ÍTALO BALBO – O VOO ÉPICO E O BANHO DE MAR DO PILOTO ITALIANO EM NATAL

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

O que significa essa foto com essas pessoas em uma praia? Quando e onde ela foi feita? Quem são as pessoas que estão nessa foto?

Artigo originalmente pulicado na Revista Bzzz Número 110, nov. e dez. 2024, páginas 20 a 29.

Ela foi realizada em 10 de janeiro de 1931, na praia de Areia Preta, Natal, e entre os que foram fotografados estava a matriarca de uma das mais importantes famílias potiguares, Branca Pedroza, e seus três filhos, cujo um deles seria prefeito da capital potiguar e governador do Rio Grande do Norte, Sylvio Piza Pedroza. Já os homens clicados eram dois italianos, dos mais importantes aviadores do mundo naquela época e que lideraram uma esquadrilha de doze hidroaviões hidroavião Savoia-Marchetti S.55A que voaram desde a Itália até Natal, em um voo de grande destaque mundial. Além disso, eles trouxeram do seu país o presente mais importante que Natal já recebeu em sua História, a Coluna Capitolina. Esses homens também eram membros proeminentes de uma ditadura que propagava uma ideologia política nefasta, de caráter ultranacionalista, fortemente autoritário e altamente sanguinário. Era o fascismo implantado por Benito Mussolini na Itália. Ítalo Balbo era Ministro da Aviação desse governo, sendo um dos principais executores da política de aviação italiana no período fascista..

Balbo e sua equipe iniciaram no final da década de 1920 diversos estudos para a realização de grandes voos com várias aeronaves, algo até então nunca realizado e que repercutiria nas ações da Itália Fascista em todo o mundo. Um desses voos teve como destino o Brasil.

No dia de Natal de 1930, Balbo e seus comandados chegaram na Ilha de Bolama, no arquipélago dos Bijagós, na Guiné Portuguesa, atual Guiné Bissau. Ficaram alguns dias realizando testes de decolagem e, com o resultado dessas provas, na madrugada de 5 de janeiro de 1931, segunda-feira, decolaram para várias horas depois amerissarem no Rio Potengi, em Natal. No percurso, houve problemas sérios com perdas de aeronaves e a morte de cinco homens.

O hidroavião Savoia-Marchetti S.55A – Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Enquanto eles realizavam seu voo, em Natal, na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque, foram colocadas no alto da sua única torre duas grandes bandeiras do Brasil e da Itália. Escoteiros se posicionaram naquele local equipados com binóculos e lunetas. Tinham ordens expressas para quando avistassem as primeiras aeronaves informassem imediatamente o sineiro da velha igreja, que começaria a badalar os sinos pesados para que o povo fosse informado da chegada dos hidroaviões Savoia-Marchetti.

Pessoas se aglomeraram no cais do Porto de Natal, na Av. Tavares de Lira e nos prédios e casas às margens do Rio Potengi. Quem tinha alguma coisa que flutuasse estava dentro do rio, o que deu muito trabalho para o pessoal da Capitania dos Portos, pois o plácido Potengi tinha de ser liberado para a amerissagem das aeronaves.

O general italiano Aldo Pellegrini havia desembarcado em Natal no começo de dezembro para preparar a chegada de Balbo e dos seus aviadores. No dia 5 de janeiro esse militar ficou muito tempo em uma estação de rádio montada pelo Telégrafo Nacional no bairro do Alecrim, na Rua Coronel Estevão. Paulo Pinheiro de Viveiros nos conta em sua placa denominada “Presença de Roma em Natal” (1969), que essa estação possuía transmissores de ondas curtas de 250 e 500 watts e o responsável era Augusto Mena Barreto. Quando ficou certo que as aeronaves estavam chegando, o general Pellegrini foi para a Ribeira e por onde passou recebeu manifestações entusiásticas de carinho.

Os jornais comentaram que várias pessoas vieram de outros estados para acompanhar a chegada da esquadrilha italiana. Sei que por aqui se encontravam Antenor de França Navarro, então Interventor Federal da Paraíba, acompanhado de vários elementos do seu governo. Por volta das três horas o comércio e as repartições públicas fecharam suas portas e a massa de gente cresceu nas ruas. Finalmente, por volta das quatro horas os escoteiros na catedral viram surgir em direção ao norte os primeiros hidroaviões S.55A e logo os sinos começaram a badalar.

“Giovinezza” no Rio Potengi

Hidroavião italiano no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Antes mesmo de colocarem os pés na terra, flutuando a bordo dos S.55A no Rio Potengi, Balbo e seus homens ouviram um outro som, esse mais familiar, que os deixaram maravilhados. Assim Balbo falou: “As alegres fanfarras de “Giovinezza” já tocam e saúdam nossa vitória”. A “Giovinezza” era o hino oficial do Partido Nacional Fascista Italiano e no cais da Tavares de Lira ela foi tocada pela Banda da Polícia Militar.

Desembarque de Ítalo Balbo em Natal. Fernando Pedroza é o segundo da direita para a esquerda– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Balbo e a maioria dos seus homens desembarcaram trajados à moda fascista – calças brancas, camisas negras, luvas e botas marrons. Os jornais apontaram que o ministro italiano foi apresentado com ar fatigado, olheiras, mas afável, sorridente e a todo momento externando agradecimentos. Em meio às autoridades brasileiras e italianas que receberam os aviadores, estava o industrial Fernando Gomes Pedroza, um apaixonado pela aviação.

A Esquadrilha Balbo no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

O comandante afirmou em seu livro que desembarcou muito cansado e sem demora foi logo de carro para a Vila Cincinato, residência oficial do governador do Rio Grande do Norte. Uma verdadeira carreata, na época chamada de “corso de carros”, seguiu atrás do veículo do comandante italiano. Após chegar à residência, Balbo se trancou e foi descansar, mas lá fora uma multidão se formou na calçada para tentar ver o líder fascista italiano. Já os oficiais ocuparam a antiga sede da Escola Doméstica, na Praça Augusto Severo, que estava toda ornamentada, iluminada, com várias bandeiras italianas e brasileiras e sem alunas, pois estavam de férias. Os sargentos foram alojados num prédio recém-construído pela administração do porto. Esses últimos almoçaram no Hotel Avenida, na Tavares de Lira, pertencente ao “majô” Theodorico Bezerra.

Camisas Negras no Palácio Potengi

No outro dia, Ítalo Balbo foi até a sede do Telégrafo Nacional, na Av. Tavares de Lira, 88. Ali foi atendido por Augusto Gonçalves Marques, chefe da estação, onde Balbo lhe agradeceu o apoio nas comunicações durante o voo e depois passou a enviar telegramas. Consta que o primeiro foi para Alberto Santos Dumont, na França, com os seguintes dizeres: “Tocando na sua bela terra depois de um voo transatlântico, eivo-vos, pioneiro das empresas aeronáuticas, a minha calorosa saudação”. O segundo telegrama foi para Mussolini, onde transmitiu as últimas notícias e informou que os membros da esquadrilha “voltavam o seu pensamento devotado ao Duce”. Finalmente escreveu para o ditador Getúlio Vargas uma mensagem de agradecimento, mas sem tantos salamaleques.

O contratorpedeiro Lanzerotto Malocello– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Natal estava em verdadeiro êxtase. Para aonde Balbo e seus homens seguiram eram acompanhados por muita gente. Na passagem dos aviadores o povo ecoava vários “Vivas” a Balbo, Mussolini e à Itália. O movimento das pessoas foi tão grande que até os soldados do 29º Batalhão de Caçadores do Exército fizeram a guarda e a contenção nos locais onde eles se hospedaram e circularam. Enfim, eram figuras de destaque em todos os jornais do mundo e com uma atração que hoje em dia, talvez, só se compare às astronautas. Uma noite os italianos participaram de um jantar de “50 talheres” na Escola Doméstica.

Atracado no Porto de Natal estava o contratorpedeiro Lanzerotto Malocello. Do seu porão foi discretamente retirado um grande e pesado engradado. Este foi levado para uma área próxima ao porto, onde trabalhadores locais construíram uma grande base de alvenaria com três metros de altura e um imenso círculo no centro.

No Palácio do Governo, os italianos foram recebidos pelo então interventor federal Irineu Joffily e o interventor da Paraíba, Antenor Navarro, que ergueram brindes de champanhe pelo sucesso da empreitada de Balbo e seus comandados. Nessa ocasião, Balbo, general Giuseppe Valle e o coronel Umberto Maddalena estavam vestidos com uniformes de gala, mas vários italianos envergavam as nefastas camisas negras fascistas.

Ítalo Balbo e seus comandados com os interventores Irineu Joffily e Antenor Navarro (de óculos)– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Na noite de 7 de janeiro, todos os aviadores foram para o salão nobre do Aeroclube de Natal, para um recital. Foram recebidos pelo casal Fernando e Branca Pedroza e se juntaram as autoridades, entre essas os interventores Joffily e Navarro. De início, Alberto Roseli, um rico comerciante de origem italiana que vivia em Natal há muitos anos, leu uma saudação a Balbo e aos aviadores. Após, um grupo de alunas do último ano da Escola Normal cantaram entusiasticamente a “Giovinezza”, para delírio e encanto dos militares italianos. Todos se colocaram de pé, cantando o hino com vigor e realizando a saudação fascista.

Depois, houve as apresentações musicais de alunos do Instituto de Música do Rio Grande do Norte, escola fundada pelo maestro Waldemar de Almeida. Entre os que se apresentaram estavam Dulce Cicco, Maria da Glória de Vasconcelos Sigaud, Odila Garcia, Anadyl Roseli, Eurídice Vilar Ribeiro Dantas, Dulce Wanderley, Ivone Barbalho. Waldemar de Almeida tocou ao piano a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, uma composição do pianista e compositor norte-americano Louis Moreau Gottschalk. Para orgulho de Fernando e Branca Pedroza, o jovem Fernando Pedroza Filho também se apresentou, tocando ao piano as obras “Gavota” opus 123, da compositora e pianista francesa Cécile Chaminade, e o Prelúdio nº 20, de Frédéric Chopin.

Balbo e seus comandados cantando a “Giovinezza”– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Outro que se apresentou foi um garoto de nove anos chamado Orianne Corrêa de Almeida, primo de Waldemar de Almeida, que tocou uma “Marcha Militar” de Franz Shubert. Tempos depois esse garoto seria conhecido apenas como Oriano de Almeida e se tornou um dos maiores pianistas da história da música brasileira. Segundo me informou o professor Claudio Galvão, autor do livro “O Céu Era O Limite: Uma Biografia De Oriano De Almeida” (2010), não dá para cravar que essa exibição no Aeroclube em 7 de janeiro de 1931 tenha sido a primeira de Orione, provavelmente ele já tinha feito outras em Natal, mas o garoto chamava atenção pela precocidade que, talvez, tenha visto Balbo e seus comandados.

A Coluna Romana

No dia 8 de janeiro de 1931, uma quinta-feira, foi seguramente o mais movimentado dos italianos em Natal. De manhã cedo ocorreu a missa campal presidida pelo Bispo Dom Marcolino Dantas, com saudação aos aviadores que chegaram a Natal, homenagem aos que morreram na travessia e também a memória do falecido aviador italiano Carlo Del Prete, que esteve em Natal em 1928 junto com o colega Arturo Ferrarin. Estavam presentes todos os tripulantes dos hidroaviões, os militares do Lanzerotto Malocello, autoridades potiguares e italianas, além de uma multidão de natalenses, principalmente os moradores da região da Ribeira e das Rocas. Durante a realização da missa, uma aeronave Breguet, da companhia de aviação francesa Latécoère, fez evoluções sobre a audiência e a multidão. Então, novamente a “Giovinezza” foi excetuada na capital potiguar e dessa vez pela banda do 29º Batalhão de Caçadores. Realmente esse hino, que não era o hino oficial do então Reino da Itália, estava fazendo um sucesso danado por aqui.

A Coluna Capitolina em Natal– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Em seguida, Dom Marcolino benzeu uma Coluna Romana de estilo coríntio, feita de mármore cinza, com cinco metros e oitenta centímetros de altura, uma base de três metros quadrados e confeccionada há mais de dois mil anos. Ela foi originária do Templo de Júpiter, na Colina do Capitólio, ou Monte Capitolino, uma das sete elevações sobre as quais foi fundada a cidade de Roma. Essa era uma das quatro colunas romanas existentes no Novo Mundo e foi um presente do regime de Benito Mussolini à cidade do Natal. Inclusive, a razão oficial para Natal receber um presente tão interessante e importante tinha relação com a passagem de Del Petre por aqui.

Após Ferrarin e Del Petre partirem de Natal em seu voo histórico de 1928, ocorreu um acidente aéreo no Rio de Janeiro e Carlo Del Petre faleceu, fato que gerou enorme repercussão mundial. No ano seguinte Arturo Ferrarin lançou um livro intitulado “Voli por Il Mondo”, onde conta detalhes do voo e descreveu de maneira muito positiva sobre como agiu o Governo do Brasil em relação a morte de Del Petre e como ele e seu amigo foram recebidos em Natal. A repercussão dessa obra então teria gerado no governo Mussolini, ao menos em parte, o desejo de realizar a doação da coluna romana para Natal. Evidentemente que razões estratégicas, ligadas à expansão da aviação comercial italiana no Brasil, também explicaram a doação desse importante monumento histórico.

Rota do voo da Esquadrilha Balbo – Fonte – Arquivo do autor..

Após a missa, Balbo e os militares italianos estiveram na Praça Augusto Severo, onde prestarem uma homenagem ao aviador potiguar, que morreu em seu balão “Pax”, na cidade de Paris em dia 12 de maio de 1902. Balbo solenemente colocou uma coroa de flores na base da estátua de bronze do antigo aviador, abraçou seu filho Sérgio Severo Maranhão e todos os italianos realizaram a saudação fascista.

A noite, novamente os italianos e a sociedade natalense estiveram no Aeroclube, onde os italianos foram apresentados a dança do Maxixe. Conhecido como “Tango Brasileiro”, o Maxixe era uma dança de salão onde um casal se apresentava com bastante sensualidade dos movimentos corporais, o que causou grande furor na arcaica sociedade brasileira. É bem verdade que no início de 1931 essa dança andava meio fora de moda nas grandes cidades brasileiras, mas naquela noite no Aeroclube ninguém se importou muito com isso. Bem, tudo indica que nessa noite, enquanto a maioria dos aviadores assistiam, ou se arriscavam, no Maxixe no Aeroclube, o comandante Ítalo Balbo e alguns poucos oficiais se dirigiram para a casa do rico industrial potiguar Fernando Pedroza.

Fonte – Arquivo do autor.

E o Banho na Praia de Areia Preta?

A mansão dos Pedroza se localizava onde atualmente existe o encontro das Avenidas Nilo Peçanha e Getúlio Vargas, bem próximo do Hospital Universitário Onofre Lopes. Então, para saber mais desse encontro e sobre os anfitriões, procurei o funcionário público Antônio Carlos Magalhães Alves, mais conhecido em Natal como Toninho Magalhães, filho de Elza Pedroza e neto de Fernado e Branca Pedroza. Toninho me narrou que seu avô Fernando Gomes Pedroza nasceu em 30 de março de 1886, no chamado Casarão dos Guarapes, na zona rural da cidade potiguar de Macaíba. A família Pedroza possuía muitos recursos, tendo Fernando ido estudar na Inglaterra e junto com ele seguiu o natalense Manoel Augusto Pereira de Vasconcelos. Um dia Fernando e Manoel viajaram para a Suíça, onde duas irmãs de Manoel estudavam em uma tradicional escola feminina daquele país. Nesse encontro, Fernando conheceu uma moça chamada Branca Fonseca Toledo Piza, natural de Sorocaba, São Paulo e amiga das irmãs de Manoel. Não demorou e o namoro começou entre Fernando e Branca, tendo logo resultado em casamento. Vieram viver em Natal e Fernando Pedroza cresceu na exportação de algodão, a principal fonte de riqueza do Rio Grande Norte durante décadas.

Poster do voo da Esquadrilha Balbo entre a Itália e o Brasil – Fonte – Wikipedia.
Toninho Magalhães fala sobre a recepção pelos seus avós Branca e Fernando Pedroza – Foto – Rostand Medeiros

Certamente deve ter sido um encontro bem interessante e positivo. Tanto que no outro dia, 10 de janeiro, enquanto Balbo e seus oficiais aguardavam a chegada do último S.55A de Fernando de Noronha, ele e o coronel Umberto Maddalena foram aproveitar a praia de Areia Preta. Estavam acompanhados de Dona Branca Pedroza, seus filhos Fernando, Sylvio Piza Pedroza e a caçula Elza Piza Pedroza, e quem fez a foto foi Fernando Pedroza. Todos se mostram muito alegres e molhados, realizando aquilo que é muito normal e natural aos natalenses – Levar para as nossas belas e calientes praias, os visitantes que vem de perto e de longe. Ali já não estavam mais dois dos membros mais importantes do Partido Fascista Italiano e renomados aviadores do seu tempo. Eram apenas dois turistas italianos deslumbrados com nossas belezas naturais e recebendo atenções que tão bem sabemos ofertar a quem nos visita.

Ítalo Balbo em foto após o voo para o Brasil – Fonte – Arquivo do autor.

Já Ítalo Balbo, após completar com sucesso o voo para o Brasil, realizou entre julho e agosto de 1933 um voo com vinte e cinco hidroaviões S.55X, com destino final aos Estados Unidos, sendo essa uma empreitada de enorme repercussão internacional. Balbo levou adiante a construção de um culto político em torno da aviação, tendo alcançado enorme popularidade em todo o planeta, mas sendo considerado politicamente um forte rival de Mussolini. Então a situação de Balbo começou a declinar ante o Regime Fascista.

O final do voo da Esquadrilha Balbo foi no Rio de Janeiro– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

O ÚLTIMO VOO DE AUGUSTO SEVERO

Augusto Severo - Fonte - MUSÉE DE L’AIR ET DE L’ESPACE
Augusto Severo – Fonte – MUSÉE DE L’AIR ET DE L’ESPACE

O deputado brasileiro chegou a Paris em 1901 disposto a ganhar o prêmio Deutsch, mas foi superado por Santos Dumont. Seu dirigível, o Pax, voaria, mas por pouco tempo

Por Rodrigo Moura Visoni

Fonte – http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/o_ultimo_voo_de_augusto_severo.html

Augusto Severo de Albuquerque Maranhão, cujo nascimento, em 11 de janeiro de 1864, acaba de completar 150 anos, chegou a Paris no dia 5 de outubro de 1901, levando consigo os planos de uma aeronave revolucionária: o Pax, um formidável dirigível semirrígido que deveria resolver simultaneamente os problemas de manobrabilidade e estabilidade dos balões. Com esse veículo, ele pretendia concorrer a um prêmio de 100 mil francos (US$ 20 mil), o Grande Prêmio do Aeroclube da França, criado em 15 de abril de 1900 e destinado àquele que criasse a primeira máquina voadora eficiente.

Segundo o regulamento do concurso – chamado pela imprensa de “prêmio Deutsch” numa referência ao nome do fundador, o empresário francês Henri Deutsch de la Meurthe –, o prêmio seria entregue ao piloto que, num voo sem escalas, supervisionado por uma comissão do Aeroclube da França, partisse e retornasse ao Parque de Aerostação de Paris no tempo máximo de meia hora, cumprindo um trajeto preestabelecido de 11 quilômetros, tendo a Torre Eiffel no meio desse percurso.

Com Augusto Severo, viajara a sua companheira, Natália Silveira Cassini, e dois filhos. Logo no dia seguinte ao desembarque na capital francesa, ele encomendou o Pax à Casa Lachambre, famosa fabricante de balões. Depois, ele realizou a façanha de fazer subir em menos de duas semanas, no bairro de Vaugirard, um galpão de 35 metros de comprimento por 17 de altura e 15 de largura.

Em 15 de outubro de 1901, passados apenas dez dias de sua chegada à França, Severo foi entrevistado no hotel em que estava hospedado com a família por um repórter do Petit Phare, de Nantes, que tivera a informação de que ele era um importante deputado brasileiro:

– Desde quando se ocupa o sr. deputado de balões?

– Oh! Sou um matreiro do ar. Desde 1894, época em que mandei construir um grande balão de 52 metros de comprimento. Foi Lachambre quem o fez. Logo que fi cou pronto mandei-o para o Brasil. (…) Durante uma ascensão, a minha barquinha de madeira, que era realmente muito volumosa, quebrou-se pelo meio e tive uma queda. A coisa não passou, porém, de um grande susto. Peço-lhe para observar que já nessa época eu mandara colocar as minhas hélices na proa do meu balão. Preciso esse ponto por ser de importância capital. (…) 

Encomendei (este ano) ao sr. Lachambre o meu segundo balão. Dei-lhe o nome de Pax. Se não receasse cair na ênfase, lhe diria que já estou vendo o meu aeróstato vencedor do vento, vencedor das tempestades, pairando sobre o mundo como um sinal de paz universal. Mas saibamos esperar. (…) Devo fazer antes algumas experiências para familiarizar os meus amigos Álvaro Reis e Pacheco com o ar; esses bons amigos nunca subiram em balão. Tentarei depois a grande experiência, que se realizará a 15 ou ao mais tardar a 20 de novembro (de 1901).

O Bartholomeu de Gusmão sendo experimentado em 7 de março de 1894, no Realendo (Rio de Janeiro, Brasil) - Fonte - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c6/Bartholomeu_de_Gusmao.jpg
O Bartholomeu de Gusmão sendo experimentado em 7 de março de 1894, no Realendo (Rio de Janeiro, Brasil) – Fonte – http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c6/Bartholomeu_de_Gusmao.jpg

Severo, nessa entrevista, se referiu ao Bartholomeu de Gusmão, dirigível que o inventor projetara em 1892 e levantou voo dois anos depois, mas cujas estruturas, feitas em bambu, não suportaram o esforço. O acerto de suas concepções, no entanto, o animaram a um novo projeto, o Pax.

Enquanto o Pax era manufaturado, Severo, que devia ser ele mesmo o piloto da aeronave, fez três ascensões em balões esféricos como treino: a primeira, sob a direção de Emile Carton, no dia 28 de outubro de 1901, em companhia do fi lho Otávio e do amigo Álvaro Pereira Reis; a segunda, em 18 de novembro, com Natália e o construtor do Pax, Henri Lachambre; e a terceira, em 28 de novembro, na qualidade de piloto, com Reis e Antônio Pacheco da Silva.

Severo já havia então perdido o prêmio Deutsch: em 4 de novembro de 1901, após uma prova muito contestada realizada no dia 19 do mês anterior com o dirigível Nº 6, o Aeroclube da França resolvera conceder o prêmio a Alberto Santos Dumont, um experiente balonista brasileiro que desde 1898 vinha fazendo animadoras experiências de condução com balões alongados dotados de lemes, hélices e motores a gasolina.

Nos meses consecutivos, a construção do Pax prosseguiu a passos lentos. Se Severo havia encontrado excelentes operários como auxiliares, o mesmo não se podia dizer dos seus fornecedores, que o serviam mal. Rara era a peça do balão que não exigia substituição ou reparação, e muitas vezes, quando pensava poder fazer a primeira ascensão, tinha de adiar o evento em semanas. Tais inconvenientes acarretavam despesas consideráveis. Uma carta de Natália à sobrinha Alice Duarte, escrita em 13 de dezembro de 1901, revela um pouco do cotidiano da família e dos problemas enfrentados:

1912068_676497392388309_597298333_n

“Nós vamos bem, mas eu tenho saído muito pouco porque Augusto está todo o dia no balão, que tem dado um trabalho… e tem custado mais do que ele pensava. O trabalho está adiantado, mas parece que só no fi m do mês estará concluído. Temos tido muito desgosto com a imprensa do Brasil, quando a da Europa, em mais de quatrocentos artigos, só tem elogiado os trabalhos e planos de Augusto, sendo que o seu retrato tem sido dado em muitos jornais. Por estes dias, entre outras, Augusto receberá a visita de E. Zola.”

Ao contrário das expectativas, só em abril de 1902 o Pax ficou pronto. Custou ao todo 150 mil francos, quando talvez não custasse mais de 100 mil, se não houvessem sido necessários tantos reparos e substituições de peças.

O enchimento com hidrogênio durou cinco dias e terminou em 1º de maio. Uma vez cheio o balão, iniciou-se uma verdadeira peregrinação ao hangar do inventor, onde a aeronave impressionava, com seu porte majestoso. O número de visitantes era tal que foi necessário estabelecer-se um serviço de ordem dirigido pela polícia.

O Pax tinha 2.334 metros de cubagem, 30 de comprimento, 20 de altura e 13 de diâmetro. Possuía dois motores a petróleo, da marca Buchet: um de 24 cv à traseira e o outro de 16 cv à dianteira, os quais lhe davam uma potência total de 40 cv. Era dotado de sete hélices: uma tratora, na proa, duas propulsoras (uma na popa e outra na barquinha) e quatro laterais, destinadas a proporcionarem os movimentos de esquerda e direita do aeróstato, à guisa de leme de direção.

Uma estrutura de bambu sustentava as hélices da popa e da proa exatamente as extremidades do eixo longitudinal do balão, em vez de na barquinha, como era usualmente feito, evitando assim que a atuação de duas forças em sentido contrário – a tração e o arrasto – em pontos não diametralmente opostos da aeronave, gerassem perturbações prejudiciais ao equilíbrio e à marcha. Tal problema era conhecido como “tangagem” e até então não havia tido uma solução prática.

Severo fez duas ascensões cativas (com o balão preso por cordas) em maio para se familiarizar com o manejo do dirigível: a primeira no dia 4 e a segunda no dia 7. Ambos os testes deram excelentes resultados. O balão obedecia com facilidade ao impulso das hélices e demonstrava equilíbrio perfeito. Severo parecia fazer jus à antonomásia que ganhara, o “vencedor dos ventos”; mas o Pax estava mantido pela corda, o que favorecia a estabilidade. Teria o dirigível a mesma estabilidade quando livre e entregue às correntes aéreas? Essa era a grande questão e só uma ascensão livre poderia elucidá-la.

Na proa, Augusto Severo comanda o balão Pax, tendo na popa o mecânico Sachet - Foto - Musée de L'Air Le Bourgethttp://, VIA www.novomilenio.inf.br/
Na proa, Augusto Severo comanda o balão Pax, tendo na popa o mecânico Sachet – Foto – Musée de L’Air Le Bourgethttp://, VIA http://www.novomilenio.inf.br/

O voo inaugural foi marcado para 12 de maio. Às 5h30min desse dia, o balão, ovacionado por uma pequena multidão, deixou o solo. A aeronave levava Severo e o mecânico francês Georges Sachet, que havia trabalhado com Buchet, o fabricante dos motores do Pax. A ele coube a regulagem dos engenhos.

A experiência, à primeira vista, anunciava sucesso. O balão parecia obedecer docilmente às mãos do condutor e evoluía com facilidade. A 100 metros de altura, contudo, a grande hélice traseira deixou de girar a contento. Severo, provavelmente a fim de atingir altitudes superiores em busca de correntes aéreas favoráveis, começou a jogar lastro fora.

Primeira notícia publicada no jornal A Republica de Natal, sobre a morte do aviador - Coleção Tok de História
Primeira notícia publicada no jornal A Republica de Natal, sobre a morte do aviador – Coleção Tok de História.

De repente, a cerca de 400 metros de altura, os espectadores viram um clarão surgir na altura da nacela. Quase no mesmo instante, uma explosão tremenda foi ouvida. O balão havia se incendiado e estourado!

Sem a sustentação proporcionada pelo hidrogênio, os restos sólidos do aparelho tombaram com uma rapidez vertiginosa no meio da avenue du Maine; por puro acaso, ninguém foi atingido. Outro fato impressionante: conquanto bastante prejudicada pelo choque extraordinário, a estrutura não chegou a se desmontar. Sob os escombros e o entrelaçamento do que havia sido a barquinha, encontraram-se os cadáveres dos dois aeronautas.

As causas do acidente nunca foram estabelecidas com certeza. Pioneiro mundial dos dirigíveis semirrígidos, Severo também foi o primeiro mártir da aeronáutica brasileira.

Rodrigo Moura Visoni é primeiro-tenente arquivista do Quadro Complementar da Aeronáutica