1932 – COMO FOI O ATAQUE DOS “CANGACEIROS-OPORTUNISTAS” NO SÍTIO VACA BRAVA DE BAIXO, EM ACARI, RIO GRANDE DO NORTE

1932 – COMO FOI O ATAQUE DOS “CANGACEIROS OPORTUNISTAS” NO SÍTIO VACA BRAVA DE BAIXO, EM ACARI, RIO GRANDE DO NORTE

Um Caso Desconhecido de Violência Rural no Seridó Potiguar, Onde Encontramos Um Típico Caso de “Cangaço-Oportunismo” no Rio Grande do Norte.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros  

Em um sábado, dia 19 de julho de 2008, junto com o amigo Solon Rodrigues Almeida Neto e sua esposa Raquel Bezerra Mosca, visitamos a região do sítio Vaca Brava de Baixo, zona rural do município de Acari, no Seridó Potiguar. Um lugar que fica a cerca de 12 quilômetros a sudoeste da cidade de São Vicente e a 30 a sudeste da sede do município de Florânia. O objetivo foi pesquisar sobre um pretenso ataque de cangaceiros ocorrido no ano de 1932.

A informação que ocasionou essa viagem surgiu ao folhearmos os antigos exemplares do jornal A República, o principal do Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX. Foi na edição de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, que soubemos os detalhes do caso, do qual comentaremos mais adiante.

Edição do jornal A República de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, foi que soubemos mais detalhes do caso.

Na zona rural de Acari tivemos a oportunidade de encontrar pessoas que tinham um bom conhecimento sobre aquele triste acontecimento. Conversamos com o Senhor João Bezerra dos Santos, então com 90 anos de idade e muito lúcido, bem como com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, que na época da entrevista tinham 79 e 64 anos de idade respectivamente. Já o Senhor João dos Santos, com quatorze anos na época dos eventos comentou que nunca esqueceu o medo que os ditos “cangaceiros” viessem a atacar a casa da sua família, que não era muito distante da casa invadida.

De maneira geral o que me contaram foi o seguinte….

Vida Difícil em 1932  

Era madrugada de quinta para a sexta feira de mais uma noite quente e sem nenhuma perspectiva de chuvas no horizonte. Na propriedade Vaca Brava de Baixo o dono Antônio Theóphilo de Carvalho Pinto continuava trabalhando arduamente com a sua família para sobreviver a mais um desastre climático que castigava a sua propriedade e toda a região.

Seca no Nordeste – Fonte – http://vereadorgilsondejesus.blogspot.com.br

Ele já havia ultrapassado os 70 anos, tinha visto várias secas, algumas bem pesadas e difíceis, como as de 1877 a 1879, que presenciou quando bem jovem. Ou a de 1915, que também alterou toda a economia local. O problema era que naquela madrugada de 30 de junho para 1 de julho de 1932 a sua idade e o cansaço natural de enfrentar tantos contratempos naquele sertão cobravam o seu preço.

Mas Antônio Theóphilo tinha ao seu lado os filhos Antônio e Diavolácio, além das filhas Theresa, Maria, Ernestina, Justina e Josefa. Também contava muito com o apoio da sua mulher Umbelina Ernestina da Silveira Torres, com quem vivia unido nos sacramentos da Santa Igreja desde o século anterior e que teve o prazer de registrar oficialmente no ano de 1902 a sua união na “Lei dos Homens”, perante o Doutor Juvenal Lamartine de Faria, então juiz de Acari, tendo como testemunha seu amigo Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa, da Fazenda Fortaleza[1].

Para Antônio Theóphilo era uma tristeza que a tal da “Rivulução de 30” tenha mandado o Dr. Juvenal, que foi um governador tão bom para o Rio Grande do Norte pra tão longe, exilado na Europa.

Em 23 de maio de 1932 o chamado Batalhão Esportivo desfilava pelas ruas da capital paulista.

E naquele mesmo ano, além da seca que a tudo consumia, lá para os lados de São Paulo o povo daquela terra combatia as forças do governo do Dr. Getúlio Vargas. Diziam que eles queriam se separar do Brasil, mas o que se falava na região da Vaca Brava de Baixo era que até do Rio Grande do Norte foi tropa para combater os paulistas.

Realmente a vida não estava nada fácil naquele 1932 e o que Antônio Theóphilo não sabia era que naquela madrugada tudo iria ficar pior!

O Ataque dos Homens Maus

Seu João dos Santos, homem de uma memória privilegiada na época de nossa entrevista, lembrou que o grupo de bandoleiros chegou na região na “boca da noite”, ou seja, cerca de seis horas da tarde. Aí eles se “amoitaram”, ficaram escondidos para praticar o ataque quando fosse noite fechada.

Senhor João Bezerra dos Santos, então com 90 anos de idade e muito lúcido na época.

Os entrevistados também comentaram que circulou a informação que esses bandidos vieram para a região com uma lista de três casas para serem assaltadas. Foram na primeira, de um cidadão conhecido como “Chico Dondon” ainda na tarde de 30 de junho, mas perceberam que o local se encontrava com várias pessoas e desistiram por medo de alguma reação armada.

Aparentemente foi só na madrugada que a casa do Sítio Vaca Brava de Baixo foi invadida por quatro homens armados, que diziam ser “cangaceiros” e logo começaram a praticar terríveis violências. Gritavam que queriam os 60 contos de réis que o velho Antônio Theóphilo tinha apurado em um negócio recente de terras e que o homem que se apresentava como chefe do bando sabia em detalhes.[2]

Para as pessoas que entrevistei esses bandidos não eram conhecidos na região, mas me comentaram através dos relatos das vítimas e de outras pessoas que eles repetiram várias vezes serem “cangaceiros”. Mas nem os entrevistados e nem o material sobre o crime existente nas páginas de A República informaram se esses homens tinham os materiais típicos que caracterizavam os grupos de cangaceiros errantes.

Casas da região da propriedade Vaca Brava.

Independentemente dessa questão os nossos entrevistados comentaram que as violências foram extremas. Theóphilo, Dona Umbelina, as filhas, Antônio e Diavolácio sofreram bastante. Nessa ocasião dormia na casa um irmão de Dona Umbelina, de nome João Pereira, que também sofreu várias sevícias.

Gritos, empurrões, murros, estocadas com punhais e chutes eram dados em profusão. Logo o que se colocava como chefe do bando passou a ameaçar o fazendeiro Antônio Theóphilo mais fortemente com um punhal. O acossado idoso afirmava repetidamente, mesmo diante das maldades praticadas contra seus familiares, que já não tinha mais o dinheiro em casa.

Mas isso só enfurecia mais e mais o bandoleiro de punhal na mão, que não parava de espicaçar e sangrar o velho. Diante das negativas de Theóphilo, que teimosamente resistia ao interrogatório “a ponta de punhal”, a paciência do “cangaceiro” foi chegando ao fim e logo o homem sucumbiu ao martírio que sofria.

Aquela cena aterrorizou Diavolácio, que de alguma maneira se desvencilhou dos invasores e conseguiu pegar um rifle que existia na casa. Um objeto que os bandoleiros não sabiam da existência e parece que nem se deram o trabalho de procurar.

Conversando em 2008 sobre o assalto da Vaca Brava com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, que na época da entrevista tinham 79 e 64 anos de idade

O que consta é que o jovem de arma na mão e carregado do mais puro ódio disparou contra o chefe do grupo, atingindo-o nas costelas, tendo o projétil varado seu corpo. Segundo Seu João me relatou em 2008, Diavolácio só não matou mais gente porque seu rifle de repetição, provavelmente um Winchester, “engasgou” no meio da balaceira.

Nessa hora de confusão outro atingido mortalmente foi João Pereira, o irmão de Dona Umbelina, que estava paralisado diante de toda aquela violência e acabou recebendo um tiro que lhe varou a cabeça. Consta que encontraram essa bala dentro da gaveta de uma cômoda.

Diavolácio correu então para uma parte anexa da casa, em uma espécie de depósito onde se guardava os frutos da produção agrícola e ali encontrou um facão. No meio da escuridão do ambiente gritou “– Posso até morrer, mas ainda mato outro”. Os bandidos compreenderam muito bem a ameaça daquele valente seridoense e debandaram. O ataque chegava ao fim!

Os entrevistados me narraram que após receber o balaço de Diávolácio o chefe do grupo seguiu se esvaindo em sangue e amparado por seus companheiros. Foi conduzido até um lajedo de pedras nas redondezas, onde foi ordenado que um dos bandidos ficasse guardando o cadáver enquanto os outros buscavam os animais para fugirem. Só que os bandidos começaram a demorar e o tal vigilante do morto deixou o corpo ali mesmo e tratou de desaparecer. No final das contas essa ação funcionou positivamente para ele, pois depois policiais vindos de Acari chegarem até o local, seguindo o rastro de sangue.

Os entrevistados recordaram também que após o assalto o valente Diavolácio pegou um búzio marinho e “buzou” para pedir ajuda aos vizinhos, que prontamente responderam. Essa antiga prática de alerta no sertão, hoje esquecida, acontecia porque certas espécies de búzios marinhos possuem a capacidade de produzir fortes sons, que serviam para comunicação a distância. Eles foram utilizados para esta prática em várias partes do mundo, por vários povos, através dos séculos. No sertão nordestino, de largas paragens, a utilização de búzios era uma forma de comunicação prática entre vaqueiros que tangiam gado no meio da caatinga. Vem daí o termo “buzar”, para tocar o instrumento.

Outra casa antiga da região da propriedade Vaca Brava.

Mas enfim, quem eram aqueles homens?

De onde vieram e para onde foram?

E eram mesmo cangaceiros?

E No Jornal…

Seu João recordou que no outro dia após o crime ele esteve na residência assaltada e viu os estragos. Também presenciou seus familiares irem para o enterro do dono da fazenda e do seu cunhado João Pereira.

Como disse anteriormente o Nordeste queimava com a seca e no sul do Brasil o povo de São Paulo sangrava em meio a Revolução Constitucionalista de 1932, o que gerava muitos problemas para as autoridades policiais potiguares, mas o caso da Vaca Brava de Baixo não poderia ficar sem algum tipo de resposta.

Nessa época o Chefe de Polícia do Rio Grande do Norte era João Café Filho, futuro Presidente da República e único potiguar a alcançar esse cargo. Ele então mandou a polícia proceder as investigações para capturar os assaltantes e assassinos e até designou um delegado especial para o caso. O escolhido foi o segundo tenente Agripino Antônio de Lima.

O Senhor Tomaz Maurício Silva.

E na edição do jornal A República de quinta-feira, 25 de agosto de 1932, foi que soubemos mais detalhes do caso[3]. O curioso é que as respostas partiram de uma menina de quatorze anos de idade.

Dias antes da publicação, em 11 de agosto, a jovem Iracema Muniz de Medeiros, acompanhada do seu pai Manuel Muniz de Medeiros, ambos moradores da cidade de Flores, atual Florânia, no Seridó Potiguar, entraram na Cadeia Pública da cidade para ela prestar um depoimento ao tenente Agripino. Esse militar estava acompanhado do sargento Augusto Emílio Dantas e quem atuou como escrivão foi o cidadão João Praxedes de Medeiros.

O texto existente no jornal A República informa que Iracema era filha de uma família muito humilde, analfabeta e trabalhava como empregada doméstica na casa de um dos mais ricos e influentes homens de Florânia.

Contou que cerca de dois meses antes viu a filha do seu patrão, uma mulher casada e com 33 anos, confeccionando uma “máscara de pano preto”. Curiosa com aquilo, a jovem empregada perguntou para que servia aquele negócio e a resposta foi – “amedrontar meninos”. Iracema não ficou nem um pouco satisfeita com o que ouviu.

Fita cassete da gravação da entrevista realizada em 2008.

No mesmo dia, segundo seu depoimento, chegou na casa do seu rico patrão um indivíduo bem conhecido na comunidade, tido como “uma pessoa de bem”, que junto ao genro e a filha do seu chefe se trancaram em um quarto da casa. Para a realidade comportamental e da moral vigente naquela época, aquela atitude era muito estranha e só atiçou a curiosidade da garota.

Ela contou no depoimento que foi observar, “brechar” como se diz no dito popular, o que acontecia no quarto por uma janela. Viu a filha do seu patrão experimentando a tal máscara preta em seu marido, sob o olhar do dito “cidadão de bem”. Não demorou e um filho do seu patrão, rapaz jovem e bem disposto, também se juntou a reunião que acontecia no quarto. Iracema então viu os homens buscando em baixo da cama alguns rifles e abrindo bornais de couro de onde extraíram farta munição.

O autor e seu João Santos.

A curiosa menina também relatou ao tenente Agripino que depois do encontro no quarto, já a noite, dois outros indivíduos chegaram em possantes cavalos à casa onde trabalhava. Não demorou para que o genro e o filho do seu chefe pegarem seus animais e partirem com os recém-chegados para local ignorado. O “cidadão de bem” que participou da reunião no quarto e trouxe a munição, presenciou a saída e ficou em Florânia.

No outro dia a menina viu o genro repartir com o dito “cidadão de bem” várias moedas de prata e dinheiro em cédulas. Logo ficou sabendo de um assalto praticado por supostos cangaceiros na propriedade denominada “Pau Lagoa”, que atualmente faz parte do território do município potiguar de Cruzeta.

Iracema narrou então que na tarde do dia 29 de junho viu o “cidadão de bem” trazer um bisaco com bastante carne, farinha e rapadura e que por volta das quatro da tarde desse dia os mesmos quatro homens que anteriormente partiram de Florânia a cavalo, saíram novamente da cidade. Afirmaram que se dirigiam para um lugar chamado “Bentos”, do qual não consegui nenhuma informação sobre a sua localização.

A menina afirmou que ainda na manhã do dia 1° de julho toda a Florânia soube da orgia de violência e sangue na propriedade Vaca Brava de Baixo, mas ela nada comentou sobre o retorno e o destino das pessoas ligadas ao seu patrão. Ainda delegacia Iracema reconheceu a máscara e afirmou que algumas pessoas reconheceram que entre os materiais roubados do sítio Pau Lagoa estavam as mantas utilizadas para transportar o corpo do chefe do bando para Florânia.  

Com o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, sendo fotografado pelo amigo Solón Rodrigues Almeida Neto no dia 19 de julho de 2008.

Depois do crime circulou na região a informação, comentada por todos que entrevistei, que um irmão do bandido morto buscou demovê-lo de praticar outros atos criminosos, mas sem sucesso. Esse irmão era conhecido como “Lopinho” e morava em Florânia.

Para os entrevistados em 2008 e no depoimento de Iracema publicado em 25 de agosto de 1932, não existe nenhuma referência que o rico sogro do falecido chefe do bando soubesse da atitude transloucada do seu genro, ou da participação dos seus filhos e de outras pessoas de Florânia naquela doidice.

Para o Senhor João dos Santos e o casal Tomaz e Josefa, esse caso repercutiu muito na região e durante vários anos se falou sobre isso.

Para finalizar fui informado que o valente Diavolácio não foi preso pela morte do bandido. Ele continuou a viver na Vaca Brava de Baixo, casou com uma prima, mas um dia foi embora para o sul e os meus entrevistados nunca mais tiveram notícias dele. Já Dona Umbelina parece não ter mais desejado viver na casa onde mataram seu marido e terminou seus dias morando com uma filha em Cruzeta. Imaginei que a jovem Iracema Muniz de Medeiros tivesse sofrido alguma represália daquela família de marginais, mas ela estava viva em 1946.

Nas pesquisas que realizei nas velhas páginas do jornal A República, estranhamente não encontrei mais nenhuma nota, nenhuma notícia e aparentemente nada mais saiu sobre esse caso. Não sei sequer se alguém foi preso, processado ou condenado!

“Cangaço Oportunismo”’

Certamente que nas priscas eras outros casos como o da propriedade Vaca Brava de Baixo aconteceram pelo sertão afora. Mas confesso que não sei aonde, quando e como ocorreram. Mas não deixa de ser interessante o conhecimento desses casos, até mesmo para compreender como esse tipo de situação, que possui suas especificidades, continua a acontecer e a crescer.

Talvez no passado a proporção desses casos fosse muito menor, ou muito se abafava para evitar escândalos. Mas também é verdade que sempre escutei nas minhas andanças pelos sertões afirmações como “– Muita gente se aproveitou do cangaço para praticar atos de violência, assaltos, roubos e até assassinatos”. Mas o fato é que eu nunca tinha me debruçado com um caso tão específico e ainda mais no meu Rio Grande do Norte e no querido Seridó das minhas raízes.

Ao comentar esse caso com uma pessoa ligada a justiça em Natal, ouvi que provavelmente quem praticou esses crimes eram “pessoas sem maiores perspectivas, normalmente desqualificadas, muito pobres e sem preparo”. Para mim ou essa pessoa ou não ouviu meu relato, saiu comentando na base do chute mesmo e só faltou dizer que os meliantes eram “negros”.

Como podemos ler anteriormente os homens que praticaram o crime na propriedade Vaca Brava de Baixo eram membros da “fina flor” da sociedade do seu lugar e tidos como “Gente de bem”. Eram cidadãos aparentemente exemplares, mas que não tiveram nenhum problema de matar um velho fazendeiro por dinheiro e aterrorizar sua família. Se não fosse um rapaz valente e a existência de uma arma de fogo, a situação teria sido muito pior.

Já para quem tem um mínimo de conhecimento sobre a História do Cangaço no Nordeste, os homens que praticaram o crime na Fazenda Vaca Brava de Baixo certamente não eram cangaceiros, ou pertenciam a algum grupo errante de bandoleiros que estava circulando pela região do Seridó Potiguar em 1932. Talvez algum deles tivesse tido alguma experiência nessa área, mas é algo que creio ser muito difícil. Para mim eram apenas um grupelho mal organizado de “cangaceiros-oportunistas, cujo chefe teve o que mereceu!

Sabemos através de estudos realizados que o fenômeno do cangaço possuía características peculiares e próprias sobre como os seus muitos membros agiam. Podemos compreender melhor essa questão na página 89 do interessante livro Guerreiros do Sol, de Frederico Pernambucano de Mello (Ed. A Girafa, São Paulo – SP, 2013), onde esse autor comentou sobre as formas básicas dos que praticaram o cangaceirismo no Nordeste do Brasil –

“São em número de três essas formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio. A primeira forma caracteriza-se por um sentido nitidamente existencial na atuação dos que lhe deram vida. Foi a modalidade profissional do cangaço, que teve em Lampião e Antônio Silvino os seus representantes máximos. O segundo tipo encontra no finalismo da ação guerreira de seu representante, voltada toda ela para o objetivo da vingança, o traço definidor mais forte. Foi o cangaço nobre, das gestas fascinantes de um Sinhô Pereira, um Jesuíno Brilhante ou um Luís Padre. Na terceira forma, o cangaço figura como última instância de salvação para homens perseguidos. Representava nada mais que um refúgio, um esconderijo, espécie de asilo nômade das caatingas.”

Talvez fosse interessante o ilustre pesquisador e escritor Frederico Pernambucano de Mello incluir entre as ideias de formas básicas desse movimento a do “cangaceiro-oportunista”. Gente que aproveitava para agir prioritariamente durante o recrudescimento das secas, que geravam uma total desorganização socioeconômica do sertão e, nesse caso específico, talvez aproveitando a agitação social de fundo político, como o da Revolução Constitucionalista de 1932.

Através da sugestão de dois bons amigos que vivem no Seridó Potiguar, a quem confidenciei esse caso, resolvi aqui não apresentar os nomes das pessoas envolvidas como perpetradores desse crime. Poderia gerar uma tremenda chatice com a família daqueles bandidos, ainda cheia de “brilho e cobre” em Florânia. Mas o caso está todo aí, conforme foi publicado no jornal em 25 de agosto de 1932 e como me foi dito lá na Vaca Brava em 19 de julho de 2008 pelo Senhor João Bezerra dos Santos e o casal Tomaz Maurício Silva e Dona Josefa Maria da Silva, os quais nunca mais reencontrei e nem tive notícia alguma.

Só espero que aonde eles estiverem, estejam bem e em paz!

NOTAS


[1] Os registros sobre Antônio Theóphilo de Carvalho Pinto e seus familiares se encontram disponíveis em https://www.familysearch.org/tree/person/sources/GFQ7-1HP

[2] Aquele valor era uma verdadeira fortuna, mais ainda em uma região assolada por uma forte estiagem. Para se ter ideia do que esse volume financeiro representava naquele tempo temos na página 2 do jornal natalense A República, edição de sábado, 9 de julho de 1932, a publicação do “Balancete das despesas e recitas referente aos meses de janeiro a abril de 1932” e consta que nesse período as despesas com a Imprensa Oficial no Rio Grande do Norte, ou seja a circulação, pagamento de pessoal e manutenção do jornal A República, foi de 66.359$780, ou seja sessenta e seis contos, trezentos e cinquenta e nove mil e setecentos e oitenta réis.

[3] Quem folheia as páginas desse jornal, existente na Hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, ou no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, vai perceber o detalhismo existente nesse depoimento e o extenso espaço dado pelo jornal.

QUANDO KIRK DOUGLAS BRINCOU O CARNAVAL COM UM CHAPÉU DE VAQUEIRO E DORMIU EM UMA REDE POTIGUAR

Durante o Carnaval de 1963, Kirk Douglas, Um dos Maiores Astros de Hollywood, Conheceu e Descansou em Uma Típica Rede de Dormir Feita no Rio Grande do Norte, Usou um Chapéu de Couro e Conheceu a Cultura Nordestina Através do Natalense Sylvio Piza Pedroza, Ex-Prefeito de Natal e Ex-Governador Potiguar, Um Político Que Muito Valorizou a História da Sua Terra.

Rostand Medeiros – IHGRN

No início do ano de 1963 o Brasil era um país que vivia sob o signo da intranquilidade, principalmente no campo político. O gaúcho João Goulart, o Jango, era o Presidente do Brasil e ele ocupava o Palácio do Planalto há um ano e cinco meses, depois da nação ficar assombrada com a intempestiva renúncia do paulista Jânio Quadros.

Já a maioria da população brasileira ainda não possuía em suas residências os serviços básicos necessários para uma boa qualidade de vida, havia uma pesada crise econômica e a insatisfação de setores da sociedade com os rumos do governo Goulart fazia com que nuvens negras surgissem no horizonte político de Brasília.

Brasília, a nova capital brasileira – Fonte – https://conhecimentocientifico.r7.com/

Se dentro do país a situação se tornava complicada e seu povo vivia em meio a muitos problemas, a visão do Brasil no exterior até que não era das piores. No ano anterior a nossa seleção havia conquistado o bicampeonato de futebol no Chile, a Bossa Nova era cantada e elogiada em várias partes do mundo, o Cinema Novo começava a chamar atenção fora do país e Brasília encantava os estrangeiros com o arrojo de sua construção e sua bela arquitetura.

É nesse cenário que desembarcaram em Brasília o ator de cinema norte-americano Kirk Douglas e sua esposa Anne, que nascera na Bélgica e era produtora cinematográfica. 

Carnaval Em Brasília e Com Um Chapéu De Vaqueiro Nordestino

Esse astro de Hollywood, nessa época vivendo o auge de sua carreira, havia sido convidado para conhecer o nosso país e aproveitar os principais bailes de carnaval da novíssima capital federal e do Rio de Janeiro. O casal desembarcou na madrugada de sexta para o sábado de carnaval, dia 22 de fevereiro de 1963, no avião da Pan American Airways. Entre as figuras que aguardavam Kirk Douglas estava Luiz Severiano Ribeiro Junior, dono da maior rede de salas de cinema do país, e José Tjurs, proprietário do Hotel Nacional de Brasília. 

Kirk Douglas no Palácio do Planalto – Fonte – http://www.memoriascinematograficas.com.br

Na tarde de sábado o casal se encontrou com o prefeito Ivo de Magalhães e passearam por Brasília na companhia de Israel Pinheiro da Silva, o primeiro prefeito da cidade. Foram até mesmo ao Palácio do Planalto, mas o presidente João Goulart havia viajado para o Rio Grande do Sul (Correio Braziliense, 23/09/1963, págs. 3 e 8). Kirk Douglas se impressionou com a capital brasileira e comentou que “Para fazer isto tem que ter peito”. Vale ressaltar que o cargo de prefeito em Brasília foi extinto em outubro de 1969, passando os governadores do Distrito Federal a atuarem na prática como dirigentes da capital.

Capa da revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963)

À noite o casal Douglas foi para o II Baile da Cidade, no Hotel Nacional, onde o carnaval rolou solto. O astro hollywoodiano, talvez por se encontrar na capital do país, foi vestido para o baile de maneira muito formal, envergando um bem talhado smoking. Mas na cabeça estava com um típico chapéu de couro do vaqueiro nordestino. Inclusive o astro foi fotografado com a indumentária sertaneja, beijando sua mulher Anne e a foto foi capa da revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963), uma das principais do Brasil naquela época.

Dormindo Em Uma Tradicional Rede Potiguar, Mais Macia Que Sua Cama em Beverly Hills

No outro dia Kirk Douglas e Anne foram para uma casa alpendrada, feita de tábuas de madeira, as margens do Lago Paranoá, onde o ator de Hollywood foi fotografado tranquilamente dormindo em uma tradicional rede confeccionada no Rio Grande do Norte.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Em outras fotos ele aparece sorrindo e abraçado a sua esposa Anne. Algumas pessoas estão sentadas em cadeiras e observam o casal. Na época essas fotos foram creditadas a Henri Ballot, mas na edição seguinte da revista houve uma retificação e o crédito passou ao jovem paraibano Roberto Franca Stuckert, então com 19 anos.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

A casa, pelo menos nas fotos, parece bem simples e rústica e segundo o crítico de cinema Ely Azeredo, que assinou o pequeno texto existente na revista O Cruzeiro (Ed. 16/03/1963, págs. 108 a 111), Kirk Douglas “experimentou pela primeira vez as delícias de uma rede no alpendre da casa de campo do Comodoro do Iate Clube Silvio Pedroso”. 

Mas o texto de Ely Azeredo possui um pequeno erro, pois o então Comodoro do Iate Clube de Brasília não era “Silvio Pedroso”, mas o ex-prefeito de Natal e ex-governador do Rio Grande do Norte Sylvio Piza Pedroza.

O PresiPresidente Juscdente Juscelino visitando o Iate Clube de Brasília em 1961, próximo ao final do seu mandato. Sylvio Pedroza está a sua esquerda – Fonte – www6.iateclubedebrasilia.com.br

Sylvio tinha então 45 anos de idade, era subchefe da Casa Civil da Presidência da República, cargo que assumiu ainda no governo Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), passou pelo curto período de Jânio Quadros (1961) e continuava na função no governo João Goulart.

Provavelmente pela natureza do seu cargo e, quem sabe, pela sua fluência no idioma inglês foi que Sylvio Pedrosa se aproximou de Kirk Douglas e eles acabaram nas margens do Lago Paranoá.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Talvez essa proximidade explique o chapéu de vaqueiro usado pelo astro de Hollywood no baile de carnaval no Hotel Nacional. Isso é bem possível, já que Sylvio Pedroza ficou conhecido no Rio Grande do Norte por sempre valorizar suas tradições e principalmente a história de sua terra.

E Kirk Douglas parecia bem à vontade naquela tradicional rede potiguar e naquela casa de aparência rústica e simples. O que não seria nenhuma novidade para um filho de imigrantes pobres nos Estados Unidos, que fugiram das perseguições e dos pogroms contra os judeus no Império Russo.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

O ator nasceu na cidade de Amsterdam, no estado de Nova York, em 9 de dezembro de 1916 e foi batizado como Issur Danielovitch. Aprendeu iídiche antes do inglês e conviveu com um pai alcoólatra e fisicamente abusivo, que bebia o pouco dinheiro que ganhava recolhendo lixo e deixava sua mãe e suas seis irmãs na miséria. Mesmo assim Douglas avançou nos estudos e conseguiu entrar na universidade, onde se formou em Direito em 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial foi tenente a bordo de um pequeno caça submarinos no Pacífico, um tipo de barco que ficou conhecido na Marinha do Brasil como “Caça ferro”. Após ser dispensado devido a um acidente na sua embarcação, Kirk Douglas voltou para Nova York e começou a trabalhar no rádio, teatro e comerciais. Em 1946, fez sua estreia nas telas em The Strange Love of Martha Ivers e teve uma carreira de enorme sucesso no cinema, ganhando três indicações ao Oscar e um Oscar pelo conjunto de sua obra. Em 1960 atuou no papel principal do elogiado filme Spartacus, dirigido por Stanley Kubrick e ganhador de quatro Oscars, E foi pelo seu papel em Spartacus que Kirk Douglas foi bastante referenciado nessa visita ao Brasil.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Antes que esqueça!

Kirk Douglas gostou tanto da rede de dormir fabricada em terras potiguares, que em um texto que escreveu para a revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963, pág. 9) comentou…

“Pela primeira vez experimentei uma rede brasileira, mais confortável e macia do que minha cama em Beverly Hills”.

Tradição Potiguar

Para Sylvio Pedroza também não houve nenhum problema em oferecer ao astro de Hollywood uma típica rede potiguar, um hábito comum no Rio Grande do Norte, principalmente nos alpendres das casas existentes nas nossas belas praias.

Sylvio Pedroza, quando Prefeito de Natal, em uma solenidade na Escola Doméstica em homenagem ao Presidente da República João Café Filho, p único potiguar a chegar a esse cargo.

Nascido em Natal no dia 18 de março de 1918, Sylvio Piza Pedroza era filho de Fernando Gomes Pedroza e Dona Branca Toledo Piza Pedroza. Seu pai foi um agropecuarista e tido como um dos mais abastados comerciantes do Rio Grande do Norte. Sylvio estudou na Inglaterra e no Rio de Janeiro, onde se formou em Direito e ali morou por vários anos. Durante a Segunda Guerra retornou para Natal e em abril de 1945 foi nomeado membro do Conselho Administrativo do Estado do Rio Grande do Norte. No ano seguinte, quando tinha apenas 26 anos, foi indicado prefeito de Natal e foi sendo empossado pelo interventor federal Ubaldo Bezerra de Melo em abril de 1946. Ficou no cargo até fevereiro de 1950.

Posse de Sylvio Pedroza na Prefeitura de Natal

Durante as eleições de outubro de 1950 elegeu-se vice-governador do Rio Grande do Norte, assumindo a chefia do governo quando o então mandatário potiguar Jerônimo Dix-Sept Rosado Maia faleceu em um trágico acidente aéreo em Sergipe. Ficou no cargo até 1956, quando assumiu funções no Banco do Nordeste e depois tentou uma vaga ao Senado Federal, mas não se elegeu.

Ouvi de velhos políticos que Sylvio Pedroza atuou com simplicidade, sem pedantismo e que sabia ouvir os mais simples de sua terra. Além disso, incentivou o desenvolvimento de obras que trataram sobre a história potiguar, principalmente através de uma parceria com Câmara Cascudo.

Em 7 de março de 1947 Cascudo entregava ao jovem prefeito os primeiros exemplares do livro História da Cidade do Natal, até hoje uma referência sobre o tema (A Ordem, o9/03/1947, pág. 3). A parceria seria repetida em 1955, quando Sylvio Pedroza era governador potiguar e conseguiu com o Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura a impressão dos exemplares do livro História do Rio Grande do Norte. Uma obra com 524 páginas e cujos primeiros exemplares foram entregues ao governador em abril de 1956 (O Poti, 17/04/1956, pág. 16).

Para seus críticos Sylvio Pedroza utilizou esse apoio a Cascudo apenas como um estratagema para consolidar seu nome e torná-lo mais conhecido no Estado. Pelo fato dele ser considerado como alguém “de fora”, por apenas ter nascido em Natal e morado por muitos anos distante da terra potiguar, Pedroza não era conhecido da população local e nem do meio político e por isso a aproximação. Ouvi de velhos políticos que, se isso realmente aconteceu quem ganhou foi o povo potiguar com a qualidade do material produzido por Cascudo. Para esses homens Sylvio Pedroza atuou politicamente com simplicidade, sem pedantismo e que sabia ouvir os mais simples de sua terra.

Sylvio Pedroza e Getúlio Vargas em 1954

Câmara Cascudo, em seu livro Rede de Dormir: Uma pesquisa etnográfica (MEC, 1957, 1ª Ed. págs. 31 e 32), comentou que essa relação dos políticos do Rio Grande do Norte com as redes de dormir é coisa bem antiga.

“Muita rede foi enviada de presente aos companheiros do Sul. E era lembrança local apreciada, ”souvenir” dos deputados gerais e senadores do Império aos seus colegas meridionais. O Visconde de Mauá possuiu uma grande e confortável rede, dada pelo deputado pelo Rio Grande do Norte, Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti, Amaro Bezerra, o “Tintureira” bonachão e violento nas últimas décadas imperiais. Na República, o deputado Augusto Severo, que morreu na explosão do dirigível Pax em Paris (12 de maio de 1902), voltava do Natal para a Câmara levando um carregamento de redes de dormir e queijos de manteiga do Seridó, ofertas disputadas pelos seus amigos do Parlamento. O senador Pedro Velho obrigava a instalação de sua rede inseparável nos hotéis onde morava no Rio de Janeiro, rede em que Rui Barbosa se deitou, sorridente, e Pinheiro Machado balançava-se, enrolando palha de milho com fumo negro de Goiás.”

Sylvio Pedroza

E De Que Cidade Veio a Rede?

No início desse texto imaginava que essas redes que existiam na “casa de campo” de Sylvio Pedroza as margens do Lago Paranoá eram oriundas de Caicó. Pois na minha meninice dormi em ótimas redes vindas dessa cidade seridoense e ouvia falar da fama que esses materiais produzidas por lá tinham em relação a qualidade.

Mas recorrendo aos conhecimentos e a experiência do meu amigo Adauto Guerra Filho, para mim o maior historiador vivo do Seridó Potiguar e morador de Caicó, na época do episódio em Brasília realmente existiam boas redes, com ótima qualidade e sendo produzidas na Capital do Seridó. Mas eram em pequeno número e a produção estava em crise.

Mestre Adauto Guerra Filho, o maior historiador vivo do Seridó Potiguar, autor de quinze livros, grande conhecedor da história de sua região. É um homem humilde, solicito e amigo. Faz tempo que é merecedor de reconhecimento maior.

A informação de Mestre Adauto encontra respaldo em Câmara Cascudo, no livro Rede de Dormir: Uma pesquisa etnográfica, de 1957.

Cascudo informou que através do apoio do seu amigo Aderbal de França, que trabalhava na Inspetoria Regional de Estatística Municipal no Rio Grande do Norte, em 1950 existiam por aqui 42 fábricas de redes e em 1956 o número se reduziu a somente 4, sendo três em Mossoró e apenas uma em Currais Novos. No último período uma das fábricas mossoroenses produziu 20.000 e outra 6.304 redes.   

Dos tempos áureos da produção de redes no Rio Grande do Norte, segundo descobri pesquisando no site da Biblioteca Nacional, as indústrias nessa área que mais se destacaram no Rio Grande do Norte foram a Fábrica de Redes Potiguar, de J. Oliveira & Cia., de Natal e localizada no bairro da Ribeira, próximo ao Teatro Alberto Maranhão (A Ordem, 29/10/1938, pág. 1). Já em Mossoró se destacou a Fábrica de Redes São Vicente, de Osmídio & Cia. Ltda., que ficava na Rua Coronel Saboia (Almanak Laemmert, edição 1937, pág. 1.606). No final da década de 1940 mereceu registro a Fábrica de Redes e Tecidos Santa Maria, de José Dhalia da Silveira, com sede na Rua dos Pajeús, 1.713, bairro do Alecrim, em Natal (A Ordem, 21/06/1948, pág. 3).

Kirk “Spartacus” Douglas sendo “atacado” no Baile do Municipal do carnaval de 1963 no Rio de Janeiro

Independente da cidade potiguar que fabricou a rede que Kirk Douglas dormiu em Brasília, aparentemente ele descansou bastante. Aliás, ele precisou descansar, pois no domingo de carnaval partiu com na sua esposa para o Rio de Janeiro, onde participou, juntamente com mais de 5.000 foliões, no famoso Baile do Municipal. O ator foi fantasiado de Spartacus e caiu na farra. Apesar do “ataque” das cariocas ao astro de Hollywood, ele não desgrudou de Anne e chamou atenção no Rio pelo comportamento positivo e atencioso ao lado da esposa.

Kirk e Anne Douglas – Fonte – G1

Caso raro em Hollywood, o casal Douglas mantiveram-se unidos até a morte de Kirk, que ocorreu em fevereiro de 2020, quando ele estava com a idade de 103 anos. Já sua esposa Anne faleceu em sua casa em Beverly Hills, dias após seu 102º aniversário, em abril de 2020.  

JÂNIO QUADROS NA PRESIDÊNCIA DO BRASIL – DA ESPERANÇA EM UM SALVADOR DA PÁTRIA, ATÉ A RENÚNCIA NO DIA DO SOLDADO

Jânio da Silva Quadros nasceu no dia 25 de janeiro de 1917, na cidade de Campo Grande, no então estado de Mato Grosso e atual capital do Mato Grosso do Sul. Era filho de Gabriel Quadros e de Leonor da Silva Quadros e foi criado em Curitiba, no Paraná, onde estudou em colégios estaduais. Tempos depois sua família mudou para São Paulo, onde Jânio estudou no Colégio Marista Arquidiocesano e em 1935 ingressou na prestigiada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ou Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma academia que formou nada menos que treze presidentes da república brasileira.

Após a formatura Jânio Quadros montou um pequeno escritório de advocacia no centro da capital em 1943 e depois começou a lecionar em dois colégios. Foi também professor de direito processual penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Jânio da Silva Quadros.

Político de Ascenção Meteórica

Em 7 de maio de 1947, por determinação geral do então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra, ocorreu a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Por isso muitas cadeiras na Câmara Municipal de São Paulo ficaram vagas. Jânio então teria sido um dos suplentes chamados a preencher esses lugares em 1948. Essa versão é contestada por alguns, que afirmam ter sido Jânio Quadros um dos três vereadores efetivamente eleitos pelo PDC.

Independente dessa questão, o certo foi que a ação de Jânio como vereador foi decisivo para projetá-lo na vida política paulista. Ele ficou conhecido como o vereador de todas as casas legislativas do país no período a apresentar a maior quantidade de proposições e projetos de lei, além de discursos. Jânio foi igualmente considerado o vereador que assinou a grande maioria das propostas e projetos considerados favoráveis à classe trabalhadora.

Quadro de votação na época da campanha de Jânio Quadros para preidente.

Com esse currículo logo foi consagrado como o deputado estadual mais votado em São Paulo, com mandato a ser exercido entre 1951 e 1953. Jânio percorreu todo o interior do estado de São Paulo, sempre insistindo na bandeira da moralização do serviço público e pedindo sugestões ao povo para resolver os problemas de cada região.

No início de 1953 a capital paulista assistiu à primeira campanha eleitoral para a prefeitura em 23 anos, desde a Revolução de 1930. Jânio foi lançado candidato do PDC em coligação com o Partido Socialista Brasileiro – PSB, vencendo por larga margem as principais máquinas partidárias locais. Essa vitória foi tida como uma grande façanha, pois Jânio enfrentou bloco formado por oito partidos políticos e um adversário, o professor Francisco Antônio Cardoso, que tinha uma campanha milionária, com uma enxurrada de material de propaganda e com apoio ostensivo das máquinas municipal e estadual. 

Assumiu a prefeitura de São Paulo aos 36 anos e um dos seus primeiros atos foi promover demissões em massa de funcionários, iniciando uma cruzada moralizadora que marcou sua gestão.

De Governador a “Salvador da Pátria”

Ademar de Barros, de chapéu.

Em 1954 Jânio Quadros desincompatibilizou-se do cargo de prefeito para candidatar-se a governador do estado de São Paulo e filiou-se ao Partido Trabalhista Nacional – PTN. Ganhou por uma pequena margem de votos, de cerca de 1%, do grande rival Ademar Pereira de Barros, um político popularmente conhecido pelo bordão “Rouba, mas faz”.

Jânio foi empossado governador em 31 de janeiro de 1955 e durante o seu mandato procurou executar ações que transmitisse uma imagem de moralização da administração pública e de combate à corrupção, aliadas a um empreendedorismo que buscava destaque e projeção.

Uma prática comum do governador Jânio era a das visitas surpresa às repartições públicas, a fim de verificar a qualidade dos serviços oferecidos à população. Outra foi a criação de novos serviços e órgãos estaduais, ou a construção de grandes obras.

Desde o início do seu governo Jânio procurou ampliar seu espaço político no nível nacional, estabelecendo positivos contatos com o potiguar João Café Filho, então Presidente da República. A aproximação entre ambos criou condições mais propícias para o governo paulista realizar um trabalho de recuperação financeira do estado. Tudo isso angariou grande popularidade e consagrou Jânio como um líder entre os paulistas.

Com a chegada do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK,  a Presidência da República, houve um foco muito intenso na criação de uma política desenvolvimentista, que foi realizada através da aplicação do chamado “Plano de Metas” e provocou um grande crescimento em diversas áreas e setores no país. São Paulo foi um dos estados mais beneficiados com a implantação de novas indústrias e a concentração de crédito e essa expansão econômica se refletiu no aumento da receita tributária do estado e na criação de condições favoráveis à diminuição do déficit financeiro herdado dos governos anteriores. Apesar de todas as vantagens que São Paulo usufruiu no governo JK, matreiramente Jânio permaneceu alinhado com a oposição em relação a importantes aspectos da política econômica vigente. E isso foi muito útil ao governador paulista, pois apesar do impulso desenvolvimentista, o governo JK gerou um panorama de forte inflação e crise econômica.

Diante do difícil quadro nacional, o nome de Jânio Quadros começou a surgir como alguém que poderia solucionar os problemas e colocar o Brasil em um bom rumo. Um novo “Salvador da Pátria”.

Jânio em campanha.

No dia 20 de abril de 1959, um grupo reuniu-se na Associação Brasileira de Imprensa – ABI no Rio de Janeiro e fundou o Movimento Popular Jânio Quadros – MPJQ, lançando nessa ocasião a candidatura do ex-governador de São Paulo à presidência da República.

Nove Meses de Campanha: A Vassoura Janista na Caça ao Voto.

O homem do “tostão contra o milhão” chegava ao topo da escalada que o conduziria ao Palácio da Alvorada.

Não que fosse um caminho fácil. O líder que granjeara sua popularidade junto às massas operárias de São Paulo, que quando prefeito da capital paulista chegou mesmo a apoiar a greve de 1953 e, como governador, não adotou atitudes repressivas contra os trabalhadores, via-se agora na contingência de conquistar a simpatia de todos os brasileiros — ricos, pobres, remediados, urbanos, rurais, ignorantes ou letrados.

As vassouras de Jânio em suas campanhas.

O povo delirou quando Jânio deixou bem claro a todos os partidos que o apoiavam a sua posição extremamente personalista e autoritária, alheia as agremiações partidárias, as quais ele ignorava até o desprezo. Conter a inflação e governar acima dos partidos era seu propósito. Sobretudo porque, percebendo a fragilidade das plataformas partidárias do momento, ele podia agir dessa maneira.

O “justiceiro” prometeu um governo de austeridade, onde aglutinou setores militares e da classe média (com promessas de “limpeza” na administração e estabilização da economia), das elites empresariais (com afirmação de fé na livre iniciativa) e dos trabalhadores (com promessas de uma ordem social mais justa). Descontentes com a carestia, a maioria dos brasileiros preferiu ir beber nas águas populistas de Jânio Quadros. 

Em 30 de setembro de 1960 era encerrada a tumultuada campanha eleitoral de Jânio Quadros à presidência da República. Em meio a cartazes, animação de bandas de música, fogos de artifício, papéis picados, vassouras, além da marchinha antológica que tinha esses versos – “Varre, varre, varre, varre, vassourinha./ Varre, varre a bandalheira./ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira./ Jânio Quadros é a esperança deste povo abandonado”.

Marechal Teixeira Lott, derrotado por Jânio Quadros.

Nas eleições de 3 de outubro de 1960 quase seis milhões de eleitores fazem Jânio o 22º Presidente do Brasil, sendo até então a maior votação da história no país. O marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, o segundo colocado, foi vencido de forma arrasadora com mais de dois milhões de votos de vantagem.

Mas nem tudo foi positivo para Jânio. Como naquela época votava-se separadamente para presidente e vice, apesar de todo prestígio Jânio não conseguiu eleger Milton Soares Campos, o candidato a vice-presidente de sua chapa. O escolhido foi o gaúcho João Belchior Marques Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB.

Governo de Altos e Baixos

Após a vitória sem precedentes, o presidente eleito partiu para Europa, em uma viagem de “concentração e retiro”. Somente três meses após as eleições, em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros e João Goulart foram empossados. Contrariando a expectativa geral, o discurso de posse do presidente foi discreto e gentil, chegando a tecer elogios ao governo anterior. Porém, na noite desse mesmo dia, Jânio atacou violentamente o governo Juscelino Kubitschek em cadeia nacional de rádio, atribuindo ao ex-presidente a prática de nepotismo, ineficiência administrativa, responsabilidade pelos altos índices de inflação e pela dívida externa de dois bilhões de dólares.

Não demorou e o novo presidente decepcionou pela primeira vez seus correligionários, ao desfazer a expectativa dos que previam que ele realizasse um governo de composição ou união nacional, ou que tentasse obter, através da nomeação ministerial, a maioria parlamentar de que não dispunha.

Jânio compôs seu Ministério contemplando uma mistura de elementos da União Democrática Nacional – UDN e representantes de partidos menos expressivos. Surpreendeu a todos ao nomear cinco ministros do Norte e Nordeste e disse que isso foi feito para honrar compromissos de sua campanha. O Ministério da Fazenda foi confiado a Clemente Mariani Bittencourt, líder da UDN baiana, que fora presidente do Banco do Brasil em 1954 e 55. Afonso Arinos de Melo Franco, da UDN mineira ficou com a pasta das Relações Exteriores. O Ministério era formado ainda por Clóvis Pestana, do Rio de Janeiro (Viação e Obras Públicas), Oscar Pedroso d’Horta, do Ceará (Justiça e Negócios Interiores); Romero Cabral da Costa, de Pernambuco (Agricultura); Brígido Fernandes Tinoco, do Rio de Janeiro (Educação e Cultura); Francisco Carlos de Castro Neves, de São Paulo (Trabalho); Edward Cattete Pinheiro, do Pará (Saúde); João Agripino Vasconcelos Maia Filho, da Paraíba (Minas e Energia) e Artur da Silva Bernardes Filho, de Minas Gerais (Indústria e Comércio). Já os ministérios militares foram preenchidos pelo marechal Odílio Denys (Ministério da Guerra, que teria sua denominação alterada durante o governo do general Costa e Silva  para Ministério do Exército), o brigadeiro Gabriel Grüm Moss (Aeronáutica) e o vice-almirante Sílvio de Azevedo Heck (Marinha), os três do Rio de Janeiro.

Reunião ministerial do governo Jânio Quadros.

No início do seu governo Jânio tomou uma série de pequenas medidas que ficaram famosas, destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e saneamento moral. Também investiu fortemente contra alguns direitos e regalias do funcionalismo público. Reduziu as vantagens até então asseguradas ao pessoal militar ou do Ministério da Fazenda em missão no exterior e extinguiu os cargos de adidos aeronáuticos junto às representações diplomáticas brasileiras.

Tal como aconteceu quando era governador paulista, Jânio Quadros pretendia prescindir da maioria parlamentar, mas duas reações foram imediatas: a dos que o acusavam de veleidades ditatoriais e desprezo pelo Poder Legislativo, e a dos setores nacionalistas, que viam na composição do novo governo uma prova de submissão ao FMI – Fundo Monetário Internacional, pela nomeação do banqueiro Clemente Mariani para o Ministério da Fazenda.

Seguindo um amplo programa anti-inflacionário, em 13 de março de 1961 o Presidente Jânio decretou uma reforma cambial, cuja consequência imediata foi a desvalorização do cruzeiro (a moeda brasileira da época) em 100% e o corte dos subsídios na importação de trigo e gasolina. Disso decorreu um galopante aumento do custo de vida, coincidindo com o congelamento dos salários e restrição ao crédito, o que gerou imediatos protestos sindicais.

Embora contasse com o apoio tácito do Congresso Nacional para sua política de austeridade, Jânio encontrou sérias resistências, mesmo entre seus correligionários, em relação a outros projetos em andamento, como o da reforma da lei antitruste, o da remessa de lucros, o do imposto de renda e o da reforma bancária.

Segundo o seu ministro das Minas e Energia, o paraibano João Agripino, “Jânio atraía contra seu governo todos os grupos econômicos deste país e ao mesmo tempo impunha aos humildes sacrifícios quase insuportáveis”.

Na tentativa de agradar o FMI pela austeridade, a classe média pela sindicância moralizadora dos escândalos financeiros e as camadas populares pelas reformas, Jânio conseguiu, em poucos meses, multiplicar as oposições.

Os Famosos “Bilhetinhos”

Jânio Quadros na capa da revista americana Times.

Alpargatas, blusões folgados, os famosos slacks com jaquetas tipo safari (também conhecidos como pijânios) — era a imagem tropical de um novo estilo de presidente.

Parte dessa performance foram os não menos famosos “bilhetinhos” que Jânio enviava diariamente a funcionários dos mais diversos escalões, como parte de sua estratégia moralizadora da administração pública.

Esperados muitas vezes com humor pela imprensa, esses pequenos recados causavam frequentemente irritação e até desespero nos que os recebiam. Prova é que, dos 1.534 bilhetes ditados durante a presidência, apenas onze foram de elogios ou homenagens.

O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, por exemplo, foi vítima de cerca de 600 deles, o que contribuiu sensivelmente para o desgaste de suas relações com o presidente. Certa feita, o Ministério da Agricultura foi contemplado com um bilhetinho que dizia literalmente: “O objetivo da próxima safra de amendoim deve ser o do atendimento do mercado interno, com largas sobras para exportação, dobrando-se, pelo menos, essa cultura em relação à safra de 1959/60”.

Jânio Quadros e Carlos Lacerda.

Na prática, essas pequenas notas funcionavam, sobretudo como decretos oficiosos, transformando em “lei” várias das pequenas decisões quase legendárias de Jânio.

O funcionalismo público foi o alvo predileto dos “bilhetinhos”: sindicâncias, horário de dois turnos com aumento da jornada de trabalho, cortes de gastos de representação e até ordem para à devolução de carros luxuosos. Muitas vezes justos, a maioria desses bilhetes tratava de assuntos que, sem dúvida, não competiam ao presidente da República.

Jânio também proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, acabou com as corridas de cavalo em dias úteis, com as rinhas de galo, com o lança-perfume em bailes de carnaval e regulamentou o jogo de carteado. Por mais hilárias que possam ter parecido essas medidas na ocasião, 60 anos depois todas essas leis editadas por Jânio ainda continuam em vigor.

Política Externa Radical

Enquanto aplicava uma política interna de austeridade, submissa às orientações do Fundo Monetário Internacional, Jânio Quadros radicalizava progressivamente na chamada Política Externa Independente – PEI.

Essa diretriz introduziu grandes mudanças na política internacional do Brasil, transformando as bases da sua ação diplomática e representou um ponto de inflexão na história contemporânea da política internacional brasileira, que passou a procurar estabelecer relações comerciais e diplomáticas com todas as nações do mundo que manifestassem interesse num intercâmbio pacífico. Essa modalidade de fazer política externa foi firmemente conduzida pelo chanceler Afonso Arinos de Melo Franco.

Jânio levou adiante seu projeto de estabelecer relações com as recém-independentes nações africanas e do bloco socialista. Nomeou Raimundo Sousa Dantas embaixador do Brasil em Gana, sendo este o primeiro embaixador negro brasileiro. Por meio de um sem-número de bilhetes recomendava o reatamento diplomático com os países do Leste, alegando objetivos econômicos. Pronunciou-se contrário à tradição brasileira de apoio às potências colonialistas, sobretudo na África portuguesa, e favorável à admissão da China nas Nações Unidas. Em maio de 1961 recebeu no palácio do Planalto a primeira missão comercial da República Popular da China enviada ao Brasil.

O cosmonauta soviético Yuri Gagarin (a direita), o primeiro homem a ir ao espaço, recebe a Ordem do Mérito Aeronáutico de Jânio Quadros e do brigadeiro Gabriel Grüm Moss, Ministro da Aeronáutica. 

O mesmo fato se repetiu em julho com a missão soviética de boa vontade, que pretendia incrementar o intercâmbio comercial e cultural entre o Brasil e a União Soviética. As primeiras providências para o reatamento diplomático entre os dois países começaram a ser tomadas em 25 de julho, mas o processo só seria concluído durante o governo Goulart. Antes disso, em julho de 1961, Jânio Quadros condecorou com a Ordem do Mérito Aeronáutico o cosmonauta soviético Yuri Alexeievitch Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço e que visitava o Brasil. 

Essa radical mudança na política exterior do Brasil não foi bem vista pelos Estados Unidos, nem por vários grupos econômicos que se beneficiavam da política anterior e nem pela direita nacional, em especial por alguns políticos da UDN, que apoiaram Jânio Quadros na eleição.

Uma Medalha para o Che

Entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961 ocorreu em Punta del Este, Uruguai, a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social da Organização dos Estados Americanos – OEA. Nela estiveram reunidos ministros e dirigentes das economias dos países latino-americanos, incluindo Ernesto Rafael Guevara de la Serna, mais conhecido como Che Guevara, revolucionário marxista e então ministro da Economia de Cuba. A finalidade desta reunião foi discutir o então novo programa da política externa dos Estados Unidos para a América Latina, a Aliança para o Progresso, cujo intuito era desenvolver economicamente e socialmente os países latino-americanos.

Ernesto Che Guevara sendo condecorado por Jânio Quadros.

Ao fim da reunião Che Guevara viajou para a Argentina e na sequência para o Brasil. Jânio aproveitou a passagem de Guevara para pedir, com êxito, a libertação de 20 padres espanhóis presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Aproveitaram e discutiram as possibilidades de intercâmbio comercial por meio dos países do Leste europeu. Finalmente, em 18 de agosto o presidente condecorou o ministro cubano com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, o que provocou a indignação dos setores civis e militares mais conservadores.

As possíveis consequências desse ato foram mal calculadas por Jânio. Sua repercussão foi a pior possível e os problemas já começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda que, amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países e a revista dos militares. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrarem e participarem da cerimônia.

O Fim no Dia do Soldado

Uma verdadeira cruzada passou a ser desencadeada contra a Política Externa Independente de Jânio. Para seus críticos essa política nada mais era do que declarações e ações com fins publicitários e vista por muitos como uma tentativa de atenuar a tensão provocada pelas decepções com sua política interna. O certo é que a condecoração de Che Guevara foi o bastante para o jornalista Carlos Lacerda, então governador do Rio de Janeiro, da UDN, romper publicamente com Jânio Quadros. O presidente perdia assim a sua frágil base parlamentar no Congresso.

Em várias oportunidades, o ministro da Guerra, Odílio Denys, também chegou a adverti-lo sobre a insatisfação da alta hierarquia militar. No plano internacional, a situação não melhorou para o governo.

Jânio parecia ter conseguido com suas ações desagradar a gregos e troianos.

Fotograma da película que mostra a cerimônia do Dia do Soldado em 25 de agosto de 1961, o último ato que Jânio Quadros participou como presidente do Brasil.

Em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, o presidente Jânio Quadros apresentou à nação sua carta de renúncia. O seu último ato presidencial foi um terrível equívoco, uma tentativa de golpe mal arquitetada. O objetivo de Jânio Quadros era criar um clima de comoção nacional de tal modo que os ministros militares, o Congresso e a população pedissem para que ele ficasse. Seu objetivo era negociar sua permanência na presidência da República com poderes excepcionais.

O Congresso, segundo a Constituição, não tinha poderes para negociar uma renúncia, que era um ato unilateral do presidente. A única obrigação do Congresso era investir os poderes ao vice.

Jânio Quadros, ao receber a notícia de que sua renúncia foi acolhida, chorou copiosamente. Seu mandato presidencial de 206 dias (quase sete meses) foi um dos mais breves na história da presidência do país.

A população, frustrada com as medidas econômicas rígidas e com os decretos moralistas, não reagiu como o Presidente esperava. Os ministros militares se limitaram a publicar um manifesto atestando que o vice-presidente, João Goulart, que se encontrava em visita oficial à China comunista, não deveria assumir a Presidência da República por representar um perigo aos quadros democráticos e constitucionais, pois Jango seria apoiado por elementos do clandestino Partido Comunista.

O país estava à beira de uma grave crise por conta da obsessão anticomunista de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. O conflito, entretanto, foi evitado graças a uma solução política negociada: a criação da Emenda Parlamentarista.

O sistema parlamentarista era um paliativo, pois garantia a posse de Goulart, ao mesmo tempo em que retirava os poderes políticos do Executivo federal e o transmitia para o Congresso Nacional, que indicaria um Primeiro-Ministro. Desta forma, Goulart poderia voltar ao Brasil e tomar posse. Foi escolhido como Primeiro-Ministro o político mineiro Tancredo de Almeida Neves. Para Juscelino Kubitschek, que na época era senador, declarou que “a Emenda Parlamentarista foi aprovada por pressão militar”.

O sistema parlamentar, entretanto, teve vida curta. Em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito aprovou o retorno ao regime presidencial e, segundo os próprios militares, aquilo foi o início da contagem regressiva para o golpe contra Jango.

O resultado está estampado na manchete abaixo…

1924 – O CONFLITO DAS LAVADEIRAS EM NATAL

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O Baldo mostrando as roupas lavadas e dependuradas nas cercas. Uma marca de Natal no início do século XX.

O Esquecido Confronto entre As Lavadeiras do Baldo Contra Empresários Apoiados Pela Marinha do Brasil e a Atitude do Capitão-tenente Fábio Sá Earp

Rostand Medeiros – Sócio efetivo do IHGRN – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Elas eram muitas, eram pobres, eram esforçadas, eram trabalhadoras silenciosas e dedicadas ao que faziam. Na Natal do passado eram vistas todos os dias seguindo pelas ruas da cidade, principalmente descendo com suas trouxas de roupas na cabeça as ladeiras arenosas da atual Rua Princesa Isabel e da Avenida Rio Branco em direção ao Rio do Baldo, um pequeno e limpo afluente onde elas exerciam a sua profissão.

Um dia, de forma inesperada e corajosa, uniram forças contra o mais rico homem do Rio Grande do Norte daquele tempo, que junto a militares da Marinha do Brasil tentaram expulsá-las do seu tradicional local de trabalho.

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E o que houve com o oficial da Marinha do Brasil envolvido nesse episódio?

O Rio de Beber

Segundo nos conta o Professor Itamar de Souza, em seu livro Nova História de Natal (Departamento Estadual de Imprensa, 2008), obra indispensável para quem quer conhecer sobre o passado da cidade de Natal, desde o século XVII o Rio do Baldo é um dos pontos da cidade que mais aparecem nas documentações antigas.

Quando o conde Maurício de Nassau administrou a possessão holandesa que abrangia parte do Nordeste (1637-1644), trouxe com ele artistas e naturalistas que aqui estiveram para descrever paisagens, animais e buscar as riquezas da terra. Entre estes estava o alemão George Marcgrave, que visitou em Natal em 1643 e descreveu o Rio do Baldo, chamando-o Tiuru[1].

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Mapa holandês de 1650, mostrando o Rio Potengi, Natal e o afluente Tiuru, o Rio do Baldo.

Câmara Cascudo, tendo como base o trabalho de Marcgrave, assim escreveu sobre este afluente do Rio Potengi “Subindo o Potengi, da foz para as nascentes, logo após a cidade, está o Tiuru, Tiçuru diz a Descrição de Pernambuco em 1746, donde bebe o povo da cidade. É o Rio da Bica, o mesmo Rio do Baldo, ainda hoje existente em seus filetes humildes”.[2]

Outra descrição de Cascudo sobre o local “Tiçuru:- Rio da cidade do Natal, depois Rio do Baldo (1761), atravessando a Praça Carlos Gomes. Era a principal fonte de abastecimento d’água para os moradores durante mais de dois séculos. Em sua vizinhança ficou a Cruz da Bica, limite sul do sítio da Cidade, e que se tornou centro de devoção popular, a Santa Cruz da Bica, com festas em 3 de maio. De ti-ruçu, água grande, Alt. Tiuru”[3].

Cascudo também aponta que o primeiro branco que foi proprietário da área onde passava este rio foi o capitão Pedro da Costa Faleiro, que em 1677 recebeu uma carta de aforamento “no alagadiço da fonte desta Cidade”.

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Grande parte da pequena Natal do início do século XX dependia do Baldo para sobreviver.

Este alagadiço era formado por fontes e vários veios de água que desciam tanto da área mais elevada do centro velho, o atual bairro da Cidade Alta, como dos aclives para os lados dos bairros do Alecrim e Barro Vermelho. Cascudo escreveu que os moradores da primitiva Natal também chamaram o Rio do Baldo como o rio de beber água, rio da cruz, rio da bica, rio da fonte e simplesmente rio[4].

Durante os séculos seguintes o pequeno e límpido Rio do Baldo teve uma grande importância para Natal e sua gente, tendo merecido atenção das autoridades. Em algum momento do passado foi construído um aterro primitivo, com um sangradouro, para acumular vários metros cúbicos de água para uso da população. Com o tempo uma parte dessa área também ficou conhecida como Oitizeiro[5].

1912, Feira do Passo da Pátria
Feira da comunidade do Passo da Pátria em 1912, próximo a região do Baldo. Era nessa comunidade onde habitavam a maioria das lavadeiras envolvidas no conflito de 1924.

Em uma cidade pobre, o Baldo se torna um local onde muitos conseguiam a subsistência, principalmente as mulheres. Certamente existiam aqueles que transportavam água pura para as casas dos natalenses de outrora, mas também existiram as escravas que seguiam para lavarem as roupas de seus amos. Depois foram as mulheres livres, mas pobres, que realizavam esse trabalho em troca de alguns tostões[6].

E viver em Natal sem lavar uma roupa, era algo um tanto difícil de conseguir conviver desde priscas eras. Pois quem tinha o privilégio de viver neste lugar maravilhoso, localizada apenas a cinco graus ao sul da Linha do Equador, vivia debaixo de um calor abrasador. Certamente ficava bem melhor está com uma roupa lavada em um rio de água cristalina e passada no ferro aquecido com carvões em brasa, para acompanhar o lindo pôr-do-sol do Rio Potengi, sentado na calçada de casa em uma relaxante cadeira de balanço.

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Outro detalhe da região do Baldo e Oitizeiras onde as lavadeiras trabalhavam.

Muitas Histórias no Baldo

São muitos os fatos e episódios da História da capital potiguar ocorridos no local. Alguns engraçados e outros trágicos.

Henrique Castriciano comentou que em 1845 morava na velha Natal uma mulher na faixa dos 50 anos de idade, solteira, que tinha como únicas companhias uma afilhada chamada Balbina e uma cadelinha. Era uma mulher discreta, que vivia de “pequenas vendas de preparados de milho” e diziam que ela era rica, “possuidora de occulto e cobiçado tesouro”. Seu nome era Anna Marcellina e era nativa de Hamburgo, por isso conhecida por todos como Hamburguesa[7].

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Nota publicada no Rio de janeiro, extremamente cheia de erros, sobre a execução da Hamburguesa.

Certamente para fugir do calor diurno da nossa cidade, Marcellina tinha o hábito de lavar a sua roupa a noite. Mas em 13 de fevereiro de 1845, quando seguia para o Baldo, o soldado Alexandre José Barbosa, natural do Assú, matou essa mulher a cacetadas e a asfixiou empurrando seu rosto na areia. O móvel do crime foi roubar o pretenso “tesouro” que a Hamburguesa possuía e que não foi encontrado pelo assassino. Pelo crime o soldado Alexandre foi enforcado em Natal[8].

Em um dos textos sobre o crime da Hamburguesa, Henrique Castriciano deixa entender que no Baldo ocorriam cerimônias e manifestações ligadas a religiosidade afro-brasileira. Castriciano percebeu necessidade de se estudar o que ali acontecia – “Baldo, logradouro público, onde a plebe natalense, desde tempos remotos, faz nocturnas abluções e cuja inffuencia nos costumes da mesma plebe merece ser estudada por um chronista observador”.

Johann Moritz Rugendas. Lavadeiras do Rio de Janeiro, 1835.
Johann Moritz Rugendas. Lavadeiras do Rio de Janeiro, 1835. No Baldo não era muito diferente.

Independente das histórias passadas, percebemos que a área do Baldo e Oitizeiro preocupavam os políticos e o poder público no início do século XX.

Lopes Cardozo, um candidato a deputado federal nas eleições de 1890, publicou nos jornais da cidade as suas propostas para conseguir eleitores, entre estas constava a da “drenagem do Baldo” e de “quebrar a Cabeça do negro”, que nesse caso se referia a uma pedra que atrapalhava a entrada de embarcações no porto de Natal[9].

1905
Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Prefeito de Natal, que na época tinha o título de Presidente da Intendência, apresentou um interessante relatório em janeiro de 1905 que mostra interessantes visões sobre o Baldo e Natal.

Em 1904, quando uma forte seca queimou o interior do Rio Grande do Norte, o então governador Tavares de Lira utilizou os muitos retirantes que buscaram refúgio em Natal para realizarem diversos melhoramentos na cidade e um dos locais foi no Baldo. Foram feitos trabalhos de retirada de aterros de lama, limpeza da área, construção de banheiros e de uma casa para um guarda municipal zelar para que as pessoas não tomassem “banhos despidos”.[10]

Em meio a lavagens de roupas, coletas de água, banhos, despachos e mortes, parece que as festas também faziam parte da rotina daquele ponto de Natal.

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Melhorias feitas para as lavadeiras.

Antônio José de Melo e Sousa, escritor que por duas vezes foi governador do Rio Grande do Norte, comentou utilizando o pseudônimo de Lulu Capeta o quanto havia sido fraca a festa dos Reis Magos de 1902, com “poucos grupos tirando os Reis e nem uma lapinha animada”. Para Melo e Sousa a exceção naquele ano foi um “cherém” organizado no Baldo. Apesar da reclamação do escritor pela baixa qualidade dos músicos, Melo e Sousa, que a tudo escutava na sua casa por volta da meia-noite enquanto escrevia a nota para o jornal, afirmou com certa melancolia que “Aquele povo está divertindo-se, e eu a estas horas rabiscando capetadas[11].

Também naquele mesmo ano de 1902, durante o carnaval, vários grupos de foliões brincaram no Baldo em meio a muita chuva. A animação era total, quando por volta das nove e meia da noite da terça-feira gorda estourou uma briga entre os organizadores de um “Maracatu”. Não fosse a intervenção enérgica do oficial de polícia Francisco Cascudo e sua tropa, quase que um dos desordeiros foi furado a punhal. Para completar a nota os arruaceiros acabaram entrando no xadrez vestindo saias e dormiram na antiga cadeia da cidade, chamada jocosamente de “Chalet da Praça André de Albuquerque”[12].

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Conflito Contra a Marinha

As lavadeiras do Baldo e Oitizeiro, juntamente com o seu pesado trabalho faziam parte do cotidiano e da paisagem de Natal.

Em 1924 a cidade evoluía e quem chegava de Recife no trem da Great Western, tinha o primeiro vislumbre da cidade ao passar na região do Baldo e via a labuta daquelas mulheres.

Um dia, aos primeiros raios do sol, as lavadeiras que chegavam ao seu local de trabalho encontraram alguns homens munidos de materiais para a construção de uma cerca, fechando o acesso para a área de trabalho delas e derrubando os banheiros. Além dos trabalhadores, oficiais de justiça estavam munidos de documentos para sacramentar a ordem judicial.

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A região do Baldo e Oitizeiro visto a partir da linha do trem da Great Western. Quem vinha nesta composição de Recife tinha o primeiro vislumbre da cidade ao passar na região do Baldo e via a labuta daquelas mulheres.

O fato se deu em uma sexta-feira, 14 de março e, segundo o matutino natalense O Jornal do Norte, cujo redator era o advogado e jornalista João Café Filho, as mulheres não aceitaram a realização do trabalho daqueles homens e logo estalou um conflito. Não existem detalhes de como se deu os atos de violência, mas Café Filho aponta que as mulheres partiram para cima, derrubaram a cerca recém-colocada e não deixaram o serviço continuar. Na sequência o encarregado ameaçou chamar os homens da Armada, um nome comum na época para designar a Marinha do Brasil.

Hoje Natal é o porto de alguns navios de guerra da Marinha, sedia o Comando do 3° Distrito Naval, a grande Base Naval Ari Parreira, o Grupamento de Fuzileiros Navais e outras unidades menores. Mas em 1924 as unidades militares da Marinha na capital potiguar se restringiam a Escola de Aprendizes Marinheiros, hoje extinta, e a Capitania dos Portos do Rio Grande do Norte[13]. Logo os marinheiros e o comandante da Capitania chegaram ao Baldo.

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Fábio Sá Earp na Inglaterra.

O oficial comandante era o capitão-tenente Fábio Sá Earp, que informou ter os trabalhadores direito de realizarem seu serviço, pois o terreno era da Marinha e fora aforado pelo empresário Manoel Machado.

Provavelmente o homem mais rico do Rio Grande do Norte no seu tempo, Manoel Duarte Machado era natural de Portugal, mas já morava há alguns anos em Natal onde fez fortuna. Aqui casou com a nativa Amélia Duarte Machado, que lhe proporcionou uma longa união, mas que não deixou filhos. Aparentemente são os investimentos em terras, onde ele tinha muita visão na hora das aquisições, que fez aumentar seus rendimentos.

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A prática do aforamento em si nada tinha de errado e este é como se chama até nossos dias o contrato entre um órgão público que é dono de alguma área, ao qual um particular adquire de forma perpétua o direito à posse, uso e gozo daquele bem. Diz-se, portanto, que o particular, chamado foreiro, é o titular do domínio útil, obrigando-o ao pagamento anual do foro.

Apesar de legal, para o jornalista Café Filho o rico empresário Manoel Machado desejava aquele terreno para “plantar capim”. Junto a Manoel Machado, contava como interessado no aforamento o comerciante Thomaz da Costa Filho.[14]

O capitão Sá Earp buscou argumentar com as lavadeiras que realmente o terreno onde trabalhavam pertencia à Marinha, cujo domínio útil estava sendo cedido através do aforamento a Manoel Machado e Thomaz da Costa. Evidentemente que aquelas mulheres simples não sabiam e não entendiam nada daquilo. Mas elas sabiam o valor do seu trabalho e unidas disseram não ao oficial naval.

Recuo Inusitado dos Militares

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Membros do Esquadrão de Cavalaria da Força Pública, a atual Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte na década de 1920.

Para piorar a já frágil situação daquelas mulheres, surgiu da Cidade Alta uma tropa do Esquadrão de Cavalaria da Força Pública, a atual Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte. Eram vinte homens montados em cavalos, armados com cassetetes e comandados pelo tenente Francisco Barbosa. Na cola dos policiais e de suas alimárias começou a juntar muita gente e a tensão reinante só cresceu.

A notícia da época conta que as duas partes, as lavadeiras e os membros do Estado, se encaravam. Uma das partes com paus, pedras, machados, foices, mãos de pilão e a outra com armas de fogo e cassetetes. As lavadeiras tinham até mesmo uma posição que Café Filho chamou de “ar de sarcasmo” diante da tropa fardada.

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Fábio Sá Earp em 1918

O carioca Fábio Sá Earp, como oficial militar de uma força federal era, sob todos os aspectos vigentes do seu tempo, um homem com muito poder. Não dá nem para comparar com os dias atuais a força que os militares da década de 1920, tanto na teoria quanto na prática, possuíam sobre os brasileiros. O nosso país era então uma nação convulsionada, com várias revoltas e que vivia quase que permanentemente debaixo de Estado de sítio[15].

Bastava o oficial naval dá uma simples ordem para que seus comandados, bem como a força policial estadual, passasse por cima das lavadeiras e de quem mais se opusesse. Quem ficasse no meio que aguentasse as consequências.

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Antiga sede da Capitania dos Portos de Natal, atual Capitania das Artes.

Então houve algo inesperado para a maioria dos espectadores presentes – O capitão-tenente Fábio Sá Earp e o tenente Francisco Barbosa entraram em um entendimento e decidiram recuar suas tropas. Além disso, segundo relata Café Filho, estes oficiais mandaram suspender os serviços, ficando estabelecido que as lavadeiras fossem ressarcidas dos seus prejuízos, com a polícia garantindo o cumprimento das ordens e o direito do trabalho das mulheres.

Consta que em 1924 a causa das lavadeiras era de extrema aceitação positiva por parte da população de Natal. Até porque, quem é que iria lavar a roupa suja do povo dessa terra?

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Um pouco de como a mídia da época viu o conflito.

Bem, poderíamos concluir este texto com a alma lavada pela sensação de vitória das mais fracas diante dos gladiadores fardados e do poder do capital.

Mas, novamente utilizando os escritos de Café Filho, sabemos que bastou o clima de tensão esfriar, a multidão se dispersar, a noite cair e os policiais saírem da área de litígio, para os trabalhadores de Manoel Machado e Thomaz da Costa Filho refazerem a cerca no meio da madrugada. Mas nem bem o dia amanheceu as lavadeiras derrubaram todo serviço feito na calada da noite e ainda sobraram cacetadas para os construtores da cerca. As mulheres então buscaram a ajuda profissional de um advogado para impetrar um habeas corpus.

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O caso então desaparece do matutino Jornal do Norte. Entretanto, de uma forma ou de outra, as lavadeiras do Baldo continuaram por lá por um bom tempo. Acredito que o que acabou com seu trabalho foram as mudanças dos costumes, as mudanças laborais, a poluição no velho Rio do Baldo e os avanços tecnológicos[16].

Ao realizar esse texto ficou uma curiosidade – O porquê do capitão-tenente Fábio Sá Earp recuar diante de frágeis e pobres lavadeiras?

Esse militar naval, carioca oriundo de uma nobre família da região serrana do Rio de Janeiro, com forte tradição de participação de seus membros junto a Marinha do Brasil, era antes de tudo um grande profissional, possuía um forte caráter pessoal e, por ser como era, pagou um alto preço profissional na Força Naval pelo seu pensamento e atitudes.

Um Alto Preço

Durante a Primeira Guerra Mundial o Brasil teve uma participação muito mais simbólica do que efetiva. Mesmo assim enviou para a Inglaterra um grupo de oficiais navais para se formarem como pilotos, treinando em hidroaviões da Royal Navy. Esse grupo de brasileiros, que chegou até mesmo a realizar missões de patrulha, era comandado pelo capitão-tenente Manoel Augusto P. de Vasconcellos, potiguar de Natal, e entre seus comandados estava o então primeiro-tenente Fábio Sá Earp. 

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Militares brasileiros enviado a Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. Da esquerda para direita vemos Lauro de Araújo, Heitor Varady, Eugênio Possolo, Virgínius B. Delamare, Olavo Araújo, o potiguar Manoel Augusto P. de Vasconcelos e Fábio Sá Earp.

Além de oficial naval e piloto de avião Sá Earp era querido pelos seus colegas e comandados. Estava sempre participando de atividades aéreas sobre o Rio de Janeiro, então Capital Federal, voando aeronaves “Machi 9”, de fabricação italiana, ou “MF”, de fabricação norte-americana[17].

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Mas um dia em 1922, em meio às muitas crises políticas ocorridas durante o governo do Presidente Artur Bernardes, ele e outros oficiais navais se recusaram a realizar uma passagem a baixa altitude na Avenida Rio Branco, centro do Rio, saudando o Presidente da República. Para entender um pouco melhor esse fato, leia abaixo a nota do jornal carioca A Noite, de 28 de abril de 1922, na 1ª página.

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Fábio Sá Earp e seus companheiros pagaram um preço muito, muito alto, por não desfilar para o despótico Bernardes. De saída ele perdeu suas “asas” de piloto, sendo excluído da Aviação Naval. Perdeu também a oportunidade de ir para os Estados Unidos para acompanhar a construção de aeronaves destinadas a nossa Marinha[18].

Apesar de ter sido promovido por antiguidade a capitão-tenente, recebeu como punição maior a transferência para Natal, então uma cidade distante de tudo e de todos. Aqui chegou com sua esposa no início de julho de 1923 e assumiu o cargo de Capitão do Porto.

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Mesmo passando por tantos problemas, na capital potiguar Sá Earp não se tornou uma pessoa rancorosa e nem complicada. Pelo contrário, era operativo e laborioso. O próprio jornalista Café Filho comentou na notícia do caso das lavadeiras, que após o capitão Sá Earp desembarcar em terras potiguares ele deu continuidade ao trabalho do seu antecessor no melhoramento das colônias de pescadores da região, tendo recebido elogios da sociedade local.

Mas logo depois do problema das lavadeiras, mais precisamente em dezembro de 1924, um ano e meio após chegar a Natal, Fábio Sá Earp foi transferido para ser o segundo em comando da Escola de Aprendizes de Marinheiros de Recife.

Não sei nessa época como era o tempo de rotatividade dos comandantes na direção da Capitania dos Portos de Natal, mas fico com o pensamento que as ações do capitão Sá Earp nesta cidade parece que não foram bem vistas pela elite local. Talvez algum pesquisador com maior capacidade do que a minha possa dizer que estou equivocado, mas percebo que  sua permanência a frente da nossa Capitania rápida e a ele, um piloto naval formado na Inglaterra, coube uma transferência para assumir uma função secundária, em uma escola naval no distante Nordeste do país.

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Diário de Pernambuco, 18 de dezembro de 11924, pág. – 2

Mesmo nessa situação o capitão-tenente Fábio Sá Earp continuou a realizar o seu trabalho de forma correta e positiva. Ele chegou a participar de uma interessante pesquisa sobre a questão da pesca no Atol das Rocas[19].

Com o tempo e as mudanças no curso da política do país, o oficial naval Fábio Sá Earp voltou a Aviação Naval e em 1942 se incorporou a recém-criada Força Aérea Brasileira (FAB). Ainda durante a Segunda Guerra Mundial comandou uma representação da FAB na Inglaterra e depois chegou ao posto de brigadeiro [20].

Mas aqueles eram outros tempos, onde talvez a ponderação já não estivesse mais presente na mente e nem no coração do velho aviador!

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Fábio Sá Earp na FAB na década de 1950 – Fonte – FGV

Pois foi Fábio Sá Earp quem deu voz de prisão ao mítico Nero Moura, antigo comandante do 1° Grupo de Aviação de Caça da FAB que combateu na Itália durante a Segunda Guerra. O fato se deu no final de outubro de 1945, quando os militares derrubaram Getúlio Vargas e Nero Moura se posicionou contrariamente ao golpe. Sá Earp era seu superior hierárquico e o deteve nas dependências do quartel-general da III Zona Aérea[21].

NOTAS


[1] Segundo a etimologia o Tiuru é de origem tupi, possivelmente correlacionado a tyuru, a bexiga, termo este está no dicionário do Padre Manoel Moraes, (Marcgrave, 1648), pg.276.

[2] Ver Câmara Cascudo, Luís da: GEOGRAFIA DO BRASIL HOLANDES, Livraria José Olímpio Editora, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1ª Edição, 1956.

[3] Ver Câmara Cascudo, Luís da: NOMES DA TERRA, Fundação José Augusto, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 1ª Edição, 1968.

[4] Ver Câmara Cascudo, Luís da: História da cidade do Natal, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2ª Edição, 1980.

[5] Sobre a questão das denominações envolvendo a área do Rio do Baldo, esta parece ser a denominação mais tradicional e antiga. Entretanto a partir de certa época os textos antigos colocam na mesma região o local “Oitizeiro”. Inclusive a primeira usina de fornecimento de energia elétrica da Natal, cujos motores ficavam na esta área, era chamado de Usina do Oitizeiro. Procurei os conhecimentos dos amigos Manoel Medeiros de Britto, advogado e ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grand do Norte, e do Professor Claudio Pinto Galvão, para tirar esta dúvida. Ambos não me souberam dizer onde começava uma e terminava outra. Os dois acreditam que ambas as denominações apontavam para a mesma área.

[6] Certamente a existência dessas várias mulheres lavando roupas determinou que, em algum momento da História de Natal, alguém tratou o sebo e fabricou sabões primitivos.

[7] Hamburgo atualmente é uma grande cidade na Alemanha, mas em 1814 era uma Cidade Estado, com o título oficial de “Cidade Livre e Hanseática de Hamburgo”, junto com outros 38 estados soberanos que faziam parte da federação alemã.

[8] Ver jornal A República, edições de 26 e 27 de fevereiro de 1907, respectivamente terça e quarta feira, sempre na página 2.

[9] Ver jornal A República, edição de 16 de julho de 1890, quarta feira, página 3.

[10] Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Prefeito de Natal, na época tinha o título de Presidente da Intendência. Ver jornal A República, edições em várias datas no mês de janeiro de 1905. O relatório é apresentado sempre com o título “Relatorio apresentado a intendencia eleita para o triennio 1904 a 1907 por ocasião de sua posse em 1 de janeiro de 1905”.

[11] Ver jornal A República, edição de 16 de julho de 1890, quarta feira, página 3.

[12] Ver edições do jornal A República, de 12 e 13 de fevereiro de 1902, respectivamente quarta e quinta feira, sempre nas 1ª páginas.

[13] Naquele tempo, até mesmo pela ausência do transporte aéreo, tudo que se referia ao tráfego marítimo de cargas e passageiros chamava muito a atenção de toda nação, consequentemente a Capitania dos Portos era uma instituição militar de uma importância bem mais intensa que nos dias atuais. Sempre que havia mudança de seus comandantes, os novos oficiais que aqui chegavam eram saudados com toda pompa e circunstância pelos Presidentes de Província e depois pelos Governadores potiguares. Criada pelo Imperador Dom Pedro II, através do Decreto n.º 539, de 3 de outubro de 1847, certamente esse é um dos órgãos mais antigos da administração pública federal no Rio Grande do Norte.

[14] Consta que o aforamento se confunde até nosso dias com a enfiteuse. Antes, o aforamento tinha feição própria, distinta da enfiteuse. O aforamento recaía sobre toda sorte de bens, solo e superfície, prédios incultos ou cultivados, chãos vazios ou edificados. A enfiteuse só incidia sobre terrenos incultos ou chãos vazios. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Enfiteuse

[15] Nessa época o presidente brasileiro era o advogado mineiro Artur da Silva Bernardes, que governou o Brasil entre 15 de novembro de 1922 e 15 de novembro de 1926 e governou utilizando o Estado de sítio durante quase todo seu governo. O Estado de sítio é um estado de exceção, instaurado como uma medida provisória de proteção do Estado, quando este está sob uma determinada ameaça, como uma guerra ou uma calamidade pública. Esta situação de exceção tem algumas semelhanças com o estado de emergência, porque também implica a suspensão do exercício dos direitos, liberdades e garantias. Ver https://www.significados.com.br/estado-de-sitio/

[16] Não encontrei uma única vírgula sobre o tema publicado pelo jornal natalense “A República”, o jornal oficial do governo estadual potiguar.

[17] Ver Revista Marítima Brasileira, pág. 902, edição 86, 1920, Imprensa Naval, Rio de Janeiro-RJ.

[18] Sobre este episódio ver, considerado uma rebelião na época, pode ser lido no jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edições de 28 de abril (pág.1), 4 de maio (pág.2), 8 de maio (pág.2), 29 de maio (pág.3), 14 de junho (pág.3), 16 de junho (pág.2) e 12 de setembro (pág.5), todas as edições do ano de 1922. Fabio Sá Earp tinha nessa época como um dos seus colegas o aviador naval Djalma Petit, que ficaria muito conhecido no Rio Grande do Norte como instrutor aéreo e um dos fundadores do Aeroclube local.

[19] Ver Revista Marítima Brasileira, respectivamente na pág. 846, edição 124, 1932 e na pág. 264 e 265, edição 125, 1933, ambas publicadas pela Imprensa Naval, Rio de Janeiro-RJ.

[20] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta-feira, 4 de novembro de 1943, pág. 1.

[21] Ver http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/moura-nero

 

A POTÊNCIA DO NÃO: NISE DA SILVEIRA E MARY WOLLSTONECRAFT

Em 1944, após oito anos de perseguição política e afastamento, a médica Nise da Silveira tinha acabado de ser readmitida no serviço público quando se negou a realizar a prática da lobotomia. O não de Nise a um tratamento que seria considerado intolerável na psiquiatria seria um verdadeiro marco. Mesmo assim, Nise da Silveira só alcançou um reconhecimento maior depois que o psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung legitimou o seu trabalho.

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“Fala-se na fonte da sabedoria e na fonte da loucura. Mas elas não são duas. Não há fontes separadas, está tudo muito próximo.”
– NISE DA SILVEIRA

Autora – Daniela Lima

“A senhora vai aprender as novas técnicas de tratamento. Vamos começar pelo eletrochoque”, o psiquiatra apertou o botão e um jovem paciente entrou em convulsão. A expressão de terror foi se aprofundando no rosto dele, até que seu olhar ficasse parado. Vítreo. Vazio de tudo. Antes que ele pudesse se recuperar, foi levado para a enfermaria. Logo trouxeram outro paciente para outra aplicação de choque. O psiquiatra se virou para a senhora a quem pretendia ensinar e disse: “aperte o botão!”. Ao que ela respondeu: “não aperto!”. Era 1944 e Nise da Silveira tinha acabado de ser readmitida no serviço público após oito anos de perseguição e afastamento.

Durante esses anos todos que passei afastada, entrou em voga na psiquiatria uma série de tratamentos e medicamentos novos que antes não se usavam. Aquele miserável daquele português, Egas Moniz, que ganhou o prêmio Nobel, tinha inventado a lobotomia. Outras novidades eram o eletrochoque, o choque de insulina e o de Cardiazol. (SILVEIRA apud MELLO, 2014, p. 89)

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Carl Gustav Jung (1875 – 1961) – Foto Douglas Glass/Paul Popper/Popperfoto/Getty Images – Fonte – http://pablo.deassis.net.br/tag/carl-jung/

O não irredutível de Nise mostrou os primeiros contornos daquilo que seria considerado intolerável no tratamento psiquiátrico por todos aqueles que vieram depois dela – de Foucault a Basaglia. Mesmo assim, Nise só alcançou um reconhecimento maior depois que Jung legitimou o seu trabalho. O que fala muito de uma sociedade que ainda reduz a reverberação, ou até mesmo silencia, as vozes femininas que não são amplificadas por vozes masculinas.

A doutora vermelha

Nise chegou ao Rio de Janeiro em 1927, movida pela vontade de estudar neurologia. Ela e o marido, Mário Magalhães da Silveira, alugaram um quarto em Santa Teresa e foram surpreendidos pela vista da Baia da Guanabara e pela vizinhança que deixava ao alcance dos olhos a vida de escritores e militantes políticos. Certo dia, Nise percebeu um jovem batendo insistentemente na porta de Manuel Bandeira. Da janela, disse: “ele acabou de pegar o bonde”. Nise sabia que Bandeira estava em casa, mas a pequena mentira rendeu uma amizade com o poeta que, no dia seguinte, entregou a ela um livro com uma dedicatória em agradecimento. Esses encontros inesperados pareciam guardar um potencial explosivo para produção do novo.

Com o pouco dinheiro que me restava (…) aluguei um pequeno quarto no Curvelo, em Santa Teresa, quarto modesto, mas de onde eu gozava de uma paisagem maravilhosa. Rua muito pobre. Porém, tive a sorte de ter vizinhos extraordinários. De um lado, a família do líder comunista, muito culto, Octávio Brandão (…). Para enriquecer ainda mais essa rua, morava ali o poeta Manuel Bandeira. (Silveira apud Mello, 2014, p. 61)

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A jovem Nise da Silveira – Fonte – http://semana.mct.gov.br/index.php/content/view/3546/Nise_da_Silveira_.html

Esse encontro inesperado entre a medicina, a poesia e a política abriram janelas para que Nise se tornasse quem era: ela não se atinha a livros, tratados e convenções, estava sempre questionando o saber estabelecido. Começou a estudar Marx e frequentar reuniões do Partido Comunista Brasileiro, também fez parte da ala médica da União Feminina Brasileira (UFB), que defendia os interesses de mulheres que viviam em situação precária.

Eu era interessada nas coisas políticas do país, mas sempre tive muita dificuldade em me acomodar em organizações. Eu não me acomodava dentro do Partido Comunista. Eu queria fazer concurso para medicina e os companheiros de partido não se conformavam que eu me dedicasse tanto tempo a esse concurso. Eu estudava dia e noite e, naturalmente, faltava muito às reuniões. Acabaram me expulsando acusada de trotskista. (Idem, p. 67)

Em outubro de 1932, Nise foi morar no Hospital da Praia Vermelha como médica residente. Ficava num pequeno quarto com mesa, cama e uma pia. Ela trabalhava no Instituto de Neurologia, mas estava sempre caminhando entre os pacientes internados no hospício que funcionava num prédio próximo.

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Jornal Correio da Manhã, 7 de março de 1934, p. 7 – Médica recém formada, Nise da Silveira não fugia dos embates públicos. Na foto uma resposta pública de Nise da Silveira ao Dr. Henrique Britto de Belford Roxo (1877 — 1969), médico psiquiatra, sobre a repercussão da morte de uma interna.

Nos livros lia-se que os esquizofrênicos não possuíam afetividade. Comecei a desconfiar dos livros. Morando no hospício, compreendi que não havia nada disso. Eles possuíam afetividade. O problema era como vir à tona. (…) A própria palavra hospício já criava um clima apavorante. Eu andava muito por ali e observava as mulheres internadas. E gostava muito delas. Comecei a me interessar por aquele mundo. (…) Não tive dúvidas iria me especializar em psiquiatria. (…) Desde cedo não concordava com os livros. Via a realidade dos doentes mentais e achava que os médicos da psiquiatria convencional, oficial, não estavam certos. Eram rígidos e partiam de princípios errados. (Idem, p. 70)

Encontrei uma moça que andava de um lado para o outro, como um azougue. Ela não conseguia construir uma frase. Tentei me comunicar (…). Ela não respondeu. Logo em seguida, veio a funcionária da lavanderia, que começou a preencher um rol de roupas e escreveu a palavra peignoir de maneira errada. Qual não foi a minha surpresa ao ver a moça parar, deter-se sobre aquela folha de papel e corrigir a palavra. Nesse momento, compreendi que tinha tentado me comunicar com ela de maneira muito limitada, muito clara, óbvia para mim, mas sem procurar entendê-la. Talvez ela andasse de um lado para outro exatamente para esquecer aquele mundo exterior, que eu vim lembrar a ela, achando que seria o único caminho para nos entendermos. (…) Você não pode querer compreender alguém estabelecendo apenas uma maneira de se aproximar dele. O importante não é a linguagem, é saber se comunicar com o outro. Se não, é como falar português com um árabe. (Idem, p. 71)

Menos de um ano depois de chegar ao Hospital da Praia Vermelha, Nise foi aprovada no concurso para médica psiquiatra da Divisão Nacional de Saúde Mental.

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Fonte – http://www.cultura.rj.gov.br/artigos/dez-anos-sem-a-dama-do-inconsciente

Em fevereiro de 1936, início da Ditadura Vargas, a União Feminina Brasileira (UFB) foi fechada. Nise foi presa pela primeira vez por trabalhar como médica voluntária da UFB. Essa prisão durou apenas algumas horas. No entanto, um mês depois, Nise foi presa novamente e levada para o DOPS, sendo transferida para o Presídio Frei Caneca, onde permaneceu até junho de 1937. O mais curioso da prisão de Nise é que ela foi acusada de “pertencer a um círculo de ideias incompatíveis com a democracia” (MELLO, 2014, p. 75).

Uma enfermeira do hospital [da Praia Vermelha] denunciou Nise ao diretor, acusando-a de ter em seu quarto “literatura comunista” em meio a livros de psiquiatria. (…) Enquanto Nise ficou presa, ela permaneceu na famosa Sala Quatro, o cárcere das presas políticas. (MELLO, 2014, p. 13)

Depois que me transferiram para a famosa Sala Quatro onde estavam, entre outras, Olga Prestes, grávida, e Elisa Berger (…). Elisa era fantástica! O marido, Harry Berger, também estava preso e sofreu até enlouquecer. Eles torturavam Berger de uma maneira terrível. (…) Ouvir aquilo tudo me atingiu muito. (…) a prisão foi uma experiência decisiva para a minha vida. (SILEVEIRA apud MELLO, 2014, p. 76)

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Um fato pouco conhecido foi que durante a prisão de Nise da Silveira, intercedeu ao seu favor João Café Filho, então deputado federal pelo Rio Grande do Norte e futuro Presidente da República.

Na prisão, Nise conheceu também o escritor Graciliano Ramos, que descreveu o encontro dos dois no livro Memórias do Cárcere: “noutro lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos” (RAMOS apud MELLO, 2014, p. 77).

Mais de um ano depois, já em liberdade, Nise soube que Luiza, uma paciente com quem conversava muito e que costumava fazer café para as duas, derrubou a enfermeira delatora com um soco. Luiza era considerada “completamente embotada afetivamente e desligada da realidade” e, no entanto, agia com um extraordinário – e violento – senso de justiça. Esse episódio voltou à cabeça de Nise nos oito anos de afastamento do serviço público: o louco extrapolava o livro e os diagnósticos que pareciam querer aprisioná-lo tanto quanto o tratamento. A experiência do cárcere trouxe não só um possível paralelo entre a prisão e o hospício como também mostrou a Nise que a criatividade e o afeto têm potencial de cura. Era nas leituras e nas longas conversas com os companheiros de prisão que ela se sentia livre.

Um encontro possível: Nise e Wollstonecraft

Nise da Silveira nasceu em 1905, em Maceió. Com apenas 16 anos, foi aprovada no exame para a Faculdade de Medicina da Bahia. Era a única mulher numa turma de 157 homens.

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Faculdade de Medicina depois de 1905 – Fonte – http://www.medicina/ufba/br

Houve um episódio que mostra bem o preconceito (…) em relação ao fato de Nise, uma mulher, estar “ousando” estudar medicina… Numa das primeiras aulas, o professor de parasitologia, Pirajá da Silva, falou que ia ser criado um serpentário na faculdade. Em seguida, entrou na sala seu assistente com uma serpente dentro de um vidro. O professor pinçou-a e pediu que Nise segurasse o animal diante da turma. Ela imediatamente estendeu os braços e segurou o animal. Ela comentava comigo que neste instante percebeu nos olhos do professor a representação do mal, mas que se manteve firme. (MELLO, 2014, p. 52)

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Nise da Silveira é a única mulher na foto – Fonte – https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/02/a-potencia-do-nao-nise-da-silveira-e-mary-wollstonecraft/

Mais de um século após a publicação de Reivindicação dos Direitos da Mulher, Nise via erguerem-se em tono de si muros semelhantes aos que separavam Mary Wollstonecraft de conquistar a cidadania plena. A conquista dos direitos pelas mulheres nunca é permanente. É necessário um estado de constante vigilância diante dos possíveis retrocessos. Nise não foi enviada à guilhotina, como aconteceu com Olympe de Gouges, mas teve que estremecer o muro tão sólido quanto invisível da falsa razão.

Empregam a razão para justificar preconceitos, assimilados quase sem saber como, em vez de desarraigá-los. Prevalece uma espécie de covardia intelectual que faz com que muitos homens recuem diante da tarefa ou simplesmente façam pela metade. No entanto, as conclusões imperfeitas a que chegam são, com muita frequência, muito plausíveis, porque se constroem a partir de uma experiência parcial e de pontos de vista justificados, ainda que estreitos. (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 32)

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Mary Wollstonecraft (1759 – 1797) – Fonte – http://www.thehistoryvault.co.uk/iconic-texts-dr-jenny-mcauley-on-vindication-of-the-rights-of-woman-by-mary-wollstonecraft/

A luta de Nise contra “a incompreensão dos psiquiatras e a violência dos tratamentos” (MELLO, 2014, p. 20) parece ter se apoiado nas palavras de Wollstonecraft. Um dos maiores símbolos dessa luta – e das terríveis perdas que Nise enfrentou pelo caminho – foi a lobotomia de um de seus pacientes.

Lúcio frequentava o Serviço de Terapêutica Ocupacional, fundada por Nise em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional. Esculpia guerreiros que, segundo ele, o protegeriam na sua “luta cósmica contra as forças do mal” e chegou a participar de uma exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

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Fonte – https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/02/a-potencia-do-nao-nise-da-silveira-e-mary-wollstonecraft/

Ele foi lobotomizado na mesma época da exposição, apesar de todas as investidas de Nise contra a tal cirurgia. “Vão decapitar um artista”, ela dizia. Nise publicou na revista Medicina, Cirurgia Farmácia de janeiro de 1955 a produção plástica de Lúcio antes e depois da operação. Seus trabalhos se tornaram irreconhecíveis, regredindo à mais primária condição. Esse exemplo de destruição da criatividade e da inteligência de um ser humano foi denunciado por Nise de diversas maneiras: em livros, palestras e no Primeiro Congresso Mundial de Psiquiatria, em Paris. (MELLO, 2014, p.20)

A lobotomia, hoje considerada um dos episódios mais bárbaros da história da psiquiatria, rendeu um Nobel a Egas Moniz. Fato que poderia ser confrontado com as seguintes palavras de Wollstonecraft: “até a verdade se perde em um emaranhado de palavras, a virtude se perde nas formas e o conhecimento se transforma em um sonoro nada por causa dos preconceitos enganadores que assumem seu nome”.

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Nise da Silveira mudou a maneira como os pacientes psiquátricos eram tratados. (Foto: Reprodução/TV Gazeta) – Fonte – http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-anos/noticia/2015/03/confira-lista-de-grandes-mulheres-que-marcaram-historia-do-rio-veja-10.html

A atualidade do pensamento de Nise e Mary nos lembra de que, mesmo os direitos já conquistados, não são permanentes. Seja para a Luta Antimanicomial, recentemente ameaçada pela nomeação de Valencius Wurch para a Coordenação Nacional de Saúde Mental; seja para o feminismo, que sofre duros ataques do atual Congresso.

Para evitar essas sucessivas “decapitações” e “reconstruções de velhos muros”, é necessário transformar o “não” das mulheres que vieram antes de nós em força coletiva. Nas palavras de Wollstonecraft: “trabalhar reformando a si mesma para reformar o mundo”.

FONTE – https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/02/a-potencia-do-nao-nise-da-silveira-e-mary-wollstonecraft/


Bibliografia:

MELLO, Luiz Carlos. Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro: Automática, 2014.
SILVEIRA, Nise da. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos Direitos da Mulher. São Paulo: Boitempo, 2015.

A LUTA ENTRE OS MAIA E OS SUASSUNA NO SERTÃO PARAIBANO

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Imagem meramente ilustrativa – Foto – Rostand Medeiros

Autor – Rostand Medeiros

Na história do Nordeste do Brasil as lutas envolvendo as tradicionais famílias do sertão, que culminaram em sangrentas confrontações, sempre foram situações que marcaram a memória de muitas localidades.

Este fenômeno jamais foi exclusivo desta parte do Brasil, mas nesta região ocorreu com uma frequência preocupante e com exemplos de extrema brutalidade que, em alguns casos, perduram até hoje.

As razões para os conflitos foram inúmeras, mas duas situações se mostram presente na maioria destes casos: questões de terras e hegemonia do poder político.

Utilizando muitas vezes os terríveis combustíveis da vingança e do sacrossanto dever do homem sertanejo de “lavar a honra”, estas contendas deixaram marcas intensas, ceifando vidas até de quem não tinha nada haver com estes problemas.

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Imagem meramente ilustrativa – Foto – Rostand Medeiros

Estes conflitos eclodiram, cresceram, extinguiram várias vidas e, na maioria das vezes, se retraíram diante das repercussões das mortes ocorridas, ou das ações dos agentes do Estado na tentativa de manter a ordem, por não ter mais quem desejasse combater, ou cansaço mesmo..

Com a ampliação dos meios de comunicação no Nordeste algumas destas lutas ganharam pelo país afora ares de verdadeiras batalhas épicas, marcando de forma indelével muitas comunidades.

Não faltaram aqueles que rezaram fervorosamente e ascenderam maços de velas pelo fim do problema e o retorno da paz.

Normalmente estes confrontos familiares acabavam sem ser apontado algum vencedor hegemônico, ou algum clã derrotado na sua totalidade. No final todos os que participavam eram perdedores.

A cidade paraibana de Catolé do Rocha presenciou um destes casos a partir da segunda década do Século XX.

Aqui está um pouco desta história.

Todos Enredados na Mesma História de Terror

Composta de homens valentes e denodados, o caso de Catolé do Rocha envolveu as famílias Maia e Suassuna, onde a querela entre estes grupos perdurou por décadas e chegou a ter sido destacadamente noticiado em periódicos de todo Brasil.

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Edição de domingo do Jornal do Brasil, dia 24 de novembro de 1985, com a reportagem do jornalista paraibano José Nêumanne Pinto sobre a luta dos Maia e Suassuna.

Em 1985, mais precisamente na edição de domingo, dia 24 de novembro, o jornalista paraibano José Nêumanne Pinto apresentou nas páginas do Jornal do Brasil uma magistral reportagem sobre este conflito, onde apontava que a luta entre as duas famílias já durava mais de 50 anos.

Nêumanne mostrou na época, com extrema propriedade, que aquela era “Uma história antiga, especial para corações fortes. Seus personagens são homens rudes do sertão. Não importa se um – João Agripino de Vasconcelos Maia Filho – já foi até ministro (De Minas e Energia, na época do governo Jânio Quadros), ou o outro é um bem-sucedido empresário do Rio (Ney Suassuna, na época da reportagem proprietário do Colégio Anglo-americano e diretor da Associação Comercial da Barra da Tijuca), ou se um terceiro, José Agripino Maia, é governador de estado (Rio Grande do Norte) e se um quarto é conhecido internacionalmente como escritor (Ariano Suassuna). Na verdade, mesmo que alguns tentem fugir, todos estão enredados nesta mesma história de terror, cujo mais recente capítulo ainda não está para acontecer”.

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Foto de Catolé do Rocha, realizada pelo escritor paulista Mário de Andrade, quando esteve neste município paraibano em janeiro de 1929 – Fonte – revistacarbono.com

Segundo o jornalista Nêumanne, o clã dos Suassuna no sertão paraibano originou-se a partir de um padre que se chamava Felipe, deixou a batina e se estabeleceu em Catolé do Rocha. Era descende das famílias Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco. Pertenceram a família o Visconde de Albuquerque e o Marquês de Muribeca, que foi lente da Faculdade de Direito de São Paulo.

Já os Maia vem de Francisco Alves Maia, descendente de portugueses desembarcados em praias cearenses e primeiro membro destacado da família na política. Conhecido como coronel Maia foi o responsável por enviar seus descendentes para estudarem em faculdades, como as de Direito de Recife e São Paulo e a de Medicina em Salvador. Este pensamento avançado para a época criou entre os seus descendentes a importância dos estudos para ascensão social, política e profissional.

O Início

Para o jornalista José Nêumanne Pinto, igualmente sertanejo da cidade paraibana de Uiraúna, a raiz do conflito entre os Maia e Suassuna era eminentemente uma rixa política. Para ele muito raramente as duas famílias cerraram fileiras em uma mesma causa, em um mesmo partido e o tempo só fez com que se distanciassem cada vez mais. A última ocasião que Maia e Suassuna foram do mesmo partido aconteceu na época que no Brasil o Presidente da República era o paraibano Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa.

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Mas o fato que acende a chama, o que detonou tudo, começou mesmo em 1922, quando Francisco Sérgio Maia, o Chico Sérgio, filho do coronel Sérgio Maia, queria namorar Noemi Suassuna, a mais bela cunhada de Christiano Suassuna.

Este tentou impedir o namoro por considerar Chico Sérgio uma pessoa de pouca saúde. Não podemos esquecer que naquelas primeiras décadas do século passado, com medicina bem limitada, mesmo que o pretendente fosse de boa família, o seu estado de saúde era algo a ser considerado pelas famílias de uma jovem na aprovação de uma futura relação. Mas o caso em questão envolvia outras pequenas desavenças e provocações na área política entre as duas principais famílias de Catolé do Rocha e aquela recusa adicionou mais lenha a fogueira.

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Catolé do Rocha na atualidade.

Com a intenção de dar um susto em Chico Sérgio, João Mantense, um capanga de Cristiano Suassuna, foi à fazenda do coronel Sérgio Maia e lá encontrou o jovem Chico conversando em numa roda de amigos. Passou a jogar pedras e pedaços de tijolos no rapaz. Uma banda de tijolo atingiu uma de suas pernas, causando sérias lesões.

Independente do alcance do ferimento ocorrido em Chico Sérgio, evidentemente que o pior foi o atrevimento de João Mantense e do seu Senhor. E a resposta logo veio na forma de uma grande surra no capanga de Christiano Suassuna, em plena feira de Catolé do Rocha. O cabra tomou um verdadeiro “chá de pau”.

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João Suassuna discursando em um evento no Rio de Janeiro – Fonte – Revista “O Malho”, do Rio de Janeiro, edição de 18 de outubro de 1924.

Apesar da surra mais que merecida, os membros do clã Suassuna sentiram-se ofendidos pela execração pública de João Mantense. Américo, filho de Pio, irmão de Christiano e de João Suassuna, futuro governador paraibano (Pai do escritor Ariano Suassuna), tomou as dores do episódio e o caldo engrossou.

O magistrado, ex-ministro e ex-governador paraibano João Agripino Filho registrou em suas memórias como se desenrolou o primeiro movimento verdadeiramente grave deste conflito. Tempos depois estas memórias se tornariam o livro “Agripino – O Mago de Catolé”, de autoria do jornalista Severino Ramos.

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João Agripino Filho – Fonte – http://www.catolenews.com.br

O que João Agripino Filho testemunhou não deixa dúvidas da valentia dos envolvidos e sempre me impressionei com este episódio.

Para melhor informar o leitor do blog TOK DE HISTÓRIA, junto ao relato de João Agripino Filho, trago a entrevista que este concedeu a José Nêumanne Pinto em 1985.

 “-Nessa Casa não tem Homem para Responder a esse Fogo?”

João Agripino Filho era criança, tinha quase oito anos de idade (nasceu em 1 de março de 1914) e estava na calçada com seu pai (João Agripino de Vasconcelos Maia) e sua mãe (Dona Angelina Mariz Maia), que tinha seu irmão mais novo no  colo (Antônio Mariz Maia, que no futuro seria desembargador). Em meio a este momento de tranquilidade na pacata cidade paraibana chegou Américo Suassuna com um rifle na mão e ficou passando na frente da casa dos Maia.

Logo perguntou ao bacharel João Agripino “-Você têm coragem?”.

João Agripino Filho narrou que seu pai estava desarmado naquele momento. Mesmo assim, de forma muito calma, sorriu e respondeu com outra pergunta “-Porque você quer saber?”

Américo então falou de maneira fria e ameaçadora:

“-Quero saber se você quer trocar tiros?”

Sem perder a calma, João Agripino disse simplesmente:

“-Atire”.

Na hora que o membro do clã Suassuna levantou a arma, João Agripino saiu levando Dona Angelina, o bebê e o jovem João Agripino para dentro de casa. Américo não se fez de rogado e abriu fogo.

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Na foto vemos João Agripino de Vasconcelos Maia Filho e sua mãe, Dona Angelina Mariz Maia – Fonte – http://www.catolenews.com.br

Enquanto as balas batiam em vários locais da casa, em meio ao som dos disparos, poeira do reboco caindo, desespero do momento, Dona Angelina Mariz Maia gritou a plenos pulmões:

“-Nessa casa não tem homem para responder a esse fogo?”.  

Raimundo Suassuna, irmão de Américo, entrevistado por José Nêumanne Pinto em 1985, apontou que foram os capangas de João Agripino, conhecidos como João Boquinha e Cícero Novato, que responderam aos tiros de Américo e um deles estava armado com um fuzil. João Agripino Filho informou em suas memórias que seu pai conseguiu se armar e igualmente respondeu ao fogo de Américo.

Diante da resposta aos seus disparos, Américo se abaixou atrás de grossos pilares de madeira, que continham argolas para amarrar os animais que vinha para a feira da cidade e continuou descarregando sua arma. Testemunhas comentaram que o atirador dos Suassuna teve muita sorte, pois o pilar de madeira em que ele buscou proteção ficou bastante atingido pelos disparos efetuados. Provavelmente uma coisa que ajudou Américo era o fato dele ser um homem de baixa estatura e um tanto atarracado.

Aparentemente o tiroteio durou cerca de quinze a vinte minutos. Segundo Raimundo Suassuna a troca de balas encerrou quando seu pai Pio Suassuna interveio ao gritar para os Maia que “-Eles não teriam coragem de matar um filho dele!”. Raimundo narrou ao jornalista de Uiraúna que os buracos de bala feitos pelo seu irmão na casa dos Maia ficaram expostos por vários anos e estes diziam que eles só tapariam quando Américo fosse morto.

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José Nêumanne Pinto – Fonte – http://www.paraiba.com.br

João Agripino Filho afirmou a José Nêumanne Pinto que “-Jamais esqueceu aquela cena”.

Pessoalmente não conheci o local do tiroteio, nem onde se posicionaram os atiradores, nem a distância entre os inimigos e se eles eram, ou não, bons de tiro. Mas fato é que aquele episódio, onde não faltou o conceito de coragem, valentia, bravura e o temperamento de muitos sertanejos para lutar de peito aberto no campo da honra, deu início a uma das mais sérias e difíceis rivalidades entre famílias que o Nordeste testemunhou.

Outros Atores

O conflito entre os Maia e Suassuna prosseguiu de maneira variada e alternância de intensidade. Às vezes envolvendo na questão outros atores, de outras regiões da Paraíba.

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Ariano Suassuna era um dos membros mais conhecidos da família Suassuna. Ele nunca participou da luta contra a família Maia, mas uma parte de sua obra recebeu influência destes episódios.

Um fato que teve enorme repercussão em todo país foi o ataque de cangaceiros a cidade paraibana de Sousa. Ocorrido em 27 de julho de 1924, foi protagonizado pelo cangaceiro Francisco Pereira Dantas, conhecido como Chico Pereira. Este era paraibano da vila de Nazareth (hoje Nazarezinho), que em parceria com os irmãos de Lampião (que nessa época se recuperava de um ferimento) e numeroso bando de cangaceiros assaltaram Sousa. Este caso teve como um dos principais motivos à concretização de uma vingança pessoal deste cangaceiro contra seus inimigos que residiam naquela próspera cidade paraibana. Entre estes estava Octávio Mariz, ligado em parentesco aos Maia de Catolé do Rocha.

Como se diz que “inimigo do meu inimigo, consequentemente é meu amigo”, independente da negativa repercussão do episódio de Sousa, João Suassuna, já então governador da Paraíba, e seus irmãos, mantiveram ligações próximas com Chico Pereira.

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Seda da fazenda Conceição, na zona rural de Catolé do Rocha, antiga propriedade de Manoel Maia de Vasconcelos, que foi visitada por Chico Pereira e parentes de João Suassuna em 1926.

Existe uma notícia publicada em um jornal carioca (A Manhã, edição de 2 de junho de 1926), dando conta que no mês de março daquele ano o cangaceiro Chico Pereira esteve nas propriedades Marcelina e Maniçoba, pertencentes aos irmãos Suassuna. Além disso ele foi visto circulando tranquilamente em automóvel particular em Catolé do Rocha, junto com pessoas da família Suassuna. Vale ressaltar que nesta época Anacleto Suassuna, um dos irmãos do governador João Suassuna, conhecido na região como “major Quietinho”, era o delegado da cidade de Catolé.

A mesma nota aponta que Chico Pereira e os parentes do então governador paraibano estiveram em uma ocasião na fazenda Conceição, de propriedade de Manoel Maia de Vasconcelos, na época juiz em Açu e respondendo pela comarca de Mossoró, Rio Grande do Norte.

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Jornal carioca A Manhã, edição de 2 de junho de 1926.

Nesta ocasião Chico Pereira não atacou esta fazenda, apenas parou com seus amigos para pedir “água”. Mas a “visita” deixou totalmente abalada a esposa do juiz e suas duas filhas, além de certamente deixar os homens da família Maia em total estado de alerta.

João Agripino Filho comentou no livro “Agripino – O Mago de Catolé”, que os acirramentos levaram as duas famílias a criarem situações únicas e peculiares. Nos dias de eleição foi criada uma linha imaginária em Catolé do Rocha, que tinha como base a igreja matriz de Nossa Senhora dos Remédios e dividia os setores políticos dos dois clãs na urbe. E ai de quem ousasse transpô-la para fazer intriga política e cabular votos!

E a divisão das duas famílias continuou em assuntos políticos até mesmo externos a Catolé do Rocha.

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Imagem meramente ilustrativa – Fonte – chickenorpasta.com.br

Em meio às repercussões do conflito na cidade de Princesa, na Paraíba, e da deflagração da Revolução de outubro de 1930, os Maia apoiaram politicamente o governador João Pessoa no plano estadual e Getúlio Vargas na esfera federal. Já os Suassuna cerraram fileira junto ao coronel José Pereira, de Princesa, e no quadro político nacional deram apoio ao paulista Júlio Prestes.

Quem conhece história do Nordeste e do Brasil sabe qual dos dois lados levou a melhor nestas alianças!

A Luta Chega a Natal

E o tempo passou e a questão continuou!

Lauro Maia era o prefeito eleito da cidade potiguar de Patu, fronteiriça a Catolé do Rocha. Era uma liderança política ligada a João Café Filho, que naquele mesmo ano ser tornaria o único potiguar a alcançar o mais alto cargo do poder executivo brasileiro.

Então, no dia 3 de junho de 1954, por volta das onze e meia da noite, defronte ao Hotel América, na Avenida Rio Branco, no centro da capital potiguar, Lauro Maia foi brutalmente assassinado. Ele não foi a primeira vítima do conflito, mas foi um dos casos mais conhecidos sobre estes episódios.

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Nota sobre a morte de Lauro Maia no jornal “O Globo”, do Rio, na edição de 5 de junho de 1954.

O pistoleiro desferiu quatro tiros com um revólver calibre 38 contra o prefeito de Patu, que efetivamente foi atingido por dois balaços e faleceu três dias depois no antigo Hospital Miguel Couto, atual Onofre Lopes. O caso inclusive foi publicado no jornal “O Globo”, do Rio, na edição de 5 de junho daquele ano.

A suspeita maior recaiu sobre José de Deus Dutra, ligado politicamente aos Suassuna em Patu. Por falta de provas José Dutra foi absolvido. Já o filho de Lauro Maia, o médico Lavoisier Maia Sobrinho, não quis vingança e foi clinicar em Catolé do Rocha. Mas ele também seria alcançado pela violência daquele conflito.

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Na foto vemos a esquerda Lavoisier Maia Sobrinho, quando no cargo de governador do Rio Grande do Norte, dando um abraço no ex-governador potiguar Aluízio Alves.

Segundo José Nêumanne Pinto, na edição do Jornal do Brasil de 1985, comentou que Lavoisier Maia, que durante os anos de 1979 e 1983 foi governador do Rio Grande do Norte, estava na noite de 9 de setembro de 1956 na festa de comemoração de bodas de casamento do juiz de direito Sérgio Maia, no Prédio da Intendência, localizado à Rua Epitácio Pessoa, no centro de Catolé do Rocha. Depois houve uma animada comemoração em clube local.

Em meio à festa, Chiquinho Suassuna queria que um parente seu entrasse no recinto e participasse do evento, mas Lavoisier Maia barrou a entrada deste membro do clã opositor. Isso gerou uma altercação, que descambou para um tiroteio onde ficaram feridos Lavoisier e Chiquinho. Nesse mesmo episódio foi morto com um tiro acidental o agente de estatística Cantidiano de Andrade.

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Imagem meramente ilustrativa – Foto – Rostand Medeiros

Lavoisier salvou-se por um verdadeiro milagre, mas continuou ao longo de sua vida política e pessoal com sequelas daquele tiroteio e só recentemente deixou a vida pública. Já Chiquinho Suassuna continua vivo e morando em Catolé do Rocha.

Após estes acontecimentos houve um período de trégua na luta das famílias. Mas os ressentimentos, contudo, permaneceram como chagas abertas. Bastava que acontecesse algum problema mais sério para que as acusações voltassem à tona e a violência retomasse o seu sinistro crescimento.

Sangue continuou sendo derramado e ainda por alguns anos corpos tombaram em meio a esta luta!

Trabalhando Pela Paz!

Ao escrever este texto não pude deixar de recordar de Eleanor Roosevelt, que disse certa vez que “Para conseguir a paz não bastava apenas falar sobre ela, mas acreditar e trabalhar por ela”.

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Imagem meramente ilustrativa – Foto de Cid Barbosa – Fonte – chickenorpasta.com.br

Um dia os membros das famílias Maia e Suassuna trabalham juntos e, através do entendimento e não pela força das armas, encerraram aquela luta.

O famoso ator britânico Charles Chaplin disse certa vez que “O tempo é o melhor autor; sempre encontra um final perfeito”. Não sei se neste caso houve um final perfeito para todos os envolvidos nestes episódios. Certamente que não. Além disso, não existem meios de voltar no tempo, de voltar atrás para serem corrigidos diretamente os erros do passado.

Mas ao menos agora estes clãs podem moldar o futuro de suas novas gerações com maior tranquilidade.

VEJA TAMBÉM – O PAI DE ARIANO SUASSUNA – QUEM FOI JOÃO SUASSUNA, COMO SE DEU A SUA MORTE E COMO ESTE FATO INFLUENCIOU A VIDA E A OBRA DO SEU FILHO ARIANO – https://tokdehistoria.com.br/2014/08/02/o-pai-de-ariano-suassuna-quem-foi-joao-suassuna-como-se-deu-a-sua-morte-e-como-este-fato-influenciou-a-vida-e-a-obra-do-seu-filho-ariano/

 

 

JOÃO CAFÉ, O ADVOGADO QUE CHEGOU A PRESIDENTE DO BRASIL

Advogado dos sindicatos

Nesta propaganda de junho de 1921, vemos o advogado João Café Filho apresentando seus serviços profissionais nas páginas do jornal “A Republica”.

Em entrevistas com pessoas mais idosas, descobri que em Natal ele era conhecido socialmente como “João Café”.

Foi o único presidente brasileiro oriundo do Rio Grande do Norte, teve durante a sua vida política uma aproximação muito forte com o operariado, como podemos ver na sua carteira de clientes, que ele fazia questão de anunciar.

Além do fato dele ter sido o primeiro potiguar a chegar ao cargo máximo do executivo federal, acho que no nosso estado a trajetória de vida de Café Filho é lembrada por basicamente dois fatos; por ele ter sido um péssimo goleiro do Alecrim Futebol Clube. E o segundo é o porquê dele não ter conseguido chegar ao cargo de governador do Rio Grande do Norte e de como as forças políticas conservadoras agiram para impedir que ele alcançasse  este cargo na década de 1930.

Interessante existir uma terra que lembra de um dos seus maiores expoentes políticos através de uma falta de categoria futebolística e de uma derrota política.

João Café Filho nasceu em Natal (RN) no dia 3 de fevereiro de 1899, filho de João Fernandes Campos Café e de Florência Amélia Campos Café. Mudou-se para Recife em 1917, passando a trabalhar como comerciário para custear os estudos na Academia de Ciências Jurídicas e Comerciais. Retornou a Natal sem concluir seus estudos superiores mas, mesmo assim, baseado na sua experiência prática junto aos tribunais, prestou concurso para advogado do Tribunal de Justiça, obtendo êxito.

Capa da revista norte-americana Time – Fonte – http://terceiroband.blogspot.com

A atividade regular de Café Filho no campo do jornalismo começou em 1921, quando fundou oJornal do Norte, impresso nas oficinas de A Opinião, órgão oposicionista. Disputou, sem êxito, uma cadeira de vereador em Natal no ano de 1923. Mudou-se para Recife em 1925, tornando-se diretor do jornal A Noite, onde passou a escrever reportagens e propaganda política. Viajou para a Bahia e, durante o ano de 1927, viveu nas cidades de Campo Formoso e ltabuna.

Mudou-se para o Rio de Janeiro no início de 1929, tornando-se redator do jornal A Manhã. Durante a Revolução de 1930 Café Filho transferiu-se para o Rio Grande do Norte, onde foi nomeado chefe de polícia. Fundou em abril de 1933 o Partido Social Nacionalista (PSN) do Rio Grande do Norte, organizado para concorrer às eleições de maio seguinte para a Assembléia Nacional Constituinte. Afastado da chefia de polícia, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como inspetor no Ministério do Trabalho até julho de 1934.

Com o fim dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte e a fixação da data de 14 de outubro para a realização de eleições para a Câmara Federal e as assembléias constituintes estaduais, Café retornou ao Rio Grande do Norte e foi eleito deputado federal para a legislatura iniciada em 3 de maio de 1935.

Com o desgaste do Estado Novo, Getúlio Vargas adotou no início desse ano uma estratégia reformista que visava garantir para o próprio governo o controle da transição em curso na política nacional. Decidido a concorrer ao parlamento em dezembro, Café Filho viajou para o Rio Grande do Norte a fim de reagrupar seus antigos correligionários em uma nova agremiação. Suspeito de realizar manobras continuístas, Vargas foi deposto por um golpe militar em 29 de outubro de 1945. José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), assumiu temporariamente a chefia do governo e as eleições de 2 de dezembro foram mantidas, resultando na vitória de Dutra. O Partido Republicano Progressista (PRP) teve um desempenho muito fraco, elegendo apenas Café Filho e Romeu dos Santos Vergal para a Assembléia Nacional Constituinte, que se reuniria a partir de 5 de fevereiro de 1946.

Quando Vargas foi reeleito em outubro de 1950, Café Filho obteve a vice-presidência. Além disso, também foi reeleito deputado federal pelo Rio Grande do Norte. Em 22 de agosto de 1954 um grupo de oficiais da Aeronáutica liderados pelo brigadeiro Eduardo Gomes, lançou um manifesto, assinado também por oficiais do Exército, exigindo a renúncia do presidente que, mesmo assim, manteve sua posição de permanecer no cargo. No dia seguinte Café Filho discursou no Senado comunicando a negativa de Vargas em aceitar a renúncia conjunta, e seu pronunciamento foi considerado um rompimento público com o presidente.

Fonte – http://almanaque.folha.uol.com.br

A situação se agravou com a divulgação, no dia 23, de um manifesto assinado por 27 generais exigindo a renúncia de Vargas. Na madrugada seguinte, Café deixou clara sua disposição de assumir a presidência, ao mesmo tempo que Vargas comunicava a seu ministério a decisão de licenciar-se. Procurado por jornalistas e líderes políticos, Café mostrou-se disposto a organizar um governo de coalizão nacional caso o presidente se afastasse em caráter definitivo. Nas primeiras horas do dia 24, depois de receber um ultimato dos militares para que renunciasse, Vargas suicidou-se. A grande mobilização popular então ocorrida desarmou a ofensiva golpista e inviabilizou a intervenção militar direta no governo, garantindo a posse de Café Filho no mesmo dia.

Procurando diminuir o impacto produzido pela divulgação da Carta Testamento de Vargas, Café Filho emitiu logo sua primeira nota oficial, afirmando seu compromisso com a proteção dos humildes, “preocupação máxima do presidente Getúlio Vargas”.

No início de 1955 recebeu do ministro da Marinha um documento sigiloso assinado pelos ministros militares e por destacados oficiais das três armas, defendendo que a sucessão presidencial fosse tratada “em um nível de colaboração interpartidária” que resultasse em um candidato único, civil e apoiado pelas forças armadas. Tratava-se, indiretamente, de uma crítica à candidatura de Juscelino Kubitschek. O presidente apoiou o teor do documento e, diante dos comentários da imprensa sobre sua existência, obteve a aprovação dos signatários para divulgá-lo na íntegra pelo programa veiculado em cadeia radiofônica nacional A Voz do Brasil. Apesar dessa demonstração da oposição militar à sua candidatura, Kubitschek prosseguiu em campanha e seu nome foi homologado pela convenção nacional do Partido Social Democrático (PSD) em 10 de fevereiro.

Fonte – http://www.brasilescola.com

Juscelino Kubitschek foi eleito e, com a divulgação dos resultados oficiais do pleito, a União Democrática Nacional (UDN) deflagrou uma campanha contra a posse dos candidatos eleitos, voltando a sustentar a tese da necessidade de maioria absoluta. Os setores mais extremados do partido, liderados por Carlos Lacerda, intensificaram sua pregação favorável à deflagração de um golpe militar. Entretanto, Café Filho e o general Lott reafirmaram seu compromisso com a legalidade.

Na manhã do dia 3 de novembro de 1955, Café Filho foi internado no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, acometido de um distúrbio cardiovascular que forçou seu afastamento das atividades políticas. No decorrer do dia 11 o Congresso Nacional, reunido em sessão extraordinária, aprovou o impedimento de Carlos Luz para assumir o cargo, empossando Nereu Ramos, vice-presidente do Senado em exercício, na presidência da República.

No dia 13, Nereu Ramos visitou Café Filho no hospital, afirmando que permaneceria no governo apenas até sua recuperação. Entretanto, Lott e outros generais decidiram vetar o retorno do presidente por considerá-lo suspeito de envolvimento na conspiração contra a posse dos candidatos eleitos. Mesmo assim, no dia 21 Café Filho enviou a Nereu Ramos e aos presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF) uma declaração de que pretendia reassumir imediatamente seu cargo, o que provocou nova movimentação de tropas fiéis a Lott em direção ao Palácio do Catete e a outros pontos da capital. Café Filho dirigiu-se então à sua residência, também cercada por forte aparato militar, que incluía grande número de veículos blindados.

Na madrugada de 22 de novembro, o Congresso aprovou o impedimento de Café, confirmando Nereu Ramos como presidente até a posse de Juscelino em janeiro seguinte. Em 14 de dezembro essa decisão foi confirmada pelo STF, que recusou o mandado de segurança impetrado por Prado Kelly em favor da posse de Café.

Afastado da presidência, trabalhou entre 1957 e 1959 em uma empresa imobiliária no Rio de Janeiro. Em 1961, foi nomeado pelo governador Carlos Lacerda ministro do Tribunal de Contas do Estado da Guanabara, onde permaneceu até aposentar-se em 1969.

Casou-se com Jandira Fernandes de Oliveira Café, com quem teve um filho. Faleceu no Rio de Janeiro no dia 20 de fevereiro de 1970.

Parte do material aqui utilizado teve como fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001]

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