MULHERES QUE INSPIRAM – A HISTÓRIA DE UMA GUERREIRA DO MAR

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

As aventuras e épicos no mar sempre despertaram o interesse geral, e este é um fascínio muito antigo. Quase sempre vale a pena ler narrativas sobre os elementos da natureza marítima. Mas normalmente, os protagonistas desses feitos incríveis são homens.

E se uma mulher fosse protagonista de uma história marítima genuína e emocionante, os seus feitos seriam igualmente apreciados na sociedade atual?

Não me parece!

Para minha surpresa, esta mulher notável, com uma incrível história de sobrevivência no mar, está em grande parte esquecida no seu próprio país. E é um país conhecido por valorizar muito a sua própria história.

Essa seria a imagem de Mary Ann Brown na infância.

E olha que na época dos acontecimentos ela tinha apenas 19 anos e estava grávida do primeiro filho. Mas isso não a impediu de assumir o cargo de capitã de um grande veleiro depois que seu marido, o capitão, ficou gravemente doente. Ela fez isso em meio às tempestades traiçoeiras do Cabo Horn e da Passagem de Drake, que incluíram temperaturas extremamente baixas, ondas gigantes, ventos com força de furacão e muitos outros desafios. Ela também enfrentou um primeiro oficial tirânico e uma tripulação que tentou se amotinar. Porém, ela superou o cansaço, o medo e a dor e conseguiu chegar ao seu destino.

Esta é a sua história!

Uma Mulher do Mar

No nordeste dos Estados Unidos, no estado de Massachusetts, fica a grande cidade de Boston. Mesmo à sua frente está a cidade de Chelsea, um local que desde os seus primórdios tem uma forte ligação com o oceano. Em meados do século XIX, Chelsea desenvolveu-se como um importante centro industrial para a construção de veleiros, estabelecendo-se como uma potência neste setor nos Estados Unidos. Isso fez com que a cidade atraísse trabalhadores qualificados de todo o país e do mundo. E foi nesta cidade que, nas primeiras décadas do século XIX, chegou o casal inglês George e Elizabeth Brown.

George era um marinheiro profissional, com muitos anos de experiência no mar. Na nova cidade, rapidamente se envolveu em atividades marítimas. Elizabeth, como era costume no século XIX, tinha como único objetivo da sua vida cuidar da sua casa e dos seus filhos. Ainda mais por ser esposa de um marinheiro, que ficava frequentemente fora de casa, às vezes por anos.

Mary Ann Brown Patten.

Mas estas ausências não impediram George e Elizabeth de criarem uma família numerosa, cujos filhos estavam ligados ao mar. Nesta época, não foi surpresa que Mary Ann Brown, nascida em 1837, se casasse aos 16 anos com Joshua Patten, um encantador capitão do mar nove anos mais velho que ela. Mary Ann foi descrita como uma bela jovem com traços atraentes, modos refinados e graciosos, uma figura esbelta e pequena, longos cabelos escuros e olhos castanhos vibrantes.

Joshua trabalhou no comando de veleiros, transportando cargas e passageiros de Nova York a Boston. Mas ele era uma estrela em ascensão entre os capitães de navios, por isso não foi surpresa quando lhe foi oferecido o comando de um elegante e poderoso Clipper.

Este tipo de navio surgiu à medida que o comércio e a economia global se expandiam. Basicamente, era um tipo de veleiro de carregamento rápido que se originou nos Estados Unidos e teve seu apogeu em meados do século XIX. As características mais marcantes do navio eram a proa bem cortada, a largura estreita em relação ao comprimento e as altas velocidades alcançáveis. Esses recursos resultaram em espaço de carga limitado em favor da velocidade. Os mastros, postes e estruturas eram relativamente grandes, e velas adicionais a favor do vento eram frequentemente usadas. Este tipo de embarcação requer um grande número de tripulantes e comandantes experientes e bem preparados. Joshua Patten foi um deles!

Uma Mulher a Bordo

Pintura original do Clipper Neptune’s Car.

Ele recebeu um veleiro pesando mais de 1.600 toneladas, com velas enormes, e batizado de Neptune’s Car (Carro de Netuno).

Este navio foi lançado em 16 de abril de 1853, no estaleiro Page & Allen Company, na cidade de Portsmouth, Virgínia. Posteriormente, foi adquirida pela empresa de transportes Foster & Nickerson’s Line de Nova York. Em sua época, o Neptune’s Car era considerado um barco longo e elegante. Tinha 68 metros de comprimento, boca de 12 metros e capacidade para transportar 1.616 toneladas de carga. Ela tinha três mastros altos e carregava 25 velas, a maior das quais tinha aproximadamente 21 metros de diâmetro. Um verdadeiro colosso do seu tempo.

Uma pintura do famoso Clipper Cutty Sark, de Jack Spurling. Este navio está inteiramente preservado na Inglaterra.

Entre os principais destinos alcançados pelos velozes Clippers estava a cidade norte-americana de São Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos. O problema era que, antes do Canal do Panamá, a única forma de chegar lá por mar era partir de um porto da costa leste, sendo Nova York o principal, e navegar para sul ao longo de toda a costa da América do Norte. E pelo sul, atravessando o traiçoeiro Cabo Horn e a Passagem de Drake, entrando no Oceano Pacífico, depois traçando todo o litoral sul-americano em direção ao norte, passando pela costa do México, e finalmente chegando a São Francisco. Uma viagem com duração de quatro meses e aproximadamente 24 mil quilômetros. Apesar dos desafios e obstáculos, esta rota desempenhou um papel crucial no apoio à economia em expansão impulsionada pela mineração de ouro na Califórnia. As empresas de transporte marítimo obteriam enormes lucros entregando prontamente alimentos e suprimentos para a área.

Anúncio original do Clipper Neptune’s Car.

O Neptune’s Car completou com sucesso sua primeira viagem entre Nova York e São Francisco, com a navegação provando ser um sucesso. Porém, o relacionamento entre a tripulação deixou a desejar. Entre os problemas ocorridos com o comandante e a tripulação, não faltaram ameaças de motim. O capitão avisou que atiraria em qualquer um que ousasse concretizar tal ideia. Evidentemente, todos a bordo foram para a rua e Joshua Patten foi chamado para assumir o comando.

Logo, Lady Mary Ann Brown Patten insistiu em se juntar ao marido em sua primeira viagem como capitão do Neptune’s Car. Ela teve uma oportunidade que poucas mulheres de sua época teriam: conhecer o mundo a bordo de um navio.

Eles viajaram para o extremo sul do continente americano e entraram no Oceano Pacífico antes de chegarem a São Francisco. Desta cidade surgiu um novo trabalho de transporte de cargas, e eles seguiram para Xangai, na China, onde embarcaram uma grande quantidade de chá com destino a Londres, na Inglaterra. Eles retornaram ao Oceano Atlântico navegando pelo traiçoeiro Cabo Horn a caminho de seu destino. Eles passaram vários meses juntos no mar antes de retornarem para Nova York, Boston e Chelsea.

Embora as mulheres tripulantes de navios fossem muito raras naquela época, não era incomum que as esposas dos comandantes estivessem presentes nos navios de carga. Nos jornais do século XIX, era comum encontrar notícias no site da Biblioteca Nacional sobre navios ancorados no porto do Rio de Janeiro. Essas matérias mencionavam o nome do navio, a tonelagem, a carga, o capitão, os tripulantes e ainda destacavam a presença da esposa do comandante, que os jornais frequentemente elogiavam.

Normalmente, durante a navegação, as esposas desses oficiais permaneciam em suas cabines, realizando atividades como ler, tricotar ou tocar algum instrumento musical próprio de senhoras modestas. Ocasionalmente, elas saíam para tomar um pouco de ar fresco e acompanhavam seus maridos em caminhadas tranquilas pelos portos de destino. Mas para Mary Ann Potter, permanecer a bordo seria diferente.

Ela não queria ser apenas a “esposa do capitão”. Ela estava determinada a ser útil e aprender tudo o que pudesse para ajudar o marido a bordo do Neptune’s Car.

Diz-se que Mary Ann passava o tempo pesquisando na pequena biblioteca do navio, lendo sobre a medicina rudimentar de sua época e ajudando os marinheiros com suas doenças. Joshua, por sua vez, ajudou sua esposa em sua busca por conhecimento, ensinando-lhe os conceitos básicos de navegação, meteorologia, cordas, velas e outras funções dos marinheiros. Ele também ensinou sua esposa a navegar usando equipamentos como sextante, bússola, astrolábio e cartas de navegação. Apesar de enfrentar certas limitações financeiras, Mary recebeu o apoio necessário de sua família em Chelsea para receber uma educação excelente. Ela não demonstrou dificuldades em compreender conceitos técnicos complexos.

O que ninguém a bordo do Neptune’s Car tinha ideia era da utilidade futura desses ensinamentos.

E seria um futuro muito problemático!

A Ganância dos Impuros

Em julho de 1856, o Neptune Car estava se preparando para sua segunda viagem com o Capitão Joshua no comando. Mary Ann acompanharia o marido, mas estava grávida do primeiro filho. Só ela e Joshua compartilharam esse segredo. Provavelmente acreditavam que haveria tempo suficiente para viajar de Nova York a São Francisco e que a criança nasceria em Chelsea quando voltassem. Uma ideia um tanto arriscada.

Uma pintura de 1855, de Fitz Henry Lane, mostrando o porto de Nova York.

Pois bem, sabemos que naquela época as mulheres eram ensinadas a se considerarem e agirem como o “sexo mais fraco”, e que deveriam sempre se proteger para evitar problemas. Mas acho que Mary Ann faltou àquela aula!

Os problemas logo começaram.

Durante o ataque, houve um acidente e o leal primeiro oficial de Joshua quebrou a perna. Os financiadores Foster & Nickerson, ansiosos por não perder tempo, colocaram um jovem inexperiente chamado William Keeler nesta posição delicada. Algo imprudente, pois depois do comandante, ele era o primeiro oficial que tomava todas as decisões de um navio.

Os problemas continuaram quando Joshua começou a se sentir mal devido a uma doença desconhecida, que só pioraria seu estado mais tarde. Mas Foster & Nickerson, uma dupla de capitalistas ambiciosos e sem coração, desconsideraram a situação difícil do seu empregado e lançaram-no ao mar com Keeler.

O principal motivo de toda essa correria foi que a Foster & Nickerson não queria lucrar apenas com a entrega de cargas. Eles fizeram uma aposta substancial contra os proprietários de outros três navios Clippers que estavam programados para viajar na mesma rota de Nova York a São Francisco, todos partindo simultaneamente. Como o Neptune Car ainda era um navio relativamente novo, eles queriam demonstrar as suas capacidades e garantir que seria o primeiro a chegar ao porto de destino. É verdade que o capitão vencedor poderia ganhar entre US$ 1.000 e US$ 3.000, o que era considerado uma fortuna na época, se completasse a viagem primeiro. Apesar do incentivo, na verdade, a linha Foster & Nickerson seguiu a antiga tradição de indivíduos ricos que estavam dispostos a arriscar a vida de seus funcionários para superar outros indivíduos ricos.

Então eles partiram, e Joshua confiou a Keeler para manter o curso enquanto ele tentava descansar e se recuperar com a ajuda de sua esposa. Mas Keeler provou ser um idiota incompetente em pouco tempo. Sua lista de infrações é impressionante: ele dormiu metade de seus turnos, navegou em recifes de coral, exigiu ordens para tarefas simples e, por fim, recusou-se abertamente a realizar certas tarefas com os marinheiros, como içar velas. Cerca de um mês depois de partir de Nova York, o comandante Joshua trancou-se em sua cabine.

O navio estava no extremo sul e agora enfrentava constantes vendavais de neve e granizo. Nenhum dos outros membros da tripulação foi capaz de realizar a navegação. O segundo oficial era analfabeto e o terceiro era outro idiota que por acaso era amigo de Keeler.

Pintura de um Clipper enfrentando as ondas do temido Cabo Horn.

O capitão Joshua teve que ficar acordado dia e noite para manter o curso correto. Por causa disso, ele confiou cada vez mais em Mary Ann para ajudá-lo a confirmar sua posição, curso e velocidade. Ele reconheceu que ela era uma matemática melhor do que ele. Quando o grande navio chegou ao Estreito de Le Maire, estreita passagem marítima entre a Ilha dos Estados e o extremo leste da Terra do Fogo, na Argentina, o estado do capitão piorou. Ele teve febre, delirou e acabou incapacitado em sua cabine. Mary Ann então assumiu o comando pela primeira vez.

Se os problemas já eram enormes, para complicar ainda mais, a Mãe Natureza parecia decidida a atacar aquele veleiro com todas as suas forças. No Cabo Horn, o Neptune Car foi sacudido por ondas de quinze metros e ventos que atingiram velocidades de 160 quilômetros por hora. O céu escureceu, transformando-se em uma massa rodopiante de nuvens, vento e chuva. Sem saber a sua localização exata, Mary Patten decidiu que a sua única hipótese de sobrevivência era desviar-se temporariamente do curso mais curto e seguir para oeste, em antecipação a condições mais favoráveis. Ela então dirigiu o navio na direção sul-sudeste, navegando com o vento. Assim, o Neptune’s Car escapou rapidamente dos perigos do Cabo Horn.

Mas a maior ameaça ainda era aquele desprezível Keeler.

Capitão Mary Ann

Ao saber da saúde debilitada do capitão, ele enviou uma carta a Mary oferecendo-se para assumir o comando se ela o libertasse. Dada a extrema gravidade da situação do marido, ela inicialmente aceitou a oferta. Keeler gentilmente se ofereceu para aliviá-la do fardo e assumir o controle sozinho. Mas Mary Ann respondeu que não podia aceitar esta condição, pois tinham muitos problemas como casal. Keeler então tentou incitar a tripulação ao motim, mas felizmente eles recusaram.

A condição do capitão melhorou um pouco e ele concordou em deixar Keeler assumir o comando para dispensar sua esposa de suas funções. Ele pode não ter acreditado nas habilidades de Mary Ann, mas a condição dela também era complexa. Independentemente desta questão, rapidamente se tornou evidente que se tratava de um erro significativo.

Primeiro, devido à doença do capitão, Keeler proibiu Mary Ann de subir ao convés para fazer medições de navegação. Então, por motivos ainda desconhecidos dos que investigaram o assunto, o primeiro oficial começou a dirigir secretamente o navio em direção ao porto chileno de Valparaíso, apesar das ordens explícitas de ir diretamente para São Francisco. Porém, ele não possuía a competência da única mulher a bordo.

Mary Ann, apesar de estar praticamente confinada aos dormitórios, percebeu que eles estavam se desviando do rumo. E para provar isso, ela montou uma bússola básica nos aposentos do capitão e demonstrou a situação para Joshua. Ao confirmar a ação e com milhares de dólares em valiosos maquinários e suprimentos para os campos de mineração de ouro da Califórnia a bordo do navio, o capitão ordenou que o primeiro oficial fosse confinado novamente, após uma acalorada discussão com Mary Ann.

Mas isso foi demais para Joshua. O capitão desenvolveu uma pneumonia, o que só complicou a doença não diagnosticada que tinha no início da viagem: a meningite tuberculosa.

Mary, que ainda estava no sexto mês de gravidez, assumiu o controle total do navio. Apesar de sua deficiência intelectual, ela recebeu apoio e assistência do segundo oficial. O Neptune Car continuou avançando através de tempestades mortais que abalaram o navio. Enquanto isso, a situação de Josué piorou cada vez mais. A infecção se espalhou para seu cérebro, fazendo com que ele ficasse delirante, cego e parcialmente surdo.

Enquanto isso, dada a situação, Keeler tentou convencer a tripulação a se juntar a ele em um motim contra Mary Ann Patten. Ele ouviu os terríveis rumores sobre a conspiração e temeu que o desespero tornasse a tripulação vulnerável ao seu controle. Ela não podia deixar isso acontecer. O Dayle Tribune de Nova York relatou mais tarde: “Sra.” Patten reuniu os marinheiros no convés e explicou-lhes a terrível situação de seu marido, ao mesmo tempo que solicitou o apoio deles para ela e seu segundo imediato. Cada homem respondeu ao seu chamado com a promessa de obedecer a todas as suas ordens. A incomparável Sra. Patten agora dirigia todos os movimentos a bordo.

Agora, a capitã Mary Ann Patten avisou Keeler que o denunciaria às autoridades de São Francisco por tentativa de tumulto e que ele seria enviado para a prisão. Vale ressaltar que, naquela época, a pena mais comum para os amotinados era a morte por enforcamento.

Mais tarde, Mary comentou que passou 50 dias usando as mesmas roupas, com tempo mínimo para higiene pessoal, em meio a um estresse extremo, cercada por uma equipe desafiadora e um marido muito doente. Ela sentiu a necessidade de assumir o comando do navio e se manter informada sobre tudo o que acontecia a todo momento.

Uma fotografia do porto de São Francisco em 1851.

Finalmente, quatro meses depois de deixar Nova York, o navio chegou a São Francisco em 15 de novembro de 1856. Mary Ann assumiu o comando e guiou o navio até o cais. No total, ela ficou sozinha no comando do navio por 56 dias.

Os espectadores no porto ficaram surpresos. O segundo oficial do navio gritou por ajuda para colocar o capitão Patten em uma maca. O orgulhoso capitão parecia magro e frágil, com um rosto pálido e cinzento. Os estivadores ficaram ainda mais curiosos com a presença de uma jovem de aparência delicada entre a tripulação de homens, dando ordens. A julgar pela redondeza de sua barriga, era evidente que ela estava grávida de aproximadamente seis meses. Apesar disso, ela permaneceu ao lado do marido enquanto ele era transportado para o hospital. Logo, a notícia se espalhou de boca em boca por toda São Francisco.

Um jornal do estado da Virgínia, com os relatos dos feitos heróicos de Mary Ann Patten.

Quando a imprensa soube como ela conseguiu comandar um poderoso Clipper, cuidar do marido, proteger o navio e a carga e controlar o primeiro oficial desonesto, tudo isso aos 19 anos e grávida, Mary Ann Patten se tornou uma celebridade instantânea. Jornal após jornal a entrevistou..

Jornais de todo o mundo, incluindo aqueles tão distantes como Londres, começaram a divulgar esta notícia. Jornalistas ansiosos começaram a juntar as peças da história triste, mas inspiradora. Enquanto isso, ela descobriu que seu barco havia ficado em segundo lugar na “Corrida dos Clippers de 1856”, algo para o qual ela não estava preparada. Chegando a São Francisco, Ella Mary tornou-se uma sensação nacional.

Acontece que o capitão Joshua Patten era maçom e, para apoiá-lo durante sua doença, eles receberam assistência significativa do Templo Maçônico da Califórnia. Também receberam apoio da Maçonaria para retornar a bordo de um navio, o George Law, que os levaria a Nova York e depois a Boston.

Em Nova York, um jornalista do New York Daily Tribune (página 5, 18/02/1857) comentou que o casal estava hospedado no Battery Hotel. Foi mencionado que Joshua foi carregado em uma liteira do navio para o hotel por seus irmãos Mason. E que seu estado era “delicado”. Tão delicado que o jornalista, sem qualquer sentido, afirmou que Mary Ann “em breve ficaria viúva”. Mesmo em conexão com a Maçonaria, onde Joshua Patten estava antes de vir para Boston, ele recebeu o apoio dos irmãos maçônicos.

Enquanto o casal voltou para casa, William Keeler nunca foi para a prisão ou foi executado. Ainda a bordo do Neptune’s Car, ele escapou com a ajuda de um companheiro e desapareceu. Ele deve ter mudado de nome e, quem sabe, se tornado um gigolô em uma taverna do Velho Oeste, ou um ladrão de cavalos, ou um agiota, etc.

O Fim Precoce de Uma Guerreiro do Mar

Depois de chegar a Boston e Chelsea, apesar da atenção da mídia, ela encontrou um problema com a empresa do marido. Embora Mary Ann estivesse grávida e seu marido estivesse muito doente, Foster & Nickerson recusou-se terminantemente a pagar a Joshua seu salário e bônus. Alegaram que ele havia entregue o navio a alguém “sem qualquer treinamento ou experiência”. Permaneceram teimosos até o fim e nunca pagaram um único centavo, apesar de o capitão claramente merecer.

Mary escreveu uma carta à seguradora, Atlantic Mutual Insurance Company, explicando o que havia acontecido durante a viagem. Foi somente depois de um protesto público que a empresa concedeu a Joshua um bônus de US$ 5.000 e mostrou sua magnanimidade enviando US$ 1.000 para Mary Ann. Prêmio do ano. De qualquer forma, a carga que ele salvou valia 350 mil dólares.

Os jornalistas que acompanharam a história não ficaram impressionados com a “generosidade”. O New York Daily Tribune de 1º de abril de 1857 proclamou sarcasticamente: “Mil dólares por uma heroína… das mãos caridosas e agradecidas de oito companhias de seguros com capitais grandes o suficiente para segurar uma marinha…”

Sendo uma mulher educada do século 19, ela escreveu-lhes para agradecer sinceramente e pediu-lhes que também agradecessem aos membros da tripulação do Neptune’s Car que apoiaram ela e seu marido. E como mulher vitoriana, ela minimizou o seu próprio papel, afirmando que estava “apenas cumprindo os seus deveres de esposa por causa do marido”.

Um jornal de Boston lançou uma campanha para cobrir as despesas dos cuidados médicos contínuos de Joshua, bem como o próximo nascimento de seu primeiro filho. Mary Ann recebeu US$ 1.399.

Conforme comentado por um jornalista do New York Daily Tribune, Mary Ann logo ficou viúva. Joshua morreu em 26 de julho de 1857, aos 30 anos, no Asilo McLean, em Boston. Ele morreu cego, surdo e completamente inconsciente. Ele nem sabia que Mary Ann havia dado à luz seu filho, Joshua Patten Jr. No dia de sua morte, as bandeiras marítimas do porto tremulavam a meio mastro e os sinos das igrejas dobravam em sua homenagem.

The New York Daily Tribune – 28-07-1857.

Mas os problemas não terminaram. Pouco depois, o pai de Mary, que também era marinheiro, se perdeu no mar.

Infelizmente, Mary Ann Brown Patten nunca se recuperou totalmente da intensa experiência. Em 1860, ela também contraiu tuberculose. Em 17 de março de 1861, com a idade de 23 anos, 11 meses e 11 dias, ela morreu. Ela está enterrada em Boston ao lado do marido.

Necrologio de Mary Ann Patten, em um jornal da cidade de Baltimore.

Memória

No Brasil, existe a ideia de que os Estados Unidos são uma nação que “valoriza muito a sua história”, que o povo de lá “é muito patriótico” e que “dá muito valor aos seus símbolos e heróis”. Porém, no caso de Mary Ann Patten, não é assim!

Hoje, apesar da importância dos acontecimentos de 1856, esta mulher é lembrada principalmente por ser reconhecida como a primeira mulher a comandar um navio mercante nos Estados Unidos. Em homenagem a ela, um hospital chamado Patten Health Service Clinic, da Marinha Mercante, leva seu nome e fica localizado em King’s Point, Nova York. E isso aconteceu mais de 100 anos após sua realização.

Pelo que pesquisei, nenhum navio americano leva o nome dela. Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos construíram uma imensa frota de navios de carga, conhecidos como “Liberty Ships”, com um total surpreendente de 2.710 navios concluídos, nenhum deles foi nomeado em homenagem a esta mulher. Vários desses navios receberam nomes de mulheres. Posso estar errado, mas não encontrei nenhuma referência à vida dela sendo tema de um filme ou documentário de Hollywood. Sei que ela serviu de inspiração para um romance, mas não encontrei obra literária mais abrangente sobre sua vida.

Mas o que aconteceu com ela em 1856 é algo que não deve ser esquecido.

O FAMOSO DEBATE ENTRE O ESCRITOR JAMES BALDWIN E O INTELECTUAL WILLIAM F. BUCKLEY NA UNIVERSIDADE CAMBRIDGE

Em breve completará 60 anos do dia que dois grandes intelectuais norte-americanos se enfrentaram em um debate histórico, sobre a tensa situação das divisões raciais dos Estados Unidos. Passadas tantas décadas, o evento não perdeu sua relevância e a fala do escritor negro James Baldwin continua marcante.

Fonte – Baseado no texto de Gabrielle Bello, em The American – Fonte – https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/12/james-baldwin-william-f-buckley-debate/602695/

Existe na Inglaterra uma sociedade de debate e liberdade de expressão chamada Cambridge Union Society, também conhecida como Cambridge Union, sendo essa a maior sociedade de alunos da Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Brasão da Cambridge Union – Fonte – Wikipédia

Fundada em 1815, a Cambridge Union é a mais antiga sociedade de debates em funcionamento contínuo no mundo. É legalmente uma instituição de caridade autofinanciada, que possui e tem controle total sobre sua propriedade privada e edifícios no centro da cidade de Cambridge. Essa sociedade igualmente arrecada fundos para despesas de eventos e manutenção de seus edifícios por meio de taxas de associação e patrocínio, além de gozar de fortes relações com a famosa universidade, uma instituição acadêmica cuja fundação remonta ao ano de 1209.

Depois de mais de 200 anos, a Cambridge Union é mais conhecida por seus debates, que recebem atenção da mídia nacional e internacional. Em 18 de fevereiro de 1965, no seu principal auditório, completamente lotado na ocasião, houve um desses debates. E o que ali foi dito reverbera até hoje!

James Baldwin (esquerda) e William F. Buckley (direita) – Fonte – Dave Pickoff / AP / Bettmann / Getty / The Atlantic – Via – https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/12/james-baldwin-william-f-buckley-debate/602695/

Choque de Titãs

“O sonho americano está às custas do negro americano”, declarou James Arthur Baldwin (Nova Iorque, 2 de agosto de 1924 — Saint-Paul de Vence, 1 de dezembro de 1987)[1] em seu debate com William Frank Buckley Junior (Nova Iorque, 24 de novembro de 1925 – Stamford, 27 de fevereiro de 2008)[2]. Baldwin estava ecoando a moção do debate – que o sonho americano estava às custas dos negros americanos, com Baldwin a favor, Buckley contra.

A ênfase na palavra de Baldwin deixa seu ponto de vista claro. “Eu colhi o algodão e o levei para o mercado, e construí as ferrovias sob o chicote de outra pessoa para nada”, disse ele, sua voz subindo com a cadência do púlpito. “Por nada.” O auditório lotado ficou em silêncio. 

Prédio da Cambridge Union – Fonte – Wikipédia.

Aqui estava um choque de titãs diametralmente opostos: em um canto estava Baldwin, baixo, esguio, quase andrógino com seu rosto ainda jovem, a voz carregando as inflexões levemente cosmopolitas que ele tinha há anos. Ele era o radical do debate, um escritor estimado sem medo de condenar vulcanicamente a supremacia branca e o racismo antinegro de norte-americanos conservadores e liberais. No outro canto estava Buckley, alto, de pele clara, cabelo bem penteado e mandíbula rígida, suas palavras esculpidas com seu sotaque transatlântico característico, quase britânico. 

Se Baldwin – o virtuoso verbal que escreveu retratos comoventes da América negra e sobre a vida como um expatriado na Europa – defendeu a necessidade de mudança dos Estados Unidos, Buckley se posicionou como o moderado razoável que resistiu às transformações sociais que os líderes dos direitos civis pediam. principalmente o fim da segregação racial. Alguns dos alunos na plateia o conheciam como nada menos que o pai do conservadorismo americano moderno.

Um recente debate na Cambridge Union, com a presença do ator inglês Stephen Fry. Nesse mesmo local debateram Baldwin e Buckley em 1965 – Fonte – Wikipédia.

O apoio de Buckley ao direito do Sul à segregação e as condenações de Baldwin à América branca ocorreram contra o pano de fundo onde os Estados Unidos se encontrava profundamente dividido em 1965, tal como em 2022.

Mundos Diferentes

Uma pedra fundamental para o entendimento desse debate está nas diferenças marcantes em como Baldwin e Buckley foram criados. 

Enquanto Baldwin cresceu pobre no bairro do Harlem, Nova York, com predominância de residentes negros e pobres, Buckley foi cercado por privilégios. Sua mãe, Alöise Steiner Buckley, encheu sua casa com criados e tutores para seus dez filhos. Ela era profundamente católica, a semente das rígidas visões religiosas maniqueístas que seu filho adotaria. Ao longo de sua vida, Buckley se tornaria conhecido pela estrita divisão de “bem” e “mal” em sua visão de mundo, segundo a qual o catolicismo e o capitalismo eram bons, e o ateísmo e o socialismo exemplificavam o mal.

Também ficou claro para a descendência de Alöise o que ela pensava sobre quem deveria servir a quem na sociedade americana. Ela era “racista”, segundo lembrou o irmão de Buckley, o escritor e educador Fergus Reid Buckley, porque “assumia que os brancos eram intelectualmente superiores aos negros”. Mas ele acrescentou que “ela realmente amava os negros e se sentia seguramente confortável com eles desde a suposição de sua superioridade em intelecto, caráter e posição.”

Essa dinâmica peculiar e paternalista pressagiava a própria ideologia de William, em que mãe e filho acreditavam em manter as barreiras entre negros e brancos americanos como parte da cultura sulista. Quando adulto, Buckley costumava escrever que a segregação era uma necessidade, porque os americanos negros “ainda não” eram avançados o suficiente para serem iguais aos brancos, o que implica, com uma condescendência que ele talvez considerasse edificante, que eles poderiam um dia estar no mesmo nível.

Baldwin no debate de 18 de fevereiro de 1965.

Baldwin, ao contrário de Buckley, sofreu muito antes de alcançar a fama como autor. Ele deixou Nova York em 1948, quase sem um tostão, para a França, depois de decidir que não poderia mais sobreviver ao traumatizante racismo dos Estados Unidos — tanto nos estados do norte quanto do sul. Embora tenha encontrado algum descanso em Paris, ele ainda quase cometeu suicídio lá depois de ser preso pela polícia por suspeita de ter roubado o lençol de um hotel (o que não aconteceu). E ele continuou voltando para a seu país, tanto em seus livros quanto em suas viagens. Baldwin nunca se escondeu; em vez disso se colocou na linha de frente de uma batalha pelos direitos civis por nada menos que a alma dos Estados Unidos.

Pedra de Torque

Se não fosse o debate de 1965, Baldwin poderia nunca ter conhecido Buckley. Na verdade, Baldwin quase teve outro oponente. Antes de a Cambridge Union convidar Buckley, ela havia procurado políticos firmemente segregacionistas, que recusaram. Buckley parecia uma alternativa ideal: um crítico sociopolítico articulado e proeminente que evitava os epítetos racistas dos supremacistas brancos mais vocais do conservadorismo, mas que, no entanto, apoiava a segregação. Buckley viu o debate como uma chance de derrotar um de seus arqui-inimigos ideológicos em um palco público.

William F. Buckley no debate.

Para irritação de Buckley, embora não totalmente para sua surpresa, Baldwin fez uma performance empolgante. 

Baldwin declarou durante o debate que era “um grande choque por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você jurou lealdade, junto com todos os outros, não prometeu lealdade a você.” Baldwin argumentou que os males da escravidão dificilmente haviam sido exorcizados após a abolição, mas que, em vez disso, o país ainda era essencialmente o mesmo para os negros americanos como era durante os dias da escravidão legal. 

Depois que Baldwin encerrou, ele foi aplaudido de pé, em uma rara manifestação da Cambridge Union. Nas imagens desse debate no YouTube, é nítido como James Baldwin fica até mesmo desconcertado diante da plateia.

Apresentação dos debatedores.

Quando chegou a sua vez, Buckley argumentou que Baldwin estava sendo tratado com luvas de pelica, por assim dizer, porque alegava ser uma vítima. “O fato de sua pele ser negra”, ele asseverou, “é totalmente irrelevante para os argumentos que você levanta”. Baldwin, disse ele lentamente e cheio de uma raiva silenciosa, era um inimigo violento do modo de vida sulista que proferiu “flagelações de nossa civilização” e da América como um todo. Forçar o sul americano a abandonar seu modo de vida e aceitar a integração imposta pelo governo, insistiu, seria imoral. 

Em última análise, o público discordou e Baldwin venceu o debate por 540 a 160 votos.

É difícil falar sobre Baldwin ou Buckley sem fazer referência a este encontro; tornou-se uma pedra de toque na vida de ambos os homens.

Segue a transcrição da fala de James Baldwin.

Auditório lotado.

Boa noite,

Encontro-me, não pela primeira vez, na posição de uma espécie de Jeremias. Por exemplo, não discordo do Sr. Burford de que a desigualdade sofrida pela população negra americana dos Estados Unidos atrapalhou o sonho americano. Na verdade, tem. 

Discordo com algumas outras coisas que ele tem a dizer. O outro elemento, mais profundo, de uma certa estranheza que sinto tem a ver com o ponto de vista de alguém. Tenho que colocar dessa maneira – o sentido, o sistema de realidade de alguém. Parece-me que a proposição perante a Câmara, e eu colocaria dessa forma, é o sonho americano às custas do negro americano, ou o sonho americano * é* às custas do negro americano. 

A questão está terrivelmente carregada, e então a resposta de alguém a essa questão – a reação de alguém a essa questão – tem que depender do efeito e, com efeito, de onde você se encontra no mundo, qual é o seu senso de realidade, qual é o seu sistema de realidade é. Isto é, depende de suposições que sustentamos tão profundamente que mal temos consciência delas.

Sejam brancos sul-africanos ou meeiros do Mississippi, ou xerifes do Mississippi, ou um francês expulso da Argélia, todos têm, no fundo, um sistema de realidade que os obriga a, por exemplo, no caso do exílio francês da Argélia, ofender razões francesas para ter governado a Argélia. 

O xerife do Mississippi ou do Alabama, que realmente acredita, quando se depara com um menino ou uma menina negra, que essa mulher, esse homem, essa criança devem ser loucos para atacar o sistema ao qual ele deve toda a sua identidade. Claro, para tal pessoa, a proposição que estamos tentando discutir aqui esta noite não existe. 

E, por outro lado, devo falar como uma das pessoas mais atacadas pelo que agora devemos chamar de sistema de realidade ocidental ou europeu. Que pessoas brancas no mundo, o que chamamos de supremacia branca – odeio dizer isso aqui – vem da Europa. Foi assim que chegou à América. Abaixo, então, qualquer que seja a reação de alguém a esta proposição, tem que ser a questão de se as civilizações podem ou não ser consideradas, como tais, iguais, ou se a civilização de alguém tem o direito de dominar e subjugar, e, de fato, de destruir outra. 

John F. Kennedy e sua esposa Jackie desfilando na Broadway em carro aberto em Nova York. Quando foi Presidente dos Estados Unidos e até a sua morte em 1963, John Kennedy desejava que a pauta dos direitos civis e do direito ao voto livre se tornasse realidade.

Agora, o que acontece quando isso acontece. Deixando de lado todos os fatos físicos que se podem citar. Deixando de lado estupro ou assassinato. Deixando de lado o catálogo sangrento da opressão, com o qual de certa forma já estamos familiarizados, o que isso faz ao subjugado, o mais privado, a coisa mais séria que isso faz ao subjugado, é destruir seu senso de realidade. Isso destrói, por exemplo, a autoridade de seu pai sobre ele. Seu pai não pode mais dizer nada a ele, porque o passado desapareceu, e seu pai não tem poder no mundo. Isso significa, no caso de um negro americano, nascido naquela república resplandecente, e no momento em que você nasce, já que não conhece nada melhor, todo pau e pedra e todo rosto são brancos.

E como você ainda não viu um espelho, supõe que também o é. É um grande choque, por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você jurou fidelidade, junto com todas as outras pessoas, não jurou fidelidade a você. É um grande choque descobrir que Gary Cooper matou os índios, quando você estava torcendo por Gary Cooper, que os índios eram você. É um grande choque descobrir que o país que é o seu lugar de nascimento e ao qual você deve sua vida e sua identidade, não evoluiu, em todo o seu sistema de realidade, nenhum lugar para você. 

O descontentamento, a desmoralização e a distância entre uma pessoa e outra apenas com base na cor de sua pele, começa aí e acelera – acelera ao longo de uma vida inteira – até o presente quando você percebe que tem trinta anos e está passando por maus bocados para confiar em seus conterrâneos. Quando você tem trinta anos, já passou por um certo tipo de moinho. E o efeito mais sério do moinho pelo qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os policiais, os motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o que significa que você é um ser humano sem valor. Não é isso. 

É nessa época que você começa a ver isso acontecendo, em sua filha ou em seu filho, ou em sua sobrinha ou sobrinho. E o efeito mais sério do moinho pelo qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os policiais, os motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o que significa que você é um ser humano sem valor. 

Você já tem trinta anos e nada do que fez ajudou a escapar da armadilha. Mas o que é pior do que isso, é que nada do que você fez e, pelo que você pode dizer, nada do que você pode fazer, salvará seu filho ou sua filha de enfrentar o mesmo desastre e não impossivelmente chegar ao mesmo fim. 

Agora, estamos falando sobre despesas. Suponho que haja várias maneiras de nos dirigirmos a alguma tentativa de descobrir o que essa palavra significa aqui. Deixe-me colocar desta forma, que de um ponto de vista muito literal, os portos e os portos e as ferrovias do país – a economia, especialmente dos estados do Sul – não poderiam ser o que se tornou, se tivessem não teve, e ainda não tem, na verdade por muito tempo, por muitas gerações, mão de obra barata. Estou afirmando muito a sério, e isso não é um exagero: * Eu* colhi o algodão, * eu * levei-o para o mercado e * eu * construí as ferrovias sob o chicote de outra pessoa por nada. Por nada.

A oligarquia do Sul, que ainda hoje tem tanto poder em Washington, e, portanto, algum poder no mundo, foi criada pelo meu trabalho e meu suor, e pela violação de minhas mulheres e o assassinato de meus filhos. Isso, na terra dos livres e na casa dos bravos. E ninguém pode contestar essa afirmação. É uma questão de registro histórico.

De outra forma, esse sonho, e vamos chegar ao sonho em um momento, está às custas do negro americano. Você assistiu a isso no Deep South[3] com grande alívio. Mas não apenas no Deep South. No Deep South, você está lidando com um xerife ou um senhorio, ou uma senhoria ou uma garota do balcão da Western Union, e ela não sabe exatamente com quem está lidando, com isso quero dizer, se você não uma parte da cidade, e se você é um negro do norte, isso se mostra de milhões de maneiras. Então ela simplesmente sabe que é uma quantidade desconhecida, e ela não quer ter nada a ver com isso porque ela não quer falar com você, você tem que esperar um pouco para receber o seu telegrama. OK, todos nós sabemos disso. Todos nós já passamos por isso e, quando você se torna um homem, é muito fácil de lidar. Mas o que está acontecendo com a pobre mulher, a mente do pobre é o seguinte:

Bem, sugiro que, de todas as coisas terríveis que podem acontecer a um ser humano, essa é uma das piores. Eu sugiro que o que aconteceu com os sulistas brancos é, de certa forma, afinal, muito pior do que o que aconteceu com os negros lá porque o xerife Clark em Selma, Alabama, não pode ser considerado – você sabe, ninguém pode ser considerado um monstro total[4]. Tenho certeza que ele ama sua esposa, seus filhos. Tenho certeza, você sabe, ele gosta de ficar bêbado. Afinal, é preciso presumir que ele é visivelmente um homem como eu. 

Xerife Jim Clark – Fonte – Wikipédia.

Mas ele não sabe o que o leva a usar o porrete, a ameaçar com a arma e a usar o aguilhão. Algo terrível deve ter acontecido a um ser humano para poder colocar um aguilhão no peito de uma mulher, por exemplo. O que acontece com a mulher é horrível. O que acontece ao homem que o faz é, de certa forma, muito pior. Afinal, isso está sendo feito não há cem anos, mas em 1965, em um país que é abençoado com o que chamamos de prosperidade, uma palavra que não examinaremos muito de perto; com um certo tipo de coerência social, que se autodenomina uma nação civilizada e que defende a noção da liberdade do mundo. E é perfeitamente verdade do ponto de vista agora simplesmente de um negro americano. 

Qualquer negro americano que assista a isso, não importa onde esteja, do ponto de vista do Harlem, que é outro lugar terrível, tem que dizer a si mesmo, apesar do que o governo diz – o governo diz que não podemos fazer nada a respeito – mas se aquelas pessoas fossem brancas sendo assassinadas nas fazendas de trabalho do Mississippi, sendo levadas para a prisão, se aquelas fossem crianças brancas correndo para cima e para baixo nas ruas, o governo encontraria alguma maneira de fazer algo a respeito. 

Temos um projeto de lei de direitos civis agora em que uma emenda, a décima quinta emenda, quase cem anos atrás – odeio soar novamente como um profeta do Velho Testamento – mas se a emenda não fosse honrada então, eu teria qualquer razão para acreditar no projeto de lei de direitos civis será honrado agora. E depois de todos estarem lá, desde antes, sabe, muitas outras pessoas chegaram lá. Se é preciso provar o título de propriedade da terra, quatrocentos anos não bastam? Quatrocentos anos? Pelo menos três guerras? O solo americano está cheio de cadáveres de meus ancestrais. Por que é minha liberdade ou minha cidadania, ou meu direito de viver lá, como isso é concebivelmente uma questão agora? E eu sugiro ainda, e da mesma forma, a vida moral dos xerifes do Alabama e das pobres senhoras do Alabama – senhoras brancas – suas vidas morais foram destruídas pela praga chamada cor.

Correndo o risco de soar excessivo, o que sempre senti, quando finalmente deixei o país, e me encontrei no exterior, em outros lugares, e observei os americanos no exterior – e esses são meus compatriotas – e me preocupo com eles, e até mesmo se eu não fiz, há algo entre nós. Temos a mesma abreviatura, eu sei, se eu olhar para um menino ou uma menina do Tennessee, de onde eles vieram no Tennessee e o que isso significa. 

Nenhum inglês sabe disso. Nenhum francês, ninguém no mundo sabe disso, exceto outro homem negro que vem do mesmo lugar. Observamos essas pessoas solitárias negando o único parente que possuem. Falamos sobre integração na América como se fosse um grande enigma novo. 

O problema na América é que estamos integrados há muito tempo. Coloque-me ao lado de qualquer africano e você verá o que quero dizer. Minha avó não era uma estupradora. O que não enfrentamos é o resultado do que fizemos. O que se leva o povo americano a fazer por todos nós é simplesmente aceitar nossa história. Eu estava lá não apenas como escrava, mas também como concubina. Afinal, conhece-se o poder que pode ser usado contra outra pessoa se você tiver poder absoluto sobre essa pessoa.

Ao observar os americanos na Europa, pareceu-me que o que eles não sabiam sobre os europeus era o que não sabiam sobre mim. Eles não estavam tentando, por exemplo, ser desagradáveis ​​com a garota francesa ou rudes com o garçom francês. Eles não sabiam que feriam seus sentimentos. Eles não tinham nenhum senso de que essa mulher em particular, este homem em particular, embora falassem outra língua e tivessem maneiras e maneiras diferentes, era um ser humano. 

E eles andaram por cima deles, o mesmo tipo de ignorância branda, condescendência, charme e alegria com que sempre me deram tapinhas na cabeça e me chamaram de Shine e ficavam chateados quando eu ficava chateado. O que é relevante nisso é que enquanto há quarenta anos, quando nasci, a questão de ter que lidar com o que não é dito pelo subjugado, o que nunca é dito ao mestre, de ter que lidar com essa realidade era uma possibilidade muito remota. Não estava na mente de ninguém. 

Quando eu era criança, aprendi nos livros de história americanos que a África não tinha história, nem eu. Que eu era um selvagem de quem quanto menos falava melhor, que fora salvo pela Europa e trazido para a América. E, claro, eu acreditei. Eu não tive muita escolha. Esses eram os únicos livros que existiam. Todos os outros pareciam concordar.

Se você sair do Harlem, sair do Harlem, no centro da cidade, o mundo concorda que o que você vê é muito maior, mais limpo, mais branco, mais rico e mais seguro do que onde você está. Eles recolhem o lixo. Obviamente, as pessoas podem pagar seu seguro de vida. Seus filhos parecem felizes e seguros. Você não é. E você volta para casa, e parece que, é claro, que é um ato de Deus que isso seja verdade! Que você pertence ao lugar onde os brancos o colocaram.

Somente a partir da Segunda Guerra Mundial que existe uma contra imagem no mundo. E essa imagem não surgiu por meio de qualquer legislação ou parte de qualquer governo americano, mas pelo fato de que a África de repente estava no palco do mundo, e os africanos tinham que ser tratados de uma forma que nunca haviam sido tratados antes. Isso deu a um negro americano, pela primeira vez, uma sensação de si mesmo além do selvagem ou do palhaço. Ele criou e criará muitos enigmas. 

Uma das grandes coisas que o mundo branco não sabe, mas acho que sei, é que os negros são como todo mundo. Utilizou-se o mito do negro e o mito da cor para fingir e supor que se tratava, essencialmente, de algo exótico, bizarro e praticamente, segundo as leis humanas, desconhecido. Infelizmente, isso não é verdade. Também somos mercenários, ditadores, assassinos, mentirosos. Nós também somos humanos.

O que é crucial aqui é que, a menos que consigamos aceitar, estabelecer algum tipo de diálogo entre aquelas pessoas que eu finjo que pagaram pelo sonho americano e aquelas outras pessoas que não o realizaram, estaremos em apuros terríveis. 

Quero dizer, enfim, o último, é isso que mais me preocupa. Estamos sentados nesta sala, e todos nós somos, pelo menos eu gostaria de pensar que somos relativamente civilizados, e podemos conversar uns com os outros. Pelo menos em certos níveis para que possamos sair daqui presumindo que a medida de nossa iluminação, ou pelo menos, nossa polidez, tem algum efeito no mundo. Pode não ser.

Foto da visita de Bobby Kennedy a Natal, junto a com a sua esposa Ethel, em 1965.

Lembro-me, por exemplo, quando o ex-procurador-geral, senhor Robert Kennedy, disse que era concebível que em quarenta anos, na América, pudéssemos ter um presidente negro. Isso soou como uma declaração muito emancipada, suponho, para os brancos. Eles não estavam no Harlem quando essa declaração foi ouvida pela primeira vez. E eles não estão aqui, e possivelmente nunca ouvirão as risadas e a amargura e o desprezo com que esta declaração foi saudada. 

Do ponto de vista do homem da barbearia do Harlem, Bobby Kennedy[5] só chegou aqui ontem e já está a caminho da presidência. Estamos aqui há quatrocentos anos e agora ele nos diz que talvez daqui a quarenta anos, se você for bom, podemos deixá-lo se tornar presidente.

O que é perigoso aqui é se afastar de – se afastar de – qualquer coisa que qualquer americano branco diga. O motivo da hesitação política, apesar do deslizamento de terra de Johnson, é que um foi traído por políticos americanos por muito tempo. E eu sou um homem adulto e talvez eu possa argumentar com isso. Eu certamente espero que possa ser. 

Martin Luther King em Washington – Fonte – Wikipédia.

Mas eu não sei, e nem Martin Luther King[6], nenhum de nós sabe como lidar com aquelas outras pessoas que o mundo branco ignorou por tanto tempo, que não acreditam em nada que o mundo branco diz e não acreditam inteiramente qualquer coisa que eu ou Martin estivermos dizendo. E não se pode culpá-los. Você observa o que aconteceu com eles em menos de vinte anos.

Parece-me que a cidade de Nova York, por exemplo – este é o meu último ponto – há muito tempo tem negros nela. Se a cidade de Nova York foi capaz, como de fato tem sido capaz, nos últimos quinze anos de se reconstruir, demolir prédios e levantar outros novos, no centro da cidade e por dinheiro, e não fez nada exceto construir conjuntos habitacionais no gueto para os negros. E, claro, os negros odeiam. 

Atualmente, a propriedade realmente se deteriora porque as crianças não podem suportá-la. Eles querem sair do gueto. Se as pretensões americanas estivessem baseadas em uma avaliação mais sólida e honesta da vida e de si mesmos, não significaria para os negros quando alguém disser “renovação urbana” que os negros podem simplesmente ser jogados na rua. Isso é exatamente o que significa agora. Este não é um ato de Deus. 

Estamos lidando com uma sociedade feita e governada por homens. Se o negro americano não estivesse presente na América, estou convencido de que a história do movimento operário americano seria muito mais edificante do que é. É uma coisa terrível para um povo inteiro se render à noção de que um nono de sua população está abaixo deles. 

E até aquele momento, até que chegue o momento em que nós, os americanos, nós, o povo americano, possamos aceitar o fato, que eu tenho que aceitar, por exemplo, que meus ancestrais são brancos e negros. Que naquele continente estamos tentando forjar uma nova identidade para a qual precisamos uns dos outros e que não estou sob a tutela da América. 

Não sou objeto de caridade missionária. Eu sou uma das pessoas que construiu o país – até o momento, quase não há esperança para o sonho americano, porque as pessoas a quem é negada a participação nele, por sua própria presença, irão destruí-lo. E se isso acontecer, é um momento muito grave para o Ocidente.

Obrigado.

NOTAS

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[1] Escritor e dramaturgo, é considerado um dos maiores escritores nascido nos Estados Unidos no século XX, Baldwin abriu novos caminhos literários com a exploração de questões raciais e sociais em suas muitas obras. Ele era especialmente conhecido por seus ensaios sobre a experiência negra na América.

[2] Escritor, intelectual e comentarista político americano. Fundou a revista National Review em 1955, tendo grande impacto no estímulo ao pensamento conservador nos Estados Unidos. Ele apresentou 1.429 edições do programa de televisão “Firing Line” entre 1966 e 1999, onde ficou conhecido por seu sotaque distinto e amplo vocabulário. Ele escreveu colunas para vários jornais e vários romances de espionagem. Seu estilo de escrita era conhecido pela eloquência e sagacidade.

[3] O Deep South é uma sub-região cultural e geográfica no sul dos Estados Unidos. O termo foi usado pela primeira vez para descrever os estados daquele país mais dependentes de plantações e escravidão durante o período inicial da história dos Estados Unidos. A região sofreu dificuldades econômicas após a Guerra Civil Americana e foi (e ainda é) um importante local de tensão racial. O Movimento dos Direitos Civis nas décadas de 1950 e 1960 ajudou a inaugurar uma nova era, às vezes chamada de Novo Sul.

[4] Baldwin se refere ao xerife Jim Clark, da cidade de Selma, Alabama, que entre 7 e 25 de março de 1965 usou de extrema violência contra os participantes de três marchas pacíficas, organizadas pelos manifestantes pelos direitos civis, na Estrada 54, que liga a cidade de Selma a Montgomery, capital do Alabama. Após as cenas das ações por ele comandada terem sido divulgadas em cadeia nacional de TV, Lyndon B. Johnson, o então presidente dos Estados Unidos, emitiu uma declaração imediata “deplorando a brutalidade com que vários cidadãos negros do Alabama foram tratados”.

[5] Robert Francis Kennedy, apelidado de Bobby e também RFK, foi procurador-geral dos Estados Unidos de 1961 até 1964 tendo sido um dos primeiros a combater a Máfia, e Senador por Nova Iorque de 1965 até seu assassinato em junho de 1968. Ele foi um dos dois irmãos mais novos do presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy.

[6] Martin Luther King Jr. foi um pastor batista e ativista político estadunidense que se tornou a figura mais proeminente e líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos de 1955 até seu assassinato em 1968.

ALIADOS? – A ESPIONAGEM BRITÂNICA NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Sabemos que durante a Segunda Guerra Mundial inúmeros navios brasileiros foram afundados por submarinos e essas ações bélicas levaram o Brasil a declarar formalmente o Estado de Guerra contra a Alemanha Nazista e a Itália Fascista no dia 22 de agosto de 1942.

Com isso o Brasil tornou-se um dos países que lutaram ao lado dos Aliados e em nosso território forças militares norte-americanas construíram estratégicas bases aéreas e navais que ajudaram na defesa do nosso território, na ação contra os submarinos nazifascistas, bem como no transporte aéreo para as áreas de combate na África, Ásia e Europa.

Igualmente sabemos que antes mesmo dessa declaração de guerra o Brasil foi alvo de espiões dos países do Eixo, que atuaram com o apoio de colaboradores brasileiros, a maioria deles antigos participantes da Ação Integralista Brasileira (AIB). Esse foi um movimento político de extrema-direita surgido em nosso país em 1932, cujos integrantes eram jocosamente chamados de “Galinhas Verdes”, por utilizarem uniformes nesse padrão de cor.

Ao longo do conflito mundial as autoridades brasileiras, apoiados por americanos, prenderam vários espiões estrangeiros e seus colaboradores tupiniquins. Muitos deles foram julgados e condenados, alguns até mesmo a pena de morte, mas nunca foram executados.

Instrumentos de trabalho de um espião na Segunda Guerra.

A história sobre a espionagem nazifascista no Brasil durante a Segunda Guerra é bem conhecida e propalada. Mas são poucas as informações sobre a atuação de espiões dos países Aliados agindo em território brasileiro.

Mas ela existiu!

Um dos casos mais conhecidos é uma ação orquestrada pelos britânicos, que criaram uma carta idêntica à de uma empresa aérea italiana, em cujo conteúdo o presidente Getúlio Vargas era chamado de “Gordinho” e os brasileiros de “macacos”. A carta foi tão séria que acabou com uma importante brecha no esquema de segurança dos Aliados na América do Sul. Isso tudo logo após uma séria crise diplomática entre brasileiros e britânicos.

Comecemos por essa crise!

O Caso do Navio Siqueira Campos

Logo após o início das hostilidades, a Grã-Bretanha e sua marinha, a maior e mais poderosa do mundo naquela época, iniciou um bloqueio naval à Alemanha e a Itália, buscando cortar os suprimentos militares e civis vitais a essas nações.

Ocorre que em 1938 o Governo do Brasil assinou um acordo de oito milhões de libras esterlinas com a fábrica de armamentos alemã Friedrich Krupp AG, cuja finalização dos artefatos só ocorreu no segundo semestre de 1940, após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1 de setembro de 1939.

O navio Siqueira Campos – Fonte – 1.bp.blogspot.com

Quando o material bélico ficou pronto, os alemães despacharam tudo até Lisboa em trens, onde os caixotes seriam embarcados no navio de cargas e passageiros Siqueira Campos, da empresa de navegação Lloyd Brasileiro. Em 19 de novembro daquele ano esse navio estava pronto para partir rumo ao Rio de Janeiro, com o lote de armas acondicionadas no seu porão.

Após o Siqueira Campos içar âncora, deixar Lisboa para trás e alcançar águas internacionais, navios de guerra da Marinha Britânica surgiram no horizonte e ordenaram a parada do navio brasileiro. Este foi abordado por oficiais e marinheiros impecavelmente uniformizados com bermudas e meiões brancos.

Destroier britânico na época da Segunda Guerra.

Na sequência a tripulação do Siqueira Campos foi obrigada a seguir com seu navio para a colônia britânica de Gibraltar, aonde chegou em 22 de novembro de 1940, ancorando próximo ao porto e tendo a bordo 145 tripulantes e 250 passageiros. Esse pessoal não pode desembarcar e só partiram quando a crise se encerrou, quando a situação a bordo era alarmante.

No Brasil, o gaúcho Oswaldo Euclides de Souza Aranha, então Ministro das Relações Exteriores, recebeu a notícia e comunicou o fato ao presidente Vargas. Na sequência Aranha manteve contato com Geoffrey George Knox, Embaixador Britânico no Brasil, que estava de mãos atadas esperando instruções do seu governo. Depois Oswaldo Aranha correu em busca do auxílio da diplomacia dos Estados Unidos para ajudar a resolver o imbróglio. Os americanos logo se deram conta que a atitude britânica em relação ao Siqueira Campos poderia comprometer toda sua “Política de Boa Vizinhança” com o Brasil e os países latino-americanos.

Enquanto a diplomacia buscava uma solução, a notícia da apreensão do Siqueira Campos em Gibraltar deixou os brasileiros furiosos com o Governo Britânico. Em relação a esse caso muitos brasileiros tinham a percepção que a Grã-Bretanha agia com uma clara atitude imperialista. Nas ruas do Rio comentavam que os britânicos tomariam as armas do navio, compradas e pagas aos alemães ainda em 1938, para utilizá-las contra seus fabricantes e não receberíamos nada em troca.

O Embaixador Britânico no Brasil Geoffrey George Knox cumprimenta com um aperto de mão “diplomático” o Presidente Getúlio Vargas, diante do olhar atento do Ministro Oswaldo Aranha – Fonte Agência Nacional.

Em meio a todo esse rolo do Siqueira Campos, quem ria abertamente da truculenta bobagem britânica eram os alemães e seus colaboradores. Enquanto a influência da Alemanha crescia positivamente em nosso belo país tropical, os alemães mostravam aos brasileiros o tipo de “Aliado” complicado que os britânicos podiam ser.

Finalmente os dois países chegaram a um acordo para liberar o Siqueira Campos, que partiu para o Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1940. Mas essa crise diplomática, uma das mais sérias entre brasileiros e britânicos no Século XX, marcou negativamente a visão do governo Vargas e do povo brasileiro em relação aquele país.

Perigo Real

Avião da LATI com suas cores e marcações características – Fonte http://www.spmodelismo.com.br

Em 1941 os britânicos mantinham em Nova Iorque uma agência de informações, cuja finalidade era proporcionar estreita ligação com os serviços de informações norte-americanos em seu próprio país, facilitando as manobras dos dois grandes aliados na guerra contra o Eixo. O Chefe dessa Agência era o cidadão inglês William Samuel Stephenson, cujo codinome era “Intrépido”.

Nessa época aeronaves da companhia aérea italiana LATI (Linee Aeree Transcontinentali Italiane) realizavam voos regulares entre o Brasil e a Europa, onde transportavam importantes figuras nacionais e estrangeiras, além de correios especiais dos diplomatas alemães e italianos, que não podiam ser violados. Vale ressaltar que muitos desses diplomatas eram na verdade espiões nazifascistas disfarçados. Nesses voos seguiram para a Europa diamantes, platina, mica, substâncias químicas, livros e filmes de propaganda dos Aliados. Um verdadeiro “buraco” no bloqueio militar e econômico efetuado pelos ingleses contra a Alemanha e a Itália.

Um submarino nazista em mar agitado. Esse foi o verdadeiro flagelo do Brasil na Segunda Guerra.

Stanley E. Hilton, em seu livro Hitler’s Secret War In South America, 1939-1945: German Military Espionage and Allied Counterespionage in Brazil informou que membros da embaixada americana no Brasil transmitiram aos britânicos que durante as travessias no Oceano Atlântico, os pilotos da LATI estavam visualizando navios britânicos, marcando suas posições em mapas e informando os alemães para enviar seus submarinos e afundá-los (pág. 205).

Hilton também comentou sobre uma carta de Jefferson Caffery, Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, de 29 de novembro de 1941, endereçada ao Ministro Oswaldo Aranha e atualmente guardada no Arquivo Histórico do Itamaraty. Nela Caffery informou que provavelmente foram os tripulantes da companhia aérea italiana, os responsáveis ​​por transmitirem informações que levaram ao afundamento de navios britânicos perto das Ilhas de Cabo Verde, nessa época uma colônia portuguesa. (pág. 207).

Cruzando essa informação com dados sobre a movimentação e ação de submarinos alemães e de aviões da LATI nesse período, descobri na página 5, da edição de 10/10/1941 do Diário de Pernambuco, que no dia 9 de outubro havia partido de Roma o aparelho da LATI modelo Savoia-Marchetti SM.82, número de fabricação MM.60326 e matrícula I-BENI. Essa aeronave trimotor fez escalas em Sevilha (Espanha), Villa Cisneiros (atual Dakhla, na região do Saara Ocidental) e Ilha do Sal (Cabo Verde), onde pernoitou. No outro dia, 10 de outubro, decolou para atravessar o Atlântico Sul, tendo pousado por volta das 15h20min da tarde em Recife, no Campo do Ibura. Estranhamente essa aeronave trouxe um único passageiro que vinha de Berlim – o jornalista chileno Ernesto Samhaber.   

O cargueiro britânico SS Nailsea Manor – Fonte – http://www.sixtant.net

Ocorre que nesse mesmo dia pela manhã, na posição 18° 45’ N e 21° 18” W, a cerca de 180 milhas náuticas a nordeste das Ilhas de Cabo Verde, o cargueiro britânico SS Nailsea Manor foi torpedeado pelo submarino alemão U-126, comandado pelo capitão-tenente (Kapitänleutnant) Ernest Bauer. Esse navio transportava uma preciosa carga de 6.000 toneladas de armas, munições e no seu convés estava até um LCT, ou Landing Craft Tank, um barco de desembarque de veículos blindados. Devido uma tempestade o Nailsea Manor estava desgarrado de um comboio e seguia acompanhado de dois outros navios de carga. Esse pequeno grupo estava sendo escoltado pela corveta HMS Violet (K-35), comandada pelo Tenente Frank Clarin Reynolds, que não pode fazer nada em relação ao torpedeamento. O capitão John Herbert Hewitt, comandante do Nailsea Manor, conseguiu retirar do barco toda a sua tripulação de 41 pessoas, que foram recolhidos pelo pessoal do Violet (Ver http://www.sixtant.net/2011/index.php).

O kapitänleutnant Ernest Bauer na torre do submarino U-126 – Foto de Ariane Krause, através de http://www.uboat.net

Apesar da carta do Embaixador Caffery comentar com o Ministro Oswaldo Aranha sobre o torpedeamento de “navios britânicos” perto das Ilhas de Cabo Verde, não encontrei outra informação sobre ataques de submarinos nazistas nessa área entre outubro e novembro de 1941. Acredito que o torpedeamento do cargueiro britânico SS Nailsea Manor, é o caso comentado por Caffery a Aranha.

O Savoia-Marchetti SM.82, I-BENI, realizou durante sua operação no Brasil um total de 25 travessias transatlânticas e foi o avião da LATI que mais percorreu o trajeto entre a Itália e o Brasil.

Espiões Britânicos em Ação no Brasil, Antes de 007

Mas é que os britânicos, depois do verdadeiro banzé que foi o caso do Siqueira Campos, poderiam convencer o governo brasileiro a barrar essa brecha no seu bloqueio aos países do Eixo?

Avião da LATI aterrissando no Campo de Parnamirim, Natal, Rio Grande do Norte, em 1940. No solo estão trabalhadores potiguares realizado os serviços bancados pelo governo americano para a construção da base de Parnamirim Field – Foto Hart Preston – LIFE.

Para piorar o meio de campo, consta que o governo brasileiro não desejava obstruir esse fluxo aéreo. Um dos genros do presidente Getúlio Vargas era um dos diretores técnicos dessa linha aérea e havia muitos brasileiros influentes interessados em preservar os direitos da LATI em nosso território. Além disso, era a Standard Oil, companhia de petróleo norte-americana, que abastecia os aviões da LATI com o combustível necessário para os voos intercontinentais. Detalhe – Uma das bases da LATI no Brasil era em Natal, no antigo Campo dos Franceses, que nessa época já começava a se transformar em uma grande base aérea construída pelos norte-americanos e seria conhecida como Parnamirim Field.

O Chefe das Operações Especiais em Londres estava ansioso para que algo drástico fosse realizado no sentido de eliminar esse grave inconveniente para os interesses britânicos, mas sem criar problemas com o Brasil e, por tabela, com os norte-americanos. Instruções foram remetidas a William Stephenson em Nova Iorque, informando sobre o fato, das consequências para o bloqueio inglês e ordenando que algo deveria ser feito para tapar a brecha inconveniente.

Stephenson e seus assessores conceberam então um plano que consistia em fazer chegar ao governo brasileiro uma carta comprometedora, cujo teor teria sido supostamente escrito por alguém importante, da alta administração da LATI na Itália, e endereçada a um diretor da companhia no Brasil. O texto da missiva deveria conter elementos tão graves, que pudessem resultar no cancelamento da concessão da companhia italiana para operar a rota transatlântica.

William Stephenson, o “Intrépido”

Os agentes de Stephenson no Brasil imediatamente puseram mãos à obra e, depois de algumas semanas, conseguiram obter uma carta genuína escrita pelo presidente da LATI, o General Aurélio Liotta, e remetida da sede central da companhia em Roma. Encaminharam-na para Nova Iorque sugerindo que a carta falsa deveria ser endereçada ao diretor geral da LATI no Brasil, o Comandante Vicenzo Coppola, que morava no Rio de Janeiro.

Os técnicos em Nova Iorque teriam que simular exatamente o tipo de papel empregado, o timbre existente e aforma dos caracteres da máquina de escrever usada pelo General Liotta.

Por sorte, foi conseguida uma pequena quantidade papel de polpa da palha do tipo necessário e que constituía um detalhe essencial na operação proposta. O relevo do timbre foi copiado com detalhes microscópicos, uma máquina de escrever foi especialmente reconstruída a fim de reproduzir as imperfeições mecânicas daquela usada pela secretária do General para datilografar a carta original e um falsificador copiou a assinatura de Liotta.

Uma verdadeira obra-prima da falsificação.

A Carta do “Gordinho”

A carta falsa foi então preparada em italiano, microfotografada e o microfilme remetido para o principal agente de Stephenson no Rio de Janeiro.

Traduzida, continha o seguinte teor:

Linne Aeree Transcontinentale Italiano S.A.

Roma, 30 de outubro de 1941.

Prezado Camarada:

Recebi seu relatório que chegou cinco dias depois de ter sido despachado.

Este relatório foi levado ao conhecimento dos interessados que o consideraram de suma importância. O comparamos com um outro recebido de Praça Del Prete. Os dois relatórios apresentaram o mesmo quadro da situação que ali existe, mas o seu é mais detalhado. Quero lhe dar os meus parabéns, O fato de que, obtivemos desta vez informações mais completas com o Sr. e seus homens, me proporciona grande satisfação.

Não resta dúvida que o “gordinho” está cedendo ante os lisonjeios dos Americanos, e que somente uma intervenção violenta por parte de nossos amigos verdes poderá salvar o país. Os nossos colaboradores de Berlim, depois de entendimentos que tiveram com o representante em Lisboa, decidiram que tal intervenção deverá se realizar o mais breve possível. Porém você está a par da situação. No dia em que se der a mudança, os nossos colaboradores não se interessarão de maneira alguma pelos nossos interesses e a Lufthansa colherá todas as vantagens.

Para evitar que isto aconteça, precisamos procurar amigos de influência dentre os “verdes” o mais cedo possível. Faça-o sem demora.

Avião da Lati no Rio de Janeiro – Fonte – LIFE.

Deixarei a seu critério a escolha das pessoas mais apropriadas: talvez Padilha ou E. P. de Andrade seriam de mais utilidade do que o Q.B. o qual, apesar de ativo, não vale muito.

A importância que você necessitar será posta a sua disposição, não importa o fato dos camisas verdes precisarem de somas consideráveis. Eles as terão. O ponto importante é que nosso serviço deverá tirar proveito de uma mudança de regime. Procure saber quem é que deseja nomear para Ministro da Aeronáutica e tente captar a sua simpatia. O Senhor precisará ficar a par do que suceder, porém já concordamos em que as negociações ficarão em mãos da LATI, que atuará na sua capacidade de empresa brasileira procurando a extensão a melhoramento de seus próprios serviços.

Espero a máxima discrição de sua parte. Como disse no seu relatório a respeito da Standard Oil, os ingleses e americanos se interessam em tudo e em todos. E se for também verdade – como você afirma com justiça que o Brasil é um país de macacos, não nos devemos esquecer que são macacos dispostos a servir a quem tem as rédeas na mão.

Saudações Fascistas

(a) General P. Liotta

Comandante

Vicenzo COPPOLA

Linee Aeree Transcontinentale Italiana S.A.

RIO DE JANEIRO (BRASIL)

Coppola Preso e a LATI Impedida de Voar

O tal “gordinho”, ou “il grassoccio” em italiano, foi imediatamente identificado como sendo o Presidente Getúlio Vargas, e os “amigos verdes”, ou simplesmente “verdes”, eram os integralistas. Como vimos, a carta continha um insulto pessoal ao Presidente da República, abuso de hospitalidade, críticas à sua política externa e sugeria o encorajamento de seus inimigos políticos. Os agentes secretos ingleses esperavam que essa combinação de apreciações negativas fizesse com que o Presidente Vargas reagisse vigorosamente. Imediatamente após ter recebido o microfilme da carta, o agente de Stephenson no Rio de Janeiro providenciou para que fosse executado um “roubo” à casa do Comandante Coppola, situada na Avenida Vieira Souto, 442, Ipanema, no qual um relógio de cabeceira e outros artigos foram roubados. Atualmente nesse endereço se encontra o Condomínio Ker Franer.

Coppola então chamou a polícia e o “caso” teve alguma publicidade – exatamente o que esperava o agente britânico no Rio – pois tornava patente para as autoridades brasileiras e o público em geral, que se tratava de um roubo real.

Ficha de imigração de Vicenzo Coppola – Fonte – Arquivo Nacional.

Em seguida um brasileiro ligado ao agente secreto inglês procurou um repórter da agência noticiosa americana “Associated Press”. Após obter do mesmo a promessa de que guardaria segredo absoluto, confessou ter tomado parte no assalto à casa de Coppola e entre os seus pertences encontrara um documento microfotografado, que parecia ser muito interessante. Quando o repórter leu seu conteúdo percebeu que era uma carta do presidente da LATI e chegou à conclusão que o original havia sido considerado muito perigoso para ser remetido pelo correio aéreo normal. Concluiu também que aquela missiva tinha sido enviada de forma clandestina para evitar uma possível interceptação. Com aquele tesouro nas mãos, o repórter dirigiu-se à Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, e mostrou-a ao Embaixador Jefferson Caffery. Este diplomata determinou que fossem feitas investigações para ampliação e constatação de sua possível veracidade.

Ao receber o resultado dessas investigações, Caffery concluiu que a carta microfotografada era verdadeira e imediatamente enviou para o Presidente Vargas o microfilme e os resultados obtidos com as investigações em meados de novembro. Para Caffery o Presidente do Brasil pareceu “muito impressionado” com a missiva em italiano e reagiu exatamente como Stephenson esperava. Cancelou imediatamente todos os direitos da LATI no território nacional e ordenou a prisão do seu diretor geral.

Notícia sobre Coppola na época de sua fuga para a Argentina.

Vicenzo Coppola tentou fugir do país, tendo previamente retirado um milhão de dólares de um banco, mas foi preso quando procurou cruzar a fronteira com a Argentina. Mais tarde foi sentenciado a sete anos de prisão e teve seus bens confiscados. Foi posto em liberdade no dia 14 de agosto de 1944, em consequência de um habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Faleceu no Rio de Janeiro, em 27 de maio de 1963.

Por infração às leis brasileiras a empresa aérea LATI foi multada em CrS 85.000,00 (oitenta e cinco mil cruzeiros), além de ter seus aviões, campos de pouso e equipamentos de manutenção confiscados pelas autoridades, enquanto suas tripulações e o pessoal de origem italiana foram internados.

Para os integrantes da representação diplomática dos Estados Unidos no Brasil, a opinião dominante na época foi que a carta do General Liotta havia sido o principal fator que levara o Presidente Vargas a se voltar contra o inimigo.

Espião preso por militares americanos.

Consta que os norte-americanos generosamente decidiram repartir o segredo com o representante do serviço de inteligência na Embaixada Britânica no Rio. Um membro do corpo diplomático americano reproduziu a carta e o agente de Stephenson fingiu mostrar grande interesse e admiração pelo fato e até cumprimentou efusivamente seu colega por esse trabalho.

Conclusão

Nesse tipo de negócio, o bem mais valioso que existe e que todos buscam avidamente são as informações estratégicas vindas de fontes privilegiadas, com conteúdos valiosos, principalmente ligados a assuntos de defesa de uma nação.

Esse tipo de informação é tão importante quanto o poderio bélico, sendo algo que pode definir conflitos entre países e esse tipo de atividade sempre esteve presente em praticamente todos os períodos da historia.

Henry John Temple, o 3º Visconde de Palmerston, mentor da política externa britânica durante grande parte do século XIX, declarou no Parlamento Britânico “Não temos aliados eternos e não temos inimigos perpétuos. Nossos interesses são eternos e perpétuos, e é nosso dever seguir esses interesses”.

Não é novidade que nações amigas realizam espionagem entre si, o chamado “conhecimento comum”. Muitas vezes essas ações se realizam focados na ideia, bem real, que “um amigo de hoje, pode não ser um amigo amanhã”. Além disso, como bem apontou Palmerston, nações não possuem amigos, apenas interesses.