BENTO QUIRINO, A VIOLÊNCIA NO SERTÃO DE OUTRORA E A BUSCA PELA HISTÓRIA

Vaqueiro nordestino – Fonte – IBGE.

Rostand Medeiros – IHGRN.

Para uma pessoa que faça parte de uma família que tenha sido seriamente atingida pela violência e lhe tenha sido negado o direito ao conhecimento desses episódios, normalmente essa pessoa tem dois posicionamentos clássicos – Ou cria um total desinteresse por tudo ligado ao passado, ou passa a ter uma vontade extrema de buscar conhecer tudo que ocorreu com a sua família, para assim compreender como se desenrolou a história.

Eu me coloco no segundo caso!

Sou neto por parte do meu pai de Joaquim Paulino de Medeiros Filho, um pequeno fazendeiro conhecido como Jaco, que viveu na região entre as cidades potiguares de Acari, Carnaúba dos Dantas e Jardim do Seridó. Em 13 de abril de 1952 ele foi brutalmente assassinado a punhaladas por um primo. O assassino se chamava José Quintino de Medeiros, e o caso se deu em decorrência de uma suposta dívida. Meu avô foi morto diante do meu pai, Calabar Medeiros, que na época tinha apenas 12 anos de idade. Essa terrível ação sangrenta, algo extremamente pesado na existência dos meus familiares e na minha própria formação, teria sido influenciada e apoiada a mando de um soba regional, que desejava a morte do meu avô por questões de terra e política. Mas antes mesmo desse terrível assassinato, meu avô sofreu toda uma série de perseguições e dissabores que atingiram a sua vida e a de seus familiares desde novembro de 1935. 

Na nossa história familiar essa ação sangrenta ficou indelevelmente marcada. Mas igualmente ficou marcada entre nós os nomes daqueles que realizaram ações de apoio ao meu avô.  Um dos nomes que ouvi da minha avó era de um homem chamado Bento Quirino.

Há pouco tempo, ainda no mundo anterior ao COVID-19, eu parti numa busca para tentar encontrar algo sobre essa figura, saber sobre sua história e ter ideia de sua relação com meu avô.

Encontrei muito material sobre um homem chamado Bento Quirino, um sertanejo típico dos primeiros anos do Século XX. Ele era disposto, lutador, que se meteu em confusões e sofreu a perda violenta de toda a sua família no sertão da Paraíba. Na sequência foi para a cadeia e até participou de uma revolta organizada por um homem letrado.

Casa grande da fazenda Rajada, entre as cidades potiguares de Acari e Carnaúba dos Dantas, pertencente a Joaquim Paulino de Medeiros, bisavô do autor desse texto.

Teria sido esse mesmo Bento Quirino o mesmo homem que ajudou meu avô e que no sertão de outrora viveu em meio a tragédias extremas?

Quem Foi Bento Quirino?

Sou nascido em Natal, capital do Rio Grande do Norte, onde o começo de minha vida foi no bairro operário das Rocas, na beira do Oceano Atlântico. Poderia nunca ter me importando com o sertão. Mas certamente por toda a minha história familiar, na minha mente eu sempre achei que o sertão possuí algo de verdadeiramente mágico.

É uma região que gravita entre o árido e o belo, em meio a paisagens únicas e uma natureza ressequida e dura. Onde vivem homens e mulheres criativos, trabalhadores, prestativos, persistentes e corajosos, que não têm medo nem de cara feia e nem de enfrentar as dificuldades da vida!

Talvez mais no passado do que agora, onde valores e tradições mudam tão rápido quanto a velocidade ditada pela internet e o meio digital, os sertanejos admiravam fortemente aqueles que mantinham a palavra, os que lutavam pela sua honra e os que não aceitavam serem desmoralizados. Tinham muita estima por aqueles que, por mais humilde que fosse a sua existência, eram ousados, valentes, que brigavam para conservar a própria altivez e daqueles que não tinham medo do limite entre a vida e a morte para manter intacta sua dignidade e seus valores. Valores que hoje em dia são considerados arcaicos!

Nesse sertão do passado não foram raros os episódios que terminaram em terríveis cenas de sangue para reparar a honra atingida. Normalmente essas situações limite tinham dois lutadores que travaram lutas épicas, permeadas de muito ódio. Muitas vezes os resultados dessas contendas eram tão impactantes, que chamavam a atenção de comunidades e regiões inteiras. Mormente essa curiosidade se dava pela maneira tranquila dos adversários encararem a morte. Na sequência esses casos eram propagados de forma intensa e com forte apelo popular.

Típico punhal do sertão do Nordeste.

Essa divulgação poderia acontecer de várias maneiras, principalmente nos encontros sociais que aconteciam nas feiras sertanejas, ou nos alpendres das casas centenárias. Os primeiros comentaristas geralmente eram aqueles que estavam mais próximos dos acontecimentos, dos fatos. Mas logo a narrativa avançava e os episódios narrados cresciam tanto em grandiloquência como em popularidade.

Não demorava muito e um talentoso poeta do povo escutava o caso e em pouco tempo a terrível cena de sangue se metamorfoseava em uma bela estrofe, no formato de uma sextilha, ou de uma décima de sete sílabas, ou de um martelo alagoano. Depois os versos poderiam ser impressos no formato de um tradicional folheto de cordel. Isso dava condições daquelas histórias ganharem a eternidade que o material impresso possui. Mas isso não significava que todas as histórias de lutas figadais do Nordeste do Brasil, de adversários que “se pegavam no Campo da Honra”, se tornariam versos populares, ou seriam impressas em cordel. Até onde sei esse foi o caso de Bento Quirino.

Vaqueiros em uma antiga fazenda no sertão.

Mas para contar corretamente essa história precisamos voltar para o ano de 1910, um ano bastante seco no sertão[1].

O local é a cadeia pública da cidade paraibana de Patos, onde uma pessoa que desconhecemos seu nome ali esteve para conhecer um dos prisioneiros. Esse desconhecido certamente era um homem de letrado, pois na primeira página do jornal paraibano O Norte, edição de 21 de setembro de 1913[2], ele narrou com riqueza de detalhes sobre esse encontro.

Lhe apresentaram um homem cujo nome de batismo era Bento José de Guimarães, mas era conhecido por todos como Bento Quirino. Foi descrito como sendo alto, com músculos fortes, de espaduas largas e bonito na fisionomia. Ainda segundo o desconhecido articulista o detido falava com altivez, tinha a palavra desembaraçada, se exprimia com gestos fortes e seus olhos azuis movimentavam-se de forma rápida e rítmica, acompanhando as suas ideias inteligentes. E continuou apresentando o encarcerado nas páginas de O Norte da seguinte forma:  

Na Chronica pavorosa dos delictos, que enche pintada em sangue a história do sertão parahybano, Bento Quirino é figura única pela exquisita caracteristica de sua modalidade criminal. Nem Adolfo, Nem Jesuíno Brilhante, nem Antônio Silvino reúne como elle as qualidades maximas de fôrça, de bravura, de mal orientado heroismo selvagem. Se é mais longa a vida de cada um daquelles e mais variada de peripécias monstruosas e ruins, a de Bento Quirino tem a originalidade mascula que reflecte o grau alto e bruto de sua energia organica.

Elle só mata a punhal”       

Fazia então quase quatro anos que Bento Quirino estava preso na Cadeia Pública de Patos, aguardando um julgamento por dois assassinatos. O detalhe é que até o momento do encontro, em 1910, ele ainda não tinha sido julgado e poderia receber uma pena de até trinta anos de cárcere. Mesmo diante dessa situação, Bento Quirino não demonstrou ao homem que lhe visitou esperança. Mas também não exprimiu a menor contração de tibieza, ou de fragilidade.

Foto meramente ilustrativa de um típico vaqueiro do sertão – Fonte – IBGE.

Contou que seu primeiro problema com a justiça ocorreu anos antes, na cidade paraibana de Campina Grande, quando foi acusado de furtar um cavalo, situação que Bento Quirino apontou como sendo “calumniosa”. Respondeu à justiça por esse caso e foi absolvido. Logo voltou a se encontrar com o aparato jurídico paraibano daqueles tempos, quando respondeu por um crime de assassinato. Nesse caso, que provavelmente também ocorreu em Campina Grande, ele foi atacado por um grupo de homens e apunhalou um deles, levando seu agressor a óbito. Novamente Quirino foi absolvido, pois o caso foi enquadrado como legítima defesa.

No mesmo jornal paraibano O Norte, edição de 21 de setembro de 1913, soubemos que após esse caso de legitima defesa, houve um terceiro encontro entre Bento Quirino e a justiça, só que dessa vez o caso estava ligado a uma cidade da região do Seridó do Rio Grande do Norte.

Consta que Bento Quirino decidiu seguir para uma aldeia menor. Estava nesse lugar levando a vida, quando recebeu um chamado de um primo e amigo para ir até a cidade potiguar de Jardim do Seridó. Ali seu parente havia se metido em confusões e ao destemido paraibano foi solicitado que protegesse essa pessoa em uma viagem pelos caminhos do sertão. Quirino aceitou a empreitada.

Uma noite partiu de Jardim do Seridó pelas estradas sertanejas com seu parente, quando em um determinado lugar foram emboscados por três homens que possuíam armas de fogo. Mesmo diante dessa situação desvantajosa, o paraibano não se perturbou e partiu para cima dos atiradores. Atacou a todos valentemente com seu punhal, enterrando sua arma até o cabo nos corpos daqueles infelizes, em meio a tiros, gritos e muita confusão. Ao raiar do dia os três espingardeiros estavam mortos e Bento Quirino e seu parente vivos. Novamente esteve diante da justiça, nesse caso não sei se a paraibana ou a potiguar, onde foi novamente absolvido.

Depois de tanto bater na porta da justiça, segundo o desconhecido articulista do jornal O Norte, Bento Quirino decidiu buscar paz. O valente paraibano seguiu com sua família (da qual não temos nenhuma informação anterior) para uma área que foi assim apresentada, conforme está no original: “Foi assentar a tenda de agricultor no fertil valle dos Ferros, frauda acidental da borburema, sobre os ultimos fios dagua do Pinháras”. Foi nessa região que Quirino comprou algumas braças de terras, levantou uma tosca casa de taipa e por lá ficou vivendo e sobrevivendo.

A Hecatombe de Taperoá[3]

Aparentemente a região onde a casa foi erguida não seria muito distante da então da cidade de Taperoá, antiga vila de Batalhão. A partir desse ponto vamos incorporar as fontes dessa história o jornal natalense A República, que em 12 e 15 dezembro de 1906 publicou duas interessantes notas da tragédia que envolveu Bento Quirino e sua família[4].

1906 foi um ano de boas chuvas e aquele momento poderia ser muito positivo na vida de Bento Quirino. Mas ele começou a ter problemas por questões de terra com um cidadão de nome Benedicto Leite.

Aparentemente a coisa toda desandou de forma intensa para uma situação extremamente radical, certamente pelo espírito bélico dessas duas figuras sertanejas. Pois os jornais apontam que por essa questão Quirino e Leite haviam se tornado “inimigos irreconciliáveis, jurando matar-se ao primeiro encontro, sendo ambos peritos no manejo das armas e de uma coragem de leões”.

A questão desbancou para a violência sangrenta quando um dia, ao retornar para sua casa de uma pequena viagem, Bento Quirino soube que suas filhas foram “insultadas” por parentes de Benedicto Leite. Os jornais não narram os detalhes e nem a natureza desses “insultos”, mas em uma época e em uma região onde a honra de mulheres era algo sagrado, nem necessitaria que as filhas de Bento Quirino sofressem alguma violência mais intensa e ampla, como a sexual, para que fosse possível uma resposta violenta de seu pai.

Lhe foi narrado com detalhes o ocorrido, mas Quirino não disse absolutamente nada. Apenas esperou chegar o sábado, dia 25 de novembro de 1906, dia de feira em Taperoá.

Uma das fontes pesquisadas aponta que ele seguiu para o lugarejo com um filho, outra aponta que ele foi só mesmo. O certo é que chegou na cidade e passou a circular pela praça, em meio ao burburinho dos vendedores e clientes. Por lá se encontravam o filho e um genro de Benedicto Leite. Estes logo foram informados da presença do desafeto, mas não se alteraram e nem partiram.

Depois de um tempo, Quirino, sem maiores alardes, levou seu burro até a casa onde estava hospedado o filho de Benedicto e, após iludir o dono da vivenda, chegou sem dificuldades ao quintal onde encontrou o rapaz e lá o inquiriu sobre o acontecimento envolvendo suas filhas. Logo os dois partiram para a luta armados de punhais e não demorou para Quirino matar seu oponente a estocadas.

Na sequência saiu para a rua ainda sujo do sangue do inimigo abatido e com o punhal pingando rubro líquido. Logo estava diante do genro de Benedicto, que igualmente não fugiu. Ambos partiram para a luta na frente de toda a comunidade e novamente Quirino venceu seu adversário, mas dessa vez ficou ferido.

Nesse ponto as fontes pesquisadas (Jornais A República, de 1906, e O Norte, de 1913) são unanimes sobre a vingança de Benedicto Leite.

Depois de velarem e enterrarem os cadáveres do filho e do genro, Benedicto partiu para a propriedade de Quirino com seus familiares na terça-feira, 28 de novembro. O seu inimigo obviamente não se encontrava na vivenda, mas os Leites não perderam a viagem!

Em meio a gritos de dor e desespero, começaram surrando todos na casa. Na sequência estupraram brutalmente a mulher de Quirino, que depois foi morta a punhaladas no pescoço, isso tudo diante do terror e desespero de suas filhas. Estas foram logo seviciadas e depois mortas com várias estocadas. Um filho de 12 anos e um cunhado de 17 foram igualmente assassinados com armas brancas. Depois os cadáveres foram arrastados para o terreiro e colocados sob o sol inclemente do sertão paraibano para tostarem e serem comidos pelos urubus.  

No caminho de casa os Leites, roupas tingidas de vermelho e sem nenhum remorso ou medo pela barbárie cometida, gritavam informando que quem enterrasse aqueles cadáveres sofreriam as mesmas consequências.

Mesmo com o recado dado pelos assassinos da família de Quirino, quatro ou cinco dias depois, um membro da comunidade de Taperoá conhecido como Capitão Sulpício mandou enterrar os cadáveres já completamente destroçados. Certamente o triste espetáculo de aves de rapina banqueteando-se com os restos mortais dos familiares de Quirino foi maior que a ameaça dos Leites. Consta que enterramento dos restos mortais daqueles miseráveis foi difícil, tal o estado como se encontravam.

Consta nos jornais que Bento Quirino jurou matar a todos da família Leite.

A Prisão em Nova Cruz

Benedicto sabia da terrível vingança que se abateria sobre ele e sua família e decidiram partir para o Ceará. Essa inclusive foi a última referência que encontrei sobre essa família[5].

Já em relação a situação de Bento Quirino sabemos que quatro meses após a matança de sua família ele foi preso no dia 13 de fevereiro de 1907, na cidade potiguar de Nova Cruz. Provavelmente quem o deteve foi o delegado Anísio Alípio de Carvalho e depois Quirino foi enviado para a Cadeia Pública de Natal[6].

Não sabemos o que Bento Quirino veio fazer em Nova Cruz, talvez buscar algum tipo de apoio? Ou refugiar-se da perseguição da polícia paraibana? Ou procurar membros da família Leite? Mas sabemos que o então Chefe de Polícia da Paraíba, o desembargador Antônio Ferreira Balthar, comemorou muito a captura daquele homem. Entretanto nenhuma nota, informação, ou qualquer outra coisa foi divulgada sobre uma possível prisão, ou abertura de algum inquérito contra Benedicto Leite e sua família[7].

Bento Quirino então ficou detido na Cadeia Pública de Patos, sem julgamento, até o dia 24 de maio de 1912, quando um bacharel em direito, formado na tradicional Faculdade de Direito de Recife, lhe tirou de sua cela. Mas isso não aconteceu com um Habeas Corpus na mão, mas com um rifle calibre 44 e uma cartucheira de balas!

O Dr. Augusto Santa Cruz e a “Guerra de 12”[8]

Augusto de Santa Cruz Oliveira nasceu em Alagoa do Monteiro, atual Monteiro, Paraíba, em 1º de novembro de 1873, sendo oriundo de uma tradicional família de latifundiários e políticos. Seguiu para o Recife onde se formou bacharel em direito no ano de 1895 e três anos depois era promotor público em sua cidade natal.

Nos primeiros anos do Século XX a política na Paraíba era um grande caldeirão fervescente, onde não faltavam ações violentas com perseguições, espancamentos, invasões de vilas, tiroteios e mortes. Em meio a busca de espaços políticos, no ano de 1910 Augusto Santa Cruz arregimentou homens para se “proteger”, mas igualmente atacar adversários[9].

Por suas ações Augusto Santa Cruz foi pronunciado pela justiça paraibana em 25 de janeiro de 1911. Foi preso, levado para a capital e perdeu o cargo de promotor. Após sua soltura através de um Habeas Corpus, retornou a sua terra. Seu julgamento, onde ele estava certo que seria uma farsa realizada para prendê-lo, iria se realizar em 6 de maio de 1911. Só que nessa data Augusto Santa Cruz atacou Alagoa do Monteiro com um grupo que para alguns era formado por cerca de 200 homens armados. Várias figuras importantes da comunidade foram feitas reféns, sendo levados para sua fazenda chamada Areal[10].

Casa grande da fazenda Areal, próximo a Monteiro, Paraíba. Anos atrás visitei esse local com a ajuda do amigo Ary Prata, grande estudioso da história da região de Monteiro – Foto – Rostand Medeiros.

Consta que Augusto Santa Cruz tinha a intenção de trocar a liberdade de seus prisioneiros por uma anistia pelos crimes nos quais estava sendo acusado. Mas o então governador paraibano João Lopes Machado fez ouvidos moucos aos pedidos de negociação do “Doutor Rebelado” e mandou a força policial atacar sua fazenda, prender Santa Cruz e libertar os reféns. Depois de forte troca de tiros, Augusto Santa Cruz, seus homens e seus reféns conseguiram fugir[11]. O chefe decidiu seguir para o Ceará, para Juazeiro do Padre Cícero. No caminho foi soltando os reféns aos poucos e depois passou mais de seis meses na meca dos romeiros nordestinos.

Serra de Teixeira – Fonte – IBGE.

Augusto Santa Cruz não havia conseguido sua tão desejada anistia e retornou com vários de seus homens para Alagoa de Monteiro, onde aliou-se com o médico Franklin Dantas, do município paraibano de Teixeira, igualmente desprestigiado pelas lideranças locais e pelo Estado. Juntos organizaram um novo grupo armado, que era constituído desde amigos e parentes, passando por moradores e empregados, tendo espaço até para fugitivos da justiça e cangaceiros. Consta que dessa vez o grupo alcançou a cifra de 400 a 500 homens. Estava tendo início um conflito armado que ficaria conhecido como “A Guerra de 12”.

Revista carioca mostrando uma charge de Augusto Santa Cruz e sua luta.

Em 24 de março de 1912, uma sexta-feira, Augusto Santa Cruz comandou os primeiros ataques as fazendas de seus inimigos em Alagoa de Monteiro. Depois atacou a cidade de Taperoá, que se defendeu durante cinco dias antes de render-se. O próximo alvo foi a cidade de Patos. Os revoltosos de Augusto Santa Cruz chegaram a essa cidade por volta de duas da tarde. Os 16 a 18 praças da polícia que defendiam o lugar, comandados pelo alferes José Ramalho fugiram, assim como muitos habitantes. Foram alguns jovens que tentaram uma resistência a partir da igreja local, mas diante de um grupo com cerca de 400 homens, logo depuseram armas, que foram tomadas pelos homens de Santa Cruz, mas os defensores não foram maltratados.  

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Patos, Paraíba. Não sei se foi essa a igreja que foi utilizada como baluarte de defesa quando da invasão do grupo de Augusto Santa Cruz – Fonte – IBGE.

Um dos que mais sofreu em termos de prejuízos foi o coronel José Jeronimo de Barros Ribeiro, conhecido como “Coronel Tota”. Sua casa e seu comércio foram intensamente saqueados, com prejuízos na ordem de 150 contos de réis. O coronel José Jeronimo e seus familiares ficaram escondidos por dois dias em um quarto na casa de amigos e ele só conseguiu fugir de Patos no domingo, dia 26. Tomou destino para o Rio Grande do Norte, onde percorreu junto com amigos mais de 300 quilômetros até a antiga Baixa Verde, atual cidade de João Câmara. De lá pegaram um trem da Estrada de Ferro Central até Natal e depois um outro trem, desta vez da Great Western, até a capital de Pernambuco[12].    

Foto de Patos na década de 1950, onde vemos a Avenida Sólon de Lucena e a Praça Edvaldo Mota – Fonte – IBGE.

Foi na ocasião que Augusto Santa Cruz tomou a cidade de Patos que Bento Quirino e outros prisioneiros foram libertados! Consta em um jornal que Quirino desejava assassinar o “juiz Fenelon”. Esse não era outro se não o juiz Fenelon Ferreira da Nóbrega, magistrado da cidade de Patos[13].

Bento Quirino não conseguiu seu intento e permaneceu junto ao pessoal de Augusto Santa Cruz e Franklin Dantas. Estes atacaram as cidades e vilas de Santa Luzia do Sabugi, Soledade (29/05/1912) e São João do Cariri (30/05/1912) e pensaram em atacar Campina Grande. A desse ponto, com escassez de munição e diante da resistência oferecida pelo governo estadual, os líderes dispersaram a cabroeira. Augusto Santa Cruz fugiu para Pernambuco e em março de 1913 foi submetido a júri popular em Alagoa de Monteiro, com os irmãos Miguel e Arthur atuando na defesa, sendo absolvido por unanimidade[14].

Após a dispersão do grupo, somente quatro meses depois vamos ter notícias de Bento Quirino.

O alferes Irineu Rangel soube de sua permanência no distrito de Pocinhos, hoje município autônomo, mas que na época pertencia a Campina Grande. A informação era que o foragido procurava um inimigo e não estava com nenhuma arma de fogo, apenas com seu mortal e eficaz punhal. Rangel seguiu com uma tropa que chegou a mandar bala em Quirino, que estava sozinho e conseguiu fugir[15].

Cinco Anos Foragido, Uma Nova Prisão e o Desaparecimento

Então, apesar da sua propalada periculosidade, Bento Quirinio some do mapa. Durante cinco anos nada é divulgado sobre ele. Não temos notícia se ele formou um bando de cangaceiros, ou passou a fazer parte de algum bando, ou que tenha praticado algum assalto, ou tenha assassinado seus inimigos. Parecia que ele havia se escondido e assim tentar viver em paz!

Mas o braço da justiça é longo e pouco dado a esquecimentos, quando isso não convém. Então, em uma pequena nota publicada no jornal O Norte do dia 24 de dezembro de 1918, o delegado de polícia da cidade paraibana de Soledade, o Sr. Genésio Nóbrega, capturou Bento Quirino. Nem o então Chefe de Polícia da Paraíba, Manuel Tavares Cavalcanti, fez qualquer menção sobre essa prisão!

Desse ponto em diante a pesquisa em jornais, livros e outros meios parou. Por esses caminhos nada mais encontrei sobre essa figura. E não tinha resposta se foi esse Bento Quirino que ajudou meu avô na década de 1930.

Comecei então uma busca junto aos ditos ”Cangaceirófilos”, os que se arvoram de pesquisadores do Cangaço. Outra perda de tempo e uma fonte de chateação diante da ignorância, canalhismo e da total falta de educação de alguns desses ditos “cientistas”.

Então o jeito era pegar a estrada!

A Busca Pela História e a Descoberta de um Esconderijo de Pistoleiros

Antes do COVID-19 tomar conta do Planeta Terra, eu segui para a Paraíba com meu primo Hélio de Medeiros Vianna, tentando descobrir se esse personagem tinha relação com nosso avô.

O autor e seu primo Hélio de Medeiros Vianna em busca da História de nossa família.

Seguimos adiante com os poucos dados que a nossa tradição familiar tinha deixado. Primeiramente estivemos na cidade paraibana de Frei Martinho, na Microrregião do Seridó Paraibano, onde uma fazenda na região poderia ter relação com a figura de Bento Quirino.

Casa de Memória Vicente Ferreira de Macedo, na propriedade Várzea verde, Frei Martinho – PB.

Estivemos na dita fazenda e comprovamos que ela tem relação com uma outra pessoa que ajudou nosso avô Jaco Medeiros, mas nada sobre Bento Quirino. Entretanto a visita a Frei Martinho e região foi muito proveitosa. Chamou a nossa atenção a existência de um local denominado “Casa de Memória Vicente Ferreira de Macedo”, na propriedade denominada Várzea verde, destinada a preservar a história da família Ferreira de Macedo.

Outra situação interessante nessa pequena cidade de pouco mais de 3.000 habitantes foi a existência em uma de suas praças principais de um memorial em honra dos frei-martinenses que participaram da Força Expedicionária Brasileira – FEB, durante a Segunda Guerra Mundial.  

Dessa cidade seguimos para a cidade de Cuité, com cerca de 20.000 habitantes, onde contatamos uma pessoa que nos passou uma referência interessante sobre uma propriedade onde viveu um cidadão cuja história se enquadrava ao personagem Bento Quirino. Comentou também que essa propriedade ficava alguns quilômetros da vizinha cidade de Barra de Santa Rosa.

Com seus mais de 15.000 habitantes, Barra de Santa Rosa se mostrou uma localidade interessante e acolhedora. Lá conhecemos o Senhor José Severino de Oliveira Lima, conhecido como Zé de Nininha, comerciante local, que de uma forma tranquila e prestativa se prontificou a nos apresentar pessoas que poderiam ampliar nosso conhecimento. Através desses contatos descobrimos que nas propriedades denominadas Passagem do Salgado e Gangorra, cerca de 35 quilômetros de distância dessa cidade, poderíamos encontrar boas informações.

Plantação de sisal na zona rural de Barra de Santa Rosa – PB.

Buscamos o caminho que segue em direção ao município paraibano de Olivedos. Ao percorremos essa estrada de barro avistamos muitas plantações de sisal e após um tempo chegamos nessas propriedades. Ali fomos recebidos de maneira magistral e calorosa pelos membros da família Viriato.

Em uma conversa bem tranquila, na sala de uma antiga casa de fazenda, cercada de pessoas altamente atenciosas e receptivas, descobrimos que ninguém possuía nenhuma referência se meu avô se refugiou naquelas propriedades, ou se um cidadão conhecido como Bento Quirino viveu naquele setor. Segundo as pessoas do lugar, quem poderia dar alguma informação já se encontrava em outro plano espiritual.

Fazenda Gangorra.

Infelizmente não consegui descobrir nada que pudesse elucidar a questão se o Bento Quirino que encontrei nos jornais antigos, que viveu momentos tão intensos e violentos em sua vida, foi a mesma pessoa que ajudou meu avô Jaco Medeiros.

José Antônio Maria da Cunha Lima Filho – Fonte – httptrilhasdeareia.blogspot.com201002major-cunha-lima-o-barbado-de-areia.html

Mas os membros da família Viriato me garantiram que a tradição oral local informou que no passado, antes deles chegarem por lá, aquelas propriedades serviram de esconderijo para pistoleiros que trabalhavam para o “Coronel Cunha Lima”, da cidade paraibana de Areia. Acredito que eles se referiam ao fazendeiro e líder político José Antônio Maria da Cunha Lima Filho, um importante político paraibano, eleito deputado estadual em várias ocasiões, elegendo prefeitos em Areia e foi fundador da UDN naquele estado. Para os membros da família Viriato, o poder desse homem era tanto que bastava alguém pegar em um mourão da cerca dessas propriedades que estava protegido e nem a polícia poderia fazer nada contra essa pessoa.

Como esse não era o objetivo da nossa pesquisa, demos a busca por encerrada.

Uma antiga balança de pesagem de algodão.

Mesmo com o resultado sendo negativo, em nenhum momento me senti decepcionado. Havia realizado uma maravilhosa viagem com meu primo Hélio, tinha conhecido pessoas super prestativas e atenciosas, onde a tradicional hospitalidade do sertanejo nordestino esteve presente de maneira magistral.

Pesquisar história é assim mesmo. Tem dias que funciona e em outros não, mas o que valeu nessa empreitada foi o caminho e não o destino!

Continuo com a minha busca!

NOTAS –


[1] Sobre a cronologia histórica das secas na Região Nordeste, ver o interessante trabalho Secas no Nordeste: registros históricos das catástrofes econômicas e humanas do século 16 ao século 21, de José Roberto de Lima, Antonio Rocha Magalhães, acessível em – http://seer.cgee.org.br/index.php/parcerias_estrategicas/article/viewFile/896/814

[2] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB. edição de 21 de setembro de 1913, pág. 1. Sobre quem teria escrito esse texto permanece um mistério, mesmo após extensas buscas. Entretanto me chamou a atenção a forma muito bem escrita do texto e a maneira como o autor apresenta Bento Quirino.

[3] O termo “Hecatombe de Taperoá” certamente causará estranheza nas pessoas oriundas dessa interessante cidade, pois até onde sei essa terminologia não existe por lá, foi uma criação minha para esse texto. Na verdade, eu nem sei se esses horrendos e sangrentos crimes são de conhecimento da população local. Entretanto, eles estão claramente referenciados em pelo menos dois grandes jornais da Paraíba e Rio Grande do Norte do início do Século XX.

[4] Ver A República, Natal-RN, edições de 12 e 15 de dezembro de 1906, sempre nas páginas 2 dessas respectivas edições.

[5] Ver A República, Natal-RN, edição de 15 de dezembro de 1906, pág. 2.

[6] Na Mensagem entregue pelo governador potiguar Alberto Maranhão ao Congresso Legislativo do Estado, atual Assembleia Legislativa, no ano de 1904, encontramos na página 16 que Anísio Alípio de Carvalho havia sido empossado para o cargo em 15 de outubro de 1903.

[7] Sobre a prisão de Bento Quirino ver a Mensagem Apresentada a Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, em 1º de setembro de 1907, pág. 7.

[8] A melhor fonte de informações sobre Augusto Santa Cruz e sua revolta em 1912 é o livro Guerreiro togado – Fatos históricos de Alagoa de Monteiro, de Pedro Nunes Filho, Editora UFPE, Ed. 1997, Recife-PE.

[9] Um desses inimigos foi José Pereira de Gouveia, o capitão Zé Gouveia, que em 10 de outubro de 1910 se envolveu em um tiroteio contra o pessoal de Santa Cruz na sua propriedade Cachoeirinha, perto da vila de São Tomé, atual cidade paraibana de Sumé. Desse embate Gouveia saiu ferido, quase perde a perna e por essa razão se retirou da região e foi viver em Pernambuco.

[10] Durante o ataque a Alagoa do Monteiro os homens de Santa Cruz dominaram a cadeia, libertaram os presos e o chefe deixou seus homens agirem com liberdade pela cidade contra tudo que pertencesse aos seus inimigos.

[11] Nesse episódio a polícia paraibana queimou a fazenda de Santa Cruz totalmente.

[12] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB, edição de 7 de junho de 1912, pág. 1.

[13] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB, edição de 8 de junho de 1912, pág. 1.

[14] Depois disso, exerceu o cargo de juiz de Direito em várias localidades de Pernambuco e ganhou fama de magistrado realmente justo. Aposentou-se em Limoeiro-PE, onde faleceu, em 31 de outubro de 1944, aos 69 anos de idade.

[15] Segundo o amigo Sérgio Augusto de Souza Dantas, Irineu Rangel era um destacado e valente policial paraibano, tendo combatido Antônio Silvino, Lampião no Ceará após ao ataque a Mossoró de 1927 e combatido as tropas do coronel José Pereira na chamada Guerra de Princesa de 1930.

MARCOS DE RELIGIOSIDADE NO CAMINHO DE LAMPIÃO NO RIO GRANDE DO NORTE

Rostand Medeiros – Escritor, Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e historiador.

Jornal Tribuna do Norte.

Em 2010, em alternadas viagens,  estive percorrendo pela primeira os cenários da passagem do bando de Lampião no oeste potiguar, fato que ocorreu entre os dias 10 e 14 de junho de 1927.

Segui principalmente por áreas rurais desde a cidade de Luís Gomes, tendo como ponto focal Mossoró e finalizando em Baraúna. Percorri esse caminho originalmente palmilhado por estes cangaceiros como parte de uma consultoria que prestei ao SEBRAE, no âmbito do projeto Território Sertão do Apodi – Nas Pegadas de Lampião. Parte desse trajeto, que também focava em questões da espeleologia da região, percorri junto com Sólon Almeida.

Para traçar essa rota, além das obras escritas sobre a história da passagem do bando de Lampião pelo Rio Grande de Norte, fiz uso de materiais históricos existentes nos arquivos do Rio Grande do Norte, Paraíba e de Pernambuco e a bibliografia existente, com destaque ao livro do amigo Sérgio Augusto de Souza Dantas, autor de Lampião e a grande Jornada – A história da grande jornada.

Foram percorridos muitos quilômetros, onde visitamos vários sítios, fazendas, comunidades e cidades. Foram entrevistadas 123 pessoas e obtidas mais de 2.000 fotos. Em grande parte deste trajeto, a motocicleta se mostrou um aliado muito mais eficiente para se alcançar estes distantes locais.

Um dos fatos mais interessantes foi o surgimento de marcos de religiosidades ligados aqueles dias tumultuosos de 1927.

Cruzeiros marcando locais de acontecimentos intensos, capelas edificadas como promessas pela salvação de pessoas ante a passagem dos cangaceiros, o caso da utilização de uma igreja por parte dos cangaceiros. Além desses fatos temos a controversa situação envolvendo o túmulo do cangaceiro Jararaca na cidade de Mossoró.

Ao longo dos anos eu tive a grata oportunidade de realizar esse caminho em quatro outras ocasiões, sendo o mais importante em 2015, para a realização de um documentário de longa metragem denominado Chapéu Estrelado, dirigido pelo mineiro radicado no Rio de Janeiro Silvio Coutinho e produção executiva de Iapery Araújo.

Infelizmente pelo falecimento do diretor Coutinho em 2018, no Rio, esse documentário não seguiu adiante.

Esses foram os locais mais interessantes ligados a esse tema e seus respectivos municípios.

MARCELINO VIEIRA 

A área próxima à sede do atual município de Marcelino Vieira é repleta de lembranças e marcos que mantém vivo na memória da população local os fatos ocorridos naquela longínqua sexta-feira, 10 de junho de 1927.

Cruz em homenagem ao soldado Matos.

Sítio Caiçara e a “Missa do Soldado” – Nesse local ocorreu um combate onde morreram o soldado José Monteiro de Matos e o cangaceiro Patrício de Souza, o Azulão.

Percebemos nitidamente que para as pessoas que habitam a região, os fatos mais marcantes em termos de memória estão relacionados ao combate conhecido como “Fogo da Caiçara” e a valente postura do soldado José Monteiro de Matos. Não foi surpresa que membros da comunidade local, no dia 10 de junho de 1928, apenas um ano após o combate na região da Caiçara, decidissem realizar, uma missa em honra a memória do valente militar.

Igrejinha onde é rezada a “Missa do Soldado”.

Segundo pessoas da comunidade do Junco, as margens do açude da Caiçara, de forma espontânea e apoiadas pelas lideranças locais, os mais antigos moradores deram início a um ato religioso. No começo ele ocorria no mesmo ponto onde se desenrolou o combate. Segundo pessoas entrevistadas na região, o evento sempre atraiu um número considerável de pessoas, passando a ser conhecida como “A Missa do soldado”. Com o passar do tempo à missa transformando-se em uma das mais importantes tradições religiosas de Marcelino Vieira.

ANTÔNIO MARTINS – ZONA RURAL

Fazenda Caricé – a fazenda Caricé estava no roteiro de destruição dos cangaceiros. Caminho lógico para quem seguia em direção norte, no caminho a Mossoró, a fazenda pertencia ao pecuarista Marcelino Vieira da Costa. Este era um paraibano que prosperou com a criação de gado e tornou-se tradicional líder político. Faleceu em dezembro de 1938 e seu nome batiza atualmente a cidade onde decidiu viver.

Capela em honra a Jesus, Maria e José, no sítio Caricé, erguida como promessa pela salvação da família do Coronel Marcelino Vieira das garras do bando de cangaceiros de Lampião

Ao saber da aproximação do bando do cangaceiro Lampião, o fazendeiro Marcelino Vieira decidiu dormir em uma área onde existia um canavial, próximo ao açude da fazenda. A chegada do grupo, insuflados por supostas contas a acertar do temível cangaceiro Massilon Leite com a família Vieira, produziu um saque que resultou em um prejuízo no valor de um conto e duzentos mil réis. Os celerados deixaram o lugar antes do meio-dia.

Da velha sede da fazenda Caricé nada mais resta, mas por lá encontramos uma pequena capela.

Interior da capelinha.

Quando a família Vieira e seus empregados estavam no canavial, em dado momento alguns cangaceiros chegaram a se aproximar do esconderijo. Diante do que poderia acontecer, com muito medo, a filha do fazendeiro, rogou intensamente aos céus que os bandoleiros se afastassem.

Vista noturna da capela do Caricé.

Caso isto se concretizasse, ela e sua família tratariam de erguer uma ermida em honra ao poder de Jesus, Maria e José. Pouco tempo as imagens foram adquiridas ainda em 1927, tendo sido trazidas da Bahia e que a primeira missa rezada no local foi verdadeiramente suntuosa.  O templo já apresenta sinais de abandono, com algumas telhas caindo, mas a estrutura ainda se mantém em grande parte firme.

Serra da Veneza.

Capelinha da Serra da Veneza – Uma interessante situação relativa à memória da passagem do bando nessa região ocorreu na região da Serra da Veneza, na fronteira de Antônio Martins com o vizinho município de Pilões. Nessa elevação granítica, que segundo o mapa da SUDENE chega a atingir a altitude de 555 metros, existe uma capela edificada em razão do medo provocado pela passagem do bando.

Quando Lampião e seu bando se aproximavam, em meio às terríveis notícias, três fazendeiros da região procuraram refúgio junto às rochas da base desta elevação. Essas famílias solicitaram junto ao mesmo santo, São Sebastião, que os protegessem contra a ação dos cangaceiros. E o mais interessante, mesmo sem se combinarem, as três famílias elegeram a mesma penitência; caso nada de negativo ocorresse a eles e as suas famílias, cada um deles teria de galgar a Serra da Veneza, erguer um oratório e ali depositar uma imagem em honra ao santo.

Capelinha da Serra da Veneza.

Lampião passou sem acontecer problemas a essas pessoas. Logo os fazendeiros e seus familiares foram a Vila de Boa Esperança, como muitos moradores da região, para agradecer na capela de Santo Antônio pelo fato de nada de pior haver ocorrido. Nesse local as três famílias se encontraram e ao debaterem sobre os fatos vividos, para surpresa de todos os presentes, compreenderam que havia ocorrido uma interseção divina com relação a eles terem tido as mesmas ideias e os mesmos pensamentos de penitência. Em pouco tempo eles adquiriam conjuntamente uma pequena imagem de São Sebastião e logo galgavam a Serra da Veneza para unidos edificarem um pequeno oratório. A ação dos três fazendeiros e as estranhas coincidências chamaram a atenção das pessoas na região e logo outros penitentes subiam a serra para pagar promessas. Em pouco tempo teve início uma procissão e não demorou muito para que o pároco local também viesse participar. Com o passar do tempo começou a ocorrer a participação de pessoas de outros municípios. Em 1948, vinte e um anos após a passagem do bando e do pretenso milagre, treze famílias deram início a construção da atual capela, em meio a uma intensa confraternização.

A cada dia 20 de janeiro, inúmeros ex-votos são colocados como pagamento de promessas, velas são acesas e fiéis de vários municípios vêm participar subindo a serra.

ANTÔNIO MARTINS- ZONA URBANA

Cangaceiros na Capela de Santo Antônio – O período da chegada dos cangaceiros, no dia 11 de junho de 1927, na então pequena comunidade de Boa Esperança, atual Antônio Martins, coincidiu com as celebrações da festa de Santo Antônio, o padroeiro local. De certa maneira essa situação de comemoração e alegria do povo, serviram para a rápida ocupação do lugarejo e a sua total capitulação diante da cavalaria de cangaceiros.

A capela de Santo Antônio era o principal local em Boa Esperança para realização dos festejos relativos ao padroeiro local. Nessa festa é tradicional a realização das chamadas “trezenas”, onde durante treze dias anteriores ao dia 13 de junho, a data consagrada a Santo Antônio, ininterruptamente são realizadas missas, orações de grupos de pessoas com terços nas mãos, cantos de benditos, encontros e outras participações da comunidade neste templo cristão. Quando o bando chegou, haviam algumas pessoas reunidas no local e um grupo de cangaceiros, visivelmente embriagados, proibiu a saída dos fiéis do local. Essas pessoas assistiram horrorizadas de dentro da capela o suplício de um habitante local, o jovem Vicente Lira, que apunhalado e sangrando abundantemente, era obrigado a engolir talagadas de cachaça. Mesmo em meio a essa cena de terror, diante da igreja aberta e engalanada, soubemos que alguns cangaceiros adentraram o local, se ajoelharam, se benzeram e saíram sem perturbar os atônitos presentes. Na saída soltaram Vicente Lira.

Durante todo nosso percurso, esta foi a única informação de que alguns cangaceiros do bando de Lampião, teriam adentrado um templo religioso católico em todo Rio Grande do Norte.

LUCRÉCIA

Fazenda Castelo.

Capela da Fazenda Castelo – Após a saída da cidade de Frutuosos Gomes, na zona urbana do município de Lucrécia, as margens da RN-072, soubemos que o bando realizou a invasão da fazenda Castelo, propriedade tida como a mais importante da antiga localidade. No terreno ao lado da sede da fazenda Castelo se encontra uma bem preservada capelinha dedicada a Nossa Senhora da Guia. Entretanto, ao buscarmos contato com as pessoas mais idosas em busca da história da capela, não foi possível um esclarecimento mais exato sobre quem a construiu e se essa construção tem alguma relação com a passagem do bando de Lampião, como no caso da ermida da fazenda Caricé. Houve pessoas que indicaram que a construção foi consequência de uma promessa pela salvação dos proprietários locais junto a passagem dos cangaceiros, outros indicaram que ela seria anterior a 1927 e outros apontaram que ela seria posterior a essa data. 

Capela da fazenda Castelo, Lucrécia, Rio Grande do Norte.

Foi perceptível a necessidade de ampliar as pesquisas sobre o local.

A Cruz dos Canelas – Depois de passarem por Lucrécia, os cangaceiros atacaram uma propriedade rural e sequestraram um fazendeiro bastante conhecido e querido na região. A notícia se espalhou entre vários parentes e amigos e logo um grupo decide com extrema coragem sair em busca do povoado de Gavião, atual cidade de Umarizal, onde pudessem levantar a quantia estipulada por Lampião para soltar o popular fazendeiro.

Sítio Serrota dos Leites, de onde foi sequestrado o fazendeiro Egídio Dias.

O grupo era pequeno, com um número que aparentemente chega a quatorze e só quatro deles, membros de uma família conhecido como “Canelas”, eram os únicos que os pesquisadores do assunto apontam como possuidores de armas de fogo com alguma potência. Esse grupo conhecia os caminhos e provavelmente confiaram no fato de ser período de lua cheia. Onde essa condição facilitaria o trajeto.

Enquanto se desenrolava esta situação, na região do sítio Caboré, cansados pelo deslocamento, esgotado pelas ações e pelo consumo de bebidas, o bando de cangaceiros decidiu descansar nas terras do Caboré. Por volta das três da manhã o grupo de amigos chegou ao Caboré em busca de informações. Não sabiam que um cangaceiro, facilitado pelo luar, vigiava os movimentos do grupo. No local conhecido como “Serrote da Jurema” foi armada uma emboscada pelo bando de experientes combatentes. Logo abriram fogo contra a incipiente tropa e três deles tombaram e o resto fugiu em franca debandada. Segundo os laudos cadavéricos a vingança do bando de Lampião nos corpos dos amigos do fazendeiro sequestrado foi terrível.

Cruz dos Três Heróis, ou Cruz dos Canelas.

Apesar de todo empenho em buscar ajudar o amigo detido, o que o grupo de resgate não sabia era que a sua ação era totalmente inútil. Algum tempo antes, no bivaque armado pelos bandidos, em meio ao cansaço generalizado da tropa de Lampião, o sequestrado conseguiu fugir para o meio do mato.

Atualmente, as margens da rodovia estadual RN-072, na comunidade Caboré, se encontra uma cruz conhecido como “A cruz dos três heróis”, aonde o povo de Lucrécia e da região vêm homenagear àqueles que agora são conhecidos apenas como “Os Canelas”, ou os “Heróis de Caboré”. No local muitos rezam e pagam promessas e acendem velas em honra desses homens.

MOSSORÓ

Caso da Igreja de São Vicente de Paula e a questão do túmulo do Cangaceiro Jararaca.

A notícia de que Lampião avançava na direção de Mossoró chegou aos ouvidos dos moradores de Mossoró em abril de 1927. À época, a Capital do Oeste Potiguar, como seus habitantes ainda gostam de intitulá-la, já era um dos municípios mais importantes do interior nordestino. Com 20 mil habitantes, localizada no meio do caminho entre duas capitais – Natal e Fortaleza –, em nada se assemelhava às pequenas cidades onde Lampião e seu bando atacava e saqueava o comércio.


Igreja de São Vicente de Paula, em Mossoró.

No dia 13 de junho de  1927, após dizer não a Lampião, que cobrou 400 contos de reis (em moeda da época 400  milhões de reis – atualmente uns 20 milhões de reais) para não invadir a cidade, começava um tiroteio entre moradores da cidade e os cangaceiros. A igreja de São Vicente de Paula foi o local principal da resistência. Lampião costumava dizer que “cidade com mais de uma torre de igreja não é lugar para cangaceiro”. Não se tratava de superstição, mas de raciocínio lógico – municípios com tal característica eram maiores e, portanto, mais difíceis de dominar. Os ocupantes das trincheiras no alto da Igreja de São Vicente e da casa do intendente tinham visão privilegiada do avanço das tropas. Tão logo o grupo surgiu no horizonte, iniciaram-se os disparos. Os cangaceiros, acostumados a desfilar nos povoados sem serem incomodados, foram surpreendidos. 

Findando com a expulsão dos cangaceiros, a morte de alguns deles e a prisão do temível José Leite de Santana, vulgo Jararaca, enterrado vivo no cemitério da cidade, após cavar sua própria cova.

Túmulo do cangaceiro Jararaca.

A Jararaca é atribuída todas as crueldades. A mais famosa consistia em arremessar crianças para o alto e apará-las com a ponta do punhal. Trespassados pela lâmina, garotinhos leves o bastante para serem lançados na direção do sol morriam lenta e dolorosamente, em meio aos gritos dos pais – e às gargalhadas do cangaceiro.

O interessante é que hoje é visto como santo pelo povo, devido a crueldade com que foi morto. Recebendo o seu túmulo visita de milhares de pessoas em dias de finado e ao longo de todo ano. Na verdade mais prestigiado que o túmulo de muitos políticos famosos da cidade, enterrados no mesmo cemitério e esquecidos de todos. Mostrando que nem sempre o séquito que em vida rodeia os poderosos permanece uma vez morto. Ironicamente ao contrário do cangaceiro.

Túmulo de Rodolfo Fernandes.

O famoso chefe cangaceiro deveria ter pensado duas vezes antes de tentar invadir e ser expulso de forma humilhante, assim historicamente a cidade ligou seu nome ao famoso personagem Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Anualmente, em frente  à igreja que funcionou como trincheira é encenada um musical chamado: Chuva de bala no país de Mossoró, que remonta todo o fato histórico e mantém viva a memória.

Os heróis da resistência de Mossoró, de toda forma foram bravos sim!

Mas por que o santificado é um cangaceiro e não um dos resistentes?

Por  que não santificaram o prefeito de Mossoró que liderou a resistência?  Por que as fotos dos heróis da resistência são tão pequenas e a dos cangaceiros estão expostos em painéis enormes? Parece até que o povo de Mossoró não se identificou muito com os heróis da resistência!

Memorial da Resistência.

A história por trás do túmulo de Jararaca se confunde muito com o misticismo, com a conduta cultural de um povo. Jararaca apenas foi consagrado, por conta de sua bravura. O povo sempre busca o menor para enaltecê-lo. É perceptível essa situação no próprio cemitério, quando o túmulo de Rodolfo Fernandes não recebe o mesmo número de visitas correspondentes ao túmulo onde está Jararaca.

Fonte sobre o túmulo de Jararaca – Valdecy Alves, “MOSSORÓ EXPULSOU O BANDO DE LAMPIÃO A BALA – DISSE NÃO À EXTORSÃO DO CANGACEIRO – UM GRANDE FATO NA HISTÓRIA DO NORDESTE – FATOS E FOTOS!” – http://valdecyalves.blogspot.com/2011/12/mossoro-expulsou-o-bando-de-lampiao.html

NO RASTRO DAS CAVERNAS DO CANGAÇO NO SERTÃO PERNAMBUCANO

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Sólon R. A. Netto

Pesquisas históricas indicavam que na região do Sertão do Pajeú, em Pernambuco, uma grande quantidade de abrigos e possíveis cavernas formadas por blocos graníticos seriam antigos refúgios de bandoleiros famosos, que durante anos vagaram pelo sertão e hoje fazem parte do mais autêntico folclore nordestino. Aqueles locais espeleológicos associados à vida desses homens eram certamente sítios de grande importância histórica, os quais nunca foram documentados.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco – Foto de Rostand Medeiros.

Tempos atrás percorremos em pouco mais de três dias quase dois mil quilômetros! Uma jornada puxada, com poucas horas de sono, para descobrir os esconderijos de Antônio Silvino, a gruta onde Lampião abrigara-se ferido e outro local bem interessante.

Início

Saímos altas horas da noite de Natal e seguimos para a fronteira da Paraíba, na área que esta se delimita com o Seridó Potiguar. O nosso grupo era composto por mim, Alex Gomes e Rostand Medeiros e horas depois estávamos avançando pelas últimas cidades da Paraíba e cruzando a divisa com Pernambuco. Quando as estrelas da madrugada foram ofuscadas pela alvorada, já íamos firmes ao primeiro objetivo: a Fazenda Colônia.

Esta propriedade está historicamente muito associada à cidade pernambucana de Afogados da Ingazeira, mas atualmente se localiza na zona rural do município de Carnaíba, a cerca de quatro quilômetros da fronteira com a Paraíba. Neste local nasceu o famoso chefe cangaceiro Antônio Silvino.

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Fazenda Colônia – Foto de Rostand Medeiros.

A história deste guerreiro das caatingas se inicia quando seu pai, o fazendeiro Pedro Batista Rufino de Almeida, conhecido popularmente como “Batistão”, foi assassinado por Desidério José Ramos e alguns de seus parentes em 3 de janeiro de 1897.

Meses depois os assassinos de “Batistão” são absolvidos em um júri controlado por famílias poderosas que apoiavam os seus matadores. A família de Antônio Silvino não desiste e impetra uma apelação e os acusados são recambiados à Casa de Detenção, em Recife. Quando os assassinos do fazendeiro são novamente trazidos escoltados para a região para um novo júri, o policial que comandava o grupo facilitou a fuga de todos. Revoltado, o jovem Manoel Batista de Moraes, então com 23 anos, e um irmão buscam fazer justiça com as próprias mãos. Para conseguir sua desejada vingança eles se tornam cangaceiros e entram em um bando comandado por um parente conhecido como Silvino Aires.

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Antônio Silvino.

Apenas um ano depois, em 1898, o chefe Silvino Aires é preso e Manoel Batista assume o bando, passando a ser conhecido como Antônio Silvino. O nome Antônio é uma referência ao santo de sua devoção, o mesmo da capela da Fazenda Colônia, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras.

Conforme nos aproximávamos da Fazenda Colônia víamos que a geografia local consistia em elevações com trezentos metros de altura em média. Ao chegarmos a entrada da propriedade topamos com três cruzes.

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Foto de Alex Gomes.

Paramos para algumas fotos e logo um vaqueiro se aproximou. Quando indagado sobre aquele antigo marco ficamos sabendo que aquelas eram apenas algumas marcas de memória das muitas “mortes encomendadas” que já se fizeram na região. Segundo o nosso informante aquelas eram cruzes de três pessoas que foram mortas a mando de um dono de engenho, que mandou seus sicários matá-los ingerindo melaço quente. Logo à frente, surgiu um descampado central, revelando uma igreja e um imponente casario. Foi lá que conhecemos os irmãos Antônio e Damião Braz.

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Conhecendo as histórias da Fazenda Colônia com os irmãos Braz – Foto de Solon R. A. Netto.

Após os contatos iniciais e de explicações do porque viemos de tão longe para a Colônia, para nossa surpresa, os irmãos Braz informaram que não existia apenas uma gruta para visitarmos, mas quatro cavidades que os mais velhos afirmaram terem sido utilizadas pelo bando de cangaceiros do chefe Antônio Silvino.

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Vista da antiga casa sede da propriedade – Foto de Solon R. A. Netto.

Não havia condições de conhecer todos os locais comentados e decidimos, então, visitar as grutas do Morcego e a da Pedra Rajada, as mais próximas. Ambas estão localizadas em um setor da Serra da Colônia conhecido pelos moradores como Serra da Lagoa, mas dentro das terras da Fazenda Colônia.

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Iniciando o caminho para o alto da serra – Foto de Rostand Medeiros.

Passava do meio dia, quando nossos anfitriões se ofereceram para nos guiar até as cavernas que os cangaceiros de outrora haviam usado. De início, a trilha estava muito bem definida e seguíamos parando para admirar a fazenda que se perdia bem distante. Por certo ponto, a mata fechou e a subida tornou-se bem íngreme. Em meio às histórias, a caminhada alternava momentos mais íngremes com outros suaves. Chamou a atenção avistar árvores como “barrigudas de espinho” (Chorisia crispifolora), atualmente raras nos sertões potiguares.

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Nas trilhas da serra – Foto de Alex Gomes.

Ao chegar a um ponto onde alguns grandes blocos graníticos, rolados pelas intempéries, uniram-se ao longo de milênios para formar uma cavidade natural, nosso guia Damião foi logo avisando: “Essa daí é a que o povo chama de Gruta do Morcego e tem que entrar se entortando”. Vimos, então, em meio a uma cerrada vegetação típica da região, a entrada da cavidade, na forma de uma estreita fenda diagonal na junção dos matacões. Para espanto maior do grupo descobrimos que aquilo era muito mais do que um simples abrigo de grandes blocos de granito!

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Entrada da Gruta do Morcego – Foto de Rostand Medeiros.

Internamente encontramos um lugar amplo e arejado, com uma saída lateral que, no passado, certamente serviu como rota de fuga para outros locais. Os Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na gruta e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781”. Encontrar tais moedas não é tão raro no Nordeste, mas as circunstâncias de sua descoberta, naquele local, podem apontar para uma série de possibilidades como, até mesmo, à utilização mais antiga do abrigo como possível esconderijo de bandoleiros.

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Saímos satisfeitos com aquela interessante cavidade e seguimos os guias em direção ao alto da serra e a Gruta da Pedra Rajada.

Nas Terras Que Viram Surgir Antônio Silvino

Segundo Antônio Braz os mais velhos narraram que os cangaceiros de Silvino se abasteciam em um antigo poço no alto da serra e ele nós levou até esse local. Atualmente nesse ponto existe uma cacimba e nós experimentamos da água cristalina e saborosa. Segundo os Braz, até hoje esse poço é utilizado pela população local. A água era realmente refrescante! Alguns goles e meia dúzia de cajus maduros nos fizeram repor a energia da subida.

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Antigo poço no alto da serra que, segundo a tradição oral local, é muito antigo e teria sido utilizado pelos cangaceiros de Antônio Silvino – Foto de Rostand Medeiros.

De lá pudemos observar uma espécie de grande piscina natural criado no solo rochoso, o tradicional “tanque” no linguajar dos sertanejos. No dia de nossa visita o local estava seco, mas segundo Damião era bastante frequentado durante os períodos de chuvas. O local é conhecido na região como “Lajedo do Tanque” ou “da Lagoa”.

Mais adiante chegamos ao ponto culminante daquela elevação, onde foi possível divisar toda a região, até mesmo a cidade de Afogados da Ingazeira, a cerca de vinte quilômetros de distância. Ficamos diante de uma bela vista da fazenda, com a igreja, pequena, parecendo uma casinha de brinquedo. A visão é maravilhosa e estratégica, mostrando que bastaria a Antônio Silvino colocar um homem vigilante naquele ponto para saber de toda a movimentação nos arredores.

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Os irmãos Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na Gruta do Morcego e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781” – Foto de Alex Gomes.

Voltamos para a trilha em direção a Gruta da Pedra Rajada, porém o caminho simplesmente desapareceu em meio uma vegetação muito fechada. O trajeto era nítido aos guias, mas a nós, tudo se resumia a um contínuo esquivar-se de galhos e espinhos. Uma mata muito cerrada, escondendo o sol, e logo nos pusemos numa descida que se traduziu num escorrego brecado somente pelo cipoal. Foi desse modo que chegamos à Pedra Rajada, o segundo ponto a ser visitado, um abrigo de difícil acesso numa das encostas da serra.

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Abrigo da Pedra Rajada – Foto de Solon R. A. Netto.

Diferentemente da Gruta do Morcego, a Pedra Rajada não é uma caverna, mas apenas um abrigo granítico formado por uma das faces de um imenso bloco que se encontra com a lateral de outro matacão rolado. É bem protegido e um pequeno grupo de homens poderia se acomodar naquele local com o intuito de buscar um esconderijo de difícil acesso. Mas se aquele local foi realmente utilizado pelos cangaceiros, pela exuberância da vegetação existente atualmente, é fácil deduzir que desde a época de Silvino poucos se atreveram-se a chegar ao local.

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Capela de Santo Antônio da Fazenda Colônia. O nome Antônio é uma referência ao santo da devoção de Manoel Batista de Moraes, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras. Foto de Solon R. A. Netto.

O retorno até a sede da fazenda deu-se nos mesmos moldes: uma descida medonha que, em diversos momentos, simplesmente se convertia em rolamentos ou escorregos. Era soltar o corpo, proteger o equipamento e livrar-se dos espinhos da caatinga misturada com árvores de grande porte. Coisas de serra.

Ao fim do primeiro dia, seguimos para a Paraíba, sendo recebidos na cidade de Manaíra pelo Senhor Antônio Antas Dias, nosso grande amigo e grande conhecedor das histórias dos cangaceiros na região. Ele então se juntou ao nosso grupo.

Em Busca da Serra do Catolé

No segundo dia, pela madrugada, já estávamos cruzando a fronteira da Paraíba com Pernambuco pelo barro, rumo a Santa Cruz da Baixa Verde. A meta era o município de São José do Belmonte, um dos locais mais interessantes do sertão pernambucano.

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Em São José de Belmonte visitamos a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto” – Foto de Rostand Medeiros.

Inicialmente nesta cidade visitamos uma casa histórica, localizada na praça central desta cidade. Era a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto”.

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Lampião – Fonte – lounge.obviousmag.org

Consta que Gonzaga mandou um oficial de polícia do Ceará, o tenente Peregrino Montenegro, e a sua tropa surrar Ioiô Maroto. Feita a desonra, Maroto jurou vingança, solicitando ajuda ao primo cangaceiro. Por essa época, Sinhô Pereira estava deixando a região para viver em Goiás e pediu para Lampião, seu antigo comandado e agora o chefe do bando, realizar a feitura “do serviço”.

Como não poderia deixar de ser, o ataque à residência de Gonzaga foi implacável. A resistência ofertada pelo proprietário e por policiais da guarnição de São José de Belmonte arrastou-se longo tempo, mas o local foi invadido e o comerciante sumariamente executado em sua própria sala.

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Distrito de Boa Esperança, São José de Belmonte – Foto de Rostand Medeiros.

Após esta visita seguimos para a zona rural de São José do Belmonte, em direção a área onde as fronteiras dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba se encontram, tendo como destino o Distrito de Boa Esperança. Soubemos que ali vivia o Senhor Francisco Maciel da Silva, testemunha daqueles tempos difíceis.

Vivendo em uma casa simples do lugarejo, idoso, mostrou-se um homem de baixa estatura, lento nos gestos e utilizando um par de óculos com grossas lentes. Apesar disso, a firmeza da voz, a lucidez e o forte aperto de mão, não deixaram transparecer os noventa e sete anos de idade que ele tinha na época de nossa visita.

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Francisco Maciel da Silva, ainda fumando um cigarro de palha com quase cem anos de idade, deu uma interessante entrevista sobre o tempo do cangaço na sua região e na Serra do Catolé – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos contou algumas histórias da época que viu os cangaceiros na sua região, que durante anos viveu no alto da Serra do Catolé e que, na sua propriedade, existia uma gruta que fora utilizada como esconderijo de cangaceiros. A cavidade é conhecida como Casa de Pedra, uma grutinha formada por grandes blocos na encosta da serra.

Já sua filha, Maria do Carmo Rodrigues da Silva, de sessenta e seis anos, informou que, quando moravam no alto da serra, muitas vezes seus filhos traziam daquela cavidade cápsulas de balas de fuzis, havendo, em uma ocasião, achado uma espécie de chave de fendas, aparentemente utilizada na manutenção de rifles. Dona Maria recordou passagens em que, noutro sítio da mesma serra, trabalhadores encontraram próximos a uma pequena gruta, dentre as rochas, “um mundo de rifles socados nas furnas”.

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Serra do Catolé – Foto de Alex Gomes.

Na época de nossa visita, devido à idade, o Senhor Maciel não pôde nos acompanhar, mas informou que um amigo por nome de Luiz Severino dos Santos, morador do Sítio Catolé, sabia muita coisa sobre os esconderijos.

Mais uma vez enfrentamos estradas quentes e poeirentas. Visto que o lugar era muito ermo e havia grande quantidade de casas abandonadas na beira do caminho, surgiu outra dificuldade: a de encontrar pessoas para prestar informações.

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Buscando informações em uma casa verdadeiramente “antenada” – Foto de Rostand Medeiros.

Seguimos mais de uma hora sem a noção exata de onde estávamos. No trajeto só casas abandonadas e portas fechadas. Pequenas passagens vicinais seguiam para lugarejos ignorados e logo ficamos perdidos. As poucas pessoas avistadas se mostravam arredias, desconfiadas com quatro estranhos em um carro. Era um jeito arisco e esquisito, tão diferente da receptividade tradicional do sertão e que talvez se explicasse pelo isolamento do local e a proximidade de três fronteiras estaduais, por onde “passa todo tipo de gente e bicho”, como nos disse um lavrador local, um dos poucos com quem conseguimos informações. Se hoje é assim, imaginemos, então, no tempo do cangaço.

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Os catolés da serra – Foto de Rostand Medeiros.

Apesar dos percalços, o horizonte fazia surgir a elevação imponente. Logo na subida, a Serra do Catolé mostrou-se mais extensa do alta, além de coberta por pequenas palmeiras conhecidas por coqueiro catolé (Syagus cromosa). Essa árvore, comum nos cerrados, é igualmente vista em praticamente toda a região Nordeste do Brasil, principalmente em locais com maior altitude.

Quando, enfim, chegamos ao cume da Serra do Catolé encontramos o Senhor José Marcos. Ele não somente nos ensinou o caminho, como também nos levou à propriedade de Luís Severino dos Santos.

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Bate papo com o Senhor Luís Severino dos Santos, no Sítio Catolé, neto do famoso chefe cangaceiro Luís Padre – Foto de Solon R. A. Netto.

Encontramos então um homem tranquilo, forte para sua idade, que nasceu e vive na serra. Desse local raramente se afasta, apenas para ir, ocasionalmente, até São José de Belmonte ou Serra Talhada. Para nossa surpresa, no começo do diálogo descobrimos que ele era neto de Luís Padre, um dos doutrinadores de Lampião, e que não havia apenas a Casa de Pedra para se conhecer, na verdade existem várias cavidades na Serra do Catolé, uma delas bem próximo de sua casa e que um dia abrigou um cangaceiro ferido.

Pedra de Dé Araújo

Segundo o Senhor Severino, a família de Luís Padre era dona do Sítio Catolé antes mesmo do início das “brigadas” contra os Carvalhos. Entre uma pausa e outra da luta, Luís Padre, Sinhô Pereira e o bando seguiam para aquele local, onde se refaziam para novos combates. Entre essas pausas, Luís Padre iniciou um relacionamento com a Ana Maria de Jesus. Desse encontro, nasceram duas filhas do célebre cangaceiro, Emília e Agostinha Pereira da Silva. A última foi a genitora do nosso informante, sendo ela quem narrou ao mesmo as peripécias e as andanças do seu pai no cangaço.

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Foto dos antepassados do Senhor Severino. O calvo a direita da foto é Luís Padre, seu avô – Foto de Rostand Medeiros.

As características de isolamento e as dificuldades naturais de acesso a serra, proporcionaram aos cangaceiros um verdadeiro local de descanso e apoio. Mas por medo da polícia descobrir esses locais, o Senhor Severino relatou que sempre a estadia do grupo era rápida e contida. Todos os caminhos eram muito vigiados, ninguém entrava ou saía sem que Luís Padre e Sinhô Pereira soubessem. Ali, estavam a somente dezoito quilômetros do Ceará e a três da Paraíba, mostrando que daquele ponto as fronteiras poderiam ser facilmente ultrapassadas, dificultando a atuação das forças estatais.

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Religiosidade sertaneja no Sítio Catolé – Foto de Solon R. A. Netto.

Em relação às cavidades, o Senhor Severino comentou sobre a existência de várias na região e que, segundo os mais velhos, os cangaceiros refugiavam-se nestes locais quando havia notícias da proximidade da polícia, ou quando algum dos cangaceiros estava ferido.

Devido ao nosso curto tempo, pedimos para conhecer alguma mais representativa e o Senhor Severino nos guiou, primeiramente, até a Pedra de Dé Araújo.

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Entrada da Gruta de Dé Araújo – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos guiou, então, a um local que sua mãe, Agostinha da Silva, contou-lhe ter conhecido ainda criança, quando foi levada pelo pai para ver um dos companheiros de luta, que se recuperava de um balaço recebido.

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Na gruta do cangaceiro baleado – Foto de Solon R. A. Netto.

Nessa época, Dona Agostinha falou ao Senhor Severino que o cangaceiro se chamava “Dé Araújo” e que fora ferido no combate das “Piranhas”, havendo sido trazido pelos companheiros para ali ser tratado. A medicina daqueles guerreiros utilizava-se de uma erva nativa cicatrizante facilmente encontrada na serra, conhecida como “cipó de baleado”, o qual era pilado e posto sobre a ferida.

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Vista a partir da gruta – Foto de Rostand Medeiros.

A cavidade de Pedra de Dé Araújo é formada por um matacão granítico rolado e internamente bem desplacado, que se apoiara formando um vão abrigado, com vistas ao vale. No centro havia uma área arenosa e plana, onde sua mãe lhe apontou como o “leito” do cangaceiro Dé Araújo, que, mais tarde, voltaria plenamente recuperado à luta. Porém, o Senhor Severino não soube informar se o lugar onde o cangaceiro fora atingido era a referida Fazenda Piranhas, atacada pelo bando dos Pereiras em junho de 1917.

Lampião Baleado

Na sequência o Senhor Luís Severino dos Santos nos acompanhou, também, até à famosa Casa de Pedra, a alguns minutos de carro de sua propriedade.

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No ponto mais alto da Serra do Catolé, da esquerda para direita, Rostand Medeiros, Antônio Antas e Luiz Severino dos Santos – Foto de Alex Gomes

Segundo o nosso guia foi um agricultor chamado Chico Barbosa, que possuía uma pequena propriedade na Serra do Catolé e morava próximo ao Senhor Severino que revelou o momento em que chegou à região: foi na passagem do bando de Lampião pelo lugar, quando o chefe foi ferido no pé, uma dos momentos mais terríveis da vida desse líder cangaceiro.

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Salão da Gruta da Casa de Pedra, onde supostamente Lampião esteve durante alguns dias se recuperando de um ferimento – Foto de Rostand Medeiros

Chico Barbosa já faleceu, mas foi um grande amigo do Senhor Severino e lhe narrou ter sido durante algum tempo cangaceiro de Lampião. A razão da entrada no bando, de onde ele veio, ou “nome de guerra” que adotou, ou como saiu do cangaço, ele nunca declinou essas coisas ao amigo Severino e nem este lhe questionou. Ocasionalmente, quando queria, Chico Barbosa comentava ao vizinho suas andanças “nos tempos dos clavinotes”. Em um dos relatos narrou como o “Rei do Cangaço” veio parar naquela cavidade.

Os doutos estudiosos da vida de Virgulino Ferreira da Silva narram que em 23 de março de 1924, por volta das dez horas da manhã, uma volante comandada pelo major da polícia de Pernambuco, Theophanes Ferraz, teve um encontro com Lampião e outros cangaceiros nas proximidades da Lagoa do Vieira, distante cerca de cinco quilômetros da Serra do Catolé. Na luta, o cangaceiro foi seriamente atingido no pé e morta sua montaria, tombando o animal sobre sua perna. Apesar disso, o bandoleiro conseguiu fugir. Seu bando, então, seguiu para o alto de uma serra, onde o chefe iniciou sua recuperação. O boletim oficial feito pelo major Theophanes Ferraz, conta que, alguns dias após, às cinco e meia da tarde do dia 2 de abril, uma tropa do seu setor de ação atacou o acampamento dos cangaceiros e morreram dois perigosos bandidos, Lavadeira e Cícero Costa.

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Foto de Alex Gomes

Já Lampião, ao fugir, abriu o ferimento, iniciando-se uma séria hemorragia. O chefe se escondeu nas moitas, por pouco não sendo descoberto pela polícia. Durante três dias, padeceu ao relento, sem água ou alimentos, com a grave ferida aberta. Por sorte, um garoto o encontrou e chamou o pai, que começou a cuidar do cangaceiro.

Após se recuperar, Lampião mandou comunicar aos seus irmãos, cangaceiros como ele. Eles chegaram ao local com um bando calculado em cinquenta homens, dentre eles, Chico Barbosa. Nesse ínterim, a polícia sabendo do estado de saúde do cangaceiro, intensificou as buscas. Sem condições de seguir para algum local mais seguro, para um tratamento melhor, o grupo rumou em direção a Serra do Catolé. Chico Barbosa comentou que, assim, Lampião refugiou-se na gruta da Casa de Pedra.

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Foto de Alex Gomes

O que vimos a partir do ponto onde se encontra a gruta na Serra do Catolé foi era estonteante, sendo possível visualizar parte do Ceará e da Paraíba. Já a Casa de Pedra tratava-se da entrada da pequena e estreita gruta, um vão alargado no meio de dois blocos de granito, num dos cumes da serra.

Segundo o mesmo Chico Barbosa, Lampião foi transferido para outras cavidades na Serra do Catolé, como a Furna da Onça, localizada na Fazenda Ingá. Porém, foi na Casa de Pedra que ele passou mais tempo se recuperando. A razão era o isolamento do lugar e sua localização privilegiada.

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Da esquerda para direita – Alex Gomes, Solon Netto, Luiz Severino dos Santos, Antônio Antas e Rostand Medeiros.

Um mês após essa peregrinação, o chefe cangaceiro seguiu protegido por muitos homens, para a propriedade “Saco dos Caçulas”, em Princesa, na Paraíba, onde o fazendeiro Marcolino Diniz lhe deu todo o apoio. Lampião se recuperou desse grave ferimento e continuou combatendo por mais quatorze anos, até ser liquidado em julho de 1938, na Grota de Angicos, em Sergipe.

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Pedra do Reino – Foto de Rostand Medeiros.

Interessante apontar que a Casa de Pedra fica perto da famosa área histórica conhecida como Pedra do Reino, retratada no romance de Ariano Suassuna – O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. A Pedra do Reino foi palco, em 1838, de um massacre iniciado por messiânicos que pregavam a volta do rei português Dom Sebastião, desaparecido numa antiga batalha. Para os fanáticos seguidores do sertão pernambucano, era preciso tingir os dois imensos monólitos, que lá estão dispostos, com sangue humano, para que um reino encantado se iniciasse na Terra. O desfecho dessa história foi macabro, quando, após o sacrifício de mais de cinquenta pessoas, boa parte crianças, o grupo foi dizimado pela força policial.

Porém, dali, era imprescindível, ainda, procurar pela Lagoa do Vieira, lugar onde Lampião se ferira ao confrontar a polícia de Pernambuco. Seria muito longe da caverna o local onde se deu o ferimento do cangaceiro?

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Região da Lagoa do Vieira – Foto de Rostand Medeiros.

Continuamos na estrada até que, quase pelo final da tarde, chegamos a uma pequena comunidade rural nas margens de um baixio quase seco. Muito provavelmente, o cenário modificou-se pouco da época dos combates aos dias atuais. Assim, estava lá a lagoa, apenas a alguns quilômetros da Casa de Pedra da Serra do Catolé.

Memórias do Ataque de Sabino a Triunfo

À noite, voltamos por Triunfo, uma cidade serrana construída a quase mil metros de altitude para no dia seguinte, conhecer o Museu do Cangaço. Este estabelecimento funciona em um prédio histórico, bem conservado, abrigando importante acervo sobre o cangaceirismo, além de objetos criados pela cultura regional.

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Punhal de Corisco no Museu do Cangaço de Triunfo – Foto de Rostand Medeiros.

São peças antigas da história do Nordeste, fotografias de um tempo não tão distante, mas pouco abordado pelos livros de história geral. Vale anotar que, também em Triunfo, há pequenas grutas graníticas associadas ao cangaço, mas como o tempo da expedição era muito limitado, não fomos visitá-las.

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Rostand Medeiros e o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, e,m Triunfo – Foto de Solon R. A. Netto.

Entretanto, nas cercanias do museu, pudemos conhecer e entrevistar o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, que, apesar dos seus noventa e oito anos de vida e da fraca audição que ele tinha na época de nossa visita, com lucidez nos contou sua rica história, que foi toda gravada.

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Prédio onde funcionou a loja do pai de Seu Nélson – Foto de Rostand Medeiros.

Em maio de 1926, a loja de seu pai, Antônio Campos, foi atacada por um grupo de cangaceiros do bando de Lampião. A desavença teve origem numa dívida com Marcolino Diniz, fazendeiro e famoso coiteiro de cangaceiros. Diniz, então, acertou o crime com Sabino, bandido de maior confiança de Lampião, para que a loja fosse saqueada e o proprietário morto.

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Notícia do ataque do cangaceiro Sabino a Triunfo, fato presenciado pelo Senhor Nélson.

A guarnição policial de Triunfo era pequena e os cangaceiros adentraram destruindo tudo no estabelecimento. O Senhor Nelson, na época um adolescente, teve a ideia de atirar ao fogo uma caixa de fogos de artifício. Os cangaceiros, ao escutarem uma sequência de tiros e estampidos, acreditando tratar-se do reforço policial, bateram em retirada. Na verdade, o que se passou foi um grande engodo e o jovem foi aclamado como o herói que livrou a cidade dos bandidos.

O Vale do Cafundó de Flores 

No regresso para o Rio Grande do Norte paramos em Flores, a quarta cidade mais antiga de Pernambuco, onde buscávamos conhecer a Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, onde foi construído um casebre aproveitando-se de uma reentrância escarpada em um abrigo rochoso. Esse local nada tinha haver com histórias de cangaceiros, mas valeu a visita pelo interessante cenário.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco.

Nosso guia, Luiz Gonzaga, conduziu o grupo ao Vale do Cafundó, onde a beleza natural da região nos encheu os olhos. Ficamos acima de um vale com dezenas de metros de profundidade, que se estendiam por uma vasta área, feições que lembraram Sete Cidades, no Piauí.

Certamente, no período das chuvas, muita água passaria pela bacia e, ante os enormes paredões de arenito capazes de fazer a vista perder-se, foi impossível deixar de pensar que deveriam existir inúmeras cavernas naquela região.

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Junto a Seu Zequinha Marinheiro – Foto de Solon R. A. Netto.

Fomos então apresentados a Zequinha Marinheiro, filho do homem que construiu a morada no abrigo do Cafundó. Ele contou que, apesar de não morar mais naquela casa, ainda a utiliza para estocar alimentos e, ocasionalmente, passar a noite. Relatou que a casa foi construída por volta de 1940, havendo morado lá por toda infância.

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Vale do Cafundó, Flores, sertão pernambucano – Foto de Solon R. A. Netto

O abrigo rochoso tornou a casa mais protegida dos elementos naturais. Mesmo após edificar uma forte residência mais próxima da estrada, até hoje o Senhor Marinheiro se vale da Casa do Cafundó, vez que a utiliza como depósito para colheitas ou mesmo refugiar-se nas horas mais quentes do dia.

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Vale do Cafundó – Foto de Alex Gomes.

E na trilha para o Cafundó, confirmando nossas expectativas, encontramos nossa primeira caverninha exatamente no vale! Ensaiamos uma incursão sem equipamentos, mas havia muitas vespas, que nos impeliram a sair apressadamente.

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Caverna do Cafundó – Foto de Solon R. A. Netto

A Caverna do Cafundó – como é conhecida – aparenta somente possuir duas entradas e (provável) curto desenvolvimento. Na rápida observação, percebemos um forte desnível positivo a partir da entrada principal.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Mais alguns passos, ali perto, descortinou-se uma situação ímpar: construída na encosta de uma formação arenítica, vimos a fachada de uma casa perdida em meio a uma imensa parede de vale, dentro de um abrigo natural. Adentramos e, apesar do intenso calor nordestino, os cômodos apresentavam temperatura amena. Dentro, alguns utensílios da rude vida sertaneja e muitos grãos.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Do lado de fora, cercados por cajueiros, ficamos sentados admirando a paisagem do rio que dividia o vale: um vasto serpenteio de areia muito fina e branca rasgando a caatinga. Diferentemente dos outros locais vistos, a Casa de Pedra do Cafundó não estava ligada ao cangaço. Era apenas um capricho da natureza, que escavou a rocha, do qual o homem se valeu para construir, dentro, um lar, perdido num rincão isolado. Ali, após décadas de edificada, servia ao mesmo propósito: nos proteger do calor.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Eis que o sentimento, comum a todos os que entram em cavernas, foi nos invadindo: a sensação de que estávamos protegidos, de que aquela cavidade natural denotaria sempre uma ideia de casa ao ser humano. Justamente isso a ligava às cavidades que havíamos visitado nos dias anteriores, àquelas utilizadas pelos cangaceiros.

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Foto de Alex Gomes.

O Cafundó abre-se com grande potencial espeleológico e turístico a todos os amantes da beleza natural e resume o que as cavernas pernambucanas têm de mais precioso: a singularidade.

Após noites mal dormidas e dias tão intensos, encerrava-se uma viagem com grande bagagem histórica, espeleológica, fotográfica e um serviço à nossa cultura nordestina e brasileira.

UMA CARTA DE LAMPIÃO E A HISTÓRIA DO SOLDADO VOLANTE QUE SE TORNOU AMBIENTALISTA

Rostand Medeiros – IHGRN

Em seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução – Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwJ3ojyvXP

Artur Carvalho é da cidade de Floresta, sertão de Pernambuco. Recentemente o amigo Artur trouxe dois interessantes materiais históricos sobre o tema, que trago para os amigos que prestigiam o nosso “Tok de História”.

Carta de Lampião ao dono da Tabuleiro Comprido.

O primeiro material é uma das famosas cartas escritas por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, a um fazendeiro de nome Cantidiano Valgueiro dos Santos Barros, dono da propriedade Tabuleiro Comprido, conforme podemos ver na foto que segue, extraída da página 192, do livro “Relação dos Estabelecimentos Ruraes Recenseados no Estado de Pernambuco”, de 1925.

Na carta, escrita na peculiar maneira de Lampião se expressar, ele pede a Cantidiano dois contos de réis, de forma extorsiva, a fim de serem evitados “prejuízos”.

Segundo Artur Carvalho, que utilizou os conhecimentos profissionais de um especialista em paleografia , a “tradução” é a seguinte;

Ilmo. Sr Cantidiano Valgueiro,

Eu (ou “le”) faço esta para “vc” mandar-me dois “conto dereis”, isto sem falta, não tem menos, para “vc” saber se assinar em telegrama contra mim como “vc” se assinou em um com “Gome” jurubeba. Eu ví e ainda hoje tenho ele. Sem mais, resposte logo para “envitar” muito prejuízo. Sem mais assunto.

Cap. Virgulino ferreira Lampião. [sic]

Na carta encontramos o nome do policial Gomes Jurubeba, grande inimigo de Lampião e certamente ligado a Cantidiano Valgueiro. Provavelmente esta ligação possa explicar o segundo regalo enviado pelo amigo Artur Carvalho.

Esta é uma interessante e rara foto, provavelmente da década de 1930, onde vemos três homens membros de um grupo de volantes, equipados e armados para combaterem os cangaceiros de Lampião e de outros bandos, em meio as caatingas nordestinas.

Os três soldados volantes

O grupo é formado (Da esquerda para a direita) por Geronso Calaça e Natanael Valgueiro, ambos da cidade de Floresta, e por Luiz Capuxu, de Serra Talhada.

Na imagem Natanael e Capuxu portam fuzis Mauser, mas pelas munições, na qual todos carregam em profusão, acredito que o Geronso também deveria ter este tipo de armamento. Além disso, trazem cantis, bolsas, apetrechos para dormirem no mato, punhais e outros materiais.

Podemos ver que portam armas de fogo curtas, sempre no lado esquerdo de seus cintos. Geronso e Natanael estão com o que aparentam ser duas pistolas F.N., modelo 1910, em calibre 7,65mm (.32 AUTO). Com Capuxu é possível ver um volumoso cabo de um revólver, mas sem maiores detalhes só podemos especular que era provavelmente algum modelo em calibre 32 ou 38.

Pistolas F.N., modelo 1910, em calibres 7,65 mm (.32 AUTO) e 9 mm Browning Curto (.380 ACP). Em versões “presentation”, com placas de cabo em madre-pérola, e a oxidada em negro com placas de cabo em ebonite preto Fonte – http://armasonline.org/armas-on-line/as-pistolas-browning/

Sobre as andanças de Natanael e os seus companheiros, sobre suas lutas contra cangaceiros não sei de nada.

Segundo Artur, Natanael era sobrinho e genro de Cantidiano Valgueiro, casado com sua filha Dona Zelfa Valgueiro Barros. Diante das ameaças feitas pelo “Rei do Cangaço” a seu parente, entrou em uma volante para dar combate aos cangaceiros.

Não sei se Lampião chegou a cometer algum tipo de crime contra seu parente, ou contra a propriedade Tabuleiro Comprido, mas o fato dele estar em uma volante pode apontar que esta hipótse é bastante plaussível.

Independente do que ocorreu nesta época, mais interessante foi a bela atitude que Natanael tomou em relação a sua amada Tabuleiro Comprido vários anos após o fim do cangaço.

Segundo uma matéria assinada por Josélia Menezes, em 1 de Abril de 2003, temos a interessante história.

“A história de vida e as atitudes do fazendeiro pernambucano Natanael Valgueiro Barros, 89 anos, nunca foram pautadas pelo conformismo e pelo convencional. Ainda garoto, nos anos 30, entrou nas chamadas Forças Volantes, que combatiam o Cangaço. Acabado os horrores dos combates, ele era um homem mudado, um pacifista. Desde então, em meio à luta contra a seca para salvar os rebanhos de gado, bode e ovelha, no semiárido, onde está sua fazenda, Tabuleiro Comprido, município de Floresta, ele encampou outra batalha solitária e pioneira: proteger as espécies ameaçadas da caatinga, especialmente emas. Caça e desmatamento soava como heresia aos seus ouvidos. Acabou virando o primeiro ambientalista daquelas paragens. Há 34 anos ele já cercava a fazenda, palco de confrontos sangrentos da Coluna Prestes, de olho na preservação.

Passado o tempo e reduzidas as emas a umas poucas unidades pela ação de caçadores e espertalhões, seu Valgueiro acaba de ter uma vitória significativa. O Ibama decretou recentemente a criação da primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) no Vale do São Francisco em Pernambuco, com área de 285 ha, nas terras de seu Valgueiro.

O trabalho pioneiro realizado por ele sempre teve o apoio da família e foi justamente as três filhas e a nora que, diante de seu estado de saúde precário, encamparam sua luta pela criação da reserva. A ideia surgiu num momento de desespero, quando os registros do Incra apontavam a fazenda como improdutiva, passível de reforma agrária, apesar da tradicional criação de gado, ovelha e bode, dentro da filosofia de desenvolvimento sustentável, um conceito concebido só recentemente, mas já praticado na área. “Todo um longo trabalho de respeito ao meio ambiente era distorcido e em vez de premiação, éramos punidos”, observa a filha Adália. A ameaça de desapropriação chamou a atenção do grupo ambiental SOS Caatinga, que já vinha exercendo campanhas protecionistas na região, idealizador da criação da RPPN. A parceria estava formada. O grupo iniciou uma campanha de denúncia da situação junto a órgãos federais, como o Incra e Ibama, e as entidades ambientais Fundação Biodiversitas (MG) e Aspan (PE). “Os assentamentos do Incra em área de caatinga não têm muita preocupação ambiental. Seria um desastre socioambiental criar mais um justo nesta área”, observa Cláudio Novaes, membro do SOS Caatinga. Deu efeito. Relatório do escritório do Ibama em Salgueiro desaconselhou a desapropriação e comprovou o excelente estado de conservação da área, grande biodiversidade e beleza cênica.

Lampião o “Rei do Cangaço”

SOS Caatinga, Fundação Biodiversitas (MG) e Aspan (PE) formaram uma parceria para evitar um desastre ambiental e formar uma das mais importantes RPPN na área do rio São Francisco.

Através do SOS Caatinga, a família entrou com pedido de criação da reserva. “O apoio do representante federal do programa de RPPN em Pernambuco, Luiz Guilherme Façanha, foi decisivo porque ele nos orientou e estimulou o tempo todo”, revela Adália Valgueiro. O Ibama através da Portaria nº 177/02, de 31/12/2002 aprovou a criação da reserva, que leva o nome “Cantidiano Valgueiro de Carvalho Barros”, único filho homem do “seu” Valgueiro, morto há 3 anos. O órgão declarou a área como “de interesse público e em caráter de perpetuidade”.

O documento faz referência clara às agressões que a propriedade vem recebendo por parte dos caçadores. “As condutas e atividades lesivas à área reconhecida sujeitarão os infratores a sanções administrativas cabíveis, sem prejuízo de responsabilidade civil e penal”. A área preservada acaba de ser registrada no cartório de registro de imóveis. Também já se encontra em andamento a primeira pesquisa científica no local, sobre beija-flores, realizada pela mestranda em Biologia, Fabrícia Leal, pela UFPE.

A reserva de “seu” Valgueiro é a segunda em área de caatinga em Pernambuco. A primeira, chamada “Maurício Dantas”, fica no município de Betânia, criado há quatro anos pelo funcionário público Fábio Dantas, que também homenageou o filho morto em acidente.”

Ver o site Folha do Meio Ambiente http://www.folhadomeio.com.br/publix/fma/folha/2003/04/valgueiro.html

Apesar do texto anterior conter erros relativos a história da passagem da Coluna Prestes pela região, temos que dar os parabéns a Natanael (Seja neste ou em um plano superior) e a sua família pela notável ação com a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural Cantidio Valgueiro, na Ecoregião denominada “Depressão Sertaneja Setentrional”.

Segundo indicações do ICMBIO, a RPPN da Fazenda Taboleiro Comprido é na área da foto. No canto esquerdo o Rio Pajeú e a estrada mostrada é a PE-390. Fonte – http://www.earth.google.com/intl/pt/

Aparentemente o filho de Natanael tinha o mesmo nome do sogro e tio do seu pai e era dentista segundo eu apurei.

A preservação deste local deixa para as futuras gerações, um pedaço da caatinga próxima ao Rio Pajeú que foi autênticamente pisado tanto pela Coluna Prestes, como pelo bando de Lampião e seus perseguidores.

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