JORGE FERNANDES – POETA E DRAMATURGO

Em 25 de novembro de 1957, o escritor Luís Patriota realizou o seu discurso de posse na Cadeira nº 9, da Academia Potiguar de Letras, cujo patrono era o poeta Jorge Fernandes. Trago parte desse discurso, que foi publicado na REVISTA DA ACADEMIA POTIGUAR DE LETRAS, Natal, 1964, número 02, páginas 7 a 14.

Senhores Acadêmicos: Aqui me tendes para fazer o elogio do patrono de minha cadeira, Jorge Fernandes — Poeta e Dramaturgo. À primeira vista se vos afigurará, talvez, um paradoxo, porque eu, integrante da velha guarda, haja escolhido para meu patrono nesta Academia um poeta filiado à nova escola, da qual, aliás, era ele o mais legitimo representante no meio intelectual da província e quiçá um dos mais prováveis precursores desse movimento de renovação nacional, que, não obstante contar com a adesão de figuras exponenciais da literatura brasileira, não conseguiu ainda, nem conseguirá jamais, (queiram ou não queiram os modernos Zoilos) sobrepujar a poesia antiga, cingida de metro clássico, tão ao gosto da nossa gente, por índole, sentimental e emotiva. Eu vos darei a resposta convincente e clara: Jorge Fernandes foi um poeta na legítima acepção do termo, abrangendo todas as escolas com arte e perfeição absoluta, assim é que, tanto fazia um soneto, com a célebre chave de ouro, rimas ricas e bom jogo de palavras, como sabia compor versos modernos, penetrando até à geração que sucedeu ao modernismo e ao pós-modernismo..

Outro motivo da preferência na escolha do meu patrono, reside no fato de, nos últimos anos de atividade funcional do poeta, no antigo Departamento Estadual da Fazenda, haver trabalhado eu, ao tempo do Conselho Administrativo, junto a ele já alquebrado e desiludido de todos e de tudo, cujas funções a seu cargo se limitavam ao fatigante serviço de carimbar talões de guias fiscais.

Tive o feliz ensejo de, naquele tempo, privar de sua intimidade e ouvir-lhe, com a máxima atenção, a narrativa minuciosa e completa de suas profundas queixas e decepções, como um “desabafo” para o seu coração de poeta, porque alto demais pairava o seu sonho, para ser alcançado…

E de tanto desejar descobrir esses arcanos da Natureza e de tanto se convencer da impossibilidade de atingi-los, foi que Jorge Fernandes começou a fazer ironia, na prosa e no verso, como se em nada mais pudesse acreditar..

Hoje praticamente esquecidea, a Academia Potiguar de Letras foi criada por vários intelectuais locais e conseguiu deixar algumas revistas com interessante material.

Veríssimo de Melo que, através da Revista BANDO, forneceu-me abundante subsídio para este modesto trabalho acerca de Jorge Fernandes, chamou-me ainda a atenção, numa das suas apreciáveis crônicas diárias publicadas n’A REPÚBLICA, para o Jorge Fernandes — Concretista, nas seguintes palavras: — “Em palestra com Luís Patriota e Newton Navarro, eu dizia ontem e agora torno “público que não há em toda a nossa literatura provinciana, nenhuma poesia mais atual do que a de Jorge Fernandes. A propósito, Navarro acrescentou um fato que não deve passar sem um registro, principalmente nesta hora em que um nosso intelectual se prepara para escrever-lhe o elogio acadêmico.

Se o movimento moderno, chamado “concretismo”, consiste principalmente na representação das ideias ou palavras em linhas ou formas geométricas, não se pode negar que Jorge Fernandes também foi um precursor desse concretismo. No seu poema “Rede”, que é, aliás, delicioso, Jorge Fernandes fala sobre os prazeres que uma boa rede nos proporciona e termina por colocar a referida palavra em forma de semicírculo, exatamente como uma rede armada.

Foi a maneira mais viva que ele encontrou para nos transmitir a ideia de uma rede.

Jorge Fernandes.

E não é isto que os chamados poetas concretistas têm feito para aludir às coisas que podem ser representadas em formas geométricas?

Pois bem, senhores acadêmicos, é outra faceta por demais interessante do talento poético de Jorge Fernandes, e uma demonstração evidente do quanto era ele capaz, fazendo à moderna poética brasileira vaticínios sobre o que seria realmente a poesia do futuro, sem expressão nem sentimento, e já de si inaceitável, por insubsistente.

A poesia de Jorge Fernandes é bem outra, moderna, porém expressiva e de roupagem adequada ao gosto, por que não dizê-lo? até mesmo dos filiados à velha escola, pelo encanto, graça e ironia que emprestava aos seus poemas.

Documento de Jorge Fernandes.

Escrevia-a com naturalidade e sem preocupações de forma e de estética, mais chegada ao coração e aos motivos do povo. E assim mereceu a consagração de pioneiro do movimento modernista, em nossa terra, confirmada por Mário de Andrade, através da seguinte carta:

Jorge Fernandes — Por intermédio desse queridíssimo Luiz da Câmara Cascudo faz já um mundo de tempo que recebi uns poemas de você, entre os quais dois dedicados a mim. Só agora, e como sempre de carreira, venho lhe dizer o muito obrigado efusivo e a sinceridade enorme com que me agradam os seus versos. Tem neles um certo at brusco meio selvagem, meio ríspido e, no entanto, côa de tudo uma doçura e um carinho gostoso. Tudo isto eu tenho apreciado e me tem dado vontade de ter mais coisas suas. Você é original e incontestável, e é duma originalidade natural nada. procurada. Isso é dom preciosíssimo, meu amigo. Fique certo que ando guardando os poemas de você como um dos mais interessantes dentre os do nosso Brasil de hoje. Veja se me manda mais coisas. Estou com ideias de escrever chamando a atenção sobre vocês daí norte-rio-grandenses e você terá lugar. importante nesse artigo. Vá mandando coisas que fizer, pois, mesmo que não seja por causa disso, só por causa da nossa amizade que no ano que vem será conversada, voz contra voz, nós dois aí mesmo em Natal bonita. (Não pense que este “bonita” é para agradar, tenho umas fotografias de Natal aqui e gostei muito). Veja se escreve um pouco e mande dizer se recebeu o livro que mandei para você. Conte coisas e retribua este abraço do Mário de Andrade.”

Ouçamos, agora, Peregrino Junior, atual Presidente da Academia Brasileira de Letras, em carta dirigida a Lenine Pinto:

Agradecendo o exemplar do “Diário de Pernambuco”, que me enviou, quero felicitá-lo calorosamente pela entrevista com Jorge Fernandes — a maior figura literária de nossa terra. Foi justa e oportuna sua iniciativa. Jorge Fernandes — grande poeta, grande contista, grande dramaturgo, —merece todas as homenagens, que nenhuma é bastante alta para o seu valor, apesar da modéstia e do silêncio em que ele vive. Velho fã de Jorge Fernandes, se faz que possamos crer no homem, mas sem nenhum motivo para descrer nas suas palavras”.

Reportagem onde Jorge Fernandes deu um depoimento a Lenine Pinto em 1949, quantro anos antes de sua morte e reproduzida no Diário de Pernambuco. Na época essa matéria repercutiu muito.
O saudoso Lenine Pinto e Rostand Medeiros.

Octacílio Alecrim, no seu primoroso livro PROVÍNCIA SUBMERSA, faz inúmeras referências a Jorge Fernandes, com transcrição de vários dos seus poemas, entre outros: REDE, (pag. 27); A RODA (pag. 72) e CANÇÃO DO INVERNO (pag. 94)

Declamemos dois deles.

REDE

Embaladora do sono…

Balanço dos alpendres e dos ranchos…

:E- vaivém de modinhas langorosas….

Vaivém de embalos e canções…

Professora de violões…

Tipoia de amores nordestinos…

Grande… larga e forte… para ensaios…

Berço de grande raça

Suspensa…

Guardadora de sonhos…

Pra madorna ao meio-dia…

Grande… côncava…

Lá no fundo dorme um bichinho

— Ô… ô… ô… ôô… ôôôôôôôôôô…

— Balança o punho da rede pro menino dormir…

A RODA

Lá vai rodando a roda

        Pelo fio do passeio

Equilibrada por um arame…

       Ninguém lhe esbarra a carreira…

Aquela roda já teve raios dourados

         E uma borracha em torno…

Era de um velocípede de criança rica…

Depois perdeu os raios dourados…

         Perde tudo…

Sozinha… ôca… vagabunda

         Lá se vai rua afora:

               Dourada…

                 Macia…

             Ambicionada

Aos olhos satisfeitos do menino pobre...

Como acabámos de ouvir, há muito de apreciável nesse gênero de poesia, dependendo unicamente dos recursos do poeta a maneira de tocar à sensibilidade e ao paladar do leitor, na exaltação de suas faculdades mentais, desenvolvidas em relação ao culto da Beleza e da Verdade.

Nenhum poeta deve simular aquilo que não sente, ‘nem disfarçar os seus próprios sentimentos, porque “escrever mentindo é um sacrilégio do coração”.

E, como a palavra é realmente para o poeta a expressão da alma, D. Silvério Gomes Pimenta já dizia que, na boca do poeta, a palavra fala à fantasia e ao coração, povoando aquela de imagens e revolucionando este de afetos, acrescentando que Jesus é a imagem substancial da inteligência eterna, e a palavra é a imagem acidental da inteligência criada.

Falar em Jorge Fernandes, senhores acadêmicos, é lembrar o último fidalgo, no conceito luminar de Câmara Cascudo: — Sebastião Fernandes, o poeta de fina sensibilidade, o orador fluente e primoroso e o exímio cultor do Direito, em nossa terra, a quem Jorge dedicou o MEU POEMA PROVINCIANO Nº 5, aludindo ao sino grande da Matriz:

“Foi a este sino que meu irmão, num soneto,

pediu que ele dobrasse muito no dia que ele morresse…

(Felizmente o meu irmão está vivo e tomara

que ele tão cedo não dobre muito por ele)”.

TRAÇOS BIOGRÁFICOS

Jorge Fernandes nasceu em Natal, aos 22 de agosto de 1887, sendo seus pais o professor Manoel Fernandes de Oliveira e Dona Francisca Fagundes de Oliveira. Ao concluir os seus estudos escolares, colocou-se no antigo estabelecimento industrial “Fábrica Vigilante”, de Filadelfo Lira, e, no desempenho das funções de pracista, viajava periodicamente o sertão, oportunidade que sabia aproveitar, na obtenção de valiosos subsídios para vários de seus poemas que constituem, hoje em dia, o mais apreciável regalo espiritual de seus inúmeros admiradores.

Do seu primeiro consórcio com Dona Maria da Conceição Fernandes de Oliveira, realizado em 1º de janeiro de 1910, houve quatro filhos: Alba, Iara, Ilka e Rui Fernandes de Oliveira. Contraindo segundas núpcias, aos 29 de março de 1924, deixou viúva d. Alice Fernandes de Oliveira e filha Alice, além de outra, de nome Jurema, já falecida.

No dia 17 de agosto de 1953, aposentado como oficial administrativo do Departamento da Fazenda Estadual, veio a expirar em sua residência, à rua Vigário Bartolomeu, aos 66 anos de idade.

O POETA E SUA OBRA

Jorge Fernandes de Oliveira escreveu e publicou um único trabalho — LIVRO DE POEMAS (Tip. d’“A Imprensa”, Natal, 1927), prefaciado por Luís da Câmara Cascudo, e as seguintes peças teatrais: ASSIM MORREU… MANHÃ DE SOL, ANTI-CRISTO (de colaboração com Virgílio Trindade), A MENTIRA, O BRABO, PELAS GRADES e DE JOELHOS. Em parceria com Virgílio Trindade e Ezequiel Wanderley, escreveu CÉU ABERTO, algumas delas ou todas representadas no antigo Teatro Carlos Gomes, por iniciativa do “Ginásio Dramático de Natal”, e que muito contribuíram para os aplausos recebidos por Jorge Fernandes.

São estes, srs. acadêmicos, os ligeiros densos biográficos que pude obter, em relação ao patrono de minha cadeira nesta Academia, nas fontes a que. recorri, e estou certo de que mais não será preciso dizer, mesmo porque a personalidade inconfundível de Jorge Fernandes foi por demais conhecida de todos nós, como uma glória das letras norte-rio-grandenses.

Ao tomar posse de minha cadeira, prezados confrades, não tenho palavras para agradecer tão importante distinção que me proporcionais com a vossa companhia; e, em’ particular, ao ilustre confrade Marcos Falcão, quero – também expressar o meu sincero e profundo agradecimento pela generosidade de suas palavras amigas e o estímulo de sua amizade e valiosíssima contribuição à magnificência desta noite.

Senhores Acadêmicos: Olavo Bilac disse, certa vez, que à Academia, como ao Paraíso e ao etos se pode chegar por diversos caminhos…

Não quis eu chegar, pois, sozinho a esta Casa; poderia tomar rumo diferente… Por isso escolhi esse companheiro para a minha jornada. Aqui estou, deixai-me entrar!…

MÁRIO DE ANDRADE E NATAL: UMA ÓTIMA RELAÇÃO

A Relação do escritor paulista e a cidade do Natal

Autor – Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Em 2008 se comemoraram os oitenta anos da visita do escritor paulista Mário de Andrade ao Rio Grande do Norte, quando aqui sentiu, viu coisas interessantes, conversou, fez amizades e levou uma imagem sobre Natal e o Nordeste que marcariam sua obra. Mas como esta visita repercutiu em Natal? Como a imprensa da época tratou este assunto?

Em 1928, o paulistano Mário Raul Moraes de Andrade já era uma figura consagrada na nossa literatura, desde 1922 quando ocorreu em São Paulo, a Semana de Arte Moderna. Este foi um movimento cultural, do qual foi um dos líderes e exerceu grande influência em outros escritores. Neste mesmo ano publicou seu livro “Paulicéia desvairada”, que provocou forte reação do público e da crítica.

A partir de 14 de agosto de 1924, o consagrado autor passa a manter com Luís da Câmara Cascudo, uma profícua troca de correspondências, onde decide realizar uma segunda “viagem etnográfica” pelo interior do Brasil (a primeira ocorreu em 1927 e visitou a região Norte).

Possuído por uma irrequieta e curiosa vontade de descobrir o que o Brasil dos “rincões” o escritor paulista não se contentava em ser um pesquisador de “gabinete”. A viagem era parte importante do seu processo de descoberta e contemplação da nossa cultura.

A época do planejamento e concretização desta viagem, Mário era amigo do paraibano, radicado no Rio Grande do Norte, Antônio Bento de Araújo Lima, que seria um dos seus acompanhantes durante esta empreitada.

A viagem ao Nordeste já estava planejada e orçada desde 1926, mas apenas em fins de 1928 pode ser concretizada. A chegada pelo mar se deu no Recife, em 3 de dezembro, dali em diante seguiram por terra e só retornara a São Paulo em 20 de fevereiro do ano seguinte.

As cidades de Natal, Recife e Parahyba (atual João Pessoa) foram suas principais bases para seus levantamentos e pesquisas e Natal foi local de permanência mais demorada. Passaram um mês e meio na capital potiguar, treze dias na pernambucana e onze dias na paraibana.

Mário chegou a Natal no dia 14 de dezembro de 1928, uma sexta-feira, tendo sido recepcionado na estação ferroviária da Great Western por Câmara Cascudo, de quem era hóspede. Afirmou ao jornal “A Republica” que sua visita ao Rio Grande do Norte se prendia a “estudos literários”. No mesmo trem que trouxe o escritor paulista, uma pequena notícia social informava que, igualmente chegou de Recife, havia desembarcado o acadêmico do 1º ano do curso jurídico, o jovem Afonso Bezerra, sem haver nenhuma indicação de algum contato deste e Mário de Andrade.

A visita do escritor movimentava a intelectualidade da cidade. O colunista Aderbal de França apresentou Mário de Andrade como “vanguardeiro de uma das principais correntes do pensamento brasileiro”. Ele Perguntava; “e a que veio o notável escritor de Macunaíma?”, para mais adiante responder “na sua simplicidade habitual, estudar as tradições da nossa terra, para decantá-las na feição moderna que tão bem sabe lapidar os hábitos conservadores da nossa raça”.

Um pouco do que Mário de Andrade viu de Natal e que ainda existe.

Não faltou na coluna uma referência ao falecido poeta potiguar Ferreira Itajubá; “Mario de Andrade se desagrega das ruas, cheirando a indústria da paulicéia e vem as ruas com anseios de progresso da terra de Itajubá, que se vivo fosse vivo, seria, talvez, aqui, um da “escola paulista”.

Finalizava Aderbal apresentando uma ideia de certo pioneirismo que esta visita apresentava a cidade “Vem, dentro do seu modernismo, ver de perto o que possuímos aí pelos recantos da cidade e do interior, porque em verdade, a vida do norte vive sempre tão ignorada dos intelectuais do sul!”.

No dia seguinte, Mário e Cascudo visitaram o governador Juvenal Lamartine no seu gabinete, em visita de cortesia. Esta visita se repetiria no dia 18, e ficaram registradas.

Oscar Wanderley, comenta em artigo publicado em 8 de janeiro, uma visita feita pelo escritor, junto com Cascudo e Antônio Bento, a redação do jornal “A Republica”, então um ponto de encontro dos intelectuais da terra.

Já nos primeiros dias, além de Cascudo e Bento, Mário vai criando na cidade um círculo de amigos como Barôncio Guerra, Cristóvão Dantas, Jorge Fernandes e outros. Estes são os companheiros de banho de mar (principalmente na praia da Redinha), de passeio, de descanso, de pesquisa. Em toda parte, “gente suavíssima que me quer bem, que se interessa pelos meus trabalhos, que me proporciona ocasiões, de mais dizer que o Brasil é uma gostosura de se viver”, conforme escreveria o autor no futuro.

As Impressões da Cidade Sobre o Escritor Paulista

Os jornais natalenses não são prolíficos sobre a opinião gerada na comunidade em relação à visita do escritor a cidade. Oscar Wanderley, entretanto, narra as impressões de uma visita noturna a Mário de Andrade, na “Vila Cascudo”.

Além de Oscar e do próprio Mário, estavam presentes, o anfitrião Cascudo, Vicente Gama, Alberto da Câmara, Arary Britto, e o desportista José Hugo, o “Zezé”. Mário acolheu a todos com familiaridade, estava ao piano, bebendo café, debatendo, ou reverentemente escutando e anotando freneticamente as toadas e canções que lhe eram apresentadas, principalmente por Vicente Gama e Arary Britto. Entre goles de café, Mário comentava com os presentes aspectos de “bruxarias”.

Sobre este comentário, Wanderley afirma que o jornalista Damasceno Bezerra, lhe informou estar o escritor paulista desejoso de visitar “um Catimbó lá pras bandas do Alecrim”.

Mário de Andrade é apresentado com “mãos longas, de dedos muito finos, cor de marfim velho, na extremidade de dois longuíssimos braços, que faziam gestos despreocupados, entremeando as nossas primeiras saudações”.

Wanderley deixa escapar em suas linhas que esta inimitável figura paulistana, já estava se tornando habitual, ao dia a dia da ensolarada capital nordestina, de vinte poucos mil habitantes; “Não sei se todos os senhores já o virão por aí, a caça de Sambas, de Cocos, de Pastoris, de Cheganças, de Bumbas-meu-boi. Viram-no, de certo”.

O encontro só acabou após as vinte e duas horas, onde o autor de “Macunaíma” deixou uma impressão de “honestidade estrutural do caráter do artista-escritor”.

A Natal Popular e Outras Paisagens

É nesta condição de “honestidade cultural” que o pesquisador organizado, aliado a sua infatigável capacidade de trabalho, parte para conhecer, junto com Câmara Cascudo, Antônio Bento e outros, o Boi, o Fandango, a Chegança, os Congos, o Catimbó, seus mestres e feiticeiros. Busca os bairros populares, “sem iluminação, sem bonde, branquejado pelo areão das dunas”. Mário de Andrade mostra sua predileção pela Natal menos visível, dos bairros proletários, com suas brincadeiras populares. Nas praias de Areia Preta e da Redinha, o escritor encontrou; “Sambas, Maxixes, Valsas de origem pura, eu na rede, tempo passando sem dizer nada”, (conforme comentaria em seu futuro livro “O turista Aprendiz”).

Para ele, a Natal do final dos anos de 1920, era uma cidade que se mostrou alegre, mas com relações distintas, onde o escritor paulista não deixa de lado a crítica social: pois, “se saúde, facilidade, bem-estar fosse dedutível da alegria, o proletário nordestino vivia no paraíso”.

O escritor comenta, em uma anotação feita em 2 de janeiro de 1929, o que via da cidade; “Não há mocambos (favelas). O mangue fica da outra banda do Potengi, onde ninguém mora. No Alecrim, como em Rocas, as casas são cobertas de telha e muitas de tijolo. Se enfileiram pequititas, porta e janela de frente, em avenidas magníficas, todas com o duplo de largura da rua comum paulistana”.

Mário realizava um roteiro até então pouco usual de introdução às cidades nordestinas. Apreciando a cultura, festas populares, arte, história, mas também as comidas e as bebidas locais, as praias e os banhos de mar.

Durante sua permanência em Natal, junto com Antônio Bento, o escritor vai à fazenda “Bom Jardim”, na região de Goianinha, conhecer e se encantar com o trovador “Chico Antônio”, como era conhecido Francisco Antônio Moreira. Para Mário, “Chico Antônio não sabe que vale uma dúzia de Carusos”.

Chico Antônio na década de 1920.


Depois de algum tempo desfrutando das benesses da capital e da região próxima ao litoral, chegou à hora de seguir em direção ao interior do estado. Dois relatos sobre a visita ao sertão são publicados no jornal “A Republica”; uma foi a série de crônicas de viagem produzidas por Câmara Cascudo, intituladas “Diário dos 1.104 km” e a outra foi o interessante material escrito por Antônio Bento “Macau-Assu-Seridó-1.104 km em cinco dias”, escrito no dia 27 de janeiro.

A Despedida da Cidade

No dia 25 de janeiro, Mário de Andrade realiza uma última visita de cortesia ao governador Juvenal Lamartine. No outro dia, às oito da noite, no tradicional Hotel Internacional, ele é homenageado com um jantar, onde estiveram presentes, além de Câmara Cascudo, Antônio Bento, Cristóvão Dantas, Lélio Câmara, Omar O’Grady, Luiz Torres, Nunes Pereira, Adauto Câmara, Jorge Fernandes e Gonzaga Galvão. Juvenal Lamartine foi convidado, mas não foi, mandou seu ajudante de ordens, o capitão Genésio Lopes, representá-lo.

Na manhã do dia 27, o escritor paulista tomou um automóvel para a cidade da Parahyba (atual João Pessoa), em companhia de Antônio Bento e a convite de José Américo de Almeida.

Qual foi a principal marca que a visita de Mário de Andrade deixou em Natal?

Mário de Andrade e Câmara Cascudo viajando pelo sertão.


O engenheiro agrônomo potiguar Garibaldi Dantas, em uma interessante crônica, publicada no dia 6 de abril de 1929, em “A Republica”, apontava a validade da iniciativa de Mário de Andrade em visitar e pesquisar as tradições nordestinas, mostrando a intelectualidade local à importância do que possuíamos em termos de cultura.

Dantas criticou duramente a intelectualidade potiguar, afirmando que “ao invés de ficarem nas eternas questiúnculas bizantinas de escolas estrangeiras, fossem ao nosso interior, e de lá trouxessem estes motivos interessantes que um dia poderão ser gênese de algum trabalho formidável e original”. Conclamava os “literatos do norte” a evitarem a triste ideia corrente de crescer e fugir do meio. Dantas afirmava certamente baseado na experiência de um engenheiro agrônomo que conhecia o interior, que “o Brasil não está nas capitais. Está no sertão rude, brutal, desconhecido mesmo”.

Dantas afirmava que a corrente de brasileirismos criada pela Semana de Arte Moderna de 1922, mesmo com seus exageros, “terá um dia a sua significação formidável, na formação de uma mentalidade brasileira”.
Ele não estava errado.

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