FOI A PRIMEIRA TRAVESSIA AÉREA DO ATLÂNTICO SUL E A EXPECTATIVA EM NATAL PELA PASSAGEM DA AERONAVE
Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
Amigos leitores deste simples blog que busca divulgar um pouco de história, vamos puxar um pouco pela imaginação para contar uma incrível façanha.
Imagine se você fosse convidado a ir para Portugal para participar de uma aventura aérea.
Aparentemente parece um interessante convite. Mas imagine que quem lhe chamou para esta empreitada lhe informe que a viagem aérea será em direção ao Brasil, atravessando o Oceano Atlântico em um hidroavião monomotor, onde além de você seguiria apenas mais uma pessoa.
A aeronave em questão seria construída principalmente de madeira e coberta com lona. Vocês iriam viajar sem GPS, sem radiocomunicação e sistemas de navegação modernos.
Para não se perderem na imensidão do mar, o principal instrumento seriam réguas de navegação, que são utilizadas pelos homens do mar desde não sei quando. Afora isso, o instrumento mais sofisticado seria um sextante de navegação adaptado para ser usado em uma aeronave.
Para ajudar haveria apenas a certeza que no meio de um dos maiores e mais poderosos oceanos da Terra, haveria três navios ao longo do caminho para dar uma força.
Detalhe, a máquina alada desenvolveria uma velocidade de cruzeiro de “estonteantes” 115 quilômetros por hora (Meu carro 1.0 faz mais do que isso brincando, sem forçar o motor).
E aí, você toparia essa parada?
Eu acho que não!
Mas em 1922, dois portugueses de fibra e coragem toparam encarar o desafio e conseguiram vencer esta dura empreitada.
Em 30 de Março de 1922, o hidroavião monomotor FAIREY F III-D MKII, de 350cv, com Artur de Sacadura Freire Cabral (1869 – 1959) como piloto e Carlos Viegas Gago Coutinho (1881 – 1924) nas funções de navegador, decolou do Rio Tejo, em Lisboa, com destino ao Rio de Janeiro.
Foi uma empreitada duramente planejada. Gago Coutinho inclusive havia criado, e empregaria durante a viagem, um instrumento chamado horizonte artificial, que era utilizado em conjunto com um sextante de navegação, para determinar o ângulo ou a inclinação de um corpo em relação ao horizonte. Com isto era estabelecido com uma linha, ou plano paralelo, a altura dos astros. Era uma invenção que revolucionou a navegação aérea à época. Realmente Gago Coutinho e Sacadura Cabral formaram uma dupla muito especial e altamente criativa.
Cinco dias antes (a 25 de março) zarparam da capital portuguesa os navios de guerra “República”, “Cinco de Outubro” e “Bengo”, que iriam prestar assistência ao voo. Finalmente, na manhã do dia 30 de março de 1922, depois de uma corrida de 15 segundos sobre as águas do Rio Tejo, em frente à histórica Torre de Belém, em Lisboa, a dupla de valorosos aeronautas decola com o hidroavião “Lusitânia”.
Tinha início a Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul e tanto em Portugal, como no Brasil, o início daquela pioneira travessia foi impactante e gerou um clima de grande expectativa. Vale ressaltar que no final de março de 1922, poucas viagens dessa magnitude, sobre o mar, haviam sido realizadas e das quais os lusos pudessem conseguir informações sobre procedimentos e questões de navegação. Era tudo muito pioneiro!
A travessia realizou-se em várias fases, no intervalo das quais os hidroaviões eram assistidos. Contudo, consideram-se quatro etapas na viagem, devido a problemas mecânicos, condições naturais adversas e foram utilizados três hidroaviões.
A primeira etapa da viagem decorreu sem maiores percalços, durante 8 horas e 17 minutos de Lisboa até Las Palmas de Gran-Canaria, embora tenha sido notado pelos tripulantes um excessivo consumo de combustível. Das Canárias os dois aeronautas portugueses voaram para Guando, a fim de conseguirem melhores condições de descolagem. Todavia o traçado do percurso teve ainda de ser revisto porque a quantidade de combustível não seria suficiente para um voo sem escala de Cabo Verde a Fernando Noronha.
A segunda etapa teve início na madrugada de 5 de abril, da ilha de Guando, alcançando São Vicente de Cabo Verde após 10 horas e 43 minutos, amerissando em mar calmo e sem dificuldades. Apesar do sucesso destas duas primeiras fases de voo do avião batizado como “Lusitânia”, perceberam os tripulantes ser praticamente impossível um voo direto entre São Vicente e o Arquipélago de Fernando de Noronha, devido aos elevados consumos de combustível. Perante a vontade de continuar a viagem e provar a precisão do voo aéreo, bem como a cientificidade dos instrumentos utilizados, Gago Coutinho e Sacadura Cabral decidiram fazer escala no Arquipélago de São Pedro e São Paulo, onde o “República”, cruzador da marinha portuguesa, lhes prestaria assistência.
Na terceira etapa da viagem, cuja partida ocorreu em 18 de abril, persistem as dificuldades a nível do combustível e o vento não ajudava numa decolagem mais rápida do avião. Apesar disto, o voo ocorreu sem maiores problemas e a precisão dos cálculos de Gago Coutinho permitiu que o avião iniciasse a sua descida até São Pedro e São Paulo quando apenas restavam dois a três litros no tanque.
Foi realizado um pouso forçado sobre um mar com muitas ondas e um dos flutuadores foi arrancado no choque. Na sequência o hidroavião se inclinou para bombordo e começou a afundar. Os tripulantes do cruzador “República” socorreram os aviadores, salvando também livros, o sextante, o cronómetro e outros instrumentos. Em seguida Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram levados para Fernando Noronha.
Para perpetuar o ocorrido, os aviadores deixaram o Arquipélago de São Pedro e São Paulo uma placa de chapa de ferro, onde está gravado a letra de latão: “Hidroavião Lusitânia – Cruzador República”.
A Nação portuguesa entrou em delírio e o clima emocional levou o Governo a enviar outro avião, oferecido pelo Ministério da Marinha.
Durante estes contratempos, os dois heróis ficaram ancorados em Fernando de Noronha, a bordo do “República”, onde decidiram que a nova etapa não devia iniciar naquela ilha, sendo preciso voltar atrás e sobrevoar São Pedro e São Paulo e depois seguir o rumo ao Brasil.
O novo Fairey, levantou voo da ilha de Fernando Noronha, na manhã de 11 de maio.
O voo prosseguiu sem maiores problemas, mas, após sobrevoar o Arquipélago de São Pedro e São Paulo e já em direção ao Brasil, o motor parou. Eles então realizaram uma amerissagem de emergência.
Embora esta tenha sido perfeita e em mar calmo, a longa espera por auxílio teve como consequência uma situação mais complicada, na qual entrou bastante água em um dos flutuadores, fazendo o aparelho afundar lentamente O comandante do “República” solicita que o cargueiro britânico “Paris-City”, da empresa Reardon Smith Line e comandado pelo capitão Albert Edward Tamlyn, em rota de Cardiff, Escócia, para o Rio de Janeiro, que socorra os aviadores.
Mais uma vez os pilotos foram resgatados e, consequentemente, louvados na sua pátria. Diante da situação, o Governo Português foi novamente procurado para enviar outro avião e não teve como negar, pois os dois aviadores haviam se tornado heróis nacionais.
A quarta e última etapa teve início com o envio do Fairey batizado na sua esquadrilha com o número 17, o único de que dispunha a Aviação Naval Portuguesa. Era uma aeronave com uma autonomia mais reduzida do que os outros, mas considerado suficiente para que a viagem prosseguisse até ao Rio de Janeiro.
No dia 5 de junho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho levantaram voo de Fernando de Noronha e iniciaram o final desta histórica e gloriosa viagem, já sem quaisquer problemas ou incidentes mecânicos. Logo os aviadores chegariam a Recife.
Enquanto os heróis lusitanos seguiam em sua viagem épica, a pequenina Natal, capital potiguar que à época não tinha sequer 35.000 habitantes, acalentava o sonho de ser pela primeira vez sobrevoada por uma máquina “mais pesada do que o ar”, como eram descritos os aviões no começo do século XX.
Mas Natal não teve este privilégio. Entretanto, a sua população não deixou de comemorar.
Segundo a edição de sexta-feira, 9 de junho de 1922, do jornal recifense “Diário de Pernambuco”, segundo informações transmitidas pelo seu “Correspondente Especial”, comentou que após a cidade saber que os portugueses haviam chegado ao Recife por volta do meio dia de 5 de junho, os escoteiros do bairro do Alecrim, sob o comando do professor Luís Soares, saíram às ruas da cidade para convidar a população para uma “Passeata Cívica” a ser realizada naquela noite.
Na hora acertada os escoteiros, acompanhados dos alunos da Escola de Aprendizes de Marinheiros e estudantes de outras escolas locais saíram às ruas em direção ao bairro da Ribeira, mais precisamente até a estátua do aeronauta potiguar Augusto Severo, onde houve grande concentração popular. No local ocorreram vários discursos e representando a colônia portuguesa falou o advogado, futuro deputado federal e senador Kerginaldo Cavalcanti.
Após a parte oficial, os escoteiros, os aprendizes de marinheiro, estudantes e o povo em geral saíram pelas ruas da cidade acompanhados das bandas da Polícia Militar e do 29º Batalhão de Caçadores, a unidade do Exército Brasileiro que existia em Natal naquela época. Um carro foi conseguido, sendo totalmente enfeitado. Duas jovens natalenses desfilaram no automóvel representando Portugal e o Brasil.
Mesmo sendo o dia 5 de junho, uma segunda-feira, que tinha tudo para ser normalmente modorrenta, a chegada dos aviadores lusos a Recife fez a capital potiguar se agitar como não seria normal para aquele dia. O cortejo seguiu até a casa do representante diplomático de Portugal em Natal, o Sr. Antônio Martins e depois foram se concentrar na Praça 7 de Setembro, defronte ao Palácio do Governo. Consta que a festa se prolongou até tarde da noite.
No dia 18 de junho, o jornal natalense “A República” estampava na sua primeira página, um belo poema intitulado “Aviador”, produzido por uma das mais importantes poetisas que o Rio Grande do Norte já conheceu, Palmyra Wanderley.
Depois do descanso na capital pernambucana, Sacadura Cabral e Gago Coutinho seguiram para Salvador, Porto Seguro, Vitória, e, finalmente, Rio de Janeiro, onde o Fairey, batizado de “Santa Cruz”, desce no começo da tarde de 17 de junho na Baía da Guanabara, levando os portugueses e brasileiros a bater palmas alvoroçadamente e em uníssono.
O sextante original utilizado por Gago Coutinho nos voos históricos com Sacadura Cabral em 1921, de Lisboa ao Funchal, e, em 1922, na Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul, é hoje uma das mais valiosas relíquias do Museu de Marinha em Portugal, estando em exposição juntamente com o “Corretor de Rumos”, próximo do hidroavião Santa Cruz, que finalizou a histórica Travessia Aérea.
CARACTERISTICAS DO HIDROAVIÃO FAIREY F III-D MKII
- Material: madeira, revestida em tela
- Comprimento: 10,92 metros
- Envergadura: 14,05 metros
- Altura: 3,70 metros
- Peso vazio: 1800 quilogramas
- Peso equipado: 2500 quilogramas
- Velocidade de cruzeiro: 115 quilômetros/hora
NUMEROS FINAIS DO “RAID”
Locais | Data | Partida | Chegada | Duração | Distância | Vel. média |
Lisboa-Las Palmas | 30 de Março | 7h00m | 15h37m | 8h37m | 703 milhas náuticas | 62m/ph |
Las Palmas- Gando | 2 de Abril | 11h13m | 11h34m | 0h21m | 15 milhas náuticas | — |
Gando – S. Vicente | 5 de Abril | 8h35m | 19h18m | 10h43m | 849 milhas náuticas | 79m/ph |
São Vicente-São Tiago | 17 de Abril | 17h35m | 19h50m | 2h15m | 170 milhas náuticas | 77m/ph |
São Tiago-S. Pedro e S. Paulo | 18 de Abril | 7h55m | 19h16m | 11h21m | 908 milhas náuticas | 80m/ph |
Fernando de Noronha- Mar | 11 de Maio | 11h01m | 17h35m | 6h34m | 480 milhas náuticas | 72m/ph |
Fernando de Noronha-Recife | 5 de junho | 10h48m | 15h20m | 4h32m | 300 milhas náuticas | 67m/ph |
Recife-Salvador | 8 de Junho | 11h05m | 16h35m | 5h30m | 380 milhas náuticas | 69m/ph |
Salvador-Porto Seguro | 13 de Junho | 10h30m | 14h33m | 4h03m | 212 milhas náuticas | 52m/ph |
Porto Seguro-Vitória | 15 de junho | 10h55m | 14h35m | 3h40m | 260 milhas náuticas | 71m/ph |
Vitória-Rio de Janeiro | 17 de Junho | 12h42m | 17h32m | 4h50m | 250 milhas náuticas | 52m/ph |
- Tudo em horas médias de Greenwich.
- Total: 4527 milhas náuticas, em 62h26m, com velocidade média de 72,5 milhas náuticas por hora
- Fontes – http://www.citi.pt/cultura/historia/personalidades/gago_coutinho/percurso_da_viagem.html
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