, o fortalecimento dessa unidade típica através de eficaz assistência técnica e financeira para integrá-la na economia de mercado. Defendia a eliminação da agricultura de subsistência e o aproveitamento da mão-de-obra excedente liberada da zona Semiárida para a ampliação da fronteira agrícola do Nordeste, levando-os em direção da faixa pré-amazônica do Maranhão, o interior goiano e o Sudeste da Bahia.

As recomendações do GTDN praticamente não foram atendidas, constata Jatobá, e concorda a SUDENE em muitos dos seus documentos. E isso aconteceu, esclarece Jatobá, não só porque faltaram recursos e interesse do Governo Federal, mas antes de tudo porque esbarraram em razões políticas e institucionais. Já que a estratégia proposta, se aceitas, exigiria uma profunda reformulação na estrutura agrária da região. E até hoje essa reformulação não foi tocada, senão de maneira tímida e pouco significativa.

Pelos Caminhos Áridos do Sertão (A Seca Na Boca do Povo)

O trabalhador rural Manuel Laurindo arregala os olhos e se contagia com a marcha – Olha o povo adesapregando do chão! É a seca, aparentada da fome, seu dotô, que iguala velho a moço e faz a gente se largar por esse meio de mundo. – Aponta o grupo de homens com mochilas nas costas, calcula a distância dali até Itaporanga, encravada no alto sertão paraibano.

Antônio Balbiiiiiiiiino!… Antônio Balbiiiiiiiiiiino!…. – Antônio Balbino já vai longe – responde baixinho Filermino da Silva, enquanto levanta do asfalto quente e também se desprega do chão.

Provavel político de alguma cidade nordestino entregando alimentação para uma mãe cercada de filhos. As secas nordestinas foram, são e continuarão a ser grande material de barganha e propaganda política.

Já o vaqueiro Frutuoso Donato vai aboiando. – Ôôôôôôôôôôôô! O céu da cor de safira e o campo todo tostado, o sertanejo coitado, olha pra vida e suspira, olha pra macambira, vê o gado caindo pelo chão e os urubus na limpeza. Chora toda a natureza, quando há seca no sertão. Iaaaééééé – aboia, tange o gado pela caatinga, ajeita o gibão, apruma o chapéu na cabeça e segura firme o arreio.

O motorista Francisco Barbosa toma um cafezinho na churrascaria “Nova Brasília”, em Patos, consulta o relógio e buzina dentro do ônibus chamando seus passageiros. Me disse que de Piancó a Itaporanga, quase toda santa noite tem um acidente com os flagelados que dormem na beira da estrada e que atravessam na frente dos carros sem prestar muita atenção. E completou – Outro dia uns oitenta deles tomaram meu ônibus na marra e me mandaram rumar para o local onde se fazia o alistamento para as frentes de emergência.

Retirantes na construção de uma estrada.

Já o vigia do “Hotel JK”, Agripino Francisco dos Santos, ampara-se numa bengala bem torneada e disse. – A pobreza aqui de Patos está toda morrendo de fome. Os proprietários botam seus trabalhadores para fora porque dizem que eles não dão rendimento. Este ano os patrões apegaram a plantar muito tarde, deixaram o gado solto, deram de querer arar a terra e, quando viram, já era tarde e não havia chuva.

O engenheiro Matias Albuquerque assim comentou. – Temos 8.481 homens alistados na frente de emergência, divididos em turmas de 27, onde 25 são operários, um é feitor e um é cozinheiro. Eles se distribuem ao longo da estrada que vai de Piancó a Itaporanga e realizam serviços de conservação, como destocamento, limpeza de pontes, bueiros e drenagem. Enquanto conversa pede um filé mal passado ao garçom do bar “Pedregulho”, em Patos, toma uma cerveja, bebe um cafezinho, paga a conta e vai dormir. Mas antes completa – O alistamento dessa gente, que já invadiu Itaporanga e Ibiara, foi coisa de polícia.

Político sendo fotografado ao lado de retirante nordestinos. Ótimo material de propagaranda.

Em Piancó, enquanto desfilava pela cidade numa ambulância doada pelo Ministério da Educação, o prefeito João Jerónimo Leite informou que. – Nos mil hectares das três fazendas que tenho, calculava colher 15 mil quilos de feijão e não colhi 300. Uma vaca de 160 quilos está sendo vendida para o corte por mil cruzeiros e antes da seca custava até dois e quinhentos. Quem vai se aproveitar dessa situação é a oposição, que vive de explorar qualquer coisa. Em seu gabinete ele paga dois mil cruzeiros de cereais que comprou no comércio e distribuiu com 300 flagelados que ameaçavam invadir a sua cidade.

O trabalhador rural Geraldo Bezerra comentou. – Somos do município de Diamante e faz vinte dias que estamos alistados e jogados aqui sem receber dinheiro. Não tendo dinheiro a gente não pode comprar nada e nem ir pra casa. Já adiaram três vezes o pagamento e toda semana eles dizem que sai e não sai, só enganando a gente. Enquanto isso, de três em três dias vem um carro pipa para colocar água em um tonel para os trabalhadores, mas o cidadão só com água não passa. Enquanto conversa vai mordendo um pedaço de pão e mordiscando um taco de rapadura que lhe deu o vigário de Piancó. Acena inutilmente pedindo carona para um carro que passa para os lados de Itaporanga.

Cozinheiro de uma frente de emergência.

Francisco Bernardino dos Santos vem conversar. – Num é o sinhô que anda anotando os malfeitos e os bem feitos daqui? Pois vou lhe contar um mal feito: a listagem da emergência foi uma bagunça. Tem gente de Piancó trabalhando na estrada lá pros lados de Conceição, aí tem gente de Conceição em Itaporanga e de Itaporanga em Piancó. Pra gente ir pra casa paga caro um carro de aluguel e os homens das bodegas, como não conhecem a gente, não vendem fiado. Ele desconhece, assim como os outros, que o pagamento vai ser feito no dia seguinte e será de Cr$ 512,00 por mês e dividido em quatro parcelas (O salário mínimo no Brasil em maio de 1977 era de Cr$ 1.106,40. Este valor foi estabelecido pelo Decreto nº 79.610 de 1977, e manteve-se constante até o mês de maio de 1978, quando foi reajustado).

Já o lavrador José Miguel comentou. – Por esse sertão todo, a gente só planta pra comer, a única coisa que a gente vende é o algodão, isso quando a safra é boa. Em Diamante, no período da safra do algodão, os comerciantes Manuel Ventura e Antônio Barros nos emprestam dinheiro a juros de 4% ao mês. E quando termina a colheita, a gente paga a eles e somos obrigados a vender a eles o algodão que, no ano passado eles compraram por Cr$ 3,50 o quilo, revendem por Cr$ 7,00 em Patos e em João Pessoa por muito mais. E conclui – A gente nasceu pra sofrer por causa dos pecados.

Uma mãe com seus filhos em busca de alimentos em uma cidade do sertão nordestino.

Francisco Guimarães, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaporanga reclamou da estrutura fundiária. – Sofre quem tem e quem não tem terra com a seca, mas sofre mais o rendeiro, que é pobre. E rendeiro é o que não falta por esse sertão afora. O rendeiro planta num pedacinho de terra de um proprietário e depois da colheita divide com ele a safra: algodão é de meia, metade pra cada um. Já o milho, feijão e arroz, que o rendeiro só planta para comer, é no sistema três por um: duas partes para o rendeiro e uma parte para o proprietário. Ele recusa um cigarro porque não fuma, “sou crente”. Disse também que dos 1.453 associados da entidade que preside, não tem sequer um dos deles em dia com o pagamento das mensalidades sindicais, de apenas Cr$ 5,00. E completa – Rendeiro é como boi de carro: é tudo cativo. Como não tem propriedade, não tem direito a empréstimo bancário. E tem: mas só se seu patrão avalizar.

Já o rendeiro Francisco Rodrigues comentou. – Arrendei uns dois hectares do sítio Favela, o melhor dessas bandas. Lá o algodão é de meia e o feijão e o milho é de três por um. Pois bem: plantei cinco quilos de sementes de feijão para colher 900 quilos e não colhi nada. De milho plantei 12 quilos de sementes para tirar 1.200 quilos e não tirei um. Observa o céu com poucas nuvens brancas e finaliza – Pois é, seu moço, foi gente assim, rendeiro como eu, que pra não morrer de fome já invadiu Itaporanga e Ibiara.

Sertanejos esperando receber carne durante a seca.

No dia 5 de junho de 1976, houve a invasão da cidade de Itaporanga por 300 flagelados da seca e colhi o depoimento do coronel Maurício Leite sobre os episódios registrados, além dos depoimentos de outras testemunhas oculares da invasão e de um dos seus líderes!

“Que, na qualidade de delegado de uma região que compreende 22 municípios do Vale do Piancó, eu, coronel Maurício Leite, estava informado que devido ao clima de tensão reinante, poderia se registrar de uma hora para outra a invasão de alguma cidade pelos flagelados. Era dia de feira e eu estava passeando entre as barracas, acompanhado de seis soldados e todos estávamos, inclusive eu, à paisana. De repente vi aquela correria de gente pela feira e entendi que Itaporanga estava sendo invadida. De princípio não fiz nada. Deixei que os invasores agissem, mas posso garantir que nem a metade dos que praticaram aquele ato era formada por famintos. A prova disso é que eles não se limitavam a levar comida, mas também tudo que se encontrava disponível. Efetuei a prisão de quatro invasores, mas não pude autuá-los em flagrante porque eles disseram que se meteram no saque só por folia!”

Entrega de água no sertão.

O comerciante Manuel Parente me disse sobre esse dia. – Eu estava despreocupado, era dia normal de feira e o movimento da minha bodeguinha até que estava bom. E sobre a invasão eu só posso lhe dizer que fechei minha bodega, corri pra minha casa, botei os meninos pra dentro e a minha mulher danou-se a rezar defronte do santuário porque pensava que a cidade toda ia ser saqueada. Foi muito feio, seu moço, muito feio.

Para o comerciante Filinto Evangelista de Lima foi assim que tudo se passou. – Sou um homem velho, seu moço, a vida só me deu esse barzinho que eu teimo em chamar de restaurante. Aí, de uma hora pra outra veio ter na minha porta um bando de gente ameaçando invadi-lo e levar tudo que tinha ali dentro! Aí eu fechei a porta e me armei. Nunca atirei em ninguém. Deus me livre, mas naquela hora, se fosse preciso, eu era capaz de uma loucura. Só sei que muito conhecido meu, perdeu tudo na feira e que as outras feiras, depois dessa, foram fraquinhas, fraquinhas. Os comerciantes que têm carros por aqui colocaram as mercadorias dentro deles, na iminência de arrancarem ao menor aviso de uma nova invasão.

Água recolhida de uma cacimba no leito sevco de um rio. Era utilizada para beber.

Um dos participantes da invasão. – Meu nome eu não digo pra Polícia não saber. Digo só que fazia uns 15 dias que a gente não recebia dinheiro, que já estava todo mundo alistado na beira da estrada de Piancó a Itaporanga. Que uns trabalham e outros não e que não havia ferramenta suficiente. Então a fome apertou, a gente se lembrou da mulher e dos meninos que estavam em casa sem nem notícia e pensamos: bom, hoje é dia de feira em Itaporanga, nós vamos e pedimos alguma coisa nas barracas. Ajuntamos um número grande e entramos na feira devagarinho, pra não espantar. Mas aí o senhor entende: uns tiveram medo de serem presos, outros de levar uns tiros e aí a gente desembestou como boiada assombrada. Mas moço compreenda: a gente fez isso porque estava todo mundo com fome e o senhor não pode imaginar o que um homem com fome faz.

Na estrada que liga as cidades de Conceição a Mauriti, de Mauriti a Imburana, de Imburana a Salgueiro, já em Pernambuco, encontram-se amontoados de gente e de redes atravessadas entre galhos de árvores. Gente da frente de emergência. E à noite faz um frio que nem o calor das fogueiras espanta.

Comida e pão entregue aos retirantes.

O engenheiro do Departamento de Estradas de Rodagem em Salgueiro, Waldenor Ramos, informou que. – Hoje em todo o Nordeste existem 1.121 frentes de emergência, empregando cerca de 170 mil homens. A abertura dessas frentes foi à solução encontrada pelo Governo para evitar o êxodo rural e a migração para as capitais. Sob o meu comando tenho quatro frentes, que estão implantando quatro estradas. São 10.831 trabalhadores, divididos em turmas de 30 cada uma. Como nas frentes dos outros estados, cada homem recebe o salário mínimo, descontados 8% para assistência médica. Dá líquido, por quinzena, Cr$ 234,00. Enquanto isso computa dados, reler papéis, aciona pessoas e distribui ordens.

Muitos dos homens que se alistaram já desistiram. Uns porque acharam duro o trabalho de escavar e transportar por dia 150 carrinhos de mão com terra e pedras. Outros porque preferiram voltar às suas roças ou ir embora para o sul. Já outros não desistiram, foram demitidos por arruaças. Já houve 14 mortes num desastre por abalroamento, uma morte por briga e dois feridos à bala num duelo – cita os dados de memória e orgulha-se da sua organização o engenheiro Waldenor.

Trabalho de retirantes na emergência, sendo vistoriada.

As frentes pagam melhor que os proprietários rurais e concorrem deslealmente com eles. Nelas trabalha-se pouco porque uma fiscalização efetiva é humanamente impossível. E mais: se essas frentes constroem estradas, e a maioria faz isso, essas estradas não duram muito. Desaparecem com dois ou três invernos porque foram construídas sem terraplenagem, à base do braço humano, sem análise de solo em laboratório, enfim, sem os requisitos técnicos indispensáveis. Esses homens deveriam ser empregados com maior utilidade na construção de barragens, açudes, aguadas, que são obras muito mais úteis para o combate aos efeitos da seca.

Já a rotina na frente de emergência para o lavrador José Pedro do Nascimento é assim. – O trabalho nessa estrada começa às sete da manhã, para às onze e meia, começa de novo às uma da tarde e vai até às cinco. Isso de segunda a quinta. Na sexta termina às três da tarde, porque é dia de pagamento e no sábado e domingo não se trabalha. O servicinho é duro, mas dá pra aguentar, o pior é o sereno da noite e o frio que deixa a gente mijado. – Mete a enxada com violência na terra, fala do feijão que não colheu, do arroz que perdeu e do algodão quem nem florou.


Maria das Dores Leite comenta, enquanto ajeita a criança enganchada na cintura e sobe a alça do vestido – Meu marido ainda conseguiu alguma coisa, porque tirou a planta nos baixios perto de um rio. Mesmo assim, teve de alugar um motor para molhar os legumes. Molhou seis vezes, pagando Cr$ 60,00 cada vez, fora o combustível que gastou Cr$ 70,00 só nisso. O resultado foi que os legumes, que a gente planta só pra comer, teve de vender 200 quilos deles só pra pagar essa despesa. Da venda do algodão é que a gente tirava um dinheirinho pra comprar um sapato, uma roupa, um remédio pros meninos. Mas o algodão se perdeu. E agora meu marido tá trabalhando alugado nas fazendas, ganhando Cr$ 10.00 por dia. A vaca que a gente tinha, morreu picada de cobra e o bezerro de tristeza.

Terra Nova: o cemitério de túmulos azuis e brancos domina a entrada da cidade. Faz muito calor no “Bar dos Inocentes”, onde nas paredes estampam pôsteres coloridos de Francisco Cuoco e de Bete Mendes e lá fora um bêbado se desequilibra pela calçada. A feira fica na praça principal, regurgitando gente e animais.


Vozes da feira.

O diálogo comum na feira de Piancó!

Gastei minhas economias comprando semente pra plantar. Uma coisa me dizia que essa safra ia ser boa. Mas só deu três chuvas por aqui. Chuva miúda, sem sustança. Abril nem pingou. O açude da nação, perto da minha roça, secou todo. Então perdi tudo e trabalho agora alugado… Um sofrimento… Uma lástima.

Um comentário sobre “SECA – 1877 – 1977

  1. Avatar de Tim Sheppard Tim Sheppard 02/07/2025 / 15:54

    Rostand, 800,000 deaths! How tragic, and many from starvation, a most horrible way to die. Let’s hope that climate change does not replicate the condition in the future. How are you and the family? We have settled in northern Colorado, which is a much cooler and more beautiful place to live than where we were previously. Some photos below of the new house and neighborhood:

    As you can see we brought our pets with us. Bosco was a bottle-fed calf (now 1,800 lbs) which we have had since 2013 and the miniature donkeys as well. That is why we have the barn and my son Chris lives above and cares forthe livestock. The treehouse was built by the previous owners for his children and we like it as well. Your friend, Tim 

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