A BATALHA DO CASARÃO DOS PATOS

Um episódio da (quase) esquecida Guerra de Princesa, na Paraíba

Autor – Rostand Medeiros

Ao longo da história da região Nordeste do Brasil, não faltam ocorrências que perpetuam a valentia de alguns e a covardia de muitos. Onde muitas histórias são regadas a sangue, com muitos tiros, correrias e tropelias.

Em toda a região os relatos sobre estes fatos são continuamente passados as novas gerações, muitas vezes através da tradição oral, do folheto de cordel, sendo depois documentados em livros, servindo então de temas para teses acadêmicas, que contestam ou corroboram os fatos. Outras vezes o espectro é ampliado e estas sagas chegam ao teatro, a televisão e ao cinema. Mas a tônica é uma só; estes episódios são sempre conhecidos e repetidos pela região.

Localização de Patos do Irerê e Princesa Isabel no mapa da Paraíba, onde está o casarão

Neste sentido, é de se estranhar que atualmente na região ocorra um acentuado desconhecimento e uma estranha falta de informações sobre o conflito deflagrado no ano de 1930, na região da atual cidade paraibana de Princesa Isabel, próximo à fronteira com Pernambuco e conhecido como a “Guerra ou Sedição de Princesa”.

Um Cruel Momento da História Paraibana

Esta guerra (e não a nenhum exagero de assim chamá-la) foi pródiga de episódios interessantes e cruéis, onde tudo começou através de discórdias políticas e econômicas, envolvendo poderosos coronéis do interior do estado e o governador eleito da Paraíba em 1927, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque.

Governador João Pessoa

João Pessoa discordava da forma como o grupo político que o elegera conduzia a política paraibana, onde era valorizado o grande latifundiário de terras do interior, possuidores de grandes riquezas baseadas no cultivo do algodão e na pecuária. Estes “coronéis” atuavam através de uma estrutura política arcaica, que se valia entre outras coisas do mandonismo, da utilização de grupo de jagunços armados, da conivência com grupos de cangaceiros e outras ações as quais o novo governador não concordava.

Entre os embates ocorridos, podemos listar uma maior perseguição do governo estadual aos grupos de cangaceiros e a cobrança de taxas de exportação do algodão. Por esta época, os coronéis exportavam o produto principalmente através do principal porto de Pernambuco, em Recife, provocando enormes perdas de divisas tributárias para a Paraíba. Procurando evitar esta sangria financeira e efetivamente cobrar os coronéis, João Pessoa implantou diversos postos de fiscalização nas fronteiras da Paraíba, irritando de tal forma estes caudilhos, que pejorativamente passaram a chamar o governador de “João Cancela”.

O coronel José Pereira

Os embates políticos entre o governador e os coronéis foram crescendo. A maior liderança entre estes poderosos, sem dúvida foi o coronel José Pereira Lima, verdadeiro imperador da região oeste da Paraíba, na área da fronteira com Pernambuco, tendo como base, a cidade de Princesa. Do embate entre estes dois homens resultou em um dos maiores conflitos armados do Brasil Republicano.

Sertão em Armas

A contenda teve início em 28 de fevereiro de 1930, quando ocorreu a invasão da então vila do Teixeira (PB), por parte da polícia paraibana, com o aprisionamento da família Dantas, ligada por profundos laços de parentescos e interesses ao coronel José Pereira.

Apesar de governador João Pessoa não contar com o apoio do Palácio do Catete, onde o titular, Washington Luís, não viabilizou uma efetiva ajuda as forças policiais paraibanas, o mandatário paraibano foi à luta.

José Pereira e seus comandados durante a Guerra de Princesa

Com o apoio discreto, mas efetivo, do Presidente da República e dos governadores de Pernambuco, Estácio de Albuquerque Coimbra, e do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine de Faria, o coronel José Pereira decidiu criar o “Território Livre de Princesa” com absoluta autonomia, separando-se durante o período do conflito do restante do estado da Paraíba.

Princesa se tornou uma fortaleza inexpugnável, resistindo palmo a palmo ao assédio das milícias leais ao governador João Pessoa. O exército particular do coronel José Pereira era estimado em mais de 1.800 combatentes, onde diversos desses lutadores eram egressos das hostes do cangaço e muitos eram desertores da própria polícia paraibana.

No lado do presidente João Pessoa, suas tropas estavam sob o comando do Coronel Comandante da Polícia Militar da Paraíba, Elísio Sobreira, do então Delegado Geral do Estado, Severino Procópio, e do Secretário de Interior e Justiça, José Américo de Almeida. Na tentativa de desbaratar os sediciosos de Princesa, estes comandantes dividiram os efetivos policiais, compostos por cerca de 890 homens, em colunas volantes.

Como a guerra era vista no Rio de Janeiro

No povoado de Olho D’Água, então pertencente ao município de Piancó (PB), estava aquartelado o comando geral de operações da polícia paraibana, que decidiu enviar à Princesa uma de suas colunas volantes, conhecida como “Coluna Oeste”. Esta coluna era comandada pelo Tenente Raimundo Nonato, que tinha entre seus principais comandados o valente sargento Clementino Furtado, mais conhecido como Clementino Quelé, ou “Tamanduá Vermelho” (por ser branco e ficar “avermelhado” quando nervoso).

Clementino Quelé

Quelé era a valentia em pessoa, calejado nas lutas do sertão, podia se vangloriar de possuir no seu “currículo”, mais de vinte combates contra Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Foi a volante de policiais comandadas por Quelé, a primeira a entrar em Mossoró, em 13 de junho de 1927, perseguindo Lampião e seu bando, logo após este ter tentado invadir esta importante cidade potiguar.

Composta de valentes combatentes foi para a “Coluna Oeste”  que o comando designou uma missão especial.

Marcolino Diniz na época da Guerra de Princesa

Em Princesa, entre um dos mais importantes líderes das tropas locais estava o fazendeiro Marçal Florentino Diniz, poderoso e influente agropecuarista da região, que juntamente com seu filho, Marcolino Pereira Diniz, eram parentes e pessoas da inteira confiança do coronel José Pereira. O coronel Marçal Diniz possuía no então distrito de Patos de Princesa, a 18 quilômetros da cidade, uma fazenda localizada no sopé da grande serra do Pau Ferrado, o segundo ponto mais elevado da Paraíba, com cota máxima em torno de 1.120 metros de altitude e foi para esta fazenda que o comando da polícia paraibana ordenou que Clementino Quelé atacasse a casa grande do poderoso coronel.

O Assalto de Quelé

Este episódio é conhecido na região como o “Fogo ou Batalha do Casarão dos Patos”.

A ideia deste ataque visava dividir as forças do coronel José Pereira, que teria de retirar homens da frente de combate de Teixeira, para socorrer os familiares da família Diniz que estavam no casarão, bem como formar com as reféns uma espécie de cordão de isolamento, um escudo humano, que objetivava garantir a segurança dos militares. Pensavam que, agindo assim, nenhum defensor de Princesa ousaria atirar nos combatentes do governo paraibano.

A imprensa oficial potiguar e o próprio governo de Juvenal Lamartine eram contra João Pessoa e a favor de José Pereira

Outra teoria seria a de levar as mulheres como prisioneiras, ou reféns, para a cidade de Paraíba do Norte (atual João Pessoa) e forçar os comandantes de Princesa a alguma espécie de negociação.

No dia do ataque, 22 de março de 1930, Quelé e seus policiais, em número estimado entre sessenta para alguns, e entre setenta a cem homens para outros, seguiram atravessando a zona urbana da pequena vila de Alagoa Nova (atual MANAÍRA-PB) e daí subiram a grande Serra do Pau Ferrado. Ao passarem pela propriedade de Antônio Né, pessoa ligada à família Diniz, no homônimo Sítio Pau Ferrado, assassinaram um cidadão por nome Silvino, depois, desceram a serra.

Dona Xandu, imortalizada pelo grande Luís Gonzaga na música “Xandusinha”

Não havia muitos defensores pertencentes aos grupos do coronel José Pereira, ou de Marcolino Diniz e a força policial de Quelé ocupa o local sem maior oposição. Na casa estavam entre outras pessoas, às mulheres de Marcolino Diniz, Alexandrina Diniz (também conhecida como Dona Xandu, ou Xanduzinha) e a de Luís do Triângulo, Dona Mitonha. Luís do Triângulo era um dos mais valentes e destacados chefes dos combatentes de José Pereira.

Neste interregno, o grupo de combate comandando por Marcolino encontrou um soldado da polícia de nome Zeferino, o qual seguia com uma mensagem do Sargento Quelé ao Delegado Geral do Estado, Severino Procópio, informando da ação contra o casarão.

O Casarão em 2006

José Pereira e Marcolino Diniz recebem a notícia da prisão de seus familiares. Eles tomam esta ação como um acinte, uma falta de respeito e preparam o contra ataque. Ordenam que uma parte de suas tropas que combatiam as forças policiais do governador João Pessoa na região de Tavares, se deslocasse para Patos de Princesa e ordenam que os homens levem farta munição. Outros combatentes conclamam moradores da região para o ataque, enaltecendo a covardia de Quelé, que usava mulheres como escudos. Este chamamento dos líderes de Princesa e de seus homens encontra eco entre membros das comunidades de Princesa e Alagoa Nova e estes decidem seguir com o grupo que vai retomar o “Casarão dos Patos”.

A Batalha Pela Reconquista do Casarão

Na noite do segundo dia após o bem sucedido ataque de Quelé, a situação permanece inalterada. Segundo relatos dos reféns, os soldados, com raras exceções, se portaram de forma vândala e arrogante durante a ocupação.

Na minha última visita a casa já praticamente coberta pelo mato

Enquanto isso os combatentes de Princesa vão discretamente fechando o cerco ao casarão. Aparentemente, por falta de comunicação com seus comandantes, Quelé não abandonou a posição e levou seus prisioneiros. Outros acreditam que ele logo percebeu que estava cercado e esperou o inevitável.

O certo é que na manhã do terceiro dia de ocupação, o céu se apresentava nublado, os defensores do casarão estavam tranquilos, apesar da tensão existente na região. Alguns esperavam o café, outros até jogavam uma improvisada partida de futebol (possivelmente com uma bola de meia), no pátio defronte a casa. É quando o primeiro tiro é detonado em um soldado que vinha do Sítio Pedra e trazia um carneiro para abate, aí tem início um inferno no “Casarão dos Patos”.

A polícia estava cercada na casa, se defendendo como podia, o sargento Quelé vai animando seus policiais em meio a uma intensa troca de tiros e insultos entre as forças combatentes.

Lateral do casarão, mostrando a construção maciça

Marcolino Diniz, à frente dos seus homens, está com o “cão no couro”, comandando, disparando e mandando buscar cachaça nas bodegas da pequena vila de Patos de Princesa para “esquentar” seus “cabras”. Esta cachaça era trazida em sacos, distribuída francamente entre seus combatentes. Até hoje se comenta na região como os distribuidores da bebida terminaram os combates totalmente embriagados e sem dispararem um só tiro.

O tiroteio é cerrado. Colocar a cabeça muito exposta nas janelas do casarão é motivo para que algum policial se torne um alvo fácil. Já os homens de Diniz continuam disparando sem cessar. Eles estão espalhados em todo o perímetro, protegidos por árvores, pedras, pelos muros e paredes das poucas casas vizinhas.

O combate prolongou-se até às dezesseis horas do mesmo dia, quando a polícia praticamente estava sem munição e seus disparos tornam-se esparsos. É quando os homens de Marcolino, aproveitando uma forte chuva que desabava e a existência de um canavial nas imediações do casarão, partem para o assalto final.

Sótão do casarão. Neste local, segundo os moradores da região, vários soldados paraibanos foram mortos. Até algum tempo atrás ainda haviam marcas de sangue nas paredes

Durante a invasão é travado um forte combate corpo a corpo em cada uma das dependências da casa. Gritos, pancadas, socos, pontapés, dentadas, tiros, facadas e sons de lutas ocupam o ambiente. Os homens de Quelé procuram à fuga, mas estando o casarão cercado, muitos são abatidos impiedosamente pelos combatentes de Marcolino.

Alguns policiais fugiam feridos ou não, pelo mesmo canavial que serviu de abrigo para os atacantes e de lá seguiam para a serra do Pau Ferrado. Nesta fuga, muitos combatentes se cruzavam, às vezes cara a cara, dentro do canavial e tiros ou facadas eram desferidas a curta distância.

O mato é tanto, que só derrubando algumas plantas para entrar no local

Marcolino, atiçado pela bebida e já dentro do casarão, prometia aos gritos “vou sangrar todo mundo, até Xandu” que no seu entendimento de valentão do sertão, com um pensamento extremamente machista, imaginava que a sua mulher já havia sido estuprada e aí só “sangrando para limpar o corpo”. Mas Xandu e as outras mulheres estavam bem e foram preservadas por Quelé e seus homens. Todas estavam em um quarto, acompanhadas de um soldado ferido na perna, que conseguira desarmar uma bomba (ou granada?), que o sargento Quelé colocara no recinto. O soldado salvou a vida das reféns, sendo igualmente salvo pelas mulheres de ser impiedosamente sangrado por Marcolino e seus “cabras”.

Marcas do passado

Após isto, Marcolino e seus homens seguiram pelos vários recintos do “Casarão dos Patos”, chacinando os policiais que não fugiram. Dos militares que lá dentro se encontravam, não sobrou nenhum vivo, pois até o soldado que havia salvado as mulheres, morreu no mesmo dia, devido aos ferimentos, quando era transportado para a vizinha cidade pernambucana de Triunfo.

Marcas Sangrentas

Segundo relatos dos moradores da região, havia até recentemente, em alguns quartos da casa, registros de mãos ensanguentadas nas paredes, mostrando a agonia deste dia terrível.

Um esquecido oratório dentro do casarão

Quanto a Quelé, vendo-se acossado pelos homens de Marcolino e escutando o próprio caudilho dos Patos de Princesa gritando dentro do casarão que “queria pegar Clementino e matá-lo sangrado”, pulou do andar superior, juntamente com dois soldados e juntos fugiram em direção ao canavial. Já era noite quando conseguiram chegar à serra do Pau Ferrado, depois seguem para Alagoa Nova e ao encontro das forças de João Pessoa. O restante dos militares que escapou com vida embrenhou-se em território pernambucano.

Uma dispensa aberta na parede, para guardar mantimentos

Das forças de José Pereira e Marcolino Diniz houve apenas uma baixa, um senhor de nome Sinhô Salviano, possivelmente sob efeito da cachaça, desprezou as ordens e ficou sob a mira dos soldados. Para alguns pesquisadores, as forças paraibanas perderam mais da metade do efetivo, mas segundo os relatos que se perpetuam na região, contados por aqueles que participaram do conflito e transmitidos para seus descendentes, foram mortos em torno de cinquenta policiais, sendo seus corpos enterrados em uma vala comum nas proximidades do casarão. Os equipamentos bélicos dos policiais mortos foram recolhidos pelos combatentes de Princesa para reforço de arsenal.

Fato comum; morador da região com um cartucho de fuzil Mauser intacto, encontrado ao arar o terreno próximo ao casarão.

Final da Guerra de Princesa

Houve outros episódios sangrentos e terríveis na Guerra de Princesa, mas após a morte, em Recife, do governador João Pessoa e a consequente eclosão da Revolução de 30, o conflito em Princesa acabou, era o dia 26 de julho de 1930.

O coronel José Pereira Lima organizou a defesa dos seus domínios de forma impressionante, provocando baixas estrondosas à força pública paraibana durante os quatro meses e vinte e oito dias que durou sua resistência.

A partir de um caminhão foi desenvolvido em Campina Grande um veículo blindado para combater os revoltosos de Princesa

Princesa não foi conquistada pela polícia paraibana. Após a eclosão da Revolução de 30, tropas do exército, de forma tranquila, ocuparam a cidade.

O coronel José Pereira e muitos dos que lutaram com ele fugiram da região e a família Diniz se retraiu diante do novo sistema governamental imposto. O tempo dos caudilhos do sertão estava chegando ao fim, pelo menos naquele formato utilizado por José Pereira.

Com o fim da guerra, a fortuna da família Diniz ficou seriamente comprometida. O combate e, principalmente, a ira dos soldados, destruiu tudo. Canaviais, engenhos de rapadura, moendas, casas e outros bens foram alvo da vingança dos fardados, quase nada escapou.

Depois da Guerra

Mesmo com as perseguições sofridas após o fim da guerra, todos os anos Marcolino Diniz e sua gente, comemoravam o aniversário da retomada do casarão com muita festa.

Marcolino Diniz próximo a sua morte

Marcolino sempre foi um homem controverso, valente, prepotente, astuto e sagaz. Era proprietário das fazendas Saco dos Caçulas e Manga, onde diversas vezes Lampião descansava dos combates. Esta polêmica amizade entre Marcolino e Lampião é bem retratada em um episódio; em 30 de dezembro de 1923, Marcolino, juntamente com seu guarda-costas conhecido por “Tocha”, por conta de uma briga, matam o então magistrado da cidade de Triunfo (PE), o Dr. Ulisses Wanderley. Marcolino fica ferido e é feito prisioneiro na cadeia pública local. Seu pai, o coronel Marçal, recorreu aos préstimos do cangaceiro a fim de libertar o filho. Não demora muito e um grupo armado, com um número de homens estimado em torno de 100 a 150 homens, retira tranquilamente o prisioneiro ferido da cadeia.

Igreja de Patos do Irerê, onde está enterrado Marcolino Diniz

Marcolino e a sua adorável Xandu, continuaram unidos até a morte, tendo seu amor sido imortalizado em 1950, por Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, com a música “Xanduzinha”. Marcolino nasceu em 10 de agosto de 1894 e faleceu em Irerê, em 21 de dezembro de 1980, com 86 anos, conforme está inscrito em sua lapide, na igreja deste atraente lugarejo.

Casa de Marcolino e Xandu em Patos do Irerê

Já o sargento Clementino Quelé sobreviveu à Guerra de Princesa e ainda teria fôlego para perseguir, no ano de 1936, o bando do cangaceiro Virgínio Fortunato da Silva. Conhecido como “Moderno”, foi cunhado de Lampião, homem de sua mais alta confiança, que neste ano investiu contra a região conhecida como “Tigre paraibano”, atacando várias fazendas na área próxima a cidade de Monteiro. Quelé, possivelmente pelo analfabetismo, nunca passou da patente de sargento, tendo morrido idoso na cidade paraibana de Prata. Coincidentemente, Quelé também foi lembrado em uma música de Luís Gonzaga intitulada “No Piancó”.

Quem visita atualmente a antiga Patos de Princesa, atual Irerê, município de São José de Princesa, com suas casas antigas e bem preservadas, nem imagina que o carcomido e arruinado casarão existente no fim da rua principal, foi palco de tamanho conflito.

O grande amigo Antônio Antas apontando a área onde o pessoal de Princesa atacou as tropas de Quelé. Uma verdadeira memória viva da região

Mesmo em ruínas, o casarão impressiona pela imponência da sua estrutura, pela grandiosidade da sua construção. Nele existe um andar superior, com dois sótãos independentes, vários quartos e dependências, sendo um exemplo do poder emanado pelos coronéis da região. Em meio ao silêncio atual, se o visitante puxar pela imaginação, é possível ouvir os sons da batalha ali ocorrida no longínquo ano de 1930.

Nota – Especificamente sobre o “Fogo do Casarão dos Patos”, utilizo principalmente as lembranças de várias pessoas que vivem na região de Princesa Isabel, Irerê e Manaíra. Sendo as informações do senhor Antônio Antas Dias, residente na cidade de Manaíra, as narrativas mais utilizadas. Este senhor comentou sobre este momento histórico, em uma entrevista concedida no dia 14 de agosto de 2006. O Sr. Antônio Antas tinha 61 anos na época da entrevista, onde as informações que ele prestou lhe foram transmitidas principalmente por Marcolino Diniz, de quem era parente, pelo guarda costas deste último, Manoel “Ronco Grosso” Lopes, por José Florentino Dias, seu pai, e pelo senhor Sebastião Martins, morador do atual distrito de Irerê.

Igualmente utilizei os trabalhos do amigo e professor de geografia José Romero Araújo Cardoso, lotado na UERN-Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em Mossoró. Estes artigos são “Marcolino Pereira Diniz e Xanduzinha: Imortalizados através da arte de Luiz “Lua” Gonzaga”, no link –

http://www.turismosertanejo.com.br/?target=artigos&id=69

Outro Trabalho do professor Romero, ao qual utilizei material para a confecção deste artigo, foi uma série de interessantes entrevistas realizadas entre 1989 e 1991, com diversas testemunhas sobre episódios do cangaço e da Guerra de Princesa, que está inserido no link –http://www.marcoslacerdapb.hpg.ig.com.br/romero/cangaco.htm

 – Este artigo já havia sido anteriormente publicado e reproduzido em sites de vários de amigos por este Nordeste afora, que colocam a devida referência em relação ao autor e vários outros sites que nem se preocupam com isso. Mas decidi colocar o meu próprio blog, com novas fotos para quem gosta destas antigas histórias do nosso sertão.

Um detalhe importante. Já faz um tempo que não vou por lá, nem sei se o casarão está mais de pé, mas se tiver, visite enquanto é tempo.

 Um abraço a todos

 Rostand 

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1933 – UMA ENTREVISTA DO HOMEM QUE “PROMOVEU” LAMPIÃO

A história da famosa promoção a capitão do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, ocorrida em Juazeiro, no ano de 1926, é de conhecimento de todos e um tema já bastante divulgado. Sobre o homem que realizou este procedimento, o pernambucano Pedro de Albuquerque Uchôa, muito já foi igualmente comentado.

Quem primeiro trouxe a história da patente e a figura de Uchôa ao conhecimento geral foi o cearense Leonardo Mota (1891-1947), no seu livro “No tempo de Lampião”. Lançado em 1930, a entrevista transcrita de Uchôa colocou este funcionário público no centro das atenções.

Três anos após o lançamento do livro de Mota e sete anos depois deste acontecimento “burocrático-cangaceirístico”, Uchôa teceu mais alguns interessantes comentários relativos a este pitoresco episódio da trajetória do Rei do Cangaço.

Matéria com Uchôa.

Através da reprodução das páginas de um vespertino carioca, apresentadas na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, de sexta-feira, 29 de setembro de 1933, vamos encontrar o funcionário público Uchôa, aparentemente vivendo na antiga Capital Federal. Pela descrição no jornal, tudo indica que ele não era mais um membro dos quadros do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Era apresentado pelo jornal como funcionário da “Secretaria do Tribunal”, sem especificar se era um tribunal ligado a justiça Estadual ou Federal.

O jornalista que realizou a entrevista informa que se espantou ao descobrir que estava diante do homem que forçadamente provocou uma interessante querela burocrática e o mesmo, em nenhum momento da entrevista, negou o seu ”feito”.

“- Fui eu mesmo, quando estava no Juazeiro, Ceará”. Afirmou Uchôa.

Pedro de Albuquerque Uchôa. Fonte-2ºSgt Narciso.

Mas como tudo ocorreu.

Para reavivar a memória de todos, recorro ao excelente livro “Padre Cícero-Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de autoria do jornalista e escritor cearense Lira Neto, que no capítulo 11, páginas 463 a 482, traça detalhadamente os episódios que culminaram na criação da patente de capitão para Lampião.

No ano de 1925, o então presidente da República Arthur Bernardes idealizou um plano para derrotar os componentes de uma coluna de oficiais rebelados do Exército Brasileiro, que percorriam os sertões na esperança de insuflar a massa com o seu exemplo de luta, derrubar o presidente e alterar a ordem vigente na nação. Comandados por Luís Carlos Prestes, Isidoro dias Lopes, Siqueira Campos, eram conhecidos na época como Revoltosos.

Floro Bartolomeu

Eles estavam no início de 1926 adentrando o Ceará, vindos do Piauí. O presidente da República convoca Floro Bartolomeu da Costa para organizar a resistência aos rebelados no Ceará. Floro era um médico baiano, que vivia em Juazeiro, era deputado federal, muito ligado ao Padre Cícero Romão Batista e que em 1914 havia organizado um movimento sedicioso que culminou com a derrubada do então governador cearense, Franco Rabelo. Parecia o homem certo para a função.

Floro Bartolomeu e Padre Cícero.

Floro procura o Padre Cícero, carismático prefeito e religioso de Juazeiro, e, com uma dinheirama vinda do Rio de janeiro, organizam os chamados Batalhões Patrióticos. Eram mais de mil homens com uniformes de brim azul-celeste e munidos de modernos fuzis privativos das forças armadas. Foram passados em revista pelo Padre Cícero em 9 de janeiro de 1926 e saíram ao encalço dos revoltosos.

Mas a caçada não deu certo. Afeitos as táticas de guerrilhas e ao constante movimento da tropa pelo sertão, os revoltosos conseguiram driblar os membros dos Batalhões Patrióticos e seguiram atravessando o Ceará.

Batalhão Patriótico em Juazeiro.

Desesperado, o Floro pede mais dinheiro ao governo e amplia a já amalucada ideia de Arthur Bernardes. Ele envia um portador com uma carta do padre destinada a ninguém menos que Virgulino Ferreira da Silva, o famigerado Lampião. Ele estava sendo convocado para uma “Guerra Santa”.

No início desconfiado, Lampião acabou aceitando o convite do seu “Padim Ciço”, o homem a quem ele devotava confiança cega e que aparentemente,  protegia os seus familiares há algum tempo de vinganças.

Virgulino partiu para o Juazeiro.

Lira Neto foi muito feliz ao colocar uma frase que exemplifica esta parte desta história; “Deus e o Diabo iriam se encontrar na Terra do Sol”.

Mudanças no Meio do caminho

Enquanto Lampião seguia para a “Meca do sertão”, os Revoltosos driblavam os Batalhões Patrióticos e seguiam seu caminho de lutas sem nem chegar perto de Fortaleza, ou de Juazeiro, grande temor do Padre Cícero. Neste meio tempo Floro Bartolomeu adoeceu fortemente de sintomas ligados a sífilis e deixou a “frente de combate”.

Coluna Prestes.

Logo a coluna de Revoltosos, que entraria para a história do Brasil como Coluna Prestes, passou pelo Rio Grande do Norte (Cidades de São Miguel e Luís Gomes) e seguiu para a Paraíba. Floro Bartolomeu por sua vez rumou para Fortaleza e depois foi de navio para o Rio de janeiro, onde morreria em pouco tempo.

Tudo parecia indicar que a tempestade havia passado, mas uma nuvem negra, em formato de um chapéu de couro com a testeira quebrada, se aproximava de Juazeiro.

O perigo dos Revoltosos poderia ter até passado, mas Lampião vinha cobrar a sua conta para poder “cumprir seu dever cívico”.

Juazeiro na época do Padre Cícero. Fonte – http://www.skyscrapercity.com

A princípio o chefe da guarnição policial de Juazeiro pensou em oferecer resistência, mas Padre Cícero não podia aceitar esta situação. Afinal o homem era um convidado e deveria ser bem recebido. Durantes três dias de um final de semana memorável para a cidade de Juazeiro, Lampião e seus homens aproveitaram ao máximo da principal urbe do interior do Ceará.

Na noite de 4 de março de 1926, ocorreu o famoso encontro de duas das mais míticas figuras já produzidas no Nordeste do Brasil.

É nessa hora que entra em cena Pedro de Albuquerque Uchôa.

Encontro Memorável

Voltando a reportagem reproduzida sete anos após os fatos, Uchôa comenta que ainda na época em que vivia em Juazeiro, era “muito amigo” do líder político e religioso da cidade. Afirmou que mantinha uma boa relação com o religioso, a ponto de todo dia o Padre Cícero ir tirar um cochilo na sua casa ao meio dia. Nestas horas a casa de Uchôa ficava cheia de romeiros que vinham pedir a benção ao velho padre.

Lampião e seu irmão Antônio Ferreira.

Sobre os acontecimentos de 4 de março de 1926, Uchôa não narra o que aconteceu antes da chegada de Lampião, mas informa que nesta noite foi acordado por dois “jagunços”, em um sobradinho onde morava com seu contraparente, o cantador João Mendes de Oliveira.

Os homens intimaram o funcionário público, afirmando autoritariamente que “-Meu padrinho está chamando o Senhor com urgência”. Uchôa não perdeu tempo e foi logo a casa do Padre Cícero.

Segundo sua narrativa, estes dois homens portavam fuzis a tiracolo, estavam encourados e cheios de “medalhas”. As medalhas no caso, certamente seriam imagens de santos penduradas no peito. Ao escritor Leonardo Mota, Uchôa afirmou que estes homens eram Sabino Gomes e o irmão de Lampião, Antônio Ferreira.

Ao chegar a residência do líder de Juazeiro, o Padre Cícero lhe apresentou Lampião e disse, conforme está reproduzido no velho jornal sergipano de 1933.

“- Aqui está o capitão Virgulino Ferreira. Ele não é mais bandido. Veio com cinquenta e dois homens para combater os revoltosos e vai ser promovido a capitão. Olhe, o senhor vai fazer a patente de capitão do Sr. Virgulino Ferreira e a de tenente do seu irmão”.

Evidentemente que Uchôa ficou pasmo, “perplexo” em suas palavras.

Fiquei imaginando a cara do pobre coitado do funcionário do Ministério da Agricultura, acordado no meio da noite com esta bomba na mão. Ele ainda tentou argumentar que não podia, mas um dos irmãos de Lampião ponderou na hora.

“- Não, se meu padrinho está mandando o senhor pode”.

O Padre Cícero lhe colocou na condição de “mais alta autoridade federal de Juazeiro” e aí não teve jeito. Com o carismático prefeito ditando os documentos, foram “lavradas” as designações de patente.

Padre Cícero em sua mesa de trabalho.

Segundo Uchôa comentou ao repórter, parte dos termos do documento referente a patente de Lampião foram; “Pelo Governo Federal era concedido a Virgulino Ferreira a patente de capitão do Exército, por serviços prestados a República”.

Depois o Padre Cícero foi categórico e ordenou a Uchôa um curto “assine”. Ele colocou a sua firma no controverso documento.

Interessante é que em nenhum momento na reportagem, Uchôa pronuncia que concedeu uma patente a um dos mais cruéis e sanguinolentos bandidos de Lampião, o famigerado Sabino.

Após os “trâmites burocráticos”, Uchôa afirma que presenciou o temível Lampião, todo equipado, se ajoelhar reverentemente e beijar emocionado a batina do Padre Cícero. Lampião informou ao Padre que se comprometia a “proceder bem”…..

Uchoa informou ainda que após o encontro destas duas figuras, Lampião e seus homens receberam suas armas, munições e partiram no meio da noite.

Se assim foi, este foi o último ato da visita de Lampião e seu bando a Juazeiro.

Um Simples “ajudante de inspetor agrícola”?

A Leonardo Mota, o funcionário público Uchôa afirmou que ao retornar para a sua casa, por volta das onze da noite, tentou argumentar com Sabino e Antônio Ferreira que aquele documento não valia nada e que ele “não passava de um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”. Ao que o irmão do cangaceiro-mor do Brasil respondeu secamente que “-Se o padre dissera que era ele que devia assinar a patente, era porque era ele mesmo”. Uchôa se calou.

O escritor Leonardo Mota.

Ao ler em Mota, que Uchôa se considerava “um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”, percebi que na reportagem de 1933, Uchôa informou que na época era um “simples ajudante de inspetor agrícola”.

Ele então se encontrava em um dos postos mais baixo na hierarquia dos quadros funcionais do Ministério da Agricultura daquela época? Seria obrigatório que um “ajudante de inspetor agrícola”, fosse uma pessoa com formação superior?

A resposta é não necessariamente.

Mesmo com o termo “ajudante”, aparentemente esta extinta função do Ministério da Agricultura, conforme se lê em vários exemplares do Diário Oficial da União (D.O.U.) desta época, poderia, ou não, ser exercida por uma pessoa com o título de agrônomo. Encontrei várias transferências publicadas no D.O.U., do início da década de 1930, onde vemos inúmeros “ajudantes de inspetor agrícola” sendo remanejados. Alguns aparecem com o título de “agrônomo” adiante do cargo, em outros não.

O interessante é que na entrevista concedida no Rio, sete anos depois do episódio em Juazeiro e reproduzida na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, em nenhum momento Uchôa comenta sua formação superior. Isso em uma época onde o Brasil era tão carente de educação, que quem era “Dotô” fazia questão de dizer a todos sobre a sua superioridade acadêmica e ainda mostrar o seu anel de formatura.

Das duas uma; ou Uchôa era um homem muito humilde, ou o repórter do tal vespertino carioca era muito fraco…

Consequências

Certamente o Padre Cícero, em muito pouco tempo, deve ter se arrependido de dar continuidade à ideia de Floro de trazer Lampião a Juazeiro.

Logo Lampião percebeu que seus “colegas de farda” não viriam até ele com salamaleques típicos de militares e nem com continências do estilo. Deles o cangaceiro Lampião só iria receber bala!

Sobre a sua luta contra os Revoltosos da famosa Coluna Prestes, existem indicações que Lampião e seu bando travaram um pequeno combate em Pernambuco, sem maiores consequências. Depois o cangaceiro decidiu continuar seu caminho de depredações, saques e violências, do qual era um especialista, deixando de lado a promessa feita ao Padre Cícero.

Mas quem não deixou passar em branco a situação foram os jornais da época, que se mostraram extremamente impiedosos nas críticas ao líder de Juazeiro.

As manchetes do jornal recifense “A Noite”, de 10 de agosto de 1926, aqui apresentadas, dão uma ideia do que o Padre Cícero sofreu. O texto então é pior ainda. Nele encontramos; “E ainda agora, para coroar toda esta obra de misérias que o Padre Cícero vem desenvolvendo ao longo de anos, Lampião passeia a sua impunidade nas ruas de Juazeiro, garantido e hospedado pelo padre satânico”.

Em minha opinião o Padre Cícero não percebeu a extensão do estrago que ocorreria quando decidiu dar prosseguimento ao plano desorientado de Floro Bartolomeu.

Alguém se esqueceu de lembra ao padre que seria muito difícil fazer com que certos componentes de volantes que combatiam os cangaceiros, teriam agora de parar a sua luta figadal contra o facínora e seus homens, e ainda mais, teriam de prestar continência ao capitão Virgulino. Isso tudo apenas por uma ordem emanada de Padre Cícero e sacramentada pela “mais alta autoridade federal de Juazeiro”, um ajudante de inspetor agrícola.

Para a imprensa do país e certos setores da elite que governavam a nação, a ação do Padre Cícero foi considerada, no mínimo, “desastrada” e só serviu para manchar a sua biografia.

Sobrou até para o pobre do Uchôa. Segundo a reportagem de 1933, ele teve de prestar contas do ocorrido a ninguém menos que o próprio Ministro da Agricultura.

Uchôa não informa se foi ao titular da pasta durante a gestão Arthur Bernardes, o baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida, que ele teve de narrar os fatos. Ou se prestou contas ao sucessor deste, o paraense Geminiano Lira Castro. Ou se este encontro ocorreu com o paulista Paulo de Morais Barros, que assumiu o ministério depois da Revolução de 1930, na mesma época que ocorreu o lançamento do livro de Leonardo Mota, que tornou o “simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”, em alguém que mereceu um encontro com o titular do ministério.

Com qual ministro se Uchôa encontrou, não importa. O que importa foi que neste encontro ele falou a autoridade o mesmo que havia dito a Leonardo Mota; “Naquele momento eu lavraria até a demissão do presidente da República.”

Não sei se esta verdadeira “epopeia burocrática” trouxe a Uchôa algo mais do que constar nos livros de história do cangaço.

O maior beneficiado com a visita a Juazeiro foi Lampião.

Sem dúvida alguma, apenas uma pessoa saiu ganhando deste episódio e ele foi Lampião. Além de receber novos fuzis e munições, vaidoso como era, deve ter adorado a sua “patente”. Pois assim passou a assinar seus bilhetes e seus cartões que continham sua fotografia. A partir do dia que Uchôa assinou aquele papel, todos os nordestinos que ficaram diante de Lampião, desde um rico coronel na sua casa-grande, ao simples lavrador na sua tapera, passaram a tratá-lo como capitão.

Uma situação chama atenção.

Lampião sabia que não lutaria mais com a Coluna Prestes?

A Coluna Prestes cruzou o Rio Grande do Norte em 4 de fevereiro de 1926, depois foi para a Paraíba e Pernambuco. Lampião só chegou a Juazeiro em 4 de março. É possível que ele soubesse por onde andava a Coluna? Certamente! Os jornais Pernambucanos da época, que estão no Arquivo Público de Pernambuco, dão notícia praticamente dia a dia dos Revoltosos. Se os jornais em Recife sabiam, imaginem Lampião.

Esperto e bem informado, certamente Lampião deveria saber de tudo isto. Mas como diz Lira Neto, foi a Juazeiro cobrar o que lhe foi prometido.

Lampião era tão sem vergonha, pilantra, que não ficou satisfeito só com as armas e munições (que já era um grande presente), quis a patente, quis sair de Juazeiro como “oficial” e “oficializado” e aí ocorre o caso do Uchôa.

Me chama a atenção que, com o poder que o Padre Cícero tinha em Juazeiro, ele poderia ter mobilizado até as “corujas da torre da igreja” para lutar contra Lampião e este jamais teria pisado em Juazeiro e sei lá o que teria acontecido. Mas ele não o fez. Por que?

Creio que o Padre tinha receio de um retorno dos Revoltosos a sua região. Pode ter pensado que podia precisar dos serviços do “capitão”. Não podemos esquecer que nesta época os membros da Coluna já tinham entrado em Piancó, na Paraíba, e degolado o líder político local, o Padre Aristides, depois de um forte combate pouco conhecido.

Defesas em Favor do Padre Cícero

Chama atenção neste episódio a forma como ao longo dos anos os defensores de Padre Cícero buscaram, de todas as maneiras, alterar as características deste encontro com Lampião. Dos cantadores de feira, passando pelo sanfoneiro Luís Gonzaga e até na internet dos nossos dias, muita gente buscou dar uma nova versão aos fatos.

Durante anos existiram folhetos de cordel, livros, revistas que defendiam a existência histórica do encontro e surgiam os defensores da tese que nada foi daquela forma.

Capa do disco com o show de 1972, com Luiz Gonzaga ao vivo.

Em 1972 o admirador inconteste de Padre Cícero e de Lampião, o sanfoneiro Luiz Gonzaga, de Exu, em Pernambuco, ao realizar um antológico show no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro, defendeu abertamente o Padre Cícero em relação ao seu encontro com Lampião. Nesta época, devido a Bossa Nova, Jovem Guarda e outros movimentos musicais, Luiz Gonzaga andava meio esquecido do grande público. Este show foi seu grande retorno, sendo um dos poucos registros de como era Gonzagão no palco.

Quando cantou a música “Olha a Pisada”, de sua autoria em parceria com o médico Zé Dantas, fez um “break” e narrou uma história sobre o episódio. Começava com Lampião e a “cangaceirada” entrando de fuzil na igreja “com a boca do cano para baixo” em sinal de respeito. Gonzaga afirmou que o Padre Cícero não queria que Lampião chegasse muito perto dele e, quando este pediu uma benção, o padre de Juazeiro não lhe benzeu e ainda aplicou com seu cajado uma grande surra em Lampião.

Evidentemente que nada disto aconteceu. Era uma criação fantasiosa do insuperável sanfoneiro, na defesa do Padre Cícero.

Atualmente, chama atenção a defesa do Padre Cícero que ocorre no site Wikepedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Floro_Bartolomeu).

Nesta grande enciclopédia da internet, no tópico destinado a narrar a vida do médico baiano Floro Bartolomeu da Costa, encontramos um texto repleto de meias verdades, que em nada ajuda a estudantes que por ventura utilizarem este serviço para uma pesquisa sobre este assunto.

O texto comenta que no ano de 1925, Floro havia recebido uma ordem do então presidente da República Artur Bernardes para defender o Ceará da Coluna Prestes. Foram então organizados os chamados Batalhões Patrióticos (verdade).

Consta que Floro, teria então usado o nome do Padre Cícero sem que o sacerdote soubesse dos fatos (situação essa muito difícil de ocorrer devido ao prestígio do Padre Cícero).

Juazeiro. Fonte – http://www.skyscrapercity.com

Este então convidou Lampião a fazer parte do Batalhão Patriótico. Lampião, grande devoto do padre, aceitou o convite e partiu para Juazeiro, mas não encontrou Floro, que havia viajado para o Rio de Janeiro por motivos de saúde (verdade).

Comenta-se que Padre Cícero ficou perplexo quando soube que Lampião estava em Juazeiro para servi-lo (O Padre Cícero sabia que eles vinham).

Ao encontrar Lampião e seu bando, Padre Cícero os aconselhou a abandonar o cangaço e lhes deu rosários de presente, com a condição de que só usassem depois de abandonar a vida bandida (o Padre Cícero pode até ter dado conselhos, rosários e escapulários, mas as armas e munições foram entregues).

Os cangaceiros deixaram então Juazeiro, mas antes Lampião recebeu a patente de capitão do Batalhão Patriótico das mãos de Pedro de Albuquerque Uchôa, funcionário público e integrante do batalhão (Uchôa não afirmou isso nem em Leonardo Mota e muito menos na reportagem de 1933).

O Padre Cícero Romão Batista era um homem do seu tempo, com virtudes e defeitos. Possui uma biografia feita de altos e baixos momentos, coisa normal que qualquer ser humano passa em sua vida. Para mim, o encontro com Lampião foi um momento de baixa na história do padre.

Mas em minha opinião, ele fez sim um grande milagre (e não tem nada ligado com a história da Beata Mocinha).

O maior milagre do padre Cícero, mesmo tendo sido realizado em meio a religiosidade popular e mística, lances de violência e muita politicagem, foi a transformação de um simples povoado em uma das mais pulsantes e progressistas cidades do interior do Nordeste.

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