OS FESTIVAIS DE FOLCLORE DE NATAL DA DÉCADA DE 1950

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 O Prefeito Djalma Maranhão – Fonte – http://www.onordeste.com

Autor – Rostand Medeiros

Sempre que leio algo relacionado a figura histórica de Djalma Maranhão, se torna sempre um exercício maravilhoso descobrir suas ações e realizações.

Djalma Maranhão é aquele ex-prefeito de Natal que queria ensinar os pobres a aprender a ler com escolas simples e práticas, que levava livros para os mais humildes em bibliotecas públicas volantes, que despachava em plena rua no meio do povo de sua querida cidade.

Mas a mim espanta suas ações voltadas para o setor da cultura, principalmente com a realização dos Festivais de Folclore de Natal da década de 1950.

Ao ler o que ocorria naquele tempo e comparando as atuais ações governamentais a cultura popular em terras potiguares, me espanta como regredimos, como andamos para trás, como nós tornamos tão atrasados.

 NOTÍCIAS VINDAS DO RIO GRANDE DO SUL 

Devido aos inúmeros contatos conseguidos através do nosso blog “Tok de História”, conheci via e-mail o gaúcho Paulo Sergio Cardoso Schröder. Este funcionário público de Porto Alegre tem uma verdadeira adoração pela capital norte-rio-grandense, cidade que conheceu primeiramente através dos relatos do seu falecido pai, que aqui trabalhou na Base Aérea de Natal. Informou-me que seu genitor foi um assíduo espectador destes festivais, admirava as nossas danças e visitava a comitiva Sul-rio-grandense quando eles estavam em nossa cidade.

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Confesso que quando ele me enviou uma mensagem informando sobre estes eventos eu fiquei intrigado. Daí o Paulo me comentou que tinha vários recortes de jornais gaúchos e de outros estados comentando a repercussão das apresentações ocorridas nestes festivais.

Diante do meu interesse e desconhecimento ele escaneou o material e enviou tudo via e-mail.

O que li me espantou.

Jornal A Hora, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 29 de janeiro de 1958
Jornal A Hora, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 29 de janeiro de 1958

O primeiro festival havia sido realizado em 1956, o segundo em 1957 e o terceiro no ano seguinte, sempre nas últimas semanas de dezembro. Com seu espirito empreendedor, Djalma Maranhão convidava várias delegações dos estados brasileiros para apresentações folclóricas, debates, conhecer as nossas tradições, etc. A então capital natalense, com pouco menos de 160.000 habitantes, se engalanava e recebia seus visitantes.

Ao realizarem uma análise do evento de 1958, os jornais gaúchos apontavam o prefeito Djalma Maranhão como sendo “o primeiro e único dos prefeitos brasileiros a trilhar este esplêndido caminho. Exemplo que dada a importância do folclore para o conhecimento profundo do povo, merecia ser seguido por numerosos outros administradores, nos vários recantos do país” (Ver o jornal “A Hora”, Porto Alegre, 29 janeiro de 1959).

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Em 1958 a delegação do Rio Grande do Sul era comandada por Carlos Galvão Krebs, então diretor do Instituto de Tradição e Folclore. Eles realizaram uma concorrida exposição nos jardins do Teatro Alberto Maranhão sobre a cultura de sua terra. Entre o material exposto estavam pinturas de artistas gaúchos como Carlos Scliar. Houve até uma canja nos jardins do teatro com musicas e danças gaúchas.

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Dança gaúcha com a participação de Isolde Helena Brans e Antônio Augusto da Silva Fagundes, nos jardins do Teatro Alberto Maranhão

Naquele ano o pessoal do sul aproveitou e foi até mesmo conhecer uma salina em Macau e uma vaquejada. Esta última ocorreu em uma propriedade rural próxima a cidade de Ceará Mirim e o grupo foi recepcionado pelo prefeito Roberto Varela. O próprio Krebs chegou a escrever uma interessante reportagem comparativa entre o trabalho do vaqueiro encourado nordestina e o vaqueiro dos Pampas (publicada no jornal porto-alegrense “Correio do Povo”, edição de 25 de janeiro de 1959).

MOVIMENTAÇÃO FOLCLÓRICA NA CAPITAL POTIGUAR

Mas os jornais gaúchos não comentaram apenas sobre a passagem dos membros do Instituto de Tradição e Folclore do Rio Grande do Sul por terras natalenses. Trazem muitos detalhes sobre os acontecimentos do festival e sua repercussão entre os potiguares.

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Em um restaurante típico da capital potiguar, o prefeito Djalma Maranhão apresenta uma tradicional caranguejada

Na programação do segundo Festival, traçada por Djalma Maranhão, constava a exibição de inúmeros folguedos, principalmente na noite de 24 de dezembro. Os jornais gaúchos descreveram uma marca muito interessante destes eventos: a existência de vários palcos espalhados em diversos pontos da capital.

Havia as apresentações no Teatro Alberto Maranhão, mas eram em simples tablados de madeira, espalhados em bairros de gente humilde e naquilo que então era denominado de periferia, que as manifestações brilhavam com mais intensidade.

Havia no centro da cidade, em plena Avenida Rio Branco, com o comércio aberto para aproveitar as compras de fim de ano, o palanque apresentando a desenvoltura do Fandango do Alto do Juruá. Ocorriam apresentações de Lapinha na Avenida Presidente Quaresma, no bairro do Alecrim, ou quem estivesse no então periférico bairro de Lagoa Seca poderia assistir um tradicional Pastoril, ou ver uma Chegança no pouco povoado Morro Branco. Tinha ainda o Bambelô de Mestre Calixto no Canto do Mangue e o Boi Calemba no tradicional bairro das Rocas.

Temos relatos que havia apresentações do Congo de Calçola, Congos de Saiote, do Congo de Rêgo Moleiro e da tradicional Chegança do bairro das Rocas. A dança da Araruna, certamente com a participação do falecido Mestre Cornélio Campina, apresentada pela Sociedade Araruna de Danças Antigas, foi também comentada.

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Luiz da Câmara Cascudo conhecendo aspectos do folclore gaúcho em terras potiguares 

Na opinião dos jornalistas do sul do país o que Djalma Maranhão fez de mais interessante foi oficializar e incentivar os muitos grupos folclóricos que havia na cidade, criando condições ara a realização de apresentações na época dos festejos juninos e nos autos de natal.

Além de incentivar os grupos, o prefeito apoiava as principais sociedades folclóricas. Além do grupo Araruna havia o Camaleão de Igapó, o Caranguejo, o Arraial de Luiz Antônio, o Pastoril Sempre Viva e o Pastoril Asa Branca.

Informam os jornais que em muitas destas apresentações havia inicialmente uma pequena palestra introdutória realizada pelo escritor, educador e bacharel Moacyr de Góes, que na época era Chefe de Gabinete do Prefeito Djalma Maranhão.

Sobre estes simples palcos, só posso comentar que eles em nada se comparam aos atuais palcos “high tech”, para apresentações de novas bandas musicais de gosto extremamente duvidoso, ditas “da terra”. Estas bandas são mostradas como “um ação para divulgar a nossa cultura para o povo” e contratados a preço de ouro pelos governos locais, onde casos recentes apontam que muito do ouro público acaba escorrendo em falcatruas terríveis.

Contam os jornais gaúchos que no Festival de 1957 houve até mesmo uma “serenata sentimental”, a meia noite, na Praça André de Albuquerque.

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Mesa de debates sobre folclore

Já no terceiro festival, um dos pontos altos comentados foi o lançamento no dia 30 de dezembro de 1958, na livraria Ismael Pereira, do livro “Superstições e Costumes”, de Luiz da Câmara Cascudo. Não podemos esquecer que o dia 30 de dezembro também se comemorava o aniversário do autor.

E TUDO SE PERDEU!

Apesar da gentileza do amigo gaúcho Paulo Schröder em passar este maravilhoso material, estas manchetes acabaram gerando uma situação complicada para mim; tentar explicar porque nada disso existe mais em Natal!

O Paulo já esteve visitando a nossa quente terra e conheceu suas belezas, mas pouco viu de sua cultura popular. Apenas teve de se contentar com as interessantes, mas limitadas, apresentações folclóricas da casa de espetáculos “Zás-Trás”, que inclusive já cerrou as suas portas.

Uma das explicações ao amigo gaúcho estava apontada na declaração de Gumercindo Saraiva, em uma reportagem intitulada “As tradições do ciclo natalino”, publicada no jornal potiguar “Tribuna do Norte”, edição de 6 de dezembro de 1981.

Neste trabalho Gumercindo comentava que naquele ano “A Prefeitura Municipal (de Natal) já não se entrosa com os folguedos e a Fundação José Augusto (entidade do governo estadual potiguar destinada a incentivar a cultura) nada pode fazer, uma vez que não dispõem de assessores interessados em conhecer Fandangos, Pastoris e Congos”.

Se há trinta anos o desinteresse governamental já era assim, imaginem agora!

Não posso esquecer que neste nosso blog “Tok de História” apresentei um texto onde elogiava a iniciativa do atual governo do nosso estado, de enviar os nossos poucos grupos folclóricos atualmente existentes, para participarem de um festival de folclore em São Paulo. Já no começo do referido texto perguntava se esta ação seria “A mudança de um triste quadro?”.

Confesso que não sei responder.

Ver https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/05/26/participacao-potiguar-no-47%C2%BA-festival-nacional-de-folclore/).

Para martelar o último prego do caixão, me lembro de que há poucos anos levei um valente VW Santana que possuía, para concertar o motor de partida com o competente mecânico Biró, lá no bairro das Rocas. Ele é um homem enorme, da voz grossa, gestos tranquilos, extremamente competente no que realizava, que havia sido jogador do ABC F.C. (se não estou enganado) e me contou que adorava estas manifestações do folclore popular da época de Djalma.

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Maneira como Natal era apresentada turisticamente naquela época

Em meio ao concerto e ao bate papo ele me narrou que pertinho de sua oficina morava uma idosa senhora, que nas priscas eras de Djalma Maranhão ela cansou de receber o Prefeito em sua casa. Esta Senhora comandava um grupo de Pastoril que realizava junto com as jovens do bairro e fazia questão de apresentar com extremo orgulho pela capital potiguar o seu belo trabalho. Biró comentou que o grupo era uma verdadeira maravilha.

Mas o tempo passou, Djalma Maranhão morreu no exílio, o incentivo a cultura popular diminuiu e a pobre senhora era a pura melancolia agarrada as suas memórias.

Para aqueles que pensam que estas manifestações folclóricas incentivadas por Djalma Maranhão são “coisas de velho”, que hoje as modernas bandas de forró eletrônico são o que “o povo quer ouvir”, aconselho a dar uma olhadinha no que acontece em Pernambuco.

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AS LEMBRANÇAS DE UM PATRÃO CHAMADO LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Ela é morena, baixa, anda curvada pelos anos de trabalhos domésticos, limpezas e lavagens de roupas. Vive em uma pequena casa na Rua Alberto Maranhão, construída pelo seu pai a mais de cinquenta anos, quando o bairro do Tirol era um campo aberto, com poucas residências, sem a forte especulação e valorização imobiliária que ocorreria a partir da década de 1960. Como companhia, apenas uma irmã e sua nonagenária mãe.

Jornal Tribuna do Norte

Nos últimos anos, sua pele está curtida pelo excesso de sol que leva nos fins de semana, mas ao invés de ser em alguma atividade recreativa nas nossas belas praias, esta mulher labuta como vendedora ambulante na urbana praia do Meio, como forma de completar a mirrada pensão que recebe como aposentada pelo INSS.

A situação atual de Neuza Amaro Rodrigues não é muito diferente da vida de milhares de aposentados pelo país afora, que mesmo depois de toda uma vida de muito trabalho, necessitam buscar opções de remuneração para complementar sua renda e ter alguma condição para viver com o mínimo de dignidade no fim de suas vidas.

Neuza Amaro Rodrigues

Dona Neuza não sabe em que ano nasceu (ou não querer dizer?), sabe apenas que seu aniversario é comemorado (ou melhor, lembrado) no dia 6 de março. Ela não sabe ler, não sabe escrever, mas esta condição não foi um problema para que tenha trabalhado na residência da maior figura intelectual que surgiu neste estado, Luís da Câmara Cascudo.

Um Homem Simples

Apesar de afirmar não saber a sua idade, Dona Neuza acredita que tinha em torno de “uns vinte e sete anos” quando foi trabalhar no casarão da Avenida Junqueira Aires. Ela afirma que chegou à casa do folclorista através de uma agência de encaminhamento de empregos que existia na época, uma espécie de S.I.N.E. daquele período.

Luís da Câmara Cascudo

Mesmo não sendo uma pessoa com muita informação, Dona Neuza sabia que o seu novo patrão era um homem conhecido e famoso, mas para ela isto não criava nenhum tipo de intimidação e nem Câmara Cascudo demonstrava algum sinal de superioridade ou afetação pela posição que possuía no meio social e intelectual de Natal e do país. Ele sempre se portou como um homem simples, tranquilo, calmo e preocupado com a situação daqueles que trabalhavam na sua casa. Para Dona Neuza isto ficou claro nas inúmeras ocasiões em que ela presenciou o famoso folclorista, logo após ter acordado, perguntar a sua esposa, Dona Dhalia, “como estavam as empregadas”, “se estavam alimentadas” e “se estavam todas bem”. Por esta época, Dona Neuza não era única “secretária” na casa de Câmara Cascudo, ela dividia o trabalho com Francisca e Anália, esta última uma fiel empregada da família, já falecida.

Sua Principal Tarefa no Casarão

Segundo Dona Neuza seu trabalho na casa não incluía dormir na residência. Todos os dias ela acordava às cinco da manhã, se dirigia ao antigo mercado do centro da cidade (onde atualmente se encontra a agência do Banco do Brasil), para escolher e comprar as frutas preferidas de Cascudo (principalmente mamão e abacaxi) com o dinheiro que Dona Dhalia lhe entregava no dia anterior. Ela afirma que não possuía uma função especifica no trabalho diário na casa, podia fazer a faxina geral, lavar a roupa, ajudar no preparo dos alimentos e o que houvesse.

Escritório do folclorista

A limpeza do vasto e lotado escritório do folclorista era uma atividade bastante trabalhosa, além de ser uma das suas principais tarefas e durava toda uma parte do dia. Dona Neuza tinha que cuidadosamente retirar e limpar vários livros, objetos de decoração e “coisas de boi de reis” como se refere a objetos folclóricos que compunham parte do acervo pessoal do seu patrão.

A limpeza do escritório ocorria sempre pela manhã, quando Câmara Cascudo dormia, após toda uma noite de pesquisas, leitura e elaboração de ideias.

O Dia a Dia do Pesquisador e seus Charutos

Ela afirma que o folclorista sempre acordava entre onze e meio-dia, sendo uma das suas primeiras atividades “ir para os santos”, ou seja, dirigir-se a um oratório e pedir proteção aos santos de sua devoção. Depois almoçava, dando preferência a um prato denominado “pimentão cheio” e voltava para seus amados livros. Se não aparecia nenhuma visita, nem havia algum compromisso, o trabalho no escritório se prolongava por horas.

Durante o tempo que Dona Neuza trabalhou em sua casa, sempre viu, apesar da idade, Cascudo trabalhar só em seu escritório, sem a ajuda de ninguém, de forma silenciosa e calma.

Charutos comprados na “Casa dos Órixas”

Uma particularidade no famoso folclorista era o gosto que ele possuía pelos charutos. Afirma Dona Neuza que muitas vezes comprou caixas destes produtos na “Casa dos Orixás”, localizada na rua Princesa Isabel.

As Visitas ao Casarão da Junqueira Aires

Quando trabalhou para Câmara Cascudo, Dona Neuza afirma que ele já não viajava, em compensação muitas eram as pessoas que o visitavam, dos quais ela não conhecia ninguém e não sabia quem era famoso ou não. Normalmente, quando era uma visita rápida, cafezinhos e sucos eram servidos. Às vezes ocorriam festas de maior vulto, na qual o trabalho da casa era dividido entre as três “secretárias” e garçons eram contratados para servir os convidados. Quando ocorriam almoços especiais, Dona Dhalia pessoalmente era quem organizava tudo na mesa, a disposição de pratos, talheres e sempre com uma impecável toalha de mesa de renda branca do Seridó. A veneranda esposa de Cascudo punha em prática os aprendizados que recebera na década de 1920, na tradicional Escola Doméstica de Natal.

Casarão da Junqueira Aires

Sempre na época do natalício de Câmara Cascudo, em 30 de dezembro, este era visitado por variados grupos folclóricos, cantadores de viola e outros mestres das artes populares, que realizavam apresentações em sua casa, fato que trazia enorme satisfação ao pesquisador.

A Alimentação

Grande parte do trabalho de Dona Neuza era na cozinha da casa, onde o folclorista, além do “pimentão cheio”, sempre apreciava um belo prato de peixe, muito mais do que alguma iguaria a base de carne vermelha. Normalmente ele comia pouco, mas fazia questão de ter uma mesa farta, com diversos pratos, tal como se fazia nas antigas casas-grandes do litoral ao sertão.

Durante seu período de trabalho, ela nunca viu Câmara Cascudo ingerir, ou mesmo degustar, nenhuma espécie de bebida alcoólica e nem refrigerantes, sempre valorizando os sucos a base de frutas da época.

Apresentação folclórica na casa de Cascudo

O autor de “Dicionário do Folclore Brasileiro” possuía uma característica especial para Dona Neuza, tanto fazia que o visitante fosse rico ou pobre, poderoso ou um simples homem do povo, um letrado doutor, ou um analfabeto cantador de feira, todos eram igualmente recebidos com cortesia pelo seu patrão e sua família.

Lembra que todo fim de ano, além da remuneração normal, seu patrão fazia questão de reunir as empregadas para entregar uma gratificação extra, era “para as festas”.

A Saída do Casarão e as Lembranças do seu Patrão

Dona Neuza é uma mulher atenciosa, mas sempre com uma atitude simples, discreta, ostenta um sorriso tímido, se considera uma trabalhadora competente e faz questão de comentar o respeito e admiração que sentia pelo folclorista e sua família.

Encontro entre Câmara Cascudo e Frei Damião

Se defeitos o seu patrão possuía, e com certeza os possuía, pois Câmara Cascudo era humano, Dona Neuza não comentou. Seja pela sua origem, formação, ou consciência, esta senhora considera um sacrilégio comentar fatos negativos relativos a seus patrões, principalmente “quem lhe tratou tão bem”.

Depois de três anos trabalhando junto a Câmara Cascudo e sua família, esta profissional pediu demissão e foi trabalhar na empresa de vigilância “EMSERV”. Mesmo assim ainda realizou frequentes visitas ao casarão da Junqueira Aires, para conversar com Dona Dhalia.

Como já foi escrito anteriormente neste artigo, Dona Neuza é uma mulher que não sabe ler, nem escrever, nem isto a impediu de trabalhar para um homem que foi um prestigiado imortal da nossa Academia Norte-rio-grandense de Letras. Contudo, Câmara Cascudo não foi o único intelectual potiguar a ter os serviços de sua casa atendidos por esta senhora. O falecido poeta e advogado macauense Gilberto Edinor Cabral Avelino, que ocupou a cadeira número 35 de nossa Academia de Letras, cujo patrono foi Juvenal Antunes, conheceu os serviços de Dona Neuza, que inclusive continua até hoje realizando trabalhos domésticos semanais para a família deste saudoso imortal.

D. Neuza, uma pessoa tranquila

As discretas lembranças desta simples trabalhadora doméstica ajudam a compor um quadro que mostram um Luís da Câmara Cascudo, não como um inatingível homem de letras, no alto da sua intelectualidade, imortalizado por uma extensa e soberba obra sobre nossos costumes, lendas, histórias e outros variados assuntos. As lembranças de Dona Neuza mostram pequenos aspectos da vida pessoal, do dia a dia de um homem no limiar de uma vida de intensa produção pessoal, em seu lar, cercado de seus familiares, recebendo seus amigos, vivendo na sua provinciana cidade, longe dos grandes centros, sem pedantismos, tranquilo e sereno.

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1903 – O FIM DE UM COCO DE ZAMBÊ NA PRAÇA PEDRO VELHO?

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Onde até recentemente estava instalado o Colégio da Imaculada Conceição, na Av. Deodoro da Fonseca, número 540, no atual bairro da Cidade Alta, era o fim das residências da Natal dos primeiros anos do século XX. Uma cidade que contava nesta época com apenas dezesseis mil habitantes.

De onde está localizado o tradicional colégio da elite natalense, em direção ao mar e as dunas mais altas, tudo era mato, área sem maiores atrativos para uma parte da população. Havia algumas picadas que levavam as casa dos pescadores nas Praias do Morcego e de Areia Preta. Esta região era então conhecida como Belo Monte, Belmonte, ou simplesmente Monte.

Área da Praça Pedro Velho-Fonte-Livro 380 anos de história foto-gráfica da cidade de Natal 1599-1979

Câmara Cascudo, no seu livro “História da Cidade de Natal” (1999, pág. 351), informa que nesta época ainda havia gente caçando aos domingos.

Os mais abastados da cidade, buscando outros ares, se dirigiram para esta área, onde construíram suas chácaras para descanso e veraneio. Estas propriedades tinham nomes diferenciados, tais como “Betânia”, “Solidão”, “Senegal”, “Pretória”, “Covadonga”, “Quinta dos Cajuais” e outros.

Um destes proprietários era o ex-governador e líder político Pedro Velho, que denominava a região como Cidade Nova e sonhava com a expansão de Natal nesta direção.

A Cidade Nova

Quem realmente deu o pontapé inicial para o crescimento desta região foi o então Presidente do Conselho de Intendência Municipal, cargo atualmente equivalente ao de prefeito, Joaquim Manoel de Teixeira Moura.

Chamada de uma das muitas resoluções publicadas pela Intendência de Natal nos primeiros anos do século XX

Através da Resolução número 55, publicada no dia 30 de dezembro de 1901, o bairro de Cidade Nova foi criado, ao menos no papel, sendo este o terceiro da cidade. No livro “Nova história de Natal” (2008, pág. 383), do professor Itamar de Souza mostra que nesta resolução, no bairro de Cidade Nova, existiriam quatro avenidas, cortadas por seis ruas e duas praças, sendo uma delas a Praça Pedro Velho.

Área da Praça Pedro Velho-Fonte-Livro 380 anos de história foto-gráfica da cidade de Natal 1599-1979.

Segundo o documento, no seu inciso segundo, havia terrenos que poderiam ser dados em concessão, mas que não podiam passar de trinta metros de frente.

O problema era que na nova área de expansão da elite natalense, que vivia o auge da sua “Belle Epoque”, já existiam moradores. Eram os representantes das camadas sociais mais pobres da cidade. Gente que havia fugido das secas no interior e estavam na “periferia”, nos ”matos do Belo Monte”, talvez para não se misturar com o que Natal tinha de “bom”, seja lá o que fosse.

Para a região eram levados os excluídos de Natal. Pessoas que sofriam de doenças como varíola e só contavam com a ajuda do quase santo Padre João Maria para sobreviver.

Mas a cidade precisava crescer. Cabia a maior autoridade municipal seguir nos planos e os “mocambos”, “casinholas” e “ranchos” teriam de sair.

O Fim de um “Samba”

O jornal “A Republica” da época, órgão oficial do governo estadual, que neste período estava nas mãos de Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, muito pouco divulgou do drama que ocorreu na região. Mas aqui e acolá é possível perceber que a coisa não foi tão simples.

Naquele longínquo ano, a Praça Pedro Velho era um grande espaço aberto, muito maior do que conhecemos atualmente. Praticamente sem nenhuma estrutura e ainda existiam casas humildes na área destinada ao espaço público.

Na edição de 8 de julho de 1903, uma quarta feira, temos uma notícia sobre um “samba” na Praça Pedro Velho.

Jornal “A Republica”, edição de 8 de julho de 1903

Em uma das casas que, segundo o jornal, era “um casebre em ruínas” e “uma ameaça a segurança e higiene públicas”, se reuniu de “sábado até a manhã do dia 3 de julho”, uma “súcia de vadios”, que promoveram um “samba”, com “gritos infernais”.

Afirma a nota que o problema não era novo e o local era utilizado para “Práticas imorais”.

Se o tal “samba” já vinha perturbando anteriormente, não consegui apurar, mas a nota do dia 8 solicita, em uma linguagem incisiva, que os seus usuários “deveriam respeitar o ato da Intendência Municipal”.

Não consegui apurar o que ocorreu com este local nas páginas do jornal.

Mas Afinal de Contas o que Seria esse Local de “Práticas imorais”?

Uma coisa é certa, o termo “Samba” utilizado pelo jornal, não tinha nenhuma relação com o ritmo musical que tanto sucesso faz no carnaval do Rio de Janeiro. Nessa época esse termo utilizado era, muito comum nas páginas deste periódico. Era como normalmente a elite natalense designava um lugar onde pessoas, normalmente pobres e negras, se divertiam na provinciana Natal do início do século XX. O tal “Samba” seria um baile de gente simples, equivalente a uma função, um pagode, arrasta-pé, ou um forrobodó.

Mas cruzando esta nota de 8 de julho de 1903, com os textos contidos no livro “O Ritual Umbandista”, de autoria de Renato Sérgio Santiago de Melo e publicado em 1973, encontramos uma interessante informação.

Na sua página 16, lemos que nas “Campinas do Camboim”, local atualmente situado na região da Rua Professor Fontes Galvão (a mesma que se inicia defronte ao portão principal do Colégio Marista, no bairro do Tirol), morava um preto velho, antigo escravo, nascido na África, conhecido como Paulo Africano.

Segundo Sérgio Santiago, através de informações conseguidas com a neta de Paulo Africano, Alzira de Oliveira, encontrada pelo pesquisador no início da década de 1970 e vivendo no Bairro de Lagoa Seca, seu avô tinha uma casa onde se dançava o mais puro Coco de Zambê.

O nome deste homem era Paulo José de Oliveira, sendo considerado “bem quisto” e “bom pai de família”. O livro afirma que Paulo Africano havia se identificado tanto com o Coco de Zambê, a ponto de fazer desta manifestação cultural “uma espécie de religião”.

Sérgio Santiago informa que seu próprio sogro, Lupicínio Ramos, morador do Bairro da Ribeira, fazia questão de ir com alguns amigos, sempre aos sábados, para assistir o Zambê que acontecia na casa de Mestre Paulo.

Apesar do Coco de Zambê apresentado na casa de Paulo Africano ser tido pela sociedade local como uma festa, era na verdade uma manifestação do sincretismo afro-brasileiro, distorcida pela ação policial que existia.

Para o autor de “O Ritual Umbandista”, o Coco de Zambê era uma dança africana de significação religiosa. Esta tese foi originalmente proposta pelo médico alagoano e antropólogo Arthur Ramos de Araújo Pereira.

Conclusão

Sabendo a localização aproximada da vivenda de Mestre Paulo e tendo o conhecimento que a mesma estava a menos de um quilômetro da região da Praça Pedro Velho, é possível deduzir que o tal “Samba” ameaçado pelo poder público não seria de Paulo Africano?

Se não, então de quem seria?

E o que era tocado neste “casebre em ruínas”, tão depreciado na nota de “A Republica” de 8 de julho de 1903? Seria mais um local de apresentação do tradicional Coco de Zambê?

Coco de Zambê. Na atualidade esta dança praticamente não é mais executada em Natal

O motivo da perseguição do “Samba” da Praça Pedro Velho, era a música ou a religiosidade afro-brasileira?

Não temos as respostas, mas neste artigo vemos como naquela época a necessidade de espaço, exigido pela elite de Natal, fez com que as classes menos providas de recursos fossem “empurradas” de suas áreas tradicionais, sem o devido respeito, nem as suas tradições e manifestações culturais.

Ainda segundo o livro do professor Itamar de Souza, no relatório que Joaquim Manoel Teixeira de Moura apresentou ao Conselho Municipal em 1905, afirmou que “perto de trezentas casinholas e ranchos foram indenizados e removidos do trajeto das ruas do referido bairro”.

Mas as arbitrariedades praticadas contra a população pobre da Cidade Nova foram tantas, que o ferrenho oposicionista do governo da época, o jornalista Elias Souto, rebatizou a região como “Cidade das Lágrimas”.

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