1932 – COMO FOI O ATAQUE DOS “CANGACEIROS-OPORTUNISTAS” NO SÍTIO VACA BRAVA DE BAIXO, EM ACARI, RIO GRANDE DO NORTE

1932 – COMO FOI O ATAQUE DOS “CANGACEIROS OPORTUNISTAS” NO SÍTIO VACA BRAVA DE BAIXO, EM ACARI, RIO GRANDE DO NORTE

Um Caso Desconhecido de Violência Rural no Seridó Potiguar, Onde Encontramos Um Típico Caso de “Cangaço-Oportunismo” no Rio Grande do Norte.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros  

Em um sábado, dia 19 de julho de 2008, junto com o amigo Solon Rodrigues Almeida Neto e sua esposa Raquel Bezerra Mosca, visitamos a região do sítio Vaca Brava de Baixo, zona rural do município de Acari, no Seridó Potiguar. Um lugar que fica a cerca de 12 quilômetros a sudoeste da cidade de São Vicente e a 30 a sudeste da sede do município de Florânia. O objetivo foi pesquisar sobre um pretenso ataque de cangaceiros ocorrido no ano de 1932.

A informação que ocasionou essa viagem surgiu ao folhearmos os antigos exemplares do jornal A República, o principal do Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX. Foi na edição de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, que soubemos os detalhes do caso, do qual comentaremos mais adiante.

Edição do jornal A República de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, foi que soubemos mais detalhes do caso.

Na zona rural de Acari tivemos a oportunidade de encontrar pessoas que tinham um bom conhecimento sobre aquele triste acontecimento. Conversamos com o Senhor João Bezerra dos Santos, então com 90 anos de idade e muito lúcido, bem como com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, que na época da entrevista tinham 79 e 64 anos de idade respectivamente. Já o Senhor João dos Santos, com quatorze anos na época dos eventos comentou que nunca esqueceu o medo que os ditos “cangaceiros” viessem a atacar a casa da sua família, que não era muito distante da casa invadida.

De maneira geral o que me contaram foi o seguinte….

Vida Difícil em 1932  

Era madrugada de quinta para a sexta feira de mais uma noite quente e sem nenhuma perspectiva de chuvas no horizonte. Na propriedade Vaca Brava de Baixo o dono Antônio Theóphilo de Carvalho Pinto continuava trabalhando arduamente com a sua família para sobreviver a mais um desastre climático que castigava a sua propriedade e toda a região.

Seca no Nordeste – Fonte – http://vereadorgilsondejesus.blogspot.com.br

Ele já havia ultrapassado os 70 anos, tinha visto várias secas, algumas bem pesadas e difíceis, como as de 1877 a 1879, que presenciou quando bem jovem. Ou a de 1915, que também alterou toda a economia local. O problema era que naquela madrugada de 30 de junho para 1 de julho de 1932 a sua idade e o cansaço natural de enfrentar tantos contratempos naquele sertão cobravam o seu preço.

Mas Antônio Theóphilo tinha ao seu lado os filhos Antônio e Diavolácio, além das filhas Theresa, Maria, Ernestina, Justina e Josefa. Também contava muito com o apoio da sua mulher Umbelina Ernestina da Silveira Torres, com quem vivia unido nos sacramentos da Santa Igreja desde o século anterior e que teve o prazer de registrar oficialmente no ano de 1902 a sua união na “Lei dos Homens”, perante o Doutor Juvenal Lamartine de Faria, então juiz de Acari, tendo como testemunha seu amigo Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa, da Fazenda Fortaleza[1].

Para Antônio Theóphilo era uma tristeza que a tal da “Rivulução de 30” tenha mandado o Dr. Juvenal, que foi um governador tão bom para o Rio Grande do Norte pra tão longe, exilado na Europa.

Em 23 de maio de 1932 o chamado Batalhão Esportivo desfilava pelas ruas da capital paulista.

E naquele mesmo ano, além da seca que a tudo consumia, lá para os lados de São Paulo o povo daquela terra combatia as forças do governo do Dr. Getúlio Vargas. Diziam que eles queriam se separar do Brasil, mas o que se falava na região da Vaca Brava de Baixo era que até do Rio Grande do Norte foi tropa para combater os paulistas.

Realmente a vida não estava nada fácil naquele 1932 e o que Antônio Theóphilo não sabia era que naquela madrugada tudo iria ficar pior!

O Ataque dos Homens Maus

Seu João dos Santos, homem de uma memória privilegiada na época de nossa entrevista, lembrou que o grupo de bandoleiros chegou na região na “boca da noite”, ou seja, cerca de seis horas da tarde. Aí eles se “amoitaram”, ficaram escondidos para praticar o ataque quando fosse noite fechada.

Senhor João Bezerra dos Santos, então com 90 anos de idade e muito lúcido na época.

Os entrevistados também comentaram que circulou a informação que esses bandidos vieram para a região com uma lista de três casas para serem assaltadas. Foram na primeira, de um cidadão conhecido como “Chico Dondon” ainda na tarde de 30 de junho, mas perceberam que o local se encontrava com várias pessoas e desistiram por medo de alguma reação armada.

Aparentemente foi só na madrugada que a casa do Sítio Vaca Brava de Baixo foi invadida por quatro homens armados, que diziam ser “cangaceiros” e logo começaram a praticar terríveis violências. Gritavam que queriam os 60 contos de réis que o velho Antônio Theóphilo tinha apurado em um negócio recente de terras e que o homem que se apresentava como chefe do bando sabia em detalhes.[2]

Para as pessoas que entrevistei esses bandidos não eram conhecidos na região, mas me comentaram através dos relatos das vítimas e de outras pessoas que eles repetiram várias vezes serem “cangaceiros”. Mas nem os entrevistados e nem o material sobre o crime existente nas páginas de A República informaram se esses homens tinham os materiais típicos que caracterizavam os grupos de cangaceiros errantes.

Casas da região da propriedade Vaca Brava.

Independentemente dessa questão os nossos entrevistados comentaram que as violências foram extremas. Theóphilo, Dona Umbelina, as filhas, Antônio e Diavolácio sofreram bastante. Nessa ocasião dormia na casa um irmão de Dona Umbelina, de nome João Pereira, que também sofreu várias sevícias.

Gritos, empurrões, murros, estocadas com punhais e chutes eram dados em profusão. Logo o que se colocava como chefe do bando passou a ameaçar o fazendeiro Antônio Theóphilo mais fortemente com um punhal. O acossado idoso afirmava repetidamente, mesmo diante das maldades praticadas contra seus familiares, que já não tinha mais o dinheiro em casa.

Mas isso só enfurecia mais e mais o bandoleiro de punhal na mão, que não parava de espicaçar e sangrar o velho. Diante das negativas de Theóphilo, que teimosamente resistia ao interrogatório “a ponta de punhal”, a paciência do “cangaceiro” foi chegando ao fim e logo o homem sucumbiu ao martírio que sofria.

Aquela cena aterrorizou Diavolácio, que de alguma maneira se desvencilhou dos invasores e conseguiu pegar um rifle que existia na casa. Um objeto que os bandoleiros não sabiam da existência e parece que nem se deram o trabalho de procurar.

Conversando em 2008 sobre o assalto da Vaca Brava com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, que na época da entrevista tinham 79 e 64 anos de idade

O que consta é que o jovem de arma na mão e carregado do mais puro ódio disparou contra o chefe do grupo, atingindo-o nas costelas, tendo o projétil varado seu corpo. Segundo Seu João me relatou em 2008, Diavolácio só não matou mais gente porque seu rifle de repetição, provavelmente um Winchester, “engasgou” no meio da balaceira.

Nessa hora de confusão outro atingido mortalmente foi João Pereira, o irmão de Dona Umbelina, que estava paralisado diante de toda aquela violência e acabou recebendo um tiro que lhe varou a cabeça. Consta que encontraram essa bala dentro da gaveta de uma cômoda.

Diavolácio correu então para uma parte anexa da casa, em uma espécie de depósito onde se guardava os frutos da produção agrícola e ali encontrou um facão. No meio da escuridão do ambiente gritou “– Posso até morrer, mas ainda mato outro”. Os bandidos compreenderam muito bem a ameaça daquele valente seridoense e debandaram. O ataque chegava ao fim!

Os entrevistados me narraram que após receber o balaço de Diávolácio o chefe do grupo seguiu se esvaindo em sangue e amparado por seus companheiros. Foi conduzido até um lajedo de pedras nas redondezas, onde foi ordenado que um dos bandidos ficasse guardando o cadáver enquanto os outros buscavam os animais para fugirem. Só que os bandidos começaram a demorar e o tal vigilante do morto deixou o corpo ali mesmo e tratou de desaparecer. No final das contas essa ação funcionou positivamente para ele, pois depois policiais vindos de Acari chegarem até o local, seguindo o rastro de sangue.

Os entrevistados recordaram também que após o assalto o valente Diavolácio pegou um búzio marinho e “buzou” para pedir ajuda aos vizinhos, que prontamente responderam. Essa antiga prática de alerta no sertão, hoje esquecida, acontecia porque certas espécies de búzios marinhos possuem a capacidade de produzir fortes sons, que serviam para comunicação a distância. Eles foram utilizados para esta prática em várias partes do mundo, por vários povos, através dos séculos. No sertão nordestino, de largas paragens, a utilização de búzios era uma forma de comunicação prática entre vaqueiros que tangiam gado no meio da caatinga. Vem daí o termo “buzar”, para tocar o instrumento.

Outra casa antiga da região da propriedade Vaca Brava.

Mas enfim, quem eram aqueles homens?

De onde vieram e para onde foram?

E eram mesmo cangaceiros?

E No Jornal…

Seu João recordou que no outro dia após o crime ele esteve na residência assaltada e viu os estragos. Também presenciou seus familiares irem para o enterro do dono da fazenda e do seu cunhado João Pereira.

Como disse anteriormente o Nordeste queimava com a seca e no sul do Brasil o povo de São Paulo sangrava em meio a Revolução Constitucionalista de 1932, o que gerava muitos problemas para as autoridades policiais potiguares, mas o caso da Vaca Brava de Baixo não poderia ficar sem algum tipo de resposta.

Nessa época o Chefe de Polícia do Rio Grande do Norte era João Café Filho, futuro Presidente da República e único potiguar a alcançar esse cargo. Ele então mandou a polícia proceder as investigações para capturar os assaltantes e assassinos e até designou um delegado especial para o caso. O escolhido foi o segundo tenente Agripino Antônio de Lima.

O Senhor Tomaz Maurício Silva.

E na edição do jornal A República de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, foi que soubemos mais detalhes do caso[3]. O curioso é que as respostas partiram de uma menina de quatorze anos de idade.

Dias antes da publicação, em 11 de agosto, a jovem Iracema Muniz de Medeiros, acompanhada do seu pai Manuel Muniz de Medeiros, ambos moradores da cidade de Flores, atual Florânia, no Seridó Potiguar, entraram na Cadeia Pública da cidade para ela prestar um depoimento ao tenente Agripino. Esse militar estava acompanhado do sargento Augusto Emílio Dantas e quem atuou como escrivão foi o cidadão João Praxedes de Medeiros.

O texto existente no jornal A República informa que Iracema era filha de uma família muito humilde, analfabeta e trabalhava como empregada doméstica na casa de um dos mais ricos e influentes homens de Florânia.

Contou que cerca de dois meses antes viu a filha do seu patrão, uma mulher casada e com 33 anos, confeccionando uma “máscara de pano preto”. Curiosa com aquilo, a jovem empregada perguntou para que servia aquele negócio e a resposta foi – “amedrontar meninos”. Iracema não ficou nem um pouco satisfeita com o que ouviu.

Fita cassete da gravação da entrevista realizada em 2008.

No mesmo dia, segundo seu depoimento, chegou na casa do seu rico patrão um indivíduo bem conhecido na comunidade, tido como “uma pessoa de bem”, que junto ao genro e a filha do seu chefe se trancaram em um quarto da casa. Para a realidade comportamental e da moral vigente naquela época, aquela atitude era muito estranha e só atiçou a curiosidade da garota.

Ela contou no depoimento que foi observar, “brechar” como se diz no dito popular, o que acontecia no quarto por uma janela. Viu a filha do seu patrão experimentando a tal máscara preta em seu marido, sob o olhar do dito “cidadão de bem”. Não demorou e um filho do seu patrão, rapaz jovem e bem disposto, também se juntou a reunião que acontecia no quarto. Iracema então viu os homens buscando em baixo da cama alguns rifles e abrindo bornais de couro de onde extraíram farta munição.

O autor e seu João Santos.

A curiosa menina também relatou ao tenente Agripino que depois do encontro no quarto, já a noite, dois outros indivíduos chegaram em possantes cavalos à casa onde trabalhava. Não demorou para que o genro e o filho do seu chefe pegarem seus animais e partirem com os recém-chegados para local ignorado. O “cidadão de bem” que participou da reunião no quarto e trouxe a munição, presenciou a saída e ficou em Florânia.

No outro dia a menina viu o genro repartir com o dito “cidadão de bem” várias moedas de prata e dinheiro em cédulas. Logo ficou sabendo de um assalto praticado por supostos cangaceiros na propriedade denominada “Pau Lagoa”, que atualmente faz parte do território do município potiguar de Cruzeta.

Iracema narrou então que na tarde do dia 29 de junho viu o “cidadão de bem” trazer um bisaco com bastante carne, farinha e rapadura e que por volta das quatro da tarde desse dia os mesmos quatro homens que anteriormente partiram de Florânia a cavalo, saíram novamente da cidade. Afirmaram que se dirigiam para um lugar chamado “Bentos”, do qual não consegui nenhuma informação sobre a sua localização.

A menina afirmou que ainda na manhã do dia 1° de julho toda a Florânia soube da orgia de violência e sangue na propriedade Vaca Brava de Baixo, mas ela nada comentou sobre o retorno e o destino das pessoas ligadas ao seu patrão. Ainda delegacia Iracema reconheceu a máscara e afirmou que algumas pessoas reconheceram que entre os materiais roubados do sítio Pau Lagoa estavam as mantas utilizadas para transportar o corpo do chefe do bando para Florânia.  

Com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, sendo fotografado pelo amigo Solón Rodrigues Almeida Neto no dia 19 de julho de 2008.

Depois do crime circulou na região a informação, comentada por todos que entrevistei, que um irmão do bandido morto buscou demovê-lo de praticar outros atos criminosos, mas sem sucesso. Esse irmão era conhecido como “Lopinho” e morava em Florânia.

Para os entrevistados em 2008 e no depoimento de Iracema publicado em 25 de agosto de 1932, não existe nenhuma referência que o rico sogro do falecido chefe do bando soubesse da atitude transloucada do seu genro, ou da participação dos seus filhos e de outras pessoas de Florânia naquela doidice.

Para o Senhor João dos Santos e o casal Tomaz e Josefa, esse caso repercutiu muito na região e durante vários anos se falou sobre isso.

Para finalizar fui informado que o valente Diavolácio não foi preso pela morte do bandido. Ele continuou a viver na Vaca Brava de Baixo, casou com uma prima, mas um dia foi embora para o sul e os meus entrevistados nunca mais tiveram notícias dele. Já Dona Umbelina parece não ter mais desejado viver na casa onde mataram seu marido e terminou seus dias morando com uma filha em Cruzeta. Imaginei que a jovem Iracema Muniz de Medeiros tivesse sofrido alguma represália daquela família de marginais, mas ela estava viva em 1946.

Nas pesquisas que realizei nas velhas páginas do jornal A República, estranhamente não encontrei mais nenhuma nota, nenhuma notícia e aparentemente nada mais saiu sobre esse caso. Não sei sequer se alguém foi preso, processado ou condenado!

“Cangaço Oportunismo”’

Certamente que nas priscas eras outros casos como o da propriedade Vaca Brava de Baixo aconteceram pelo sertão afora. Mas confesso que não sei aonde, quando e como ocorreram. Mas não deixa de ser interessante o conhecimento desses casos, até mesmo para compreender como esse tipo de situação, que possui suas especificidades, continua a acontecer e a crescer.

Talvez no passado a proporção desses casos fosse muito menor, ou muito se abafava para evitar escândalos. Mas também é verdade que sempre escutei nas minhas andanças pelos sertões afirmações como “– Muita gente se aproveitou do cangaço para praticar atos de violência, assaltos, roubos e até assassinatos”. Mas o fato é que eu nunca tinha me debruçado com um caso tão específico e ainda mais no meu Rio Grande do Norte e no querido Seridó das minhas raízes.

Ao comentar esse caso com uma pessoa ligada a justiça em Natal, ouvi que provavelmente quem praticou esses crimes eram “pessoas sem maiores perspectivas, normalmente desqualificadas, muito pobres e sem preparo”. Para mim ou essa pessoa ou não ouviu meu relato, saiu comentando na base do chute mesmo e só faltou dizer que os meliantes eram “negros”.

Como podemos ler anteriormente os homens que praticaram o crime na propriedade Vaca Brava de Baixo eram membros da “fina flor” da sociedade do seu lugar e tidos como “Gente de bem”. Eram cidadãos aparentemente exemplares, mas que não tiveram nenhum problema de matar um velho fazendeiro por dinheiro e aterrorizar sua família. Se não fosse um rapaz valente e a existência de uma arma de fogo, a situação teria sido muito pior.

Já para quem tem um mínimo de conhecimento sobre a História do Cangaço no Nordeste, os homens que praticaram o crime na Fazenda Vaca Brava de Baixo certamente não eram cangaceiros, ou pertenciam a algum grupo errante de bandoleiros que estava circulando pela região do Seridó Potiguar em 1932. Talvez algum deles tivesse tido alguma experiência nessa área, mas é algo que creio ser muito difícil. Para mim eram apenas um grupelho mal organizado de “cangaceiros-oportunistas, cujo chefe teve o que mereceu!

Sabemos através de estudos realizados que o fenômeno do cangaço possuía características peculiares e próprias sobre como os seus muitos membros agiam. Podemos compreender melhor essa questão na página 89 do interessante livro Guerreiros do Sol, de Frederico Pernambucano de Mello (Ed. A Girafa, São Paulo – SP, 2013), onde esse autor comentou sobre as formas básicas dos que praticaram o cangaceirismo no Nordeste do Brasil –

“São em número de três essas formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio. A primeira forma caracteriza-se por um sentido nitidamente existencial na atuação dos que lhe deram vida. Foi a modalidade profissional do cangaço, que teve em Lampião e Antônio Silvino os seus representantes máximos. O segundo tipo encontra no finalismo da ação guerreira de seu representante, voltada toda ela para o objetivo da vingança, o traço definidor mais forte. Foi o cangaço nobre, das gestas fascinantes de um Sinhô Pereira, um Jesuíno Brilhante ou um Luís Padre. Na terceira forma, o cangaço figura como última instância de salvação para homens perseguidos. Representava nada mais que um refúgio, um esconderijo, espécie de asilo nômade das caatingas.”

Talvez fosse interessante o ilustre pesquisador e escritor Frederico Pernambucano de Mello incluir entre as ideias de formas básicas desse movimento a do “cangaceiro-oportunista”. Gente que aproveitava para agir prioritariamente durante o recrudescimento das secas, que geravam uma total desorganização socioeconômica do sertão e, nesse caso específico, talvez aproveitando a agitação social de fundo político, como o da Revolução Constitucionalista de 1932.

Através da sugestão de dois bons amigos que vivem no Seridó Potiguar, a quem confidenciei esse caso, resolvi aqui não apresentar os nomes das pessoas envolvidas como perpetradores desse crime. Poderia gerar uma tremenda chatice com a família daqueles bandidos, ainda cheia de “brilho e cobre” em Florânia. Mas o caso está todo aí, conforme foi publicado no jornal em 25 de agosto de 1932 e como me foi dito lá na Vaca Brava em 19 de julho de 2008 pelo Senhor João Bezerra dos Santos e o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, os quais nunca mais reencontrei e nem tive notícia alguma.

Só espero que aonde eles estiverem, estejam bem e em paz!

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NOTAS


[1] Os registros sobre Antônio Theóphilo de Carvalho Pinto e seus familiares se encontram disponíveis em https://www.familysearch.org/tree/person/sources/GFQ7-1HP

[2] Aquele valor era uma verdadeira fortuna, mais ainda em uma região assolada por uma forte estiagem. Para se ter ideia do que esse volume financeiro representava naquele tempo temos na página 2 do jornal natalense A República, edição de sábado, 9 de julho de 1932, a publicação do “Balancete das despesas e recitas referente aos meses de janeiro a abril de 1932” e consta que nesse período as despesas com a Imprensa Oficial no Rio Grande do Norte, ou seja a circulação, pagamento de pessoal e manutenção do jornal A República, foi de 66.359$780, ou seja sessenta e seis contos, trezentos e cinquenta e nove mil e setecentos e oitenta réis.

[3] Quem folheia as páginas desse jornal, existente na Hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, ou no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, vai perceber o detalhismo existente nesse depoimento e o extenso espaço dado pelo jornal.

FUNDAÇÃO DO RIO DE JANEIRO – A LUTA PELA POSSE DA TERRA

Autor – Francisco de Assis Barbosa

Texto produzido em 1965, por ocasião das comemorações dos 400 anos do Rio de Janeiro.

A fundação da Cidade de São Sebastião foi a etapa decisiva da luta entre portugueses e franceses pela posse da terra do pau-brasil, sangrenta luta que se arrastou anos a fio, por quase todo o século do descobrimento, com motivações de natureza não apenas comercial, mas sobretudo de ordem política e religiosa. Foi uma vitória dos soldados do Rei de Portugal e dos padres da Companhia de Jesus contra a aliança franco-tamoia e o calvinismo.

Não é sem propósito que Nóbrega e Anchieta se destacam entre os heróis da campanha militar que teve o comando de Estácio de Sá. Mesmo antes, Nóbrega está sempre presente, advertindo a Coroa portuguesa sobre o perigo francês e até participando de operações de guerra, como na tomada do Forte Coligny, em 1560, ao lado de Mem de Sá. Homem de extraordinário tino político, o grande Jesuíta compreendera que não bastava defender as posições já consolidadas em São Vicente (1532) e depois em São Paulo de Piratininga (1554). Era preciso muito mais: estender o poderio luso, e com ele o da religião católica, por toda a costa do Brasil, do extremo Norte ao extremo Sul, sem deixar ponto algum vulnerável, especialmente no Centro-Sul infecionado pela presença francesa.

Nicolas Durand de Villegagnon

Villegagnon ainda não se havia estabelecido no Rio de Janeiro e Nóbrega secundava a Tomé de Sousa no apelo dirigido pelo primeiro Governador-Geral ao Rei, no sentido de se “mandar fazer ali uma povoação honrada e boa porque já nesta costa não há rio em que entrem franceses senão neste”. (1553)

A princípio, o interesse francês parece restringir-se ao carregamento de madeira destinada a construções navais, em que os normandos se tornaram exímios. Por trás dos corsários, que passaram a explorar o litoral americano, na Era dos Quinhentos, encontrava-se o poderoso Sindicato Angô, nome do rico armador que se colocara à frente do empreendimento, pai. do futuro Visconde de Dieppe, Jehan Angô, que aliás prosseguirá e ampliará a obra paterna. É certo que o Sindicato contou com o apoio real, desde Francisco I. Ao tempo de Henrique II, crescerá, porém, de prestígio e aumentará o raio de ação. A serviço de Angô, esteve Jacques Cartier, descobridor do Canadá, não sendo de se desprezar, para o esclarecimento dessa história, a nota pitoresca de ter sido Catherine de Granges, esposa do famoso navegador, madrinha da bugra[1] que foi a companheira de Caramuru, quando do seu batismo na França.

FRANCESES E TAMOIOS

Rebelde para com o português, o índio receberá o francês com docilidade. Corsários, flibusteiros ou simples comerciantes, explica Capistrano de Abreu que os franceses “souberam portar-se com os naturais de modo a captar-lhes a amizade e a firmar uma aliança que atravessou mais de meio século sem intermitência”. Mair, nome com que passaram a designá-los, significa criador, transformador, pelo espírito de permuta, pelos objetos úteis que traziam, pelos ofícios e artes que difundiam.

Cunhambebe (? – c. 1555)[1] foi um famoso chefe indígena tupinambá brasileiro, tendo sido a autoridade máxima entre todos os líderes tamoios da região compreendida entre o Cabo Frio (Rio de Janeiro) e Bertioga (São Paulo). Foi, também, aliado dos franceses que se estabeleceram na Baía de Guanabara em 1555, no projeto da França Antártica. É citado na obra do religioso francês André Thévet “Les singularitez de la France Antarctique” e na obra do aventureiro alemão Hans Staden “História Verdadeira…”. Noticia-se que o chefe tamoio, em rituais canibais de sua tribo, tenha devorado mais de sessenta portugueses.

Cortando e carregando pau-brasil, os índios brasileiros são representados, em perfeita identificação com os europeus, em baixos relevos da igreja de Saint Jacques, em Dieppe, construída no século XVI, sinal eloquente da importância dessa aliança, mas que não é a única. Em Rouen, perdurariam por mais de três séculos ornatos semelhantes aos da igreja, numa casa de madeira conhecida significativamente por Ile du Brésil. A própria residência de Angô, em Varengeville, fora por igual ornamentada com motivos brasileiros.

Ao contrário dos franceses, os lusos não conseguiam dominar os índios senão pela força. Daí a resistência dos tamoios — “brava e carniceira nação, cujas queixadas estão cheias das carnes dos portugueses”.

Corte de pau-brasil (André Thevet, 1575).

A confraternização franco-tamoia, no Rio de Janeiro, não só inquietava como escandalizava os jesuítas, parecendo obra do demônio. É o que se depreende da leitura de uma das cartas anchietanas de 1560, dando conta do que vinha de há muito acontecendo: “A vida dos Franceses que estão neste Rio é já não somente apartada da Igreja Católica, mas também feita selvagem; vivem conforme os índios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles, pintando-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com as penas dos pássaros, andando nus às vezes, só com uns calções, e finalmente matando contrários, segundo o rito dos mesmos índios, e tomando nomes novos como eles, de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana, que no mais sua vida é corruptissima, e com isto e com lhes dar todo gênero de armas, incitando-os sempre que nos façam guerra e ajudando-os nela, e são ainda péssimos”.

A SINAGOGA DOS CALVINOS

Mapa francês da baía de Guanabara, c. 1555. Rico em detalhes, mostra a conformação topográfica original do Pão de Açúcar (aqui denominado Pot de Beurre), afastado da praia. Com os morros da Urca e Cara de Cão, ele formava a “Ilha da Trindade”, que hoje está integrada ao continente em consequência de assoreamento e de um aterro no final do século XVII. Outra curiosidade é a indicação de pontos de interesse, ora em francês, ora em língua tupi.

Forte Coligny chamou-se a fortaleza erigida na Guanabara pelos franceses, onde se instalara a “sinagoga dos contrários Calvinos”, na classificação dos jesuítas. O Almirante Coligny, homem forte de Henrique II, foi quem patrocinou a vinda para o Brasil de Nicolas Durand de Villegagnon, que se propusera a fundar nos trópicos a França Antártica, chegando a reunir para a expedição cerca de seiscentos candidatos, entre aventureiros, degredados e calvinistas, estes perseguidos pela reação católica, dos quais apenas oitenta desembarcaram no Rio de Janeiro ocupando a pequena Ilha de Serigipe (hoje Villegagnon), em fins de 1555. O geógrafo da expedição era um padre católico, André Thevet. Vieram depois frades de São Bernardo, segundo refere Anchieta. E com a expedição de Boisle-Comte (1557), um grupo de calvinistas genebrinos, entre eles Jean de Lery.

Contando embora com a amizade dos tamoios, que o tratavam de Pai Colas, Villcgaignon regressou à França em 1558 para nunca mais voltar ao Brasil, embora durante algum tempo perseverasse a ideia de prosseguir a aventura colonizadora, chegando- mesmo a pensar, então, na colaboração dos jesuítas, que pleiteou sem resultado. Os inacianos (outro termo para os jesuítas) não compactuariam com antigos partidários do calvinismo. Escrevendo ao Provincial de Portugal, em 1561, sentenciou de Roma o Padre Geral da Companhia: “En lo de aquel cavallero de Rodas (Villegagnon), y l a empresa de America no hay más que tratar. Éanenos consolado no poço con lo que scriven dei Brasil acerca de aquella gente que tenía tomada la fortaleza” (No caso daquele cavalheiro de Rodes – Villegagnon – e da companhia da América, não há mais nada a discutir. Consolemos-nos um pouco com o que escrevem do Brasil sobre aquelas pessoas que tomaram a fortaleza).

Esquema do ataque de Mem de Sá aos franceses na baía de Guanabara, em 1560. Autoria desconhecida, 1567.

No Forte Coligny, destruído por Mem de Sá, em 1560, não se achou “cruz alguma”, nem “Imagem de santo”, mas “grande multidão dos livros heréticos”. Desfeita a “sinagoga”, após uma “grande e cruel peleja”, que durou dois dias e duas noites, Nóbrega volta a insistir, em carta ao Cardeal Dom Henrique, na necessidade de “povoar-se o Rio de Janeiro e fazer-se nele outra cidade como a da Bahia”, argumentando que assim se defenderiam melhor São Vicente e o Espírito Santo: “a fortaleza que se desmanchou, como era de pedras e rocha, que cavaram a picão, facilmente se pode tornar a reedificar e fortalecer muito melhor”.

Tinha razão. Os franceses abandonaram a posição na baía, mas se fortaleceram no Continente, nos morros e nas praias, cimentando ainda mais a aliança com os Tamoios, que tanto incomodava os jesuítas. Estes só descansariam quando expulsassem do Rio de Janeiro o último herege, portador da “peçonha luterana”, repetindo palavras de Anchieta, que desejava “lançar daquela terra os Calvinos e abrir alguma porta para a palavra de Deus entrar os Tamoios”.

Escultura no Centro do Rio de Janeiro lembrando o primeiro culto protestante nas Américas, realizado por huguenotes franceses na ilha de Villegagnon.

PREPARATIVOS DA GUERRA

Com Mem de Sá, Nóbrega retorna a São Vicente, “muito magro e doente, com os pés e a cara inchados, as pernas cheias de postemas, e com muitas outras enfermidades”. É quando começa a executar, mesmo doente e indiferente à inércia da metrópole, o plano da grande ofensiva sobre o Rio de Janeiro, pacificando primeiro os Tamoios, que viviam mais próximos de São Vicente, para que estes vivessem isolados de seus parentes da Guanabara (“que tinham o coração danado”), sem entrar em guerra com os portugueses.

Durante dois anos, suas constantes viagens a Iperoig (atual Ubatuba) tem esse objetivo. Conseguida a paz, com o auxílio de Anchieta (1563), é que empenharam a fundo no aliciamento de índios, mamelucos, discípulos do Colégio de Piratininga, “serra abaixo, serra acima”, em São Vicente e São Paulo, convicto que de que mais dia, menos dia, a Coroa portuguesa decidiu afinal promover a expulsão definitiva dos franceses do Rio de Janeiro.

Retrato do Padre José de Anchieta. Obra de Benedito Calixto, 1902. Acervo do Museu Paulista.

Sobre a trégua de Iperoig, escreveu Anchieta: “O fim desta paz foi de fato fim de guerra e princípio de outra.” Em março de 1564, Nóbrega recebeu o chamado de Estácio de Sá, feito Capitão da Armada, que se encontrava nas imediações da Guanabara, com ordens de povoar o Rio de Janeiro.

Para lá seguiu, levando “alguma gente”. Chegou na noite de 31, mas não conseguiu localizar os navios portugueses. Dirigiu-se assim mesmo à Ilha de Villegagnon, então deserta, as casas queimadas e cadáveres insepultos com as cabeças decepadas. Razão do desencontro: cansado de esperar, Estácio resolvera seguir rumo a São Vicente, mas os ventos contrários obrigaram-no a retroceder, voltando à Guanabara, onde se avistou finalmente com Nóbrega.

Mem de Sá em óleo sobre tela do século XX.

Trazia instruções expressas de Mem de Sá para em tudo agir conforme os conselhos do jesuíta. As suas naus estavam avariadas, desmanteladas e além disso era reduzido o número de combatentes. Os reforços da Bahia e do Espírito Santo, incorporados aos dois galeões que trouxeram de Lisboa, não chegaram a oferecer condições mínimas para a operação do desembarque. Os navios tinham que ser consertados e fortalecido o corpo de combatentes. E tudo isso só podia ser feito e providenciado em São Vicente.

A LONGA EXPECTATIVA

Nove meses duraram os reparos da Armada de Estácio de Sá, em São Vicente. Com o jovem capitão, estavam o Ouvidor-Geral Brás Fragoso e o escrivão Pedro da Costa, veterano da tomada do Forte Coligny, ambos embarcados na Bahia, além do Capitão-mor do Espírito Santo, Belchior de Azevedo, e do principal Araribóia, da tribo dos temiminós, inimiga dos tamoios. Nem todos acreditavam na empresa. O próprio Estado vacilava, a acreditar-se no diálogo com Nóbrega, reproduzido por um dos cronistas da Companhia de Jesus, verdade que não contemporâneo, Antônio Franco:

— “Padre Nóbrega! E que conta darei eu a Deus e a El-Rei, se lançar a perder esta Armada?

— Senhor, eu darei conta a Deus de tudo, e se for necessário irei à presença de El-Rel e responderei por vós.”

O desânimo que se apoderou dos soldados portugueses, na longa expectativa em São Vicente, acabou sendo vencido pelo entusiasmo e pertinácia de Nóbrega, até que a expedição se reconstituiu e pôde enfim partir para a luta. Estácio foi à frente, na capitânia. Brás Fragoso seguiria depois, ocupado ainda com o conserto de um galeão e de uma nau francesa, capturada no ano anterior na Guanabara.

O socorro obtido por Nóbrega consistia em cinco barcos (três de remos) e oito canoas. Com os índios do Espírito Santo, os mamelucos de São Vicente e Piratininga perfariam duzentos homens ou pouco mais. Levavam mantimentos para três meses. Em lugar de Nóbrega, o padre Gonçalo de Oliveira e o Irmão José de Anchieta acompanhariam Estácio de Sá e seus comandados na dura e incerta tarefa de povoar o Rio de Janeiro.

AFINAL, O DESEMBARQUE

Corsário francês.

Um mês demorou a viagem de São Vicente ao Rio de Janeiro. Tudo indica que a armada transpôs a barra a 28 de fevereiro e que Estácio de Sá desembarcou a 1 de março, no istmo da península mais tarde denominada de São João, entre o morro Cara de Cão e os penedos do Pão de Açúcar e Urca. E que o capitão-mor dormiu em terra nesse mesmo dia.

Chovia torrencialmente. É Anchieta quem depõe: “no dia que entramos choveu tanto que se encheu, e rebentaram fontes em algumas partes, de que bebeu todo o exército em abundância, e durou até que se achou água boa num poço, que logo se fez”. Sabe-se que esse poço foi aberto por José Adorno e Pedro Martins Namorado, pouco depois juiz ordinário da cidade nascente, por ter já exercido o mesmo cargo em Santos.

Fundação da cidade do Rio de Janeiro por Estácio de Sá.

Anchieta, o grande cronista da fundação, descreve a faina de “roçar e cercar o lugar onde estava assentado que se havia de fundar a povoação”, todos trabalhando sob a chuva. Inclusive Estácio de Sá, “tão amigo de Deus e de seus semelhantes, tão manso e afável, nunca descansando, acudindo a todos e sendo o primeiro no trabalho”.

Trinta dias depois, as roças de legumes e inhames cresciam em derredor da cerca. “Tinham já feito um baluarte mui forte de taipa de pilão com muita artilharia dentro, com quatro ou cinco guaritas de madeira e taipa de mão, todas cobertas de telha que trouxemos de São Vicente, e faziam-se outras e outros baluartes, e os índios e mamelucos faziam já suas casas de madeira e barro, cobertas com umas palmas feitas e cavadas como calhas e telhas, que é grande defensão contra o fogo.” E mais adiante: “Todos viviam com muita paz e concórdia; ficava com eles o Padre Gonçalo d’Oliveira, que lhes dizia cada dia missa, e confessava e comungava a muitos para a glória do Senhor “.

PROSSEGUE A LUTA

Era apenas o começo. A luta prossegue. Mais dois anos de escaramuças dos tamoios, por terra e por mar.

Nem todas as batalhas estão registradas ou podem ser localizadas. Muitas se confundem com a lenda, como por exemplo o combate das canoas, em que aparece a visão de São Sebastião, na onda de fumo levantada pela pólvora queimada, o que pôs em fuga os índios apavorados. O que ninguém pode contestar é que, a 16 de julho de 1565, vencendo todos os obstáculos da guerra, Estácio de Sá constituiu o patrimônio territorial da Cidade, concedendo sesmaria para seu termo, rocio e pastos de gados, “com uma légua e meia de testada, começando pela Casa de Pedra, ao longo da baía, até onde se acabar, e uma légua e meia pelo sertão, saindo pela costa do mar bravo e Gávea”.

Incluía, portanto, toda a Baía da Guanabara e adjacências. A 24 do mesmo mês, os moradores tomaram posse das terras, na presença do capitão-mor. E durante a cerimônia, o meirinho Antônio Martins meteu nas mãos do Procurador do Conselho, João Prosse, “terra, pedra, água, paus e ervas”, e com isso o mesmo João Prosse, continua o auto, “passeará e andará pela dita terra, assim ele, como os moradores e povoadores que presente foram”. A cerimônia, descrita com tantas minúcias, teve lugar fora da Vila Velha, na banda da Carioca, ou seja, mais ou menos na altura da embocadura do Rio Carioca, na Praia do Flamengo, onde estava edificada a Casa de Pedra.

O primeiro alcaide, nomeado por Mem de Sá, empossou-se a 3 de setembro, no mesmo baluarte descrito por Anchieta. É conhecido o termo da investidura: “Apresentando o alcaide-mor o seu provimento ao Capitão-mor Estado de Sá, estando presentes o Juiz Pedro Martins Namorado e o Alcaide-Pequeno Domingos Fernandes, pediu que o empossasse, segundo o que El-Rei mandara em suas ordenações; detendo-se o Governador com as mais pessoas à porta da Cidade e fortaleza, lhe disse: — Que cerrasse as portas — o que fez o alcaide-mor com as suas próprias mãos, bem como os dois postigos sobrepostos nela com suas aldravas de ferro; e ficando Estácio de Sá fora das portas e muros lhe perguntou o alcaide-mor, que estava dentro, se queria entrar e quem era ele. Ao que respondeu que queria entrar e que era o Capitão da Cidade de São Sebastião, em nome d’El-Rei Nosso Senhor, e imediatamente lhe foi aberta a porta, dizendo o alcaide-mor que o reconhecia como seu capitão em nome de Sua Alteza.”

“Fundação do Rio de Janeiro”, Mem de Sá entrega as chaves da cidade ao alcaide. Obra de Antônio Firmino Monteiro. Palácio Pedro Ernesto.

ADVERTÊNCIA DE ANCHIETA

Mas a luta não havia terminado. Com todas as provisões que baixou e atos que praticou, mostrando que efetivamente exercia em plenitude o governo do primitivo arraial, feitoria ou povoado, que se chamou Vila Velha ou Cidade Velha, a posição de Estácio de Sá era insegura e perigosa.

Indo à Bahia, para receber as ordens sacras, Anchieta dá uma notícia precisa sobre o Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que clama por novos reforços. E adverte: “Se agora não se leva a cabo esta obra, e se abre mão dela, tarde ou nunca se tornará a cometer.” O que disse aos seus superiores naturalmente que repetiu a Mem de Sá, mas o Governa dor -Geral somente em novembro de 1566 (mais de um ano depois) consegue aprontar a nova Armada que se dirige ao Rio de Janeiro para consolidar a obra iniciada por Estácio de Sá e seus companheiros.

Partida de Estácio de Sá, quadro de Benedito Calixto (1853-1927) mostrando o padre Manuel da Nóbrega benzendo a esquadra que vai combater os franceses.

Essa Armada – armada de socorro, como ficou sendo conhecida — entrou na Guanabara a 18 de janeiro de 1567. Compunha-se de três galeões, dois navios de guerra e seis caravelas. Mem de Sá não dispensou o concurso de Anchieta. Além de Anchieta, o Governador-Geral trouxe quase todo o clero da Bahia, a começar pelo Bispo Dora Pedro Leitão, o padre visitador Inácio de Azevedo, que lá se encontrava, o provincial Luís da Grã e outros jesuítas, um deles, o padre Antônio Rodrigues, como alferes da Bandeira do Cristo. A Armada do socorro fundeou no porto improvisado junto ao Pão de Açúcar. E os soldados de Mem de Sá ali se juntaram ao contingente pioneiro das forças de Estácio.

Dois dias depois, travou-se a batalha de Uruçumirim (localizada no outeiro da Glória), principal reduto franco-tamoio, que assinalou, na fase final da luta, a primeira grande vitória das armas portuguesas.

Estácio de Sá saiu ferido com uma flechada que lhe atingiu o rosto. Morreu o Capitão de Mar e Guerra de Porto Seguro, Gaspar Barbosa. A 23, Mem de Sá ataca a Ilha Paranapuã (atual Ilha do Governador), desbaratando o inimigo. Um terceiro reduto franco-tamoio rendeu-se, após duro combate.

FUNDAÇÃO DO RIO DE JANEIRO – A LUTA PELA POSSE DA TERRA
Túmulo do Estácio de Sá, fundador da cidade do Rio de Janeiro que se encontra na igreja São Sebastião dos Capuchinhos, zona norte da cidade (Tânia Rêgo/Agência Brasil).

Quatro mil homens, de ambos os lados, tomaram parte na refrega, segundo os cálculos de Gilberto Ferrez[2].

CIDADE DEFENDIDA

Estácio de Sá morreu um mês depois, a 1º de fevereiro. Morreu na Vila Vella e ali mesmo foi sepultado na ermida da Confraria de São Sebastião, com as honras militares a que tinha direito, como fundador da cidade e herói de uma guerra, no dizer dos jesuítas, “cheia de prodígios e favores do céu”.

Mem de Sá, na sua qualidade de Governador-geral, ratificou todos os atos praticados pelo capitão mor, na sua bem sucedida missão de “correr esta costa do Brasil e povoar este Rio de Janeiro”. Ratificou as nomeações e doações. Confirmou e ampliou a área patrimonial da Cidade de São Sebastião. Os portugueses puderam então se instalar em lugar mais seguro, dentro da sesmaria delimitada por Estácio. Escolheram para tanto o morro do Castelo, que se afigurava ao Padre Simão de Vasconcelos “um sitio formidaloso a todos os inimigos marítimos”. Para lá transferiram a cidade, dispostos a impedir qualquer nova tentativa de ocupação por parte dos franceses ou revidar os ataques dos tamoios insubmissos, mesmo porque terão que enfrentar, muitas vozes ainda, luteranos e bárbaros.

O perigo francês continuava a existir. A esse respeito, não é nada tranquilo o primeiro período de governo de Salvador Correia de Sá (o Velho), a quem Mem de Sá passa o comando do Rio de Janeiro, quando do seu regresso à Bahia. O mesmo se dá no governo seguinte, do Cristóvão Barros, matador de índios, que participou da armada de socorro de 1567. Somente em 1575. Antônio Salema liquidará os remanescentes franceses, alojados em Cabo Frio.

Marco de fundação da cidade na igreja do padroeiro do Rio de Janeiro (Foto Oscar Valporto).

Em 1582, no segundo período de Governo de Salvador Correia de Sá (o Velho), apareceram três naus francesas na Guanabara. Na ausência do Governador, que, com os homens válidos, se encontrava pelo sertão, guerreando os índios, é a sua esposa. Dona Inês de Sousa, quem, convocando as mulheres, organiza a resistência aos Invasores. As mulheres marcham para a praia, com chapéus de soldados e armas na mão. À noite acendem fogos, para simular que a cidade reagirá.

Graças a esse estratagema, renovado durante dez ou doze dias, os franceses acabam desistindo de desembarcar e as três naus põem-se ao largo. Mas esse episódio, verdadeiro ou não, vai por conta de frei Vicente do Salvador, que o relata, com graça de estilo, na sua História do Brasil. 

NOTAS


[1] Bugra (feminino), ou bugre (masculino), eram denominações dada a indígenas por serem considerados não cristãos pelos europeus. A origem da palavra, no português brasileiro, vem do francês bougre que, de acordo com o Dicionário Houaiss, possui o primeiro registro no ano de 1172, significando “herético”.

[2] Gilberto Ferrez (1908-2000) foi um historiador brasileiro. Neto do fotógrafo Marc Ferrez, a sua obra concentra-se na história da iconografia brasileira, mas ele também desempenhou papel fundamental no tombamento e na restauração de bens culturais brasileiros, na qualidade de conselheiro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

OS DETALHES SOBRE O NAVEGADOR ALEMÃO MUMIFICADO ENCONTRADO NAS FILIPINAS

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O barco do alemão Manfred Fritz Bajorat vagando pelo Pacífico, quando encontrado pelos tripulantes do veleiro de competição LMAX Exchange, quanse trinta dias antes de ser encontrado por pescadores filipinos – Fonte – http://www.dailymail.com

Um Moderno Drama Marítimo, Que Parece Ter Saído Das Páginas De Um Livro De Suspense Do Século XIX

Seguramente as coisas mais incríveis acontecem quando você menos espera.

Aquela manhã de 26 de fevereiro de 2016 deveria ter sido um dia normal de trabalho para Christopher Rivas e seu primo, companheiro de tripulação. Um dia como outro qualquer.

Quando apareceram as primeiras luzes da manhã no horizonte eles trouxeram seu pequeno barco de pesca para o porto de Barobo, na região de Surigao do Sul, no sul das Filipinas. Após vários dias de fortes tempestades eles partiram em meio a um belo dia de mar calmo e algumas horas mais tarde estavam nas suas zonas de pesca habituais, a cerca de 40 milhas da costa.

Tinha tudo para ser um dia rotineiro para aqueles dois pequenos pescadores artesanais asiáticos.

Mas não foi!

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Área onde foi encontrado o veleiro do alemão – Fonte – http://www.dailymail.com

Em algum momento, quatro horas após iniciarem suas atividades, Christopher parou o que estava fazendo naquele momento e deixou seu olhar vagar sobre o mar, calmo e tranquilo como um espelho. Foi então quando o seu dia se transformou em algo muito difícil de esquecer.

No começo ele não tinha certeza do que estava vendo. De longe viu algo que estava imóvel e flutuando na água. Um pedaço de formas incertas, levado pelas correntes e ventos. Christopher e seu primo içaram as redes e, com parcimônia, se aproximaram do estranho objeto.

Surigao del Sur é relativamente perto de uma das principais artérias marítimas comerciais. Uma área que é rota usual de inúmeros cargueiros que partem da China, Coréia do Sul e Japão e seguem em direção a Europa e Estados Unidos. É uma rota naval tão ocupado, que é um fato totalmente normal os pescadores encontrarem materiais boiando nas águas. Muitas vezes encontram apenas lixo e porcaria flutuante, mas às vezes alguns deles encontram um volumoso contêiner abarrotado de mercadorias. Estes caem no mar a partir de navios de carga atingidos por uma forte tempestade e ficam à mercê das ondas.

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Fonte – http://www.dailymail.com

É fácil imaginar a tensão que aumentou a bordo de pequeno barco de pesca filipino enquanto eles se aproximavam da grande objeto flutuante: ali poderia estar produtos eletrônicos ou componentes de alto valor, que se bem embalados em recipiente vedados, e se a água salgada não tivesse ocasionado muitos danos, Christopher e seu primo poderiam ter tirado um verdadeiro prêmio de loteria.

Mas conforme se aproximavam do objeto a expressão dos dois foi mudando. Ficou claro que aquilo não era um contêiner e nem lixo.

Logo, flutuando a poucos metros de seu barco estava um veleiro semi-submerso, modelo Jeanneau Sun Magic, de 44 pés.

O estranho barco não tinha mastro, sua quilha estava inclinada quase 30 graus, preenchido por um emaranhado de cordas, restos mutilados de velas e perecendo ter sido achatado pelas ondas. Estranhamente os dois painéis se encontravam em perfeito estado, como se toda devastação que atingiu o barco não os tivesse tocado.

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Modelo e registro do veleiro encontrado – Fonte – http://www.dailymail.com

Parte do casco estava coberto de algas, crustáceos e moluscos. Uma marcação de linha de água escura e grossa deixava claro que havia muito tempo que aquele veleiro estava na água, mas o nome do barco estava perfeitamente distinto, Sayo, escrito em grandes letras pretas sobre a tinta branca rachada.

Christopher e seu primo cruzaram olhares nervosos e decidiram abordar o barco para descobrir o que se escondia ali dentro.

Dólares, latas de alimentos e fotos

A luz do sol penetrava através das pequenas escotilhas abertas, mesmo assim Christopher levou um tempo para acostumar os olhos à escuridão do interior da cabine.

Por algum local a água do mar havia penetrado na cabine, deixando água suficiente que chegava à altura dos tornozelos, onde flutuavam restos de comida, óleo e vários objetos. Então ele viu no fundo da cabine um homem sentado na mesa de navegação, que parecia estar cochilando sobre o seu braço direito, com o rádio a poucos centímetros de seus dedos.

O relatório detalhado da Estação de Polícia de Barobo permite reconstruir quase passo a passo o que aconteceu.

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Assim o pescador filipino Christopher Rivas encontrou o navegador alemão Manfred Fritz Bajorat – Fonte – http://www.dailymail.com

Como afirmou Christopher em seu depoimento perante as autoridades policiais filipinos, nesse momento uma onda mudou o barco de posição, suficiente para que um raio de luz caísse sobre a cabeça do homem. Foi quando o pescador percebeu que seu dia seria realmente complicado, pois não é todo dia que você se depara com um barco fantasma e ocupado por uma múmia.

Assustados, os dois pescadores decidiram rebocar o iate golpeado para a costa. Conforme seguiam galgando as ondas, mais e mais água entrava na cabina. Quando os primeiros policiais chegaram ao Sayo, a água quase alcançava os joelhos do cadáver dissecado.

A primeira coisa que se observou foi que todos os valores ainda estavam a bordo, retirando a suspeita que aquele espetáculo dantesco fosse fruto de um ataque pirata, algo nada fora do comum naquela parte do Oceano Pacifico. Havia uma carteira cheia de dólares e euros, grandes estoques de alimentos enlatados e equipamentos de telecomunicações caros.

Flutuando na água estagnada dentro da cabine estavam dezenas de fotos, onde se viam pessoas com rostos sorridentes, cujas imagens se transformavam lentamente em manchas de cores turva pela ação da água do mar.

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Fotos de Manfred e sua esposa Claudia encontrados no barco a deriva – Fonte – http://www.dailymail.com

Nas imagens estava um homem de meia-idade com um sorriso, ao lado de uma bonita mulher e de uma menina que com o passar dos anos se transformou em uma garota atraente. Havia fotos em alguma cidade da Europa Central, que logo davam lugar a imagens de um sorridente casal nos portos mais inesperados do mundo.

As perguntas estão a começaram a se acumular sobre os policiais.

O que aconteceu com aquele barco?

Como e quando aquele navegador tinha morrido?

E, acima de tudo, como poderia o seu corpo ter ficado preservado, em um último gesto que mostrava uma tentativa de fazer uma chamada de rádio?

Quem ele queria chamar?

E para quê?

Logo as autoridades começaram a ligar os pontos.

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Fonte – http://www.dailymail.com

O Alemão Solitário

Uma carteira laminada com documentos permitiu dar uma identidade ao misterioso cadáver mumificado e único membro da tripulação.

Seu nome era Manfred Fritz Bajorat, um alemão de 59 anos que no final da década de 1990 decidiu trocar a sua ordeira e pacífica vida como vendedor de seguros de uma cidade da região do baixo Ruhr alemão e fugir do frio. Ele vendeu tudo o que tinha e foi explorar os mares do mundo com sua esposa, Claudia, com quem fora casado por mais de trinta anos. Informações apontam que eles tenham terminado o relacionamento em 2008.

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Manfred e Claudia entre amigos – Fonte – http://www.dailymail.com

Segundo as autoridades constava que Manfred não era visto desde que havia estado no porto de Mallorca, Espanha, em 2009, quando conheceu outro navegador alemão chamado Dieter.

Posteriormente descobriu-se que o Sayo cruzou com outro barco no mar e depois tomaram conhecimento que quando Claudia morreu de câncer em 2010, Manfred a enterrou na ilha caribenha da Martinica.

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Claudia Bajorat – Fonte – http://www.dailymail.com

Um dos documentos recuperados na cabine de Sayo mostrou que em 2013 foi emitida uma permissão ao proprietário deste barco pela polícia marítima em São Vicente, embora ainda não esteja claro se ele foi emitido em Cabo Verde, ou no Brasil, já que ambos os países possuem portos com o mesmo nome.

Mas a partir daí só breves atualizações em suas contas em redes sociais davam algum sinal de vida do navegador solitário alemão. Mas até que de repente, há cerca de um ano, estas também desapareceram completamente e a trilha do velejador solitário ficou perdida

Foi como se o alemão tivesse sido engolido pelas ondas… Até que ele apareceu mumificado nas águas Filipinas.

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Fonte – http://www.dailymail.com

Enquanto o Sayo, exausto depois de completar a sua última viagem, permanecia amarrado a boias para evitar afundar, um médico legista examinou o corpo do marinheiro. Sua primeira conclusão foi que um ataque cardíaco fulminante matou o alemão e que ele já estava morto há mais de um ano, provavelmente dois.

Uma estranha e curiosa combinação de calor a alta temperatura dentro da pequena cabana, junto com o vento marinho carregado com sal, tinha sido capaz de drenar o corpo de Manfred Bajorat e, sob muitos aspectos, em perfeito estado.

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O barco encontrado estava bem abastecido – Fonte http://www.dailymail.com

Entretanto, logo circulou na internet uma outra versão. Teoricamente surgida em jornais filipinos, apontou que o relatório da autópsia em Manfred, apesar de seu corpo mumificado, teria levado a conclusão que ele poderia ter morrido de um ataque cardíaco “em torno de sete dias antes da data que ele foi encontrado na costa da Barobo”. Especialistas forenses explicaram que uma combinação de calor tropical, vento seco e ar salgado do mar podem “preservar, ou mumificar, um cadáver, com o processo acontecendo mais rapidamente em pessoas mais magras”.

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Fonte – http://www.dailymail.com

Independente desta questão, para quem viu o barco na costa filipina se impressionou com o contraste entre o corpo incorrupto de Manfred e suas fotos de família. Havia várias fotografias de viagens a França, Luxemburgo, Bélgica e outras regiões. Algumas imagens mostravam Manfred ao lado de amigos, de Claudia, de Nina Bajorat, a filha do casal. Aquilo foi considerado profundamente perturbador.

Outra situação que chamou a atenção da polícia das Filipinas foi o fato que havia poucos pertences pessoais, além do álbum de fotos.

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Claudia e Nina – Fonte – http://www.dailymail.com

Enquanto os filipinos buscavam respostas, logo surgiu a notícia que quase um mês antes o estropiado veleiro havia sido visto pela tripulação de outro veleiro e um de seus tripulantes chegou até a cabine do Sayo e encontrou o corpo mumificado de Manfred Bajorat

Visto e Esquecido…

Na manhã de 31 de janeiro de 2016 o veleiro de competição de alto desempenho LMAX Exchange, participava da 7ª etapa da competição Clipper Round the World Yacht Race. Eles estavam percorrendo um trecho entre Airlie Beach, Austrália, até o porto de Da Nang, no Vietnã, quando as 06:24 avistaram um iate com um mastro quebrado, sem tripulação visível e denominado Sayo.

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O veleiro de competição LMAX Exchange no Rio de Janeiro – Fonte – O Globo

O capitão do LMAX Exchange, o francês Olivier Cardin, informou a organização da corrida que estava momentaneamente paralisando sua participação para examinar um iate abandonado, que se encontrava à deriva em seu caminho, tendo este barco sido avistado nas coordenadas 11 38N / 137 46E, a 650 milhas náuticas a leste das Filipinas e a 470 milhas náuticas a oeste da Ilha de Guam. Este último local é um território pertencente aos Estados Unidos desde 1898, fica localizado na Micronésia, na extremidade sul das Ilhas Marianas, no oeste do Oceano Pacífico.

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O barco de Manfred visto a partir do veleiro LMAX Exchange – Fonte – http://www.dailymail.com

O capitão Cardim então apitou a sirene de bordo, mas alma viva deu as caras fora da cabine do Sayo. Ele então ordenou que seu pessoal preparasse um de seus tripulantes para abordar aquele estranho barco e saber o que acontecia dentro.

O barco de competição deu uma volta e, ao passar próximo do iate, o tripulante se jogou ao mar e nadou em direção ao barco aparentemente abandonado. Este tripulante colocou na testa uma pequena câmera a prova d’água, de alta resolução, destinada a filmar o que encontrasse.

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Tripulante do veleiro de competição nadando para o veleiro de Manfred – Fonte – http://www.dailymail.com

Após certa dificuldade para subir a bordo do veleiro, o tripulante do LMAX Exchange começou a investigar o que havia na embarcação e entrou na cabine. Foi quando ele tomou um grande susto ao encontrar o corpo mumificado de Manfred Bajorat.

Neste link é possível ver a filmagem da abordagem e  o susto do tripulante ( http://www.dailymail.co.uk/news/article-3481756/The-moment-mummified-sailor-discovered-Yacht-team-release-footage-crew-member-tragic-German-widow-horrifying-state.html ).

Ao saber do achado o capitão Cardim entrou em contato com a base da Guarda Costeira dos Estados Unidos (United States Coast Guard – USCG)  em Guam e informou o achado. Os americanos então transmitiram aos tripulantes do LMAX Exchange que, como eles não poderiam fornecer nenhuma assistência adicional, a equipe deveria continuar na competição enquanto os membros da Guarda Costeira em Guam assumiriam a investigação. 

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Fonte – http://www.dailymail.com

Justin Taylor, Diretor da Corrida Clipper, também notificou a embaixada alemã em Londres, que informou a polícia alemã e a marinha daquele país sobre o ocorrido.

Através dos dados de registro do barco fornecidos pela equipe de competição, a polícia germânica começou a buscar os parentes de Manfred, para descobrir quando ele entrou em contato pela última vez e tentar determinar quando ele morreu. 

Só que estranhamente, pelo menos em relação às últimas notícias conseguidas pelo TOK DE HISTÓRIA, ou ninguém foi atrás do veleiro do alemão Manfred Bajorat, ou se foram não encontraram nada, ou talvez não valesse a pena o esforço americano resgatar o cadáver de um navegador solitário alemão.

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O barco patrulha USCGC Washington (WPB-1331), da Guarda Costeira dos Estados Unidos, que tem sua base em Guan – Fonte – http://www.uscg.com

Vale ressaltar que segundo o site da Guarda Costeira em Guam ( http://www.uscg.mil/d14/sectguam/default.asp ) lá existem três embarcações de pronta utilização, sendo duas de patrulha, entre estas a que é apresentada na foto, o USCGC Washington (WPB-1331).

As provas fotográficas feitas em 31 de janeiro pela equipe do LMAX Exchange derrubaram totalmente a tese que Manfred Bajorat só poderia ter morrido de um ataque cardíaco “em torno de sete dias antes da data que ele foi encontrado na costa da Barobo”.

Independente destas questões, o certo foi que o Sayo e seu quieto tripulante percorreram mais de 600 milhas náuticas até a descoberta macabra de Christopher Rivas.

“Que a sua alma para encontrar a paz. O seu Manfred”

É difícil entender como um veleiro de 12 metros pode navegar à deriva por muito tempo sem que ninguém perceba. Talvez a enormidade do Pacífico e a própria natureza solitária em que Manfred estava vivendo ajuda a entender o caso.

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O Sayo nas Filipinas – Fonte – http://www.dailymail.com

Entre todos os documentos existentes no Sayo, o mais significativo encontrado pelos filipinos foi um texto com cerca de 20.000 palavras e dedicado a falecida esposa de Manfred. Ele estava trabalhando neste material quando a morte o surpreendeu no mar.

“Trinta anos estivemos no mesmo caminho. Então, o poder dos demônios foi mais forte do que o desejo de viver. Você me deixou. Que sua alma encontre a paz. O seu Manfred”.

Dependendo do leitor pode ser muito complicado, ou muito fácil, imaginar o sentimento de perda daquele solitário homem do mar, navegando sem curso, em busca de um consolo de que a enormidade do oceano não poderia lhe dar.

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O Sayo flutuando com ajuda de boias – Fonte – http://www.dailymail.com

Mas não é difícil imaginar o momento de pânico na hora que Manfred sentiu a picada reveladora em seu peito, que anunciou que ele estava sofrendo um ataque cardíaco, totalmente sozinho, a centenas de quilômetros de alguma área habitada. É impossível ficar indiferente ao saber que aquele ser humano, na sua mesa de navegação onde estava seu rádio, tentou enviar uma mensagem de socorro com os dedos cada vez mais desajeitados e sua condição ficando cada vez mais limitada.

O que nós não precisamos imaginar é a postura serena e descontraída com que o seu corpo, com a mão muito perto do transmissor, submergiu em um sono profundo e eterno.

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Fonte – http://www.dailymail.com

Aparentemente por quase dois anos o Sayo e seu capitão fantasma caminharam juntos no Pacífico, em meio a tempestades, áreas de noites calmas e longos dias de verão e inverno. Uma versão moderna do fantasmagórico navio Flying Dutchman ( Sobre a história deste barco veja – https://tokdehistoria.com.br/2013/10/03/flying-dutchman-o-mais-famoso-navio-fantasma/ ).

Durante todo esse tempo, apenas as estrelas e, talvez, alguma baleia solitária testemunharam como o barco estava indo devagar, se desmanchando diante dos elementos, enquanto o capitão permanecia sentado, realizando uma chamada eterna em busca de uma ajuda que nunca chegou.

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O barco de Manfred chegando as Filipinas – Fonte – http://www.dailymail.com

No Sayo foi encontrada uma placa de bronze aparafusada, onde está gravada uma mensagem, que agora, vista em perspectiva, é arrepiante: “Este barco é um deleite para o capitão, mas um inferno para os marinheiros”.

Sem dúvida que Manfred Bajorat, como capitão e único membro da tripulação do Sayo, conheceu profundamente os extremos dessa sentença.

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Fonte – http://www.dailymail.com

E só ele tem as respostas para todas as questões que vão ficar para eternidade.

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Texto produzido com base no texto do espanhol Loureiro Manel e publicado em

http://www.elmundo.es/cronica/2016/03/10/56da9b3922601d21408b462e.html

Ver também – http://www.express.co.uk/news/world/650684/Mummified-captain-German-Manfred-Bajorat-sailor-yacht