A SERRA DO RODEADOR E A IRMANDADE DO SENHOR BOM JESUS DA PEDRA

Vista da Serra do Rodeador – Foto – Rostand Medeiros.

Um movimento sebastianista em Pernambuco na primeira metade do século XIX

Autor – Alexandre Alves Dias*

Fonte – Suplemento Cultural. Estado de Pernambuco. Ano XII. Outubro/Novembro 1997, pág. 26.

Nestes últimos anos se tem comemorado o centenário de fundação do Arraial do Belo Monte, mais conhecido como Canudos, e agora, em 1997, as festividades se concentrarão no centenário de destruição do mesmo.

Marco na história do Brasil, Canudos representou o grito das populações sertanejas, expropriadas do acesso a terra e a uma vida mais digna. Derrotando as diversas expedições enviadas para submetê-los a República que se ia então tentando consolidar, os habitantes do Belo Monte, guiados por Antônio Conselheiro, implantaram uma utopia sertaneja que incomodou aos senhores da terra, por esvaziar lhes da força de trabalho, que se iam ajuntando no crescente Arraial.

Mas Canudos não foi a primeira, nem a única manifestação de insatisfação

da população rural nordestina, através da religião como esteio dessa união. Foi uma das maiores. Mas houve duas anteriores. Uma das primeiras registradas aconteceu em Pernambuco, uns sessenta anos antes.

Vista da cidade de Bonito, Pernambuco – Foto – Rostand Medeiros.

Por volta de 1817, um homem vindo das bandas da Comarca das Alagoas (nesta época Alagoas fazia parte de Pernambuco, vindo a ter autonomia administrativa em 1819), chegou ao Povoado do Bonito, em Pernambuco. Chamava-se Silvestre José dos Santos.

Encontrando paragens mais tranquilas nas terras em torno da Serra do Rodeador, lá se instalou, com permissão dos proprietários, passando a viver da agricultura de subsistência. À noite,  depois de encerradas as obrigações entregavam-se a rezas, acompanhado pela família (irmãos, as mulheres destes e os filhos).

Os anos foram passando, e os ritos noturnos iam crescendo em fama e quantidade de fiéis que vinham entregar-se à fé.

Por volta de 1820, o ajuntamento de fiéis que comparecia para rezar já ultrapassava a casa das centenas de pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Soldados abandonavam o serviço obrigatório nas tropas auxiliares de ordenanças e milícias, para se juntarem aos agricultores, que vinham das propriedades vizinhas e do povoado do Bonito, para ouvir o que ali se dizia.

Região do Rodeador – Foto – Rostand Medeiros.

Silvestre José dos Santos, tido por uns como homem santo, e por outros como embusteiro, erigira na base da Serra um grande mocambo, que era utilizado como capela, onde ele guardava, dentro de uma caixa de madeira, uma pequena imagem de Nossa Senhora, além de outra de Nosso Senhor Jesus Cristo e alguns santos. Criara a Irmandade do Senhor Bom Jesus da Pedra. Cobrava duas patacas (640 réis) dos solteiros, e quatro dos casais, para que estes pudessem receber os respectivos documentos de entrada na Irmandade.

Após ter-se confessado com o padre do Bonito, qualquer um poderia entrar nela.

Admitidas na Irmandade, essas pessoas podiam subir de posição, recebendo quatro fitas coloridas, cada uma delas com um significado específico; verde, significando esperança em um mundo melhor e na salvação; vermelho, o sangue derramado na guerra aos infiéis; azul, paz, e negro, luto pelos mortos na Guerra Santa. Um homem ou mulher dedicado poderia acumular as quatro juntas.

Foto – Rostand Medeiros.

Mas, o que afinal atraía tanta gente, fazia soldados desertarem, trabalhadores braçais virem às centenas? Silvestre ouvia instruções da Nossa Senhora guardada na caixinha de madeira. Ela lhe dizia que ali haviam de começar o Paraíso Terreal, bem ali aos pés da Serra. O próprio dono das terras doou-as à Irmandade, para engrandecimento daquela obra divina, além de ter comprado de seu bolso algumas medidas de tecidos para enfeitar a capela improvisada no mocambo maior.

Silvestre anunciava que vindo para ajudá-los estava D. Sebastião, acompanhado de mais dois reis portugueses, D. Antônio e D. João, para juntos com o exército que eles traziam reconquistarem a Terra Santa. Dizia mais, que se tropas viessem contra eles, estas passariam para o lado deles, pois que, quando se preparassem para fazer fogo, todos da Irmandade ficariam invisíveis, sendo, portanto, impossível derrotá-los.

Silvestre empolgava-se e dizia mais: iriam ao próprio Governador da Capitania de Pernambuco, Luís do Rego Barreto, para exortá-lo a unir-se na Empreitada Santa da Reconquista. Caso este recusasse, seria morto e fariam duas cuias com seu crânio, uma para o próprio Silvestre, e a outra para quem a reclamasse primeiro. Iriam depois convidar a D. João VI para acompanhar a expedição.

As autoridades militares do Bonito foram as primeiras a tentar descobrir o que acontecia, já que muitos soldados estavam desertando. As patrulhas que iam tentar prender os desertores eram forçadas a retroceder de mãos vazias, já que eram recebidas por homens armados de bacamartes.

Mandados para espionar, os soldados descobriram que havia a prática de exercícios militares com armas de fogo e espada. Que tinha ferreiros fabricando canos, carpinteiros especializados confeccionando coronhas. Já bastante preocupados, os oficiais do Bonito reportaram o que acontecia ao governador.

Havia tropas no sertão que tinham ido dar combate a um grande grupo de ladrões, e foi fácil mandá-las ao Rodeador. Saíram algumas também do Recife. Pelo menos uma dessas tropas marchou sobre efeito da aguardente, para poder chegar logo ao cenário do combate que poderia acontecer, segundo alegou o seu comandante, o major de 1ª linha José de Moraes Madureira Lobo.

Na noite do dia 26 de outubro de 1820, enquanto cerca de 200 mulheres, 300 crianças e uns cem homens, dos quais 75 armados de bacamartes rezavam, as tropas cercaram a Serra do Rodeador. Nessa mesma noite. Silvestre dissera que a Santa mostraria os sinais tão esperados para começar a Guerra Santa.

Bacamarte típico da primeira metade do século XIX – Fonte – https://www.videohistoria.com.br/2019/02/quem-matou-gertrudes-pedra-carneiro-leao.html

Os clarões das tochas dos soldados foram confundidos com esses sinais. Um dos homens da Irmandade vendo os soldados fez fogo sobre eles. Silvestre os havia instruído para só atirar se, e quando, ele ordenasse. Os soldados, que não estavam devidamente posicionados, após terem sido divididos em dois grupos, abriram fogo sobre o lado do  disparo, atingindo o grupo de soldados que vinha progredindo naquela direção.

Estabelecida a confusão, as mulheres e crianças foram abrigar-se na capela de palha, os homens fizeram fogo sobre os dois grupos de soldados, e estes continuaram atirando contra seus companheiros e contra os da Irmandade. Com o raiar do dia, os soldados finalmente perceberam quem era o inimigo, e passaram a fazer carga sobre eles.

Estando em inferioridade numérica, os homens da Irmandade largaram as armas e renderam-se. O comandante da expedição de ataque, enfurecido com o curso dos acontecimentos, tendo lutado contra os próprios companheiros durante as primeiras três horas antes do raiar do sol, mandou passar a fio de espada alguns dos homens já rendidos e desarmados. Insatisfeito, ordenou que se ateasse fogo aos mocambos de palha, onde estavam mulheres e crianças.

Vitória de Santo Antão, Pernambuco, primeira metade do século XIX, autor Luís Schlappriz – Fonte- https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18556/s-antao-cidade-de-victoria-na-provincia-de-pernambuco

Os prisioneiros, 200 mulheres e 300 crianças, além de uns poucos homens, foram conduzidos ao Recife, após uma parada em Vitória de Santo Antão. No processo de investigação que se seguiu, constatou-se que a Irmandade em nada ofendia à religião católica nem ao Imperador. As mulheres e crianças, andrajosas, ficaram largadas pelas ruas do Recife, num espetáculo deprimente, até que se decidiu a sua sorte. As crianças órfãs seriam adotadas pelas famílias mais notáveis da capital. As mulheres e seus filhos seriam enviadas para viver sob observação das autoridades de Vitória de Santo Antão, após receberem uma esmola, espécie de indenização, proibidas de saírem daquele lugar.

D. João VI não foi tolerante nem indulgente com os homens. Aqueles em situação de servirem nas tropas seriam enviados para Santa Catarina, e lá engajados. Os que ensinavam exercícios militares seriam degredados por cinco anos em Angola, e Silvestre José dos Santos a degredo perpétuo, também em Angola.

Silvestre não foi preso. Durante as investigações, descobriu-se que ele já havia praticado outros embustes religiosos, em Alagoas, antes de fugir de lá para o Bonito. Alguns dos homens da Irmandade o viram encaminhar-se para dentro da capela, no começo do tiroteio. O grosso dos frequentadores da irmandade era composto por agricultores, a maioria deles homens de cor.

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*Alexandre Alves Dias possui mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1997). Atualmente é assistente técnico – Arquivo Público Municipal Antonino Guimarães. Tem experiência na área de História, com ênfase em História e na área de Arquivo, com ênfase em fotografia e documentação colonial. Informações – https://www.escavador.com/sobre/4777890/alexandre-alves-dias

1875 – UM INFORMATIVO ESPÍRITA EM TERRAS POTIGUARES

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Na metade da década e 1870, ainda nos tempos do Império do Brasil, a cidade de Natal era uma pequena capital de uma província verdadeiramente insignificante no cenário político e social brasileiro da época.

Antes que alguém fique chateado com esta minha colocação, para se ter uma ideia do que escrevo, segundo o resumo publicado nas páginas 37 e  39, do livro “População do Brazil”, publicado no Rio de Janeiro em 1922, pela “Directoria Geral de Estatistica”, do então “Ministério da Agricultura, Indústria e Commercio”,  informa que em  1872, a população potiguar alcançava a cifra de 273.979 almas e a capital então era possuidora de uma população de 20.392 pessoas. Mas esta pequenez populacional não impedia que existissem na nossa cidade pessoas e grupos com ideias interessantes e diferenciadas do quadro geral reinante.

Espiritismo no Brasil

No Brasil, desde a década de 1840, que existiam grupos de pessoas que buscavam o entendimento relativo às questões do espiritismo, principalmente a possibilidade de comunicação com os espíritos através de médiuns. O movimento cresce e vinte anos depois grandes jornais do Rio de Janeiro debatiam em suas páginas aspectos desta Doutrina. Logo são criados centros espíritas na Bahia e Rio de Janeiro.

Em 1869, Luiz Olímpio Teles de Menezes publica o jornal “O Eco D’além Túmulo-Monitor do Espiritismo no Brasil”, considerado o primeiro jornal espirita do país. Em 1873, vinte anos após o lançamento do “Livro dos Espíritos”, ele é traduzido e publicado no país. De autoria do pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que adotou o pseudônimo de Allan Kardec, é o primeiro livro sobre a doutrina espirita e foi o primeiro de uma série de cinco livros editados pelo pedagogo sobre o mesmo tema.

Apenas dois anos depois do lançamento do “Livro dos Espíritos” no Brasil e quase nove anos antes da fundação da Federação Espírita Brasileira, pessoas em Natal decidem fundar um jornal exclusivamente dedicado a debater e propagar a doutrina espiírita na capital potiguar. Em uma quarta feira, 1 de setembro circulou “O Espirita”.

“Informativo Espiritista”

O informativo dizia-se “Informativo Espiritista”, sendo um jornal pequeno, com apenas quatro páginas e era editada em uma redação a Rua Santo Antônio, provavelmente na casa do seu diretor, Manoel Gomes da Silva. O pesquisador Manoel Rodrigues de Melo, em seu livro “Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte 1909 – 1987”, página 139, comenta que Manoel Gomes da Silva era poeta e prosador. O jornal era impresso na “Typographia Liberal”, conforme está na capa e custavam um mil réis.

É composto de cinco artigos, alguns datados de agosto daquele ano, e um longo poema denominado “Virgem Santíssima”, de autoria de Manoel Gomes da Silva. Aparentemente a maioria dos artigos é de autoria do mesmo autor do poema anteriormente comentado. Em apenas um deles encontramos um autor assinando com o pseudônimo de “Sensus”.

Os artigos vão desde uma apresentação e saudação ao espiritismo, doutrinamento e uma severa crítica aos representantes da igreja católica. Este artigo em particular, intitulado “O Espiritismo e o Padre”, chama a atenção pela virulência das letras, que bem poderia ser um reflexo do clima reinante no Brasil da época.

Área da Santa Cruz da Bica no início do século XX, região próxima a redação de “O Espirita”. Foto Manoel Dantas.

É inegável que neste período a igreja católica predominava como força religiosa em Natal e em todo o Brasil imperial. Mas contestações e conflitos ocorriam desafiando este poderio e o mais importante foi sem dúvida a chamada Questão Religiosa.

Momento de Conflitos Religiosos

No passado as relações entre o Estado e o clero católico sempre foram muito próximos. A Constituição do ano de 1824 estabelecia expressamente que a religião oficial do Estado era o catolicismo e existia uma relação formal entre a Igreja e a Coroa, que atendia aos interesses de ambos. Chegava ao ponto dos membros do clero ter as mesmas vantagens e tratamentos dos funcionários públicos da época, recebendo seus salários através da Coroa.

No final da década de 1860 houve uma forte reação da direção da igreja católica contra instituições que defendiam a secularização e o anticlericalismo, como a Maçonaria, que possuía grande prestígio no Brasil, onde o Imperador Pedro II e vários clérigos da própria igreja católica eram maçons.

Não demorou muito para altos dirigentes da igreja católica atacarem os religiosos ligados à Maçonaria, ameaçando-os

omo um caricaturista viu o conflito entre a Coroa e a Igreja católica. Fonte-http://imagohistoria.blogspot.com

de desligamento de suas  atividades religiosas e até de absolvição sacramental. O caso chegou a tal ponto de ruptura que os Bispos de Belém do Pará e de Olinda, respectivamente Dom Antônio de Macedo Costa e Dom Vital, foram processados, presos e condenados a quatro anos de prisão.

Como sempre ocorre entre as classes dirigentes no Brasil, foi conseguida uma acomodação entre o Império e a Santa Sé. Mesmo não estando relacionado diretamente ao fim do Império em 1889, este conflito de ideias criou sérias rupturas entre o Império do Brasil e a igreja católica.

Talvez o momento brasileiro da década de 1870 explique a acidez do artigo de “O Espirita”.

Independente desta questão a existência deste jornal aponta que mesmo Natal sendo uma capital com pouca expressividade no cenário brasileiro do final do século XIX, setores de parte de sua sociedade mostrava que possuíam um pensamento independente da maioria.

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