HISTÓRIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE – PARTE 1 – AS LUTAS

Felipe Nery de Brito Guerra – Publicado originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 218 a 228.

* Informação do Blog Tok de História – Busquei atualizar alguma coisa da ortografia do texto do Desembargador Felipe Guerra, escrito em agosto de 1920, sem, contudo, alterá-lo. Devido a sua extensão, foi necessário dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.

Escrever a história militar do Rio Grande do Norte desde o início de sua colonização, principiada em fins do século XVI seria, pelo menos até princípios do século XVIII, escrever a história do Rio Grande do Norte, porquanto esse espaço de tempo, abrangendo um período de cerca de dois séculos, foi preenchido por sangrentas agitações, lutas e guerras.

A dominação francesa, exercida então por piratas, aventureiros, desclassificados, sem outros ideais a não ser o lucro mercantil, sempre receosos e a espera de ataques dos portugueses. O que é certo, porém, é que essa permanência constante e demorada dos franceses, embora sem estabelecimento conhecido, representava um perigo para as vizinhas e próximas capitanias, principalmente a Paraíba, de onde haviam sido repelidos.

“O mal vem do Rio Grande”, dizia-se em Pernambuco e na Paraíba. E assim, para acabar com esse mal, foi resolvida a conquista do Rio Grande, da qual foi incumbido Manoel Mascarenhas Homem, tendo Jerônimo de Albuquerque alcançado melhor êxito na empresa.

Piratas franceses no Brasil – Fonte – httpswww.goianarte.com

Não tinham então os franceses regulares instalações. Viviam, entretanto, em estreitas relações com os selvagens, habitando mesmo suas aldeias. É o que se depreende da célebre “História do Brasil” de Frei Vicente do Salvador, escrita em 1627, e onde se lê que logo ao chegar Manoel Mascarenhas Homem “ali desembarcaram e se entrincheiraram de varas de mangue para começarem a fazer o forte e se defenderem dos Potiguaras que não tardaram muitos dias. Vieram uma madrugada, infinitos, acompanhados de cinquenta franceses, que haviam ficado das naus no porto dos Búzios e outros que ali estavam casados com Potiguaras”.

Manoel Mascarenhas Homem, que lutou no Rio Grande do Norte contra os franceses – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia

E assim ofereceriam os selvagens, auxiliados por seus aliados franceses, tenaz resistência. O que não impediu, entretanto, a fundação do “Forte dos Reys”, permitindo a criação da povoação do Natal dois anos depois — 25 de dezembro de 1599. Foi celebrada a paz com os Potiguaras, conseguida por Jerônimo de Albuquerque com a mediação de um selvagem “principal e feiticeiro”, chamado ILHA GRANDE.

A conquista do litoral brasileiro havia sido começada do norte para o sul, sendo depois continuada do sul para o norte, tendo, principalmente esta última, contado com eficaz cooperação dos naturais da terra, já representados por brancos, filhos de portugueses, por mestiços e pelos selvagens que, subjugados e pacificados pelos portugueses, eram aproveitados como seus aliados.

Os selvagens constituíam sempre o grosso das forças conquistadoras, embora não fossem, em regra, os elementos mais resistentes nos combates. Eram, entretanto, os mais resistentes às longas marchas, aos transportes e aos mais serviços exigidos em campanhas rudes e aventurosas, em que não podia se contar com auxílios minguadíssimos e retardados, senão impossíveis.

Forte dos Reis Magos, por Frans Post (1638)
– Fonte – http://noisnafolia.no.comunidades.net/pontos-turisticos

Os Potiguares, que dominavam o litoral do Rio Grande do Norte, uma vez pacificados, foram valiosos e fortes elementos para a conquista do norte. Não existindo mais o “mal vindo do Rio Grande», que passara para o Ceará e para o Maranhão, foi resolvida a conquista desses pontos, onde os franceses procuravam se firmar. Ainda foram os Potiguares elementos preponderantes para a conquista do primeiro daqueles territórios.

Expulsos os franceses do litoral, de Paraíba ao Maranhão, as novas populações que procuravam se estabelecer não ficaram na tranquilidade da paz. Nem todas as tribos haviam feito amizade com os colonizadores; e mesmo no meio daquelas tidas como amigas, surgiam ataques e desconfianças que traziam para a região um verdadeiro estado de guerra, rompendo a duvidosa paz, sempre de curta duração..

Veio depois a guerra holandesa. O Rio Grande do Norte foi duramente sacrificado na luta. Tomada a Fortaleza dos Reis Magos (12 de dezembro de 1533) por uma força holandesa guiada por Calabar, sofreu o Rio Grande do Norte com o invasor até o final da guerra holandesa no Brasil. Esteve assim esta terra dezenove anos sob o domínio batavo.

Florin holandês de ouro. Essa foi a primeira moeda a conter o nome Brasil e foi produzida pelos holandeses durante a ocupação de Recife – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Dutch_guilder

Calabar conseguira angariar para os holandeses a amizade dos Índios Janduís, que unidos aqueles praticaram horríveis massacres. Fácil é de imaginar o que seria a guerra movida por selvagens açulados por aventureiros da pior espécie, como parece que eram os holandeses enviados para o Rio Grande do Norte. Chegaram a negociar prisioneiros como animais para o corte, destinado a pasto dos antropófagos Janduís.

Finda a guerra holandesa pela expulsão dos invasores, continuou a luta no Rio Grande contra os Índios, sempre dispostos a defender sua vida selvagem e sem peias. Houve mesmo uma rebelião generalizada dos nativos que durou longos anos, nada respeitando, nem a vida nem os habitantes do Rio Grande, que já contava elementos de prosperidade. Foi calculado que os índios mataram “perto do trinta mil cabeças de gado grosso e mais de mil cavalgaduras”. Essa rebelião durou de 1688 a 1720, quer dizer, 32 anos, talvez mais, porquanto não se acha bem estudado esse ponto da história. Foi um movimento sério e perigoso. Pedidos insistentes de socorro partiram para Pernambuco, para a Bahia, e até diretamente seguiu um emissário para Lisboa, levando uma representação do Senado da Câmara ao Rei, tais as delongas do auxílio reclamado.

“Cena da Expedição do Tenente-Coronel Affonso Botelho”, aquarela do artista Joaquim José de Miranda (1771) que retrata o confronto entre indígenas e bandeirantes. Provavelmente cenas como essa ocorreram no Rio Grande do Norte – Fonte – https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/guerras-barbaras/

Do litoral ao alto sertão era grande o perigo que ameaçava a própria Natal, sendo, o ponto culminante da rebelião a ribeira do Assú. Vieram em excursões guerreiras tropas da Paraíba, de Pernambuco e da Bahia. Vieram os ”terços paulistas” que haviam lutado em Palmares, vieram companhias do Batalhão de Henrique Dias. Essas forças, os melhores elementos de luta então disponíveis pelo Governo do Brasil, subiram até as cabeceiras do rio Assú, foram às ribeiras do Seridó, do Apodi até ao Jaguaribe, em perseguição dos índios que foram afinal pacificados, isto é, aniquilados, escorraçados, sendo tomada a providência de aldear os restantes. Ainda em tais aldeamentos apareciam insurreições dos índios motivadas por excessivos rigores e injustiças. Nenhuma condescendência havia para o infeliz selvagem, a quem de fato era negado qualquer direito.

Seguramente Miguel Joaquim de Almeida Castro, o Padre Miguelinho, foi o potiguar que mais expresivamente tomou parte na revolução de 1817 e acabou sendo fuzilado. Em junho de 1906, no 89º aniversário do fuzilamento, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, promoveu uma série de homenagens em Natal . Houve uma sessão solene no então Teatro Carlos Gomes, atualmente Teatro Alberto Maranhão, na noite de 12 de junho de 1906, onde um coro feminino cantou o “Hino de Miguelinho”, letra de Henrique Castriciano e música de Luigi Maria Smido, cuja a capa da partitura apresentamos acima – Fonte – https://gamfrente.blogspot.com/2017/03/padre-miguelinho-luz-do-rio-grande-do.html

Na revolução de 1817, não é ignorado o papel que representou o Rio Grande do Norte. Pode-se dizer que essa página luminosa da história nacional se caracteriza no seu conjunto mais pela pureza de seus chefes, pelo estoico heroísmo dos que nela figuram, pela elevação dos ideais, pelo pendor doutrinário, do que por feitos militares e ação guerreira. E foi essa seguramente uma das causas que apressaram o fracasso da revolução.

Em agitações partidárias passou a Província as fases da Independência Nacional. Tomou parte na revolução da “República do Equador”.

Os corajosos e mal organizados destroços das forças revolucionárias de 1824 seguiram por terra, em dificultosa marcha por ínvios sertões de Pernambuco ao Ceará, procurando junção com as forças que nessa Província apoiavam o movimento revolucionário. Foi uma verdadeira retirada de cerca de três mil pessoas, conduzindo duas peças de artilharia, arrastadas por caminhos impraticáveis e arrostando todas as dificuldades que podem acompanhar forças sem disciplina, sem organização militar, sem recursos e sem alentadoras esperanças.

Quadro “Estudo para Frei Caneca”, de Antônio Parreiras (1918), mostrando o padre revolucionário em seu julgamento – Fonte – https://en.wikipedia.org/

Atravessaram o sertão do Rio Grande do Norte entrando pelo Seridó, seguindo para Pau dos Ferros pelos limites entre Rio Grande do Norte e a Paraíba. No Seridó, onde o presidente provisório da Paraíba deixou sua família, que com ele vinha acompanhando a expedição, da qual também fazia parte o nobre, elevado e culto espírito que era Frei Caneca, não foram hostilizadas as forças. Em Caicó, demoraram-se oito dias, concertando as carretas das peças que eram puxadas por bois. Em Patu de Fora, começou a expedição a sofrer hostilidades e também a hostilizar. Foram incendiadas algumas casas e fazendas.

Em Torrões (ou Torões), Patu, houve forte tiroteio, morrendo mais de trinta pessoas de parte a parte. Parece que batalhões irregulares de Portalegre organizaram guerrilhas, unindo-se depois com as forças legalistas do Rio do Peixe (PB).

Foto – Rostand Medeiros.

Serenada a luta pela submissão dos rebeldes, seguiram-se o martírio e as exageradas punições de infelizes chefes rebeldes, sonhadores antecipados dos ideais republicanos, vítimas da crueldade das juntas militares, tão tristemente célebres na história pátria.

Os habitantes do Rio Grande do Norte conservaram sempre prontos para qualquer emergência, chegando a formar batalhões de tropas irregulares, contra os reacionários de 1832, apoiando a política do então ministro da justiça e depois Regente do Império, padre Diogo Antônio Feijó.

Iniciada no Ceará em dezembro de 1831, com a proclamação de Joaquim Pinto Madeira, essa revolta obedecia aos ideais do Partido Restaurador, ou Caramuru, apoiado pelos portugueses. Formou-se no sertão do Rio Grande do Norte batalhões de tropas irregulares que marcharam para o Crato contra os revolucionários. De Martins e Portalegre seguiu um batalhão sob o comando do coronel Agostinho Pinto de Queirós. Conta-se que na primeira noite de marcha dois soldados de família do Martins, os irmãos Patrícios, tentaram voltar para casa, sendo por isso, ao amanhecer, sumariamente fuzilados. O comandante da tropa foi processado por esse fato e depois, por prescrição, isento da pena.

Pintura em azulejo de Armando Lopes Rafael (2010), representando Joaquim Pinto Madeira – Fonte – https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/a-guerra-dos-cacetes-bentos/

Sob o comando do coronel José Teixeira se organizou um batalhão no Seridó, do qual faziam parte os homens válidos das principais famílias. Incorporada à força combatente e reunida em Caicó, o padre Francisco de Britto Guerra, então vigário da cidade e representante da Província na Câmara Temporária, onde entrara como suplente, intimamente relacionado com o padre Feijó, e talvez o principal fator do movimento, promoveu uma grande solenidade cívico-religiosa por ocasião da partida da força. Seguiram todos montados para Pombal onde se uniram as forças da Paraíba, principiaram a receber instrução militar ministrada pelo alferes Canuto, de tropa de linha do Ceará.

Nas várzeas do Rio do Peixe (PB), houve o primeiro encontro entre esse batalhão do Seridó e as forças de Pinto Madeira, tendo estas atacado de surpresa, procurando tomar o valioso comboio dos víveres e munições dos seridoenses. O resultado foi as forças de Madeira retirando-se do combate com a perda de doze homens.

Manuel de Assis Mascarenhas, presidente da Província do Rio Grande do Norte ente 1838 a 1841, em cujo governo concedeu a patente de Coronel Comandante ao seridoense Joãop Gomes da Silva, pela sua capacidade de luta nos combates contra as forças de Pinto Madeira em 1831 – https://pt.wikipedia.org

O batalhão do Seridó continuou em marcha afim de reunir-se com as forças legalistas que no Ceará procuravam abafar a revolta, havendo pelo caminho alguns encontros. Terminada a luta, voltou a tropa ao Caicó, onde foi recebida com festas, aclamações, Te Deum na igreja, etc. Por ocasião dessas festas da chegada, foi aclamado pelos soldados o comandante das forças o quartel mestre João Gomes da Silva, que se havia distinguido na expedição, aclamação que anos depois no governo de Manoel de Assis Mascarenhas (1838 – 1841) foi confirmada com a patente de Coronel Comandante.

Muito é de notar que em todas essas lutas político-partidárias, os sertanejos do Rio Grande do Norte, serenados os ânimos, evitavam ódios inúteis, crueldades, perseguições e delações contra os vencidos.

A tradição narra mesmo o fato de haver Simão Gomes de Britto, capitão de milícias em Campo Grande, recebido ordem superior para prender o Coronel Cavalcante, implicado na revolução de 1817. Mas este apresentou a ordem de prisão ao seu amigo e pediu para que tomasse suas precauções. Acrescentou: — “Dê no que der, não o prenderei, porque sei que não cometeu crime”. E efetivamente não tentou fazer a prisão. Entretanto, o Coronel Cavalcante, ou porque se julgasse inocente, ou por altivez de caráter, ou ainda para evitar a responsabilidade do amigo, foi se entregar, e sofreu os rigores daqueles horríveis cárceres, onde foram martirizados os patriotas de 1817.

Óleo sobre tela de Eduardo de Martino, que retrata a troca de tiros que culminaram na primeira passagem de navios brasileiros por Passo de Tonelero em 1851, onde os argentinos construíram fortificações que bloqueavam a navegação no Rio Paraná. Domínio público, Revista de História da Biblioteca Nacional – Fonte – https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/brasil-monarquico/8979-quest%C3%B5es-platinas-a%C3%A7%C3%B5es-militares-no-segundo-imp%C3%A9rio

Nas guerras contra as repúblicas do Rio da Prata numerosos filhos do Rio Grande do Norte acudiram em defesa da pátria.

Quatro meses depois de declarada a Guerra do Paraguai, embarcou em Macau um contingente de mais de sessenta voluntários, dos quais trinta e três eram do Assú, além de onze de Campo Grande, que haviam seguido diretamente para a Capital. É conhecido o fato de haver o Dr. Olinto José Meira de Vasconcelos, então Presidente da Província (1863 – 1866), dirigido a palavra na capital, a grupos que se achavam em manifestações em frente ao quartel, apelando para o patriotismo de todos e pedindo dar um passo à frente aqueles que quisessem seguir para a guerra. Mais de 400 voluntários moveram-se para a frente. De todos os pontos da Província seguiram Voluntários da Pátria, sendo também crescido o número de recrutados. E o papel que na guerra desempenharam os rio-grandenses-do-norte ajudou ao merecido renome adquirido pela infantaria do norte.

O brasileiro Symphonio dos Santos uniformizado para combater na Guerra do paraguai – Fonte – http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=92142

Na proclamação da República, na revolução federalista do sul, na revolta da armada, em Canudos, os filhos do Rio Grande do Norte cumpriram sempre seu dever.

Sob as ordens de Plácido de Castro, nas lutas acreanas, encontraram-se também inúmeros rio-grandenses-do-norte, destemidos e audazes pioneiros da colonização e conquista das mais recuadas fronteiras da Pátria, os quais tangidos do torrão natal por atormentadoras secas, forneceram, com seus irmãos de outros Estados, por igual vítimas da calamidade, os elementos vitais, talvez os únicos possíveis para o colossal empreendimento da colonização da Amazônia.

De fato, outras populações vivendo certamente sob um clima mais doce e uma natureza mais amena, não estariam, como os nossos sertanejos, tão habituados a receber e aguentar o choque e a destruição das mortíferas forças da natureza amazônica, com a mesma resignação, com o mesmo esforço e coragem com que encaram e recebem as furiosas cargas das nossas devastadoras secas.

Na execução da recente lei do serviço militar (1916) raro é o sorteado dessa terra que deixa de acudir ao chamado: talvez nenhum listado da União apresente menor número de insubmissos.

Eis aqui, a largos traços, a vida militar do Rio Grande do Norte: lutas constantes durante dois séculos, sempre aceso o sentimento de patriotismo, de abnegação, de sofrimento. E por isso mesmo, apesar de uma bissecular educação guerreira, os filhos do Rio Grande do Norte têm acentuadamente o caráter pacífico: o banditismo, o caudilhismo, e as lutas por fanatismo nunca encontraram apoio entre eles.

Para conhecerem a biografia de Felipe Guerra é só acessar esse link – https://fatosdefelipeguerra.blogspot.com/2019/10/felipe-guerra_31.html 

AS NOSSAS VELHAS IGREJAS DE NATAL

A majestosa Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, o primeiro templo religioso erguido no Rio Grande do Norte.

Luís da Câmara Cascudo

A República, Natal, Rio Grande do Norte, 2 de março de 1939, página 3

O sitio da Cidade estendia-se do edifício do Tribunal de Apelação[1] até as imediações da Santa Cruz da Bica[2]. A Praça André de Albuquerque foi inicialmente chamada. “Rua Grande” e “Largo da Matriz”. A Igreja vigiava o quadrilátero de onde se irradiou a cidade. Aí começa, oficialmente, nossa vida social. A missa de 25 de Dezembro de 1599 deve ter sido rezada numa capelinha de barro e palha onde hoje a Matriz ergue sua torre quadrada. A praça é, evidentemente, o chão elevado e firme, indicado pelas instruções do Governador Geral do Brasil para a construção duma Cidade, sentinela avançada da cristandade no setentrião selvagem do Brasil quinhentista.

Uma comemoração na década de 1920 diante da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação , na Praça André de Albuquerque, no Centro de Natal.

Em dezembro de 1633 os holandeses tomaram Natal. Vitoriosos em toda a parte, graças em parte as diligências do mulato Calabar, que está sendo apontado como herói e figura excepcional de grandeza moral, logo no primeiro domingo, 18 de dezembro de 1633, o pastor luterano Johanna, fez sua pregação no pequenino recinto da humilde Matriz, erguida pelas mãos católicas dos colonos portugueses. Até 1654 não ha noticia. Na retirada, os holandeses queimaram arquivos, destruíram casas, devastaram plantações. Também estão sendo glorificados como colonizadores de incrível acuidade progressista e liberal.

Ninguém queria ser Vigário em Natal, um lugarejo com 25 moradores brancos, cercados pela indiaria tumultuosa. O padre Leonardo Tavares de Melo ofereceu-se e veio pastorear o abandonado rebanho. Construiu uma outra capelinha, no local da primitiva, e celebrava Missas, casando, batizando e orando. Em 1672 pensou-se em erguer uma igreja compatível com as necessidades da colônia. Fez-se uma coleta. Pediu-se esmola até ao Rei de Portugal. Em 1694 a igrejinha estava pronta. Gravaram esta data numa pedra. Está na soleira da porta principal.

Em 1786, numa época de remodelações, fizeram-se as duas capelas laterais, do Bom Jesus dos Passos e do Santíssimo Sacramento, completando a figura ritual da Cruz.

Sucesso notável foi o primeiro roubo, historicamente comprovado. Na manhã de 21 de dezembro de 1841 apareceu uma porta aberta e uma lâmpada tinha desaparecido. O chefe de Policia, Dr. Basílio Quaresma Torreão Junior, virou investigador, farejando casas e matos, assombrado com o atrevimento do malandro. Prendeu dois homens. E achou o furto, enterrado debaixo dum cajueiro, em 23 do mesmo dezembro de 1841. A 24, num oficio jubiloso, levou a feliz pesquisa ao conhecimento de dom Manuel de Assis Mascarenhas, Presidente da Província, informando que a lâmpada fora encontrada.

Até 1856, ano do cólera-morbo os sepultamentos eram feitos dentro das Igrejas. Gente rica, graúda, importante, dormia na Matriz, na Igreja de Santo Antônio, e Capela do Senhor Bom Jesus das Dores da Ribeira. Escravos e condenados a pena de morte iam esperar o Juízo final na igrejinha de Nessa Senhora do Rosário dos Pretos.

Em 1856 o presidente da província, Antônio Bernardo de Passos, chamado popularmente “Presidente Passos”, mandou abrir o “cemitério publico” no bairro longínquo do Alecrim. Ficava, naquele tempo, no fim do Mundo.

Em 1857 o Presidente Passos iniciou uma subscrição pública para comprar um relógio destinado a Matriz. Em 1862 começou o serviço para a construção da torre cuja falta afeiava o conjunto. Doze meses depois, com peripécias e paradas, a torre ficou como está. E puseram o relógio que ainda vive prestando serviços ao seu modo[3]. Em 1863 adquiriram um sino grande para a torre. , Custou 801$649 (oitocentos e um mil e seiscentos e quarenta e nove réis), pagos ao Sr. Domingos Henrique de Oliveira. Em 1874 foi a vez de chegar o sino pequeno. Deram por ele 301$453 (trezentos e um mil e quatrocentos e cinquenta e três réis), ao Sr. Joaquim Inácio Pereira. Em 1907 levaram o Cruzeiro da Matriz para o patamar da Igreja do Rosário.

Esse é um rápido e necessário relatório dos principais fatos na história da Matriz, hoje com luz elétrica, tribunas e ampliador radiofônico.

E qual teria sido a segunda Igreja de Natal?

Santo Antonio ou do Rosário? A vida natalense esteve, quase totalmente, condensada na Cidade Alta. Os dois pontos sempre foram relativamente povoados, derredor desses templos.

A Igreja de Santo Antonio dos Militares é um barroco delicioso e, edifício amplo e solido, devia ter exigido muito tempo para sua construção, mesmo com as reformas posteriores. Na fachada, acima da porta principal da Igreja de S. Antônio ha a data: — Agosto de 1766. E ao pé da torre: — Janeiro de 1798. Serão as datas em que foram terminados o corpo da casa e a torre? Três anos antes, em 15 de julho de 1763, já se erguia a Igreja de Santo Antônio, dando nome á rua. Num registo de “carta de data” concedida ao alferes José Barbosa de Gouveya, na rua nova do Senhor Santo Antônio, fala-se nas “cinco braças e meia de comprido e dez de fundo nesta Cidade no caminho que vai dela para o Rio de beber agua encostando nas outras que já tem na mesma parage na rua da Igreja de Santo Antônio”.

Fachada da Igreja do Galo e o seu símbolo no alto da torre, mandado colocar pelo capitão-mor Caetano da Silva Sanches – Foto – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/uma-hista-ria-contada-por-igrejas/326825

Uma história tradicional lembra o capitão-mor Caetano da Silva Sanches, devoto de S. Antônio, que ajudara eficazmente a terminar a Igreja. Parece não se ter dado o auxilio para a nave e sim para a torre. Sanches reformou a torre e cobriu-a de azulejos, ao gosto português do século XVIII, e colocou, lá em cima, um Galo de Bronze. Um versinho de Lourival Açucena recorda o episodio: Caetano da Silva Sanches,

Governador português,

foi quem aqui colocou-me

ha mais de um século talvez…

Não se assustem-com a colocação pronominal. Para aquele tempo estava gramaticalmente certa. Sanches morreu em Natal, a 14 de março de 1800, de um estupor. Tinha cinquenta e cinco anos de idade. Descobri lhe o testamento no arquivo do Instituto Histórico.

Outra nota sensacional foi a faísca elétrica que, numa noite calma, pendurou, num choque brusco, o Galo, das alturas do seu poleiro secular. O caso se deu ás 8 e 35 minutos da noite de 6 de março de 1897.

A Igreja do Rosário é a enteada da História. Ninguém a cultua, procurando-lhe o passado. Destinada aos negros escravos, maior emoção merece do todos nós. Aquela nave pequenina abrigava as esperanças do amor negro, as alvoradas do futuro, com todos os milagres da alforria. Ali casaram e entraram para a vida cristã centenas e centenas de entes sem crônica, sem elogios e sem necrológicos, os ajudadores de tanta riqueza, nascida de seu trabalho sem pausa.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Centro.

O Governo de Portugal, por prestigio católico do clero, aconselhava que as autoridades administrativas em todos os domínios, facilitassem a fundação das “Irmandades” de N. S. do Rosário, dedicada Padroeira dos pobres escravos”. No dia da Santa havia folga e nenhum “senhor” tomava a ousadia de proibir que um negro participasse das festas que duravam o dia e parte larga da noite. Para festejar N. S. do Rosário os negros organizavam as danças. com cânticos e declamações. Daí vieram os “Congos”, “Cachambís”, com outros autos populares. Ia tudo á porta do templo, cantando. Podia Nossa Senhora, naquelas 24 horas, dar-lhes a ilusão da liberdade.

A igrejinha de N. S. do Rosário dos Pretos (como era citada) não existia em 1706, mas estava construída em 1714. Até prova em contrario, é a segunda de Natal. Nesse 1714 regista-se uns “chãos para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário junto a Igreja”. Em 3 de novembro de 1706, Antônio Henrique de Sá registava uns “chãos” onde se quer fundar a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Em 1714, o mesmo peticionário requeria a doação perpétua do que já possuía desde 1706 e menciona a Igreja como ponto de referência. A 2 de julho de 1714, o padre Dr. Simão Roiz de Sá pedia “terras devolutas de fronte do Cruzeiro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, indo pela estrada que vai desta Cidade para Ribeira”. Não conheço referência anterior a 1714.

Igreja do Bom Jesus das Dores – Fonte – http://turismo.natal.rn.gov.br/igrejas.php

A Igreja do Bom Jesus, ampliada, reconstruída, modernizada, foi uma capelinha que atendia ás necessidades religiosas dos moradores da Ribeira. Ha cento e sessenta e três anos (em 1939) já existia. Em 5 de fevereiro de 1776 o vigário Pantaleão da Costa de Araújo autorizava ao coadjutor Bonifácio da Rocha Vieira a casar Sebastião José de Melo com D. Ana Maria Gomes na “Capela do Senhor Bom Jesus das Dores”.

Igreja de Bom Jesus das Dores e a atual Praça José da Penha, na Ribeira.

A região ainda era despovoada e os sítios se estiravam no flabelo dos coqueirais. Ainda a 30 de dezembro de 1811 concede-se, sob o foro de 160 réis anuais, que Luís José de Medeiros se aposse das terras junto e detrás do “Senhor Bom Jesus”, “para plantar suas arvores de frutos e não prejudicando a terceiro e deixando livre a estrada que vai desta Cidade para o Senhor Bom Jesus”. ” Creio que a ordem cronologia das Igrejas de Natal será: — Matriz, Rosário, Santo Antônio e Bom Jesus.

Tais foram os princípios dos nossos templos, as sedes da força espiritual e da resistência animosa com que os velhos moradores da Cidade do Natal do Rio Grande defenderam e até nos trouxeram essa tradição de vida comum, cimentada na união do sangue e das preces.

NOTAS


[1] O Tribunal de Apelação é o atual Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, que nessa época ficava na antiga Avenida Junqueira Aires, 478, atual Avenida Câmara Cascudo, onde até o início de 2017 foi a sede da OAB-RN.

[2] Atual Praça da Santa Cruz da Bica, na Cidade Alta, na confluência das Ruas Mermoz, Santo Antônio e Voluntários da Pátria.

[3] Mesmo com atrasos, quebras constantes, durante décadas esse antigo relógio da velha Matriz da Praça André de Albuquerque foi o que regulou o tempo dos moradores de Natal do passado.