ÍTALO BALBO – O VOO ÉPICO E O BANHO DE MAR DO PILOTO ITALIANO EM NATAL

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

O que significa essa foto com essas pessoas em uma praia? Quando e onde ela foi feita? Quem são as pessoas que estão nessa foto?

Artigo originalmente pulicado na Revista Bzzz Número 110, nov. e dez. 2024, páginas 20 a 29.

Ela foi realizada em 10 de janeiro de 1931, na praia de Areia Preta, Natal, e entre os que foram fotografados estava a matriarca de uma das mais importantes famílias potiguares, Branca Pedroza, e seus três filhos, cujo um deles seria prefeito da capital potiguar e governador do Rio Grande do Norte, Sylvio Piza Pedroza. Já os homens clicados eram dois italianos, dos mais importantes aviadores do mundo naquela época e que lideraram uma esquadrilha de doze hidroaviões hidroavião Savoia-Marchetti S.55A que voaram desde a Itália até Natal, em um voo de grande destaque mundial. Além disso, eles trouxeram do seu país o presente mais importante que Natal já recebeu em sua História, a Coluna Capitolina. Esses homens também eram membros proeminentes de uma ditadura que propagava uma ideologia política nefasta, de caráter ultranacionalista, fortemente autoritário e altamente sanguinário. Era o fascismo implantado por Benito Mussolini na Itália. Ítalo Balbo era Ministro da Aviação desse governo, sendo um dos principais executores da política de aviação italiana no período fascista..

Balbo e sua equipe iniciaram no final da década de 1920 diversos estudos para a realização de grandes voos com várias aeronaves, algo até então nunca realizado e que repercutiria nas ações da Itália Fascista em todo o mundo. Um desses voos teve como destino o Brasil.

No dia de Natal de 1930, Balbo e seus comandados chegaram na Ilha de Bolama, no arquipélago dos Bijagós, na Guiné Portuguesa, atual Guiné Bissau. Ficaram alguns dias realizando testes de decolagem e, com o resultado dessas provas, na madrugada de 5 de janeiro de 1931, segunda-feira, decolaram para várias horas depois amerissarem no Rio Potengi, em Natal. No percurso, houve problemas sérios com perdas de aeronaves e a morte de cinco homens.

O hidroavião Savoia-Marchetti S.55A – Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Enquanto eles realizavam seu voo, em Natal, na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque, foram colocadas no alto da sua única torre duas grandes bandeiras do Brasil e da Itália. Escoteiros se posicionaram naquele local equipados com binóculos e lunetas. Tinham ordens expressas para quando avistassem as primeiras aeronaves informassem imediatamente o sineiro da velha igreja, que começaria a badalar os sinos pesados para que o povo fosse informado da chegada dos hidroaviões Savoia-Marchetti.

Pessoas se aglomeraram no cais do Porto de Natal, na Av. Tavares de Lira e nos prédios e casas às margens do Rio Potengi. Quem tinha alguma coisa que flutuasse estava dentro do rio, o que deu muito trabalho para o pessoal da Capitania dos Portos, pois o plácido Potengi tinha de ser liberado para a amerissagem das aeronaves.

O general italiano Aldo Pellegrini havia desembarcado em Natal no começo de dezembro para preparar a chegada de Balbo e dos seus aviadores. No dia 5 de janeiro esse militar ficou muito tempo em uma estação de rádio montada pelo Telégrafo Nacional no bairro do Alecrim, na Rua Coronel Estevão. Paulo Pinheiro de Viveiros nos conta em sua placa denominada “Presença de Roma em Natal” (1969), que essa estação possuía transmissores de ondas curtas de 250 e 500 watts e o responsável era Augusto Mena Barreto. Quando ficou certo que as aeronaves estavam chegando, o general Pellegrini foi para a Ribeira e por onde passou recebeu manifestações entusiásticas de carinho.

Os jornais comentaram que várias pessoas vieram de outros estados para acompanhar a chegada da esquadrilha italiana. Sei que por aqui se encontravam Antenor de França Navarro, então Interventor Federal da Paraíba, acompanhado de vários elementos do seu governo. Por volta das três horas o comércio e as repartições públicas fecharam suas portas e a massa de gente cresceu nas ruas. Finalmente, por volta das quatro horas os escoteiros na catedral viram surgir em direção ao norte os primeiros hidroaviões S.55A e logo os sinos começaram a badalar.

“Giovinezza” no Rio Potengi

Hidroavião italiano no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Antes mesmo de colocarem os pés na terra, flutuando a bordo dos S.55A no Rio Potengi, Balbo e seus homens ouviram um outro som, esse mais familiar, que os deixaram maravilhados. Assim Balbo falou: “As alegres fanfarras de “Giovinezza” já tocam e saúdam nossa vitória”. A “Giovinezza” era o hino oficial do Partido Nacional Fascista Italiano e no cais da Tavares de Lira ela foi tocada pela Banda da Polícia Militar.

Desembarque de Ítalo Balbo em Natal. Fernando Pedroza é o segundo da direita para a esquerda– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Balbo e a maioria dos seus homens desembarcaram trajados à moda fascista – calças brancas, camisas negras, luvas e botas marrons. Os jornais apontaram que o ministro italiano foi apresentado com ar fatigado, olheiras, mas afável, sorridente e a todo momento externando agradecimentos. Em meio às autoridades brasileiras e italianas que receberam os aviadores, estava o industrial Fernando Gomes Pedroza, um apaixonado pela aviação.

A Esquadrilha Balbo no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

O comandante afirmou em seu livro que desembarcou muito cansado e sem demora foi logo de carro para a Vila Cincinato, residência oficial do governador do Rio Grande do Norte. Uma verdadeira carreata, na época chamada de “corso de carros”, seguiu atrás do veículo do comandante italiano. Após chegar à residência, Balbo se trancou e foi descansar, mas lá fora uma multidão se formou na calçada para tentar ver o líder fascista italiano. Já os oficiais ocuparam a antiga sede da Escola Doméstica, na Praça Augusto Severo, que estava toda ornamentada, iluminada, com várias bandeiras italianas e brasileiras e sem alunas, pois estavam de férias. Os sargentos foram alojados num prédio recém-construído pela administração do porto. Esses últimos almoçaram no Hotel Avenida, na Tavares de Lira, pertencente ao “majô” Theodorico Bezerra.

Camisas Negras no Palácio Potengi

No outro dia, Ítalo Balbo foi até a sede do Telégrafo Nacional, na Av. Tavares de Lira, 88. Ali foi atendido por Augusto Gonçalves Marques, chefe da estação, onde Balbo lhe agradeceu o apoio nas comunicações durante o voo e depois passou a enviar telegramas. Consta que o primeiro foi para Alberto Santos Dumont, na França, com os seguintes dizeres: “Tocando na sua bela terra depois de um voo transatlântico, eivo-vos, pioneiro das empresas aeronáuticas, a minha calorosa saudação”. O segundo telegrama foi para Mussolini, onde transmitiu as últimas notícias e informou que os membros da esquadrilha “voltavam o seu pensamento devotado ao Duce”. Finalmente escreveu para o ditador Getúlio Vargas uma mensagem de agradecimento, mas sem tantos salamaleques.

O contratorpedeiro Lanzerotto Malocello– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Natal estava em verdadeiro êxtase. Para aonde Balbo e seus homens seguiram eram acompanhados por muita gente. Na passagem dos aviadores o povo ecoava vários “Vivas” a Balbo, Mussolini e à Itália. O movimento das pessoas foi tão grande que até os soldados do 29º Batalhão de Caçadores do Exército fizeram a guarda e a contenção nos locais onde eles se hospedaram e circularam. Enfim, eram figuras de destaque em todos os jornais do mundo e com uma atração que hoje em dia, talvez, só se compare às astronautas. Uma noite os italianos participaram de um jantar de “50 talheres” na Escola Doméstica.

Atracado no Porto de Natal estava o contratorpedeiro Lanzerotto Malocello. Do seu porão foi discretamente retirado um grande e pesado engradado. Este foi levado para uma área próxima ao porto, onde trabalhadores locais construíram uma grande base de alvenaria com três metros de altura e um imenso círculo no centro.

No Palácio do Governo, os italianos foram recebidos pelo então interventor federal Irineu Joffily e o interventor da Paraíba, Antenor Navarro, que ergueram brindes de champanhe pelo sucesso da empreitada de Balbo e seus comandados. Nessa ocasião, Balbo, general Giuseppe Valle e o coronel Umberto Maddalena estavam vestidos com uniformes de gala, mas vários italianos envergavam as nefastas camisas negras fascistas.

Ítalo Balbo e seus comandados com os interventores Irineu Joffily e Antenor Navarro (de óculos)– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Na noite de 7 de janeiro, todos os aviadores foram para o salão nobre do Aeroclube de Natal, para um recital. Foram recebidos pelo casal Fernando e Branca Pedroza e se juntaram as autoridades, entre essas os interventores Joffily e Navarro. De início, Alberto Roseli, um rico comerciante de origem italiana que vivia em Natal há muitos anos, leu uma saudação a Balbo e aos aviadores. Após, um grupo de alunas do último ano da Escola Normal cantaram entusiasticamente a “Giovinezza”, para delírio e encanto dos militares italianos. Todos se colocaram de pé, cantando o hino com vigor e realizando a saudação fascista.

Depois, houve as apresentações musicais de alunos do Instituto de Música do Rio Grande do Norte, escola fundada pelo maestro Waldemar de Almeida. Entre os que se apresentaram estavam Dulce Cicco, Maria da Glória de Vasconcelos Sigaud, Odila Garcia, Anadyl Roseli, Eurídice Vilar Ribeiro Dantas, Dulce Wanderley, Ivone Barbalho. Waldemar de Almeida tocou ao piano a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, uma composição do pianista e compositor norte-americano Louis Moreau Gottschalk. Para orgulho de Fernando e Branca Pedroza, o jovem Fernando Pedroza Filho também se apresentou, tocando ao piano as obras “Gavota” opus 123, da compositora e pianista francesa Cécile Chaminade, e o Prelúdio nº 20, de Frédéric Chopin.

Balbo e seus comandados cantando a “Giovinezza”– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Outro que se apresentou foi um garoto de nove anos chamado Orianne Corrêa de Almeida, primo de Waldemar de Almeida, que tocou uma “Marcha Militar” de Franz Shubert. Tempos depois esse garoto seria conhecido apenas como Oriano de Almeida e se tornou um dos maiores pianistas da história da música brasileira. Segundo me informou o professor Claudio Galvão, autor do livro “O Céu Era O Limite: Uma Biografia De Oriano De Almeida” (2010), não dá para cravar que essa exibição no Aeroclube em 7 de janeiro de 1931 tenha sido a primeira de Orione, provavelmente ele já tinha feito outras em Natal, mas o garoto chamava atenção pela precocidade que, talvez, tenha visto Balbo e seus comandados.

A Coluna Romana

No dia 8 de janeiro de 1931, uma quinta-feira, foi seguramente o mais movimentado dos italianos em Natal. De manhã cedo ocorreu a missa campal presidida pelo Bispo Dom Marcolino Dantas, com saudação aos aviadores que chegaram a Natal, homenagem aos que morreram na travessia e também a memória do falecido aviador italiano Carlo Del Prete, que esteve em Natal em 1928 junto com o colega Arturo Ferrarin. Estavam presentes todos os tripulantes dos hidroaviões, os militares do Lanzerotto Malocello, autoridades potiguares e italianas, além de uma multidão de natalenses, principalmente os moradores da região da Ribeira e das Rocas. Durante a realização da missa, uma aeronave Breguet, da companhia de aviação francesa Latécoère, fez evoluções sobre a audiência e a multidão. Então, novamente a “Giovinezza” foi excetuada na capital potiguar e dessa vez pela banda do 29º Batalhão de Caçadores. Realmente esse hino, que não era o hino oficial do então Reino da Itália, estava fazendo um sucesso danado por aqui.

A Coluna Capitolina em Natal– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

Em seguida, Dom Marcolino benzeu uma Coluna Romana de estilo coríntio, feita de mármore cinza, com cinco metros e oitenta centímetros de altura, uma base de três metros quadrados e confeccionada há mais de dois mil anos. Ela foi originária do Templo de Júpiter, na Colina do Capitólio, ou Monte Capitolino, uma das sete elevações sobre as quais foi fundada a cidade de Roma. Essa era uma das quatro colunas romanas existentes no Novo Mundo e foi um presente do regime de Benito Mussolini à cidade do Natal. Inclusive, a razão oficial para Natal receber um presente tão interessante e importante tinha relação com a passagem de Del Petre por aqui.

Após Ferrarin e Del Petre partirem de Natal em seu voo histórico de 1928, ocorreu um acidente aéreo no Rio de Janeiro e Carlo Del Petre faleceu, fato que gerou enorme repercussão mundial. No ano seguinte Arturo Ferrarin lançou um livro intitulado “Voli por Il Mondo”, onde conta detalhes do voo e descreveu de maneira muito positiva sobre como agiu o Governo do Brasil em relação a morte de Del Petre e como ele e seu amigo foram recebidos em Natal. A repercussão dessa obra então teria gerado no governo Mussolini, ao menos em parte, o desejo de realizar a doação da coluna romana para Natal. Evidentemente que razões estratégicas, ligadas à expansão da aviação comercial italiana no Brasil, também explicaram a doação desse importante monumento histórico.

Rota do voo da Esquadrilha Balbo – Fonte – Arquivo do autor..

Após a missa, Balbo e os militares italianos estiveram na Praça Augusto Severo, onde prestarem uma homenagem ao aviador potiguar, que morreu em seu balão “Pax”, na cidade de Paris em dia 12 de maio de 1902. Balbo solenemente colocou uma coroa de flores na base da estátua de bronze do antigo aviador, abraçou seu filho Sérgio Severo Maranhão e todos os italianos realizaram a saudação fascista.

A noite, novamente os italianos e a sociedade natalense estiveram no Aeroclube, onde os italianos foram apresentados a dança do Maxixe. Conhecido como “Tango Brasileiro”, o Maxixe era uma dança de salão onde um casal se apresentava com bastante sensualidade dos movimentos corporais, o que causou grande furor na arcaica sociedade brasileira. É bem verdade que no início de 1931 essa dança andava meio fora de moda nas grandes cidades brasileiras, mas naquela noite no Aeroclube ninguém se importou muito com isso. Bem, tudo indica que nessa noite, enquanto a maioria dos aviadores assistiam, ou se arriscavam, no Maxixe no Aeroclube, o comandante Ítalo Balbo e alguns poucos oficiais se dirigiram para a casa do rico industrial potiguar Fernando Pedroza.

Fonte – Arquivo do autor.

E o Banho na Praia de Areia Preta?

A mansão dos Pedroza se localizava onde atualmente existe o encontro das Avenidas Nilo Peçanha e Getúlio Vargas, bem próximo do Hospital Universitário Onofre Lopes. Então, para saber mais desse encontro e sobre os anfitriões, procurei o funcionário público Antônio Carlos Magalhães Alves, mais conhecido em Natal como Toninho Magalhães, filho de Elza Pedroza e neto de Fernado e Branca Pedroza. Toninho me narrou que seu avô Fernando Gomes Pedroza nasceu em 30 de março de 1886, no chamado Casarão dos Guarapes, na zona rural da cidade potiguar de Macaíba. A família Pedroza possuía muitos recursos, tendo Fernando ido estudar na Inglaterra e junto com ele seguiu o natalense Manoel Augusto Pereira de Vasconcelos. Um dia Fernando e Manoel viajaram para a Suíça, onde duas irmãs de Manoel estudavam em uma tradicional escola feminina daquele país. Nesse encontro, Fernando conheceu uma moça chamada Branca Fonseca Toledo Piza, natural de Sorocaba, São Paulo e amiga das irmãs de Manoel. Não demorou e o namoro começou entre Fernando e Branca, tendo logo resultado em casamento. Vieram viver em Natal e Fernando Pedroza cresceu na exportação de algodão, a principal fonte de riqueza do Rio Grande Norte durante décadas.

Poster do voo da Esquadrilha Balbo entre a Itália e o Brasil – Fonte – Wikipedia.
Toninho Magalhães fala sobre a recepção pelos seus avós Branca e Fernando Pedroza – Foto – Rostand Medeiros

Certamente deve ter sido um encontro bem interessante e positivo. Tanto que no outro dia, 10 de janeiro, enquanto Balbo e seus oficiais aguardavam a chegada do último S.55A de Fernando de Noronha, ele e o coronel Umberto Maddalena foram aproveitar a praia de Areia Preta. Estavam acompanhados de Dona Branca Pedroza, seus filhos Fernando, Sylvio Piza Pedroza e a caçula Elza Piza Pedroza, e quem fez a foto foi Fernando Pedroza. Todos se mostram muito alegres e molhados, realizando aquilo que é muito normal e natural aos natalenses – Levar para as nossas belas e calientes praias, os visitantes que vem de perto e de longe. Ali já não estavam mais dois dos membros mais importantes do Partido Fascista Italiano e renomados aviadores do seu tempo. Eram apenas dois turistas italianos deslumbrados com nossas belezas naturais e recebendo atenções que tão bem sabemos ofertar a quem nos visita.

Ítalo Balbo em foto após o voo para o Brasil – Fonte – Arquivo do autor.

Já Ítalo Balbo, após completar com sucesso o voo para o Brasil, realizou entre julho e agosto de 1933 um voo com vinte e cinco hidroaviões S.55X, com destino final aos Estados Unidos, sendo essa uma empreitada de enorme repercussão internacional. Balbo levou adiante a construção de um culto político em torno da aviação, tendo alcançado enorme popularidade em todo o planeta, mas sendo considerado politicamente um forte rival de Mussolini. Então a situação de Balbo começou a declinar ante o Regime Fascista.

O final do voo da Esquadrilha Balbo foi no Rio de Janeiro– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.

UMA PEQUENA HISTÓRIA DOS RESTAURANTES DE NATAL E O “ACAPULCO” DE RÔMULO MAIORANA

Rostand Medeiros – Escritor e Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Quando a Segunda Guerra terminou os comerciantes de Natal perceberam que logo os tempos de fartura proporcionado pela presença das tropas norte-americanas na cidade, com muitos dólares nos bolsos e nas mãos, chegaria ao fim. Fato que efetivamente aconteceu quando os últimos gringos partiram em 1947.

Oficiais militares brasileiros e possíveis técnicos americanos norte-americanos, no restaurante do Grande Hotel – Foto – Life Magazine

Mas muitos setores da cadeia produtiva da cidade aproveitaram a circulação dessa gente por aqui, principalmente o de bares e restaurantes. Que nutria expectativas positivas em relação ao futuro, pois nessa época Natal havia chegando aos 100.000 habitantes.

Apesar de todo esse movimento e otimismo, ao analisarmos os antigos jornais percebemos um elevado número de reclamações dos frequentadores dos restaurantes locais.

Lugares Para se Comer, dar Tiros e Brigar

No velho bairro da Ribeira existia um local que para alguns era apenas um café, para outros um restaurante, mas o certo é que no final da década de 1940 o “Cova da Onça” era um dos pontos mais tradicionais da cidade. Com bons quinze anos de funcionamento, ficava localizado na Avenida Tavares de Lira, bem próximo ao Rio Potengi, sendo um ambiente muito ligado às questões políticas da cidade. Basicamente era frequentado por homens, sendo também “um ponto de intercâmbio da grei intelectual da terra”, como certa vez comentou o escritor natalense Francisco Amorim.

Mas na década de 1930, como muita coisa que se relacionava com a política local era motivo para extremas violências, o “Cova da Onça” também teve seu momento de medo e tensão.

Na manhã do dia 29 de outubro de 1935 estava deixando Natal o bacharel em Direito Mário Leopoldo Pereira da Câmara, que desde 2 de agosto de 1933 exercia a interventoria federal no Poder Executivo do Rio Grande do Norte. Seu governo foi marcado por muitas obras, mas também por despotismo, radicalismo, extremismo e violência, até que a oposição local manobrou para lhe apear do poder e Getúlio Vargas o chamou de volta ao Rio de Janeiro.

Nesse dia Mário Câmara se dirigiu ao cais da Avenida Tavares de Lira para embarcar em um hidroavião da empresa aérea Sindicato Condor, sendo seu carro acompanhado por um grande número de membros da Guarda Civil, órgão de segurança pública criado por ele anos antes. Justamente ao passar em frente ao “Cova da Onça”, os adversários cobriram na vaia o ex-interventor e os membros dessa força policial. Diante da afronta esse pessoal armado não contou conversa e, em meio a tensão reinante, sacaram de suas armas e mandaram bala em direção ao restaurante. Na confusão teve até padre de Parabélum na mão, que abriu fogo contra outros cristãos. Por milagre, só quatro ficaram feridos.

Não está acreditando que na bela e tão decantada Natal do passado existiam esses arroubos de violência política? Então veja essa foto acima, de uma das páginas do processo aberto sobre os fatos ocorridos naquele dia, com o depoimento do comerciante José Mesquita.

Voltando aos restaurantes…

Nesse final da década de 1940, quando a Ribeira era muito frequentada e o transporte ferroviário tinha uma atuação muito intensa, com linhas de trens chegando ao distante interior potiguar, dentro da Estação Ferroviária da Central, na Praça Augusto Severo, existia o “Restaurante Café-Central”, com serviço de bar e restaurante, onde se destacava um farto almoço e um gostoso “Café Expresso” para o público que embarcava e desembarcava dos vagões.

Área do Grande Ponto, no centro de Natal, em 1941 – Foto – Life Magazine

Nesse período o principal restaurante da cidade ficava na esquina das ruas João Pessoa e Princesa Isabel, no centro da cidade e pertinho da área conhecida pelos natalenses como Grande Ponto. O local se dividia entre restaurante e sorveteria e se chamava “Cruzeiro”, pertencendo a Afonso China, tendo a parte operacional ficado a cargo de Francisco de Assis Bezerra. Essa casa abriu em fevereiro de 1945, onde ali aconteceram muitos eventos importantes do “Grand Monde” da cidade.

Pertinho dali existia o “Bar e Restaurante Grande Ponto”, do qual consegui poucas informações. As mais relevantes foram duas e que nada comentaram sobre questões gastronômicas. Em maio de 1947, provavelmente por razões ligadas à política, os bacharéis de Direito Romildo Fernandes Gurgel e João Medeiros Filho saíram no bofete dentro desse local. Um ano depois estavam respondendo ao competente processo, que seguia tendo à frente o promotor Aderson Dutra Lisboa. A bronca judicial, como era normal, não deu em nada, mas o restaurante palco do pugilato de tão nobres figuras foi logo posto à venda [1].

Tempos depois um articulista desconhecido reclamou que esse local deixou de ser um restaurante para se tornar um salão de bilhar e sinuca e que tal fato também tinha acontecido anteriormente com uma popular sorveteria chamada “Rio Branco”, na avenida homônima, que deixou de vender gelados para se tornar um salão de esporte de tacos e bolas [2].

Havia o “Restaurante Rinder Bar”, também conhecido como “Restaurante de Areia Preta”, localizado na praia do mesmo nome, que tinha boa comida, principalmente frutos do mar. Mas naquela época o lugar era considerado tão longe da cidade que em maio de 1946, quando ali foi organizado um jantar para homenagear o Sr. José Anselmo, novo diretor dos Correios e Telégrafos, foi necessário disponibilizarem um ônibus no Grande Ponto para levar os convidados [3].

Na Rua João Pessoa, número 118, funcionava o “Restaurante Dois Amigos”, vizinho ao “Taco de Ouro” (outro bilhar), creio que na área da atual Praça Kennedy, antiga Praça das Cocadas. Era pequeno, mas muito conceituado e tinha ótima comida, sendo muito bem frequentado.

Segundo me informou o amigo Vidalvo Silvino da Costa, o querido Dadá, empresário de sucesso, proprietário da renomada Cachaça Samanaú e grande referência da cidade seridoense de Caicó, seu irmão Ridalvo Costa, Desembargador Federal da 5ª Região, frequentou quando jovem o Restaurante Dois Amigos e lembrou algumas coisas interessantes sobre esse local.

Apesar do nome do estabelecimento, havia uma sociedade que envolvia três seridoenses. Dois deles eram os irmãos Neo e Eustáquio, donos da camisaria União e naturais da cidade de Parelhas, e Antônio Alves da Costa, cunhado dos dois irmãos e tio de Ridalvo e Dadá. Para Ridalvo o Restaurante Dois Amigos foi o primeiro que ele conheceu. Possuía mesas pequenas com toalhas brancas, serviam pães em rodelas, acompanhados de manteiga em pequenos recipientes de vidro. Ele comentou que nunca tinha visto manteiga de lata e nem camarão, mas viu e degustou essas novidades no Dois Amigos.

Foto – Coleção Eduardo Alexandre Garcia.

Na antiga Praça Pio X, onde hoje se ergue a Catedral de Natal, existia um restaurante, ou uma peixada, bem no meio da praça e que tinha uma arquitetura bem peculiar, sendo o prédio conhecido como “avião”. Era pequeno e aparentemente muito simples, mas existem inúmeras referências de encontros sociais e recepção de ilustres visitantes neste local. Como não tinha nada melhor pelo preço cobrado, levavam para esse mesmo. O lugar era conhecido nessa época como “Restaurante da Praça Pio X”, ou “Restaurante Noturno”, pois como a praça não tinha árvores e o calor era grande durante o dia, ele só abria a noite. Também encontrei referências que chamavam o local como “Peixada do Gabriel”. E como tudo nesse estabelecimento se ligava a Igreja, ele deixou a Pio X em 1955 e abriu suas portas na Praça Padre João Maria [4].

Muitas Reclamações

De maneira geral era isso que havia para degustar em Natal, com certo nível de qualidade. Mas quando lemos a quantidade de críticas sobre os restaurantes na urbe, percebemos que a situação era um tanto complicada nesse setor.

E críticas sobre essa questão vinham de todos os lados!

Começamos pelo Mestre Luís da Câmara Cascudo, que em uma “Acta Diurna” denominada “Natal precisa de cardápio…”, afirmava que Natal precisava “ter o direito de conquistar um cardápio brasileiro” e que era “preciso estabelecer dias certos para os pratos nacionais e divulgar na imprensa quais são esses dias”. O ilustre escritor, no alto dos seus conhecimentos sobre a alimentação no Brasil, afirmou que essa ideia não se tratava de “modificar o paladar, mas de ampliar os conhecimentos culinários e degustativos do cidadão natalense”.

Ele não reclamava de uma alguma possível invasão de comida yankee nos pratos natalenses, mas da “uniformização dos cardápios” existente nos restaurantes locais. Para ele isso era uma “catástrofe”. O interessante é que o exemplo que Cascudo apresenta para essa uniformização, ainda vemos a rodo nos “PFs” da vida. – “Fatalmente encontramos os mesmos pratos, com o mesmo arroz embolado e o mesmo falso churrasco com farinha amarela”.

Foto atual do restaurante “Farrta Brutus”, em Lisboa, comentado em 1948 por Câmara Cascudo como um exemplo de restaurante a ser seguido em Natal – Fonte – https://www.tripadvisor.com.br/Restaurant_Review-g189158-d983771-Reviews-Farta_Brutos-Lisbon_Lisbon_District_Central_Portugal.html.

Como referência do que poderia ser feito em Natal, Cascudo comentou que, através de informações que recebeu de oficiais norte-americanos servindo na capital potiguar, conheceu em Lisboa um restaurante maravilhoso. O lugar se chamava “Farta Brutus”, era muito bem recomendado por não abrir mão da tradicional culinária lusitana, com muita variedade e alta qualidade do que era oferecido [5].

O interessante é que o “Farta Brutus” ainda funciona no mesmo local desde 1904, mais precisamente no Bairro Alto, Travessa da Espera, número 20. Atende com a mesma proposta do passado, mantendo a mesma qualidade e atraindo uma clientela fiel. Entre estes o escritor português José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e falecido em 2010, que tinha até uma mesa preferida no salão principal da casa [6].

Uns dois meses antes de Cascudo publicar essa “Acta Diurna”, no mesmo texto que um autor desconhecido reclamou da transformação do restaurante “Grande Ponto” em salão de sinuca, ele realizou uma severa crítica sobre os restaurantes de Natal. E o cidadão “rasgou o verbo”.

Afirmou que apesar de existirem muitos bares e restaurantes na cidade, nenhum deles “estava à altura do nosso progresso”. Reclamou da apresentação de pratos e talheres nesses estabelecimentos, onde existiam “xícaras de beira tiradas” e lamentava o “descuido” com a conservação desses lugares. Já as cozinhas normalmente estavam abertas, mas não primavam pela limpeza. Com uma péssima impressão em relação ao asseio [7].

Um outro articulista, sem declinar o nome, não reclamou da questão do estilo dos pratos preparados, ou da conservação e limpeza dos restaurantes, mas chiou com os preços altos e o péssimo atendimento. Afirmou que comer fora em Natal no ano de 1948 era caro, talvez “a cidade no Brasil onde se paga muito pela alimentação e a que pior serve”.

Essa pessoa comentou essa questão no momento em que Natal perdia alguns voos internacionais que aqui realizavam suas paradas para reabastecimento, embarque e desembarque de passageiros. Como nessa época a questão da autonomia e velocidade dos aviões de transporte não contava com as vantagens tecnológicas dos dias atuais, muitas das aeronaves dessas empresas realizavam paradas de algumas horas em Parnamirim e seus passageiros pernoitavam em Natal. Pernoitavam mal e comiam pior! [8].

Uma charge publicada no Diário de Natal em 1949, sobre a situação dos restaurantes em Natal.

Em meio a essas situações, a cidade oferecia a possibilidade de sucesso para um empreendedor que tivesse a iniciativa de abrir um bom restaurante.

Uma Família de Italianos Que Aprendeu Que em Natal “Se Paga 20, Para não Ver o Outro Ganhar 10”

Provavelmente após o fim da Segunda Guerra, talvez em 1946, foi quando Francisco Maiorana veio junto com sua família para a capital potiguar, oriundos de Recife, Pernambuco. Na realidade seu nome era Francesco, mas aqui teve o nome abrasileirado para Francisco. Acredito que nasceu no final do Século XIX, ou nos primeiros anos do Século XX. Era oriundo do sul da Itália, da cidade de Totora, região da Calábria, província de Cosenza [9].

Em Recife ele era conhecido como “comerciante”, sendo casado com Angelina Chiappetta Miorana, que provavelmente também nasceu no sul da Itália. Eles tinham um filho de nome Rômulo Elégio Dario Severo Miorana Chiappetta, nascido em Recife no dia 20 de outubro de 1922. Sabemos que Rômulo tinha um irmão chamado Francisco (ou Francesco?), que se formou em economia, mas dele não obtive maiores informações.

Descobrimos também que esse casal de italianos morava na região da Várzea, zona oeste de Recife [10]. Inclusive para corroborar a localização onde vivia essa família, existe uma notícia de 1928 informando que Rômulo Maiorana, quando tinha apenas seis anos de idade, se destacou nos quesitos de “comportamento e aplicação”, no curso infantil do Colégio Oratório da Divina Providência, no bairro da Várzea, comandado na época pelas irmãs Magdalena e Veronica [11].

Os jornais não esclarecem qual era a atividade comercial que Francisco realizava, mas trazem bastante informações sobre a movimentada e respeitada “Escola de Corte e Alta Costura de Mademoiselle Angelina Maiorana”, que funcionava no primeiro andar do número 76, na Praça do Mercado São José, também conhecida como Praça Dom Vital, vizinho a Basílica da Penha [12]. E o negócio andava tão bem que encontrei a informação que Dona Angelina e o jovem Rômulo, então com 16 anos, partiram de Recife no transatlântico Oceania, em direção ao porto de Nápoles, Itália [13].

Provavelmente foi nesse momento que Rômulo ficou na Itália para estudar e foi envolvido pela participação desse país na Segunda Guerra. Ele foi incorporado ao exército de Mussolini, mas ficou na retaguarda, com a função de datilógrafo. Já sua família passou por dificuldades no Brasil.

Segundo uma notícia do jornal recifense Diário da Manhã, de 21 de agosto de 1942, Francisco Maiorana foi preso em Maceió, Alagoas, juntamente com outros oito homens, todos acusados de serem “Súditos do Eixo”, ou seja, simpatizantes do nazifascismo. Não sei se pesou nessa decisão o fato do seu filho se encontrar na Itália, envergando o uniforme do exército desse país.  

O certo é que em agosto de 1942 Francisco Maiorana esbarrou com o bacharel em Direito Ari Boto Pitombo, um dos mais severos e duros homens da lei em Alagoas durante o período da Ditadura Vargas.

Consta que após os afundamentos dos navios brasileiros nas costas dos estados de Sergipe e da Bahia, que levaram à morte de mais de 500 pessoas, o Dr. Pitombo mandou encarcerar mais de 30 “súditos dos países totalitários” e colocou esse pessoal todo para trabalhar de enxada na mão, abrindo valas nos bairros de Maceió para o “Serviço da Malária” e sob guarda fortemente armada [14].

Alemães e italianos presos e no trabalho forçado em Maceió.

Não sabemos a razão de Francisco Maiorana ficar preso na “Terra dos Marechais”, mas é importante ressaltar que em nossa pesquisa nos jornais disponíveis no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, não encontrei a menor referência que ele tenha atentado contra a integridade da nação brasileira em Estado de Guerra.

Tudo indica que para ele e sua família a situação foi muito pesada. Com o fim da Segunda Guerra e o retorno do seu filho Rômulo da Europa, eles decidiram se mudar para Natal.

Na capital potiguar Francisco Maiorana abriu as portas de um comércio na Rua Princesa Isabel e o batizou de “Casa Vesúvio”. O nome era em alusão ao Monte Vesúvio, um dos mais ativos e perigosos vulcões do mundo, que fascina os italianos do sul, fica a poucos quilômetros do centro da cidade de Nápoles e a cerca de 200 km ao norte de Totora.

Os Maiorana trabalhavam bastante no seu comércio, vendendo roupas, perfumarias, miudezas, bicicletas, plásticos, rádios valvulados, brinquedos e muito mais. Era uma típica loja daquelas “tem de tudo” e por preços em conta. Mas eu percebi que conforme os Maiorana cresciam, aqueles italianos começaram a incomodar.

Foto – Coleção Eduardo Alexandre Garcia.

Infelizmente Natal é uma cidade conhecida pela inveja e mau-caratismo para com os comerciantes que crescem trabalhando. Tanto que por aqui se criou uma expressão onde se diz que “fulano paga 20, para não ver o outro ganhar 10”. E logo os Maiorana aprenderam essa lição!

Uma pessoa que se identificou apenas como “Um leitor”, escreveu no jornal católico natalense A Ordem, que os proprietários da “Casa Vesúvio” não respeitavam do descanso dominical, trabalhando nesses dias e que durante a semana só fechavam o estabelecimento após as 19 horas e assim desrespeitavam a “legislação municipal” [15].

Eu não descobri se os Maiorana pagavam corretamente aos seus funcionários por horários extras, mas não encontrei reclamações desses trabalhadores junto ao Sindicato dos Comerciários, que era bem ativo e forte nesse período. E vale frisar que a reclamação desse dito “Um leitor”, em nenhum momento comentou qualquer preocupação com a situação dos trabalhadores de Francisco Maiorana.

Centro de NatalFoto – Coleção Eduardo Alexandre Garcia.

O certo é que um ano depois esse mesmo jornal divulgava, até com destaque, que a “Casa Vesúvio” havia ofertado “10 saquinhos de pipocas” para um sorteio do “Suplemento do Boletim Católico”, a página infantil publicada semanalmente pelo jornal. Não sei se os Maiorana continuaram abrindo nos horários e dias que geraram a reclamação, mas o certo é que não surgiram mais publicações negativas para a “Casa Vesúvio” nesse jornal [16].

É fácil perceber que a firma dos Maiorana teve um crescimento e ascensão muito rápido na capital potiguar no final da década de 1940. Daí, quem começa a surgir nas páginas dos jornais é Rômulo, que se aproximava dos 30 anos de idade.

Esquina das ruas João Pessoa e Princesa Isabel, no centro de Natal, onde funcionou o restaurante “Acapulco” – Foto – Google Street Wiel

Três situações parecem ficar patentes em relação a Rômulo e sua convivência com Natal e sua gente – A sua paixão pelo carnaval, pelo América Futebol Clube e por cultivar bons relacionamentos e amizades. Talvez por essas razões (e outras que desconheço) ele decidiu abrir nos primeiros meses de 1950 um tipo de negócio que estava bastante carente em Natal – Um restaurante com um elevado padrão de qualidade.

O “Acapulco”

Aproveitando que o restaurante “O Cruzeiro” havia fechado na esquina das ruas Princesa Isabel com João Pessoa, Rômulo Maiorana negociou o ponto. No dia 30 de março de 1950, uma quinta-feira, abriu um novo restaurante que ele denominou “Acapulco”.

Consta que ele se aliou com um húngaro chamado Zoltan Fried, que havia deixado a cidade de Kisvárda em 1946, certamente quando começou a perceber que o seu país caminhava para se transformar na República Popular da Hungria, fato que efetivamente aconteceu em 18 de agosto de 1949. Aparentemente ele procurou refúgio na Itália, pois morava na cidade de Florença, na Via Pandolfini, número 27. Em 21 de outubro de 1946 conseguiu o visto no Consulado do Brasil em Livorno e veio para o nosso país. Certamente esse húngaro chegou em Natal após ter tido algum nível de contato com Rômulo na Itália.

Em Natal já existiam locais que ofereciam um “chá das cinco”, até bombonieres e charutarias bem sortidas. O que aparentemente o “Acapulco” trouxe de diferente foi reunir tudo isso em um único local junto ao atendimento implementado pelo húngaro Zoltan.

Os dois sócios começaram a oferecer sistema de “delivery”, além de quase 50 pratos diferentes, com destaque para o “Filé Acapulco”, e mais de 30 tipos de sobremesas. Eles tinham uma adega bem sortida com vinhos portugueses, franceses, italianos, chilenos e nacionais. Logo a classe política se fez presente no restaurante “Acapulco”, conforme podemos ver na nota abaixo.

Além dos políticos, os jornalistas eram frequentadores habituais do local. Uma noite Aderbal de França, o conhecido cronista “Danilo”, chegou acompanhado de Veríssimo de Melo e Waldemar Araújo. Gostaram do que viram, do que comeram e “Danilo não economizou nos comentários positivos ao restaurante – “Convenhamos que numa cidade onde praticamente não existem hotéis e as casas de pasto primam sempre pelo péssimo serviço que oferecem e pela mais absoluta falta de higiene, um restaurante e quem se esforça por servir bem a clientela tem o direito de sobrevivência”.

“Danilo” também comentou que no “Acapulco” foram todos muito bem atendidos por Rômulo Maiorana, que colocou um garçom chamado Menezes, que os frequentes fregueses do meio político acharam de chamá-lo de “Senador” [17]. 

O “Acapulco” se tornou a nova coqueluche de Natal e começou a ser frequentado até pelos artistas de renome nacional e internacional que vinham se apresentar na cidade.

Um ano depois de inaugurado chegaram ao restaurante as cantoras paulistas Hebe Camargo e Lolita Rodrigues, acompanhadas do cantor italiano Ernesto Pietro Bonino. Esse trio realizou três noites de apresentações no palco da Rádio Poti de Natal, a ZYB-5, com grande sucesso de público [18]. Mas, segundo os jornais locais, foi a cantora Ademilde Fonseca, potiguar de São Gonçalo do Amarante e conhecida como “Rainha do Chorinho”, que verdadeiramente roubou a cena. Ademilde morava no Rio de Janeiro desde 1941, sendo a primeira cantora nordestina a encantar o país com esse gênero gracioso, brejeiro e bastante difícil de ser cantado.

Logo o “Acapulco” se tornou o ponto de referência dos artistas locais. Em 28 de janeiro 1952 o teatrólogo Inácio de Meira Pires lançou uma peça chamada “Alguém chorou a perdida“, escrita por Jaime dos G. Wanderley. Meira Pires se apresentou sozinho, interpretando os dramas do personagem “Evaldo”, que ele apontou como sendo “um homem só, com o seu desespero”. A apresentação foi um sucesso, sendo o cenário e o cartaz criações do pintor Newton Navarro.

Depois da apresentação Meira Pires, Wanderley, Navarro e Celso da Silveira, que contribuiu para a apresentação teatral, chegaram por volta das 23 horas no “Acapulco” para comemorar. O jantar contou com a participação de várias personalidades, como Aldo Cavet, Diretor do Serviço Nacional de Teatro, que veio do Rio de Janeiro para o lançamento. Além dele políticos da terra como Aluízio Alves e seu irmão Garibaldi estiveram presentes. Otoniel Menezes, apresentado pelos jornais como “príncipe da poesia potiguar”, declamou versos no “Acapulco” que foram apreciados por todos.

No Pará

Apesar do sucesso do empreendimento, ainda em 1952 Rômulo Maiorana deixou a sociedade desse restaurante e logo se mudou para o norte do país, para a cidade de Belém, no Pará. Não descobri a razão para isso!

Rômulo Maiorana

Lá ele esteve envolvido em vários negócios comerciais e se tornou dono de um jornal chamado “O Liberal” e anos depois criou o “Grupo Liberal”, que atualmente é o maior grupo de comunicação do estado do Pará e o 9.º maior grupo de comunicação do Brasil.

Nos jornais potiguares estão registradas várias visitas de Rômulo Maiorana a Natal e em várias ocasiões ele recebeu os muitos amigos natalenses que estiveram em Belém. Como foi o caso de Aderbal de França, que lá esteve em 1957 e lembrou essa visita anos depois [19]. 

Apesar de Rômulo Maiorana ser um homem de jornalismo muito respeitado no norte do país, ter muitos amigos em Natal e manter boas relações com os órgãos de imprensa do Rio Grande do Norte, quando ele faleceu aos 63 anos, no dia 22 de abril de 1986, me causou estranheza ter sido publicado praticamente nada sobre esse fato. 

Rômulo Maiorana conseguiu muito sucesso na área de comunicação no Pará.

Se não fosse seu amigo Mozart de Almeida Romano ter mandado rezar uma missa de sétimo dia pelo seu falecimento e o jornalista Vicente Serejo ter publicado uma nota sobre essa missa na sua coluna “Cena Urbana”, do jornal dominical O Poti (ed. 27/04/1986), muita gente em Natal desconheceria sobre o seu passamento. 

Atualmente uma rua no Conjunto Morada Nova, no bairro de Felipe Camarão, homenageia o jornalista Rômulo Maiorana.

NOTAS


[1] Ver Diário de Natal, edições de 14/03/1948, domingo, p. 12 e 11/04/1948, domingo, p. 7.

[2] Ver Diário de Natal, ed. 05/08/1948, sexta-feira, p. 3.

[3] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 01/03/1946, terça-feira, p. 4.

[4] Ver Diário de Natal, edição de 17/02/1950, sexta-feira, p. 6. e o jornal O Poti, 02/12/1955, sexta-feira, p. 3.

[5] Ver Diário de Natal, ed. 02/07/1948, sexta-feira, p. 2.

[6] Sobre o Restaurante “Farta Brutus” de Lisboa, ver – https://www.tripadvisor.com.br/Restaurant_Review-g189158-d983771-Reviews-Farta_Brutos-Lisbon_Lisbon_District_Central_Portugal.html

[7] Ver Diário de Natal, ed. 05/08/1948, sexta-feira, p. 3.

[8] Ver Diário de Natal, ed. 10/08/1948, terça-feira, p. 4. 

[9] Ver Diário de Natal, ed. 21/11/1972, terça-feira, p. 8. Existe uma outra informação, não confirmada, de que Francisco seria da cidade de Aieta, ao sul de Totora.

[10] Ver Diário de Pernambuco, ed. 31/12/1930, quarta-feira, p. 3.

[11] Ver Diário de Pernambuco, ed. 05/12/1928, quarta-feira, p. 4.

[12] Ver Diário da Manhã, Recife-PE, ed. 07/02/1937, domingo, p. 3.

[13] Ver Diário da Manhã, Recife-PE, ed. 09/01/1938, domingo, p. 4.

[14] Ver jornal Diretrizes, Rio de Janeiro, ed. 14/01/1943, quinta-feira, pág. 9 e https://www.historiadealagoas.com.br/ari-pitombo-getulista-e-lider-trabalhista.html

[15] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 21/03/1947, sexta-feira, p. 4.

[16] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 13/04/1948, terça-feira, p. 3.

[17] Ver Diário de Natal, ed. 23/15/1950, terça-feira, p. 5.

[18] Ver Diário de Natal, ed. 17/04/1951, terça-feira, p. 6.

[19] Ver Diário de Natal, ed. 13/09/1963, sexta-feira, p. 4.

NÍSIA FLORESTA BRASILEIRA AUGUSTA – UMA MULHER À FRENTE DE SEU TEMPO

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Nísia Floresta Brasileira Augusta

Autor – Elfi Kürten Fenske

Fonte – http://www.elfikurten.com.br/2015/07/nisia-floresta-brasileira-augusta.html?m=1

Dionísia Gonçalves Pinto (Nísia Floresta).. [Papary {hoje Nísia Floresta} RN, 12.10.1810 – Rouen, França, 24.4.1885]. Com o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta, foi educadora, “viajante ilustrada”, “nacionalista”, “pré-feminista”, escritora, abolicionista, ativista dos direitos humanos, indianista e republicana. Mostrou uma preocupação filosófica com o cotidiano brasileiro da época em que viveu e se dedicou a propor uma reforma na educação das meninas no Brasil. Preocupou-se, principalmente, com a educação e o papel das mulheres em nossa sociedade, acreditando que o progresso de uma sociedade dependia da educação que era oferecida às meninas. Para Nísia Floresta, as meninas deveriam estudar porque a mulher exerce uma influência real sobre o destino de seu marido e sobre os destinos das nações e as meninas deveriam ser educadas para terem o reconhecimento da sociedade.

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Nísia Floresta escreveu sobre os direitos das mulheres e viabilizou o acesso à educação de algumas meninas, lutando para que elas valorizassem os estudos. Foi uma educadora que encarou a educação das meninas como uma missão, além de ter discutido a questão indígena de forma singular, valorizando o papel das mulheres, e de ter provocado as autoridades da época ao questionar sobre o poder e a supremacia dos homens brancos. Suas críticas atingiam também mulheres que deixavam os seus filhos e filhas nos braços das amas de leite.  Ensinava os valores necessários a uma educadora e afirmava que as mulheres poderiam ocupar os cargos públicos. Defendia a ideia de uma nação civilizada que só chegaria a esse patamar se as mulheres fossem educadas e participassem do contexto social.

Nísia Floresta desafiou uma cultura onde as mulheres não eram valorizadas. Superou diversos opositores, fundou colégios para meninas – como o Colégio Augusto – cobrando, assim, o acesso das mulheres ao campo do saber.

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Nísia Floresta Brasileira Augusta Selo Correios (1954)

Foi cuidadosa e metódica, conseguindo levar a sua mensagem à sociedade da época em jornais lidos pela elite e pelas autoridades. Seu colégio teve existência curta e gerou polêmicas que a impediram de tornar possível muito daquilo que escrevia.  O que encontramos em suas obras é um material riquíssimo para os estudos de gênero, pois denunciam o preconceito dos homens em relação às mulheres tal como ocorria no século XIX.

Nísia Floresta, apesar das condições desfavoráveis à mulher, escreveu cerca de quinze títulos ao longo dos seus 74 anos, dentre poemas, romances, novelas e ensaios, sendo alguns reeditados mais de uma vez. Suas obras foram publicadas em diferentes idiomas e muitas dessas foram publicados pela imprensa.

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Nísia Floresta, jovem

Nos lugares por onde andou  (Recife, Olinda, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Lisboa, Coimbra, Londres, Roma, Florença, Nápoles, Paris, Cannes, Alemanha, Bélgica, Suíça, Sicília, Inglaterra, Grécia, Rouen, entre outros), Nísia Floresta escreveu sobre a condição e a vida das mulheres, sobre a educação para meninas e sobre o que via nesses países, denunciando uma sociedade que legitima as desigualdades, lutando por essa causa em uma época em que as mulheres não eram reconhecidas.

Nísia desejou que todas as mulheres fossem cidadãs. Para isso, elas deveriam estudar e a sociedade teria que ser trabalhada para respeitá-la e inseri-la em todos os setores sociais, sem deixar de lado o seu papel de filha, irmã e mãe.

Sofreu influência do positivismo: o pensamento de que educar a mulher é contribuir para a dignidade da família e do mundo traz impregnado o ideário positivista. Impregnada das contradições de seu tempo, educar a mulher significava contribuir para a dignificação da família, da nação e do mundo. A mulher, para Nísia, servia como “o modelo da família” e deveria conservar a dignidade, através da “educação religiosamente cristã” que ela defendeu. A educação “religiosamente moral” iria ajudar as meninas a não se “desviarem”. Fazia apelos aos pais, buscando uma melhor educação para as mulheres.

Escreveu também sobre o Colégio Augusto, sobre o entendimento que tinha a respeito do que deveria ser a mulher e sobre o que o governo estava fazendo em favor do ensino primário das meninas (capítulo XXXVI do Opúsculo Humanitário). Analisou, ainda, o quadro demonstrativo do Estado da Instrução Primária e Secundária das Províncias do Império e Município da Corte, no ano de 1852. Baseando-se nele, afirmou que o número de alunos que frequentavam as aulas era reduzido para a população da época e apontou o seu olhar para o número de meninas: “a estatística dos alunos que frequentaram todas as aulas públicas monta a 55.5000, número tão limitado para a nossa população, e que neste número apenas 8.443 alunas se compreendem” (Nísia Floresta, 1989, p. 81). 

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Túmulo de Nísia Floresta, na cidade que possui o seu nome. – Fonte – https://www.flickr.com/photos/egbertoaraujo/6076586568

Denunciou o atraso que se encontrava a instrução feminina e nem mesmo as falas presidenciais escaparam ao seu senso crítico. Para ela, as causas que atrapalhavam os progressos na educação eram a falta de interesse e a negligência, por parte do governo da época, o descaso das autoridades que não pensavam nos métodos, não elaboravam as leis e tampouco criavam mais escolas para meninas, ou seja, não se preocupavam com a educação delas.

Além disso, “os encarregados do ensino” eram inaptos e os pais, em muitos casos, não falavam sobre tais problemas. Nísia pesquisou sobre a educação da mulher brasileira. Desejava que a educação da mulher fosse preocupação das autoridades (governo) e do povo brasileiro. Denunciou as casas de instruções que eram dirigidas por pessoas que chegavam de outros países com interesses comerciais, transformando-as em negócio, com raras exceções.

Além disso, fez a crítica ao comércio de escolas, feita por estrangeiros. Criticou os impressos de propagandas da época, que mostravam novidades e ostentação nos colégios que “faziam pretensiosas promessas, contando com a credulidade do público, que era solícito em acolher sem verificar antes” (Floresta, 1989, p. 78).

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Museu Nísia Floresta – http://www.conhecendomuseus.com.br/museus/museu-nisia-floresta/

Muitos desses eram comerciantes e artesãos e, para ela, não deveriam ser preceptores da mocidade brasileira. Mesmo apreciando os talentos dos estrangeiros, no que diz respeito à educação, percebia que eram poucos aqueles que poderiam instruir o povo brasileiro e utilizar o próprio conhecimento, ou seja, oferecer instrução e trabalho.

Nísia Floresta escreveu quinze livros, publicados no Brasil e em países da Europa. As obras originais vem assinado com diferentes pseudônimos: Nísia Floresta, Uma brasileira, Telesilla, F. Augusta Brasileira, N. F. Augusta, ou simplesmente B.A eram alguns dos pseudônimos de Dionísia Gonçalves Pinto.

“Quanto mais ignorante é um povo tanto mais fácil é a um governo absoluto exercer sobre ele o seu poder. É partindo desses princípios, tão contrário à marcha progressista da civilização, que a maior parte dos homens se opõe a que se facilite à mulher os meios de cultivar o seu espírito.” 
– Nísia Floresta, em “Opúsculo humanitário”. (1853).. [introdução e notas de Peggy Sharpe-Valadares; posfácio de Constância Lima Duarte]. São Paulo: Cortez Editora, 1989. p. 60.