O BANCO DA BOTICA – MEMÓRIAS DAS ANTIGAS FARMÁCIAS DO SERTÃO

Raimundo Nonato – Figuras e Tradições do Nordeste – Editora Irmãos Pongetti, Rio de Janeiro, 1958, Páginas 9 a 18.

O banco de botica sertaneja era um lugar de importância, gozando de prestígio e de renome, dono por assim dizer, de meio mundo de influência e respeito da gente da localidade.

Era, também, ponto perigoso para a reputação da vida alheia, pois ali tanto se falava de política ou de inverno, como se difamava o vizinho ou a mulher do próximo. Alguns desses bancos chegaram a deixar uma história, tal a importância da sua roda de conversadores, de ordinários, de gente boa, onde se contavam autoridades como o juiz de direito, o presidente da Intendência, o vigário, o promotor e o velho chefe político, que andava pelas ruas de ceroula e de alpercata de rabicho.

Por isso ou por aquilo, o certo é que ninguém queria ser inimigo do boticário. O seu conceito vinha da língua dos faladores que por lá se encontravam, era ainda assim elevado, pois sempre prestava favores e servia indistintamente nas ocasiões de apertura.

O boticário, nesses velhos tempos, era uma pessoa extraordinária na vida dos lugarejos do sertão. Coisa semelhante a feiticeiro, homem mágico, milagroso, com quem poucos se atreviam a tirar prosa. Só ele conhecia o segredo dos remédios, a arte daquelas drogas maravilhosas que estancavam sangue, fazia desaparecer as dores, levantavam as pessoas, curavam os doentes e salvavam vidas preciosas, às vezes à beira da sepultura.

Em vista disso, tinha lá suas inúmeras amizades, sendo largo o compadresco, aparecendo sempre como padrinho de vela e testemunha de casamento quando o Padre Natanael vinha celebrar missa, de quinze em quinze dias.

Também não era necessário largo conhecimento para atender às necessidades dos membros da comunidade rústica. Naqueles dias as indicações eram as mais simples. Não havia maiores possibilidades, o dilema era fatal: ou os remédios curavam, ou levavam o paciente, irremediavelmente, para a cidade dos pés juntos.

E como eram esses remédios?

Os nomes eram grandes, impressionantes, de prosódia retumbante e forte.

— Semicúpios, sinapismo e purgantes. Estes últimos, espécie de panaceia universal, eram recomendados para todos os achaques. Variavam só os ingredientes e as dosagens. De todos o óleo de rícino era o mais generalizado. Depois o sal amargo, que se vendia na loja de Cristalino Costa, em Martins, a 18 vinténs o quilo. A aguardente alemã, magnésia, Limonada de Leford, água vienense, Rubinat e purgante dos quatro humores. Jalapa e azeite de caroço de carrapato eram aplicados segundo a gravidade da moléstia, servindo, indistintamente, ora para aliviar empanzinamentos, ora para dores em geral, inchações ocasionadas por coice de burro, para dor nas cruzes e ventre crescido. Na verdade, só os casos mais graves reclamavam a aguardente alemã, ou a jalapa, considerados sempre purgantes muito fortes. Eram comuns nos distúrbios originados pela congestão.

Em Caicó, na Praça do Mercado, a Farmácia Pereira vendia uma bebida refrescante que utilizava na sua composição cocaína.

Nem sempre era encontrado o remédio no momento de maior vexame. A aguardente alemã, por exemplo, sempre desaparecia da botica. Mas, o homem dos remédios não se perturbava. Quando aparecia um caso de urgência, preparava o ingrediente com cachaça velha da terra e o resultado era sempre o mesmo. Até os doutores formados recomendavam esse emprego…

Em Mossoró, o bodegueiro João Caetano possuía várias garrafas do precioso líquido que passarinho não bebe. Eram nove garrafinhas brancas, bastante antigas, colocadas no alto das prateleiras. Aquela cana do Cumbe da Bahia que não vinha ao balcão para venda, contava bem vinte anos de conservação, pois, conforme assegurava o dono da bodega, era da mesma idade de uma filha sua e de uma gata mourisca de estimação, que dormia dentro do caixão de bolachas ou ressonava por cima da saca de farinha de mandioca. Pois lá um dia adoeceu a esposa do Teofinho, um vendedor de massas dos Paredões de Mossoró, e não foi encontrado o remédio receitado. O Dr. Castro[1] não criou embaraços, mandou aplicar a cachaça do Caetano, e a mulher ficou novinha em folha.

De modo rigoroso, a pessoa purgada tinha regime especial. Não podia ouvir barulho, nem tiro ou gritaria. Ficava agasalhada em quarto escuro, bem fechado, com as frestas das portas e janelas tomadas com pano para o vento não entrar. Permanecia nesse estado de três a nove dias. Ninguém podia falar alto, nem menino gritava por perto. Para manter esse silêncio, trabalhavam o puxa-vante de orelha e ferozes beliscões de arrancar o couro. O purgado ficava ainda de cabeça amarrada com pano branco, calçado de meias e com os ouvidos entupidos de algodão. Essa precaução ocorria quando se tratava de mulher de parto. A alimentação era cuidada e pouca. Só caldo de pinto, às vezes de mungunzá ou de arroz do barco e chá. Mais para o fim, uns crespinhos de goma e que não fosse fresca. De vício só o café, torrado, sem doce e que não estivesse requentado.

Remédio que serviam para quase tudo!

Quebrar o resguardo de uma pessoa era coisa muito séria!

Mas, em última situação, o boticário era a chave da esperança. Dele dependia tudo. Sua palavra e seus remédios decidiam a sorte de muitas vidas.

Nesse regime, além dos purgativos, as pílulas gozavam de muita aceitação. As pomadas eram sempre recomendadas na cura das perebas e dos arranhões malignos. A de São Lázaro era a mais conhecida. Também não havia de que duvidar. Ferida braba, por pior que fosse, não aguentava sete curativos, desde que o doente não fizesse extravagâncias e não abusasse de comida carregada, como peba gordo, guiné, carne de porco ou avoante.

Emulsão de Scott, até hoje nas farmácias.

A velha botica tinha um rol dos seus remédios afamados: Elixir de Mururé, Pílulas de Mato, Emulsão de Scott, Pílulas de Bristol, Antigal do Dr. Guerra, Pomada Reclus, Elixir de Nogueira, Pomada de São Lázaro, Viperina do Dr. Castro contra as mordeduras das cobras venenosas. Pílulas de Pião e Jalapa, Joatonka Rosado, Gotas Salvadoras, Água Inglesa e Xarope de Angico.

As drogas da botica eram, porém, insignificantes em vista do grande número de indicações e meizinhas caseiras. As folhas, as raízes, sementes e cascas desempenhavam larga influência na atividade da medicina sertaneja. A maior parte dos remédios era mesmo de origem vegetal. Daí, o largo ciclo da sua propaganda, dominando grande parte e composição da farmacopeia grosseira, de emergência, linha marginal da arte e da ciência de curar por meios e processos racionais.

O Antigal do Dr. Machado.

De comum havia um chá para cada doença, uma indicação, um recurso de cuja eficácia não cabia levantar suspeita. Sua variedade era imensa e rica como a própria flora de onde vinham. O fedegoso, por exemplo, deixou fama, assim como a jurubeba branca. O cozimento de raiz de velame, a batata de purga, o cardo santo para dor na garganta e a infusão de malva e agrião para mal do peito. O chá de cravo de defunto era para doença dos olhos, a cabacinha e a cabeça de negro eram como depurativos. Cebola branca serenada para o catarro. Chá de alho para gripe e mel de juá para doença do peito. Cumaru e sucupira para reumatismo. Mororó para enfraquecimento e Babosa (nove folhas lavadas em nove águas) feito mel com açúcar branco servia para escarro de sangue. Capeba usado para doenças do fígado e a jandiroba para reumatismo. Mão-fechada para a dor de mulher. Catucá era calmante. Jatobá para os rins e vias respiratórias e a milona para o fígado. Alcaçuz era outro remédio para a tosse. Mastruço (ou Mastruz) com leite usavam para bronquite. Leite de pião era para as mordidas de cobra. Língua de vaca para o baço e melancia da praia para a dor de lado. Jucá para espalhar o sangue e maxixe do Pará (a flor) para puxado. Casca de jaboticaba utilizavam para dor de barriga e velame branco para afinar o sangue. E mais raspa de juá, folha de abacate, capim santo, folha de laranjeira eram os remédios de casa para todas as indicações.

Também a folha de mostarda quente servia para dor de cabeça. Emplasto de jerimum com pirão de farinha para estourar panariço. Casca de romã para rouquidão. Chá de quebra pedra para rins e gado e o chá de folha de mamão para indigestão.

Pílulas de Bristol em uma propaganda de 1954.

Havia coisa mais violenta: chá de caroço de pinha usavam para a mordida de cascavel e pimenta malagueta com café amargo baixava a febre.

Fora da farmácia havia ainda um remédio temerário, conhecido pelo nome de “garrafadas”, preparadas por especialistas e que, segundo se dizia, arrancavam o mal pela raiz.

Já a nomenclatura das doenças era extensa e os nomes de alguns chegavam a dar nó na garganta. Muitos nem podiam ser pronunciados na presença das crianças, como o garrotilho, que era chamado “mal de menino”. De uma relação rica e vasta não seria demais que se citasse:

Propaganda da Farmácia Pires, em Jardim do Seridó.

— Quebranto, olhado, espinhela caída, dor de veado, mal das juntas, puxado, nó na tripa, ar encasado, cupim, boqueira, fininha, impinge, inteiriça, cobreiro, sete couros, doença do peito, gafeira, chega e vira, dor na boca do estombo (estômago), tontura, brotoeja, pereba, pilora, calor de figo, farnezim, dor de mulher, curuba, fogo selvagem, bexiga lixa, caminheira, campainha caída, mau olhado, dor de ventosidade, ventre-caído, bucho quebrado, cabeça de prego, pé triado, mazela, braço desmentido, galco, quebradura, fuá, gota serena, sapiranga, tersol, andaço, morrinha no corpo, macacoa, sarampão, esquinência, doença interiora, câimbra de sangue, esquentamento e erisipela.

Com todas essas doenças, ainda se podia morrer de:

— Bexiga, garrotilho, estopor, moléstia do ar, moléstia do vento, frouxo, cancro, antraz, gálico, urinas doce, tosse, força de sangue, paridura, vício, inchação, catarrão, maligna, espasmo, cobreiro, sezões, gota, inchaço, puxado, moléstia do peito, ferida na garganta, chagas, maleita, ferida na boca, lombriga, defluxo, pontada, fluxo de sangue, frouxo de sangue, doença gálica, pontada no ouvido, sezões malignas, tumor nas costas, humor recolhido, moléstia do vento, estrepada, caroço na barriga, velhice, inflamação no estômago, cobra, feridas recolhidas, tuberto, andosso, gota coral, caroço no rosto, sarampo, umas cacetadas, uma inflamação nos bofes, quebradura descida, tiro, mordidela de cascavel, uma inchação nos peitos, frialdade, hemorroidas, tísica, parto, um tumor de repente, uma queda, afogado, feridas gomosas, moléstia na barriga, retrocesso de sangue, facada, uma ferida, dor nos ouvidos, hidrópico, feridas espasmódicas, inchação na cabeça, inflamação no fígado e estopor.

A farmácia de Jerônimo Rosa, em Mossoró.

Muitos dos velhos donos de botica do sertão se tornaram afamados pela segurança com que indicavam seus xaropes.

De quantos exerceram os trabalhos de farmacêuticos por esses tempos de meu Deus, Palmério Filho, da cidade de Assu, é, sem dúvida, o profissional mais interessante, não só pela sua atividade nesse ramo, como pelo número de anos que tem atravessado no contacto da frascaria, dos sais, das latas de pomadas. e vidros de tintura.[2]

Uma curiosidade do boticário da terra de Ulisses Caldas é que ele não gosta de receitar. De lá era também Amorim, o Cajurema, boticário de projeção pelos lugares marginais do Baixo Assu. Em São Miguel, Chico França sempre viveu metido no seu quarto vendendo drogas e meizinhas poderosas. Em Martins, Areamiro de Almeida e Neco Cocada negociaram com homeopatias e laxantes por muitos anos, depois de João Teixeira de Sousa. Em outra época, Álvaro Andrade pontificava em Pau dos Ferros. Patu vivia nos domínios “clínicos” de Ascendino de Almeida, boticário que sarjava, fazia parto e encanava braço quebrado. Nas Pendências quem receitava todo o mundo era João Lalau e no Itaú, do Apodi, Fausto Pinheiro fazia até defunto andar…

Havia também grandes homeopatas e alopatas do maior conceito. De alguns afirmavam que eram “quase médicos”. Zenon Martins, na cidade deste nome, Bento Antônio de Oliveira, em Mossoró, Quinca Antão, na Várzea do Assú, e o Cel. Zé Leite do Castelo, nos pés da Serra, sempre foram tidos e havidos como homens de “muita ciência”.

Em Mossoró, depois da antiga botica de Manuel Artur de Azevedo, que apareceu lá pelas eras de 1877, a farmácia do Dr. Monteiro gozou de justo renome, especialmente, no que regista sua crônica sobre o caso de um ilustre comerciante da cidade que sempre chegava para a prosa, impondo a contar a história de um gordo peru que comera. Cansado daquilo, lá um dia o médico dono do negócio, em vez do digestivo habitual impingiu ao amigo boa dose de tártaro, bastante para o mesmo revelar que o peru não passava de grossa feijoada…

Já em época mais recente, três estabelecimentos se desenvolveram nesse ramo de negócio. A Farmácia Rosado, de Jerônimo Rosado, continuando com os seus sucessores. Esse local tornou-se saliente porque nos seus bancos, o Partido Popular fez tenda de reunião. A Farmácia Central, de Edgar Medeiros, era o maior foco de linguarudos deste mundo. Já a farmácia Almeida, de Vicente Almeida, onde faziam paradas em períodos diversos Carlile Magalhães (gerente da agência do Banco do Brasil), Aprígio Câmara, Dário de Andrade, Alfredo Simonetti (diretores da Escola Normal), Henrique Lima, Major Rufino Caldas, (representante da Fábrica de Algodãozinho de Aracati) e Vicente Praxedes da Silveira Martins, além dos tipos populares que motivavam encrencas, como Artur Capote, o deputado das “massas oprimidas”. Vitorino da Caieira, sertanejo de quatro costados, e Anélio, o profeta de barba grande e cabeleira desgrenhada, sobraçando um respeitável cajado de miolo de aroeira[3].

Quem relembra, hoje (1958), os dias desse passado tem necessariamente de reconhecer a influência de desbravamento que o banco da botica desempenhou em tantos pontos do interior do Brasil. Seu papel de concentração social e humana concorreu, poderosamente, para melhorar a formação dos pequenos núcleos de populações rurais, onde a ação do boticário, à semelhança do vigário, do comboieiro, do professor de meninos e do coronel chefe político, se fez sentir de modo realmente construtivo e duradouro..

A seu tempo, a botica era uma casa cujo nome despertava confiança. A palavra e o vidro de remédio faziam escapar os males da vida, mais pela confiança que inspiravam, do que propriamente pelos seus efeitos e poder curativo.

Em outro aspecto, observado através do campo sociológico, é das mais expressivas a função desempenhada na comunidade pelo grupo do banco da botica[4].

Ali, entre conversas e animadas partidas de gamão, muita coisa séria foi ventilada, sobressaindo ideias boas, de ordem, pública ou interesse privado, notícias da política, do inverno e do comércio, assuntos sempre discutidos, para os quais até soluções foram apontadas, embora sem aplicação, porque a maior parte dos problemas dos rincões sertanejos ainda continua virgem, como era nos dias pré-cabralianos.

Aqueles encontros, se, às vezes, puderam fermentar dissenções, e rixas, também serviram para dirimir questões, amainar ódios, e, até evitar crimes. Os frequentadores é que eram quase sempre os mesmos. Lá um dia, surgia a novidade: uma cara nova. Era um estranho que chegava à terra e ali comparecia, penetrando na conversa, passando assim a se filiar ao ajuntamento, não raro, ficando permanentemente no lugar, integrado no pensamento da sua gente, no seu trabalho e no destino das suas preocupações coletivas.

Tempo virá, talvez, em que estudo mais demorado e profundo chegue a evidenciar a influência aglutinadora dessas reuniões, tão simples nas suas origens, mas tão poderosas como fator de contacto, que tiveram início nas rodas de conversas do banco da botica, centro de movimentação, de pensamentos e atividades, consequentemente, elemento social e civilizador[5].

NOTAS


[1] — Dr. Francisco Pinheiro de Almeida Castro. Médico, natural da Província do Ceará, radicado em Mossoró, onde foi chefe político de incontestável prestígio. Nessa posição, sempre se conduziu com elevado espírito de harmonia, mantendo entendimentos com o chefe antagonista, o Cel. Bento Praxedes Fernandes Pimenta. Na cidade, muitos relembram a esse respeito a desinteligência surgida por ocasião da visita do Capitão José da Penha, onde o local indicado pelos amigos do Dr. Castro para um discurso do vibrante militar foi o mercado público, inaugurado há pouco tempo, quando era presidência da Intendência Municipal Antônio Filgueira. Contra isso se levantaram os governistas, achando que o Penha não podia falar num próprio público para atacar o Governador do Estado, que nesse tempo era Alberto Maranhão. Pois mesmo “de baixo”, na condição difícil de oposicionista, Almeida Castro articulou-se com seu adversário Bento Praxedes, e chamando o presidente da Intendência, Francisco Izódio de Sousa, permitiram que o Jota da Penha falasse do mercado, que para isso fora embandeirado, respeitando-se os locais que pertenciam aos elementos governistas. Dr. Castro faleceu em Mossoró a 22-6-1922, quando exercia o mandato de Deputado Federal. Em sua homenagem a cidade, além de um busto, deu o seu nome a uma das suas ruas, por sinal, aquela em que residiu por muitos anos.

[2] — Jornalista Palmério Filho, homem de letras, conservador e pertencente a tradicional família açuense. Durante muito tempo fez publicar, sob sua direção, um jornal de bom formato chamado “A CIDADE”, infelizmente, hoje (1958), desaparecido. A seu respeito além do mais é típico o apego de Palmério Filho ao seu rincão, pois numa longa existência nunca viu outro lugar, mesmo dos mais perto do Assú. Seu mundo geográfico perde-se ali mesmo, em redor dos carnaubais verdejantes que pontilham às margens do velho rio, cuja várzea tem hoje uma história graças aos ensaios de M. Rodrigues de Melo. Palmério Filho é ainda afamado pelas suas qualidades de tribuno.

[3] — Essa gente que frequentava o banco da farmácia Almeida, deixou memória em Mossoró. De uma feita, o dono da casa para envenenar a situação, contou ao coronel Vicente Martins que o Major Romão Filgueiras ia sair, num andor, durante as festas do 30 de setembro. E isso, acrescentava o farmacêutico, maldosamente, era só por adulação, pois o Desembargador João Dionísio Filgueira se encontrava no cargo de Secretário do Estado, ao tempo da Interventoria do General Fernando Dantas. O outro, sem se dar por achado, saiu logo e chegando em casa mudou de fatiota e lá se foi à procura do velho abolicionista mossoroense. Não perdeu tempo em andar, pois na primeira esquina, descobrindo o amigo, dele se aproximou e foi deitando a queima roupa: — “Mas, Romão, meu parente, você não está vendo que isso é uma coisa ridícula, essa de pensar em correr as ruas num andor? — Não vê, meu primo, que isso é arrumação do Padre Mota para agradecer ao Dionísio e vê por esse meio se pode continuar na Prefeitura, inventando impostos e matando os jumentos dos pobres?” Diante daquilo, o Major Romão que tudo ignorava, não teve melhor saída e foi dizendo: — “É Vicente, não é bem um andor, ouviu? …É uma coisa assim…” E lá se foi deixando o amigo embatucado.

[4] — O fato não é apenas originalidade de pequenos lugares do interior. Em muitas cidades importantes, e, até, em capitais, há notícia da existência desses pontos de reuniões. Em Fortaleza, por exemplo, é tradicional a crônica do Banco da Praça do Ferreira, bem em frente à Farmácia Pasteur, centro de encontros e conversações de figuras respeitáveis da progressista capital alencarina. Também em Natal, são conhecidas memórias de alguns desses locais que adquiriram celebridade na vida da cidade. Na sua magnífica História do Rio Grande do Norte, o escritor Luís da Câmara Cascudo faz referências a pelo menos dois desses recantos, afirmando: “Amintas, o Juiz da Capital, era o delegado do Conselheiro Tarquino de Souza, conservador da velha lei, um dos chefes do grupo da Botica (a Botica era do Comendador José Gervasio de Amorim Garcia, cunhado de Amintas) adversário do Cantão da Gameleira, na Cidade Alta, ponto de reunião dos fiéis do Padre João Manuel”.

[5] — Remédios Tradicionais -— Escreveu Veríssimo de Melo: “Estou recebendo, com alegria, uma nova e curiosa colaboração do Prof. Raimundo Nonato. Trata-se de uma relação de remédios caseiros, usados ainda hoje nos nossos sertões. Muitos deles têm nomes gosados e parecem extravagantes. Mas, ninguém pode condená-los sem procurar sua justificação científica. Se eles persistem na memória popular, desafiando os séculos, é sinal de que são realmente úteis. O Prof. Raimundo Nonato confessou-me que ele próprio já bebera chá de flor de toco. Uma tia minha já tomou chá de perna de grilo. Mas, vamos à revelação, tal qual me mandou o prezado confrade Raimundo Nonato”:

1 — Chá de lagartixa, para dor de garganta;

2 — Ovo com breu, para asma;

3 — Banha de urubu, para erisipela;

4 — Água de bilro ou de chocalho, para menino aprender a falar;

5 — Chá de perna de pinto com mel de jandaíra, para puxado; (sic)

6 — Rosário de sabugo, para tosse de cachorro;

7 — Água de raiz de fedegoso, para catarro;

8 — Mistura de vinagre, cachaça e goma, para dor de barriga;

9 — Chá de flor de toco, para sarampo;

10 — Urina de menino novo, para dordói; (sic)

11 — Chá de cavalo do cão, para papeira que desce;

12 — Chá de barata assada, para dor de veado;

13 — Sanapismo (cataplasma) de alho numa perna, para dor de dente;

14 — Mel de cupim, para atalhar hemorragia;

15 — Garapa de-açúcar preto, também para estancar o sangue;

16 — Sarro de. cachimbo, para matar carrapato;

17 — Pó de caroço de pião, para. dor de cabeça;

18 — Barro de casa de besouro, para papeira;

19 —- Chá de esterco de cavalo, para sezão;

20 — Café com pimenta malagueta, contra gripe;

21 — Cebola branca assada e serenada, para tosse braba;

22 — Chá de grilo para menino ficar falador;

23 — Chá de talo de mamoeiro, para empanzinamento;

24 — Pó. de bucho de barata, para dor de ouvido e para estourar fleimão:

25 — Mascar a flor do cajueiro, contra queima (asia);

26 — Baba de fumo mascado, com leite de pião, contra veneno de cobra;

27. — Picada de abelha de enxuí, contra reumatismo;

28 — Cortar um novelo de linha, misturar com açúcar e comer de manhã, em. jejum, para expelir vermes;

29 — Chá de encosto da pena de galinha pedrês, contra tuberculose;

30 — Chá de encosto da pena de galinha pedrês, contra tuberculose; 31 — Meter um botão de-ceroula na boca, para passar a dor de mordida de lacrau. Também. se fala num. chá de mão de pilão, e noutro de cabo-de chapéu de sol de parteira, sem indicação muito certa. Termina. Raimundo Nonato.

31 — Meter um botão de-ceroula na boca, para passar a dor de mordida de lacrau. Também. se fala num chá de mão de pilão, e noutro de cabo-de chapéu de sol de parteira, sem indicação muito certa. Termina Raimundo Nonato.

OS VELHOS CAMINHOS DO RIO GRANDE DO NORTE

Luís da Câmara Cascudo – Publicado originalmente no livro HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1955. 1ª EDIÇÃO, Capítulo XIII, páginas 307 a 312.

A primeira estrada conhecida no Rio Grande do Norte e, durante séculos, a mais trilhada, foi pelo litoral, beirando quase o mar, rumo da Paraíba. Os colonizadores vieram pelo Atlântico, mas a parte da tropa que devia vir por via terrestre recuou na baía da Traição ante a peste de bexigas. Mascarenhas Homem, fundador do Forte dos Reis Magos, regressou por terra. Esse primeiro caminho teve, no correr da guerra contra os indígenas no final do século XVII, uma série de casas fortes, protegendo o trânsito que seria relativamente vultoso. Vinha-se pela baía da Traição ou Mamanguape, Tamatanduba, Cunhaú, Goianinha, Guaraíras (Arês), Mipibu, Potengi, Utinga, ou seguindo o vale do Cajupiranga, diretamente a Natal. A jornada para o interior ia até o vale do Ceará Mirim, limite do conhecimento geográfico, útil até mesmo depois da expulsão do holandês em 1654.

Fortaleza dos Reis Magos no período colonial

Quando o mestre de campo Luís Barbalho Bezerra realizou a famosa contramarcha de fevereiro-maio de 1640, calcou a estrada já histórica. O genealogista Pedro Taques diz ter sido o desembarque a 7 de fevereiro no porto de Aguaçu, topônimo desaparecido, junto ou nos arredores da atual cidade de Touros. Em nomeações reais encontro baixios de São Roque. O caso é que Barbalho Bezerra veio até o Potengi, quase vendo Natal ou vendo, onde se bateu, derrotou e aprisionou Joris Gartsman, capitão flamengo do Reis Magos, e o conduziu para a cidade do Salvador. De Cunhaú é que o mestre-de-campo escreveu ao conde de Nassau pedindo passagem. Encontramos sua espada vencendo Alexandre Picard em Goiana. Era a trilha secular para ó sul, Natal, vale do Cajupiranga, vale do Capió, Cunhaú, rio Guaju para a Paraíba e daí para Pernambuco, por Mamanguape e Goiana como ainda nos nossos dias é a maior rodovia interestadual.

Riacho seco no Vale do Cafundó, zona rural da cidade pernambucana de Flores, Região do Pajeú. No passado essas eram as primeiras estradas da ocupação do interior do Nordeste. – Foto de Alex Gomes.

A repressão oficial à revolta da indiaria provocou o alargamento das fronteiras corográficas. Antônio de Albuquerque Câmara bate-se em 1688 nas cabeceiras do rio Açu e entre as serras do João do Vale e Santana do Matos. A revolta abrangia as ribeiras do Açu e Jaguaribe. A zona teve de ser batida e trespassada pelas colunas militares. Nesse 1688 os paulistas vieram ajudar a corrigir a indiada e se encontraram, vindos da Paraíba, com Albuquerque Câmara que se batia no baixo Açu. Domingos Jorge Velho viera de seus currais do São Francisco, por terra e mergulhara pelo boqueirão de Parelhas, no chamado “Sertão de Acauã”, que enrolava serras e capoeirões desde os atuais Jardim do Seridó até Currais Novos. Toda essa região, Focinho dos Picos, Picuí, Caiçara e Bico da Arara, até roçar o rio Acauã, era terra do gentio da nação Canindé e Janduí (Cariri) que se alargava por Quacari, Quimbico, Quintururé, Umvibico, Amoré, Onaxi, Acinum, Quindê, Arari, Jucurutu até a misteriosa serra, do Araridu ou Papuiré até Ticoiji e Tipuí, julgadamente a serra do Coité no território paraibano. São topônimos ·cariris que orlam a peregrinação dos aldeamentos e ficaram como testemunhando a passagem dos Janduí e Canindé antes do desaparecimento. Esse povo dos Canindé foi derrotado em 1690 por Afonso d’Albuquerque Maranhão, da casa de Cunhaú, neto de Jerônimo, 1.º capitão-mor do Rio Grande. O tuxaúa Canindé, soberano do sertão da Acauã, foi batizado e tomou o nome de João Fernandes Vieira. Dois anos depois o Senado da Câmara de Natal pedia a criação de arraiais, povoados com defensão militar nos quatro pontos extremos da região pacificada: Jaguaribe, Açu, Acauã e Curimataú. As estradas ligavam entre si esses lugares e se articulavam nas duas vias-tronco para o sul, o caminho do litoral, já mencionado, e a estrada por onde nasceria a estrada das boiadas. Em 1697 os indígenas Paiacu e Caratéu, da nação cearense dos Icó que viviam desde o Catolé do Rocha até as margens do rio Piranhas, na Paraíba, fixaram-se entre as ribeiras do Apodi e Jaguaribe, formando um liame de ativa comunicação pela chapada.

Ilustração de Jean Baptiste Debret

Por onde, durante as guerras contra o cariri, entraram os Terços Paulistas, as tropas de auxílio, vindas para conter os Janduí, Icó, Paiacu, Pega e Panati insubmissos?

Desceram da Paraíba, vindos por Soledade-Picuí ou Piranhas, depois Pombal, Brejo do Cruz e Catolé do Rocha, varando a fronteira depois da reentrância paraibana, ou vinham pela mesopotâmia do Panema-Açu? As tropas que voaram em socorro de Albuquerque Câmara tomaram o primeiro caminho e as do sertanista Domingos Jorge Velho creio que escolheram o segundo, ainda hoje piso batido e tradicional.

Passada a guerra ficou a lembrança da terra pisada para baixo e para cima. Do Açu sobe-se pelo rio Paraú até o fim e apanha-se a estrada paraibana depois de Belém. Lembremo-nos que a Paraíba não tinha gado e sim açúcar. O Rio Grande do Norte possuía tanto gado que podia suprir a Paraíba, Itamaracá e Recife. Os currais paraibanos são posteriores ao domínio holandês na vigência do qual o Rio Grande exportava, de graça e a força, milhares de cabeças. Irineu Joffily (Notas sôbre a Paraíba, 124) diz que as “fazendas apareceram normalmente quando os exploradores galgaram o planalto da Borborema e os paulistas penetraram no Piancó. Depois de 1690 é que temos indícios das atividades bandeirantes dos Oliveira Lêdo no Piancó e Piranhas. Os núcleos iniciais foram o Boqueirão a leste e Piranhas a oeste até que Oliveira Lêdo reuniu e sistematizou o esquema do povoamento pela fixação das tribos disseminadas.

Estrada de rodagem do Seridó, início da década de 1920

Durante muitos anos os pontos povoados do sertão paraibano não tiveram intercomunicação. Piancó conhecia a ligação com a Bahia, e Boqueirão, nos Cariris Velhos, com Pernambuco. Entre nós, já no século XIX, sucedia o mesmo. Mossoró ia para o Aracati e Caicó para Campina Grande. O sertão escapou secularmente à capital que vegetava, humilde e minúscula, junto ao Potengi. As ligações orientavam-se para Pernambuco e Paraíba, para as grandes feiras de gado, Igaraçu, Goiana, També (Pedra de Fogo), Itabaiana e depois Campina Grande. Daí a rede de estradas e variantes que sempre aglutinaram esses lugares e os articulavam às regiões do Seridó e sertão de Piranhas, ribeira da Panema, enquanto a zona do Mossoró se escoava para o Ceará pelo chapadão do Apodi. Com o desenvolvimento do Aracati passou este a dirigir Mossoró e Mossoró ao seu sertão na linde do Oeste.

Do Mossoró, a velha estrada ia a São Sebastião (Governador Dix-Sept Rosado), como presentemente a estrada de ferro, Jurumenha, perto de Caraúbas, Atoleiros, Piranhas, Mombaça, Boa Esperança (Demétrio Lemos, atual Antônio Martins) nos batentes da serra do Martins, Carnaúba, Barriguda (Alexandria), Tabuleiro Formoso onde se bipartia. Um ramal ia para o Catolé do Rocha e outro à cidade de Sousa, tocando em Santa Rosa. Em Sousa entroncava-se com a estrada-das-boiadas que era uma reminiscência das estradas de penetração povoadora. Daí a importância de Sousa, Cajazeiras e Pombal na formação comercial de uma zona do Rio Grande do Norte. Para lá, como depois para o Caicó, envia-se o menino aos estudos do latim e o passador-de-gado, afoito e lendário.

Antiga estação ferroviária de Demétrio Lemos, atual Antônio Masrtins – Foto – Rostand Medeiros

Sousa centralizava muito e uma sua estrada vinha morrer na antiga rota dos conquistadores de Natal. Partia de Sousa e atravessava sucessivamente Catolé, Belém, Amazonas, São Miguel (já em nossa província), Serra de Santana por Flores (hoje Florânia). Santa Cruz, centro de irradiação do Seridó depois de passar a serra do Doutor nas vizinhanças de Currais Novos, daí para Nova Cruz por Campestre (São José do Campestre) onde se via o caminho que levava à Paraíba ou Pernambuco por Mamanguape. Quando se criou o correio, Mamanguape era o ponto de intersecção entre Paraíba e Rio Grande do Norte. Aí o estafeta recebia a correspondência para Pernambuco e distribuía a carga entre as duas coterminas. A posição de Mamanguape explica a predileção dos grandes latifundiários por suas terras. Os Albuquerques Maranhões, da casa de Cunhaú, possuíam vários sítios e engenhos em Mamanguape.

Vaqueiros potiguares – Foto – Rostand Medeiros

A estrada-das-boiadas na Paraíba era muito mais seguida pelos vaqueiros norte-rio-grandenses que qualquer outra nossa. Ia-se por ela para o Piauí e o Piauí, de fins do século XVIII em diante, muito valia à nossa vida de pastorícia. Irineu Joffily reconstruiu-a e posso completá-la.

Do oeste do Espinharas, ribeira de Santa Rosa, Milagres, tocando depois na lagoa do Batalhão (Taperoá), seguia-se o rio, descendo a Borborema até Piranharas e daí a Patos, Piranhas (Pombal), Sousa, São João do Rio do Peixe (Um ramal recebia a contribuição de Cajazeiras) ia-se ao Ceará pelos Cariris Novos, Icó, Tauá, atingindo-se Crateús, inesquecível pelo encontro de centenas de vaqueiros que demandavam o Piauí. Outros preferiam acompanhar a vaqueirama divertida e pousar ali mesmo, mas eram em parte menor. A maioria furava, do Tauá, diretamente para o Piauí. De Crateús comprava-se a gadaria em Santo Antônio do Surubim de Campo Maior, núcleo influenciador de cantigas sobre o ciclo do gado, Valença, Oeiras, que fora capital até 1852, Jatobá (São João do Piauí) e Picos, fornecedor dos primeiros cavalos pampas, ornamentais e vistosos, orgulho do patriarcado rural no Rio Grande do Norte. uns vaqueiros arrastavam a jornada até São Gonçalo de Amarante e outros a Jerumenha. As maiores feiras eram nas localidades citadas.

Foto – Rostand Medeiros

Os norte-rio-grandenses do oeste iam via Ceará. De Tauá para Crateús e daí seguiam galgando a Ibiapaba para Campo Maior, ·banhado pelo rio Surubim ou, dos cearenses Arneiros e Cococi, alcançavam Valença no Piauí ou em diagonal para Picos.

Essa toponímia ficou registrada na cantiga velha. Desaparecida quase a estrada das boiadas, rara a viagem do vaqueiro, a poesia tradicional guardou os nomes dos lugares de outrora. Essa toada, verdadeira canção de marcha dos vaqueiros, recorda o percurso (!) de Campo Grande (Augusto Severo) no Rio Grande do· Norte até o ·Piauí, envolvendo dois perfis femininos, cuidados amorosos do vaqueiro cantador.

Como Xiquinha não tem

Como Totonha não há;

Xiquinha de Campo Grande

Totonha do Lagamá !

Xiquinha vale dez fio (filhos)

Totonha vale dez vó. . . (avós)

Xiquinha do COCOCl

Totonha do Arneiró …

Xiquinha prá querer bem

Totonha prá carinhá;

Xiquinha é de Crateús

Totonha é lá do Tauá

Xiquinha vale uma vila,

Totonha vale ela só;

Xiquinha nasceu nos Pico (Picos)

Totonha em Campo Maió …

Um ramal da estrada das boiadas ficou popularíssimo na “cantoria”. É o do Piancó, Misericórdia, Milagres (Ceará), Missão Velha, Crato, nos Cariris Novos. Do Mossoró viajava-se outrora, como atualmente, pelo araxá do Apodi (Pedra de Abelha, atual Felipe Guerra). Outras estradas partindo de Mossoró, iam rio acima até as cabeceiras do Apodi, Portalegre, Pau dos. Ferros, São Miguel e Luís Gomes. Uma variante de Pau dos Ferros, velhíssimo rancho de comboieiros e tangedores de gado, chega a Alexandria, antiga Barriguda e seguia para Tabuleiro Formoso, pegando o caminho paraibano. De Pau dos Perros a vizinhança cearense animava as visitas por Pereiro. Do Patu ia-se para Catolé do Rocha. Do Açu caminhava-se para Campo Grande (Triunfo, Augusto Severo), Martins, no pé da serra, onde se continuava em um dos ramos para a estrada das boiadas pela Ribeira do Rio do Peixe.

Foto – Rostand Medeiros

O inverno era mais cedo. Dizia tão certo como chuva em janeiro. No Piauí as águas vinham em novembro. Iam vaqueiros de toda parte comprar bois de carro e de corte e novilhos para reprodução e engorda. Voltava-se em fins de dezembro ou começos de janeiro, tocando, para aproveitar as babugens verdes e ralas que as chuvas faziam nascer.

As datas quase infalíveis criavam ponto de reunião para que a jornada fosse menos enfadonha e monótona. Especialmente ficavam juntos no regresso para o auxílio mútuo nas travessias sem água ou passagens difíceis nos rios e riachos, estouro de boiada e moléstias súbitas na gadaria. Essas estradas todas, como vimos, em pleno sertão, determinaram a necessidade das vendas, feiras rápidas de suprimento ligeiro e descanso ao longo da rota. Fizeram casas. As fazendas se aproximaram. Ergueram a capela. Foi vila e muitas são sedes municipais.

Para o sul do Rio Grande do Norte a viagem continuava margeando. As praias, caminho feito por Nosso Senhor. Assim voltou, agonizante, Pêro Coelho de Sousa, em 1605, passando Amargosa e Guamaré na costa de Macau.

Capela de Nossa Senhora das Candeias, no Engenho Cunhaú, município de Canguaretama, no litoral sul potiguar, onde aconteceu o Massacre de Cunhaú em 16 de julho de 1645 – Foto – https://joaobosco.wordpress.com/2007/09/22/onde-esta-a-verdade-sobre-o-masacre-de-cunhau/

Em 1810 Henry Koster fez sua excursão ao Ceará partindo do Recife, por Goiana, Espírito Santo, Mamanguape (Paraíba), Cunhaú (Rio Grande do Norte), Papari (Nísia Floresta), São José de Mipibu, Natal, Açu, Santa Luzia (Mossoró), praia do Tibau, Aracati (Ceará) e Fortaleza.

Quando o bispo de Pernambuco, Dom João da Purificação Marques Perdigão, visitou o Rio Grande do Norte em 1839, vinha do Ceará. Penetrou pelo Apodi, descansando em “Sabe Muito”, nos arredores da cidade de Caraúbas, dormindo no então povoado; almoçou em Coroas, perto da vila de Campo Grande (Augusto Severo), alcançando o Açu. Atravessou Santa Quitéria, depois Patachoca (Pataxó), vila dos Angicos e pelo seu Itinerário sabemos que o prelado veio por São Romão (Fernando Pedrosa), Santa Cruz, ambas estações da Estrada de Ferro Sampaio Correia, Riacho Fechado, Várzea dos Bois, Umari, Boa Água, Ladeira Grande, Taipu do Meio (sede municipal), Capela, no vale do Ceará-Mirim e Extremoz. É a travessia do poente ao nascente, oeste-leste. De Natal, Dom João partiu para a Paraíba repetindo quase o trajeto de Mascarenhas Homem no percurso de regresso em 1598. Natal, São Gonçalo, São José de Mipibu, Papari, Arez, Goianinha, Vila Flor, Tamanduba, Comatanduba (Paraíba), Mamanguape. É a descida norte-sul.

Pelos caminhos do sertão potiguar – Foto – Rostand Medeiros.

No interior as primitivas e grandes vias de povoamento e penetração foram as margens dos álveos dos rios Piranhas e Apodi-Mossoró. A oeste a chapada do Apodi com o rush cearense. A linha Natal-Macau estirão solitário de areias inúteis, com água rara, esteve despovoado, afora os breves oásis de coqueirais plantados na segunda metade do século XVIII em diante e que abrigaram povoações de pescadores, Genipabu (estrema do mapa de Marcgrav). Pitangui, Jacumã, Muriú, Maxaranguape, Caraúbas, Maracajaú, Touros, Olhos d’Agua, Santo Cristo, Reduto, Caiçara, Galinhos; Diogo Lopes, etc.

FORTES CHUVAS EM NATAL – UM VELHO PROBLEMA!

Fonte - http://terradaxelita.blogspot.com.br/
Fonte – http://terradaxelita.blogspot.com.br/

Rostand Medeiros

Entre a última quinta feira (12/06/2014) até o dia de hoje Natal sofreu fortes pancadas de chuvas, com graves prejuízos por toda cidade e desabrigados em algumas áreas. Temos um grande número de crateras abertas, quedas de barreiras, bueiros estourados, casas alagadas e ruas interditadas pelo carreamento de terra. Segundo o jornal Tribuna do Norte equipes de professores da UFRN, da Defesa Civil de Natal e demais secretarias municipais visitaram as áreas de risco, pontos de alagamentos, além de equipamentos como escolas, creches e ginásios que poderão ser usados como abrigos e pontos de apoio. O desastre é notícia até nos órgãos de imprensa dos grandes centros do país.

Um verdadeiro caos! Mas também um fato antigo e extremamente previsível!

Há 102 anos, no dia 17 de abril de 1912, sem nenhuma mentira, o jornal carioca “Correio da Manhã” trazia a notícia “As chuvas em Natal”, que abaixo reproduzo.

Chuvas (2)

E foi um grande toró!

Em meio a notícias do afundamento do transatlântico Titanic, troca de acusações entre os partidários do governador Alberto Maranhão e a sua oposição, os jornais locais noticiavam os estragos em uma cidade que tinha pouco mais de 20.000 habitantes. A atual Avenida Câmara Cascudo, antiga Junqueira Aires (E anteriormente Rua da Cruz), se transformou “Em um rio de lama”.

Antiga Avenida Junqueira Aires em meio a chuva no início do século XX
Antiga Avenida Junqueira Aires em meio a chuva no início do século XX

Casebres desabaram, ruas ficaram esburacadas e a circulação ficou comprometida. Não foi divulgado o nível de prejuízos econômicos, mas as notícias de chuvas em 1912 se repetem desde março a maio daquele ano. Foi até notícia em jornais do Rio.

Naquele tempo as dificuldades de transporte e comunicação eram muitas e o apoio aos que sofriam com enchentes eram limitados. Mas em contrapartida a população era pequena e se vivia mais na zona rural. Se atualmente a repercussão nos nossos jornais é focada nos grandes estragos provocados em Natal, há 102 anos, certamente pelo ainda diminuto tamanho da cidade, não havia tanto detalhamento sobre os estragos na capital. Podemos ver que em meio às notas sobre transtornos em Natal havia muita satisfação com as chuvas que ocorriam no interior, mesmo que estas ocasionassem destruições, como ocorreu no vale do Rio Ceará-Mirim em 1912.

Chuvas (4)

Hoje as comunicações e transportes são francos, com recursos muito melhores para apoiar aqueles que sofrem com enchentes. Isso em meio a um grande aumento populacional nas zonas urbanas. Apesar da imprevisibilidade da quantidade de chuvas que podem cair na nossa região, sabemos a época que elas chegam e as áreas onde ocorrem mais estragos. Mas a repetição de notícias sobre estragos, desabrigados, ocorrência de problemas nas vias públicas incomoda bastante. Principalmente para os que sofrem na pele este tipo de problema.

Diante do caos é sempre um bom momento para pensarmos mais sobre a nossa desprezada cidade. É nestas horas que podemos fazer uma melhor reflexão sobre o lugar que vivemos e ser cobrado dos governantes ações mais efetivas em favor de uma melhor infraestrutura para Natal, um maior cuidado com o nosso meio ambiente e que eles possam melhor planejar o futuro da capital potiguar.

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