Texto original de Maria da Conceição Cruz Spineli, intitulado MITOLOGIA DO VALE DE CEARÁ-MIRIM: A ESTÓRIA DA BOTIJA NO ENGENHO SÃO PEDRO TIMBÓ e publicado por Pedro Simões Neto.
No nordeste (dizem…), os holandeses, jesuítas ou ricos fazendeiros, deixavam escondidas verdadeiras riquezas, que ficavam enterradas no chão, em paredes de taperas, em mourões de porteiras ou nas proximidades de grandes árvores, até que um dia, através de sonho, mostrava-se a um escolhido, o local exato onde estava aquele tesouro. No sonho era informado como se comportar para a retirada da “Botija. Sempre à noite e sem acompanhantes. Quem não cumprisse as determinações, não receberia o tesouro. E, com a fortuna nas mãos, a pessoa deveria se mudar para um lugar distante, caso contrário, não desfrutaria da riquezas.
O Ceará-Mirim também teve as suas “botijas”. Muito se ouviu falar das riquezas obtidas por esse meio, embora tudo estivesse no campo do “boato”. Hoje, finalmente, a Acadêmica Ceiça Cruz apresenta um desses casos, por ela vivenciado.
MITOLOGIA DO VALE DE CEARÁ-MIRIM:
A ESTÓRIA DA BOTIJA NO ENGENHO SÃO PEDRO TIMBÓ
Maria da Conceição Cruz Spineli, ocupante da Cadeira 19 da ACLA
Em Dicionário do Folclore Brasileiro, pág. 681, Câmara Cascudo afirma que tesouro significa “dinheiro enterrado, o mesmo que botija para o sertão do Nordeste, ouro em moedas, barras de ouro ou de prata, deixadas pelo holandês ou escondidos pelos ricos, no milenar e universal costume de evitar o furto ou o ladrão de casa, de quem ninguém evita”.
Ainda no mesmo verbete, Câmara Cascudo diz que “os tesouros dados pelas almas do outro mundo dependiam de condições, missas, orações, satisfação de dívidas e obediência a um certo número de regras indispensáveis, trabalhar de noite, ir sozinho, em silêncio, identificar o tesouro pelos sinais sucessivamente deparados […]. O tesouro é encontrado unicamente por quem o recebeu em sonhos […]. Se faltar alguma disposição, erro no processo extrativo, o tesouro transformar-se-á em carvão.”
Lá pelo Timbó também encontramos estórias de tesouros enterrados, de minas, botijas. O assunto era para adultos, mas as crianças curiosas escutavam. Falava-se em sussurros as coisas do além, do sobrenatural, de almas penadas querendo livrar-se do fardo da mina enterrada de que nada lhes servia no outro mundo. Geralmente o pedido da alma penada vinha sob a forma de sonho. No Engenho Timbó, um homem e uma mulher tiveram um sonho idêntico, na mesma noite, e logo cedo os dois confabulavam a experiência e se arvoraram na empreitada. A mulher me contou, anos depois, detalhes do sonho: que era um homem alvo e bonito, vestido com rica indumentária (inclusive me falava de abotoaduras douradas em sua roupa e nas botas), cortês e educado, e que lhe indicava a existência de um tesouro enterrado debaixo da tamarineira que ficava no meio do curral dos burros, no Timbó de Dentro. O homem do sonho era bem didático, riscando o chão com um graveto, para explicar-lhe com muita clareza o local exato onde enterrara o tesouro.
Ela deveria sair de casa ainda escuro da madrugada, ele insistia que fosse cedo, antes do sol nascer. Que fossem só ela e o senhor que tivera o mesmo sonho, que fizessem orações no percurso e durante toda a operação, que levassem água benta e não portassem objetos cortantes, pontiagudos ou armas de fogo. No sonho, ele ficava de cócoras, mexia na terra com as mãos dizendo que a terra onde estava enterrado o tesouro era bem fofinha, que ela não teria dificuldades em encontrá-lo, que o sinal era uma bola de ouro que estaria amarrada a uma corrente, também de ouro, fechando a tranca de um caixão comprido.
Durante o sonho, enquanto conversava com o senhor bem trajado, aparecia uma mulher, maltrapilha, os poucos cabelos ralos desalinhados pelo vento. Ela parecia estar suspensa do chão. A figura acanhada não falava, só olhava com olhar vago e mortiço o senhor que dava detalhes de como proceder para a retirada da mina. Dessa figura, a mulher que me contou o sonho tinha medo, muito medo.
Depois de muito conversarem, resolveram sair em busca do local onde estava a mina. De cara, contrariaram quase todas as regras impostas pela alma penada doadora do tesouro. Saíram com o sol alto, levaram um grupo grande de pessoas com pá, enxada, até gente com arma de fogo na cintura. Eu acho que eles tinham medo de saírem ainda escuro e só os dois.
Começaram a retirada do tesouro, o homem mandava os trabalhadores cavarem com a enxada e a pá, e a mulher pedia que só usassem as mãos como lhe ensinara o doador da mina, no sonho; assim o fizeram. Na busca, começaram a ver a bola de ouro, o sinal anunciado no sonho, quando surgiu um enorme cachorro com os olhos de fogo e um dos trabalhadores que cavava o chão gritou: “ô cachorro da mulesta!”; o cachorro saiu em disparada e o local em que já aparecera a bola de ouro virou um imenso formigueiro.
A frustração da mal sucedida empreitada ainda persiste após muitas décadas. Conta-se que poucos dias após o ocorrido, um trabalhador com serviço alugado em tempo da safra da cana, e que se hospedava na casa grande do Zumba, no Timbó de Dentro, havia tirado essa mina nas caladas da noite. Esse homem desapareceu do engenho misteriosamente. No local onde estava enterrada a botija, só um grande buraco.
Salvamento da nau Vasco da Gama, em 6 de agosto de 1850, em óleo sobre tela de Eduardo de Martino
Misturadas às exuberantes flora e fauna subaquáticas do litoral brasileiro estão embarcações antigas e suas preciosas cargas;muitas já foram resgatadas, outras ainda permanecem como mistério a desvendar.
TEXTO – Armando S. Bittencourt
Quando o grande navio encalhou, já quase chegando a Salvador, ao bater no banco de Santo Antônio, aproximadamente às 18 horas daquela noite escura e tempestuosa de 5 de maio de 1668, todos a bordo sabiam que havia poucas chances de sobrevivência. Logo depois, o galeão português Sacramento (também conhecido apenas por Sacramento) se soltou e começou a afundar. Às 23 horas, só restavam destroços na superfície do mar. A bordo estavam cerca de 600 pessoas, entre tripulantes e passageiros que vinham de Portugal, inclusive o general Francisco Correia da Silva, designado para o cargo de governador do Brasil.
Ele não estava entre os que se salvaram, cerca de 70 pessoas, principalmente marinheiros e soldados. Foi uma grande tragédia, lamentada pelos cronistas dos tempos coloniais. Era um navio de guerra português, construído em 1650, na cidade do Porto, para enfrentar as grandes viagens oceânicas e projetar, além-mar, o poder militar de Portugal.
O mundo vivia um período de conflitos, de maneira que as embarcações mercantes navegavam agrupadas em comboios, sob a escolta de navios de guerra. O Sacramento era, justamente, a nau capitânia da frota de uns 50 navios que, no regresso do Brasil, levaria a produção da colônia para a Europa. Trezentos anos depois, no início da década de 1970, o exato local do naufrágio do Sacramento, em frente ao rio Vermelho, na Bahia, foi encontrado por mergulhadores. O sítio arqueológico era um amontoado de pedras de lastro e objetos, inclusive canhões de ferro e bronze. Na mesma década, a Marinha e o Ministério da Educação e Cultura ofereceram os meios para recuperar parte do material submerso, que estava sendo saqueado. O trabalho se desenvolveu de 1976 a 1987 e parte do que foi recuperado integra a exposição permanente de Arqueologia Subaquática do Espaço Cultural da Marinha, no Rio de Janeiro.
Essa foi a primeira ocasião em que, de fato, se incorporaram preocupações arqueológicas em um resgate de peças em sítio de naufrágio, no Brasil. O resultado foi impressionante: canhões de bronze portugueses, ingleses e holandeses, dos séculos XVI e XVII; ânforas de cerâmica utilizadas para transportar a carga de azeite de oliveira ou mesmo azeitonas; louça portuguesa (faiança), inclusive peças pintadas em azul, com as armas do general Francisco Correia da Silva (provavelmente de sua bagagem pessoal); astrolábios portugueses do século XVII; punhos de navalhas; imagens de Cristo e de santos, feitas de chumbo ou de cerâmica. Um verdadeiro tesouro artístico e cultural, de grande importância para a história.
Naufragaram muitos outros navios, antes e depois do Sacramento, na costa brasileira; seguramente centenas deles. O primeiro de que se tem notícia fazia parte da frota de Gonçalo Coelho e afundou próximo à ilha de Fernando de Noronha, em 1503. Muitos eram caravelas, naus e galeões em missão mercantil ou de combate, durante o período da ocupação do Nordeste brasileiro pela Companhia das Índias Ocidentais holandesa. Havia os que aqui arribaram, nos séculos XVI, XVII e XVIII, em busca de abrigo, reparação nos estaleiros ou provisões – alguns traziam cargas de produtos do Oriente. Outros afundaram com ouro, no século XVIII. Navios mercantes ou de guerra foram a pique nos séculos XIX e XX, entre os quais alguns torpedeados durante a Segunda Guerra Mundial por submarinos alemães e italianos. Entre estes, também, houve os que foram destruídos durante a guerra por ataques de navios de guerra de superfície ou mesmo aviões – como o U-199, que soçobrou no litoral do Rio de Janeiro, atingido por um avião PBY Catalina, da Força Aérea Brasileira.
Cápsulas do Tempo
Sítios subaquáticos de navios naufragados são verdadeiras cápsulas do tempo, de enorme importância para o conhecimento do passado. Os arqueólogos podem ter um contato direto com restos materiais que são testemunhos de uma época e cultura.
Passam a conhecer detalhes das técnicas de construção naval, das cargas, das bagagens, dos costumes e da vida a bordo. A devolução, para a sociedade, do conhecimento assim obtido constitui a antítese da caça ao tesouro, tão cara ao imaginário coletivo, ou da recuperação isolada de objetos, sem a análise do contexto histórico global das informações. É um trabalho que requer rigor científico. Afinal, a costa brasileira foi importante na época das Grandes Navegações, no século XVI, quando os oceanos deixaram de ser obstáculos para se transformar nas principais vias de comunicação entre os povos distantes. Foram os portugueses que desenvolveram os navios oceânicos: a caravela para a exploração, a nau para o comércio e o galeão para a guerra. A matriz dos navios de oceano definida por Portugal, durante os séculos XV e XVI, foi objeto, em outros países, de diversos aperfeiçoamentos, principalmente a partir da chamada Revolução Científica, que ocorreu na Europa no século XVII (e que Portugal não acompanhou), fundamental para a formação do mundo em que vivemos.
Cena de Batalha Naval, neste caso o combate do Cabo São Vicente, Sagres, Portugal, 16 de janeiro de 1780 - Fonte - http://nlusofonia.blogspot.com
A recuperação da tecnologia da construção naval, ao longo do tempo, é também uma importante conseqüência dos estudos feitos em sítios subaquáticos. Além do Sacramento e da nau de Gonçalo há outros naufrágios antigos, no Brasil. Entre os da primeira metade do século XVI estão: o navio em que viajava Diogo Álvares Correia, o Caramuru, na Bahia; a caravela de João de Solis, em Santa Catarina; o navio de Francisco Pereira Coutinho, na Bahia; além de diversas naus francesas. Suspeita-se até que exista um sítio arqueológico do século XVI no interior da baía de Guanabara, próximo à ilha do Governador, que talvez tenha abrigado a famosa Feitoria de Cabo Frio, onde os portugueses armazenavam o pau-brasil antes de transportá-lo para a Europa.
Esses sítios são descobertos com a ajuda de equipamentos, como os sonares, que localizam os objetos submersos por eco. Entre os itens mais fáceis de identificar estão os canhões. A Marinha possui uma valiosa coleção de canhões de bronze recuperados do fundo do mar, fabricados por portugueses, ingleses e holandeses.
Detalhe de um canhão português, em exposição no Museu Náutico da Bahia, Forte de Santo Antônio da Barra (Farol da Barra), Salvador, Bahia - Fonte - http://www.nectonsub.com.br
São provenientes dos sítios arqueológicos de diversos naufrágios ocorridos no século XVII, no litoral brasileiro. Como eram reaproveitados, passando de um para outro navio em serviço, alguns deles tinham mais de cem anos de uso, quando afundaram há cerca de 350 anos. Os mais antigos do Museu Naval são do século XVI. Outros, fabricados durante o século XVII, são lindamente ornamentados, como forma de demonstração de poder.
A utilização de canhões a bordo dos navios ocorreu ainda na primeira metade do século XIV, generalizando-se na segunda metade. A Batalha de Écluse, em 1340, entre ingleses e franceses, provavelmente foi o primeiro combate naval em que se utilizou artilharia dos dois lados. Os ingleses, no entanto, consideram o ano de 1372 como o marco inicial da instalação sistemática de canhões em seus navios de guerra. Esses artefatos primitivos, chamados de bombardas, eram, em geral, fabricados de ferro forjado, embora haja alguns de bronze fundido, principalmente em Portugal. Os de ferro eram tubos forjados; fechados na extremidade posterior e reforçados, longitudinalmente, por barras, e, transversalmente, por aros grossos. As bombardas geralmente só atiravam no momento anterior a uma abordagem. O projétil costumava ser uma pedra talhada em forma esférica, que se fragmentava ao ser disparada, causando grandes danos à tripulação inimiga.
Canhões de Retrocarga
Como, inicialmente, não havia um mecanismo de recuo adequado para que as bombardas pudessem ser instaladas nos bordos dos navios e ser facilmente recarregadas, a primeira solução encontrada foi o canhão de retrocarga.
A câmara de pólvora era removível, podendo haver mais de uma, já carregadas. Eram chamadas de recâmaras. Fabricaram-se canhões de retrocarga, de ferro forjado. O tubo era aberto nas duas extremidades e as recâmaras fabricadas separadamente. Esses compunham, provavelmente, a maioria dos canhões da força naval de Pedro Álvares Cabral, que bombardeou Calicute e causou considerável destruição na cidade, que devia ser de construção muito frágil. Em combates navais, eram eficazes em distâncias de 20 a 40 metros, principalmente contra pessoas ou avariando o aparelho e as velas do navio inimigo. É possível que haja alguns, nos sítios do início do século XVI, no litoral do Brasil.
A questão técnica de recarregar foi resolvida durante o século XVI, com a adoção da carreta naval, que, sobre pequenas rodas, possibilitava o recuo do canhão, durante o tiro, seu carregamento e, posteriormente, seu posicionamento, com a boca para fora do costado. O armamento principal a bordo passou a ser um conjunto de canhões mais potentes e maiores, de bronze fundido, carregados pela boca. Atiravam projéteis esféricos de ferro fundido. Essa tecnologia básica do canhão carregado pela boca não se alterou até quase meados do século XIX, portanto, a carreta do canhão naval é, sem dúvida, um desenvolvimento tecnológico notável. A abordagem perdeu sua importância e desenvolveram-se novas táticas de combate, que favoreciam o emprego da artilharia contra o navio inimigo e, conseqüentemente, o projeto dos navios de guerra se adaptou a essas inovações.
Robô de pesquisas subaquáticas, moderna ferramenta para a busca de materiais no fundo do mar Fonte - http://www.cyberartes.com.br
O canhão naval de bronze ocupa um lugar de destaque no desenvolvimento da artilharia de bordo, do século XVI ao final do XVII. Sua grande desvantagem era o custo elevado. Os de ferro fundido podiam apresentar defeitos de fundição a ponto de explodir durante o tiro, causando terríveis acidentes nos conveses. No fim do século XVII, com avanços tecnológicos, esses eram os mais usados em navios de guerra, também dotados com alguns de bronze fundido, como no caso do Sacramento. Os que ali se encontravam eram de diferentes origens: portugueses de meados do século XVII; holandeses da primeira metade desse século; e ingleses, provavelmente adquiridos após a Restauração de 1640.
Alguns dos fabricantes dos canhões do Sacramento gravaram seus nomes nas peças, como o inglês George Elkine. Alguns dos portugueses foram assinados por Lucas Matias Escartim, em meados do século XVII. Na entrada do Espaço Cultural da Marinha estão dois belíssimos canhões holandeses, fabricados, respectivamente, em 1628 e 1634, por Assuerus Koster, e provavelmente utilizados durante o conflito pelo nordeste brasileiro.
O longo êxito dos holandeses na ocupação dessa área do país pela Companhia das Índias Ocidentais, no século XVII, resultou do esmagador domínio do mar que eles conseguiram manter durante quase todo o período. Até 1640, as Coroas de Portugal e Espanha estavam unidas. As providências luso-espanholas para recuperar Pernambuco incluíram o envio de três esquadras ao Brasil. Ocorreram grandes batalhas navais, como o Combate de Abrolhos, em 1631, e a Batalha Naval de 1640, de que participaram 66 navios e embarcações luso-espanholas e 30 holandesas. A consciência marítima e a experiência no mar dos holandeses possibilitaram que percebessem e neutralizassem imediatamente todas as ameaças ao seu domínio do mar. Dos muitos combates navais, resultaram diversos naufrágios. Um deles ocorreu em 25 de setembro de 1648, no litoral da Bahia, quando quatro navios holandeses, de uma força naval sob o comando do vice-almirante Witte Corneliszoon De With, que estava bloqueando Salvador, onde se abrigava a esquadra de Portugal, atacaram dois navios portugueses.
Vice-almirante holandês Witte Corneliszoon De With
Os marinheiros, nessa época, estavam interessados em possíveis recompensas financeiras, decorrentes dos navios e embarcações inimigas que aprisionavam. Isso os mantinha motivados e atentos nos longos e monótonos dias de mar dos períodos de bloqueio. Para tornar as capturas mais prováveis, a força naval se posicionava além do horizonte visível da costa e somente os iates, que eram pequenos navios veleiros, se aproximavam de terra em missão de patrulha. Graças a um destes, o almirante De With soube que os dois navios portugueses haviam saído da baía de Todos os Santos. Eram eles: o galeão São Bartolomeu e a nau Nossa Senhora do Rosário. Estavam patrulhando a barra para permitir a entrada de navios mercantes, furadores do bloqueio, que trariam suprimentos para a Bahia. Aproveitando uma situação de vento de popa, que lhe era favorável, De With designou quatro navios de sua força para atacar os portugueses que, ao avistarem os inimigos, mais fortes e numerosos, tentaram regressar para Salvador. Foram, no entanto, alcançados.
Combate entre a nau portuguesa Nossa Senhora do Rosário e as embarcações holandesas Utrecht e Huys Van Nassau Fonte - http://www.twcenter.net
A nau Nossa Senhora do Rosário foi abordada por dois navios holandeses, o Utrecht e o Huys Van Nassau, e o galeão São Bartolomeu pelo Overijssel. Conta-se que o comandante da Nossa Senhora do Rosário, Pedro Carneiro, vendo-se perdido, fez explodir o paiol de pólvora de seu navio. Com a explosão, afundaram a Nossa Senhora do Rosário e o Utrecht, ficando o Huys Van Nassau tão avariado que foi, em seguida, abandonado pela tripulação. O São Bartolomeu, após uma luta corpo-a-corpo, acabou se rendendo.
A Preciosa Porcelana
Do sítio desse duplo naufrágio, recuperaram-se diversos objetos. Dentre eles se destaca a magnífica coleção de peças de estanho recuperadas do Utrecht, inclusive os utensílios e instrumentos do cirurgião de bordo. Nessa época, em pleno século XVII, não se fabricava porcelana na Europa; era importada da China e muito cara. A louça de faiança, de então, era frágil e porosa.
Os utensílios de mesa eram principalmente metálicos: de prata ou de estanho. Estes, mais comuns, foram encontrados em grande quantidade. Já os objetos pertencentes ao cirurgião de bordo são muito interessantes. Incluem medidas para remédios líquidos, caixinhas, ventosas, seringa para irrigações, espátula e outros. Outros sítios de naufrágios dessa época, que ainda não foram explorados, como, por exemplo, o da capitânia do almirante Adrien Pater, que soçobrou no Combate de Abrolhos em 1631, poderão trazer outras informações preciosas.
A porcelana era preciosa há cerca de 300 anos. Era uma invenção dos chineses, que guardavam cuidadosamente o segredo de sua fabricação. Somente no início do século XVIII os europeus descobriram a técnica. Até então, dependiam da importação do Oriente.
Embora usada desde há muito pelos chineses, só foi aperfeiçoada durante os séculos XII e XIII. Logo, os chineses começaram a exportar para a Pérsia e Egito. A invasão mongol e a posterior dinastia Yuan possibilitaram o desenvolvimento do comércio e é desse período o início da produção de peças de porcelana branca decorada com azul de cobalto sob o vitrificado. Elas tiveram maior aceitação no comércio exterior do que os monocromos, preferidos no mercado interno chinês, como o que imita o jade. O azul de cobalto é um dos pigmentos que resistem bem às altas temperaturas de queima. Essa decoração atingiu sua perfeição na dinastia Ming, que governou até aproximadamente meados do século XVII. A exportação intensiva para a Europa se iniciou com os portugueses, no século XVI, por meio dos navios da Carreira da Índia. Depois, também, com os espanhóis, que utilizavam a rota do Pacífico, e, mais tarde, com as diversas Companhias das Índias: holandesa, inglesa, francesa, sueca e dinamarquesa. Antes disso, ela era só comerciada com a Europa, quando trazida pelas caravanas da Rota da Seda.
Na Carreira da Índia portuguesa os navios navegavam no Atlântico Sul e no Índico, sem escolta, a escoteiro (sozinhos) ou em frotas de poucas unidades. Eram proibidos de comerciar com o Brasil, mas, as arribadas na Bahia, no Rio de Janeiro e em Pernambuco foram freqüentes, sob o pretexto de reparações e reabastecimento com água e alimentos frescos. Salvador, na Bahia, tinha o melhor estaleiro do Brasil, desde o século XVI, até meados do século XIX, e, sem dúvida, era onde se podia contar com mais recursos. Essas paradas deram oportunidade a considerável quantidade de contrabando durante toda a época de colônia. Até o início do século XIX, os produtos orientais predominaram no Brasil. Segundo Gilberto Freire, a colônia era muito oriental, em seus hábitos e objetos.
Deve-se, portanto, esperar que, com freqüência, haja peças isoladas de porcelana chinesa na bagagem de passageiros de navios naufragados em datas anteriores a meados do século XIX. As grandes cargas, porém, estavam em naus da Índia que afundaram no litoral brasileiro. A Nossa Senhora do Rosário e Santo André é um bom exemplo. Incendiou-se em Salvador, na Bahia, e afundou em frente à praia da Boa Viagem, próximo ao Forte de Mont Serrat, em 1737.
Regressava de uma viagem ao Oriente e estava, portanto, com os porões cheios de carga – inclusive porcelana chinesa – que começou a ser retirada, por mergulhadores, a partir de 1975. A relação da carga de uma embarcação vinda da mesma origem e semelhante à Nossa Senhora do Rosário e Santo André era assim descrita em uma relação de carga da época: “(…) sacos de pimenta, barris de pimenta; fardos de fazenda; caixões, caixetas e caixinhas; amarrados de louça; fardos de canela; pipas de vinho Acquim; arcas e baús de roupa; peças de seda; frasqueiros de louça; barris de incenso; envoltórios; papeleiras e outros itens”. A louça, em geral porcelana, era bem embalada e armazenada no fundo do porão, por ser mais pesada. Isso, em alguns casos, a preservou, nos incêndios e naufrágios, podendo ser muitas vezes recuperada em bom estado, do fundo do mar, principalmente as peças brancas decoradas com azul de cobalto.
A Nossa Senhora do Rosário e Santo André iniciou sua viagem para o Oriente em abril de 1735, juntamente com a nau Nossa Senhora da Madre de Deus. Era armada com 50 peças de artilharia, e tinha cerca de quatro anos de idade, quando afundou, em 1737. A porcelana recuperada por mergulhadores, infelizmente sem métodos cuidadosos de arqueologia subaquática, é, muito provavelmente, do período Yongzheng (1723-1735), da dinastia Qing. Apesar dos diversos estilos de decoração encontrados e de alguma controvérsia sobre a possibilidade de algumas peças datarem do período de transição entre as dinastias Ming e Qing, portanto anterior a 1662, é pouco provável que porcelana comercial, de exportação, fosse armazenada por tão longos anos, mais de 70, na China. Da mesma forma há que afastar a hipótese de que o maltratado sítio subaquático de Mont Serrat tenha mais de um casco naufragado, com cargas de porcelana de épocas diferentes. A dúvida existe porque a datação das peças é feita com base nos estilos de decoração e motivos empregados, na completa ausência de marcas ou datas gravadas.
O medo dos "monstros marinhos" fazia parte das navegações do passado. Na imagem temos a nau de Rui Vaz Pereira levantada por um monstro marino, armada de 1520. Livro de Lisuarte de Abreu - Fonte - http://pt.wikipedia.org
As peças brancas, com desenhos em azul de cobalto sob o vitrificado da cobertura estão perfeitamente preservadas; as decoradas com esmaltes, sobre o vitrificado, tiveram a primeira camada destruída pela ação alcalina da água do mar. Pode-se, no entanto, observar o que havia, pois restou uma espécie de sombra, fosca, como se fosse um adamascado no branco da superfície mais polida da peça. Alguns dos potes têm intacta uma decoração cor de chocolate, sob o vitrificado, mas havia detalhes pintados com esmaltes que se apagaram. Uma carga de porcelana azul e branca, ou monocromática, que for recuperada de um navio naufragado da Carreira da Índia portuguesa, da Carreira das Índias espanhola, ou das diversas Companhias das Índias criadas pelos europeus, pode valer alguns milhões de dólares.
Os japoneses também fabricaram porcelana e faiança, com características próprias, que também chegaram ao Brasil. No século XVII eram transportadas para a Europa pela Companhia das Índias Orientais holandesa. É mais provável que possam ser encontradas, nos sítios arqueológicos subaquáticos brasileiros, em bagagens individuais de passageiros. Com o aumento da produção européia de louça (porcelana e faiança de boa qualidade), a partir do século XVIII, os chineses reagiram para permanecer no mercado internacional, fabricando peças para exportação de pior qualidade e menor preço, notadamente no século XIX. No Brasil, após a abertura dos portos, com a chegada da família real portuguesa, no início do século XIX, as louças européias, primeiro as inglesas, depois as alemãs e francesas, foram conquistando o mercado. Cabe observar, porém, que o uso da louça se popularizou, com a redução de preço, deixando de ser um objeto de luxo usado apenas pelos mais ricos.
Ocorreram outros grandes desastres marítimos no litoral brasileiro, além dos já citados aqui. Um dos maiores foi o do transatlântico espanhol Príncipe das Astúrias, que naufragou próximo à Ponta de Pirabura, na ilha de São Sebastião (SP), em 1916. Salvaram-se somente 144 pessoas, de um total de mais de 600 passageiros e tripulantes. Aliás, no litoral leste dessa ilha, bem como próximo ao Cabo Frio e em outros locais de nossa extensa costal, existem verdadeiros “cemitérios” de navios. Entre os tesouros ainda não resgatados encontra-se o que havia na nau Santa Rosa, que naufragou próximo ao litoral do Nordeste, na primeira metade do século XVIII, com uma carga de ouro; e, também, o da nau Rainha dos Anjos, que se incendiou na baía de Guanabara, em 1722, e afundou, com um presente de vidros esmaltados, do imperador da China para o papa.
O verdadeiro tesouro, porém, é preservar o precioso patrimônio cultural existente nas centenas de áreas submarinas onde há restos de embarcações antigas. O levantamento de todos eles e a elaboração de mapas com a localização geográfica de cada um dos naufrágios que devem ser protegidos ou salvos, na costa do Brasil, representaria um bom avanço. Ainda há muito que fazer nesse sentido, o que é, no mínimo, instigante e reserva inúmeras possibilidades de resgate do passado histórico de parcela da humanidade que teve a coragem de enfrentar mares, como dizia Camões, nunca dantes navegados.