HIGINO BELARMINO – AS HISTÓRIAS DE UM INIMIGO DO CANGACEIRO LAMPIÃO

O Início – Primo Cangaceiro – A Luta Contra Os Bandos de Antônio Silvino e dos Sipaúbas – Em Fernando de Noronha – Combates Contra os Seguidores do Padre Cícero na Sedição de Juazeiro – Confrontos Contra os Chefes Cangaceiros Sinhô Pereira e Luís Padre.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Higino José Belarmino foi um homem que veio ao mundo no dia 11 de novembro de 1895, no sertão alagoano, em meio a uma origem muito humilde, sendo filho do agricultor José de Moura Belarmino e da dona de casa Agda Maria da Conceição. Em um extenso depoimento realizado ao jornal recifense Diário da Noite de 1952, essa figura pouco comentou sobre sua família, mas disse que dos três filhos do humilde casal só ele “vingou”, ou seja, só ele sobreviveu as secas, a fome e as doenças que grassavam no interior nordestino o final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, mostrando que desde cedo era um forte.

Frederico Pernambucano de Mello informou que Higino Belarmino era primo de um cangaceiro cognominado André Tripa, um homem que buscou a sobrevivência com um “Pau de fogo” nas mãos[1].

Sobre ele Frederico escreveu – Notório bandido de região fértil, a zona de transição mata-agreste de Pernambuco, nos anos relativamente calmos do início do século XX, terá sido também André Tripa, a quem Pereira da Costa distingue com o título de “célebre cangaceiro”, adiantando que se tratava do “terror” da zona sul do Estado. Na memória do nosso principal informante, Miguel Feitosa, fomos buscar a explicação para o vulgo curioso do bandido, em estanca dotada de admirável movimento, cuja autoria lamentavelmente ignorava:

Havia nas Alagoas

Uma tal Joana Fateira

Não tenho ciência certa

Se era casada ou solteira

Sei que tinha um bom menino

Que ajudava, por contínuo

A vender tripa na feira

Jornal comentando sobre a morte do cangaceiro André Tripa.

Essa “tal Joana Fateira”, segundo Miguel nos adiantou com toda segurança, além de mãe do Tripa, era tia do famoso comandante de volantes da polícia pernambucana Higino José Belarmino, o Nego Gino, que após duros combates na década dos 20 contra bandidos, principalmente Lampião, chegaria a patente mais alta da força, a demonstrar o quanto era vária e imprevisível a sorte de um menino do mato naquela época. Sim, porque a de seu primo valente muito cedo teria fim na vertigem da violência a que se entregou, sem ser socorrido nem mesmo pelas suas orações:

E certo que as orações

Não servem para ofender.

Mas fazem quem as traz consigo

Com elas se enfurecer,

Como André Tripa fazia,

Pois crendo que não morria

Matou gente até morrer”

Talvez temendo alguma perseguição pelo fato do parentesco com André Tripa, José de Moura Belarmino e Dona Agda deixaram o solo alagoano e passaram a residir na cidade pernambucana de Correntes, não muito distante de Garanhuns. Trabalhavam nas terras do Dr. Eutrópio Gonçalves de Albuquerque e Silva[2], juiz de direito aposentado e pessoa de muito prestígio na região.

Nessa convivência o juiz Eutrópio se afeiçoou do jovem Higino e passou, com a anuência de seus pais, a lhe ensinar elementos básicos da educação. Depois o patrão dos seus pais conseguiu para o garoto de quinze anos de idade um emprego na empresa Carlos de Britto & Cia., mais conhecida como Fábrica Peixe. Essa firma havia sido fundada por Maria da Conceição Cavalcanti de Britto e Carlos Frederico Xavier de Britto, no ano de 1898, na cidade pernambucana de Pesqueira. Começou como um pequeno negócio destinado a produção de doces de goiaba, mas em poucos anos se tornaria uma grande empresa e um marco da industrialização do Nordeste[3].

Logo Higino Belarmino deixa esse trabalho na Fábrica Peixe em 1911 e vem para o Recife com a intenção de ingressar como soldado raso na Força Pública de Pernambuco, atual Polícia Militar. Contou que tinha sido aberto o voluntariado, pois, como não era algo anormal das primeiras décadas do século XX, havia estourado uma nova revolta política no Brasil. Dessa vez o movimento ocorreu no Nordeste e foi comandada pelo general Emídio Dantas Barreto.

Busto do general Dantas Barreto – Fonte – http://bibianosilva.org/bibiano_pt/general-dantas-barreto

Esse militar havia decidido concorrer naquele ano contra Francisco de Assis Rosa e Silva, então governador de Pernambuco. Dantas Barreto perdeu a eleição, mas seus correligionários não aceitaram a derrota e o Recife testemunhou inúmeros acontecimentos violentos que deixaram a sua população apavorada. Tiroteios, brigas, fechamento do comércio, paralisação dos bondes e o povo sem ir às ruas. Até mesmo tropas federais do 49º Batalhão de Caçadores, junto com populares, realizaram ataques contra os quartéis da Polícia e o próprio Palácio do Governo. Finalmente, em 19 de dezembro de 1911, Dantas Barreto assumiu o cargo de Governador de Pernambuco[4].

Quanto a Higino Belarmino, apenas em 1º de março de 1912 quando a revolta já tinha sido encerrada, efetivamente se tornou um militar.

Realmente parece que Higino José Belarmino não havia nascido para ser operário de uma fábrica de doces, mas para viver com um “pau de fogo” nas mãos, tal como seu pretenso primo André Tripa. A diferença era que enquanto o Tripa apodrecia em uma cova, Higino utilizou sua farda e seu fuzil pelo resto de sua longa vida!

Trocando Tiros com Antônio Silvino e em Fernando de Noronha

Mal havia entrado na polícia Higino Belarmino já foi deslocado para a Zona da Mata Norte de Pernambuco, sob o comando do alferes Nicolau Pinto Teixeira,  com ordens de perseguir o cangaceiro Antônio Silvino e seu bando. A sua volante tinha sede na cidade pernambucana de Timbaúba e por lá o antigo operário de Pesqueira chegou em julho de 1912 e lá permaneceu um ano inteiro. Higino comentou que entre suas perseguições ao célebre cangaceiro, ele foi ferido por um balaço na coxa direita em um combate ocorrido nas imediações da cidade paraibana de Pedra de Fogo.

Vista atual de São Vicente Ferrer – Fonte – https://www.facebook.com/saovicenteferrerpe/

Ao cruzamos essa informação com os jornais pernambucanos e paraibanos de julho de 1912, não encontramos nenhuma referência sobre algum combate nessa cidade paraibana. Mas sabemos que no começo desse mesmo mês Antônio Silvino e seus cangaceiros estiveram próximos da vila pernambucana de São Vicente, atual cidade de São Vicente Ferrer, localizada a cerca de 60 quilômetros de distância de Pedra de Fogo. Nessa aproximação supostamente houve um tiroteio e depois os cangaceiros se homiziaram nas matas dos engenhos Patos e Condado, locais que estavam localizados na área do município pernambucano de Bom Jardim. Os jornais afirmaram que o cangaceiro Silvino conhecia bem aquelas brenhas, que utilizava aquela área como base para ataques aos lugares Macapá (atual Macaparana), Pirauá (hoje um distrito de Macaparana), São Vicente (atual São Vicente Ferrer) e Vicência[5].

Fernando de Noronha no início do século passado.

Após o ferimento Higino segue para o Recife para se reestabelecer e receber ordens. Não demorou e lhe foi informado que deveria seguir para o Arquipélago de Fernando de Noronha com um grupo de prisioneiros. Nessa época o mais belo e paradisíaco conjunto de ilhas oceânicas brasileiras possuía um dos mais temidos presídios do país. Era comum o tráfego de condenados, pessoal administrativo e guardas penitenciários entre Recife e a Vila dos Remédios, a capital de Fernando de Noronha. Para isso era utilizado o vapor de pesca “Alberto Maranhão”, pertencente à Companhia de Pesca do Norte do Brasil.

Esse barco havia sido construído na Inglaterra, sendo originário do porto de Grimsby, na região de North East Lincolnshire, leste da Inglaterra e batizado como Grover. Foi comparado em 1910 pelo empresário pernambucano, de origem holandesa, Julius von Shösten. Tinha 32 metros de comprimento, pesava 180 toneladas brutas, comportava uma tripulação de 12 homens, pescava com redes de arrasto que poderiam conseguir até 60 toneladas de peixes. Sabemos que Shösten tinha negócios no Rio Grande do Norte e isso talvez possa explicar a bajulação em batizar esse barco como “Alberto Maranhão”, então governador potiguar em 1910[6].

Mas aparentemente o negócio de pesca com o “Alberto Maranhão” não parece ter sido muito favorável para o empresário Shösten, pois no segundo semestre de 1912 essa nave basicamente fazia a ligação administrativa entre Recife e Fernando de Noronha e abastecia o faroleiro que atuava no Atol das Rocas.

Não temos indicação da data quando o soldado Higino Belarmino participou da viagem a bordo do vapor de pesca “Alberto Maranhão”, mas em 26 de agosto de 1912 essa nave retornou de Fernando de Noronha com nada menos que 42 detidos, que iriam concluir suas penas na Casa de Detenção de Recife[7].

Imagem antiga da Vila dos Remédios, em Fernando de Noronha.

Não sabemos como era realizado o transporte desses condenados em um barco originalmente destinado a pesca, nem como a escolta trabalhava, ou se os compartimentos de guardar pescados, que certamente deveriam existir em um barco de pesca, haviam sido adaptados como celas parza trazer os prisioneiros. Deveria ser o tipo de viagem que deixaria com calafrios o pessoal que atualmente trabalha nas audiências de custódia pelo Brasil afora.

Versos e Balas Contra os Seguidores do “Padim Ciço”

Após conhecer o Oceano Atlântico e Fernando de Noronha, em 5 de dezembro de 1912 o soldado Higino recebeu ordens para se deslocar para a cidade de Exu, distante 600 quilômetros de Recife. Ele ficou por dois anos compondo a guarnição local[8]. Foi quando no Ceará estourou a Sedição do Juazeiro de 1914.

No contexto das lutas entre as oligarquias pela conquista do poder político na época da Primeira República (1889 a 1930), os poderosos coronéis da região do vale do Cariri, utilizaram a influência que o médico e deputado federal Floro Bartolomeu tinha sobre a figura do padre Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço do Juazeiro”. Com isso eles insuflaram os sertanejos da região a pegarem em armas para derrubar do poder o governador do estado do Ceará, o coronel Marcos Franco Rabelo. O governo de Pernambuco então envia homens da sua polícia para evitar a invasão do território pelos sediciosos do Juazeiro[9].  

Padre Cícero Romão Batista

Higino conta no seu relato de 1952, mesmo sem detalhar, que ocorreu uma luta no lugar Cana Brava, no município de Exu, Pernambuco, entre a força policial e os homens armados de Juazeiro. Contou que durante essas lutas os combatentes trocavam muitos insultos, palavrões e declamavam versos para ridicularizar os oponentes. O militar recordou essa quadra, criada e declamada pelo “Povo do Juazeiro”:

Eu num arrespeito puliça,

Sordado nunca foi gente,

Espero morrê de véio,

Dando carreira em tenente[10].

Higino animava seus companheiros, mandava bala e também afrontava os oponentes. Tirava a longa baioneta do seu fuzil, colocava no cano e dizia ”fulano, olha aqui a tua vela. Olha que vais ser sangrado”. Na mesma hora vinha a resposta do outro lado – muita bala e outro verso:

Cûm carne seca e farinha,

Rapadura no borná,

Eu mi apronto na caatinga,

Mas mió que um generá.

Membros da Sedição de Juazeiro.

Uma roupa de azulão,

Um bom cobertor baêta,

Faz parte do cangaceiro,

Como o punhá e o cruzeta[11].

Segundo relatou o soldado Higino, ou Nego Gino, como ficou mais conhecido, recebeu por participar dessas ações de combate a patente de anspeçada e logo depois a de cabo. Mas houve outro prêmio – Segundo o relato de Higino, os homens do padre Cícero criaram uma quadra enaltecendo sua valentia…

Eu sei que quando morrer,

Nos inferno vou pará,

Me valha padim Ciço,

Se eu encontrar Gino pru lá.

Não sabemos maiores detalhes da entrada dos sertanejos seguidores do padre Cícero em território pernambucano e de suas lutas com a força policial daquele estado, mas sabemos que o grosso da “Gente do padre Cícero” marchou e combateu desde o Cariri até Fortaleza e foram vitoriosos. Franco Rabelo foi deposto em 15 de março de 1914, ficando no poder apenas três meses.

Contra os Sipaúbas

No ano seguinte, nos primeiros dias de outubro de 1915, Higino Belarmino estava servindo sob as ordens do então tenente José Caetano de Mello, um oficial brioso e valente. Nessa época esse militar atuava na cidade de Cabrobó e juntos com outros policiais passaram a perseguir um grupo de cangaceiros que se encontrava atuando nessa região[12]. Este era o bando dos Sipaúbas, ou Cipaúbas, cuja grafia muda conforme a fonte pesquisada.

Um jornal de época e o depoimento de Higino Belarmino comentaram que esses cangaceiros atuavam nas caatingas dos municípios pernambucanos de São José de Belmonte, Salgueiro e Cabrobó. Já a prisão ocorreu no lugar Jacaré, cerca de duas léguas (16 quilômetros) de Cabrobó, próximo ao sítio Barro Vermelho. Foram presos os irmãos Cassiano e José Sipaúba.

Segundo Jorge Mattar Villela, autor do interessante livro O povo em armas : violência  política no sertão de Pernambuco, esses bandoleiros formavam um “microgrupo de base familiar cujas façanhas, já em 1915, os retirava das pequenas intrigas e fazia seus nomes migrarem para as preocupações das autoridades policiais litorâneas”. Villela informa que José Sipaúba foi a julgamento em 1916 e foi inocentado por unanimidade. Nos anos vindouros esse cangaceiro vai lutar ao lado de Sinhô Pereira e de Lampião[13].

Ainda sobre os Sipaúbas não podemos deixar de comentar que em Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil, Frederico Pernambucano de Mello informou que o grupo dos Sipaúba era composto por parentes e amigos, sendo naturais da famosa serra d’Umã, município de Floresta, Pernambuco. Essa era a terra dos índios da tribo Aticum-Umã, que se misturaram com um grupo de negros fugidos e ali aquilombados ainda no século XIX.

Notícia do ataque realizado em 25 de setembro de 1926, quando os Sipaúba mataram seis soldados de uma volante pernambucana que era chefiada pelo sargento José Alves de Barros, o Zé Saturnino.

Frederico conta que a serra d’Umã possuía uma “tradição de selvageria” e que muitos assaltos ocorriam nas estradas da região. Para esse autor o principal expoente desse bando foi Livino Sipaúba. Em 25 de setembro de 1926, os Sipaúba mataram seis soldados de uma volante pernambucana que era chefiada pelo sargento José Alves de Barros, o Zé Saturnino. Mas nos primeiros meses de 1927 o tenente Arlindo Rocha, também da polícia de Pernambuco, prendeu Livino Sipaúba e em seguida o fuzilou[14].

Não sabemos se os Sipaúbas capturados em Cabrobó pelo tenente José Caetano e seus policiais eram do mesmo grupo familiar dos Sipaúbas da serra d’Umã.

Combate da Quixaba, ou Queixada?

O relato de Higino José Belarmino então nos leva a 6 de novembro de 1919, na zona rural de São José de Belmonte, em um momento de seca tremenda. Nessa região o cabo Higino fazia parte de uma numerosa volante composta por mais de 70 militares e paisanos, comandados pelo agora capitão José Caetano de Mello e os tenentes Manuel da Costa Gomes e Augusto de Lira Guedes[15].

Antiga Rua do Comércio, em São José de Belmonte – Fonte – Arquivo de Valdir Nogueira, Belmonte-PE, através do pesquisador Artur Carvalho.

Os policiais receberam a informação que um grupo com cerca de 45 cangaceiros, comandados pelos chefes Sinhô Pereira e Luís Padre, estavam arranchados em uma propriedade que eles denominaram como Quixaba, a cerca de 8 léguas (48 quilômetros) de São José de Belmonte, tendo esses bandoleiros passado no dia anterior pelo lugar Olho D’Água[16]. Essa propriedade Quixaba pertenceria então a Antônio Pereira de Araújo, conhecido como Antônio Maroto, primo de Sinhô Pereira e Luís Padre.

Ao realizar essa pesquisa, nada descobri com o cruzamento de informações sobre a existência de alguma propriedade denominada Quixaba, localizada na zona rural de São José de Belmonte e que pertencia a Antônio Maroto. Diante da dúvida realizei um telefonema para meu amigo Valdir José Nogueira, a quem considero um dos maiores e mais abnegados pesquisadores nas questões sobre as lutas das famílias Pereira e Carvalho, sobre o cangaço na região do Pajeú pernambucano e sobre a história de São José de Belmonte, sua querida cidade.

Para Valdir o fato de não encontrar uma fazenda denominada Quixaba, que tenha pertencido a Antônio Maroto, reside em uma situação bem simples – Nunca existiu em São José de Belmonte uma propriedade com esse nome e que tenha pertencido a essa pessoa. Para esse pesquisador o fazendeiro Antônio Maroto tinha sim uma grande propriedade, mas essa era a Queimada Grande, com uma parte de suas terras pertencendo a São José de Belmonte e outra na área territorial do vizinho município de Jardim, já no Ceará[17].

Matriz de de São João, Mirandiba, Pernambuco – Foto – Kelvis Filipe.

Em relação ao combate de 1919, Valdir afiança que ele se desenrolou não muito distante de um pequeno arruado em desenvolvimento, denominado Queixada, e não Quixaba, atualmente a sede do município autônomo de Mirandiba[18]. Para o pesquisador belmontense, seja por erro de interpretação, ou de grafia, nos telegramas emitidos para o quartel da polícia em Recife, posteriormente divulgados para a imprensa local, sempre aparece o nome Quixaba.

Valdir Nogueira afiança também que o combate de 6 de novembro de 1919 se deu na área da serra da Forquilha, uma elevação com cerca de 600 metros de altitude, próximo da serra Comprida e ao norte do riacho Terra Nova. Essa região fica cerca de 16 quilômetros da antiga comunidade da Queixada, atual Mirandiba.

E realmente tudo parece ter bastante fundamento, pois segundo Valdir Nogueira a distância da região de São José de Belmonte para a Queixada equivale a 8 léguas (48 quilômetros). Próximo da área da serra da Forquilha existe até hoje uma propriedade denominada Olho D’Água. Valdir me recordou também que o local desse combate fica próximo das antigas comunidades de Bom Nome, Santa Maria (atual Tupanaci) e São Francisco (pequena vila que foi coberta pelas águas do açude da Serrinha, cuja população mudou para uma comunidade denominada Pajeú). Esses locais eram pontos de forte apoio e concentração de membros da família Pereira, onde Sinhô Pereira e Luís Padre contavam com bastante proteção.

Antiga ermida de São Francisco.

Ainda em relação ao combate da serra da Forquilha, Valdir Nogueira apontou que no Folheto XVII, intitulado A Primeira Caçada Aventurosa, do Romance D’ A Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta, 2ª Ed. 1972, p. 83, o escritor Ariano Suassuna, rememorou esse acontecimento:

“Saímos, tomando o lado do qual se avista, do terraço (do casarão da fazenda Carnaúba), a célebre “Serra da Forquilha”, aquela na qual um dos Pereiras mais valentes do nosso tempo, Sinhô, Chefe venerado de Virgolino Ferreira Lampião, tinha obtido vitória num sangrento combate contra a Polícia e os Carvalhos”.

Visual da caatinga na zona rural de São José de Belmonte – Foto – Rostand Medeiros.

Voltando para o combate de 6 de novembro de 1919.

O numeroso grupo de 45 bandoleiros estava na área da Quixaba, ou Queixada, porque esse local, segundo os estudiosos do tema Cangaço, pouco tempo antes tinha sido atacado por Cindário e outros inimigos da família Pereira. Sinhô Pereira então acreditava que nem a polícia e nem seus inimigos retornariam ao lugar naquele momento. Mesmo assim ele e Luís Padre dividiram seus homens pelos serrotes existentes, em um riacho próximo e em uma casa que havia sido anteriormente queimada, mas que possuía boas condições de proteger parte de seu grupo.

Em seu depoimento de 1952, Higino Belarmino afirma de maneira categórica que entre os cangaceiros que estavam ao lado de Sinhô Pereira nesse combate temos o vilabelense Virgulino Ferreira da Silva e dois de seus irmãos, que cada vez mais aprendiam sobre as táticas de combates na caatinga.

Enquanto os cangaceiros descansavam, a volante com mais de 70 militares e paisanos avançavam atrás deles!

Naquele dia Cindário e seu grupo de homens armados estavam entre os paisanos que acompanhavam os policiais. O nome real de Cindário era Jacinto Alves de Carvalho, sendo também conhecido como Cindário Carvalho, ou ainda Cindário das Piranhas. Esse homem é tido por Frederico Pernambucano de Mello como um “Cangaceiro vingador”, que havia se tornado o braço armado da família Alves de Carvalho em sua sangrenta luta contra a família Pereira[19].

Higino Belarmino narra então que a volante chegou na área onde se concentravam os cangaceiros ainda com dia claro, tendo ele seguido junto com o capitão José Caetano. O grupo se aproximou da casa semidestruída, onde os soldados desconfiavam que estivessem os bandoleiros. Quando estavam a dez metros do local os cangaceiros abriram fogo cerrado e oito militares tombaram ao solo, ficando sete feridos e um morto. Esse último foi o cabo José de Souza Oliveira, que segundo Higino recebeu um tiro na carótida e morreu nos seus braços.

Higino Belarmino

O tiroteio continuou forte, com os policiais em campo aberto e os cangaceiros, em número superior a vinte, atirando do interior da casa e gritando que os militares eram “filhos da besta torta”. Os soldados feridos gemiam e pediam ao capitão José Caetano que não os deixassem serem mortos a punhaladas pelos cangaceiros. Higino narra que aqueles pedidos desesperados tornaram seus companheiros mais aguerridos. Nesse momento o capitão chamou Higino e lhe disse que eles deviam tomar aquela casa “de qualquer maneira”. Mesmo com a munição escasseando, o cabo comandou um grupo de dez policiais em um ataque direto contra a casa. Entraram lutando pelos fundos da vivenda e se misturando aos cangaceiros, que fugiram pelas janelas, aos gritos[20].

Por volta das seis da tarde chegou na área do combate o capitão Theophanes Ferraz Torres, com um reforço de homens e munições. Esse militar informou ao comando da força policial em Recife que o combate durou duas horas e, além da morte do cabo José de Souza Oliveira, ficaram feridos os soldados Izidoro Leite da Silva, João Mathias Santos, José Soares da Costa, Henrique Ludgero Santos, Firmino Jeronymo Silva, Antônio Francisco Xavier e o cabo Antônio Marques Silva. O capitão Theophanes informou que o cabo Marques levou um tiro no crâneo, mas estava vivo quando o encontrou[21].

Na página 29 do livro de Nertan Macedo Sinhô Pereira – O Comandante de Lampião, publicado em 1975 (Ed. Artenova, São Cristóvão-RJ), o autor trás o depoimento de Sinhô Pereira sobre esse combate.

O antigo combatente das caatingas afirmou que o combate se deu realmente na propriedade Quixaba, que a mesma pertencia a seu primo Antônio Maroto e que o bando teria “23 ou 24 homens” e não 45 como Belarmino afirmou em 1952. Sinhô confirmou que a casa do lugar havia sido anteriormente depredada por Cindário e seu grupo e nela se encontrava seu primo Luís Padre com cinco ou seis homens. Já Sinhô estava em um riacho próximo com outros dezessete cangaceiros, deitados no chão, descansando. A polícia e Cindário chegaram e cercaram a casa, pensando que todos os cangaceiros estavam lá e para Sinhô Pereira a volante teria “20 e tantos homens”. Já o tiroteio teria durado três horas, em meio a um sol bastante quente. Ficaram feridos cinco cangaceiros: Zé Preto, Moreno, Teotônio, Chiquito e Zé Piutá. Além desses outro ferido foi Luís Padre, atingido de raspão na pestana, ferimento esse que sangrou bastante. Sinhô confirmou que um soldado ficou morto no terreiro e um dos policiais feridos ficou “todo aleijado”. Em nenhuma linha do seu depoimento a Nertan Macedo o ex-chefe cangaceiro afirmou que Virgulino Ferreira da Silva e seus irmãos estiveram presentes nesse combate.

Parte da entrevista concedida por Higino em 1952.

Em seu extenso depoimento realizado ao jornal recifense Diário da Noite de 1952, Higino Belarmino afirmou que após o termino do tiroteio o capitão José Caetano solicitou ao capitão Theophanes Ferraz a promoção do cabo Higino pela sua bravura e seu comportamento naquele combate. Mas o capitão Theophanes negou, visto não ter o inferior “morto o chefe dos bandidos Sebastião Pereira[22].

CONTINUA…………………………………………………………………………………………………………………………………………

NOTAS DESTE TEXTO..…………………………………………………………………………………………………………………………


[1] Ainda sobre André Tripa, Frederico Pernambucano de Mello nos conta o seguinte – Foi Morto com uma manulixa de um Tenório, da localidade Gentio, e também Miguel quem nos revela como isto se deu, a partir, como sempre, de uma denúncia:

Levaram fresca a noticia,

Na Pedra, ao capitão Basto,

Este tirou dez soldados,

Ver se o Tripa tinha gasto.

Seguiram para Santo Antonho,

Onde tem cabra medonho,

Bom de espingarda e de rasto.

Famoso e legendário ainda em vida, como costumava acontecer com os bandoleiros que mais se destacavam, Tripa mereceria, por morte, citação no relatório anual do chefe de polícia de Pernambuco, Manuel dos Santos Moreira, dirigido ao governador Sigismundo Antônio Goncalves, com data de 31 de janeiro de 1905:Nos limites da Pedra com o município de Garanhuns, deu-se o encontro da força com o grupo chefiado pelo célebre bandido André Tripa, resultando a morte deste e de uma praça.

Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, páginas 355 a 357.

[2] Eutrópio Gonçalves de Albuquerque e Silva foi juiz em várias cidades do interior pernambucano, como Flores e Cimbres, tendo sido aposentado por problemas de saúde em 1905, conforme se descreve na primeira página, da edição de 7 de julho de 1905, do Diário de Pernambuco. O Dr. Eutrópio passou a receber uma pensão anual de três contos, oitocentos e sessenta mil e quinhentos e dezoito réis (3:860$518).

[3] Sobre a história da Fábrica Peixe ver – https://docplayer.com.br/35458755-Tomaticultura-industrial-no-cerrado-25-e-uma-visao-futura.html

[4] Sobre a Revolução de 1911 em Pernambuco e a vida de Dantas Barreto, ver http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=249&Itemid=1

[5] Ver Jornal do Recife, Recife-PE, edições de 20 de julho de 1912, pág. 2, e 24 de julho de 1912, pág. 2.

[6] Ver jornal A República, Natal-RN, edição de 19 de julho de 1910, pág. 1.

[7] Ver Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de 26 de agosto de 1912, sem indicação de página.

[8] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 19 de abril de 1952, pág. 1.

[9] Ver Diário de Pernambuco, edição de 18 de fevereiro de 1914, pág. 1

[10] A declamação de versos em meio aos tiroteios na caatinga nordestina era algo comum e prática antiga, destinada a animar os combatentes no meio da refrega, ou “fogo”. Frederico Pernambucano de Mello nos conta – Rio Preto, no quartel final do século XIX, foi cangaceiro e cantador apreciado na fronteira da Paraíba com Pernambuco, dele não se sabendo se mais temido por conta dos desafios ou das brigadas em que se envolveu. Findo o combate, armas ainda em brasa, do bando de Sinhô Pereira – de atuação na mesma área mas já no século XX – alteava-se uma voz que fazia a perfeita crônica em versos de todo o combate. Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, página 24.

[11] O termo cruzeta aqui empregado, se refere a uma denominação utilizada no Nordeste do Brasil, para determinados modelos do rifle de fabricação norte-americana da marcar Winchester.

[12] José Caetano de Mello nasceu em 18 de julho de 1872 no distrito de Papagaio, na cidade pernambucana de Pesqueira, sentou praça na então Força Pública de Pernambuco em 1893 nas patentes mais baixas e durante as três décadas em que esteve na corporação ascendeu as patentes mais elevadas pela sua capacidade na luta contra o cangaço. Esteve em atuação em mais de vinte cidades pernambucanas e travou lutas com célebres cangaceiros como Antônio Silvino, Sinhô Pereira e Lampião. Aparentemente foi aposentado em 1926 por um problema na mão esquerda, em decorrência de um tiro recebido. Escolheu viver na cidade de Angelim, no agreste pernambucano, a 25 quilômetros de Garanhuns, onde constitui família e findou seus dias em 5 de novembro de 1964. Apesar dos seus feitos como policial é um homem praticamente esquecido pelos que estudam o tema do Cangaço no Nordeste do Brasil. Exceção do pesquisador e escritor pernambucano Júnior Almeida, que em junho de 2018 participou, juntamente com a Polícia Militar do Estado de Pernambuco e da Prefeitura Municipal de Angelin, de uma tocante cerimônia em memória desse valente militar.

Ver – https://www.portalagresteviolento.com.br/2018/06/11/oficial-das-volantes-sera-homenageado-em-angelim/ 

–   https://www.portalagresteviolento.com.br/2018/06/14/oficial-das-forcas-volantes-foi-homenageado-em-angelim/ 

–   http://senhorcariri.blogspot.com/2018/06/homenagem-in-memoriam-ao-capitao-das.html

[13] Ver Vilella, J. M. O Povo em Armas : violência  política no sertão de Pernambuco. 1ª ed. Rio de Janeiro-RJ, 2004, páginas 178 e 178. O trabalho de Vilella é muito interessante, onde durante suas pesquisas entrevistou participantes diretos ou indiretos de movimentos armados ocorridos no sertão pernambucano e pesquisou em vários processos judiciais arquivados nos fóruns das cidades interioranas.

[14] Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, página 234.

[15] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 22 de abril de 1952, sem indicação de página.

[16] Sobre as informações referentes a distância e quantidade de cangaceiro ver jornal A Província, Recife-PE, edição de 13 de novembro de 1919, pág. 1.

[17] Para Valdir José Nogueira, com as divisões territoriais que afetaram inúmeros municípios nordestinos ao longo das últimas décadas, as terras da fazenda Queimada Grande que se encontram no Ceará atualmente pertencem ao município de Penaforte, criado em 31 de outubro de 1958.

[18] Segundo informações existentes a primeira casa da atual sede do município de Mirandiba foi construída em 1915, por um proprietário rural chamado Elizeu Campos e queixada é a denominação de um tipo de porco selvagem existente no Nordeste do Brasil, cujo nome cientifico é Tayassu pecari. Depois a localidade foi crescendo e teve sua denominação alterada para São João de Campos (1915) e na sequência para Mirandiba (1938), que é uma denominação indígena para porco selvagem ou porco queixada. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Mirandiba

[19] Cindário, segundo Frederico Pernambucano de Mello, perdeu nas lutas sangrentas seus irmãos José e Antônio e fizeram parte do seu grupo os sertanejos José Cipriano, Vicente Moreira, João Porfírio, João Juvino, Barra de Aço, Eliziário e os irmãos Pedro. Ver – Mello, F. P. Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo-SP, 2013, página 227.

[20] Ver – Gueiros, O. Lampeão – Memorias de um Oficial Ex-comandante de Forças Volante. 4ª ed. Livraria Progresso Editora, Salvador-BA, 1957, páginas 119 a 120.

[21] Torres Filho, G. F. de S. Pernambuco no tempo do cangaço (Antônio Silvino Sinhô Pereira, Virgulino Ferreira “Lampião”) : um bravo militar : a vida e a época do tenente-coronel Theophanes Ferraz Torres : 1894-1925. 1ª ed. CEHM, Recife-PE, 2002, páginas 222 a 224.

[22] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 22 de abril de 1952, sem indicação de página.

NO RASTRO DAS CAVERNAS DO CANGAÇO NO SERTÃO PERNAMBUCANO

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Sólon R. A. Netto

Pesquisas históricas indicavam que na região do Sertão do Pajeú, em Pernambuco, uma grande quantidade de abrigos e possíveis cavernas formadas por blocos graníticos seriam antigos refúgios de bandoleiros famosos, que durante anos vagaram pelo sertão e hoje fazem parte do mais autêntico folclore nordestino. Aqueles locais espeleológicos associados à vida desses homens eram certamente sítios de grande importância histórica, os quais nunca foram documentados.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco – Foto de Rostand Medeiros.

Tempos atrás percorremos em pouco mais de três dias quase dois mil quilômetros! Uma jornada puxada, com poucas horas de sono, para descobrir os esconderijos de Antônio Silvino, a gruta onde Lampião abrigara-se ferido e outro local bem interessante.

Início

Saímos altas horas da noite de Natal e seguimos para a fronteira da Paraíba, na área que esta se delimita com o Seridó Potiguar. O nosso grupo era composto por mim, Alex Gomes e Rostand Medeiros e horas depois estávamos avançando pelas últimas cidades da Paraíba e cruzando a divisa com Pernambuco. Quando as estrelas da madrugada foram ofuscadas pela alvorada, já íamos firmes ao primeiro objetivo: a Fazenda Colônia.

Esta propriedade está historicamente muito associada à cidade pernambucana de Afogados da Ingazeira, mas atualmente se localiza na zona rural do município de Carnaíba, a cerca de quatro quilômetros da fronteira com a Paraíba. Neste local nasceu o famoso chefe cangaceiro Antônio Silvino.

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Fazenda Colônia – Foto de Rostand Medeiros.

A história deste guerreiro das caatingas se inicia quando seu pai, o fazendeiro Pedro Batista Rufino de Almeida, conhecido popularmente como “Batistão”, foi assassinado por Desidério José Ramos e alguns de seus parentes em 3 de janeiro de 1897.

Meses depois os assassinos de “Batistão” são absolvidos em um júri controlado por famílias poderosas que apoiavam os seus matadores. A família de Antônio Silvino não desiste e impetra uma apelação e os acusados são recambiados à Casa de Detenção, em Recife. Quando os assassinos do fazendeiro são novamente trazidos escoltados para a região para um novo júri, o policial que comandava o grupo facilitou a fuga de todos. Revoltado, o jovem Manoel Batista de Moraes, então com 23 anos, e um irmão buscam fazer justiça com as próprias mãos. Para conseguir sua desejada vingança eles se tornam cangaceiros e entram em um bando comandado por um parente conhecido como Silvino Aires.

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Antônio Silvino.

Apenas um ano depois, em 1898, o chefe Silvino Aires é preso e Manoel Batista assume o bando, passando a ser conhecido como Antônio Silvino. O nome Antônio é uma referência ao santo de sua devoção, o mesmo da capela da Fazenda Colônia, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras.

Conforme nos aproximávamos da Fazenda Colônia víamos que a geografia local consistia em elevações com trezentos metros de altura em média. Ao chegarmos a entrada da propriedade topamos com três cruzes.

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Foto de Alex Gomes.

Paramos para algumas fotos e logo um vaqueiro se aproximou. Quando indagado sobre aquele antigo marco ficamos sabendo que aquelas eram apenas algumas marcas de memória das muitas “mortes encomendadas” que já se fizeram na região. Segundo o nosso informante aquelas eram cruzes de três pessoas que foram mortas a mando de um dono de engenho, que mandou seus sicários matá-los ingerindo melaço quente. Logo à frente, surgiu um descampado central, revelando uma igreja e um imponente casario. Foi lá que conhecemos os irmãos Antônio e Damião Braz.

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Conhecendo as histórias da Fazenda Colônia com os irmãos Braz – Foto de Solon R. A. Netto.

Após os contatos iniciais e de explicações do porque viemos de tão longe para a Colônia, para nossa surpresa, os irmãos Braz informaram que não existia apenas uma gruta para visitarmos, mas quatro cavidades que os mais velhos afirmaram terem sido utilizadas pelo bando de cangaceiros do chefe Antônio Silvino.

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Vista da antiga casa sede da propriedade – Foto de Solon R. A. Netto.

Não havia condições de conhecer todos os locais comentados e decidimos, então, visitar as grutas do Morcego e a da Pedra Rajada, as mais próximas. Ambas estão localizadas em um setor da Serra da Colônia conhecido pelos moradores como Serra da Lagoa, mas dentro das terras da Fazenda Colônia.

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Iniciando o caminho para o alto da serra – Foto de Rostand Medeiros.

Passava do meio dia, quando nossos anfitriões se ofereceram para nos guiar até as cavernas que os cangaceiros de outrora haviam usado. De início, a trilha estava muito bem definida e seguíamos parando para admirar a fazenda que se perdia bem distante. Por certo ponto, a mata fechou e a subida tornou-se bem íngreme. Em meio às histórias, a caminhada alternava momentos mais íngremes com outros suaves. Chamou a atenção avistar árvores como “barrigudas de espinho” (Chorisia crispifolora), atualmente raras nos sertões potiguares.

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Nas trilhas da serra – Foto de Alex Gomes.

Ao chegar a um ponto onde alguns grandes blocos graníticos, rolados pelas intempéries, uniram-se ao longo de milênios para formar uma cavidade natural, nosso guia Damião foi logo avisando: “Essa daí é a que o povo chama de Gruta do Morcego e tem que entrar se entortando”. Vimos, então, em meio a uma cerrada vegetação típica da região, a entrada da cavidade, na forma de uma estreita fenda diagonal na junção dos matacões. Para espanto maior do grupo descobrimos que aquilo era muito mais do que um simples abrigo de grandes blocos de granito!

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Entrada da Gruta do Morcego – Foto de Rostand Medeiros.

Internamente encontramos um lugar amplo e arejado, com uma saída lateral que, no passado, certamente serviu como rota de fuga para outros locais. Os Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na gruta e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781”. Encontrar tais moedas não é tão raro no Nordeste, mas as circunstâncias de sua descoberta, naquele local, podem apontar para uma série de possibilidades como, até mesmo, à utilização mais antiga do abrigo como possível esconderijo de bandoleiros.

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Gruta do Morcego, Fazenda Colônia – Foto de Solon R. A. Netto.

Saímos satisfeitos com aquela interessante cavidade e seguimos os guias em direção ao alto da serra e a Gruta da Pedra Rajada.

Nas Terras Que Viram Surgir Antônio Silvino

Segundo Antônio Braz os mais velhos narraram que os cangaceiros de Silvino se abasteciam em um antigo poço no alto da serra e ele nós levou até esse local. Atualmente nesse ponto existe uma cacimba e nós experimentamos da água cristalina e saborosa. Segundo os Braz, até hoje esse poço é utilizado pela população local. A água era realmente refrescante! Alguns goles e meia dúzia de cajus maduros nos fizeram repor a energia da subida.

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Antigo poço no alto da serra que, segundo a tradição oral local, é muito antigo e teria sido utilizado pelos cangaceiros de Antônio Silvino – Foto de Rostand Medeiros.

De lá pudemos observar uma espécie de grande piscina natural criado no solo rochoso, o tradicional “tanque” no linguajar dos sertanejos. No dia de nossa visita o local estava seco, mas segundo Damião era bastante frequentado durante os períodos de chuvas. O local é conhecido na região como “Lajedo do Tanque” ou “da Lagoa”.

Mais adiante chegamos ao ponto culminante daquela elevação, onde foi possível divisar toda a região, até mesmo a cidade de Afogados da Ingazeira, a cerca de vinte quilômetros de distância. Ficamos diante de uma bela vista da fazenda, com a igreja, pequena, parecendo uma casinha de brinquedo. A visão é maravilhosa e estratégica, mostrando que bastaria a Antônio Silvino colocar um homem vigilante naquele ponto para saber de toda a movimentação nos arredores.

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Os irmãos Braz comentaram que, ao longo dos anos, vários caçadores encontraram objetos na Gruta do Morcego e em seu entorno, inclusive estojos de munição deflagrados. Mostraram-nos talheres e estribos, além de três moedas de bronze do período colonial, sendo que, em uma delas, lê-se claramente o ano de “1781” – Foto de Alex Gomes.

Voltamos para a trilha em direção a Gruta da Pedra Rajada, porém o caminho simplesmente desapareceu em meio uma vegetação muito fechada. O trajeto era nítido aos guias, mas a nós, tudo se resumia a um contínuo esquivar-se de galhos e espinhos. Uma mata muito cerrada, escondendo o sol, e logo nos pusemos numa descida que se traduziu num escorrego brecado somente pelo cipoal. Foi desse modo que chegamos à Pedra Rajada, o segundo ponto a ser visitado, um abrigo de difícil acesso numa das encostas da serra.

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Abrigo da Pedra Rajada – Foto de Solon R. A. Netto.

Diferentemente da Gruta do Morcego, a Pedra Rajada não é uma caverna, mas apenas um abrigo granítico formado por uma das faces de um imenso bloco que se encontra com a lateral de outro matacão rolado. É bem protegido e um pequeno grupo de homens poderia se acomodar naquele local com o intuito de buscar um esconderijo de difícil acesso. Mas se aquele local foi realmente utilizado pelos cangaceiros, pela exuberância da vegetação existente atualmente, é fácil deduzir que desde a época de Silvino poucos se atreveram-se a chegar ao local.

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Capela de Santo Antônio da Fazenda Colônia. O nome Antônio é uma referência ao santo da devoção de Manoel Batista de Moraes, e Silvino é uma homenagem ao parente que o recebeu nas hostes cangaceiras. Foto de Solon R. A. Netto.

O retorno até a sede da fazenda deu-se nos mesmos moldes: uma descida medonha que, em diversos momentos, simplesmente se convertia em rolamentos ou escorregos. Era soltar o corpo, proteger o equipamento e livrar-se dos espinhos da caatinga misturada com árvores de grande porte. Coisas de serra.

Ao fim do primeiro dia, seguimos para a Paraíba, sendo recebidos na cidade de Manaíra pelo Senhor Antônio Antas Dias, nosso grande amigo e grande conhecedor das histórias dos cangaceiros na região. Ele então se juntou ao nosso grupo.

Em Busca da Serra do Catolé

No segundo dia, pela madrugada, já estávamos cruzando a fronteira da Paraíba com Pernambuco pelo barro, rumo a Santa Cruz da Baixa Verde. A meta era o município de São José do Belmonte, um dos locais mais interessantes do sertão pernambucano.

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Em São José de Belmonte visitamos a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto” – Foto de Rostand Medeiros.

Inicialmente nesta cidade visitamos uma casa histórica, localizada na praça central desta cidade. Era a antiga morada do comerciante Luiz Gonzaga Gomes Ferraz, que em 1922 foi atacada pelo bando de Lampião, em parceria com um parente do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, Crispim Pereira de Araújo, o “Ioiô Maroto”.

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Lampião – Fonte – lounge.obviousmag.org

Consta que Gonzaga mandou um oficial de polícia do Ceará, o tenente Peregrino Montenegro, e a sua tropa surrar Ioiô Maroto. Feita a desonra, Maroto jurou vingança, solicitando ajuda ao primo cangaceiro. Por essa época, Sinhô Pereira estava deixando a região para viver em Goiás e pediu para Lampião, seu antigo comandado e agora o chefe do bando, realizar a feitura “do serviço”.

Como não poderia deixar de ser, o ataque à residência de Gonzaga foi implacável. A resistência ofertada pelo proprietário e por policiais da guarnição de São José de Belmonte arrastou-se longo tempo, mas o local foi invadido e o comerciante sumariamente executado em sua própria sala.

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Distrito de Boa Esperança, São José de Belmonte – Foto de Rostand Medeiros.

Após esta visita seguimos para a zona rural de São José do Belmonte, em direção a área onde as fronteiras dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba se encontram, tendo como destino o Distrito de Boa Esperança. Soubemos que ali vivia o Senhor Francisco Maciel da Silva, testemunha daqueles tempos difíceis.

Vivendo em uma casa simples do lugarejo, idoso, mostrou-se um homem de baixa estatura, lento nos gestos e utilizando um par de óculos com grossas lentes. Apesar disso, a firmeza da voz, a lucidez e o forte aperto de mão, não deixaram transparecer os noventa e sete anos de idade que ele tinha na época de nossa visita.

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Francisco Maciel da Silva, ainda fumando um cigarro de palha com quase cem anos de idade, deu uma interessante entrevista sobre o tempo do cangaço na sua região e na Serra do Catolé – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos contou algumas histórias da época que viu os cangaceiros na sua região, que durante anos viveu no alto da Serra do Catolé e que, na sua propriedade, existia uma gruta que fora utilizada como esconderijo de cangaceiros. A cavidade é conhecida como Casa de Pedra, uma grutinha formada por grandes blocos na encosta da serra.

Já sua filha, Maria do Carmo Rodrigues da Silva, de sessenta e seis anos, informou que, quando moravam no alto da serra, muitas vezes seus filhos traziam daquela cavidade cápsulas de balas de fuzis, havendo, em uma ocasião, achado uma espécie de chave de fendas, aparentemente utilizada na manutenção de rifles. Dona Maria recordou passagens em que, noutro sítio da mesma serra, trabalhadores encontraram próximos a uma pequena gruta, dentre as rochas, “um mundo de rifles socados nas furnas”.

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Serra do Catolé – Foto de Alex Gomes.

Na época de nossa visita, devido à idade, o Senhor Maciel não pôde nos acompanhar, mas informou que um amigo por nome de Luiz Severino dos Santos, morador do Sítio Catolé, sabia muita coisa sobre os esconderijos.

Mais uma vez enfrentamos estradas quentes e poeirentas. Visto que o lugar era muito ermo e havia grande quantidade de casas abandonadas na beira do caminho, surgiu outra dificuldade: a de encontrar pessoas para prestar informações.

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Buscando informações em uma casa verdadeiramente “antenada” – Foto de Rostand Medeiros.

Seguimos mais de uma hora sem a noção exata de onde estávamos. No trajeto só casas abandonadas e portas fechadas. Pequenas passagens vicinais seguiam para lugarejos ignorados e logo ficamos perdidos. As poucas pessoas avistadas se mostravam arredias, desconfiadas com quatro estranhos em um carro. Era um jeito arisco e esquisito, tão diferente da receptividade tradicional do sertão e que talvez se explicasse pelo isolamento do local e a proximidade de três fronteiras estaduais, por onde “passa todo tipo de gente e bicho”, como nos disse um lavrador local, um dos poucos com quem conseguimos informações. Se hoje é assim, imaginemos, então, no tempo do cangaço.

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Os catolés da serra – Foto de Rostand Medeiros.

Apesar dos percalços, o horizonte fazia surgir a elevação imponente. Logo na subida, a Serra do Catolé mostrou-se mais extensa do alta, além de coberta por pequenas palmeiras conhecidas por coqueiro catolé (Syagus cromosa). Essa árvore, comum nos cerrados, é igualmente vista em praticamente toda a região Nordeste do Brasil, principalmente em locais com maior altitude.

Quando, enfim, chegamos ao cume da Serra do Catolé encontramos o Senhor José Marcos. Ele não somente nos ensinou o caminho, como também nos levou à propriedade de Luís Severino dos Santos.

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Bate papo com o Senhor Luís Severino dos Santos, no Sítio Catolé, neto do famoso chefe cangaceiro Luís Padre – Foto de Solon R. A. Netto.

Encontramos então um homem tranquilo, forte para sua idade, que nasceu e vive na serra. Desse local raramente se afasta, apenas para ir, ocasionalmente, até São José de Belmonte ou Serra Talhada. Para nossa surpresa, no começo do diálogo descobrimos que ele era neto de Luís Padre, um dos doutrinadores de Lampião, e que não havia apenas a Casa de Pedra para se conhecer, na verdade existem várias cavidades na Serra do Catolé, uma delas bem próximo de sua casa e que um dia abrigou um cangaceiro ferido.

Pedra de Dé Araújo

Segundo o Senhor Severino, a família de Luís Padre era dona do Sítio Catolé antes mesmo do início das “brigadas” contra os Carvalhos. Entre uma pausa e outra da luta, Luís Padre, Sinhô Pereira e o bando seguiam para aquele local, onde se refaziam para novos combates. Entre essas pausas, Luís Padre iniciou um relacionamento com a Ana Maria de Jesus. Desse encontro, nasceram duas filhas do célebre cangaceiro, Emília e Agostinha Pereira da Silva. A última foi a genitora do nosso informante, sendo ela quem narrou ao mesmo as peripécias e as andanças do seu pai no cangaço.

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Foto dos antepassados do Senhor Severino. O calvo a direita da foto é Luís Padre, seu avô – Foto de Rostand Medeiros.

As características de isolamento e as dificuldades naturais de acesso a serra, proporcionaram aos cangaceiros um verdadeiro local de descanso e apoio. Mas por medo da polícia descobrir esses locais, o Senhor Severino relatou que sempre a estadia do grupo era rápida e contida. Todos os caminhos eram muito vigiados, ninguém entrava ou saía sem que Luís Padre e Sinhô Pereira soubessem. Ali, estavam a somente dezoito quilômetros do Ceará e a três da Paraíba, mostrando que daquele ponto as fronteiras poderiam ser facilmente ultrapassadas, dificultando a atuação das forças estatais.

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Religiosidade sertaneja no Sítio Catolé – Foto de Solon R. A. Netto.

Em relação às cavidades, o Senhor Severino comentou sobre a existência de várias na região e que, segundo os mais velhos, os cangaceiros refugiavam-se nestes locais quando havia notícias da proximidade da polícia, ou quando algum dos cangaceiros estava ferido.

Devido ao nosso curto tempo, pedimos para conhecer alguma mais representativa e o Senhor Severino nos guiou, primeiramente, até a Pedra de Dé Araújo.

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Entrada da Gruta de Dé Araújo – Foto de Rostand Medeiros

Ele nos guiou, então, a um local que sua mãe, Agostinha da Silva, contou-lhe ter conhecido ainda criança, quando foi levada pelo pai para ver um dos companheiros de luta, que se recuperava de um balaço recebido.

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Na gruta do cangaceiro baleado – Foto de Solon R. A. Netto.

Nessa época, Dona Agostinha falou ao Senhor Severino que o cangaceiro se chamava “Dé Araújo” e que fora ferido no combate das “Piranhas”, havendo sido trazido pelos companheiros para ali ser tratado. A medicina daqueles guerreiros utilizava-se de uma erva nativa cicatrizante facilmente encontrada na serra, conhecida como “cipó de baleado”, o qual era pilado e posto sobre a ferida.

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Vista a partir da gruta – Foto de Rostand Medeiros.

A cavidade de Pedra de Dé Araújo é formada por um matacão granítico rolado e internamente bem desplacado, que se apoiara formando um vão abrigado, com vistas ao vale. No centro havia uma área arenosa e plana, onde sua mãe lhe apontou como o “leito” do cangaceiro Dé Araújo, que, mais tarde, voltaria plenamente recuperado à luta. Porém, o Senhor Severino não soube informar se o lugar onde o cangaceiro fora atingido era a referida Fazenda Piranhas, atacada pelo bando dos Pereiras em junho de 1917.

Lampião Baleado

Na sequência o Senhor Luís Severino dos Santos nos acompanhou, também, até à famosa Casa de Pedra, a alguns minutos de carro de sua propriedade.

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No ponto mais alto da Serra do Catolé, da esquerda para direita, Rostand Medeiros, Antônio Antas e Luiz Severino dos Santos – Foto de Alex Gomes

Segundo o nosso guia foi um agricultor chamado Chico Barbosa, que possuía uma pequena propriedade na Serra do Catolé e morava próximo ao Senhor Severino que revelou o momento em que chegou à região: foi na passagem do bando de Lampião pelo lugar, quando o chefe foi ferido no pé, uma dos momentos mais terríveis da vida desse líder cangaceiro.

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Salão da Gruta da Casa de Pedra, onde supostamente Lampião esteve durante alguns dias se recuperando de um ferimento – Foto de Rostand Medeiros

Chico Barbosa já faleceu, mas foi um grande amigo do Senhor Severino e lhe narrou ter sido durante algum tempo cangaceiro de Lampião. A razão da entrada no bando, de onde ele veio, ou “nome de guerra” que adotou, ou como saiu do cangaço, ele nunca declinou essas coisas ao amigo Severino e nem este lhe questionou. Ocasionalmente, quando queria, Chico Barbosa comentava ao vizinho suas andanças “nos tempos dos clavinotes”. Em um dos relatos narrou como o “Rei do Cangaço” veio parar naquela cavidade.

Os doutos estudiosos da vida de Virgulino Ferreira da Silva narram que em 23 de março de 1924, por volta das dez horas da manhã, uma volante comandada pelo major da polícia de Pernambuco, Theophanes Ferraz, teve um encontro com Lampião e outros cangaceiros nas proximidades da Lagoa do Vieira, distante cerca de cinco quilômetros da Serra do Catolé. Na luta, o cangaceiro foi seriamente atingido no pé e morta sua montaria, tombando o animal sobre sua perna. Apesar disso, o bandoleiro conseguiu fugir. Seu bando, então, seguiu para o alto de uma serra, onde o chefe iniciou sua recuperação. O boletim oficial feito pelo major Theophanes Ferraz, conta que, alguns dias após, às cinco e meia da tarde do dia 2 de abril, uma tropa do seu setor de ação atacou o acampamento dos cangaceiros e morreram dois perigosos bandidos, Lavadeira e Cícero Costa.

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Foto de Alex Gomes

Já Lampião, ao fugir, abriu o ferimento, iniciando-se uma séria hemorragia. O chefe se escondeu nas moitas, por pouco não sendo descoberto pela polícia. Durante três dias, padeceu ao relento, sem água ou alimentos, com a grave ferida aberta. Por sorte, um garoto o encontrou e chamou o pai, que começou a cuidar do cangaceiro.

Após se recuperar, Lampião mandou comunicar aos seus irmãos, cangaceiros como ele. Eles chegaram ao local com um bando calculado em cinquenta homens, dentre eles, Chico Barbosa. Nesse ínterim, a polícia sabendo do estado de saúde do cangaceiro, intensificou as buscas. Sem condições de seguir para algum local mais seguro, para um tratamento melhor, o grupo rumou em direção a Serra do Catolé. Chico Barbosa comentou que, assim, Lampião refugiou-se na gruta da Casa de Pedra.

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Foto de Alex Gomes

O que vimos a partir do ponto onde se encontra a gruta na Serra do Catolé foi era estonteante, sendo possível visualizar parte do Ceará e da Paraíba. Já a Casa de Pedra tratava-se da entrada da pequena e estreita gruta, um vão alargado no meio de dois blocos de granito, num dos cumes da serra.

Segundo o mesmo Chico Barbosa, Lampião foi transferido para outras cavidades na Serra do Catolé, como a Furna da Onça, localizada na Fazenda Ingá. Porém, foi na Casa de Pedra que ele passou mais tempo se recuperando. A razão era o isolamento do lugar e sua localização privilegiada.

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Da esquerda para direita – Alex Gomes, Solon Netto, Luiz Severino dos Santos, Antônio Antas e Rostand Medeiros.

Um mês após essa peregrinação, o chefe cangaceiro seguiu protegido por muitos homens, para a propriedade “Saco dos Caçulas”, em Princesa, na Paraíba, onde o fazendeiro Marcolino Diniz lhe deu todo o apoio. Lampião se recuperou desse grave ferimento e continuou combatendo por mais quatorze anos, até ser liquidado em julho de 1938, na Grota de Angicos, em Sergipe.

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Pedra do Reino – Foto de Rostand Medeiros.

Interessante apontar que a Casa de Pedra fica perto da famosa área histórica conhecida como Pedra do Reino, retratada no romance de Ariano Suassuna – O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. A Pedra do Reino foi palco, em 1838, de um massacre iniciado por messiânicos que pregavam a volta do rei português Dom Sebastião, desaparecido numa antiga batalha. Para os fanáticos seguidores do sertão pernambucano, era preciso tingir os dois imensos monólitos, que lá estão dispostos, com sangue humano, para que um reino encantado se iniciasse na Terra. O desfecho dessa história foi macabro, quando, após o sacrifício de mais de cinquenta pessoas, boa parte crianças, o grupo foi dizimado pela força policial.

Porém, dali, era imprescindível, ainda, procurar pela Lagoa do Vieira, lugar onde Lampião se ferira ao confrontar a polícia de Pernambuco. Seria muito longe da caverna o local onde se deu o ferimento do cangaceiro?

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Região da Lagoa do Vieira – Foto de Rostand Medeiros.

Continuamos na estrada até que, quase pelo final da tarde, chegamos a uma pequena comunidade rural nas margens de um baixio quase seco. Muito provavelmente, o cenário modificou-se pouco da época dos combates aos dias atuais. Assim, estava lá a lagoa, apenas a alguns quilômetros da Casa de Pedra da Serra do Catolé.

Memórias do Ataque de Sabino a Triunfo

À noite, voltamos por Triunfo, uma cidade serrana construída a quase mil metros de altitude para no dia seguinte, conhecer o Museu do Cangaço. Este estabelecimento funciona em um prédio histórico, bem conservado, abrigando importante acervo sobre o cangaceirismo, além de objetos criados pela cultura regional.

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Punhal de Corisco no Museu do Cangaço de Triunfo – Foto de Rostand Medeiros.

São peças antigas da história do Nordeste, fotografias de um tempo não tão distante, mas pouco abordado pelos livros de história geral. Vale anotar que, também em Triunfo, há pequenas grutas graníticas associadas ao cangaço, mas como o tempo da expedição era muito limitado, não fomos visitá-las.

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Rostand Medeiros e o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, e,m Triunfo – Foto de Solon R. A. Netto.

Entretanto, nas cercanias do museu, pudemos conhecer e entrevistar o Senhor Nelson Gonçalves Siqueira Campos, que, apesar dos seus noventa e oito anos de vida e da fraca audição que ele tinha na época de nossa visita, com lucidez nos contou sua rica história, que foi toda gravada.

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Prédio onde funcionou a loja do pai de Seu Nélson – Foto de Rostand Medeiros.

Em maio de 1926, a loja de seu pai, Antônio Campos, foi atacada por um grupo de cangaceiros do bando de Lampião. A desavença teve origem numa dívida com Marcolino Diniz, fazendeiro e famoso coiteiro de cangaceiros. Diniz, então, acertou o crime com Sabino, bandido de maior confiança de Lampião, para que a loja fosse saqueada e o proprietário morto.

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Notícia do ataque do cangaceiro Sabino a Triunfo, fato presenciado pelo Senhor Nélson.

A guarnição policial de Triunfo era pequena e os cangaceiros adentraram destruindo tudo no estabelecimento. O Senhor Nelson, na época um adolescente, teve a ideia de atirar ao fogo uma caixa de fogos de artifício. Os cangaceiros, ao escutarem uma sequência de tiros e estampidos, acreditando tratar-se do reforço policial, bateram em retirada. Na verdade, o que se passou foi um grande engodo e o jovem foi aclamado como o herói que livrou a cidade dos bandidos.

O Vale do Cafundó de Flores 

No regresso para o Rio Grande do Norte paramos em Flores, a quarta cidade mais antiga de Pernambuco, onde buscávamos conhecer a Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, onde foi construído um casebre aproveitando-se de uma reentrância escarpada em um abrigo rochoso. Esse local nada tinha haver com histórias de cangaceiros, mas valeu a visita pelo interessante cenário.

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Casa de Pedra de Cafundó, no Sítio Covoado, Vale do Cafundó, Flores, Pernambuco.

Nosso guia, Luiz Gonzaga, conduziu o grupo ao Vale do Cafundó, onde a beleza natural da região nos encheu os olhos. Ficamos acima de um vale com dezenas de metros de profundidade, que se estendiam por uma vasta área, feições que lembraram Sete Cidades, no Piauí.

Certamente, no período das chuvas, muita água passaria pela bacia e, ante os enormes paredões de arenito capazes de fazer a vista perder-se, foi impossível deixar de pensar que deveriam existir inúmeras cavernas naquela região.

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Junto a Seu Zequinha Marinheiro – Foto de Solon R. A. Netto.

Fomos então apresentados a Zequinha Marinheiro, filho do homem que construiu a morada no abrigo do Cafundó. Ele contou que, apesar de não morar mais naquela casa, ainda a utiliza para estocar alimentos e, ocasionalmente, passar a noite. Relatou que a casa foi construída por volta de 1940, havendo morado lá por toda infância.

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Vale do Cafundó, Flores, sertão pernambucano – Foto de Solon R. A. Netto

O abrigo rochoso tornou a casa mais protegida dos elementos naturais. Mesmo após edificar uma forte residência mais próxima da estrada, até hoje o Senhor Marinheiro se vale da Casa do Cafundó, vez que a utiliza como depósito para colheitas ou mesmo refugiar-se nas horas mais quentes do dia.

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Vale do Cafundó – Foto de Alex Gomes.

E na trilha para o Cafundó, confirmando nossas expectativas, encontramos nossa primeira caverninha exatamente no vale! Ensaiamos uma incursão sem equipamentos, mas havia muitas vespas, que nos impeliram a sair apressadamente.

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Caverna do Cafundó – Foto de Solon R. A. Netto

A Caverna do Cafundó – como é conhecida – aparenta somente possuir duas entradas e (provável) curto desenvolvimento. Na rápida observação, percebemos um forte desnível positivo a partir da entrada principal.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Mais alguns passos, ali perto, descortinou-se uma situação ímpar: construída na encosta de uma formação arenítica, vimos a fachada de uma casa perdida em meio a uma imensa parede de vale, dentro de um abrigo natural. Adentramos e, apesar do intenso calor nordestino, os cômodos apresentavam temperatura amena. Dentro, alguns utensílios da rude vida sertaneja e muitos grãos.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Do lado de fora, cercados por cajueiros, ficamos sentados admirando a paisagem do rio que dividia o vale: um vasto serpenteio de areia muito fina e branca rasgando a caatinga. Diferentemente dos outros locais vistos, a Casa de Pedra do Cafundó não estava ligada ao cangaço. Era apenas um capricho da natureza, que escavou a rocha, do qual o homem se valeu para construir, dentro, um lar, perdido num rincão isolado. Ali, após décadas de edificada, servia ao mesmo propósito: nos proteger do calor.

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Foto de Solon R. A. Netto.

Eis que o sentimento, comum a todos os que entram em cavernas, foi nos invadindo: a sensação de que estávamos protegidos, de que aquela cavidade natural denotaria sempre uma ideia de casa ao ser humano. Justamente isso a ligava às cavidades que havíamos visitado nos dias anteriores, àquelas utilizadas pelos cangaceiros.

Alex (11)
Foto de Alex Gomes.

O Cafundó abre-se com grande potencial espeleológico e turístico a todos os amantes da beleza natural e resume o que as cavernas pernambucanas têm de mais precioso: a singularidade.

Após noites mal dormidas e dias tão intensos, encerrava-se uma viagem com grande bagagem histórica, espeleológica, fotográfica e um serviço à nossa cultura nordestina e brasileira.