EXCLUSIVO – QUEM FOI O BRASILEIRO QUE MORREU NO “DIA D” PILOTANDO UM CAÇA MUSTANG?  

Filho de Pai Inglês e de Mãe Pernambucana – Nasceu e Viveu em Recife até o Começo da Segunda Guerra – De Sargento da RAF, ele Chegou a Oficial de Voo de Um P-51 Mustang – Participou do Dia D, Foi Abatido Por Fogo Amigo e Morreu na Praia de Sword – Anos Depois o seu Irmão era Oficial da FAB e Morreu no Acidente de uma B-17 em Recife.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Em Recife existe o tradicional bairro de Santo Amaro, um lugar com muita história, onde na primeira metade do século XVII existiram salinas e uma casa grande que pertenceu ao major Luís do Rego Barros. Na época das invasões holandesas esse setor foi um importante ponto estratégico para os estrangeiros e para a resistência dos pernambucanos, que fustigavam os invasores com ações de guerrilha.

Com a derrocada holandesa em 1654 essa parte do Recife, então um dos extremos da cidade, foi sendo ocupada lenta e gradativamente. Era tão desabitado e longe que em 1814 foi ali construído o Cemitério dos Ingleses. Como a presença desses estrangeiros cresciam em número na capital pernambucana, mas quando faleciam não podiam ser enterrados no interior das igrejas por não serem católicos, o jeito foi pedir ao Presidente da Província um terreno exclusivo para isso. Seguindo essa tendência, no governo de Francisco do Rego Barros, o Conde da Boa Vista, foi inaugurado em 1851 o Cemitério de Santo Amaro.

Igreja de Santo Amaro das Salina, de 1681, um dos marcos mais antigos do bairro de Santo Amaro, em Recife – Fonte – Google Street View.

A região crescia com seus cemitérios, muitas áreas abertas e casas de famílias tradicionais. Na década de 1910 morava na Rua do Capitão Lima, ou Rua do Lima, número 244[1], o comendador José Abílio de Barros. De família tradicional da região de Palmares, sul do estado. Abílio era filho de Manoel d’Albuquerque Barros Cavalcanti (que faleceu em 15-07-1888) e de Ursulina de Castro Barreto Barros (falecimento em 15-05-1903).

Abílio era um respeitado comerciante de açúcar em Recife, com ponto comercial na prestigiada Rua do Apolo, 69[2], mas faleceu aos 52 anos, no ano de 1902[3]. Sua esposa, Belmira Duarte Barros, era nascida na mesma região de Palmares e com a viuvez ficou cuidando de treze filhos, sendo sete mulheres[4].

Mulher de fibra e coragem, Dona Belmira organizou a vida de sua família, cuidou rigidamente da educação dos filhos, formou os estudiosos, botou para trabalhar os menos letrados e foi casando as filhas com “gente de posição”. Apesar de tudo nessa mulher apontar para uma pessoa rígida, típica de uma época de valores duros e bem definidos socialmente, Dona Belmira concedia a suas filhas uma certa liberdade para o desenvolvimento intelectual e cultural.

Cândida Duarte Barros foi uma das redatoras do jornal feminino O Lyrio, uma revista literária exclusivamente feminina, organizada em 1902, que defendia a educação das mulheres, a igualdade de direitos e circulou por três anos[5]. Sua irmã mais nova Corina Duarte Barros, também conhecida como Cora, possuía uma boa voz e participava de corais em Recife. Em 6 de setembro de 1912 ela fez parte de uma apresentação no respeitado Teatro Santa Isabel, na obra A Ressureição de Cristo. O espetáculo foi em honra da Independência do Brasil e contou com a presença do general Dantas Barreto, governador do estado[6].

Outra situação diferenciada em relação às filhas de Dona Belmira, foi que essa matrona não tinha problemas em que elas casassem com estrangeiros, tendo três delas se unido a ingleses que moravam em Recife.

Maria Amélia Duarte Barros casou com Archibald Otto Charles Fell, engenheiro da empresa Western Telegraphic Company, falecido em 1911 no Rio[7]. Já a beletrista Cândida Duarte Barros foi casada com James Chalmers, engenheiro da Estrada de Ferro Leopoldina e falecido no Rio de Janeiro em novembro de 1943[8]. Finalmente havia a cantora Corina Duarte Barros, que se uniu a Harold Ernest Barnard.

Documentação de Harold Ernest Barnard.

Harold desembarcou em Recife no dia 18 de julho de 1913, para trabalhar como contador na agência recifense do Bank of London and South America Limited, um banco britânico que operou na América do Sul entre 1923 e 1971. Ele tinha nessa época 24 anos de idade, havia nascido em 18 de julho de 1889, na cidade de Leyton, a leste de Londres, sendo filho de Ebenezer Alfred Barnard e de Sarah Phoebe Fisher Barnard. Em setembro de 1916 encontramos a notícia de que Harold Barnard e Corina Duarte Barros haviam proclamado que em breve casariam[9].

Segundo os documentos que consegui sobre a família de Harold Barnard e Corina, temos a informação que ele foi transferido para a agência do Bank of London em Maceió, Alagoas, onde morou na Avenida Tomás Espínola, 128, no bairro do Farol, e continuou nesse cargo durante anos.

Documentação original de Harold Barnard, grande fonte de informações.

O casal teve quatro filhos – Stanley Harry Barnard (nascido em 1921, ou 1922), Percy Alan Barnard (10/09/1918), Gladys Mary Barnard (25/07/1923) e Iris May Barnard (15/11/1927). Não sei se Harold, sua esposa e filhos passaram a morar juntos em Maceió, mas tudo indica que pelo menos o primogênito Stanley continuou em Recife, com uma forte ligação com a Rua do Lima, o bairro de Santo Amaro e talvez morando com a sua avó, que faleceu em 1936 e cujo cortejo fúnebre saiu de sua casa[10]. Percebi na minha pesquisa que a relação desse jovem com a família materna era tão forte que na época de sua morte os jornais recifenses dão seu nome como sendo “Stanley Barros Barnard”[11].

Não encontrei indicações que o jovem Stanley tenha ido estudar, ou morou algum tempo na Inglaterra. É provável que com a presença do pai e de dois tios ingleses por perto, esse jovem teve uma relação muito forte com a cultura anglo-saxônica, enquanto convivia intensamente com a família de sua mãe e absolvia muito da cultura pernambucana.

Podemos dizer que o jovem Stanley Barnard era uma positiva mistura de gim tônica e bolo de rolo!

Lutando em um Mustang da RAF

Eu não descobri quando o recifense da Rua do Lima seguiu para a terra de Sua Majestade, mas temos a informação que entre a primavera e o verão de 1941, ele se alistou na Royal Air Force, a famosa RAF, ou Força Aérea Britânica. Tinha apenas 19 anos.[12]

Na foto vemos um posto de observação do Royal Observer Corps (ROC) durante a Batalha da Inglaterra, na Segunda Guerra Mundial. Na foto vemos a direita, usando um telefone de peito, P.C. “Lofty” Austin, um ex-representante comercial e ex-jogador de futebol do Tottenham Hotspur, que relata aos seus superiores as informações coletadas por seu colega C.E. “Smudge” Smith, que trabalha em um instrumento de plotagem em Kings Langley, Hertfordshire, Inglaterra – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Dowding_system#/media/File:The_Royal_Observer_Corps,_1939-1945._CH8215.jpg

É provável que a entrada de Stanley na arma aérea da Grã-Bretanha tenha muito haver com a enxurrada de notícias que foram veiculadas em todo mundo, igualmente nos principais jornais recifenses, sobre o desenrolar da mítica Batalha da Inglaterra.

Essa importante série de combates aéreos entre as forças aéreas da Grã-Bretanha e da Alemanha, pôs fim às retumbantes vitórias relâmpagos dos nazistas na Europa e marcou uma fase decisiva no curso da Segunda Guerra Mundial. A Luftwaffe, a força aérea alemã, apoiada pela arma aérea da Itália, realizou uma intensa campanha para destruir a RAF com muitos bombardeios para acabar com a produção de aeronaves britânicas, acabar com a infraestrutura dos aeroportos e ataques a várias cidades, entre elas Coventry e Londres, para assim permitir que o exército alemão invadisse a Grã-Bretanha. Outro objetivo desses ataques foi o de aterrorizar a população britânica e pressionar seu governo a fazer a paz com a Alemanha de Hitler. Mas os britânicos não se dobraram e a RAF foi a ponta de lança dessa resistência.

Barnard ascendeu ao posto de sargento, tinha o número 1387812 e continuava seu caminho dentro da RAF para tornar-se oficial de voo. Enquanto ele aprendia muitas tarefas para participar da guerra, na base da RAF de Snailwell, perto da cidade de Cambridge, leste da Inglaterra, no dia 15 de junho de 1942 foi criado o Esquadrão 168, uma unidade aérea que se tornou operacional para missões de reconhecimento e ações de combate no território inimigo.

Símbolo do Esquadrão 168.

Não demorou e esse grupo estava realizando ataques contra navios e alvos costeiros, mas principalmente trabalhando em estreita cooperação com o Exército Britânico. Os pilotos desta unidade vieram dos países da Comunidade Britânica, de países ocupados pelos nazistas e, porque não, um descendente de ingleses nascido no Nordeste do Brasil.

Mustang da RAF sobre a França ocupada.

Em 20 de fevereiro de 1943 o pernambucano Stanley Barnard foi promovido a oficial aviador, tendo sido designado para o Esquadrão 168, que nessa época atuava na base de Odiham, em Hampshire, sudeste da Inglaterra[13]. Ali a unidade utilizou aeronaves de caça Mustang Mk. Ia, uma variação do famoso avião de combate americano P-51 Mustang, projetado pela North American Aviation e vários foram entregues aos britânicos por um sistema de empréstimos financeiros. A base de Odiham era dividida com o Esquadrão 268, também de reconhecimento.

O Mustang Mk. Ia era uma aeronave excepcional[14]. Possuía um motor Allison V 1710-87, com 1.250 HP de potência, com 12 cilindros em V, proporcionando um excelente desempenho que podia levar essa versátil aeronave a uma velocidade máxima de quase 600 quilômetros por hora. E a alta velocidade era importante para as missões de reconhecimento estratégico, principalmente no quesito de sobrevivência dos pilotos[15].

Câmeras oblíquas K24.

Os Mustangs de reconhecimento da RAF eram equipados com uma ou duas modernas câmeras oblíquas K24, montadas no encosto de cabeça do piloto e que tinha uma ótima capacidade de fotografar alvos estratégicos. As missões de reconhecimento fotográfico de baixo nível e de curto alcance eram chamadas de “Popular”. Já as câmeras eram controladas pelo piloto e sua operação era automática.

Rasante de um Mustang de reconhecimento da RAF.

As aeronaves de reconhecimento da RAF voaram centenas de perigosas missões, muitas delas em nível ultra baixo, para garantir que as defesas alemãs e o interior da Normandia não tivessem segredos. Qualquer coisa de importância que eles viram em suas missões, como a localização e detalhes de tanques, artilharia, sítios antiaéreos, estacionamentos de veículos, concentração de tropas e quaisquer novas construções eram fotografados e registrados em documentos escritos.

No destaque vemos dois, dos quatro potentes canhões Hispano Suiza de 20 milímetros de um Mustang do Esquadrão 168 da RAF.

Além disso, essas aeronaves estavam equipadas com uma câmera acoplada às suas armas, no caso quatro potentes canhões Hispano Suiza de 20 milímetros, dois em cada asa. Após suas missões de reconhecimento fotográfico, os Mustangs da RAF podiam aproveitar e disparar contra alvos de oportunidade, tais como locomotivas, barcaças, veículos militares de transporte motorizado e aeronaves inimigas no solo. Em 1944 esses esquadrões se tornaram especialistas neste tipo de operações[16].

Missões Difíceis

Essas missões de reconhecimento eram extremamente perigosas e seus esquadrões possuíam um alto índice de baixas.

Mustang do Esquadrão 168 sobre o Canal da Mancha.

Sabemos que pouco menos de um mês antes da chegada de Stanley Barnard, o Esquadrão 168 sofreu duas baixas em um único dia. Às uma e cinco da tarde de 23 de janeiro de 1943 dois Mustangs decolaram de Odiham para sortidas na região de Pas de Calais, na França. As aeronaves eram pilotadas pelo australiano Bernard Wilson Kearny e o neozelandês Ian G. Grant e foram derrubados por artilharia antiaérea na área de St. Etienne-au-Mont, às margens do Canal da Mancha. Uma testemunha informou que no começo da tarde as duas aeronaves voavam a baixa altitude e foram derrubadas, com o piloto australiano sendo mortalmente ferido e Grant sobrevivendo, mas sendo aprisionado e mantido até o final da guerra no campo Stalag Luft III, na Polônia[17].

Em julho de 1943 o Esquadrão 168 começou a fazer parte da 2ª Força Aérea Tática (2nd Tactical Air Force), a contribuição da RAF para a frota aérea maciça que estava sendo preparada para os desembarques do Dia D[18].

As missões foram se sucedendo, bem como as perdas.

Imagem de um FW-190 do mesmo esquadrão que abateu o oficial Bainard em 25 de julho de 1943.

As cinco da tarde do dia 25 de julho de 1943 os oficiais A. J. F. Young e William A. Bainard decolaram com seus Mustangs para a região de Ouistreham, na Normandia. Quando começavam uma corrida para fotografar seus alvos, surgiram dois caças alemães Focke-Wulf FW-190 A5, do III/JG 2 (III Staffeln / Jagdgeschwader 2), que atacaram os Mustangs. Estes buscaram fugir em direção ao Canal da Mancha, mas a 12 milhas a noroeste de La Havre e a cerca de 450 metros de altitude, o oberleutnant Jakob Schmidt acertou o motor do Mustang de Brenard. O caça inglês caiu no mar, mas o piloto sobreviveu e foi salvo por um hidroavião no outro dia. O oficial Young conseguiu retornar para a base do Esquadrão 168 na Inglaterra[19]

Mustang Mk I da RAF, com as listras utilizadas para visualização no Dia D.

Após o incidente envolvendo os oficiais Young e Bainard e durante praticamente todo um ano, as aeronaves de reconhecimento Mustang do Esquadrão 168 continuaram suas missões em preparação ao Dia D. Durante esse período, oito aeronaves e sete pilotos do esquadrão foram perdidos em operações de combates. Outros mais morreriam no futuro.

Não sabemos maiores detalhes das missões, escala de voos, ou possíveis combates que o pernambucano Stanley Henry Barnard tenha participado durante sua permanência de um ano e quatro meses no Esquadrão 168. Mas sabemos que ele estava lá e era um piloto de combate!

Mustang do Esquadrão 168.

Os pilotos de reconhecimento da RAF não sabiam a data exata do Dia D, mas percebiam que se aproximava o momento conforme aumentavam exponencialmente o número de voos de reconhecimento, através dos pedidos feitos pelos comandantes do Exército e da Marinha.

Um outro indício que a hora estava chegando foi quando as asas dos Mustangs foram pintadas com largas listras preto e branco. Era uma tentativa para que os nervosos atiradores antiaéreos Aliados não os confundissem com aeronaves inimigas. A maioria dos aviões que participaram do Dia D receberam essas marcações.

Foto colorida de Mustangs da RAF.

O Dia D

Baseado em escritos deixados por outros aviadores dos esquadrões de reconhecimento da RAF, provavelmente no começo da noite de 5 de junho de 1944 todos os pilotos do Esquadrão 168 foram chamados para uma reunião, ou “briefing”, com a presença do S/L (Squadron Leader) Percy Walter Mason, então comandante geral do esquadrão[20].

S/L (Squadron Leader) Percy Walter Mason, comandante geral do Esquadrão 168.

Mason informou aos pilotos que a invasão começaria à meia-noite, com as primeiras ondas de forças aerotransportadas passando sobre suas cabeças e que a invasão marítima desembarcaria nas praias francesas nas primeiras luzes da manhã seguinte. Provavelmente Stanley Barnard e todo o pessoal ficou confinado na base, em meio a uma noite atípica, com o constante ronco dos motores dos aviões de transporte sobre suas cabeças, que levavam milhares de paraquedistas e seguiam a caminho da França.

Paraquedistas americanos prontos para combater no Dia D.

Talvez o pernambucano nem tenha pregado o olho em meio a tanta tensão da espera. E se dormiu foi por pouco tempo, pois o café da manhã começou a ser servido às três e meia, onde depois foram detalhadas novas informações das missões e as áreas a serem fotografadas, ou onde as aeronaves deveriam se posicionar para apoiar os disparos dos grandes canhões navais. No Esquadrão 268 os pilotos decolaram de sua base em Gatwick antes das cinco da manhã. No Esquadrão 168 não deve ter sido muito diferente e uma das primeiras aeronaves a decolar foi o Mustang com o código AM225, pilotado por Stanley Barnard.

Não demorou muito para o pernambucano sobrevoar o Canal da Mancha naquele memorável 6 de junho de 1944, uma terça-feira. Ele visualizava um dos maiores eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, com milhares de barcos atravessando as águas frias do canal e outros milhares de aviões roncando em direção à França.

Desembarque em Sword Beach, fotografado por aviões de reconhecimento da RAF.

Inicialmente alguns Mustangs do Esquadrão 168[21] e de outros grupos foram encarregados de conduzir reconhecimento tático sobre a chamada Sword Beach, ou Praia da Espada, trazendo de volta algumas das primeiras e melhores imagens da invasão. Outras aeronaves de reconhecimento foram designadas para o apoio visual aos tiros navais realizados pela frota britânica, que bombardearam alvos alemães e facilitaram o trabalho das forças de desembarque.

Mapa com a disposição, direção de tiro, localização dos alvos e nome das naves britânicas que atacaram Sword Beach em 6 de junho de 1944.

Abaixo do Mustang de Stanley Bernard, flutuando nas águas frias do canal, estavam os navios britânicos da “Force S”. Pontualmente às cinco da manhã de 6 de junho, o veterano encouraçado Warspite, que participou da Primeira Guerra, foi o primeiro navio deste grupo a disparar seus poderosos canhões de 380 mm contra a costa francesa. O alvo foi a bateria alemã em Villerville, para apoiar os desembarques da 3ª Divisão britânica em Sword Beach. Outro veterano da Primeira Guerra que estava lá foi o encouraçado Ramillies, que mirou na bateria alemã em Benerville-sur-Mer[22]. Além desses faziam parte da “Force S” os cruzadores Mauritius, Arethusa, Frobisher, Dragon, Danae e Scylla, o monitor Roberts e o navio cargueiro Largs, que servia como comando daquela força naval. Além dessas naves, estavam nesse setor treze destróieres.

Veterano encouraçado Warspite, que combateu na Primeira Guerra, disparando seus poderosos canhões de 380 mm contra a bateria alemã de Villerville.

Certamente foi inigualável o “espetáculo” visto do alto por Stanley Barnard no cockpit do seu Mustang. Poderosos disparos dos navios de guerra contra a costa, o revide das baterias alemãs, o avanço das naves de desembarque e a chegada dos soldados nas praias. O problema foi que o local onde ele e seu avião se encontravam começou a se tornar perigoso.

Apesar das listras pretas e brancas pintadas nas aeronaves, existem relatos que a maioria dos pilotos dos Mustangs experimentou intenso, preciso e pesado disparos de artilharia antiaérea sobre a área de invasão, grande parte dela vinda dos navios britânicos abaixo deles. Logo começaram as perdas.

O oficial Eric Woodward, piloto do Mustang FD495, do Esquadrão 268, não retornou de uma missão de observação de tiros navais sobre a área de invasão e pode ter sido uma vítima do fogo antiaéreo naval dos Aliados.

Outro que infelizmente teve o mesmo destino foi Stanley Barnard.

Esquecimento em Lion-Sur-Mer

Em algum momento por volta das seis da manhã o seu Mustang AM225 foi atingido pelos nervosos artilheiros antiaéreos de algumas das naves inglesas. Consta que ele voava sobre a área de Ouistreharn, quase no final de Sword Beach.

Não existem detalhes de quem o atingiu e do que houve com o pernambucano Barnard. Mas existe a informação que sua aeronave se estatelou na área da comuna litorânea de Lion-Sur-Mer. Pode parecer estranho essa falta de informações, mas quando sabemos o que ocorreu naquele setor de Sword, é possível compreender a razão dessa carência de dados.

Vista atual de Lion-Sur-Mer.

Naquele 6 de junho, a comuna de Lion-Sur-Mer foi atacada por elementos do 41º Comando Real dos Fuzileiros Navais (No.41 Royal Marine Command), composto por 450 homens, liderados pelo tenente-coronel Thomas Malcolm Gray. Os Fuzileiros Navais sofreram pesadas baixas na praia, pois os soldados alemães do Widerstandnest 21, ou Ninho de Resistência 21, só entregaram sua posição depois de uma sangrenta luta. Consta que os britânicos perderam mais de 140 homens naquele dia.

Se no Dia D pouca gente se ligou com a destruição de um Mustang de reconhecimento que caiu na área de Lion-Sur-Mer, nos dias seguintes ao desembarque foi que ninguém se importou mesmo, pois logo o avanço britânico em Lion-sur-Mer foi bloqueado por elementos da 21ª Divisão Panzer, cujos efetivos chegaram à costa por volta das sete da noite. Na manhã seguinte, quarta-feira, 7 de junho, aviões alemães bombardearam o posto de comando do 41º Comando Real dos Fuzileiros Navais, ferindo o comandante Grey. No meio da tarde os Fuzileiros Navais finalmente alcançaram seu objetivo e se juntaram a outras forças britânicas[23].

Tropas britânicas em Sword Beach.

Para aumentar o esquecimento sobre o que aconteceu ao pernambucano e seu Mustang, a catorze quilômetros da praia de Sword fica a cidade francesa de Caen, que na época tinha uns 40.000 habitantes. O plano original era que os britânicos deveriam conquistar essa cidade no mesmo dia dos desembarques, mas só faltaram combinar isso com os alemães, pois estes resistiram assustadoramente e Caen só se rendeu um mês depois. A coisa toda foi tão complicada, que essa cidade foi praticamente destruída pelos bombardeios aéreos Aliados e sofreu danos igualmente extensos devido aos combates terrestres. Houve milhares de mortos entre a população civil francesa e após a batalha pouco restou da cidade original, tanto que a sua reconstrução só foi completada em 1962.

Os restos do pernambucano Stanley Harry Barnard e do seu Mustang ficaram enterrados nas areias de Lion-Sur-Mer e foram esquecidos. Certamente se esse avião e o que sobrou do seu piloto tivessem sido encontrados, os franceses daquela região há muito tempo teriam construído algum tipo de monumento em sua homenagem, pois esses marcos de memória relativos ao Dia D existem ali em grande quantidade[24].

Barnard é homenageado no painel número 204, no Runnymed Air Forces Memorial, em Englefield Green, perto de Egham, oeste de Londres. Ali estão os nomes de 20.456 membros das forças de aviação da Grã-Bretanha mortos na Segunda Guerra[25].

A notícia da morte de Stanley Barnard chegou aos seus familiares no Recife através do Foreign Office, ou Ministério das Relações Exteriores da Grã-Bretanha. Houve algumas publicações em jornais recifenses e cariocas sobre sua morte e só.

Mas logo outro membro do clã Barnard estava envergando o uniforme de uma outra força aérea.

Percy Barnard, Tenente da FAB

Não sabemos nem quando e como Percy Alan Barnard, irmão de Stanley, entrou na Força Aérea Brasileira, mas em setembro de 1945 ele possuía a patente de segundo tenente e foi classificado por necessidade do serviço para cursar a Escola de Especialistas da Aeronáutica, que nessa época funcionava no Galeão, Rio de Janeiro[26]. Três anos depois ele foi promovido a primeiro tenente[27] e a formatura da sua turma aconteceu em dezembro daquele mesmo ano[28].

O oficial da FAB Percy Alan Barnard.

Em 1951 encontrei a notícia que o primeiro tenente Percy Barnard estava lotado na Base Aérea de Fortaleza e havia sido transferido para o Centro de Treinamento de Quadrimotores, mais conhecido como CTQ, uma unidade criada pelo Ministro Armando Trompowsky em 24 de janeiro daquele ano, através da Portaria 39-G-2, destinada a treinar os membros da FAB para utilização dos famosos Boeing B-17 Flying Fortress, ou Fortaleza Voadora. Estas aeronaves ficaram lotadas no Recife, sede da 2ª Força Aérea, mais especificamente no Campo do Ibura, onde funcionou inicialmente o CTQ, que no futuro se transformaria no 6º Grupo de Aviação (6º GAV) [29].

SB-17G de busca e salvamento. Reparem que este avião transportava um pequeno barco que podia ser lançado ao mar no socorro aos náufragos.

Mas afinal, como o Brasil utilizava os míticos quadrimotores B-17 na década de 1950?

Com o final da Segunda Guerra a grande maioria dessas aeronaves foram desativadas e muitas se transformaram em sucatas. Outras foram convertidas para uso em reconhecimento aéreo, transporte de carga e busca e salvamento (SAR – Search and Rescue).

Segundo o site http://darozhistoriamilitar.blogspot.com.br/2009/11/missao-pernambuco-b-17-fortaleza.html , as B-17 destinadas a FAB foram utilizadas para o serviço de busca e salvamento, adaptadas a partir de aeronaves originalmente construídas do modelo G, com suas denominações alteradas nos Estados Unidos para SB-17G[30].

O primeiro tenente Percy Barnard seguia nas suas funções no CTQ, quando no dia 23 de julho de 1952, uma quarta-feira, ele se apresentou para um voo de treinamento a bordo do B-17 matrícula 5579. Um avião recém chegado dos Estados Unidos, que ainda possuía marcações da USAF (United States Air Force).

Pilotando a máquina estava o major Maurício José de Assis Jatahy, comandante do CTQ, tendo como seu copiloto o capitão Francisco Eduardo Muller Botelho. A bordo estavam os primeiros tenentes Santos Flávio de Sião, Gil Saint Yves e Sérvola. Acompanhavam os oficiais o primeiro sargento Amadeu Luiz Avighi, os segundos sargentos Dilson Lopes Guimarães e Jair Coimbra, além do soldado Francisco Bezerra. Consta que o tenente Percy Barnard estava a bordo do quadrimotor para servir de tradutor junto ao capitão Robert Earl Metzer, da USAF, oficial aviador norte-americano que trabalhava no treinamento e adaptação dos brasileiros ao B-17.

O treinamento tinha como objetivo o lançamento de alguns tripulantes do quadrimotor de paraquedas, que flutuariam até o mar. Na sequência seria feito o lançamento do bote salva-vidas, que demonstraria de forma prática como aquela aeronave poderia realizar um salvamento marítimo. O exercício seria executado na área entre as praias do Pina e Boa Viagem, à vista de todos que estavam no litoral de Recife. Acompanhava a grande aeronave um monomotor North American T-6 com dois integrantes. O piloto era o primeiro tenente Ailton Lopes de Oliveira, tendo a companhia do terceiro sargento José Inácio dos Santos, que fotografava toda a operação. 

Pedaço da asa do B-17, ainda com marcação da USAF.

Entre dez e meia e onze da manhã as aeronaves se posicionaram. Primeiramente saltaram da B-17 o tenente Sérvola e o soldado Francisco Bezerra, que abriram seus paraquedas sem alterações e chegaram tranquilos na água. Na sequência o bote salva-vidas foi lançado, mas bateu na asa do T-6, que estava muito perto do quadrimotor. O pequeno avião perdeu a estabilidade e foi para cima do B-17. Com o choque o T-6 perdeu suas asas e foi direto para a água. Foi visto que um dos seus tripulantes se atirou no mar sem paraquedas, mas nenhum deles se salvou.

Já na B-17 o major Maurício José de Assis Jatahy tentou durante dois ou três minutos manter o controle do avião. Consta que ele sobrevoou um trecho da praia do Pina cheio de casebres e conhecido como “Areal”. Após passar rasante por esse local ele levou o B-17 por cerca de 400 metros mar adentro, quando perdeu o aileron e fez uma curva acentuada para a direita, chocando-se violentamente com a água e afundando. Logo vários pescadores partiram com suas jangadas para tentar ajudar. Foram resgatados com vida o capitão Francisco Eduardo Muller Botelho e o primeiro sargento Amadeu Luiz Avighi. Todos os outros morreram.

Um dos trens de aterrissagem do B-17 acidentado em Recife.

Quem testemunhou todo o drama do ar foi o piloto Rubens Solha, do quadro de instrutores do Aeroclube de Pernambuco, que sobrevoava a região em um monomotor “Fairchild” de treinamento avançado. Solha foi inclusive chamado para testemunhar no inquérito aberto pela FAB para investigar o acidente[31].

Segundo o livro Base Aérea do Recife – Primórdios e envolvimento na 2ª Guerra Mundial, do falecido escritor Fernando Hippólyto da Costa (INCAER, Rio de Janeiro, 1999), informa na página 375 que a causa do acidente foi uma imprudência do primeiro tenente Ailton Lopes de Oliveira, piloto do T-6, que não manteve a altitude e distância que lhe havia sido ordenado para o exercício.

Percy Barnard era casado com Lêda de Amorim Barnard e sua filha se chamava Lorna May Barnard.

Final

A partir desse ponto da história temos poucas informações sobre o que aconteceu com a família Barnard. Apenas que Harold Barnard faleceu em 1977, mas nessa época ele já era viúvo.

Do pouco que consegui sobre Stanley e Percy Barnard, só posso concluir que ambos adoravam o que faziam.

NOTAS


[1] Nesse endereço atualmente se encontra a sede da TV e Rádio Jornal do Comércio e do SBT em Recife.

[2] Ver Jornal de Recife, 23 de outubro de 1897, sábado, P. 2.

[3] Sobre o falecimento de José Abílio de Barros ver Diário de Pernambuco, Recife, 28 de novembro de 1902, sexta-feira, P. 2. Sobre um ano do falecimento ver Jornal de Recife, 27 de novembro de 1903, sexta-feira, P. 3.

[4] FILHOS DO CASAL JOSÉ ABÍLIO DE BARROS E BELMIRA DUARTE DE BARROS: 

F.1-         Júlia Duarte de Barros.

F.2-         Theodomiro Duarte de Barros – Industrial em São Paulo e, aparentemente em 1944 é chefe de uma firma chamada Cunha & Companhia, talvez em Recife. A notícia de jornal em 1944 o apresenta como Theodomiro Martins de Barros, mas deve ser um provável erro.

F.3-         Cândida Duarte de Barros – Nome de casada era Cândida Barros Chalmers, esposa do engenheiro James Chalmers, funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina.

F.4-         Afonso Duarte de Barros – Funcionário do Ministério da Justiça.

F.5-         Armando Duarte de Barros – Comerciante em Recife e em 1944 é apresentado como Gerente do Clube Náutico Capibaribe.

F.6-         Oscar Duarte de Barros – Agente Fiscal de Consumo em Recife.

F.7-         Maria Amélia Duarte de Barros – Casada com Archibald Otto Charles Fell, engenheiro em Recife e seu nome de casada era Maria Amélia de Barros Fell.

F.8-         Belmira Duarte de Barros.

F.9-         Adalgisa Duarte de Barros.

F.10-       Alice Duarte de Barros – Viúva em 1936 do Dr. Merval Gomes Veras, advogado em Teresina-PI. Seu nome de casada era Alice de Barros Veras.

F.11-       Josete Duarte de Barros.

F.12-       Corina Duarte de Barros – Comentada no texto.

F.13-       Eugenio Duarte de Barros.

F.14-    Clarice Duarte de Barros – Esposa do advogado Arnaldo Lopes, cujo nome de casada era Clarice de Barros Lopes.

[5] Além de Cândida, se destacaram em O Lyrio, Amélia de Freitas Bevilaqua, Ana Nogueira Batista e Maria Augusta Meira de Vasconcelos Freire. Ver SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, Pág. 54.

[6] Ver Jornal Pequeno, Recife, 6 de setembro de 1911, sexta-feira, P. 1.

[7] Sobre Archibald Fell ver Jornal Pequeno, Recife, 13 de novembro de 1911, segunda-feira, P. 2.

[8] Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1943, sábado, P. 7.

[9] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 28 de novembro de 1902, sexta-feira, P. 2.

[10] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 05 de março de 1936, quinta-feira, P. 4.

[11] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 13 de junho de 1944, terça-feira, P. 3.

[12] Sobre a entrada de Stanley H. Barnard na RAF ver http://www.rafcommands.com/forum/showthread.php?13124-F-O-Stanley-Harry-BARNARD-(144187)

[13] Sobre a história dessa base aérea ver https://www.airshowspresent.com/raf-odiham—from-biplanes-to-helicopters.html e https://www.valka.cz/168-perut-RAF-1942-1945-t189682

[14] Ver http://enfernormand.free.fr/mustangp51.htm

[15] Ver http://mustangp51.e-monsite.com/pages/en-operation-in-operation.html

[16] Ver https://erenow.net/ww/mustang-thoroughbred-stallion-of-the-air/8.php

[17] Sobre esse caso ver https://aviationmuseumwa.org.au/afcraaf-roll/kearney-bernard-joseph-405387/

[18] Nesse período a RAF utilizava cinco esquadrões de Mustang Mk 1/1A, três esquadrões de Supermarine Spitfire PR XI e um esquadrão de bimotores De Haviland Mosquito.

[19] Sobre esse combate aéreo ver – 2nd Tactical Air Force, Volume 1, Spartan to Normandy – June 1943 to June 1944. SHORES, C. & CHRIS, T. Ian Allan Printing Ltd, Hersham, Surrey, England, 2004, Pág. 24.

https://www.aircrewremembered.com/KrackerDatabase/?s=200&q=SCHMIDThttp://www.venturapublications.com/news/publish/iiijg2.shtmlhttps://www.wikiwand.com/en/Focke-Wulf_Fw_190_operational_history#Media/File:Fw190A-3_JG2_Gr.Ko.Hahn42_kl96.jpg  Aparentemente os oficiais Brenard e Young conseguiram reagir a Schmidt e seu colega, pois Schmidt foi ferido em um acidente nesse mesmo 25 de julho de 1943, quando capotou seu FW-190 durante uma tentativa de pouso forçado perto de Lisieux. Aparentemente esse Mustang foi o único avião que Schmidt abateu durante a guerra.

[20] Sobre o comandante Mason, ver https://www.iwm.org.uk/collections/item/object/205449398

[21] Após a invasão do Dia D e a morte de Stanley Barnard, o Esquadrão 168 se mudou para a França e realizou missões de reconhecimento tático avançando nesse país e depois na Holanda. Em outubro de 1944, os Mustangs foram substituídos por caças Typhoons e iniciou missões de reconhecimento armadas sobre a própria Alemanha, além de fornecerem escolta aos bombardeios diurnos. O Esquadrão 168 voou em torno de 3.200 missões e até derrubaram quatro aeronaves da Luftwaffe. Mas o esquadrão perdeu dezenove pilotos em combate, dois em circunstâncias de não combate, e três se tornaram prisioneiros ou guerras. Por causa de suas altas perdas, o esquadrão foi dissolvido oficialmente em 26 de fevereiro de 1945, tornando-se a única unidade de caças Typhoon a ser desativada antes do final da guerra.

[22] Ainda naquele dia intenso, três perigosos e ágeis barcos torpedeiros alemães partiram de Le Havre para atacar os navios da “Force S”. Mesmo levando disparos dos navios ingleses, os barcos alemães conseguiram lançar quinze torpedos de longa distância e escapar. Dois torpedos passaram entre os encouraçados Warspite e o Ramillies e depois atingiram o destroier norueguês Svenner, que afundou.

[23] Sobre os combates em Lion-Sur-Mer ver https://www.normandie44lamemoire.com/2014/10/30/lion-sur-mer-2/ ,

[24] Sobre esses monumentos ver https://www.normandie44lamemoire.com/2014/10/30/lion-sur-mer-2/

[25] Sobre esse memorial ver https://www.cwgc.org/visit-us/find-cemeteries-memorials/cemetery-details/109600/runnymede-memorial/ e https://en.wikipedia.org/wiki/Air_Forces_Memorial

[26] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1945, sábado, P. 5.

[27] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1948, sábado, P. 6.

[28] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1949, quarta-feira, P. 9.

[29] Ver Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1951, sábado, P. 11.

[30] No início da década de 1950, a Força Aérea Brasileira precisava formar uma unidade de busca e salvamento marítimo e outras especialidades. Para isso foram adquiridas 13 desses modelos especiais de B-17 e utilizadas entre 1951 e 1968.

[31] Sobre essa tragédia de 1952 ver Diário de Pernambuco, Recife, 24 de julho de 1952, quinta-feira, Ps. 1 e 2.

1962 – LIGEIRO ROTEIRO DA CIDADE DO NATAL

Resgato Das Páginas do Jornal do Commércio um Encantador e Interessante Artigo do Professor Veríssimo de Melo, que Apresentava Natal aos Pernambucanos.

No princípio era o forte… O Forte dos Reis Magos, chantado á margem esquerda do rio Potengi olhando o azul do Atlântico. É o nosso maior e mais antigo monumento histórico cenário das lutas dos portugueses contra a indaiada, piratas franceses e Invasores holandeses.

A pequena, luminosa e alegre Cidade do Natal veio depois, a 25 de dezembro de 1599, fundada por Dom Jerônimo de Albuquerque — segundo a tradição – ou pelo Capitão Mor João Rodrigues Colaço, conforme declaram revisionistas modernos da nossa história.

Na geografia da cidade destaca-se a presença das dunas, esses morros atapetados de cajueiros nativos, — alguns carecas — que protegem Natal contra a fúria dos ventos alísios. Do outro lado, o Potengi, onde todo natalense pescou siri, aprendeu a nadar ou gingou uma velha canoa até os mangues…

Mas, ao visitante ilustre, ao turista, muito mais do que a nossa História ou a nossa Geografia, deve interessar os pontos pitorescos da cidade.

Primo Vivere…!

Pois a cidade tem duas portas: Quem chega de avião, saltando em Parnamirim, vê logo a grande Base Aérea de Natal que os norte-americanos construíram durante a última grande guerra e onde os natalenses — na expressão de Alvamar Furtado — se acotovelavam com os mais famosos artistas de cinema da época. Conhece então a estrada asfaltada que liga o aeroporto “Augusto Severo” a cidade, por onde passaram desde os mais humildes soldados de Tio Sam, até o seu presidente Franklin Delano Roosevelt.

Para os que veem do sertão a estrada é outra: Ou passa pela Ponte de Igapó sobre o rio Potengi, ou cruza pelas Quintas, onde se pode ver o primeiro buliçoso e colorido espetáculo da cidade: As lavadeiras trabalhando ao lado de um pontilhão.

Base de Parnamirim Field em plena atividade durante a Segunda Guerra Mundial – Fator de crescimento inicial da cidade de Parnamirim.

“As lavadeiras fazem assim, assim, assim”.

Vindo pelo Alecrim, — o bairro mais populoso — vislumbra á esquerda os edifícios da Base Naval de Natal, também uma das maiores do país de modernas instalações, fundada pelo saudoso Almirante Ari Parreiras há vinte.

Mas, onde se hospedam as pessoas distintas?

Eis o problema!… A vantagem do “Grande Hotel”, no bairro da Ribeira, é ser bem central. Perto de bancos, companhias de aviação e navegação, estação ferroviária, o antigo recanto comercial da cidade. Paradoxalmente o melhor lugar para um visitante de categoria é ainda no Hospital “Miguel Couto”, isto é, na Clínica de Repouso, onde há confortáveis apartamentos. É deslumbrante a visão de praias e dunas lá de cima. Há turistas que ficam do queixo caído. E a brisa que sopra de manhã à noite sobre a cidade, ali é mais forte e mais cheirosa.

Se a manha é clara e saudável, o que sempre acontece, nada melhor do que um passeio ao Mercado da Cidade Alta, para ver primeiro o que o natalense come. É o lugar também onde o turista pode comprar alguma peça de cerâmica popular, artigos de fibras, bolsas, cestaria etc. Mas se for um sábado, o melhor é visitar a Feira do Alecrim, a maior da cidade.

Todavia, todavia… Antes do almoço há quem goste de tomar um aperitivo, no que, aliás, procede muito bem. É dos usos e costumes. A ordem, então, é visitar um bar no centro da cidade, para não perder tempo: O “Granada Bar”, por exemplo, cujo proprietário é um espanhol, — Dom Nemésio, — trata bem e serve melhor. Ou a Cantina Lettieri, um lugar pequenininho, que dá apenas para uma dúzia de pessoas. Próximo na Rua Ulisses Caldas, há uma pequena mercearia de nome grandioso “O Galo Vermelho”. Há apenas uma mesa e está sempre ocupada.

E onde comer o que nós temos de mais típico da nossa culinária urbana?

Durante o dia, contra todos os protocolos, aconselharíamos visitar a “Carne Assada do Marinho” onde há sempre feijão verde. Ou a “Carne Assada de Seu Lira”. Ou a “Peixada da Comadre”. Ou a Caranguejada do Arnaldo. Mas se o turista resolve ir á praia de Areia Preta, então deve entrar num barzinho que tem lá no fim chamado “É Nosso”. Há sempre caranguejos (nos meses que não tem – maio, junho, julho e agosto eles estão gordos), ou um camarão torrado com cerveja, que é uma delícia. Tanto o almoço quanto o jantar poderá ser num desses estabelecimentos se a pessoa não é dessas muito exigentes. À noite o restaurante mais chie é o do ABC F. C. O melhor peixe frito da cidade, entretanto é o da “Peixada de Marcus”, na Areia Preta. Tem a vantagem do marulhar das ondas, como diria o poeta, onde se recebe todo aquele vento puro que corre na praia. Ou poderá também jantar num dos recantos mais agradáveis da cidade que é “A Palhoça”, vizinha ao Cinema Rio Grande. Há também um novo restaurante á Rua Ulisses Caldas, chamado “Potengy”, onde há sempre uma paçoca de pilão estupenda.

Um passeio à tarde?

É visitar a praia de Ponta Negra ou a Redinha, — duas belezas. Ou! Ir até o Forte dos Reis Magos, pela Avenida Circular. Uma volta pelos bairros residenciais bem é bom. Veem-se algumas das casas mais bonitas de Natal. Em matéria de edifício público basta ver a Igreja de Santo Antônio, com sua fachada antiga e seu galo heráldico no topo da torre. Na Rua da Conceição está o sobradinho mais velho da cidade, quase em ruínas. Os prédios do Instituto de Educação e do Ipase são os mais modernos de Natal Todavia a Escola Doméstica de Natal continua sendo o estabelecimento de o ensino modelar do Estado. É a primeira, no gênero, fundada no país. Até o comandante Vasco Moscoso de Aragão visitou-a…

O Parque de Manoel Felipe, uma velha e recatada lagoa, foi agora recuperado inteligentemente pelo Governo do Estado. É um encanto, principalmente para os namorados.

Cinemas, teatros… Bem Isso há em toda parte. E se há festas programadas, os três melhores clubes sociais ainda são o Aero Clube, o mais antigo, o América F. C. e o ABC F. C.

E depois do baile?

Bem, agora são outros quinhentos… Mas, se for ao hotel dormir, não se assuste se ouvir, dentro da noite, a voz de algum boêmio cantando a mais popular canção da cidade.

“Praieira dos meus amores, encanto do meu olhar!”.

Em Natal, neste ano da bomba de cinquenta megatons, ainda se faz serenatas com violões e tudo (O poeta Newton Navarro vem sempre na frente puxando o cordão). E não é por snobismo. É tradição secular. Os versos de Açucena, Itajubá, Auta ou Otonlel, vivem nas noites de lua e na boca do povo:

“Praeira do meu pecado, morena flor não te escondas!”….

AS NOSSAS VELHAS IGREJAS DE NATAL

A majestosa Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, o primeiro templo religioso erguido no Rio Grande do Norte.

Luís da Câmara Cascudo

A República, Natal, Rio Grande do Norte, 2 de março de 1939, página 3

O sitio da Cidade estendia-se do edifício do Tribunal de Apelação[1] até as imediações da Santa Cruz da Bica[2]. A Praça André de Albuquerque foi inicialmente chamada. “Rua Grande” e “Largo da Matriz”. A Igreja vigiava o quadrilátero de onde se irradiou a cidade. Aí começa, oficialmente, nossa vida social. A missa de 25 de Dezembro de 1599 deve ter sido rezada numa capelinha de barro e palha onde hoje a Matriz ergue sua torre quadrada. A praça é, evidentemente, o chão elevado e firme, indicado pelas instruções do Governador Geral do Brasil para a construção duma Cidade, sentinela avançada da cristandade no setentrião selvagem do Brasil quinhentista.

Uma comemoração na década de 1920 diante da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação , na Praça André de Albuquerque, no Centro de Natal.

Em dezembro de 1633 os holandeses tomaram Natal. Vitoriosos em toda a parte, graças em parte as diligências do mulato Calabar, que está sendo apontado como herói e figura excepcional de grandeza moral, logo no primeiro domingo, 18 de dezembro de 1633, o pastor luterano Johanna, fez sua pregação no pequenino recinto da humilde Matriz, erguida pelas mãos católicas dos colonos portugueses. Até 1654 não ha noticia. Na retirada, os holandeses queimaram arquivos, destruíram casas, devastaram plantações. Também estão sendo glorificados como colonizadores de incrível acuidade progressista e liberal.

Ninguém queria ser Vigário em Natal, um lugarejo com 25 moradores brancos, cercados pela indiaria tumultuosa. O padre Leonardo Tavares de Melo ofereceu-se e veio pastorear o abandonado rebanho. Construiu uma outra capelinha, no local da primitiva, e celebrava Missas, casando, batizando e orando. Em 1672 pensou-se em erguer uma igreja compatível com as necessidades da colônia. Fez-se uma coleta. Pediu-se esmola até ao Rei de Portugal. Em 1694 a igrejinha estava pronta. Gravaram esta data numa pedra. Está na soleira da porta principal.

Em 1786, numa época de remodelações, fizeram-se as duas capelas laterais, do Bom Jesus dos Passos e do Santíssimo Sacramento, completando a figura ritual da Cruz.

Sucesso notável foi o primeiro roubo, historicamente comprovado. Na manhã de 21 de dezembro de 1841 apareceu uma porta aberta e uma lâmpada tinha desaparecido. O chefe de Policia, Dr. Basílio Quaresma Torreão Junior, virou investigador, farejando casas e matos, assombrado com o atrevimento do malandro. Prendeu dois homens. E achou o furto, enterrado debaixo dum cajueiro, em 23 do mesmo dezembro de 1841. A 24, num oficio jubiloso, levou a feliz pesquisa ao conhecimento de dom Manuel de Assis Mascarenhas, Presidente da Província, informando que a lâmpada fora encontrada.

Até 1856, ano do cólera-morbo os sepultamentos eram feitos dentro das Igrejas. Gente rica, graúda, importante, dormia na Matriz, na Igreja de Santo Antônio, e Capela do Senhor Bom Jesus das Dores da Ribeira. Escravos e condenados a pena de morte iam esperar o Juízo final na igrejinha de Nessa Senhora do Rosário dos Pretos.

Em 1856 o presidente da província, Antônio Bernardo de Passos, chamado popularmente “Presidente Passos”, mandou abrir o “cemitério publico” no bairro longínquo do Alecrim. Ficava, naquele tempo, no fim do Mundo.

Em 1857 o Presidente Passos iniciou uma subscrição pública para comprar um relógio destinado a Matriz. Em 1862 começou o serviço para a construção da torre cuja falta afeiava o conjunto. Doze meses depois, com peripécias e paradas, a torre ficou como está. E puseram o relógio que ainda vive prestando serviços ao seu modo[3]. Em 1863 adquiriram um sino grande para a torre. , Custou 801$649 (oitocentos e um mil e seiscentos e quarenta e nove réis), pagos ao Sr. Domingos Henrique de Oliveira. Em 1874 foi a vez de chegar o sino pequeno. Deram por ele 301$453 (trezentos e um mil e quatrocentos e cinquenta e três réis), ao Sr. Joaquim Inácio Pereira. Em 1907 levaram o Cruzeiro da Matriz para o patamar da Igreja do Rosário.

Esse é um rápido e necessário relatório dos principais fatos na história da Matriz, hoje com luz elétrica, tribunas e ampliador radiofônico.

E qual teria sido a segunda Igreja de Natal?

Santo Antonio ou do Rosário? A vida natalense esteve, quase totalmente, condensada na Cidade Alta. Os dois pontos sempre foram relativamente povoados, derredor desses templos.

A Igreja de Santo Antonio dos Militares é um barroco delicioso e, edifício amplo e solido, devia ter exigido muito tempo para sua construção, mesmo com as reformas posteriores. Na fachada, acima da porta principal da Igreja de S. Antônio ha a data: — Agosto de 1766. E ao pé da torre: — Janeiro de 1798. Serão as datas em que foram terminados o corpo da casa e a torre? Três anos antes, em 15 de julho de 1763, já se erguia a Igreja de Santo Antônio, dando nome á rua. Num registo de “carta de data” concedida ao alferes José Barbosa de Gouveya, na rua nova do Senhor Santo Antônio, fala-se nas “cinco braças e meia de comprido e dez de fundo nesta Cidade no caminho que vai dela para o Rio de beber agua encostando nas outras que já tem na mesma parage na rua da Igreja de Santo Antônio”.

Fachada da Igreja do Galo e o seu símbolo no alto da torre, mandado colocar pelo capitão-mor Caetano da Silva Sanches – Foto – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/uma-hista-ria-contada-por-igrejas/326825

Uma história tradicional lembra o capitão-mor Caetano da Silva Sanches, devoto de S. Antônio, que ajudara eficazmente a terminar a Igreja. Parece não se ter dado o auxilio para a nave e sim para a torre. Sanches reformou a torre e cobriu-a de azulejos, ao gosto português do século XVIII, e colocou, lá em cima, um Galo de Bronze. Um versinho de Lourival Açucena recorda o episodio: Caetano da Silva Sanches,

Governador português,

foi quem aqui colocou-me

ha mais de um século talvez…

Não se assustem-com a colocação pronominal. Para aquele tempo estava gramaticalmente certa. Sanches morreu em Natal, a 14 de março de 1800, de um estupor. Tinha cinquenta e cinco anos de idade. Descobri lhe o testamento no arquivo do Instituto Histórico.

Outra nota sensacional foi a faísca elétrica que, numa noite calma, pendurou, num choque brusco, o Galo, das alturas do seu poleiro secular. O caso se deu ás 8 e 35 minutos da noite de 6 de março de 1897.

A Igreja do Rosário é a enteada da História. Ninguém a cultua, procurando-lhe o passado. Destinada aos negros escravos, maior emoção merece do todos nós. Aquela nave pequenina abrigava as esperanças do amor negro, as alvoradas do futuro, com todos os milagres da alforria. Ali casaram e entraram para a vida cristã centenas e centenas de entes sem crônica, sem elogios e sem necrológicos, os ajudadores de tanta riqueza, nascida de seu trabalho sem pausa.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Centro.

O Governo de Portugal, por prestigio católico do clero, aconselhava que as autoridades administrativas em todos os domínios, facilitassem a fundação das “Irmandades” de N. S. do Rosário, dedicada Padroeira dos pobres escravos”. No dia da Santa havia folga e nenhum “senhor” tomava a ousadia de proibir que um negro participasse das festas que duravam o dia e parte larga da noite. Para festejar N. S. do Rosário os negros organizavam as danças. com cânticos e declamações. Daí vieram os “Congos”, “Cachambís”, com outros autos populares. Ia tudo á porta do templo, cantando. Podia Nossa Senhora, naquelas 24 horas, dar-lhes a ilusão da liberdade.

A igrejinha de N. S. do Rosário dos Pretos (como era citada) não existia em 1706, mas estava construída em 1714. Até prova em contrario, é a segunda de Natal. Nesse 1714 regista-se uns “chãos para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário junto a Igreja”. Em 3 de novembro de 1706, Antônio Henrique de Sá registava uns “chãos” onde se quer fundar a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Em 1714, o mesmo peticionário requeria a doação perpétua do que já possuía desde 1706 e menciona a Igreja como ponto de referência. A 2 de julho de 1714, o padre Dr. Simão Roiz de Sá pedia “terras devolutas de fronte do Cruzeiro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, indo pela estrada que vai desta Cidade para Ribeira”. Não conheço referência anterior a 1714.

Igreja do Bom Jesus das Dores – Fonte – http://turismo.natal.rn.gov.br/igrejas.php

A Igreja do Bom Jesus, ampliada, reconstruída, modernizada, foi uma capelinha que atendia ás necessidades religiosas dos moradores da Ribeira. Ha cento e sessenta e três anos (em 1939) já existia. Em 5 de fevereiro de 1776 o vigário Pantaleão da Costa de Araújo autorizava ao coadjutor Bonifácio da Rocha Vieira a casar Sebastião José de Melo com D. Ana Maria Gomes na “Capela do Senhor Bom Jesus das Dores”.

Igreja de Bom Jesus das Dores e a atual Praça José da Penha, na Ribeira.

A região ainda era despovoada e os sítios se estiravam no flabelo dos coqueirais. Ainda a 30 de dezembro de 1811 concede-se, sob o foro de 160 réis anuais, que Luís José de Medeiros se aposse das terras junto e detrás do “Senhor Bom Jesus”, “para plantar suas arvores de frutos e não prejudicando a terceiro e deixando livre a estrada que vai desta Cidade para o Senhor Bom Jesus”. ” Creio que a ordem cronologia das Igrejas de Natal será: — Matriz, Rosário, Santo Antônio e Bom Jesus.

Tais foram os princípios dos nossos templos, as sedes da força espiritual e da resistência animosa com que os velhos moradores da Cidade do Natal do Rio Grande defenderam e até nos trouxeram essa tradição de vida comum, cimentada na união do sangue e das preces.

NOTAS


[1] O Tribunal de Apelação é o atual Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, que nessa época ficava na antiga Avenida Junqueira Aires, 478, atual Avenida Câmara Cascudo, onde até o início de 2017 foi a sede da OAB-RN.

[2] Atual Praça da Santa Cruz da Bica, na Cidade Alta, na confluência das Ruas Mermoz, Santo Antônio e Voluntários da Pátria.

[3] Mesmo com atrasos, quebras constantes, durante décadas esse antigo relógio da velha Matriz da Praça André de Albuquerque foi o que regulou o tempo dos moradores de Natal do passado.

HOLANDESES NO NORDESTE DO BRASIL

Extensão do domínio holandês no Nordeste do Brasil
Extensão do domínio holandês no Nordeste do Brasil

Os holandeses do norte vinham em rebelião aberta contra a Coroa espanhola desde 1568, mas foi em 1602 e 1621 que eles levaram a guerra ao campo do inimigo. E foram eles, também chamados neerlandeses ou batavos, os primeiros europeus a arrancarem do controle dos conquistadores ibéricos um grande naco de terra no que hoje chamamos de América do Sul. Isso ocorreu no Brasil.

Para realizar estas conquistas os holandeses utilizaram uma empresa. A organização da Companhia das Índias Ocidentais, o empreendimento comercial conquistador holandês, é muitas vezes atribuída por historiadores ibéricos às maquinações de capitalistas judeus que fugiram (ou foram expulsos) de Espanha e Portugal, mas essa visão é insustentável. O investimento judaico no início de ações da Companhia (nominalmente capitalizada em sete milhões de florins) foi relativamente insignificante. Mas o verdadeiro impulso veio de exilados calvinistas holandeses, sendo estes particularmente proeminentes na formação da Companhia e nas listas de seus acionistas. Para os calvinistas o sentimento contra os espanhóis e portugueses era muito forte, onde a luta era considerada uma verdadeira guerra santa contra os católicos.

Prédio em Amsterdã, Holanda, sede histórica da Companhia das Índias Ocidentais, ou West-Indische Compagnie  - WIC
Prédio em Amsterdã, Holanda, sede histórica da Companhia das Índias Ocidentais, ou West-Indische Compagnie – WIC

Ao longo de sua história os holandeses reclamam que os ingleses apenas seguiram o rastro de suas conquistas; e, embora esta alegação não possa ser sempre justificada, não há dúvida de que foram os holandeses que suportaram o peso esmagador do monopólio colonial católico ibérico, que parecia tão maciçamente intacto em 1600.

As duas coroas ibéricas estavam unidas desde 1580 (a chamada união dinástica) e as Américas se tornaram um grande alvo para os holandeses, que decidiram iniciar suas operações militares atacando o Brasil, ao invés de México ou Peru. Pensavam os estrategistas batavos que os portugueses seriam vítimas mais fáceis e o governo de Madrid não reagiria de forma tão violenta a perda de terras portuguesas.

Uma vez estabelecidos no Brasil, os holandeses teriam uma base americana para operações contra os tesouros das frotas espanholas que traziam incalculáveis tesouros do Novo Mundo. Além de administrarem o crescente comércio de açúcar na sua origem e, eventualmente no futuro, marcharem por terra para as minas de prata de Potosi (Bolívia), grande manancial de riqueza da Espanha no Novo Mundo.

O Primeiro ataque

O golpe inicial da Companhia das Índias Ocidentais foi um sucesso espetacular e São Salvador, Bahia, caiu em maio de 1624.

Barco holandês
Barco holandês

Foi alegado pelo célebre Lope de Vega, em seu “El Brasil Restituído”, que esta vitória holandesa ocorreu devido à traição dos judeus “cristão-novo”, ou cidadãos cripto judeu, que vislumbravam com os batavos a liberdade religiosa do culto judaico em terra de conquistadores católicos. A verdade foi que a derrota aconteceu pela covardia dos defensores de Salvador e a pela audácia do vice-almirante holandês Pieter Pietersen Heyn.

Mais ou menos ao mesmo tempo, na costa oposta da América do Sul, outra frota holandesa tentou dominar Callao, no Peru. Esta audaciosa tentativa falhou, mas os assentamentos espanhóis na costa do Pacífico foram jogados em um estado de tremenda confusão e alarme.

Contrariando as expectativas holandesas, a perda da Bahia despertou para uma ação decisiva o lento governo em Madri. Provavelmente porque eles reconheceram que o objetivo final holandesa não era o açúcar do Brasil, mas a prata andina.

Fonte - peregrinacultural.wordpress.com
Fonte – peregrinacultural.wordpress.com

Com uma velocidade e rigor excepcionais para o padrão administrativo ibérico, uma armada combinada portuguesa e espanhola foi mobilizada. Na verdade aquela era a maior frota que já tinha cruzado a linha do Equador em direção ao Brasil desde seu descobrimento em 1500. 52 navios, 14.000 homens e 1.185 armas de fogo surgiram fora de Salvador na véspera da Páscoa de 1625. Em 1 de maio a guarnição holandesa, que não era composta de idiotas, entregou-se a Dom Fadrique de Toledo Osorio, Capitão Geral da Armada. Logo uma frota chegou da Holanda e rapidinho se retirou, sem se aventurar a um contragolpe contra a grande esquadra combinada ibérica.

Enquanto os holandeses eram pela primeira expulsos do Brasil, os esforços deles para capturar um dos mercados de escravos portugueses na costa oeste da África também falhou desastrosamente e por negligência dos seus comandantes. Um cronista holandês escreveu que “no verdadeiro estilo militar, cada um jogou a culpa no outro”.

Se os protestantes holandeses venceram o primeiro round, os seus adversários católicos haviam decididamente vencido a segunda fase e a Companhia das Índias Ocidentais estava quase falida. Mas os calvinistas das Terras Baixas do Mar do Norte eram homens teimosos. Eles não desanimavam com golpes pesados e logo recomeçaram a afiar suas espadas.

Piet Hein - Fonte - en.wikipedia.org
Piet Hein – Fonte – en.wikipedia.org

Em pouco tempo o brilhante almirante Pieter Pietersen Heyn varreu os barcos de transporte ibéricos na costa brasileira entre 1626-1627. Em setembro de 1628 conquistou toda a frota de prata espanhola na Baía de Matanzas, Cuba, um feito sem paralelo.

Com o tesouro derivados destes e de outros ataques navais, a Companhia das Índias Ocidentais pagou todas as suas dívidas, declarou um dividendo de 50 por cento e em 1630 equipou outra expedição poderosa contra o Brasil (65 navios e 8.000 homens). Desta vez seu objetivo não era a Bahia, mas Olinda e Recife, na província de Pernambuco, a região produtora de açúcar mais rica do mundo e a parte mais próspera do Império Colonial Português.

O Doce Nordeste

O açúcar havia sido introduzido no Brasil a partir da Madeira e de São Tomé em 1530, mas foi no século XVII que se tornou “o século do açúcar”, devido ao grande aumento da procura por este produto na Europa, onde constantemente se tornou uma necessidade, em vez de um luxo.

A plantação de açúcar tipicamente brasileira era centrada no engenho, ou moinho para moer a cana-de-açúcar não refinado. Os principais centros de produção foram os distritos férteis conhecidos em torno de Olinda e Recife, em Pernambuco, e do Recôncavo, nos arredores de Salvador. Os plantadores de açúcar, ou senhores de engenho, geralmente viviam em suas propriedades e vinha para a cidade apenas para festas, ou para fiscalizar o transporte de suas colheitas. Com o aumento da produção cada vez mais os lusos importavam escravos negros africanos para o Brasil.

Engenho e tropas holandesas
Engenho e tropas holandesas

Isso deu a sociedade brasileira colonial um selo marcadamente rural, em contraste com a da América contemporânea espanhola, onde os líderes da sociedade preferiam morar nas cidades do vice-reino do México e de Lima (Peru), ou no grande centro de mineração de Potosí.

Frei Manoel Calado escreveu um relato da luta Luso-Holandesa pelo nordeste do Brasil. Comenta que por volta de 1630 a produção de açúcar em Pernambuco havia chegado a um ponto em que os pilotos e mestres das grandes frotas de naus mercantes, que diariamente entravam e saíam do porto de Recife, competiam entre si em entreter os plantadores locais, a fim de conseguirem obter o transporte do doce produto.

Os seletos vinhos e víveres europeus foram importados de Portugal e dos Açores, enquanto sedas asiáticas e têxteis de qualidade eram tão abundantes nas lojas de Olinda como nas de Lisboa. O padrão de vida era excessivamente alto e qualquer chefe de família cuja tabela de serviço não era tabelada em prata maciça era considerado como miseravelmente pobre.

Olinda e ações navais holandesas
Olinda e ações navais holandesas

Pyrard de Laval, um marinheiro francês muito viajado, que visitou a colônia portuguesa em 1610, observou que “em nenhum país que eu tenho visto a prata é tão comum como nesta terra do Brasil. Você nunca vê pouco dinheiro por aqui”.

Mesmo que Olinda não se comparasse em tamanho ou em riqueza com a Cidade do México, Lima, ou Potosí, a doce riqueza que vinha do interior da província tornou a região um prêmio que valia a pena conquistar. A descrição de Manoel Calado desta região como o “espelho de um paraíso terrestre” não era mera hipérbole.

Vitória e Dominação

As ordens para os comandantes da força expedicionária holandesa de 1630 previam não só a captura de Olinda, mas, posteriormente o Rio de Janeiro (ou, alternativamente Salvador) e até mesmo de Buenos Ayres. Este programa revelou-se demasiado ambicioso.

As tropas invasoras não eram apenas compostas de holandeses, havia muitos mercenários de outras localidades na Europa, com líderes militares como excelente polonês Crestofle d’Artischau Arciszewski e o alemão Sigismund von Schoppe. Combateram em solo pernambucano muitos alemães, franceses e escandinavos formando talvez os maiores contingentes no serviço militar da Companhia. Havia até mesmo um bom número de ingleses – tantos que um capelão inglês protestante chamado Samuel Batchelor ficou alguns anos em Recife.

Apesar de Olinda e Recife terem sido tomadas sem muitas dificuldades, a resistência portuguesa no interior foi forte e teimosa. Para acabar este problema foi trazido um grande combatente, que se mostrou igualmente um grande administrador.

Nassau - Fonte - pt.wikipedia.org
Nassau – Fonte – pt.wikipedia.org

A partir de janeiro 1637, até maio de 1644, a conquista holandesa no Brasil foi governada pelo príncipe Johan Maurits van Nassau-Siegen (ou simplesmente Mauricio de Nassau). Pouco depois de sua chegada, ele infligiu uma grave derrota ao napolitano Giovanni Vincenzo di San Felice, o Conde de Bagnolo, que comandou as forças portuguesas, espanholas em Porto Calvo (Alagoas) e as levou-o ao sul do Rio São Francisco.

Os defensores do Brasil foram desmoralizados por esta derrota, e Frei Manoel Calado, sem grande admiração pelos “senhores barrigudos”, como ele frequentemente chamava os líderes militares da resistência contra os batavos. O Frei maliciosamente relata como muitos deles fugiram para o sul.

Se Mauricio de Nassau seguisse o processo de avanço militar em direção sul, provavelmente ele teria tomado novamente Salvador para os holandeses. Mas o líder conquistador não percebeu toda a extensão de seu sucesso e quando um ano depois ele atacou a capital colonial, descobriu que aquele objetivo “não era o tipo de gato para ser tomada sem luvas”. Foi repelido com grandes perdas.

Este reverso foi mais do que compensado pela derrota, em janeiro de 1639, de uma grande armada português-espanhola que o governo Ibérico tinha finalmente conseguido mobilizar, após anos de esforços abortivos, para a recuperação de Pernambuco.

Com a captura de São Jorge da Mina, na Guiné (o mais antigo assentamento europeu na África Ocidental) e de Luanda, em Angola, os holandeses conseguiram o controle total do tráfico de escravos do Oeste Africano.

Engenho de açucar
Engenho de açucar

Até o final de 1641, Mauricio de Nassau governou uma área no Brasil cujo litoral possuía mais de mil quilômetros.

Um Príncipe que Amava o Brasil

Mauricio de Nassau não era apenas um general capaz, mas um administrador de primeira classe e um governante que estava, em muitos aspectos, muito à frente de seu tempo.

No dia em que ele desembarcou em Recife ele se apaixonou pelo Brasil e não poupou esforços, dinheiro e energia para melhorar a colônia. No momento da sua chegada Recife tinha uma população com cerca de três mil almas e a superlotação foi terrível. Casas custavam a partir de 5.000 a 14.000 florins, enquanto a remuneração mensal dos empregados comuns da Companhia era de cerca de 60 florins.

Mapa de Recife
Mapa de Recife

Ele melhorou e ampliou a cidade existente com novas (e pavimentadas) ruas, estradas e pontes. Ele construiu uma nova cidade chamada Mauritia (ou Mauritstadt) em uma ilha adjacente.

Nassau tinha trazido da Holanda uma comitiva cuidadosamente selecionada de quarenta e seis acadêmicos, artistas, cientistas, artesãos e naturalistas, os quais tiveram suas próprias funções e tarefas especiais.

Assim Pintores como Frans Post e Albert Eckhout (este último possivelmente um aluno de Rembrandt) pintaram vários aspectos da vida e da cultura local. Franciscus Plante estudou a antropologia social ameríndia, flora e fauna exóticas. O astrônomo saxão Georg Marcgraff fez observações celestes no Brasil e em Angola. Os trabalhos de cartografia de Cornelis Golijath, junto com Johannes Vingboons, contribuíram para consolidar o conhecimento das costas brasileiras naquela época. Já Caspar Barlaeus escreveu um relato da atuação de Mauricio de Nassau no Brasil, que foi denominado “História dos Feitos Recentemente Praticados Durante Oito Anos no Brasil e Noutras Partes sob o Governo de Wesel, Tenente-General de Cavalaria das Províncias-Unidas sob o Príncipe de Orange” e publicado em 1647. Este livro contém grande número de mapas e ilustrações da região.

Caspar Barlaeus - Fonte - www.snipview.com
Caspar Barlaeus – Fonte – http://www.snipview.com

Nenhuma equipe de trabalho científico e artística dirigida por homens brancos nos trópicos foi novamente vista com tamanha capacidade e magnitude até as grandes expedições do capitão inglês James Cook e seus sucessores.

Não era de admirar que seus compatriotas o apelidassem de “Maurits, de Braziliaan” (Mauricio, o brasileiro).

Idade do Ouro

Nassau entendeu perfeitamente a importância de conciliar os plantadores de cana com a dominação holandesa e seus esforços conseguiram um considerável grau de sucesso neste item. Mesmo sendo um protestante convicto, numa época em que os calvinistas e católicos consideravam-se uns aos outros como inevitavelmente condenados ao fogo do inferno, Nassau deliberadamente tolerou os clérigos católicos locais, apesar da oposição dos ministros calvinistas coloniais.

Em um esforço para evitar os males da monocultura do açúcar, ele promoveu o cultivo de outras culturas, além de reduzir a tributação. Ajudou os plantadores a reconstruírem seus engenhos arruinados pela guerra e a comprar escravos em Angola. Até 1641 nada menos do que 120, de 160 engenhos de açúcar destruídos voltaram a funcionar. A produção total de açúcar durante o seu mandato foi estimado em 218.220 caixas, no valor de 28 milhões de florins.

Nassau observou que o segredo de governar Pernambuco foi lembrar aos comerciantes holandeses a importância objetiva do seu dinheiro e dos seus bens para as suas vidas. Enquanto aos portugueses ele buscava tratá-los com cortesia e polidez excessiva e não com justiça rigorosa e imparcial.

Dança dos Tapuias, índios aliados dos holandeses. Quadro de Albert Eckhout
Dança dos Tapuias, índios aliados dos holandeses. Quadro de Albert Eckhout

Os fazendeiros portugueses, segundo ele, eram em sua maioria “muito pobres e muito orgulhosos”. Nassau substituiu os vereadores portugueses pelos magistrados e subdividiu as capitanias em distritos, locais onde as câmaras neerlandesas se fixariam posteriormente. Durante o governo de Nassau a paz entre luso-brasileiros e os neerlandeses se estabeleceu no Brasil e este período ficou conhecido como “Idade do Ouro”.

Mudanças Importantes

Nesse meio tempo, em dezembro de 1640, um complô aristocrático liquidou 60 anos de domínio espanhol sobre Portugal. A revolta bem sucedida foi rapidamente seguida pela adesão de todas as colónias portuguesas (com exceção solitária de Ceuta, até hoje uma das últimas possessões espanholas). Em Junho de 1641 Portugal e a Holanda celebram um tratado de trégua de dez anos quanto às respectivas colônias. No Brasil esta trégua foi vista de forma negativa por ambos os lados.

Dom João IV se tornou o primeiro monarca português da Casa de Bragança e isso apresentou os holandeses com um delicado problema diplomático. Por um lado saudaram o enfraquecimento de seu inimigo tradicional espanhol (com quem os batavos só fizeram a paz em 1648), mas por outro lado eles estavam relutantes em parar seus ataques rentáveis na desintegração do Império Colonial Português.

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Antes da trégua de dez anos entrar em vigor os neerlandeses tiveram o cuidado de dominar tanto território ultramarino Português quanto fosse possível. Maurício de Nassau por recomendação dos diretores da Companhia das Índias Ocidentais mandou ocupar Sergipe e o Maranhão.

Naturalmente esta atitude foi vista de forma muito amarga pelos portugueses, que ao se livrarem jugo espanhol esperavam poder até voltar a dominar parte do que eles tinham perdido no nordeste do Brasil, ou por negociação mediante compra, ou por troca.

Nisso outros problemas foram prejudicando os holandeses no Brasil.

Membro de um grupo de reencenação histórica, com uniforme típico holandês do século XVII.
Membro de um grupo de reencenação histórica, com uniforme típico holandês do século XVII.

Devido a fortes enchentes, a safra de açúcar entre 1641 e 1642 foi baixa. A escravaria foi atacada por uma praga de “bexigas” (varíola) vinda de Angola. A queda dos preços do açúcar refletiu-se no valor do preço dos imóveis em Recife, que se reduziu em 1/3. A receita fiscal da Companhia caiu na mesma proporção. Em quatro anos, o tráfego marítimo com a metrópole se reduziu de 56 para 14 embarcações anuais.

Após sete anos, mesmo tendo desenvolvido uma política conciliadora e tolerante, Nassau não conseguiu impedir contradições insolúveis. Divergências entre sua forma de governar e os lucros esperados pela Companhia levaram-no a deixar o cargo e retornar à Holanda e ele partiu em 23 de maio de 1644. A saída de nassau foi lamentada por toda a colônia e marcou o início do declínio da Holanda Brasil.

Logo os novos dirigentes holandeses que sucederam Nassau, sem considerar o testamento político realizado anteriormente pelo príncipe, passaram a cobrar a liquidação das dívidas aos produtores de cana inadimplentes. Senhores de engenho e lavradores de cana deviam à Companhia 5,7 milhões de florins e começou a existir a ideia que somente expulsando os batavos é que “se livrariam das dívidas”. Em meio à crise social e econômica, a animosidade mútua entre rígidos calvinistas e católicos fanáticos aumentou rapidamente.

A Rebelião

Consta que em 15 de maio de 1645 (para outros foi em 23 de maio) dezoito líderes insurretos, liderados por João Fernandes Vieira, se reuniram no Engenho de São João, onde assinaram um compromisso para lutar contra o domínio holandês. Afirma-se que neste documento foi escrito pela primeira vez o vocábulo pátria em terras brasileiras. 

Retrato anônimo de João Fernandes Vieira, século XVII, Museu do Estado de Pernambuco.
Retrato anônimo de João Fernandes Vieira, século XVII, Museu do Estado de Pernambuco.

O líder João Fernandes Vieira era ex-sócio dos holandeses no tempo de Nassau e o segundo maior devedor da Companhia quando assumiu a liderança dos insurretos. Uma das primeiras medidas de João Fernandes foi decretar nulas as dívidas que os rebeldes tinham com os holandeses. Houve grande adesão da “nobreza da terra”, entusiasmada com esta “proclamação heroica”.

A rebelião explodiu em 13 de junho de 1645, dia de Santo Antônio de Lisboa. Uma Guerra de Reconquista, ou Guerra de Restauração, que sangrou basicamente Pernambuco por nove anos.

Teoricamente as chances holandesas de eventualmente esmagar a rebelião continuavam excelentes. Estes possuíam o domínio indiscutível do mar, uma vez que os insurgentes não tinha um barco maior do que uma canoa à sua disposição. Mas embora os holandeses pudessem aliviar Recife, ou mesmo bloquear Salvador, eles não fizeram maiores esforços para afastar e dominar os insurgentes.

Embora os insurgentes pedissem auxílio ao rei D. João IV, o monarca português não podia dar ao luxo de antagonizar os holandeses, ajudando abertamente seus súditos no Brasil. Em público ele abandonou a colônia, enquanto secretamente enviava homens e suprimentos por meio da Bahia.

As mal armadas caravelas portuguesas, que levaram estes reforços periódicos, foram frequentemente interceptados pelos holandeses, cujos corsários também realizavam estragos contra os barcos que transportavam açúcar e se dirigiam para Portugal. 249 navios portugueses foram tomados entre 1647 e 1648. Se as perdas portuguesas continuassem neste ritmo a rebelião teria inevitavelmente em colapso, já que não havia uma indústria de armas no Brasil.

Vitória Luso-brasileira

O ponto decisivo da luta veio em abril de 1648, justamente quando as coisas pareciam ficar mais difíceis para os luso-brasileiros. Em março deste ano fortes reforços holandeses chegaram a Recife. Mas um grave problema existia no seio da tropa – os oficiais dos reforços recém-chegados tinham recebido um bônus considerável em dinheiro, ao passo que os soldados não tinham recebido nada e os salários estavam em grande parte atrasados. Muitos dos homens que compunham as tropas batavas se recusaram a lutar no dia da batalha, gritando “deixar que aqueles que foram pagos vão a luta; não vamos lutar sem remuneração”.

As Batalhas dos Guararapes, episódios decisivos na Insurreição Pernambucana, são consideradas a origem do Exército Brasileiro. Quadro de Domingos Meireles - Fonte - pt.wikipedia.org
As Batalhas dos Guararapes, episódios decisivos na Insurreição Pernambucana, são consideradas a origem do Exército Brasileiro. Quadro de Domingos Meireles – Fonte – pt.wikipedia.org

Foi quando em 19 de abril ocorreu a derrota holandesa nos Guararapes!

Os holandeses ainda nem tinham se recuperado deste revés quando veio a notícia da perda de Luanda, em Angola, recapturada em agosto por um esquadrão Português vindo do Rio de Janeiro.

O desastre de Guararapes se repetiu em fevereiro de 1649, em situações ainda pior, mostrando a disposição dos portugueses e dos brasileiros nativos em expulsar os hereges. A partir deste momento os holandeses ficaram praticamente confinados em Olinda e Recife.

Apesar destas derrotas em terra, o resultado da luta ainda estava em jogo. A força naval holandesa permaneceu esmagadoramente superior a de Portugal, mas a eclosão da guerra anglo-holandesa em 1652 (a chamada Primeira Guerra Anglo-Holandesa e travada inteiramente no mar) impediu um esforço realmente determinado de reconquistar Pernambuco. Esta guerra deu a D. João IV a chance de ajudar abertamente os combatentes luso-brasileiros em Pernambuco.

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Uma frota partiu de Lisboa para o Brasil em Outubro de 1653 e recebeu ordens de não apenas bloquear Recife a partir do mar, mas de “invadir o local”. Foi uma oportunidade fugaz, mas muito valiosa para Dom João IV. Quando em dezembro a frota chegou diante de Recife e desembarcou homens para reforçar os insurgentes em terra, a guarnição e burgueses holandeses praticamente perderam a vontade de lutar.

Em 26 de janeiro de 1654 os termos da capitulação foram assinados em Recife e todos os outros fortes e lugares ainda em mãos dos holandeses ao longo da costa do nordeste brasileiro se renderam, com todas as honras de guerra, a Francisco Barreto, o comandante de campo português.

Era o fim da ocupação holandesa no Brasil.

Conclusão

O tratado de paz que Portugal concluiu em 1661 com a Holanda (sob forte pressão inglesa), fez os holandeses reconhecerem formalmente a perda de sua colônia sul-americana. Mas o desastre de 1654 marcou duramente este povo em todo o mundo.

Quando prisioneiros holandeses encarcerados pelos portugueses em Goa, na Índia, foram informados da derrota no Brasil, eles se recusaram a acreditar. Comentavam desesperados que “um dia o português pode levar Amsterdam, mas Recife nunca!”. Mas levaram!

Houvessem os holandeses continuado e ampliado a politica administrativa desenvolvida por Mauricio de Nassau, talvez o nordeste brasileiro jamais tivesse voltado a ser português e toda a história holandesa poderia ter cambiado drasticamente.

Mais tarde, gerações de holandeses consideravam que a verdadeira negligência em na perda territorial do nordeste do Brasil foi o fim da idade de ouro da expansão colonial holandesa, que tinha começado com a fundação da Batávia por Jan Pieterszoon Coen, na atual Indonésia, em 1619.