QUANDO O EXÉRCITO BRASILEIRO FOI DERROTADO NO SERTÃO NORDESTINO

Em 1955 Um Oficial do Exército Brasileiro Escreveu em Uma Revista Ligada ao Meio Militar um Contundente Texto Sobre a Dura Realidade das Derrotas Sofridas Pelo Exército Brasileiro em Momentos da Guerra de Canudos. Esse Texto Foi em Parte Baseado Nas Experiências e Memórias do Pai do Autor, o General Leandro José da Costa, Ex-Combatente Daquele Cruel Conflito.

A EPOPEIA DE CANUDOS

Autor – Major Orosimbo Costa

Fonte – Revista do Clube Militar, Nº 135, Janeiro/Fevereiro de 1955, Págs. 33 a 39.

Segundo uma reportagem da revista O Cruzeiro, de 5 de dezembro de 1953, pretende o Serviço de Obras Contra as Secas transformar, dentro de pouco tempo, o antigo arraial de Canudos, em um açude.

“Um desaparecimento que não há de ser muito sentido”. “Canudos indo, vai fazendo pouca falta, ninguém há de chorar”. Assim se expressa o repórter.

Palpita-nos não ser este o sentir de muitos brasileiros, que considerarão tal ato, caso se execute e sejam quais forem as razões de ordem técnica invocadas pelos engenheiros encarregados dessa tarefa, como mais um atentado ao nosso já precário patrimônio histórico.

A Campanha de Canudos, como muitos outros episódios da nossa história, é desconhecida da maioria dos brasileiros. (1)

Razão teve o sr. Viriato Corrêa quando disse que “a não ser a tão falada viagem de Cabral, a restauração pernambucana, o martírio de Tiradentes, a transmigração da família real portuguesa, o 7 de setembro, a Guerra do Paraguai, o 13 de maio, a Proclamação da República, mais uma ou outra data culminante, e isso mesmo mal e muito mal, tudo mais se desconhece, quando não seja totalmente, de tal maneira que é o mesmo que desconhecer” (2).

Entretanto, essa memorável Campanha ainda não foi definitivamente escrita nem está instalada no lugar de realce que merece na História. Mais de meio século faz que teve fim tão cruenta luta, já sendo possível, portanto, imparcialmente, estabelecer a sua verdadeira significação. Ainda há (em 1955) remanescentes, integrantes das tropas do governo (3), cujos depoimentos poderiam ser aproveitados para a total reconstituição dessa guerra horrenda. das mais ferozes que se tem notícia, sendo impossível determinar de que lado havia mais intrepidez e energia: se o jagunço obstinado, fanático, indiferente à sua sorte, ou a soldadesca desvairada, infrene, com um só pensamento: matar, destruir aquele reduto sinistro!

Euclides da Cunha assim retratou o defensor do arraial (Canudos — Diário de uma expedição — pág. 95): “Tem a mais sólida, a mais robusta têmpera essa gente indomável! Os prisioneiros feitos revelam-na de uma maneira expressiva.

Ainda não consegui lobrigar a mais breve sombra do desânimo em seus rostos, onde se desenham privações de toda a sorte, a miséria mais funda; não tremem, não se acobardam e não negam as crenças mantidas pelo evangelizador fatal e sinistro (4) que os arrastou a uma desgraça incalculável.

Mulheres aprisionadas na ocasião em que os maridos caíam mortos na refrega e a prole espavorida desaparecia na fuga, aqui têm chegado — numa transição brusca do lar mais ou menos feliz para uma praça de guerra, perdendo tudo numa hora — e não lhes diviso no olhar o mais leve espanto e em algumas mesmo o rosto bronzeado de linhas firmes é iluminado por um olhar de altivez estranha e quase ameaçadora”. (5)

As dúvidas e enigmas dessa Campanha, precisam ser elucidados.

O fracasso da expedição Moreira César repercutiu em todo o Brasil como um desastre nacional. Divulgou-se insistente boato de que Antônio Conselheiro era um insurreto político monarquista. Espíritos exaltados depredaram a redação dos jornais restauradores e assassinaram o proprietário de um deles, o coronel Gentil de Castro.

Enquanto tais rumores eram propalados pela nação, no teatro de operações considerava o citado escritor (6): “Não é possível que a munição de guerra daquela gente seja só devida à deixada pelas expedições anteriores. A nossa esgota-se todos os dias; todos os dias entram comboios carregados e, no entanto, já nos falta às vezes.

Como explicar essa prodigalidade enorme dos jagunços?

Não nos iludamos. Há em toda esta luta uma feição misteriosa que deve ser desvendada”.

E mais adiante (pág. 101):

“O general Artur Oscar, restabelecido agora de ligeira enfermidade, acaba de mostrar-me alguns tipos de balas caídas nos tiroteios da noite. São de aço, semelhantes às das Manulicher, algumas, outras completamente desconhecidas. São inegavelmente projetis de armas modernas que não possuímos. Como as possuem os ” jagunços “?

Mas, o que mais espanta e impressiona, é o elevado grau de instrução militar que possuíam aqueles sertanejos. A disciplina era rígida, utilizavam com perícia as suas armas, eram mestres na camuflagem, sabiam aproveitar o terreno para observar e atirar seus movimentos eram coordenados, construíam abrigos que cercavam com obstáculos (7), e também empregaram minas!

O arraial surpreendeu ao observador esteta (8):

“Nada que recorde o mais breve, o mais simples plano na sucessão de humílimos e desajeitados casebres. Ausência quase completa de ruas, em grande parte substituídas por um dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal permitindo, muitos, a passagem de um homem. As vezes cinco ou seis casas alinham-se como que numa tentativa de arruamento, mas logo adiante em ângulo reto com direção daquelas, alinham-se outras, formando martelo e dando ao conjunto uma feição indefinível… “

Poucas ruas e estreitíssimas, simples passagens muitas vezes sem saída, casas sem alinhamento, quintais de umas confinando com frentes de outras, cumieiras para todas as direções, um verdadeiro labirinto. Dava a impressão de que os casebres haviam sido construídos ao acaso, segundo a fantasia de cada um.

Fatal engano! Nos primeiros assaltos à cidadela, os invasores foram exterminados. Desnorteados naquele estranho dédalo, eram inexoravelmente eliminados, sem que o defensor se expusesse.

E então compreendeu-se o porquê de tão fantástico traçado: obedecia a um meticuloso plano de defesa. Cada casa era um reduto. Cavada no interior desta e junto à parede, a moderníssima “toca de raposa”; rente ao chão, uma seteira facilitava ao ocupante da “toca ” tiros precisos. Os tetos eram uma maciça camada de cerca de 20 centímetros de argila e ramos de icó, à prova de estilhaços e talvez tiros de pequeno calibre de artilharia.

Nas elevações que circundavam o arraial, um traçado de trincheiras com excelentes posições para atiradores, enfiavam as vias de acesso.

Um sistema de postos avançados bem organizados, constante movimento de patrulhas e eficiente serviço de espionagem, completam o quadro de conhecimentos que possuíam os jagunços.

Simplesmente espantoso!

Mas, perguntamos nós, quem os instruiu?

Quem os ensinou a utilizar o armamento de repetição (Comblains e Manulichers) abandonado pela expedição Moreira César e que não lhes era familiar? (9) Quem os adestrou nos exercícios de maneabilidade, no aproveitamento do terreno, na ocupação de uma posição e seu abandono no momento preciso, na organização de um plano de fogos? Monarquistas, como se propalou? Militares egressos das Forças Armadas, como alguns alvitram? Estrangeiros? Ou os próprios chefes jagunços? (10)

Estes eram muitos, notáveis, e com funções bem definidas: João Abade, comandante em chefe; Pajeú, subcomandante; Chico Ema, chefe do serviço de espionagem; Macambira, especialista em emboscadas; Joaquim Tranca pés, mestre em golpes de mão; Chiquinho, João da Mota, Pedrão, Estevão, comandantes de setores de vigilância: e mais, Vilanova, Joaquim .Macambira, Manoel Quadrado, José Felix, José Venâncio, Lalau, Raimundo Boca-Torta, Norberto, Quimquim de Coiqui, Antônio Fogueteiro, José Gamo, Fabricio de Cocobocó (ou Cocorobó), António Beato (11).

Enquanto aqueles rudes sertanejos revelavam modelar organização, o que constitui mistério profundo, as forças regulares, em deplorável contraste, demonstravam evidente incapacidade para fazer a campanha.

Uma lástima: quadros sem preparação profissional, tropa completamente bisonha, ausência absoluta do que hoje chamamos apoio logístico.

A organização militar no Brasil era, na época, deficientíssima.

Canhão Whitworth 32 ou “Matadeira”, como se encontrava na região de Canudos na décxada de 1940.

Aliás, para sermos mais precisos, as Forças Armadas do país nunca mereceram, no passado, a devida atenção dos governos. As nossas guerras externas foram feitas com Exércitos improvisados. Assim foi em 1851 contra Oribe e Rosas, em 1864 contra o Uruguai e em 1865 contra o Paraguai.

Após esta última campanha, as Forças Armadas caíram em franca depressão e profunda apatia. Tudo foi feito liara se esquecer aqueles anos de sofrimento.

A época da proclamação da República, o efetivo do Exército era de pouco mais de 12.000 homens!

 Com o advento das ideias positivistas, o ensino militar tornou-se científico-filosófico. Foi a época dos oficiais “bacharéis em ciência”.

Floriano Peixoto, para enfrentar a revolta de Custódio de Melo, em 1893, viu-se na contingência de organizar os célebres “batalhões patrióticos”.

É fácil, pois, imaginarmos a constituição das expedições que foram lançadas contra Canudos.

O comandante da quarta expedição, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, ainda considerava ato vergonhoso o combater-se abrigado (12).

No terreno da tática foi um desastre: operações sem planejamento, marchas desordenadas, sem segurança e informações, processos antiquados de combate.

Habitante de Canudos na década de 1940.

No terreno dos serviços, uma miséria; tudo faltou: víveres, munições, transportes. O estado de penúria chegou a tal ponto que foram obrigados a abater os bois de tração de um célebre canhão Calibre 32 (material de artilharia de costa), inútil trambolho. Certo dia só havia farinha e sal, para os doentes. Ficou estabelecida a “defesa individual”: penetravam os soldados na caatinga à procura da caça exígua e raízes dos vegetais da região. “Uma raiz de umbu era um regalo raro, de epicurista”. E para completar tal quadro, até água faltou.

Entretanto, o comandante Artur Oscar estabeleceu postos de suprimentos em Queimadas, Monte Santo, mas os comboios chegavam com irregularidade e reduzidíssimo e as rações, muitas vezes, não deram nem para um dia. Eram os jagunços os responsáveis… (13)

Quanto aos feridos, não sendo possível mantê-los na frente, urgia evacuá-los; mas, como? De que jeito transportá-los?

Defensor de Canudos, capturado por soldados.

Seguiram de qualquer maneira para Monte Santo e desta localidade para Queimadas, ponto terminal da estrada de ferro. Uns, montados em muares ou cavalos, outros, os mais graves, conduzidos em redes, a maioria a pé, arrastando-se miseravelmente pela estrada.

Era um desfile macabro; cada um por si, nada de cooperação; se algum infeliz caía extenuado, ali ficava, estirado na margem do caminho implorando, em vão, por auxílio; e ali morria, ficando insepulto.

E essas levas se transformavam em feras odiosas: maculavam a água das cacimbas que seria forçosamente utilizada por outros companheiros, atacavam sertanejos indefesos, saqueavam e destruíam os miseráveis casebres.

Região de Canudos na década de 1940.

Para completar este quadro moral, verificaram-se vários pedidos de reforma, e Unidades chegavam desfalcadas, bem desfalcadas, na Zona de operações, Brigada Girard. por exemplo, que iria reforçar as tropas de Artur Oscar, chegou em Canudos sob o comando de um major! (14)

Finalmente, no setor técnico, a mesma deficiência: o general Artur Oscar foi obrigado a organizar, em Queimadas e Monte Santo, campos de instrução, linhas de tiro, para instruir os seus soldados, em sua quase sua totalidade, recrutas. Mas, foi mesmo em Canudos, no duro embate com os jagunços, que eles se adestraram, apreenderam os duros processos do combate que, afinal, eram certos.

Quando se resolveu atacar o arraial de Canudos, comandava o 3° distrito militar (Salvador), o General Frederico Sólon. Tendo recebido ordem do governo central para auxiliar o governador do Estado naquela empresa, propôs a este, doutor Luiz Viana, após cuidadoso exame da situação, que se enviasse a Canudos uma forte expedição O governador discordou; considerava o movimento um simples motim, facilmente sufocável por qualquer elemento armado. (15)

É provável que tenha havido entre as duas autoridades acalorada discursão; o fato é que o general Sólon, pouco tempo depois, era transferido…

A política, pois, saiu vencedora dessa polêmica e, sem mais delonga, tratou-se de enviar ao arraial sublevado, um destacamento de 100 homens que, sob o comando do tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, partiu de Juazeiro na noite de 12 de novembro de 1896; mas não passaram de Uauá, vilarejo distante de Canudos cerca de 40 quilômetros, onde na madrugada de 21 foram atacados.

Protegidos pelas casas, os soldados resistiram; seu armamento mais moderno, enquanto os jagunços utilizavam armas antiquadas de carregar pela boca, que logo abandonaram, preferindo a arma branca.

Após quatro horas de luta, os jagunços abandonaram o arraial.

Artilharia na Guerra de Canudos.

Fosse seguido o alvitre do general Sólon e a história de Canudos se encerraria com esta expedição. Os jagunços estavam praticamente desarmados e não resistiriam à perseguição que o tenente não pôde realizar, por falta de homens e meios, sendo obrigado a retroceder para Juazeiro, onde chegou após quatro dias de marchas forçadas.

Nova expedição foi organizada; compõe se de 560 homens, inclusive 14 oficiais e 3 médicos. Seu comando foi confiado ao major Febrônio de Brito e, além do armamento individual, conduziram duas metralhadoras Nordenfelt e dois canhões Krupp.

Febrônio de Brito seguiu pelo eixo Queimadas — Monte Santo — Estrada do Cambaio, lutando com toda sorte de dificuldades.

Região de Canudos na década de 1940.

Na travessia do Cambaio tiveram o primeiro combate com os jagunços. Vencedores, progrediram até às orlas de Canudos, onde estacionaram extenuados. Ao amanhecer do dia seguinte, 19 de janeiro de 1897, foram violentamente atacados pelos conselheiristas que, à noite, sorrateiramente, haviam ocupado suas posições. Na primeira trégua o comandante Brito examinou a situação e concluiu não poder prosseguir na luta por falta de munição. Dada a precariedade de transporte, deixara em Queimadas e Monte Santo, grande parte dela.

Exposta a situação aos oficiais, decidiu-se pela retirada, mas em boa ordem. Não a conseguiram. Obrigados a atravessar uma garganta, aí foram intensamente hostilizados com pedras! E durante quase todo o percurso a Monte Santo, sofreram pertinaz perseguição do inimigo.

Tal remate aguçou a cólera das autoridades. Ninguém acreditava que umas duas dezenas de miseráveis jagunços pudessem derrotar uma tropa federal. Consequência: Febrônio de Brito foi submetido a Conselho de Guerra e condenado (16).

Ruínas da igreja de Canudos em 1893 – Fonte – http://osertanejosdecanudos.blogspot.com.br

Uma terceira expedição foi organizada: quatro batalhões de infantaria, uma bateria de artilharia, um esquadrão de cavalaria e um contingente da polícia baiana, num total de 1.500 homens aproximadamente, bem armados e municiados. Escolheu-se para comandá-la, o nome militar mais em evidência na época: o coronel António Moreira César, uma figura que, no governo de Floriano Peixoto se notabilizara pelas mais condenáveis e odiosas violências contra mulheres, crianças c cidadãos indefesos.

Este comandante escolheu o itinerário Queimadas — Monte Santo — Cumbe — Rosário — Rancho do Vigário — Angico — Morro da Favela. Estabeleceu-se em Queimadas a primeira base de operações e em Monte Santo, a segunda, sob o comando do coronel Souza Meneses.

Sem um reajustamento, sem um plano, sem uma ideia, e após marchas forçadas, Moreira César lançou toda a sua infantaria contra Canudos, atacando por dois lados opostos. Os batalhões se defrontaram no arraial e então foi a confusão, a balbúrdia, o pandemônio. O comandante tentou retomar sua tropa e expondo-se foi ferido, vindo a falecer no dia seguinte. Seu substituto, o coronel Tamarindo, tentou executar uma retirada, mas foi mal sucedido. Ninguém obedecia mais. A soldadesca estava alucinada, apavorada!

Antigo cruzeiro de Canudos na década de 1940.

Foi uma fuga desordenada. Abandonaram tudo; armamento, material, munições, feridos, até o cadáver do comandante!

Os que chegaram em Monte Santo, não encontraram ninguém; todos havia fugido, abandonando o posto. O sargento auxiliar não pudera reter ninguém para ajudá-lo a transportar os mantimentos para um local seguro. O farmacêutico da povoação, um civil, foi quem destruiu parte da munição, deixando alguma, para não despertar suspeita aos jagunços.

Assim, esta terceira expedição só teve um fito: armar e municiar o inimigo.

Cerimônia na Canudos de 1940.

Sob o comando do general Artur Oscar de Andrade Guimarães foi, finalmente, organizada uma expedição poderosa; chegou a ter efetivo de 10.000 homens, e dela participaram quatro generais, 20 batalhões de infantaria, 1 regimento e 2 destacamentos de artilharia 1 regimento e parte de outro de cavalaria, além de elementos das policias da Bahia, São Paulo, Pará e Amazonas.

Não cabe aqui a descrição das ações desta expedição, feita com todos os detalhes por Euclides da Cunha, que a acompanhou como repórter de um jornal paulista.

No dia 5 de outubro de 1897, após quase um ano de lutas, caiu a cidadela de Canudos cujos defensores resistiram “até o esgotamento completo”, “Fato raro na História: o reduto de Canudos não se rendeu”.

A antiga Canudos.

O aspecto atual de Canudos é contristador — miséria e desolação completas. E naquela cidadela, palco de um drama de extraordinário heroísmo, naquele chão, muda testemunha de um poema de bravura que estarrece, de uma insana resistência que nos deixa atônitos, naquele pedaço de terra brasileira onde foi vivido o trágico episódio que ” é a afirmação eloquente da prodigiosa energia da nossa raça”, nem um monumento, nem um bronze comemorativo, nem mesmo uma simples placa a lembrar a ocorrência. E, dentro de pouco, um lençol de água cobrirá os vestígios — se os houver — do famoso arraial, e depois — o esquecimento. Breves referências ficarão nos livros escolares — e nada mais.

Enquanto os brasileiros demonstram essa indiferença pelo seu passado, os americanos, num excesso de senso histórico, transformaram a casa do assassino de um chefe de Estado em museu (17).

A guerra de Canudos teve a feição de um cataclisma nacional; movimentou tropas de norte a sul do país, e na última expedição estiveram empenhados dez mil homens, talvez mais.

É um episódio que deverá ser colocado no devido plano; seus despojos, se ainda houver, deverão ir para os mostruários dos nossos museus; o local onde outrora se erigiu o célebre arraial, deverá merecer a atenção da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atualmente empenhada num plano de restauração, conservação e proteção do seu acervo.

NOTAS

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(1) Entretanto, teve um cronista do quilate de um Euclides da Cunha, cujo livro “Os Sertões”, já na sua 22ª edição (em 1955), foi traduzido para o espanhol, para o alemão, para o sueco e para o dinamarquês. É, pois, uma obra de repercussão internacional e ocupa limar de destaque em todas as bibliotecas públicas e particulares, mas que, acreditamos, muito pouca gente leu.

(2) Balaiada.

(3) Um deles é o meu pai, o general reformado Leandro José da Costa, possivelmente o único sobrevivente do 16º Batalhão de Infantaria, que me relatou passagens inéditas da expedição Artur Oscar.

(4) Refere-se a Antônio Conselheiro.

(5) Observação registrada nove dias antes do aniquilamento total do arraial, após quase um ano de luta!

(6) Obra citada — pág. 98.

(7) A falta de arame farpado, utilizavam material muito melhor e abundante na região: xique-xique, mandacarus, juremas, palmatória, macambiras, etc., que transformavam numa espécie de redes extensíveis.

(8) Obra citada – pág. 107.

(9) As suspeitas do gen. Artur Oscar eram infundadas; nenhum armamento especial foi encontrado em poder dos conselheiristas: na verdade, antes da apreensão do material de Moreira César, eles utilizavam velhas espingardas, bacamartes, garruchas, clavinas, armas brancas, e mesmo bestas. Quem os armou foi mesmo o governo, por intermédio do cel. Moreira César.  

(10) Essa Informação e quo os supostos ex-jagunços Ciriaco e Pedrão deviam fornecer ao autor da reportagem a que aludimos no começo destas linhas.

(11) “Os Sertões” — 22. ª edição — pág. 177.

(12) Chegamos à Favela a 27 do mês de junho, tendo antes, no lugar Pitombas, sofrido dos jagunços cobardes que nunca souberam se bater a peito nus como os soldados leais… (Parte do gen. Artur Oscar ao ministro da guerra).

(13) Chegou a tais extremos essa situação que o ministro da guerra, marechal Carlos machado Bittencourt decidiu pessoalmente dirigir esses serviços, seguindo para a zona de guerra.

(14) Na Campanha do Contestado observou-se o mesmo “fenômeno”. Conta-nos Crivelaro Marcial o caso de um Regimento que em vez de um coronel era comandado por um major, cujo batalhão fora conduzido por um tenente.

(15) Uma das curiosas características desse episódio da nossa História éque do começo no fim da Campanha não se deu ao jagunço o seu devido valor; sempre o subestimaram.

(16) Só em revisão de processo da 3.ª expedição é que consegui ser absolvido.

MITOS NA BERLINDA

O Brasil coleciona personalidades que inspiram liderança.
Mas os heróis de hoje podem não ser os de amanhã

Vivi Fernandes de Lima

O paulistano Benedito Eliseu dos Santos foi um dos mais de 25 mil brasileiros que lutaram na Segunda Guerra Mundial. Ele não ostentava as divisas dos oficiais militares em sua farda – era soldado – e não pôde ver a calorosa recepção que a população e o governo brasileiro prepararam para a chegada dos pracinhas, vindos da Itália em 1945. Benedito morreu na guerra, como outros 456 expedicionários, e é reconhecido como um herói pela Força Expedicionária Brasileira (FEB). Afinal, “é melhor morrer em combate do que ver ultrajada a nossa nação”, já dizia o primeiro-ministro britânico Winston Churchill.

Três pracinhas do 11.º RI. na FEB - ACERVO FAMÍLIA NALVO
Três pracinhas da FEB. A guerra é um ótimo palco para se criar heróis, que muitas vezes só desejavam voltar vivos e inteiros para suas casas – ACERVO FAMÍLIA NALVO

Hoje, Benedito dá nome à rua de um colégio que homenageia todos os combatentes da Segunda Guerra: a Escola Estadual Heróis da FEB, no Parque Novo Mundo, em São Paulo. A escola e seu endereço não estão sozinhos na homenagem a esses homens: o bairro inteiro tem ruas com nomes de expedicionários. Cristiane Matos, professora de História do colégio, levou o tema para a sala de aula: “Fizemos um projeto em que os alunos saíram à caça de documentos de ex-combatentes. Foi ótimo; eles buscaram a história de cada um que dá nome às ruas”.

A atividade fez com que os estudantes se interessassem pela guerra, o que nem sempre é fácil. “Normalmente, os alunos não têm facilidade em relacionar os heróis com os fatos históricos. Sobre Tiradentes, por exemplo, a maioria sabe que ele morreu enforcado e que se parecia com Jesus. Só isso”, diz a professora. A distância entre a figura do líder e a sua causa está presente até no caso de Che Guevara, apontado por professores como o personagem histórico mais popular para a juventude. Aqui, “muitos vestem a camisa com a foto do Che e não têm noção da história dele. O que atrai o interesse dos jovens é mais o poder de comando e de liderança do personagem do que a sua causa”, afirma Cristiane.

Em um primeiro olhar, todos sabem quem é o personagem da foto. Mas nem todos sabem que ele é seguramente o argentino mais famoso no Brasil, mais até do que Maradona, seus pais eram oriundos de famílias pertencentes a classe alta argentina, seu nome era Ernesto Guevara de la Serna e nasceu na cidade de Rosário, em 1928 - Fonte - http://www.havana-cultura.com/
Em um primeiro olhar, todos sabem quem é o famoso personagem da foto ligado a história cubana. Mas nem todos sabem que ele é seguramente o argentino mais famoso no Brasil (mais até do que Maradona), seus pais eram oriundos de famílias pertencentes a classe alta do seu país de origem e nasceu em 1928 na cidade de Rosário  – Fonte – http://www.havana-cultura.com/

O professor de História da Escola Estadual Tiradentes, em Umuarama (PR), Ângelo Alves, concorda com a colega de profissão paulista. Mesmo estudando no colégio que tem o nome do mais famoso inconfidente, muitos de seus alunos não reconhecem Tiradentes como um herói. “Atualmente, a historiografia vem desmitificando muitos nomes. O próprio Tiradentes se diluiu bastante. Já Che Guevara chama muito a atenção dos jovens. Eles se encantam com seu espírito aventureiro e por ter entrado numa luta que parecia impossível. E, claro, com o grande marketing que é feito com sua imagem”, explica o professor.

Mas, afinal, o que faz um personagem histórico ser reconhecido como herói? O poeta espanhol Reinaldo Ferreira (1922-1959), em sua “Receita para fazer um herói”, menciona alguns passos para a construção desse personagem mítico: “Tome-se um homem,/ feito de nada, como nós/ (…) Depois, perto do fim,/agite-se um pendão,/e toque-se um clarim”. Para arrematar a receita, uma dica fundamental: “Serve-se morto”.

Nesse ponto, as definições de herói e mártir se assemelham. Mas a permanência do heroísmo de quem sofreu por uma causa depende de muitas circunstâncias. “A construção de um herói é, ao mesmo tempo, um processo político e histórico. Ou seja, um protagonista da História delineia, simultaneamente à sua atuação, uma memória de si mesmo e de seus atos”, explica a historiadora Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira, diretora do Museu Paulista da USP. A memória a que ela se refere pode ser enaltecida ou difamada, durante ou após sua vida. Isso depende dos objetos e documentos deixados, mas também da vontade de outras pessoas e de segmentos sociais que interpretem este protagonista como um representante do que desejam. “Assim, um protagonista que, para seus contemporâneos, não mereceu consideração pode vir a se tornar posteriormente uma referência na compreensão de certos eventos”, esclarece Cecília.

Já Tiradentes só foi reconhecido herói quase 100 anos após a sua morte
Já Tiradentes só foi reconhecido herói, com direito a um feriado, 100 anos após a sua morte

Esse reconhecimento pode demorar muitos anos, décadas e até séculos. No caso de Tiradentes, a primeira celebração do 21 de abril ocorreu em 1881, 89 anos após sua morte. A data só virou feriado nacional em 1890, no mesmo ano em que o 15 de novembro também passou a ser comemorado. Coincidência? Nem um pouco. Os republicanos estavam ávidos por lançar um herói para o novo regime. E esta era uma tarefa difícil, já que a Proclamação teve quase nenhuma participação popular e, como o historiador José Murilo de Carvalho escreveu, “a pequena densidade histórica do 15 de novembro (uma passeata militar) não fornecia terreno adequado para a germinação de mitos”.

Enquanto tentavam exaltar a imagem do marechal Deodoro, de Benjamim Constant e Floriano Peixoto – que sequer foram heróis militares –, Tiradentes vinha aparecendo na literatura e nas artes. O poeta Castro Alves chegou a se referir ao inconfidente como “o Cristo da multidão”. Sua simpatia pela república – nos moldes norte-americanos, e não nos da que foi implantada aqui – e a memória de seu martírio couberam como uma luva na vaga de herói daquele momento político. A proliferação de estudos sobre o personagem chegou a levantar a hipótese de que Tiradentes teria escapado da forca, teoria desmentida posteriormente.

Em 1965, quando o país estava novamente sob o regime militar, Tiradentes foi proclamado patrono cívico da nação brasileira. O mesmo governo também decretou que todas as repartições públicas do país afixassem o retrato do inconfidente, o que era impensável no Império, quando se aclamava D. Pedro I como herói da Independência, ou melhor, o neto da rainha que mandou executar Tiradentes. A divulgação da imagem do imperador estava fortemente ligada à atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838 para criar uma história nacional.

A figura de Luís Alves de Lima e Silva, dependendo do grupo que ocupa a liderança máxima do Brasil, pode ser cultuada como um grande herói nacional, a um cruel exterminador de membros de movimentos libertários
A figura de Luís Alves de Lima e Silva, dependendo do grupo que ocupa a liderança máxima do Brasil, pode ser cultuada como um grande herói nacional, a um cruel exterminador de paraguaios e de brasileiros membros de movimentos libertários

Outro exemplo de herói a serviço do governo é o duque de Caxias, que já era reconhecido pelos políticos do Partido Conservador, do qual fazia parte, durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). “Ele havia tomado decisões em campo de batalha que dirigiram os combates a favor do Império. Foi essa situação que fez com que sua biografia se engrandecesse e que sua atuação anterior – no combate às revoluções que ocorreram no Brasil nas décadas de 1830 e 1840 – fosse interpretada de modo positivo”, explica Cecília Oliveira. Mas durante a ditadura, a historiografia marxista atacou o herói militar, considerando-o um assassino, por ter liderado o Brasil na guerra mais sangrenta da América Latina.

Essa discussão sobre quem são os heróis, expondo versões sobre “o outro lado” do senso comum, pode parecer uma tentativa de derrubar os grandes personagens. Mas a questão não é assim tão simplória. “Os estudos históricos, desde os anos 1920, têm procurado desmistificar os heróis para evidenciar como foram projetados. Para o historiador, o fundamental não é descobrir ou destruir  heróis, mas reconstituir uma época, um evento, uma situação, para entendê-los por inteiro, nas suas várias facetas e contradições”, elucida Cecília.

Já este personagem seguramente foi um grande líder para aqueles que o seguiam, estrategista e conhecer a sua história ajuda muito a compreender o nosso atual flagelo da violência no Brasil. Infelizmente se perde muito tempo na quase eterna discussão se ele foi herói ou bandido!
Seguramente este homem foi um grande líder para aqueles que o seguiam, um inteligente estrategista e muito valente. Conhecer a sua história ajuda muito a compreender o nosso atual flagelo da violência no Brasil. Infelizmente se perde muito tempo na quase eterna discussão se ele foi herói ou bandido!

E contradição é o que não falta quando ao assunto é um grande personagem. Além de suas biografias terem diferentes versões com o passar do tempo, há também casos em que o indivíduo é endeusado e demonizado num mesmo período. Assim é Lampião: alguns batem palmas para sua origem humilde e para o discurso de que ele entrou no cangaço para fazer justiça; outros têm repugnância por quem talvez tenha sido o mais cruel dos bandidos do Nordeste. Já o padre Cícero é ainda uma personalidade muito popular na região, onde nem sempre o senso comum está de acordo com a historiografia acadêmica. Sua biografia não deixa escapar uma possível aliança com o cangaço para combater a Coluna Prestes, liderada por outro herói nacional, Luiz Carlos Prestes.

Como se vê, há heróis para todos os lados. E se eles refletem, de certa forma, as transformações das sociedades, é natural que novos heróis surjam a cada época. Decretar um feriado em homenagem a Zumbi e à Consciência Negra, como ocorre hoje em mais de 200 cidades brasileiras, só foi possível quatro séculos depois do fim do Quilombo dos Palmares. Nesse caso, novamente a memória e a política se unem. Desta vez, como resultado do crescente movimento em defesa dos direitos dos negros.

Além de Zumbi, o quilombola Malunguinho foi bastante perseguido em Pernambuco no século XIX e é reverenciado como herói. “Hoje, este líder é muito comemorado no catimbó, no meio da mata, com festas”, conta o historiador pernambucano Marcus de Carvalho. Em 1827, tropas do governo enfrentaram o quilombo de Malunguinho, mas muitos negros conseguiram fugir, inclusive o líder. Uma recompensa de 100 mil-réis foi oferecida por sua captura ou morte. “Para se ter uma ideia do temor que ele provocava, foi a maior quantia proposta pela captura de alguém vivo ou morto em Pernambuco até a Cabanada (1832-1835)”, diz o historiador. Atualmente, o quilombola é, inclusive, nome de uma lei estadual que criou a Semana Estadual da Vivência e Prática da Cultura Afro Pernambucana, em 2007.

O marinheiro João Cândido
O marinheiro João Cândido

O líder da Revolta da Chibata, João Cândido, é outro personagem que foi ainda mais valorizado com o movimento negro. Sua vida não para de despertar a curiosidade de pesquisadores, que volta e meia encontram uma novidade sobre o Almirante Negro. Aliás, enquanto ainda se investiga esse mito, a historiografia recente traz a existência de outro líder da Revolta. Os historiadores Marco Morel e Sílvia Capanema de Almeida publicaram recentemente descobertas sobre Adalberto Ferreira Ribas (1891-1963), que provavelmente foi quem escreveu o manifesto com as reivindicações do movimento contra os castigos corporais aplicados aos marinheiros.

A descoberta de novos heróis e a revisão dos antigos pode estar também associada ao aumento de estudos biográficos. Durante muito tempo – aproximadamente até a década de 1970 –, a biografia não era considerada História por se tratar de uma investigação sobre um indivíduo, e não sobre acontecimentos coletivos. Mas o próprio Karl Marx, que é referência para a história social, já dizia que não via os indivíduos como elementos isolados… Se a historiografia muda, os heróis também podem mudar. Enquanto isso, a juventude brasileira veste camisetas com estampas do argentino Che Guevara.

Saiba Mais – Bibliografia

CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

RÉMOND, René (org.). Por uma História política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

MALERBA, Jurandir (org.). A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/mitos-na-berlinda