JÂNIO QUADROS NA PRESIDÊNCIA DO BRASIL – DA ESPERANÇA EM UM SALVADOR DA PÁTRIA, ATÉ A RENÚNCIA NO DIA DO SOLDADO

Jânio da Silva Quadros nasceu no dia 25 de janeiro de 1917, na cidade de Campo Grande, no então estado de Mato Grosso e atual capital do Mato Grosso do Sul. Era filho de Gabriel Quadros e de Leonor da Silva Quadros e foi criado em Curitiba, no Paraná, onde estudou em colégios estaduais. Tempos depois sua família mudou para São Paulo, onde Jânio estudou no Colégio Marista Arquidiocesano e em 1935 ingressou na prestigiada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ou Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma academia que formou nada menos que treze presidentes da república brasileira.

Após a formatura Jânio Quadros montou um pequeno escritório de advocacia no centro da capital em 1943 e depois começou a lecionar em dois colégios. Foi também professor de direito processual penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Jânio da Silva Quadros.

Político de Ascenção Meteórica

Em 7 de maio de 1947, por determinação geral do então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra, ocorreu a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Por isso muitas cadeiras na Câmara Municipal de São Paulo ficaram vagas. Jânio então teria sido um dos suplentes chamados a preencher esses lugares em 1948. Essa versão é contestada por alguns, que afirmam ter sido Jânio Quadros um dos três vereadores efetivamente eleitos pelo PDC.

Independente dessa questão, o certo foi que a ação de Jânio como vereador foi decisivo para projetá-lo na vida política paulista. Ele ficou conhecido como o vereador de todas as casas legislativas do país no período a apresentar a maior quantidade de proposições e projetos de lei, além de discursos. Jânio foi igualmente considerado o vereador que assinou a grande maioria das propostas e projetos considerados favoráveis à classe trabalhadora.

Quadro de votação na época da campanha de Jânio Quadros para preidente.

Com esse currículo logo foi consagrado como o deputado estadual mais votado em São Paulo, com mandato a ser exercido entre 1951 e 1953. Jânio percorreu todo o interior do estado de São Paulo, sempre insistindo na bandeira da moralização do serviço público e pedindo sugestões ao povo para resolver os problemas de cada região.

No início de 1953 a capital paulista assistiu à primeira campanha eleitoral para a prefeitura em 23 anos, desde a Revolução de 1930. Jânio foi lançado candidato do PDC em coligação com o Partido Socialista Brasileiro – PSB, vencendo por larga margem as principais máquinas partidárias locais. Essa vitória foi tida como uma grande façanha, pois Jânio enfrentou bloco formado por oito partidos políticos e um adversário, o professor Francisco Antônio Cardoso, que tinha uma campanha milionária, com uma enxurrada de material de propaganda e com apoio ostensivo das máquinas municipal e estadual. 

Assumiu a prefeitura de São Paulo aos 36 anos e um dos seus primeiros atos foi promover demissões em massa de funcionários, iniciando uma cruzada moralizadora que marcou sua gestão.

De Governador a “Salvador da Pátria”

Ademar de Barros, de chapéu.

Em 1954 Jânio Quadros desincompatibilizou-se do cargo de prefeito para candidatar-se a governador do estado de São Paulo e filiou-se ao Partido Trabalhista Nacional – PTN. Ganhou por uma pequena margem de votos, de cerca de 1%, do grande rival Ademar Pereira de Barros, um político popularmente conhecido pelo bordão “Rouba, mas faz”.

Jânio foi empossado governador em 31 de janeiro de 1955 e durante o seu mandato procurou executar ações que transmitisse uma imagem de moralização da administração pública e de combate à corrupção, aliadas a um empreendedorismo que buscava destaque e projeção.

Uma prática comum do governador Jânio era a das visitas surpresa às repartições públicas, a fim de verificar a qualidade dos serviços oferecidos à população. Outra foi a criação de novos serviços e órgãos estaduais, ou a construção de grandes obras.

Desde o início do seu governo Jânio procurou ampliar seu espaço político no nível nacional, estabelecendo positivos contatos com o potiguar João Café Filho, então Presidente da República. A aproximação entre ambos criou condições mais propícias para o governo paulista realizar um trabalho de recuperação financeira do estado. Tudo isso angariou grande popularidade e consagrou Jânio como um líder entre os paulistas.

Com a chegada do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK,  a Presidência da República, houve um foco muito intenso na criação de uma política desenvolvimentista, que foi realizada através da aplicação do chamado “Plano de Metas” e provocou um grande crescimento em diversas áreas e setores no país. São Paulo foi um dos estados mais beneficiados com a implantação de novas indústrias e a concentração de crédito e essa expansão econômica se refletiu no aumento da receita tributária do estado e na criação de condições favoráveis à diminuição do déficit financeiro herdado dos governos anteriores. Apesar de todas as vantagens que São Paulo usufruiu no governo JK, matreiramente Jânio permaneceu alinhado com a oposição em relação a importantes aspectos da política econômica vigente. E isso foi muito útil ao governador paulista, pois apesar do impulso desenvolvimentista, o governo JK gerou um panorama de forte inflação e crise econômica.

Diante do difícil quadro nacional, o nome de Jânio Quadros começou a surgir como alguém que poderia solucionar os problemas e colocar o Brasil em um bom rumo. Um novo “Salvador da Pátria”.

Jânio em campanha.

No dia 20 de abril de 1959, um grupo reuniu-se na Associação Brasileira de Imprensa – ABI no Rio de Janeiro e fundou o Movimento Popular Jânio Quadros – MPJQ, lançando nessa ocasião a candidatura do ex-governador de São Paulo à presidência da República.

Nove Meses de Campanha: A Vassoura Janista na Caça ao Voto.

O homem do “tostão contra o milhão” chegava ao topo da escalada que o conduziria ao Palácio da Alvorada.

Não que fosse um caminho fácil. O líder que granjeara sua popularidade junto às massas operárias de São Paulo, que quando prefeito da capital paulista chegou mesmo a apoiar a greve de 1953 e, como governador, não adotou atitudes repressivas contra os trabalhadores, via-se agora na contingência de conquistar a simpatia de todos os brasileiros — ricos, pobres, remediados, urbanos, rurais, ignorantes ou letrados.

As vassouras de Jânio em suas campanhas.

O povo delirou quando Jânio deixou bem claro a todos os partidos que o apoiavam a sua posição extremamente personalista e autoritária, alheia as agremiações partidárias, as quais ele ignorava até o desprezo. Conter a inflação e governar acima dos partidos era seu propósito. Sobretudo porque, percebendo a fragilidade das plataformas partidárias do momento, ele podia agir dessa maneira.

O “justiceiro” prometeu um governo de austeridade, onde aglutinou setores militares e da classe média (com promessas de “limpeza” na administração e estabilização da economia), das elites empresariais (com afirmação de fé na livre iniciativa) e dos trabalhadores (com promessas de uma ordem social mais justa). Descontentes com a carestia, a maioria dos brasileiros preferiu ir beber nas águas populistas de Jânio Quadros. 

Em 30 de setembro de 1960 era encerrada a tumultuada campanha eleitoral de Jânio Quadros à presidência da República. Em meio a cartazes, animação de bandas de música, fogos de artifício, papéis picados, vassouras, além da marchinha antológica que tinha esses versos – “Varre, varre, varre, varre, vassourinha./ Varre, varre a bandalheira./ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira./ Jânio Quadros é a esperança deste povo abandonado”.

Marechal Teixeira Lott, derrotado por Jânio Quadros.

Nas eleições de 3 de outubro de 1960 quase seis milhões de eleitores fazem Jânio o 22º Presidente do Brasil, sendo até então a maior votação da história no país. O marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, o segundo colocado, foi vencido de forma arrasadora com mais de dois milhões de votos de vantagem.

Mas nem tudo foi positivo para Jânio. Como naquela época votava-se separadamente para presidente e vice, apesar de todo prestígio Jânio não conseguiu eleger Milton Soares Campos, o candidato a vice-presidente de sua chapa. O escolhido foi o gaúcho João Belchior Marques Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB.

Governo de Altos e Baixos

Após a vitória sem precedentes, o presidente eleito partiu para Europa, em uma viagem de “concentração e retiro”. Somente três meses após as eleições, em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros e João Goulart foram empossados. Contrariando a expectativa geral, o discurso de posse do presidente foi discreto e gentil, chegando a tecer elogios ao governo anterior. Porém, na noite desse mesmo dia, Jânio atacou violentamente o governo Juscelino Kubitschek em cadeia nacional de rádio, atribuindo ao ex-presidente a prática de nepotismo, ineficiência administrativa, responsabilidade pelos altos índices de inflação e pela dívida externa de dois bilhões de dólares.

Não demorou e o novo presidente decepcionou pela primeira vez seus correligionários, ao desfazer a expectativa dos que previam que ele realizasse um governo de composição ou união nacional, ou que tentasse obter, através da nomeação ministerial, a maioria parlamentar de que não dispunha.

Jânio compôs seu Ministério contemplando uma mistura de elementos da União Democrática Nacional – UDN e representantes de partidos menos expressivos. Surpreendeu a todos ao nomear cinco ministros do Norte e Nordeste e disse que isso foi feito para honrar compromissos de sua campanha. O Ministério da Fazenda foi confiado a Clemente Mariani Bittencourt, líder da UDN baiana, que fora presidente do Banco do Brasil em 1954 e 55. Afonso Arinos de Melo Franco, da UDN mineira ficou com a pasta das Relações Exteriores. O Ministério era formado ainda por Clóvis Pestana, do Rio de Janeiro (Viação e Obras Públicas), Oscar Pedroso d’Horta, do Ceará (Justiça e Negócios Interiores); Romero Cabral da Costa, de Pernambuco (Agricultura); Brígido Fernandes Tinoco, do Rio de Janeiro (Educação e Cultura); Francisco Carlos de Castro Neves, de São Paulo (Trabalho); Edward Cattete Pinheiro, do Pará (Saúde); João Agripino Vasconcelos Maia Filho, da Paraíba (Minas e Energia) e Artur da Silva Bernardes Filho, de Minas Gerais (Indústria e Comércio). Já os ministérios militares foram preenchidos pelo marechal Odílio Denys (Ministério da Guerra, que teria sua denominação alterada durante o governo do general Costa e Silva  para Ministério do Exército), o brigadeiro Gabriel Grüm Moss (Aeronáutica) e o vice-almirante Sílvio de Azevedo Heck (Marinha), os três do Rio de Janeiro.

Reunião ministerial do governo Jânio Quadros.

No início do seu governo Jânio tomou uma série de pequenas medidas que ficaram famosas, destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e saneamento moral. Também investiu fortemente contra alguns direitos e regalias do funcionalismo público. Reduziu as vantagens até então asseguradas ao pessoal militar ou do Ministério da Fazenda em missão no exterior e extinguiu os cargos de adidos aeronáuticos junto às representações diplomáticas brasileiras.

Tal como aconteceu quando era governador paulista, Jânio Quadros pretendia prescindir da maioria parlamentar, mas duas reações foram imediatas: a dos que o acusavam de veleidades ditatoriais e desprezo pelo Poder Legislativo, e a dos setores nacionalistas, que viam na composição do novo governo uma prova de submissão ao FMI – Fundo Monetário Internacional, pela nomeação do banqueiro Clemente Mariani para o Ministério da Fazenda.

Seguindo um amplo programa anti-inflacionário, em 13 de março de 1961 o Presidente Jânio decretou uma reforma cambial, cuja consequência imediata foi a desvalorização do cruzeiro (a moeda brasileira da época) em 100% e o corte dos subsídios na importação de trigo e gasolina. Disso decorreu um galopante aumento do custo de vida, coincidindo com o congelamento dos salários e restrição ao crédito, o que gerou imediatos protestos sindicais.

Embora contasse com o apoio tácito do Congresso Nacional para sua política de austeridade, Jânio encontrou sérias resistências, mesmo entre seus correligionários, em relação a outros projetos em andamento, como o da reforma da lei antitruste, o da remessa de lucros, o do imposto de renda e o da reforma bancária.

Segundo o seu ministro das Minas e Energia, o paraibano João Agripino, “Jânio atraía contra seu governo todos os grupos econômicos deste país e ao mesmo tempo impunha aos humildes sacrifícios quase insuportáveis”.

Na tentativa de agradar o FMI pela austeridade, a classe média pela sindicância moralizadora dos escândalos financeiros e as camadas populares pelas reformas, Jânio conseguiu, em poucos meses, multiplicar as oposições.

Os Famosos “Bilhetinhos”

Jânio Quadros na capa da revista americana Times.

Alpargatas, blusões folgados, os famosos slacks com jaquetas tipo safari (também conhecidos como pijânios) — era a imagem tropical de um novo estilo de presidente.

Parte dessa performance foram os não menos famosos “bilhetinhos” que Jânio enviava diariamente a funcionários dos mais diversos escalões, como parte de sua estratégia moralizadora da administração pública.

Esperados muitas vezes com humor pela imprensa, esses pequenos recados causavam frequentemente irritação e até desespero nos que os recebiam. Prova é que, dos 1.534 bilhetes ditados durante a presidência, apenas onze foram de elogios ou homenagens.

O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, por exemplo, foi vítima de cerca de 600 deles, o que contribuiu sensivelmente para o desgaste de suas relações com o presidente. Certa feita, o Ministério da Agricultura foi contemplado com um bilhetinho que dizia literalmente: “O objetivo da próxima safra de amendoim deve ser o do atendimento do mercado interno, com largas sobras para exportação, dobrando-se, pelo menos, essa cultura em relação à safra de 1959/60”.

Jânio Quadros e Carlos Lacerda.

Na prática, essas pequenas notas funcionavam, sobretudo como decretos oficiosos, transformando em “lei” várias das pequenas decisões quase legendárias de Jânio.

O funcionalismo público foi o alvo predileto dos “bilhetinhos”: sindicâncias, horário de dois turnos com aumento da jornada de trabalho, cortes de gastos de representação e até ordem para à devolução de carros luxuosos. Muitas vezes justos, a maioria desses bilhetes tratava de assuntos que, sem dúvida, não competiam ao presidente da República.

Jânio também proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, acabou com as corridas de cavalo em dias úteis, com as rinhas de galo, com o lança-perfume em bailes de carnaval e regulamentou o jogo de carteado. Por mais hilárias que possam ter parecido essas medidas na ocasião, 60 anos depois todas essas leis editadas por Jânio ainda continuam em vigor.

Política Externa Radical

Enquanto aplicava uma política interna de austeridade, submissa às orientações do Fundo Monetário Internacional, Jânio Quadros radicalizava progressivamente na chamada Política Externa Independente – PEI.

Essa diretriz introduziu grandes mudanças na política internacional do Brasil, transformando as bases da sua ação diplomática e representou um ponto de inflexão na história contemporânea da política internacional brasileira, que passou a procurar estabelecer relações comerciais e diplomáticas com todas as nações do mundo que manifestassem interesse num intercâmbio pacífico. Essa modalidade de fazer política externa foi firmemente conduzida pelo chanceler Afonso Arinos de Melo Franco.

Jânio levou adiante seu projeto de estabelecer relações com as recém-independentes nações africanas e do bloco socialista. Nomeou Raimundo Sousa Dantas embaixador do Brasil em Gana, sendo este o primeiro embaixador negro brasileiro. Por meio de um sem-número de bilhetes recomendava o reatamento diplomático com os países do Leste, alegando objetivos econômicos. Pronunciou-se contrário à tradição brasileira de apoio às potências colonialistas, sobretudo na África portuguesa, e favorável à admissão da China nas Nações Unidas. Em maio de 1961 recebeu no palácio do Planalto a primeira missão comercial da República Popular da China enviada ao Brasil.

O cosmonauta soviético Yuri Gagarin (a direita), o primeiro homem a ir ao espaço, recebe a Ordem do Mérito Aeronáutico de Jânio Quadros e do brigadeiro Gabriel Grüm Moss, Ministro da Aeronáutica. 

O mesmo fato se repetiu em julho com a missão soviética de boa vontade, que pretendia incrementar o intercâmbio comercial e cultural entre o Brasil e a União Soviética. As primeiras providências para o reatamento diplomático entre os dois países começaram a ser tomadas em 25 de julho, mas o processo só seria concluído durante o governo Goulart. Antes disso, em julho de 1961, Jânio Quadros condecorou com a Ordem do Mérito Aeronáutico o cosmonauta soviético Yuri Alexeievitch Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço e que visitava o Brasil. 

Essa radical mudança na política exterior do Brasil não foi bem vista pelos Estados Unidos, nem por vários grupos econômicos que se beneficiavam da política anterior e nem pela direita nacional, em especial por alguns políticos da UDN, que apoiaram Jânio Quadros na eleição.

Uma Medalha para o Che

Entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961 ocorreu em Punta del Este, Uruguai, a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social da Organização dos Estados Americanos – OEA. Nela estiveram reunidos ministros e dirigentes das economias dos países latino-americanos, incluindo Ernesto Rafael Guevara de la Serna, mais conhecido como Che Guevara, revolucionário marxista e então ministro da Economia de Cuba. A finalidade desta reunião foi discutir o então novo programa da política externa dos Estados Unidos para a América Latina, a Aliança para o Progresso, cujo intuito era desenvolver economicamente e socialmente os países latino-americanos.

Ernesto Che Guevara sendo condecorado por Jânio Quadros.

Ao fim da reunião Che Guevara viajou para a Argentina e na sequência para o Brasil. Jânio aproveitou a passagem de Guevara para pedir, com êxito, a libertação de 20 padres espanhóis presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Aproveitaram e discutiram as possibilidades de intercâmbio comercial por meio dos países do Leste europeu. Finalmente, em 18 de agosto o presidente condecorou o ministro cubano com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, o que provocou a indignação dos setores civis e militares mais conservadores.

As possíveis consequências desse ato foram mal calculadas por Jânio. Sua repercussão foi a pior possível e os problemas já começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda que, amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países e a revista dos militares. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrarem e participarem da cerimônia.

O Fim no Dia do Soldado

Uma verdadeira cruzada passou a ser desencadeada contra a Política Externa Independente de Jânio. Para seus críticos essa política nada mais era do que declarações e ações com fins publicitários e vista por muitos como uma tentativa de atenuar a tensão provocada pelas decepções com sua política interna. O certo é que a condecoração de Che Guevara foi o bastante para o jornalista Carlos Lacerda, então governador do Rio de Janeiro, da UDN, romper publicamente com Jânio Quadros. O presidente perdia assim a sua frágil base parlamentar no Congresso.

Em várias oportunidades, o ministro da Guerra, Odílio Denys, também chegou a adverti-lo sobre a insatisfação da alta hierarquia militar. No plano internacional, a situação não melhorou para o governo.

Jânio parecia ter conseguido com suas ações desagradar a gregos e troianos.

Fotograma da película que mostra a cerimônia do Dia do Soldado em 25 de agosto de 1961, o último ato que Jânio Quadros participou como presidente do Brasil.

Em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, o presidente Jânio Quadros apresentou à nação sua carta de renúncia. O seu último ato presidencial foi um terrível equívoco, uma tentativa de golpe mal arquitetada. O objetivo de Jânio Quadros era criar um clima de comoção nacional de tal modo que os ministros militares, o Congresso e a população pedissem para que ele ficasse. Seu objetivo era negociar sua permanência na presidência da República com poderes excepcionais.

O Congresso, segundo a Constituição, não tinha poderes para negociar uma renúncia, que era um ato unilateral do presidente. A única obrigação do Congresso era investir os poderes ao vice.

Jânio Quadros, ao receber a notícia de que sua renúncia foi acolhida, chorou copiosamente. Seu mandato presidencial de 206 dias (quase sete meses) foi um dos mais breves na história da presidência do país.

A população, frustrada com as medidas econômicas rígidas e com os decretos moralistas, não reagiu como o Presidente esperava. Os ministros militares se limitaram a publicar um manifesto atestando que o vice-presidente, João Goulart, que se encontrava em visita oficial à China comunista, não deveria assumir a Presidência da República por representar um perigo aos quadros democráticos e constitucionais, pois Jango seria apoiado por elementos do clandestino Partido Comunista.

O país estava à beira de uma grave crise por conta da obsessão anticomunista de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. O conflito, entretanto, foi evitado graças a uma solução política negociada: a criação da Emenda Parlamentarista.

O sistema parlamentarista era um paliativo, pois garantia a posse de Goulart, ao mesmo tempo em que retirava os poderes políticos do Executivo federal e o transmitia para o Congresso Nacional, que indicaria um Primeiro-Ministro. Desta forma, Goulart poderia voltar ao Brasil e tomar posse. Foi escolhido como Primeiro-Ministro o político mineiro Tancredo de Almeida Neves. Para Juscelino Kubitschek, que na época era senador, declarou que “a Emenda Parlamentarista foi aprovada por pressão militar”.

O sistema parlamentar, entretanto, teve vida curta. Em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito aprovou o retorno ao regime presidencial e, segundo os próprios militares, aquilo foi o início da contagem regressiva para o golpe contra Jango.

O resultado está estampado na manchete abaixo…

O CEGO DE CAICÓ QUE DESCOBRIU A SCHEELITA E O URÂNIO NO RIO GRANDE DO NORTE

Joel Celso Dantas

Fonte – https://cronicastaipuenses.blogspot.com/2019/01/o-cego-que-descobriu-xelita-e-o-uranio.html?spref=fb&fbclid=IwAR1-n7JCp89FYsqQp2kNmYSSD7oGfr6t9UPjFVfNFso6Cpd3E4ZElgXn4uU

Material baseado em sua maior parte no texto de Murilo Melo Filho, com fotos de Carlos Kerr e publicado na Revista Manchete, da Editora Bloch, edição de 18 de maio de 1957, disponível na Biblioteca Nacional (http://memoria.bn.br).

Fonte da foto inicial – https://paisagensdoserido.openbrasil.org/2016/08/mina-brejui.html

Eis uma daquelas histórias dignas de um roteiro de filmes inspiradores (daqueles que o começo se inicia com “baseado em fatos reais”).Trata-se da história de Joel Celso Dantas, que foi o descobridor da scheelita e do urânio no Nordeste. A história da sua vida é um comovente exemplo do quanto pode a obstinação de um nordestino, por descobrir e provar a ocorrência das incalculáveis riquezas e jazidas de minérios escondidos no subsolo de sua terra. Alguém já bem o disse que devemos ler biografias de grandes homens. É uma interessante síntese biográfica de uma grande homem desconhecido. Nordestino, potiguar, caicoense!.

A Revista Manchete contou a história de Joel Dantas em 1957 quando ele estava no Rio de Janeiro, na Casa de Saúde Santa Maria, nas Laranjeiras, tentando recuperar sua visão. Acompanhemos.

Ele nasceu em Caicó, aos 7 anos ficou cego por causa de uma queratite (opacificação da córnea).Foi ao Recife se tratar, mas voltou desiludido: ficara uma pequena réstia de visão embaçada, para a qual de nada adiantaria o uso de óculos.

Fez questão, porém, de continuar frequentando a escola, mesmo como ouvinte, apenas. Pedia aos colegas e amigos que lessem livros para ele. ”comecei a gostar de livros de ciência”, contou a revista. E passou a interessar-se pela Física. Pensou na sua própria cegueira e dedicou-se ao estudo das lentes. 10 anos depois, conseguiu fazer uma combinação de lentes que lhe restituiu um pouquinho de visão. ”senti um contentamento enorme, quando vi uma letra novamente”.

Revista Manchete, Editora Bloch, edição de 18 de maio de 1957.

Habituou-se, desde então, a uma leitura penosa. Das várias lentes combinadas, chegou a perfeição de um aparelho chamado “conta-fios”, através do qual lia letra por letra, mas lia. Assim, penosamente, já havia conseguido devorar centenas de livros. Soletrava. Se era interrompido no meio da palavra, tinha de recomeçá-la para pegar-lhe novamente o sentido. Tinha uma ortografia própria, pois a cegueira o atingiu numa idade em que ele não tinha aprendido a escrever.

Sua mãe gostava de colecionar pedras bonitas em casa. Quando saía, levado por ela, para fazer passeios pelo sertão, apanhava seixos nas estradas e trazia-os para apalpá-los e estudá-los. Casou-se aos 19 anos e em 1935 leu o primeiro volume de mineralogia.

Como descobriu a primeira scheelita

Passou a analisar aquelas pedras, no fundo do seu quintal, ajudado pela mulher. Ganhava, então, 200 mil réis por mês, dos quais ainda tirava uma parte para construir forjas rústicas. Nas análises, encontrava ouro, ferro, titânio. “Eu não sabia que a Natureza não poderia ter sido tão madrasta com o Nordeste, ao dar-lhe apenas seca, falta de chuvas, misérias, privações. Aquelas pedras tão abundantes devia ter algum valor”, disse Joel.


Cristais de scheelita do Monte Xuebaoding, Sichuan, China – Fonte – http://www.patrickvoillot.com/pt/sheelita-208.html

E tinham.

Através delas, Joel Dantas chegou a certeza da existência de maiores possibilidades minerais: aquelas rochas matrizes, pelas suas características, deviam possuir maiores quantidades de minérios. Toda aquela região inóspita era um imenso lençol de riqueza subterrânea.

Em 15 de outubro de 1941, mesmo lutando contra a cegueira, Joel Dantas conseguiu descobrir, na fazenda Riacho de Fora, a primeira scheelita: uma pedra desconhecida, muito pesada, diferente de todas as outras. “Não vale nada”, disseram-lhe. Na Paraíba, um comerciante ofereceu  50 centavos pelo quilo. Joel indignou-se: “imagina: 50 centavos por um quilo de tungstênio, o minério que vai revolucionar o mundo”.

A primeira fase da batalha

Padre Cônego Luiz Gonzaga do Monte

Havia em Natal um padre sábio que acreditou nele, era o Padre Monte (irmão de Dom Nivaldo Monte, 1918-2006, arcebispo de Natal entre 1967 e 1988. Mais sobre esse religioso veja – ). Apesar desse depoimento autorizado, ninguém acreditava naquela história. Joel Dantas saiu pelo interior a fazer propaganda de sua descoberta, para ver se os fazendeiros se interessavam por ela. Descobriu nada menos de uma tonelada e meia do minério, nos mais diferentes pontos da região.

O Ministério da Agricultura, no Rio de Janeiro, terminou finalmente confirmando o seu laudo: aquelas pedras eram realmente scheelita. Estava ganha a primeira batalha. Faltava o resto: a batalha pela exploração. Mas, esta seria bem mais fácil, pois, não faltariam logo os proprietários de terra que se interessariam por ganha dinheiro.

Isto se verificou, realmente, com dezenas deles, inclusive o famoso desembargador aposentado Tomás Salustino, que já estava ganhando centenas de milhões de cruzeiros com a sua mina Brejuí. A primeira pedra do desembargador foi levada a Joel Dantas, por intermédio do governador do Rio Grande do Norte a época, Dinarte de Medeiros Mariz. Ninguém acreditava nela, pois, tinha forma de areia. Mas, Joel disse que se tratava de scheelita de boa qualidade. O desembargador se convenceu e tratou de explorar sua mina, transformando-se numa das maiores fortunas do país.

Fonte: Revista Manchete, 1957.

Constatou a presença de urânio de alto teor, numa extensão de 10 quilômetros no litoral nordestino, por intermédio de um aparelho  Geiger, que o almirante Álvaro Alberto lhe mandou de presente.

Enquanto isso, o cientista continuava cego e passando privações. Já havia localizado centenas de minas de berilo, columbita, tantalita, abrigonita, granada, bismuto, estanho, florita e outros. Diariamente, chegavam-lhe as mãos, na sua casa em Natal, dezenas de pedras para análises, vindas de todos os Estados do Nordeste. Ele as analisava e classificava criteriosamente.

Em 1957, aos 38 anos, Joel Dantas já havia feito mais de 20 mil anotações de análises, demonstrando a existência de reservas incomensuráveis de minérios, em toda a região nordestina. Mas, pelo seu trabalho, muitos dos que o procuravam e que depois ficaram milionários à custa dos seus laudos, nem se lembravam de pagar 100 ou 200 cruzeiros. Por isto, Joel Dantas continuava pobre, ele que tinha dado riqueza a tanta gente! (MANCHETE, 1957, p.37-39).

“Eu vi”

Joel Dantas antes da cirurgia.

Em 1957 Joel Dantas se submeteu a um transplante de córneas. “Eu vi”, disse Joel Dantas, ao sair da sala de cirurgia. Contava 38 anos, dos quais 30 como cego. A cirurgia foi feita pelo Dr. Abreu  Fialho.

Chegou ao Rio de Janeiro depois de uma campanha feita por um jornalista (a revista não cita) e o médico Xavier Fernandes, diretor da Divisão de Organização Hospitalar do Ministério da Saúde, tendo que se submeter a um intenso tratamento pré-operatório, pois, estava pensando 45 quilos e queimado dos pés a cabeça pelas emanações radioativas das amostras de minérios que ia descobrindo e pesquisando.

“Eu vi”. Joel Dantas guardou a confissão para fazê-la em primeiro lugar a sua mulher e ao jornalista que o  ajudou (a revista manchete não cita o nome de ambos).

– Viu o quê?

– Vi um clarão imenso, logo seguido pela formação nítida de certas imagens. Vi o bisturi na mão do Dr. Fialho, antes mesmo de que ele me enxertasse a outra córnea. Foi indescritível a sensação de ver pela primeira vez ( destaque nosso pela tomada de emoção com o referido relato ao escrever o mesmo).

No entanto, a confirmação do sucesso do transplante só poderia ser confirmado uma semana depois, até lá Joel Dantas deveria ficar com vendas nos olhos a fim de assegurar a cicatrização mais rápida.(MANCHETE, 1957,p.27).

Joel Dantas foi o descobridor do petróleo em Macau em 1950 (MANCHETE, 1974, p.24). Os detalhes dessa descoberta é assunto para outra postagem.

Joel Dantas sendo operado.

Joel Celso Dantas

Joel Celso Dantas foi o cientista, potiguar, cego, que estudou Física e Química, através de um sistema de lentes combinadas que ele mesmo inventou e por meio das quais lia penosamente, letra por letra. Foi assim que devorou de zenas de tratados de mineralogia e geologia, chegando a conclusão de que no Rio Grande do Norte e o estados vizinhos do Nordeste possuíam um imenso lençol subterrâneo de minérios.

Fonte: Revista Manchete, 1957, 1974.

1967 – VERDADE E LENDA SE MISTURAM NA HISTÓRIA DE CANGUARETAMA

2
Celebração em Canguaretama, Rio Grande do Norte, do Massacre dos Mártires de Cunhaú – Fonte – http://www.vntonline.com.br/2016/07/canguaretama-rn-celebra-371-anos-dos.html

Autoria original deste texto é do repórter Antônio Melo e as fotografias mais antigas foram feitas por Paulo Saulo, tendo o material sido publicado originalmente no Diário de Natal, nas edições de quarta feira, 5 de abril de 1967 (Pág. 4), e sábado, 8 de abril (Pág. 5).

TOK DE HISTÓRIA traz na íntegra a reprodução desta matéria jornalística que mostra como a tradição oral na cidade de Canguaretama informava sobre os ricos e interessantes episódios da rica história da região. Um exemplo é o Massacre da Igreja do Engenho Cunhaú, mesmo tendo passado 322 anos dos sangrentos episódios em 1967, eles eram narrados conforme haviam sido transmitidos pelos mais velhos da região.

Dedico o resgate e a democratização deste texto ao meu amigo Professor Francisco Galvão, um orgulhoso e dedicado filho de Canguaretama.

Boa leitura!

ll (6)

A seis quilômetros da cidade de Canguaretama e a um quilometro da estrada pavimentada que liga Natal àquela cidade, em meio a uma mata cerrada e quase intransponível, existe uma caverna com sete entradas, que sempre esteve, para os habitantes da região, cercada de mistérios e de estórias sobre “almas penadas”. Três denominações ela possui – “Gruta do Bode”, “Caverna das Sete Bocas” e “As Sete Bocas do Inferno”.

Poucos foram os que se aventuraram a atravessar aquelas bocas escuras, e menos dentre os moradores, gente simples cheia de crendices, daquela região aonde o progresso não chegou. No que concerne ao que os olhos humanos podem ver, existem morcegos enormes, de tamanhos variados, voando através das sete bocas e fazendo dos confins da caverna o seu refúgio. Quanto as “almas do outro mundo”…

ATgAAACiZUReeFI3lLnLBCFKSvv4plfGsL3HWyvwOEQG6OWFbjVD8cwdA3-w
Canguaretama na década de 1960, ou 1970 – Fonte – http://museudoagreste.blogspot.com.br/2011/09/fundacao-da-cidade-de-canguaretama.html

Histórias e Estórias

Os moradores de Canguaretama e pessoas que residem mais perto da “Caverna das Sete Bocas” contam que, sempre souberam que foram os holandeses que ergueram aquela construção hoje misteriosa. As ruínas de uma velha cadeia no vizinho município de Vila Flor, e de uma igreja de eu hoje restam apenas as paredes carcomidas pelo tempo, tem fatos históricos que comprovam terem sido aqueles lugares palcos de enredos do período de ocupação holandesa no Nordeste brasileiro.

Mas tudo está envolvido com lendas, para o povo simples da região, e o real mistura-se ao irreal, não se sabendo onde termina a história e começa o lendário. Há pessoas que afirmam, jurando pelos nomes sagrados, terem visto aparecer ali, em noites em que foram obrigados a cruzar por aqueles caminhos próximos à gruta, fantasmas de antigos escravos e velhos senhores “que foram ricos e maus e hoje penam pelo mundo, à custa dos seus pecados”.

Traição e Morte

João Glicério é funcionário do Ministério da Agricultura e trabalha em propriedades a alguns quilômetros de Canguaretama pertencentes ao governo federal. Serviu de cicerone a reportagem do Diário de Natal e contou estórias sobre “As Sete Bocas do Inferno”. Uma dessas estórias diz respeito ao morticínio verificado na Igreja localizada no Engenho Cunhaú, cujo proprietário é o Sr. Hugo de Araujo Lima.

33207387_1298315426967205_1790027057690836992_o
Capela dos Mártires de Cunhaú – Fonte – http://www.vntonline.com.br/2018/05/canguaretama-rn-segue-no-mapa-do.html

Conta Seu Glicério – “Por volta de 1637, quando os holandeses se encontravam no Nordeste, aconteceu que existia uma espécie de resistência contra os invasores, aqui pelo município. Essa revolta era comandada pelo Padre André de Several (SIC). Os holandeses tinham dificuldade de chegar ao Rio Grande do Norte, rico em minérios”.

“Certa noite veio ter com o Padre Several o comandante das forças invasoras sediadas em Paraíba, justamente em Baía da Traição. O comandante parece que se chamava Jacó Rabi e era tenente. Disse ao Padre que, à noite, viria trazer a população da cidade uma carta do governo do seu país, falando em termos de paz e anunciando vir tratar das condições para o estabelecimento definitivo no Brasil. O Padre reuniu toda gente daqui (71 pessoas ao todo, naquele tempo). Dessas 71, 69 foram para a Igreja e as duas restantes, um velho e uma senhora que havia dado à luz uma menina naquele dia, ficaram em casa”.

“À noite, o Padre fez uma preleção para os que estavam na Igreja, exaltando o sentimento patriótico de todos e a necessidade de cada um defender a terra contra o invasor. Mas pediu para tivesse um entendimento pacífico, sem derramamento de sangue. Após preleção a Igreja foi invadida por centenas de homens armados, do Exército holandês, que realizaram a matança, sem defesa, pois os moradores do lugar estavam sem armas, na ocasião. Morreram todos os 69, mais o Padre Several. Restaram o velho e a mulher que ficaram em casa. Esse morticínio ainda hoje (1967) rende muita estória na boca do povo de Canguaretama”.

ll (1)
Casa de Câmara e Cadeia da cidade de Vila Flor, Rio Grande do Norte, em 1931

Prisão de Escravos

Em Vila Flor, a nove quilômetros da “Caverna das Sete Bocas”, existe bem no centro da cidadezinha, uma velha cadeia, com paredes que têm um metro de espessura e quase 18 metros de altura. As ruinas encerram dois corredores e um salão principal, tendo no centro um mourão, grosso toco de madeira cravado no chão, com dois metros de altura. Tudo é vestígio de uma prisão, onde os detidos também eram açoitados naquele mourão.

Restos de madeiras em vários lugares da construção e a grande altura fazem imaginar que o prédio formado por dois pavimentos e que um deles, em virtude do tempo, tenha caído. As grades da velha cadeia foram retiradas e levadas para não se sabe onde. Uns dizem que foram para uma cadeia da Paraíba. As grades, dizem que eram feitas de bronze. 

28751279
O mesmo local nos dias atuais – Fonte – http://mapio.net/pic/p-28751279/

“Caverna das Sete Bocas” Encerra Estórias de Ouro

Após seguidas tentativas de chegar ao final do túnel das “As Sete Bocas do Inferno” (frustradas porque as “bocas” se encontram obstruídas pelos desmoronamentos contínuo das pedras), tomamos a única decisão cabível – a desistência. Voltamos ao centro da cidade de Canguaretama e tornamos as estórias das pessoas do lugar.

João Glicério, o nosso guia, ainda contava – “Os bandeirantes , quando da colonização do Brasil, retiraram ouro do País para levar para Portugal. Aqui em Canguaretama existia um homem que atendia pelo nome de Arcoverde, tinha muitos escravos (negros e índios) que alugava aos bandeirantes a troco de ouro. Ganhou muito ouro em troca de escravos”. E para onde foi esse ouro? Foi o que a reportagem quis saber de Seu Glicério.

rn1
Instantâneo realizado pelo fotografo alemão Bruno Bourgard, onde vemos os participantes de um ágape oferecido pelo coronel Joaquim Manuel de Carvalho e Silva a seu irmão, o Padre Miguel de Carvalho, por ocasião desse realizar sua primeira missa, em 8 de dezembro 1902. Foto originária da Revista da Semana, do Rio de janeiro, edição de 29 de março de 1903, página 150 e disponível em http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx

O Ouro Enterrado

Seu Glicério contou sua estória, que não se sabe se tem base na verdade, ou cresceu em legenda na memória do povo.

“Soube Arcoverde que os holandeses, após a chacina do engenho Cunhaú, mostravam-se interessados no seu ouro. Vendo que não havia escapatória nem para si nem para o ouro, pegou um dos escravos, e mandou o homem enterrar sua fortuna. Foi o negro sozinho, pois os demais tinham caído em debandada, com medo dos holandeses”.  

“O negro trabalhou sozinho toda uma noite. Arcoverde foi avisado de que os holandeses estavam a menos de uma légua e como o trabalho demorava, o senhor de escravos ordenou que o restante do ouro, ainda por enterrar, fosse jogado dentro de um açude, perto da cidade. Concluído o trabalho, Arcoverde chamou seu escravo a tomar uma cachacinha como paga do serviço”.

1 (26) - Copia
Foto antiga da Prefeitura Municipal de Canguaretama.

E continua Seu Glicério – “O preto estava muito cansado e estava enterrando as últimas cargas de ouro, quando seu dono pediu que apressasse o serviço, para ambos tomarem uma bebidinha. O negro animou-se e concluiu depressa a tarefa. Contente foi sentar para beber, não sabendo que havia veneno na bebida. Assim fizera Arcoverde, colocando também veneno no próprio copo. Ambos morreram, bebidos os primeiros goles. Senhor e escravo levaram o segredo do ouro, que os holandeses não levaram Dizem até que Arcoverde morreu sorrindo”.

As Moedas de Ouro

Habitantes de Canguaretama contam que, anos atrás, pessoas que realizavam reparos na Igreja de Cunhaú, encontraram ali algumas moedas de ouro. E afirma-se que elas faziam parte do tesouro enterrado de Arcoverde.

Um estudioso dinamarquês que reside em Natal e que pediu não disséssemos seu nome, compareceu, ontem, a redação do Diário de Natal, narrando o que disse ser resultados de seus estudos sobre a “Caverna das Sete Bocas” de Canguaretama.

Disse ele que a caverna é resultado de escavações realizadas pelos índios, à procura de pedra para seus machados, setas e outras armas de guerra e caça. Acredita o dinamarquês que as escavações datam muito antes da vinda dos holandeses para o Nordeste brasileiro, divergindo assim da memória oral do povo de Canguaretama.

Adiantou considerar “uma loucura” tentar penetrar naquela gruta pois ela poderia desabar e deve guardar animais venenosos eu seu interior, como serpentes.

CIÊNCIA PARA CRIAR UMA NAÇÃO

Rondon com índios Paresi, em imagem de documentário do Major Thomaz (sem data) - Museu do Índio
Rondon com índios Paresi, em imagem de documentário do Major Thomaz (sem data) – Museu do Índio

PRESENÇA POUCO CONHECIDA DE NATURALISTAS NA COMISSÃO RONDON AJUDOU A INSTITUCIONALIZAR A PESQUISA CIENTÍFICA NO BRASIL

CARLOS HAAG | Revista de Pesquisa da FAPESP – Edição 195 – Maio de 2012

Há exatos 100 anos, a produção anual de filmes no Brasil, iniciada apenas em 1908, não passava de meia dúzia. Naquele mesmo ano, em 1912, o primeiro-tenente Cândido Rondon (1865-1958), desde 1907 nomeado pelo presidente Afonso Pena como chefe da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), que deveria construir uma linha telegráfica entre Cuiabá e Santo Antonio do Madeira (Porto Velho), cria a Secção de Cinematographia e Photographia, que coloca sob a direção do Major Thomaz Reis. Se na capital federal o cinema engatinhava, imagine a ousadia da criação de uma seção especializada em documentar a expedição em material fotossensível, que exigia altos investimentos e a apropriação e uso de uma tecnologia inexistente no país em péssimas condições ambientais, de alta umidade, com dificuldades de transporte por matas cheias de índios e doenças.

Esse esforço do sertanista só é compreendido ao se revelar um aspecto desconhecido da Comissão Rondon (1907-1915): a estreita relação com a ciência. Ou, nas palavras do antropólogo Roquette-Pinto, que acompanhou Rondon em 1912: “A construção da linha telegráfica foi o pretexto. A exploração científica foi tudo”. “Já se analisou a função de defesa das fronteiras e da ‘missão civilizatória’ da Comissão, mas quase nada das pesquisas científicas e do grupo de naturalistas, em sua maioria do Museu Nacional, feitas durante a expedição e que abriram um campo inédito para a ciência e para os pesquisadores brasileiros”, explica a historiadora Dominichi Miranda de Sá, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e responsável pelo projeto Inventário da natureza do Brasil: as atividades científicas da Comissão Rondon. “A ciência, a partir da expedição, passou a ser vista como elemento fundamental na construção do Estado Nacional brasileiro, objetivo maior da República”, analisa Dominichi. 

Rondon sentado em acampamento, fotograma de documentário da comissão (sem data) - Museu do Índio
Rondon sentado em acampamento, fotograma de documentário da comissão (sem data) – Museu do Índio

A pesquisa concluiu que o propósito da Comissão Rondon era de que seus membros não estavam encarregados apenas da expansão da rede telegráfica nacional, mas da definição das distintas potencialidades do território da porção norte do país para a discriminação entre áreas de exploração e conservação de recursos naturais e humanos. O projeto, nesse contexto, traz à luz a importância da comissão na institucionalização das ciências no país e no papel crescente do Estado como fomentador das pesquisas científicas, em especial a ciência aplicada, pensada como instrumento de modernização nacional. “Enquanto estendiam fios telegráficos para efetivar as comunicações com a porção norte do Brasil, eram delimitadas as áreas de fronteira com outros países e demarcadas terras indígenas, mas também aquelas propícias ao povoamento, ao cultivo de lavouras e à expansão da pecuária”, conta a pesquisadora. “Ao lado disso, foram realizadas incursões de exploração científica para conhecimento e descoberta de rios, vistos como caminhos de escoamento da produção agrícola, marcos naturais de fronteiras e de orientação geográfica, bem como obstáculos à colonização por supostamente dificultarem a circulação e potencializarem a incidência de doenças, sobretudo a malária”, observa. Este último aspecto, aliás, nunca havia sido trabalhado pela historiografia da comissão, embora seja porta de entrada para discutir a história da apropriação de um objeto natural, os rios, por projetos estatais de conhecimento e ocupação territorial.

A ciência era, então, tão estratégica quanto os postos de telégrafo, defendidos pelo engenheiro Francisco Bhering, o autor do projeto telegráfico levado a cabo pela comissão, como “precursor do progresso” que deveria chegar à Amazônia, vista, ao lado de Mato Grosso e Goiás, como prioridade republicana, sob pena de esse trecho norte e suas populações “acabarem por se destacar e distanciar do território nacional”. O “clima intelectual” entre os oficiais da época, doutrinados pelo positivismo, não queria criar militares para a guerra, mas defendia um treinamento técnico e científico para formar “agentes do progresso”, não soldados. Para esse grupo, a dualidade sertão (atraso) e litoral (civilização), polêmica central no novo regime, era uma falácia. Segundo eles, o sertão era definido pela distância em relação ao poder central e aos projetos modernizadores.

Rondon com índios Paresi, imagem do Major Thomaz (sem data) - Museu do Índio
Rondon com índios Paresi, imagem do Major Thomaz (sem data) – Museu do Índio

“O sertão no Brasil começa onde termina a Avenida Central”, como disse o intelectual Afrânio Peixoton“A Amazônia era ‘sertão’ pelo abandono do poder central e sua ‘paisagem’ estava destinada a desaparecer. Era preciso ocupar, povoar e modernizar o ‘território vazio’, delimitar a ‘fronteira’ e domar a ‘floresta’ com seus animais, doenças e rios. A civilização, no entendimento dos membros da comissão, era resultado possível”, observa a socióloga Nísia Trindade, da Fiocruz e integrante do projeto. Afinal, segundo Rondon, “desbravar esses sertões, torná-los produtivos, submetê-los à nossa atividade, aproveitar a sua feracidade e suas riquezas é o mesmo que estender até os confins desta terra enorme a ação civilizadora do homem”. Estaria, assim, resolvida a dualidade com a inclusão do sertão nos projetos de construção da nacionalidade.

Quando, em 1906, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (Maic) foi criado, as atividades e instituições científicas (entre elas o Museu Nacional e o Jardim Botânico) foram atreladas ao novo órgão e passaram a fazer parte das expedições de integração, como a Comissão Rondon, também ligada a um Ministério da Guerra positivista e pró-ciência. O levantamento científico do território, com o estudo de climas, incidência de doenças, rios, plantas, animais e capacidade de terras para agricultura, mineração e pecuária era indissociável dos projetos de diversificação produtiva, de modernização da agricultura, construção de caminhos para  o escoamento da produção e fixação de mão de obra no interior. A ênfase na ciência aplicada era imperativa, pois se tratava de colocar a natureza (vista como recurso natural), com destaque para a agricultura, a serviço do homem. Com o poder sobre as expedições nas mãos do Maic, ao lado dos fios, iriam os naturalistas e os próprios engenheiros militares para identificar as terras boas para lavoura que tivessem condições de salubridade para o povoamento pelos trabalhadores, integrando ao poder central as áreas isoladas. Acima de tudo, era preciso descobrir os rios para permitir a comunicação com os mercadores consumidores.

A isso se juntaram as demandas do Museu Nacional, em plena crise, achincalhado por Olavo Bilac como “instituição anquilosada”, paralisada. O diretor do museu, João Batista Lacerda, enfurecido, desde 1905 tentava sensibilizar as autoridades de que “se queremos tornar indiscutível a hegemonia do Brasil na América do Sul, devemos encarar essa política do ponto de vista de superioridade de nossos recursos intelectuais, e dos nossos institutos de ensino e ciência”. Como “condição essencial ao progresso e desenvolvimento científico do Museu, é preciso o restabelecimento do antigo cargo de naturalista-viajante”, criado no Império e extinto na República. Era preciso “criar conhecimentos por brasileiros sobre a natureza brasileira”, até então uma atividade monopolizada por naturalistas estrangeiros, como satirizado por Machado de Assis no conto Lição de botânica (1906).

Homem trabalhando em laboratório (sem data) - Museu do Índio
Homem trabalhando em laboratório (sem data) – Museu do Índio 

Os naturalistas que acompanharam Rondon, além de coletarem, classificarem e catalogarem o material coligido, redigiram relatórios científicos detalhados, deram conferências e publicaram textos de divulgação sobre as viagens. Entre eles destacavam-se: na zoologia, Alípio de Miranda, Arnaldo Blake Santana e José Geraldo Kuhlmann; na geologia, Cícero de Campos e Euzébio de Oliveira; na antropologia, Roquette-Pinto; e na botânica, Frederico Carlos Hoehne e João Geraldo Kuhlmann. Boa parte desses nomes estaria, no futuro, no panteão da ciência nacional. O Museu Nacional cresceu a passos largos: entre 1908 e 1916 a instituição recebeu 8.837 espécimes botânicos, 5.637 espécimes zoológicos, 42 exemplares geológicos, mineralógicos e paleontológicos e 3.380 peças antropológicas, tudo originado da Comissão Rondon, conforme assinalado pela pesquisadora Magali Romero Sá, da Fiocruz, outra integrante do projeto.

Miranda Ribeiro chegou a afirmar que “as coleções reunidas durante a Comissão Rondon fizeram em oito anos mais pelo Museu Nacional do que tudo o que tinha sido realizado em 100 anos de existência da instituição”. O zoólogo, aliás, não atuava apenas como coletor, mas seu entrosamento com as teorias evolucionistas, ainda polêmicas no país então, levava-o a estabelecer questões, observar as inter-relações dos animais como meio e outras observações ecológicas sobre os espécimes coletados.

Rondon com oficiais da Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso - Museu do Índio
Rondon com oficiais da Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso – Museu do Índio

Adolpho Lutz foi premiado com uma coleção de dípteros vindos do grupo de Rondon e publicou, em 1912, um trabalho sobre os 70 exemplares de tabanídeos coletados. O botânico Hoehne percorreu 7.350 quilômetros de campos e florestas de Mato Grosso e comentou mais tarde que mapear a região com Rondon equivaleria a desenvolver a economia de todo o Brasil.

“Para além da pesquisa científica, os membros da comissão demarcavam terras indígenas, discriminavam, em levantamentos médicos, a ‘selva’, onde grassaria a malária, da ‘floresta’, objeto que começava a ser discutido como área de ‘aproveitamento racional’”, observa Dominichi. A floresta amazônica virou foco da comissão entre 1915 e 1920, em especial no levantamento de rios, que, esperava-se, eram os caminhos, as estradas de penetração, esquadrinhamento e inventário, modernização e ocupação da fronteira noroeste do país. Os mapas eram sempre corrigidos e novos rios descobertos, como o Juruena ou o rio da Dúvida, afluente do Madeira, “descoberto” na célebre viagem feita por Rondon ao lado do ex-presidente americano Theodore Roosevelt, entre 1913 e 1914. Começava a surgir o novo “mito da Amazônia”.

Índios Apalaí do rio Jari dançando, em imagem do fotógrafo Harald Schultz (sem data) - Museu do Índio
Índios Apalaí do rio Jari dançando, em imagem do fotógrafo Harald Schultz (sem data) – Museu do Índio

O termo “Amazônia” foi usado como designação de uma região associada à prodigalidade pela primeira vez no livro O país das amazonas, de 1883, do barão de Santa-Anna Nery. Seu título, que convertia a província do Amazonas em Amazônia, era destinado a atrair imigrantes. “A Amazônia”, escreveu Nery, “confirmaria o destino de ‘terra de promissão’ apontado por cronistas e naturalistas, se povoada em favor do incremento da agricultura e da mineração; se desmentidas as ideias negativas sobre os malefícios do clima quente; se a floresta e matérias-primas exploráveis fossem usadas racionalmente e em detrimento da extração exclusiva da borracha; sobretudo se os elementos naturais fossem conhecidos em sua ‘harmoniosa unidade’”, explica a pesquisadora Nísia Trindade.

A República renovou, com maior intensidade, o interesse monárquico na região. Daí os investimentos do Estado em financiar uma política regular de conhecimento científico da diversidade natural e regional brasileira, em que a Amazônia tinha um lugar de destaque, objeto de análise das instituições científicas nacionais. Em especial, após o nascimento do Maic, que enviou grupos de naturalistas para estudar a região e que, na volta, divulgaram suas visões em publicações populares. Boa parte desses trabalhos veio de membros da Comissão Rondon. Mesmo o mapeamento dos rios ajudou a criar um novo mito moderno. “Da polissemia dos rios do norte se foi construindo a imagem da floresta amazônica pela comissão: região de chuvas intermitentes e clima quente; grandes extensões de terras opulentas, férteis e abundantes para serem cultivadas; solos perfeitos para agricultura e alternativa ao exclusivismo extrativista da borracha, cujo aumento da plantação dependia apenas da derrubada ‘racional da mata’, ocupação e povoamento por ‘lavradores operosos’ e criação de meios de transporte para o escoamento da produção”, conta Dominichi.

Era mesmo o “país das amazonas”. Miranda Ribeiro tinha razão ao elogiar a comissão por eliminar a palavra “desconhecido” dos mapas nacionais, o que iria, no futuro, transformar esse “país das amazonas” em Brasil. “A comissão forneceu material e imaginário para a consolidação da ‘Amazônia’: objeto de ciência, imaginação, turismo, disputas políticas, curiosidade e temário central dos debates sobre o uso sustentável de recursos naturais e preservação ecossistêmica.” Mas a utopia geográfica que via o país como uma imensa fronteira e que bastava abrir a picada mais adiante que o progresso faria o resto não se confirmou.

Índias Paresi em rede, registradas pelo Major Thomaz (sem data) - Museu do Índio
Índias Paresi em rede, registradas pelo Major Thomaz (sem data) – Museu do Índio

Rondon preocupava-se em registrar tudo em imagens e preparou vários álbuns fotográficos das atividades da comissão e os enviava para as autoridades mais importantes do governo brasileiro. “Os álbuns, os artigos publicados nos principais jornais do país e principalmente as apresentações dos filmes seguidas de conferências funcionavam como uma espécie demarketing pessoal e uma forma de persuasão para a continuidade das atividades da comissão. Visavam principalmente a elite urbana, sedenta de imagens e informações sobre o sertão brasileiro, e principal grupo formador de opinião”, observa o historiador Fernando Tacca, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de A imagética da Comissão Rondon (1996). Assim, Rondon alimentava o espírito nacionalista construindo etnografias de um ponto de vista estratégico e simbólico: a ocupação do oeste brasileiro através da comunicação pelo telégrafo, pela visualidade da fotografia e do cinema mudo, com filmes do Major Thomaz, em especial Ao redor do Brasil (1932). “Todo esse período de produção de imagens pode ser considerado uma extensão das atividades da comissão”, avalia Tacca.

012

“O cruzamento entre filmes e fotografias foi uma prática inovadora na produção da Comissão Rondon e a segunda categorização se dá no campo da pacificação, quando imagens demonstram um índio dócil e sujeito a mudanças pelo avanço civilizatório. Constrói-se assim uma imagem de sujeição, e não de impedimento à ocupação territorial da nação”, observa Tacca. Há uma construção imagética, “científica”, da existência de grupos tradicionais que aceitam a nacionalidade da bandeira e de outros símbolos da nação reconhecendo, em alguns casos, a fronteira nacional. É exemplar da condução para uma integração do índio pela ação civilizatória do Estado a imagem simbólica do índio fronteiriço ao lado da bandeira nacional, marcando a existência de um índio brasileiro, e não somente “índio”.

Em 1915, o Mato Grosso tinha 4.502 quilômetros de linhas telegráficas, e os membros da expedição tinham realizado o que consideravam uma “epopeia”, a custo de muitas vidas e sacrifícios terríveis, fazendo o levantamento de uma área de 50 mil quilômetros entre os rios Juruena e Madeira. Apesar dos muitos equívocos, Rondon se esforçou em integrar os índios, de forma pacífica, ao Brasil. Como positivista, não desprezava os índios, só acreditava que viviam num estágio anterior da evolução social, numa época em que intelectuais urbanos como Silvio Romero escreviam sobre a inferioridade racial dos nativos. Era um otimista que via todos como parte de um Brasil só, que ele conseguiria reunir e modernizar.

Índios escutando música de vitrola (sem data) - Museu do Índio
Índios escutando música de vitrola (sem data) – Museu do Índio

“Em pouco tempo, porém, esse entusiasmo de que se conseguiria superar a natureza e fazer dela o ‘celeiro da terra’, como dizia Rondon, com um povoamento sem grandes problemas, bastando estradas e linhas telegráficas, deu de cara com barreiras nosológicas intransponíveis, doenças que dizimavam as expedições e cuja difícil erradicação vai transparecendo, de forma crescente, nos relatórios dos médicos da comissão”, observa Arthur Torres, mestre em história formado na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. “Viu-se que era imprescindível estratégias de controle de moléstias como a malária para que a comissão pudesse concluir a linha telegráfica no noroeste do país e implantar a civilização desejada. Isso não aconteceu e a custosa e demorada transformação deixou os objetivos de Rondon distantes dos planos da sua comissão.”

Marechal Cândido Mariano Rondon, exemplo de inteligência, capacidade, dedicação e abnegação no meio militar brasileiro
Marechal Cândido Mariano Rondon, exemplo de inteligência, capacidade, dedicação e abnegação no meio militar brasileiro

Ao mesmo tempo que Rondon lutava para instalar seus fios, Oswaldo Cruz, a pedido da Mamoré Railway Company, tentava fazer a profilaxia da malária que matava os trabalhadores da estrada de ferro. As expedições feitas por ele e seus colegas de Manguinhos trouxeram um novo retrato, sanitarista, do Brasil, diverso do otimismo positivista do Estado e de Rondon, enfatizando que não era o clima, mas a doença a grande causa do atraso nacional. Vários dos membros da comissão, inclusive o próprio chefe, já integram as fileiras do movimento pelo saneamento dos sertões e o movimento sanitarista tornou público o debate. “O debate sobre identidade nacional no Brasil passou a se dar pela metáfora da doença. O sertão não é apenas distante do poder central, mas uma região que passa a ser caracterizada de vez pelo abandono e pelas moléstias”, nota Nísia, que analisou o tema, ao lado de Gilberto Hochman, na pesquisaBrasil imenso hospital (Fiocruz). 

Fonte – http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/05/11/ciencia-para-criar-uma-nacao/

1933 – UMA ENTREVISTA DO HOMEM QUE “PROMOVEU” LAMPIÃO

A história da famosa promoção a capitão do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, ocorrida em Juazeiro, no ano de 1926, é de conhecimento de todos e um tema já bastante divulgado. Sobre o homem que realizou este procedimento, o pernambucano Pedro de Albuquerque Uchôa, muito já foi igualmente comentado.

Quem primeiro trouxe a história da patente e a figura de Uchôa ao conhecimento geral foi o cearense Leonardo Mota (1891-1947), no seu livro “No tempo de Lampião”. Lançado em 1930, a entrevista transcrita de Uchôa colocou este funcionário público no centro das atenções.

Três anos após o lançamento do livro de Mota e sete anos depois deste acontecimento “burocrático-cangaceirístico”, Uchôa teceu mais alguns interessantes comentários relativos a este pitoresco episódio da trajetória do Rei do Cangaço.

Matéria com Uchôa.

Através da reprodução das páginas de um vespertino carioca, apresentadas na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, de sexta-feira, 29 de setembro de 1933, vamos encontrar o funcionário público Uchôa, aparentemente vivendo na antiga Capital Federal. Pela descrição no jornal, tudo indica que ele não era mais um membro dos quadros do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Era apresentado pelo jornal como funcionário da “Secretaria do Tribunal”, sem especificar se era um tribunal ligado a justiça Estadual ou Federal.

O jornalista que realizou a entrevista informa que se espantou ao descobrir que estava diante do homem que forçadamente provocou uma interessante querela burocrática e o mesmo, em nenhum momento da entrevista, negou o seu ”feito”.

“- Fui eu mesmo, quando estava no Juazeiro, Ceará”. Afirmou Uchôa.

Pedro de Albuquerque Uchôa. Fonte-2ºSgt Narciso.

Mas como tudo ocorreu.

Para reavivar a memória de todos, recorro ao excelente livro “Padre Cícero-Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de autoria do jornalista e escritor cearense Lira Neto, que no capítulo 11, páginas 463 a 482, traça detalhadamente os episódios que culminaram na criação da patente de capitão para Lampião.

No ano de 1925, o então presidente da República Arthur Bernardes idealizou um plano para derrotar os componentes de uma coluna de oficiais rebelados do Exército Brasileiro, que percorriam os sertões na esperança de insuflar a massa com o seu exemplo de luta, derrubar o presidente e alterar a ordem vigente na nação. Comandados por Luís Carlos Prestes, Isidoro dias Lopes, Siqueira Campos, eram conhecidos na época como Revoltosos.

Floro Bartolomeu

Eles estavam no início de 1926 adentrando o Ceará, vindos do Piauí. O presidente da República convoca Floro Bartolomeu da Costa para organizar a resistência aos rebelados no Ceará. Floro era um médico baiano, que vivia em Juazeiro, era deputado federal, muito ligado ao Padre Cícero Romão Batista e que em 1914 havia organizado um movimento sedicioso que culminou com a derrubada do então governador cearense, Franco Rabelo. Parecia o homem certo para a função.

Floro Bartolomeu e Padre Cícero.

Floro procura o Padre Cícero, carismático prefeito e religioso de Juazeiro, e, com uma dinheirama vinda do Rio de janeiro, organizam os chamados Batalhões Patrióticos. Eram mais de mil homens com uniformes de brim azul-celeste e munidos de modernos fuzis privativos das forças armadas. Foram passados em revista pelo Padre Cícero em 9 de janeiro de 1926 e saíram ao encalço dos revoltosos.

Mas a caçada não deu certo. Afeitos as táticas de guerrilhas e ao constante movimento da tropa pelo sertão, os revoltosos conseguiram driblar os membros dos Batalhões Patrióticos e seguiram atravessando o Ceará.

Batalhão Patriótico em Juazeiro.

Desesperado, o Floro pede mais dinheiro ao governo e amplia a já amalucada ideia de Arthur Bernardes. Ele envia um portador com uma carta do padre destinada a ninguém menos que Virgulino Ferreira da Silva, o famigerado Lampião. Ele estava sendo convocado para uma “Guerra Santa”.

No início desconfiado, Lampião acabou aceitando o convite do seu “Padim Ciço”, o homem a quem ele devotava confiança cega e que aparentemente,  protegia os seus familiares há algum tempo de vinganças.

Virgulino partiu para o Juazeiro.

Lira Neto foi muito feliz ao colocar uma frase que exemplifica esta parte desta história; “Deus e o Diabo iriam se encontrar na Terra do Sol”.

Mudanças no Meio do caminho

Enquanto Lampião seguia para a “Meca do sertão”, os Revoltosos driblavam os Batalhões Patrióticos e seguiam seu caminho de lutas sem nem chegar perto de Fortaleza, ou de Juazeiro, grande temor do Padre Cícero. Neste meio tempo Floro Bartolomeu adoeceu fortemente de sintomas ligados a sífilis e deixou a “frente de combate”.

Coluna Prestes.

Logo a coluna de Revoltosos, que entraria para a história do Brasil como Coluna Prestes, passou pelo Rio Grande do Norte (Cidades de São Miguel e Luís Gomes) e seguiu para a Paraíba. Floro Bartolomeu por sua vez rumou para Fortaleza e depois foi de navio para o Rio de janeiro, onde morreria em pouco tempo.

Tudo parecia indicar que a tempestade havia passado, mas uma nuvem negra, em formato de um chapéu de couro com a testeira quebrada, se aproximava de Juazeiro.

O perigo dos Revoltosos poderia ter até passado, mas Lampião vinha cobrar a sua conta para poder “cumprir seu dever cívico”.

Juazeiro na época do Padre Cícero. Fonte – http://www.skyscrapercity.com

A princípio o chefe da guarnição policial de Juazeiro pensou em oferecer resistência, mas Padre Cícero não podia aceitar esta situação. Afinal o homem era um convidado e deveria ser bem recebido. Durantes três dias de um final de semana memorável para a cidade de Juazeiro, Lampião e seus homens aproveitaram ao máximo da principal urbe do interior do Ceará.

Na noite de 4 de março de 1926, ocorreu o famoso encontro de duas das mais míticas figuras já produzidas no Nordeste do Brasil.

É nessa hora que entra em cena Pedro de Albuquerque Uchôa.

Encontro Memorável

Voltando a reportagem reproduzida sete anos após os fatos, Uchôa comenta que ainda na época em que vivia em Juazeiro, era “muito amigo” do líder político e religioso da cidade. Afirmou que mantinha uma boa relação com o religioso, a ponto de todo dia o Padre Cícero ir tirar um cochilo na sua casa ao meio dia. Nestas horas a casa de Uchôa ficava cheia de romeiros que vinham pedir a benção ao velho padre.

Lampião e seu irmão Antônio Ferreira.

Sobre os acontecimentos de 4 de março de 1926, Uchôa não narra o que aconteceu antes da chegada de Lampião, mas informa que nesta noite foi acordado por dois “jagunços”, em um sobradinho onde morava com seu contraparente, o cantador João Mendes de Oliveira.

Os homens intimaram o funcionário público, afirmando autoritariamente que “-Meu padrinho está chamando o Senhor com urgência”. Uchôa não perdeu tempo e foi logo a casa do Padre Cícero.

Segundo sua narrativa, estes dois homens portavam fuzis a tiracolo, estavam encourados e cheios de “medalhas”. As medalhas no caso, certamente seriam imagens de santos penduradas no peito. Ao escritor Leonardo Mota, Uchôa afirmou que estes homens eram Sabino Gomes e o irmão de Lampião, Antônio Ferreira.

Ao chegar a residência do líder de Juazeiro, o Padre Cícero lhe apresentou Lampião e disse, conforme está reproduzido no velho jornal sergipano de 1933.

“- Aqui está o capitão Virgulino Ferreira. Ele não é mais bandido. Veio com cinquenta e dois homens para combater os revoltosos e vai ser promovido a capitão. Olhe, o senhor vai fazer a patente de capitão do Sr. Virgulino Ferreira e a de tenente do seu irmão”.

Evidentemente que Uchôa ficou pasmo, “perplexo” em suas palavras.

Fiquei imaginando a cara do pobre coitado do funcionário do Ministério da Agricultura, acordado no meio da noite com esta bomba na mão. Ele ainda tentou argumentar que não podia, mas um dos irmãos de Lampião ponderou na hora.

“- Não, se meu padrinho está mandando o senhor pode”.

O Padre Cícero lhe colocou na condição de “mais alta autoridade federal de Juazeiro” e aí não teve jeito. Com o carismático prefeito ditando os documentos, foram “lavradas” as designações de patente.

Padre Cícero em sua mesa de trabalho.

Segundo Uchôa comentou ao repórter, parte dos termos do documento referente a patente de Lampião foram; “Pelo Governo Federal era concedido a Virgulino Ferreira a patente de capitão do Exército, por serviços prestados a República”.

Depois o Padre Cícero foi categórico e ordenou a Uchôa um curto “assine”. Ele colocou a sua firma no controverso documento.

Interessante é que em nenhum momento na reportagem, Uchôa pronuncia que concedeu uma patente a um dos mais cruéis e sanguinolentos bandidos de Lampião, o famigerado Sabino.

Após os “trâmites burocráticos”, Uchôa afirma que presenciou o temível Lampião, todo equipado, se ajoelhar reverentemente e beijar emocionado a batina do Padre Cícero. Lampião informou ao Padre que se comprometia a “proceder bem”…..

Uchoa informou ainda que após o encontro destas duas figuras, Lampião e seus homens receberam suas armas, munições e partiram no meio da noite.

Se assim foi, este foi o último ato da visita de Lampião e seu bando a Juazeiro.

Um Simples “ajudante de inspetor agrícola”?

A Leonardo Mota, o funcionário público Uchôa afirmou que ao retornar para a sua casa, por volta das onze da noite, tentou argumentar com Sabino e Antônio Ferreira que aquele documento não valia nada e que ele “não passava de um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”. Ao que o irmão do cangaceiro-mor do Brasil respondeu secamente que “-Se o padre dissera que era ele que devia assinar a patente, era porque era ele mesmo”. Uchôa se calou.

O escritor Leonardo Mota.

Ao ler em Mota, que Uchôa se considerava “um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”, percebi que na reportagem de 1933, Uchôa informou que na época era um “simples ajudante de inspetor agrícola”.

Ele então se encontrava em um dos postos mais baixo na hierarquia dos quadros funcionais do Ministério da Agricultura daquela época? Seria obrigatório que um “ajudante de inspetor agrícola”, fosse uma pessoa com formação superior?

A resposta é não necessariamente.

Mesmo com o termo “ajudante”, aparentemente esta extinta função do Ministério da Agricultura, conforme se lê em vários exemplares do Diário Oficial da União (D.O.U.) desta época, poderia, ou não, ser exercida por uma pessoa com o título de agrônomo. Encontrei várias transferências publicadas no D.O.U., do início da década de 1930, onde vemos inúmeros “ajudantes de inspetor agrícola” sendo remanejados. Alguns aparecem com o título de “agrônomo” adiante do cargo, em outros não.

O interessante é que na entrevista concedida no Rio, sete anos depois do episódio em Juazeiro e reproduzida na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, em nenhum momento Uchôa comenta sua formação superior. Isso em uma época onde o Brasil era tão carente de educação, que quem era “Dotô” fazia questão de dizer a todos sobre a sua superioridade acadêmica e ainda mostrar o seu anel de formatura.

Das duas uma; ou Uchôa era um homem muito humilde, ou o repórter do tal vespertino carioca era muito fraco…

Consequências

Certamente o Padre Cícero, em muito pouco tempo, deve ter se arrependido de dar continuidade à ideia de Floro de trazer Lampião a Juazeiro.

Logo Lampião percebeu que seus “colegas de farda” não viriam até ele com salamaleques típicos de militares e nem com continências do estilo. Deles o cangaceiro Lampião só iria receber bala!

Sobre a sua luta contra os Revoltosos da famosa Coluna Prestes, existem indicações que Lampião e seu bando travaram um pequeno combate em Pernambuco, sem maiores consequências. Depois o cangaceiro decidiu continuar seu caminho de depredações, saques e violências, do qual era um especialista, deixando de lado a promessa feita ao Padre Cícero.

Mas quem não deixou passar em branco a situação foram os jornais da época, que se mostraram extremamente impiedosos nas críticas ao líder de Juazeiro.

As manchetes do jornal recifense “A Noite”, de 10 de agosto de 1926, aqui apresentadas, dão uma ideia do que o Padre Cícero sofreu. O texto então é pior ainda. Nele encontramos; “E ainda agora, para coroar toda esta obra de misérias que o Padre Cícero vem desenvolvendo ao longo de anos, Lampião passeia a sua impunidade nas ruas de Juazeiro, garantido e hospedado pelo padre satânico”.

Em minha opinião o Padre Cícero não percebeu a extensão do estrago que ocorreria quando decidiu dar prosseguimento ao plano desorientado de Floro Bartolomeu.

Alguém se esqueceu de lembra ao padre que seria muito difícil fazer com que certos componentes de volantes que combatiam os cangaceiros, teriam agora de parar a sua luta figadal contra o facínora e seus homens, e ainda mais, teriam de prestar continência ao capitão Virgulino. Isso tudo apenas por uma ordem emanada de Padre Cícero e sacramentada pela “mais alta autoridade federal de Juazeiro”, um ajudante de inspetor agrícola.

Para a imprensa do país e certos setores da elite que governavam a nação, a ação do Padre Cícero foi considerada, no mínimo, “desastrada” e só serviu para manchar a sua biografia.

Sobrou até para o pobre do Uchôa. Segundo a reportagem de 1933, ele teve de prestar contas do ocorrido a ninguém menos que o próprio Ministro da Agricultura.

Uchôa não informa se foi ao titular da pasta durante a gestão Arthur Bernardes, o baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida, que ele teve de narrar os fatos. Ou se prestou contas ao sucessor deste, o paraense Geminiano Lira Castro. Ou se este encontro ocorreu com o paulista Paulo de Morais Barros, que assumiu o ministério depois da Revolução de 1930, na mesma época que ocorreu o lançamento do livro de Leonardo Mota, que tornou o “simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”, em alguém que mereceu um encontro com o titular do ministério.

Com qual ministro se Uchôa encontrou, não importa. O que importa foi que neste encontro ele falou a autoridade o mesmo que havia dito a Leonardo Mota; “Naquele momento eu lavraria até a demissão do presidente da República.”

Não sei se esta verdadeira “epopeia burocrática” trouxe a Uchôa algo mais do que constar nos livros de história do cangaço.

O maior beneficiado com a visita a Juazeiro foi Lampião.

Sem dúvida alguma, apenas uma pessoa saiu ganhando deste episódio e ele foi Lampião. Além de receber novos fuzis e munições, vaidoso como era, deve ter adorado a sua “patente”. Pois assim passou a assinar seus bilhetes e seus cartões que continham sua fotografia. A partir do dia que Uchôa assinou aquele papel, todos os nordestinos que ficaram diante de Lampião, desde um rico coronel na sua casa-grande, ao simples lavrador na sua tapera, passaram a tratá-lo como capitão.

Uma situação chama atenção.

Lampião sabia que não lutaria mais com a Coluna Prestes?

A Coluna Prestes cruzou o Rio Grande do Norte em 4 de fevereiro de 1926, depois foi para a Paraíba e Pernambuco. Lampião só chegou a Juazeiro em 4 de março. É possível que ele soubesse por onde andava a Coluna? Certamente! Os jornais Pernambucanos da época, que estão no Arquivo Público de Pernambuco, dão notícia praticamente dia a dia dos Revoltosos. Se os jornais em Recife sabiam, imaginem Lampião.

Esperto e bem informado, certamente Lampião deveria saber de tudo isto. Mas como diz Lira Neto, foi a Juazeiro cobrar o que lhe foi prometido.

Lampião era tão sem vergonha, pilantra, que não ficou satisfeito só com as armas e munições (que já era um grande presente), quis a patente, quis sair de Juazeiro como “oficial” e “oficializado” e aí ocorre o caso do Uchôa.

Me chama a atenção que, com o poder que o Padre Cícero tinha em Juazeiro, ele poderia ter mobilizado até as “corujas da torre da igreja” para lutar contra Lampião e este jamais teria pisado em Juazeiro e sei lá o que teria acontecido. Mas ele não o fez. Por que?

Creio que o Padre tinha receio de um retorno dos Revoltosos a sua região. Pode ter pensado que podia precisar dos serviços do “capitão”. Não podemos esquecer que nesta época os membros da Coluna já tinham entrado em Piancó, na Paraíba, e degolado o líder político local, o Padre Aristides, depois de um forte combate pouco conhecido.

Defesas em Favor do Padre Cícero

Chama atenção neste episódio a forma como ao longo dos anos os defensores de Padre Cícero buscaram, de todas as maneiras, alterar as características deste encontro com Lampião. Dos cantadores de feira, passando pelo sanfoneiro Luís Gonzaga e até na internet dos nossos dias, muita gente buscou dar uma nova versão aos fatos.

Durante anos existiram folhetos de cordel, livros, revistas que defendiam a existência histórica do encontro e surgiam os defensores da tese que nada foi daquela forma.

Capa do disco com o show de 1972, com Luiz Gonzaga ao vivo.

Em 1972 o admirador inconteste de Padre Cícero e de Lampião, o sanfoneiro Luiz Gonzaga, de Exu, em Pernambuco, ao realizar um antológico show no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro, defendeu abertamente o Padre Cícero em relação ao seu encontro com Lampião. Nesta época, devido a Bossa Nova, Jovem Guarda e outros movimentos musicais, Luiz Gonzaga andava meio esquecido do grande público. Este show foi seu grande retorno, sendo um dos poucos registros de como era Gonzagão no palco.

Quando cantou a música “Olha a Pisada”, de sua autoria em parceria com o médico Zé Dantas, fez um “break” e narrou uma história sobre o episódio. Começava com Lampião e a “cangaceirada” entrando de fuzil na igreja “com a boca do cano para baixo” em sinal de respeito. Gonzaga afirmou que o Padre Cícero não queria que Lampião chegasse muito perto dele e, quando este pediu uma benção, o padre de Juazeiro não lhe benzeu e ainda aplicou com seu cajado uma grande surra em Lampião.

Evidentemente que nada disto aconteceu. Era uma criação fantasiosa do insuperável sanfoneiro, na defesa do Padre Cícero.

Atualmente, chama atenção a defesa do Padre Cícero que ocorre no site Wikepedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Floro_Bartolomeu).

Nesta grande enciclopédia da internet, no tópico destinado a narrar a vida do médico baiano Floro Bartolomeu da Costa, encontramos um texto repleto de meias verdades, que em nada ajuda a estudantes que por ventura utilizarem este serviço para uma pesquisa sobre este assunto.

O texto comenta que no ano de 1925, Floro havia recebido uma ordem do então presidente da República Artur Bernardes para defender o Ceará da Coluna Prestes. Foram então organizados os chamados Batalhões Patrióticos (verdade).

Consta que Floro, teria então usado o nome do Padre Cícero sem que o sacerdote soubesse dos fatos (situação essa muito difícil de ocorrer devido ao prestígio do Padre Cícero).

Juazeiro. Fonte – http://www.skyscrapercity.com

Este então convidou Lampião a fazer parte do Batalhão Patriótico. Lampião, grande devoto do padre, aceitou o convite e partiu para Juazeiro, mas não encontrou Floro, que havia viajado para o Rio de Janeiro por motivos de saúde (verdade).

Comenta-se que Padre Cícero ficou perplexo quando soube que Lampião estava em Juazeiro para servi-lo (O Padre Cícero sabia que eles vinham).

Ao encontrar Lampião e seu bando, Padre Cícero os aconselhou a abandonar o cangaço e lhes deu rosários de presente, com a condição de que só usassem depois de abandonar a vida bandida (o Padre Cícero pode até ter dado conselhos, rosários e escapulários, mas as armas e munições foram entregues).

Os cangaceiros deixaram então Juazeiro, mas antes Lampião recebeu a patente de capitão do Batalhão Patriótico das mãos de Pedro de Albuquerque Uchôa, funcionário público e integrante do batalhão (Uchôa não afirmou isso nem em Leonardo Mota e muito menos na reportagem de 1933).

O Padre Cícero Romão Batista era um homem do seu tempo, com virtudes e defeitos. Possui uma biografia feita de altos e baixos momentos, coisa normal que qualquer ser humano passa em sua vida. Para mim, o encontro com Lampião foi um momento de baixa na história do padre.

Mas em minha opinião, ele fez sim um grande milagre (e não tem nada ligado com a história da Beata Mocinha).

O maior milagre do padre Cícero, mesmo tendo sido realizado em meio a religiosidade popular e mística, lances de violência e muita politicagem, foi a transformação de um simples povoado em uma das mais pulsantes e progressistas cidades do interior do Nordeste.

© 2011 Copyright Tok de História

Todos os direitos reservados