1941 – SÓ UM VOLTOU… E PASSOU PELO RIO, RECIFE E NATAL

A Interessante História do Piloto da Luftwaffe Franz von Werra, o Único Prisioneiro de Guerra Alemão Que Conseguiu Voltar Para a Sua Pátria. E no Caminho Dele Estava o Brasil. Uma Vitória da Espionagem Nazifascista em Nosso País e Como Eles Enganaram a Polícia de Getúlio Vargas..

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Franz von Werra, cujo nome original era François Gustave von Werra, nasceu em Leuk, no cantão suíço de Valais, em 13 de julho de 1914. Era filho do Barão Leo von Werra, um nobre empobrecido devido a decadência econômica dos seus negócios.

Quando a família perdeu as finanças, seu pai confiou a educação de Franz e de sua irmã Emma à família da Baronesa von Haber, uma representante autorizada da aristocracia alemã. Eles cresceram na casa Haber e o menino mudou seu nome, tornando-se Franz von Werra.

Franz von Werra

Em 1936, após a sua formatura, Werra alistou-se na Luftwaffe, a Força Aérea da Alemanha de Hitler. Obteve sua licença de piloto em 1938 e foi designado para um esquadrão de caça. Com a eclosão da Segunda Guerra, Werra e a sua unidade participam da conquista da França e em maio de 1940 ele derruba sozinho dois bombardeiros franceses e é condecorado com a Cruz de Ferro. Consta que teria destruído mais duas aeronaves inimigas.

Desenho com o esquema de cores do caça Messerschmitt ME 109 do tenente Werra.

A Autopromoção de Um Piloto de Caça.

Durante a Batalha da Inglaterra, quando os pilotos alemães se bateram contra os aviadores da Força Aérea Real, ou Royal Air Force (a famosa RAF), Werra alegou que derrotou e destruiu nove aviões ingleses, quatro no ar e cinco em terra. No entanto, por falta de testemunhas, seus superiores creditaram apenas quatro aeronaves abatidas em voo e ele recebeu uma segunda condecoração.

Werra e o filhote de leão.

Ambicioso, o tenente Franz von Werra logo percebeu que para ter uma carreira de sucesso na Luftwaffe não bastava apenas conquistar vitórias no ar, era necessário realizar muita autopromoção. Ele começou a usar regularmente o título de “Barão” e em uma ocasião, quando um grupo de jornalistas visitou a sua esquadrilha para uma sessão de fotos e entrevistas, o tenente Werra apareceu com um pequeno leão vindo de um zoológico alemão. O animal era chamado de Simba e o piloto disse aos visitantes que ele era “o mascote da unidade”. Como era uma mascote bem diferente, os fotógrafos fizeram a festa. A série resultante de fotografias mostrava Werra posando no cockpit de seu caça Messerschmitt ME 109, usando o boné de oficial e segurando Simba para a câmera. As imagens do piloto e do leãozinho apareceram nas mais populares revistas da Alemanha.

Em 5 de setembro de 1940, caças ME 109 decolaram de Calais, França, em direção à Inglaterra, como parte de uma escolta para um ataque de bombardeiros, sendo um dos caças pilotado por Werra. No retorno da missão eles foram atacados por vários aviões de caça Spitfire e a aeronave de Werra foi atingida. Ele então realizou um pouso de emergência bem sucedido em uma área de plantação. Depois que a nuvem de poeira baixou, o piloto do Messerschmitt danificado levantou o capô e saiu do cockpit ileso. Percebeu que não tinha como fugir e ficou ao lado da aeronave. Seus captores o encontraram queimando calmamente seus documentos de voo.

O caça Messerschmitt ME 109 de Werra nas mãos dos ingleses.

O Cativeiro e as Fugas.

Franz von Werra foi levado pelos militares para interrogatório. Ocorre que os ingleses sabiam do gosto daquele alemão pelos holofotes e lhe dedicaram uma atenção especial.

Os oficiais dos serviços de informação lhe questionaram várias vezes, usando seus melhores meios disponíveis para fazê-lo falar. Segundo Werra explicou em seu relatório, produzido após ele conseguir retornar para Berlim e que depois foi transformado em um livro (Einer kam durch. Fluchtbericht des Fliegerleutnants Franz von Werra / Um conseguiu passar –  Relatório de fuga do Tenente Franz von Werra), ele resistiu e nunca perdeu a calma, fechando-se em um silêncio quase absoluto.

Depois de vinte dias de infrutíferos interrogatórios, os britânicos o transferiram para um campo de prisioneiros em uma antiga casa chamada Grizedale Hall, localizada em um pântano a 30 quilômetros do Mar da Irlanda, no noroeste da Inglaterra.

Grizedale Hall.

O piloto alemão estava determinado a escapar e logo estudou as características daquela prisão. Em 7 de outubro, com a cooperação dos outros prisioneiros, Werra realizou a sua fuga. Durante uma caminhada diurna fora do acampamento, quando os ingleses ordenaram uma parada para descanso, o piloto alemão deslizou sobre um muro de pedra seca e ganhou o campo. Após descobrirem que ele fugira, os guardas alertaram os agricultores locais. Werra conseguiu ficar escondido durante três dias, mas no quarto foi localizado por dois soldados da Home Guard, a força de vigilância interna da Inglaterra na época. Estava em uma cabana de materiais agrícolas, mas percebeu a chegada dos seus captores e novamente conseguiu escapar. Em 12 de outubro ele foi visto por agricultores, que informaram as autoridades e a área onde se encontrava foi cercada. Finalmente Werra foi achado em uma depressão lamacenta no chão completamente exausto. Foi levado de volta para Grizedal Hall, onde passou 21 dias de confinamento na solitária.

Local da prisão em Swanwick, o casarão “The Hayes”.

Mais tarde o piloto alemão foi transferido para Swanwick, região de Derbyshire, centro da Inglaterra, onde foi encarcerado em uma grande casa construída na década de 1860. Chamada “The Hayes”, essa velha residência foi denominada na Segunda Guerra como “Campo 13” e apesar das medidas de alta segurança desse local, Werra começou a estudar a possibilidade de uma nova fuga.

Werra conseguiu desenvolver um plano com outros quatro companheiros e começou a construir um túnel subterrâneo. Trabalharam por cerca de um mês e mesmo com um colapso parcial do teto da galeria e o risco constante de serem capturados, os cinco presos fugiram na noite de 20 para 21 de dezembro de 1940.

O túnel aberto por Werra e seus companheiros no subsolo do casarão “The Hayes” ainda existe.

Segundo Werra comentou em seu relatório, o plano era um tanto simples, como imprudente: ele iria até uma base aérea dos ingleses, se apresentaria na porta da frente como um capitão da aviação holandesa e tentaria na base da conversa se apossar de uma aeronave.

Nessa época a Holanda havia sido ocupada pelos alemães e muitos dos seus pilotos voavam agora em esquadrilhas britânicas. Ele deu um jeito de fazer junto com seus companheiros de prisão um traje de voo improvável e uma identidade falsa. Mas as suas principais armas eram o seu talento e a sua audácia para inventar histórias.

Aviadores holandeses na Inglaterra, sendo fotografados em um caça Spitfire.

Aproveitando-se de seu bom conhecimento de inglês, o jovem tenente chegou a uma base aérea da RAF chamada Codnor Park Station, onde convenceu os guardas que era o “capitão van Lott” e entrou. Disse então a um funcionário local que seu avião teve que fazer um pouso forçado ao retornar de uma missão sobre a Dinamarca e que ele telefonasse para a base de Hucknall pedindo que fosse buscá-lo. Esperando o carro, a polícia submeteu o piloto a algumas perguntas sobre a sua história, concluindo que aquele estranho dizia a verdade. O carro chegou e ele partiu.

Base de Hucknall.

Na base de Hucknall sua história foi ainda verificada por um oficial de plantão, que telefonou para uma base, a qual o holandês disse que pertencia. Nesse meio tempo Von Werra pediu para ir ao banheiro e deixou a sala, caminhou até o hangar e, com a ajuda involuntária de um mecânico, entrou na cabine de um avião de caça Hurricane. Enquanto tentava freneticamente ligar a aeronave, o oficial de serviço saltou sobre a asa com a arma na mão e o prendeu. Os ingleses ficaram impressionados, pois até então ninguém tinha sido capaz de entrar em uma base aérea pelo portão da frente e quase se apossar de uma aeronave para fugir. O audacioso piloto alemão foi enviado de volta para o campo Swanwick.

Os ingleses já estavam fartos dele e decidiram enviá-lo em janeiro de 1941 para o distante Canadá, junto com outros 1.050 prisioneiros alemães.

A Fuga do Navio.

Ele cruzou o Oceano Atlântico no navio Dusshes of York e a bordo começou a arquitetar uma nova fuga.

Navio Dusshes of York.

Werra conheceu entre os prisioneiros alguns oficiais de submarinos alemães e descobriu que se o navio fosse tomado à força, seria possível conseguir apoio dos submarinos germânicos espalhados pelo Atlântico Norte e chegar até a costa da França dominada pelos alemães.

Mas havia um empecilho: o Dusshes of York transportava 1.050 alemães prisioneiros e 1.500 soldados britânicos armados, que iriam para a África do Norte lutar contra as tropas do Afrika Korps, comandado pelo famoso general Erwin Rommel. Aí realmente complicou para um possível motim a bordo.

Prisioneiros alemães desembarcando no Canadá.

Mas o endiabrado piloto da Luftwaffe não parou. Logo ele deu um jeito de roubar os documentos, dinheiro e um uniforme do contramestre Arthur Wood, um dos tripulantes do navio. Preparou-se corretamente e escapuliu quando a nave atracou no porto da cidade canadense de Halifax. Demorou mais de três horas para os ingleses e canadenses descobrirem a sua fuga e começaram uma busca pela cidade.

Apesar de ter conseguido com esse roubo certa quantidade de libras esterlinas, a moeda da Inglaterra, Werra descobriu amargamente que o comércio local estava proibido de transacionar com dinheiro estrangeiro devido ao estado de guerra. Continuou então a circular feito um vagabundo pelos próximos dias. Chegou a ver a sua foto em um cartaz de procura-se e tratou de ser ainda mais cauteloso. Por onde passou em Halifax se apresentou como um marinheiro inglês em busca de trabalho. Chegou a dormir no relento e conseguiu alguma comida.

Docas de Halifax em 1941.

Espertamente ele lembrou que próximo aos portos de todo mundo, sempre existiram pessoas para as quais as regras e as leis normalmente são burladas. Ele encontrou essa pessoa na figura de um chinês, que tinha um bar perto do cais. Era um lugar de péssima fama, que aparentemente também servia de prostíbulo, mas o proprietário do estabelecimento não teve problemas em trocar o dinheiro inglês por dólares canadenses e conseguiu para ele um quarto verdadeiramente imundo, mas com uma cama grande e alguma comida.

Marinheiros na região do Porto de Halifax durante a Segunda Guerra Mundial 

Mas a Real Polícia Montada do Canadá continuava procurando Werra em toda Halifax e eles fizeram uma verdadeira operação pente fino na área do porto. Não demorou quando dois homens da lei chegaram até o seu quarto e procuraram saber quem ele era. Em um primeiro momento os policiais até acreditaram na sua conversa de homem do mar desempregado e em busca de trabalho. Só que um deles desconfiou do linguajar refinado daquele homem, bem diferente do rude e típico palavreado dos marinheiros ingleses, normalmente cheio de palavrões. Werra continuou tentando levá-los na conversa, mas acabou novamente preso.

Nessa ocasião, por um ato de rebeldia ao se negar a colocar algemas com a alegação que era um oficial da Luftwaffe, levou foi uma boa surra dos policiais canadenses!

Cruzando a Fronteira e Se Tornando Uma Estrela.

Ele foi colocado em um trem com os mesmos prisioneiros que conhecera no Dusshes of York e, sem nenhuma novidade, começou a planejar uma nova fuga.

Soube que o trem estava seguindo para um lugar chamado Schreiber, no Lago Superior, na província de Ontário, onde os oficiais alemães seriam alojados no chamado “Campo W” e que o trajeto levaria três dias para ser completado.

Para a sorte de Werra, os canadenses colocaram cerca de 200 homens da Guarda de Veteranos Canadenses, que já haviam servido na Primeira Guerra Mundial. Aquilo para alguém com o currículo de Franz von Werra era uma situação muito positiva.

Não demorou e ele conseguiu saltar do seu vagão quando a composição fazia uma curva e diminuiu a velocidade. Só que a ação foi à noite, com uma temperatura de menos 20 graus célsius, a neve com mais de um metro de profundidade e um céu magnificamente estrelado.

Werra novamente deu muita sorte, pois a fuga só foi descoberta na manhã seguinte. Sete outros prisioneiros tentaram escapar do mesmo trem, mas foram logo recapturados.

Já o fugitivo solitário alcançou a pé a fronteira com os Estados Unidos, delimitada pelo Rio São Lourenço, que na época estava congelado. Ele tentou atravessar o rio caminhando sobre o gelo, mas então encontrou um canal aberto e foi obrigado a desistir. Voltou então para a região canadense, tomou posse de um barco a remos e conseguiu chegar ao território dos Estados Unidos.

Nessa época esse país mantinha-se neutro em relação à guerra na Europa, mas o clima interno era completamente a favor dos ingleses.

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Foto do tenente Werra em jornais americanos.

O fugitivo conseguiu chegar à cidade americana de Ogdensbur, no estado de Nova York, e entregou-se à polícia. Quando encontrou um guarda caminhando na rua, ele levantou os braços e disse “- Eu me rendo!”.

As autoridades de imigração o acusaram de entrar ilegalmente no país e foi arbitrada uma fiança de 5.000 dólares. No outro dia o advogado do consulado alemão de Nova York chegou à cidade e pagou a fiança. O juiz local encerrou o processo e Franz von Werra estava novamente livre. Naquela mesma noite ele viajou para Nova York, onde a colônia alemã o recebeu com entusiasmo.

No outro dia após a sua chegada, esteve com o Cônsul Geral Dr. Hans Borchers e o General Friedrich von Bötticher, adido militar da Embaixada da Alemanha em Washington. Diante da situação, o consulado alemão lhe deu dinheiro, e crédito para ele comprar ternos caros das melhores lojas de roupas masculinas da Quinta Avenida.

Logo ele começou a sair pelas ruas da “Big City” americana e se apresentar a todos como o “Barão von Werra”. As qualidades de autopromoção de Werra o fizeram rapidamente se tornar famoso em todo o país, enquanto a história de sua fuga se espalhava por todo o mundo.

A chegada de Werra em um joprnal americano.

Ele se deixou fotografar com mulheres bonitas, visitou os teatros da Broadway e as pequenas e intimistas casas noturnas da Times Square. Quase sempre estava acompanhado por uma legião de admiradores. Deu entrevistas e, sem nenhuma surpresa, começou a se gabar por se considerar “um estrangeiro ilegal nos Estados Unidos”. Aos jornalistas, Werra deu uma versão muito embelezada de sua história.

Nesse meio tempo o governo canadense passou a exigir a sua extradição como um reles ladrão, pois ele havia roubado um barco para escapar pelo Rio São Lourenço. Essa era uma forma de contornar a extradição ilegal de um prisioneiro de guerra de um país neutro. O Cônsul Geral Borchers ofereceu-se para enviar aos canadenses um cheque de 35 dólares — o valor que o barco havia custado. Os canadenses recusaram. Eles queriam Werra, não o cheque.

Em 1º de fevereiro, um tribunal federal em Albany, capital do estado de Nova York, julgou o imigrante ilegal Franz von Werra. O tribunal não conseguiu chegar a um veredito final, sendo a audiência adiada e a sua fiança foi arbitrada em 10.000 dólares (algumas fontes afirmam que foram 15.000). Mas o Cônsul Geral Borchers pagou sem pestanejar.

Werra e sua fuga foram noticiados em jornais de todo o mundo.

Nos bastidores, uma batalha feroz por Werra se desenrolava.

Enquanto o público americano estava, em geral, bastante satisfeito com o fugitivo e suas aventuras, as relações entre os Estados Unidos e a Alemanha Nazista pioravam a cada dia e se tornou óbvio que aquele fugitivo era um problema complicado.

Já para o governo inglês, além de Werra ter se tornado um sério aborrecimento pelas muitas fugas empreendidas, havia algo muito pior. Aquele piloto havia se tornado um perigo para a segurança militar, pois testemunhara as técnicas de interrogatório durante a sua prisão e, se conseguisse retornar a Alemanha, levaria para os nazistas toda a sua experiência. Algo que futuramente poderia ser utilizado contra os ingleses.

Nova York em 1941.

Em meio a toda essa confusão, na noite de 24 de março de 1941, Franz von Werra partiu de Nova York sem que as autoridades americanas percebessem.

Ele então embarcou em sua última grande jornada, que o levaria a percorrer metade do mundo, com passagem pelo Brasil.

Rumo ao Sul Caliente.

Passando por uma longa série de mudanças de trem, táxis, ou carros particulares, Werra chegou à cidade de El Paso, no Texas, onde ele poderia misturar-se a uma verdadeira legião de humildes trabalhadores mexicanos, que cruzavam a fronteira do seu país com os Estados Unidos em busca de trabalho nas lavouras texanas.

Cartão postal de El Paso, no Texas, em 1941.

O fugitivo ultrapassou a fronteira em meio aos que retornavam dos Estados Unidos e conseguiu chegar à estação ferroviária de Ciudad Juárez, onde comprou uma passagem de trem destinada à Cidade do México.

Werra viajou na terceira classe, a mais barata, reservada apenas para os mexicanos mais pobres. Mas ele tinha certeza que os funcionários da alfândega mexicana deixariam em paz aqueles que utilizavam aquela parte do trem. E acertou, pois ninguém lhe perturbou naquela longa viagem através do território mexicano.

Trabalhadores mexicanos em uma lavoura nos Estados Unidos na década de 1940.

O alemão sentou-se espremido entre fazendeiros, operários, trabalhadores do campo, moças de pele escura, velhas de cabelos brancos emaranhados e crianças chorando. Em seu relatório afirmou que “Os mexicanos tagarelaram da manhã à noite”. Mas eram pessoas de boa índole, que lhe ofereceram um pouco da sua comida e lhe estenderam jarras de barro com água e vinho. Ele tentou se comunicar com muitos gestos, mas os nativos não entenderam absolutamente nada.

Depois de dois dias e meio viajando 1.970 quilômetro no compartimento superlotado e quente, ele não precisava mais se preocupar em ser reconhecido. Estava suado, com o terno amassado, sujo, coberto com a poeira cor vermelha-tijolo daquele país e que constantemente entrava pelas janelas abertas do vagão.

Estação Central da Cidade do México.

Na noite de 28 de março, Werra chegou à Cidade do México, na Estação Central. A embaixada alemã havia recebido a informação que o fugitivo era esperado naquele dia. Quando a multidão se dispersou, Werra foi até o pátio da estação e viu um grande Mercedes-Benz preto, com o motorista examinando as pessoas que saíam. Ele não prestou atenção alguma a Werra em seu traje mexicano. O piloto então ficou na sua frente e lhe disse sorrindo: “Grüß gott!” (Bom dia!). O motorista o encarou e então compreendeu a situação. Com uma risada larga, abriu a porta do carro, bateu discretamente os calcanhares e disse “Seja bem-vindo à Cidade do México tenente Werra”.

Na embaixada alemã, Franz von Werra se transformou no estudante “Bernd Natus”, o nome que constava em um passaporte falso, que incluía vistos de trânsito para o Peru, a Bolívia e o Brasil.

Consulado da Alemanha Nazista no México em 1940.

Evidentemente tudo foi tratado de maneira muito discreta, sem recepções à imprensa, entrevistas ou celebrações públicas no México. Werra conta que passou o fim de semana recluso na propriedade do cônsul alemão em Cuernavaca e chegou até a fazer algumas compras para sua noiva Elfi, e ainda lhe escreveu contando suas aventuras. Werra visitou vários monumentos astecas e ficou maravilhado diante dessas testemunhas do grande passado do México.

A Fuga Durante a Semana Santa.

Voou do México para o Peru em 1º de abril. Após três dias deixou Lima, onde havia se hospedado com o cônsul alemão, e seguiu em um avião de transporte trimotor Junkers Ju 52 para a Bolívia. Passou uma noite na capital La Paz, e em 9 de abril voou para o território brasileiro em uma aeronave do Lloyd Aéreo Boliviano, pertencente a empresários alemães. Chegou sem problemas a Corumbá, Mato Grosso.

Aquele era um tempo onde viajar de avião no Brasil era para muito poucos e os jornais da época registravam os que tinham esse privilégio. Era normalmente divulgadas as listas de passageiros, que também não eram muitos. Assim é possível compreender a operação de apoio ao tenente Werra no Brasil.

O hidroavião JU-52 Maipó, do Sindicato Condor.

Os jornais informaram que no dia 8 de abril de 1941, partiu do Rio de Janeiro o hidroavião Junkers Ju 52, batizado como “Maipó”, e pertencente à empresa aérea Sindicato Condor. Essa era uma subsidiária da Deutsche Lufthansa, que operava em todo o Brasil. A aeronave tinha como destino Cuiabá, com escala em Corumbá, e transportava onze passageiros, entre eles o engenheiro alemão Gustav Albert Salz, que desembarcou em Cuiabá. Consta então nos jornais que Salz retornou para o Rio um dia após a sua chegada à capital mato-grossense, utilizando o mesmo hidroavião “Maipó” e que na escala de Corumbá embarcou um certo elemento de nome Bruno Krause. Eles dois estavam entre os quatro passageiros que desembarcaram no Rio no dia 10 de abril, que Werra afirma em seu relatório ter sido a data de sua chegada à então Capital Federal.

Seria então Bruno Krause uma nova e falsa identidade de Franz von Werra?

Notícia publicada após a passagem do tenente Werra pela América do Sul, mostrando a rota da sua fuga.

Meses depois que esse piloto alemão passou pela América do Sul e conseguiu chegar ao seu país, jornais cariocas publicaram uma nota vinda da agência de notícias norte-americana United Press, que basicamente resumiu parte da trajetória do fugitivo pelos países sul-americanos e informou que ele vinha com nome falso. Isso pode apontar que os americanos da OSS que estavam no encalço de Werra, tenham perdido a sua pista na capital peruana por ele utilizar os nomes falsos de Bernd Natus e Bruno Krause. Em tempo, a OSS era a sigla em inglês para o antigo Office of Strategic Services, ou Escritório de Serviços Estratégicos, o serviço de inteligência dos Estados Unidos na época da Segunda Guerra e que hoje é conhecido como CIA.

E qual foi à razão do engenheiro alemão Salz realizar essa viagem tão longa e de maneira tão rápida? Seria para ele dar apoio e cobertura a Werra? Não sabemos!

Mas temos conhecimento que o engenheiro Salz havia inicialmente chegado ao Brasil em 29 de maio de 1940, vindo do Peru, passando depois pela Bolívia e utilizando a mesma rota aérea que o “Maipó” percorreu em 10 de abril de 1941 para chegar ao Rio. Outra informação aponta que ele morava no 8º andar de um prédio na Avenida Rio Branco, 128, Centro do Rio. Guardem o endereço!

Rua Paissandu, no bairro do Flamengo, onde ficava a sede da Embaixada Alemã no Brasil em 1941.

Em seu relatório Werra não informa, mas como ele fez isso no México e no Peru, é muito provável que após a sua chegada ele tenha se dirigido a Embaixada da Alemanha, que nessa época ficava na bela e arborizada Rua Paissandu, número 53, no bairro do Flamengo.

Se em seu relatório Werra não comenta nenhuma visita a embaixada do seu país no Rio, entretanto afirma que esteve na sede da empresa LATI, ou Linee Aeree Transcontinentali Italiane. Essa era uma empresa de aviação e também um verdadeiro valhacouto de espiões do Eixo atuando no Brasil. Sua sede ficava no térreo de um edifício na Avenida Rio Branco, 104, Centro do Rio, a poucos metros de onde morava o engenheiro alemão Gustav Albert Salz.

Propaganda da empresa LATI no Rio, com seu endereço.

Seria apenas coincidência?

Independente dessa questão, temos que observar a astúcia das autoridades alemãs que atuaram na fuga do piloto da Luftwaffe, que culminou com a sua chegada ao Rio em plena Quinta Feira Santa. Em um país que nessa época era majoritariamente católico, o feriado da Semana Santa era o melhor momento para qualquer fugitivo estar circulando tranquilamente por aqui.

Mas qual seria a melhor maneira de continuar essa fuga e voltar ileso para a Alemanha?

Uma Empresa Complicada.

Certamente o avião era o melhor transporte para Werra e naquele momento no Brasil só os italianos da LATI poderiam resolver a questão.

Chegada de avião da LATI no Rio – Fonte – Arquivo Time-Life.

A LATI foi oficialmente fundada em 11 de setembro de 1939, dez dias após o início da Segunda Guerra Mundial, como uma empresa aérea destinada a atuar em uma rota que buscava ligar a Itália à América do Sul em menos de 48 horas.

Os voos experimentais foram então iniciados em 3 de outubro de 1939 e a empresa contava com apoio do governo italiano. Tanto que o seu diretor era simplesmente Bruno Mussolini, filho do ditador Benito Mussolini. Com esse aporte a organização da empresa e dos seus voos seguiu bem rápido e em 22 de dezembro ocorreu o voo inaugural partindo do Brasil para a Itália.

Chegada de avião da LATI no Rio – Fonte – Arquivo Time-Life.

Os italianos utilizaram nesta rota da LATI os confiáveis e resistentes aviões trimotores Savoia Marchetti SM.75, SM.76, SM.82 e SM.83. Até 19 de junho de 1940, essas aeronaves conseguiram realizar quase 60 travessias atlânticas, levando principalmente correspondência, a uma média de 260 a 330 kg de malotes por voo, além de alguns passageiros adicionais.

A linha previa uma viagem semanal nas duas direções, com a rota partindo de Roma (Itália), depois Sevilha (Espanha), Lisboa (Portugal), Villa Cisneros (atual cidade de Dakhla, no Saara Ocidental, na época uma possessão espanhola), Ilha do Sal (no Cabo Verde, então colônia portuguesa), Natal, Recife e Rio de Janeiro.

Chegada de avião da LATI no Rio – Fonte – Arquivo Time-Life.

Com o tempo, os voos regulares entre o Brasil e a Europa passaram a transportar importantes figuras nacionais e estrangeiras, além de correios especiais dos diplomatas alemães e italianos, que não podiam ser violados. Muitos desses diplomatas eram na verdade espiões nazifascistas disfarçados. Já nos voos de retorno a Europa seguiram materiais raros e estratégicos, como diamantes, platina, mica, substâncias químicas, livros e filmes de propaganda dos Aliados. Um verdadeiro “buraco” no bloqueio militar e econômico efetuado pelos ingleses contra a Alemanha e a Itália.

Mas tinha mais. O historiador norte-americano Stanley E. Hilton, em seu livro Hitler’s Secret War In South America, 1939-1945: German Military Espionage and Allied Counterespionage in Brazil informou que membros da embaixada americana no Brasil transmitiram aos britânicos que durante as travessias no Oceano Atlântico, os pilotos da LATI estavam visualizando navios britânicos, marcando suas posições em mapas e informando os alemães para enviar seus submarinos e afundá-los.

Mas os voos da LATI não seguiam sem problemas e houve um bem sério!

Em 15 de janeiro de 1941, um SM.75C com a matrícula I-BAYR, partiu de Natal para a ilha do Sal com dez tripulantes e passageiros. Ao se aproximarem de Fernando de Noronha o motor central nº 2 perdeu potência e o piloto foi forçado a descer a aeronave no mar. Ninguém que estava a bordo foi encontrado com vida. Existiu na época a informação que esse acidente poderia ter ocorrido pela sobrecarga de minerais estratégicos sendo contrabandeados para o aliado alemão, ou por uma bem montada operação de sabotagem dos ingleses.

Houve outras situações negativas envolvendo a LATI e sua atuação no Brasil, mas agora uma de suas aeronaves serviria para uma missão diferenciada; transportar clandestinamente um combatente das forças armadas nazistas para a Alemanha. 

A Viagem Para o Nordeste do Brasil.

Como comentamos anteriormente, Franz von Werra chegou na Quinta Feira Santa ao Rio de Janeiro. Já a sua partida se deu no dia 13 de abril de 1941, Domingo de Páscoa. E o que ele fez no Rio enquanto ali esteve? Não sabemos, pois nada deixou escrito em seu relatório.

Provavelmente ele ficou mesmo escondido na embaixada, ou na casa de algum funcionário. Até porque a espionagem britânica atuava então fortemente no Brasil e recapturar Werra, ou mesmo matá-lo, seria algo bastante desejado.

Campo do Ibura durante a Segunda Guerra Mundial.

Nos jornais cariocas não existe nenhuma informação da partida de alguma aeronave da LATI para o Nordeste do Brasil no dia 13. Mas no Diário de Pernambuco, encontrei uma nota (abaixo) que comenta sobre a aterrissagem da aeronave Savoia Marchetti SM.83, prefixo I-ASSO, no Campo do Ibura, Recife. Eram 13h50min do domingo e a bordo vinha um único passageiro – Berd Notus.

Após desembarcar e diante de sua situação, seria de esperar que esse único passageiro agisse de maneira discreta e sem chamar a atenção. Mas foi tudo exatamente o contrário.

Notus (Werra) não resistiu e começou a dar declarações ao encontrar o jornalista do Diário de Pernambuco que estava de plantão no Ibura e acompanhava os pousos e as decolagens das aeronaves. Apresentou-se como “estudante” e “filho do ministro da Alemanha no México” e chegou ao cúmulo de afirmar que “vai à Alemanha alistar-se na Luftwaffe” e que “esperava lutar ainda esse ano”. Só faltou dizer que era um “Barão”!

Era uma total falta de senso de segurança, muita irresponsabilidade e, certamente, um extremo excesso de arrogância. Aparentemente o tenente alemão nem se importou com a presença de Gino Portesi, um capitão da Regia Aeronáutica, a força aérea fascista, que além de ter sido o piloto do avião que trouxe Werra do Rio, era o subdiretor no Brasil da Ala Littoria, a companhia aérea nacional italiana e controladora do capital da LATI.

Através de um documento (acima) da Delegacia de Ordem Política e Social, DOPS, de Recife, produzido em 5 de maio de 1942, descobrimos que realmente o piloto alemão quase colocou tudo a perder no Campo do Ibura. Nesse documento, produzido um ano depois da passagem de Franz von Werra pela capital pernambucana, existe a informação que um inspetor da Polícia Marítima desconfiou do jovem falastrão que se dizia “estudante” e apresentou o passaporte nº 298. Mas ficou só nisso.

A verdade é que Werra passou pelo Brasil e a polícia do ditador Getúlio Vargas nem se deu conta e nem tomou conhecimento. Isso se ele não recebeu algum tipo de ajuda de alguma autoridade brasileira. Situação que não duvido, dado o grande número de simpatizantes nazifascistas em nosso país.

Esquema de cores de um trimotor SM.82 da empresa LATI.

Na mesma tarde o fugitivo embarcou em um moderno Savoia Marchetti SM.82 de prefixo I-BATO. Era uma aeronave recém-construída, que transportava dez passageiros, possuía um piloto automático, banheiro, rádios aprimorados e dois tanques de combustível adicionais. Além da tripulação, o I-BATO transportava oito passageiros, sendo cinco alemães e três italianos, entre eles Werra e Portesi. A aeronave decolou do Ibura utilizando a potência máxima de seus três poderosos motores Alfa Romeo 128RC e chegou a Natal cerca de uma hora depois.

No Campo de Parnamirim.

A pista era longa, mas de terra batida. Entretanto era boa, bem preparada, com 700 metros de extensão, 40 de largura e o SM.82 aterrissou sem problemas no chamado Campo de Parnamirim. Sabemos que Natal entrou na rota de retorno da LATI porque Recife não possuía em seu campo de pouso uma pista longa o suficiente para permitir a decolagem das aeronaves completamente carregadas.

A aeronave chegou pilotada por Guido Pavia, com Bruno Palermo como copiloto, Michele de Toma como radiotelegrafista e Alfredo Piacentini como mecânico. Foi informado que transportava “grande quantidade de mercadoria e malas postais”.

No antigo jornal natalense O Diário, futuro Diário de Natal, encontrei a informação que normalmente o avião da LATI vinha para a capital potiguar na sexta feira, mas aquele chegou em pleno Domingo de Páscoa e isso aparentemente não foi visto como estranho ou anormal.  

Os tripulantes e passageiros foram então acomodados no que era conhecido como “Hotel da LATI”, próximo do hangar da empresa. Não existem maiores informações sobre esse local, mas tudo indica que era tipo uma estalagem, sem maiores confortos, servindo apenas para acomodar os que embarcariam na manhã seguinte para a travessia do Atlântico Sul.

Situação atual da antiga casa de apoio construida para os aviadores franceses no Campo de Parnamirim.

Próximo ao hangar dos italianos existia outros dois Hangares, uma casa de apoio, uma estação de rádio e outras infraestruturas. Elas pertenciam aos franceses da Air France e algumas delas estavam ali desde o início da década anterior. Inclusive a casa de apoio havia servido em algumas ocasiões ao mítico piloto francês Jean Mermoz, quando das suas passagens por Natal. Não era sem razão que nos primeiros tempos de sua utilização, aquele local era conhecido como o “Campo dos Franceses”.

Não sabemos de nenhuma outra movimentação específica no Campo de Parnamirim naquela tarde e início da noite de 13 de abril de 1941, mas sabemos que nessa época o aeroporto estava com uma boa movimentação de estrangeiros, com vários deles circulando por Natal e as regiões Norte e Nordeste. Segundo os jornais natalenses, poucos dias antes de Werra desembarcar no Campo de Parnamirim, em 5 de abril, esteve em Natal uma “missão comercial japonesa” com quatro membros. Eles viajavam em um hidroavião do Sindicato Condor batizado como “Curupira”, que depois de Natal seguiu para Belém do Pará.

Situação atual do antigo hangar da LATI no Campo de Parnamirim.

E após a chegada do fugitivo Werra ao Rio Grande do Norte, ele teria vindo para Natal? Acho difícil!

Era algo que chamaria bastante a atenção para alguém com um passado que, se não era muito conhecido pela população local, certamente era conhecido de muitos estrangeiros que circulavam na cidade, a grande maioria deles de países contrários aos interesses da Alemanha, Itália e Japão, os países do Eixo. E em caso de Werra ser reconhecido, coisa que poderia acontecer com a sua terrível e constante indiscrição, logo os ingleses estariam no seu encalço.

Além do mais, se havia alguma coisa interessante naquela parte do Brasil para ser vista por um piloto da Luftwaffe, estava no próprio Campo de Parnamirim onde ele havia desembarcado. Pois dali era possível ver como o dinheiro do governo americano alterava drasticamente aquele lugar.

A grande base de Parnamirim Field durante a Segunda Guerra Mundial.

Desde novembro de 1940 que o governo de Franklin Delano Roosevelt, utilizando a fachada de uma das empresas de aviação do país, estava construindo vários aeroportos em todo o Brasil, sendo o maior o de Parnamirim. Pelo mesmo motivo, estes eram empreendimentos destinados à aviação civil. Mas que sem muitas alterações poderia acomodar centenas de aeronaves militares e com diversas finalidades.

Diante daquela situação e da oportunidade, acredito que dificilmente Werra e os outros ocupantes deixaram de dar uma espiadinha no que estava acontecendo naquela grande obra e levar essa informação aos seus superiores em Roma e Berlim. E se assim fizeram, certamente visualizaram a partir do hangar da LATI e com a utilização de binóculos, pois as construções estavam a 1.700 metros de distância.

Aeronave da companhia aérea LATI – Este tipo de aeronave opera voos entre Roma e Rio de Janeiro – Fonte – http://www.spmodelismo.com.br/howto/ac/lati.php

No outro dia, por volta das cinco da manhã, o Savoia Marchetti SM.82 de prefixo I-BATO decolou de Natal.

O Fim da Sua Sorte.

A estrela da sorte brilhou mais uma vez para Franz von Werra.

A aeronave italiana cruzou o Atlântico Sul sem problemas. Na sequência aterrissou em Barcelona e Werra trocou de avião pela última vez. Na quinta-feira, 17 de abril de 1941, ele chegou a Roma, desembarcando no Aeroporto de Guidonia, pisando em solo do Eixo pela primeira vez em mais de meio ano.

Werra estava livre e sua fuga foi bem-sucedida. Ele voou para a Alemanha a bordo de um bimotor Junkers Ju 90 e finalmente chegou em Berlim, no Aeroporto de Tempelhof, onde sua noiva Elfi e os amigos lhe esperavam.

Haviam decorrido exatamente 32 semanas desde a derrubada do seu avião de caça e sob todos os aspectos, a sua audaciosa fuga foi realmente prodigiosa.

Foi algo que o levou desde os campos de prisioneiros da Inglaterra, através do Atlântico, até chegar ao Canadá. Depois atravessou o congelado Rio São Lourenço e entrou clandestinamente nos Estados Unidos. Mesmo em meio a muita divulgação, ele conseguiu burlar as autoridades daquele país e atravessou sua larga extensão até o México, circulando completamente incógnito. Finalmente chegou à América do Sul, passou sem problemas pelo Brasil e em poucos dias atravessou o Atlântico Sul até a Europa.

O agora capitão Franz von Werra.

Rapidamente Franz von Werra tornou-se um herói em toda a Alemanha.

Houve um encontro com Adolf Hitler, que lhe concedeu uma alta condecoração.

Já Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda do Reich alemão, celebrou freneticamente o jovem Werra, que adorava ser o centro das atenções. Foi Goebbels que afirmou que durante o curso de sua fuga, Werra escreveu regularmente cartões postais para a sua irmã e nunca se esqueceu de enviar postais para os oficiais ingleses que haviam lhe interrogado.

O intrépido aviador foi promovido a capitão e chegou a ser recebido pelo obeso Hermann Goering, o todo poderoso chefe da força aérea alemã. Nesse meio tempo von Werra se casou com a sua noiva, na melhor tradição da pompa nazista.

O antigo prisioneiro relatou ao comando alemão sobre seu tratamento como um prisioneiro de guerra e com base em sua própria experiência esses relatos ajudaram a melhorar as técnicas para os pilotos alemães capturados atrapalharem ao máximo os britânicos no momento dos interrogatórios. Inclusive consta que esses relatos ajudaram a melhorar o tratamento dos prisioneiros de guerra dos países aliados presos na Alemanha.

O agora capitão Franz von Werra retornou então à luta e foi inicialmente enviado para frente russa. Nesse front de guerra ele elevou até julho de 1941 o seu registro para 21 vitórias aéreas. Quando sua esquadrilha foi retirada da Rússia, ele passou a voar em patrulhas sobre o Mar do Norte.

Em 25 de outubro de 1941, apenas sete meses depois de seu retorno à Alemanha, Werra estava realizando um voo de rotina, em mais um patrulhamento solitário, quando a sua sorte acabou. Ele desapareceu sobre o Mar do Norte, nas proximidades da cidade holandesa de Vlissingen. Provavelmente foi uma falha no motor da aeronave que o levou ao desastre e seu corpo nunca foi encontrado. Ele viveu apenas 27 anos.

O ator alemão Hardy Krüger no papel do tenente Werra.

Em 1957 a história de Werra foi tema de um filme chamado The One That Got Away, estrelado pelo alemão Hardy Krüger no papel principal. Consta que a película produzida pelo cinema inglês conseguiu uma grande bilheteria na Europa, principalmente na Alemanha.

Atualmente o avião com o qual ele caiu na Inglaterra, está em exposição no Museu da Força Aérea Real em Folkestown, Kent, sul do país.

O DIA EM QUE O PRIMEIRO ATAQUE ALIENÍGENA FOI “CONFIRMADO” EM NOVA YORK

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Orson Welles durante a transmissão de “War of the World” – Fonte – http://agentpalmer.com/12644/miscellany/inspiration/we-havent-learned-our-lesson-since-1938s-mercury-theatre-radio-broadcast-of-the-war-of-the-worlds/

“Uma enorme bola de fogo riscou o céu de Nova York, nos Estados Unidos, na manhã deste domingo, 30 de outubro. O que se acreditava ser um meteoro era, na verdade, uma grande cápsula de metal, que assustou os moradores e curiosos que foram verificar o local. Um ataque, vindo de um laser da cápsula, deixou dezenas de vítimas. As autoridades ainda não confirmaram a autoria do atentado, mas sabe-se que o exército já foi chamado para conter a situação.”

Você certamente achou este texto estranho e já pesquisou em outros sites para comprovar que tudo não passa de uma mentira. Mas, em 30 de outubro de 1938, mais de 1 milhão de pessoas passaram por momentos de pânico ao ouvir a suposta notícia da invasão alienígena na rádio CBS. Na verdade, tudo não passava de uma peça de Orson Welles, encenada pelo “Mercury Theater on the Air”.

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Welles no Mercury Theatre – Fonte – https://thewandrinstar.wordpress.com/2012/10/30/orson-welles-provoca-o-panico-a-guerra-dos-mundos-74-anos-depois/

Mesmo com os anúncios nos jornais de que naquela noite a rádio iria transmitir a história, muitas pessoas mudaram de estação e sintonizaram na CBS quando a “invasão” já havia começado.

Na época, a atração com a maior audiência era o “Chasen and Saborn Hour”, de uma emissora concorrente. Porém, 11 minutos após o início do quadro, um cantor entrou no ar e fez com que os ouvintes buscassem outros programas. Estima-se que 2 milhões de pessoas trocaram de estação, muitas encontrando a “Guerra dos Mundos” em seu ápice.

A música da Ramon Raquelo Orchestra era transmitida do Meridiam Room do Park Plaza Hotel, em Nova York, quando a programação foi interrompida para noticiar a queda de um meteoro. Entra em cena um astrônomo da Universidade de Princeton para dar as devidas explicações. A realidade é que o tal “professor” era o próprio Orson Welles, e a famosa orquestra era composta por músicos da própria rádio, sob a regência de Bernard Herrmann, que posteriormente iria compor a trilha de “ Psicose”.

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Fonte – http://www.cageyfilms.com/2013/10/october-30-1938-when-welles-unleashed-wells/

A transmissão ia aumentando o clima de tensão, enquanto mais especialistas relatavam a cena de terror que acontecia em Nova York. O ator Frank Readick, inspirado na trágica transmissão do incêndio do dirigível Hindenburg, narrou aos ouvintes a descoberta de um cilindro de metal de onde saía um terrível “monstro”. Um primeiro confronto teria matado 40 pessoas. No segundo, sete mil homens do exército americano teriam sido dizimados.

Outras nações ofereciam ajuda, enquanto os alienígenas prosseguiam pela cidade lançando um gás venenoso, deixando um rastro de morte e destruição. Do outro lado, relatos contam que pessoas estavam em pânico, grupos saíram às ruas armados e cidadãos cometiam suicídio para não presenciar o ataque.

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Percebendo a proporção que o “especial de Dia das Bruxas” havia tomando, Davidson Taylor, supervisor da CBS, pediu para que Welles parasse a transmissão e tranquilizasse os ouvintes, dizendo que tudo não passava de ficção. Porém, Welles se recursou, afirmando que um anúncio tiraria o público daquele estado de “fantasia”.

Hadley Cantril, um dos cientistas que estudou o pânico criado pelo falso ataque, entrevistou pessoas que afirmaram ter sentido o cheiro de gás naquela noite e até visto as chamas da batalha entre alienígenas e o exército. Um ouvinte chegou a relatar que a parte mais realista era a que “as chamas varriam o país”, porém este trecho não constava no roteiro.

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Orson Welles explicando a imprensa estadunidense o que foi seu programa em 1938 – Fonte – http://www.cageyfilms.com/2013/10/october-30-1938-when-welles-unleashed-wells/

Outros casos

Pode parecer impossível que as pessoas acreditem novamente em uma história como essa, mas aconteceu. Em 12 de novembro de 1944, um ator interpretou o Ministro do Interior em uma transmissão na cidade de Santiago, Chile. O resultado? Uma mobilização das tropas de infantaria do país.

Em 12 de fevereiro de 1949, a história foi ainda pior: uma versão de “Guerra dos Mundos”, feita pela Rádio Quito, no Equador, resultou em um ataque por parte da população. Ao saberem que tudo não passava de encenação, alguns ouvintes colocaram fogo no estúdio da emissora, causando a morte de pelo menos seis pessoas. 

Autora – Camila Galvão

Fonte – http://www.megacurioso.com.br/datas-comemorativas/85614-o-dia-em-que-o-primeiro-ataque-alienigena-foi-confirmado-em-nova-york.htm?f&utm_source=facebook.com&utm_medium=referral&utm_campaign=thumb

O CANGACEIRO BARREIRA E O SEU SANGRENTO SALVO CONDUTO

Barreira e a cabeça de Atividade, 5 de setembro de 1938, propriedade Santo Antônio, Pão de Açúcar, Alagoas
Barreira e a cabeça de Atividade, 5 de setembro de 1938, propriedade Santo Antônio, Pão de Açúcar, Alagoas – CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR

Como Uma Atitude Nefasta e Uma Foto Impactante Marcaram a
Vida de Um Cangaceiro Que Buscou a Regeneração

Autor – Rostand Medeiros

Recentemente eu tive a grata oportunidade de participar de mais um encontro de pesquisadores e escritores do tema do Cangaço, desta vez realizado na bela cidade alagoana de Piranhas.

mail.google.com

Em meio a encontros amistosos (e outros mais protocolares), em meio a ótimas palestras (e outras verdadeiramente sorumbáticas), eu conheci o livro Fim do Cangaço: As Entregas, do escritor e pesquisador Luiz Ruben de F. de A. Bonfim, baiano da cidade de Paulo Afonso[1].

Não conheço toda a eclética obra de doze livros publicados por este autor, que possui um foco maior no cangaço. Mas o trabalho de Luiz Ruben também tem obras com temas ligados a ferrovias, livro de poesias, sobre a história de sua região e até mesmo um trabalho, ainda no prelo, que trata do alcance da Guerra Civil dos Estados Unidos na Bahia.

Mas em relação ao seu Fim do Cangaço: As Entregas, este livro foi para mim uma grata surpresa, onde temos a reprodução de documentos e reportagens oriundos dos arquivos, de jornais, de instituições militares e de revistas de alcance nacional. Um rico material, muito útil para os pesquisadores do cangaço e aqueles que desejam conhecer mais sobre a história das lutas no Nordeste.

Autor Luiz Ruben - Fonte - cariricangaco.blogspot.com
Autor Luiz Ruben – Fonte – cariricangaco.blogspot.com

Li o livro praticamente de um folego só e fiquei muito satisfeito.

Já no primeiro capítulo Luiz Ruben reproduz uma reportagem do periódico “Jornal de Alagoas”, edição de sexta-feira, 9 de setembro de 1938 e intitulada “Bandido mata bandido”. Aí me lembrei de um pequeno artigo jornalístico da década de 1980, que me foi presentado pelo amigo Paulo Moreira, potiguar que há muitos anos vive no Rio de Janeiro.

O relato de 1938 é sobre o cangaceiro Barreira, um antigo bandoleiro dos sertões que para deixar este, como dizia o professor Estácio de Lima, “Estranho Mundo dos Cangaceiros”, levou como salvo-conduto a cabeça de um companheiro. Junto com sua horrenda atitude ficou para história uma impactante foto que mostra vários aspectos de um momento de muita violência no Nordeste do Brasil.

Macabro Salvo-Conduto

Em uma segunda-feira, dia 5 de setembro, dia de feira livre na cidade alagoana de Pão de Açúcar, as margens do Rio São Francisco, logo começou a correr a notícia que em uma propriedade distante cerca de 36 quilômetros havia um cangaceiro desejando entregar-se as autoridades[2].

Antiga foto da cidade de Pão de Açúcar, vendo a Matriz do Sagrado Coração de Jesus - Fonte - sertao24horas.com.br
Antiga foto da cidade de Pão de Açúcar, vendo a Matriz do Sagrado Coração de Jesus – Fonte – sertao24horas.com.br

Prontamente o tenente José Tenório Cavalcanti, a maior autoridade policial presente, preparou um grupo de policiais para seguir ao encontro deste cangaceiro na propriedade Santo Antônio[3]. Aparentemente esta gleba era localizada próxima a uma área denominada Caboclo[4].

Mapa de Alagoas, com destaque para a região dos acontecimentos
Mapa de Alagoas, com destaque para a região dos acontecimentos

Quando lá chegaram os policiais encontraram um jovem com a tradicional roupa de cangaceiro, com cerca de 20 anos de idade, boa aparência, muito calmo, tranquilo, que trazia consigo um rifle Winchester e a cabeça decapitada de um homem de tez clara, igualmente jovem, bastante cabeludo e que havia sido morto horas antes.

Ele se apresentou como sendo o cangaceiro Barreira e a cabeça era a do cangaceiro Atividade, seu companheiro no grupo que tinha como chefe o cangaceiro alcunhado como Português. Comentou que seu nome era João Correia dos Santos, sendo filho de Manoel e Maria Correia e era natural da região, do lugar Furna[5].

Barreira depois de detido - Coleção do autor
Barreira depois de detido – Coleção do autor

Logo alguém, que não sei quem foi, sacou de uma máquina fotográfica e clicou o macabro salvo-conduto. Provavelmente o cenário deste instantâneo foi de alguma maneira produzido e esta é sem dúvida uma das fotos mais marcantes do período do cangaço.

Logo o jovem cangaceiro e a cabeça de Atividade foram levados para Pão de Açúcar, onde chamaram muita atenção da população local. Depois seguiram para a cidade de Santana do Ipanema, a cerca de 50 quilômetros de distância, onde um repórter do “Jornal de Alagoas” ouviu Barreira.

Lampião, Maria Bonita e parte do seu bando na escadaria da Prefeitura de Piranhas, Alagoas, 1938
Lampião, Maria Bonita e parte do seu bando na escadaria da Prefeitura de Piranhas, Alagoas, 1938

O fora da lei comentou que a cerca de um ano vivia em contato com os cangaceiros do grupo de Português, sendo inicialmente convidado a seguir pelas veredas do sertão de arma na mão. Mas o jovem recusou o quanto pode, até que foi ameaçado de morte pelo chefe se não fizesse parte do bando.

Já sobre a ideia de entregar-se a polícia e usar a cabeça de Atividade como uma espécie de salvo-conduto junto às autoridades, provavelmente surgiu após Barreira ver algumas das muitas reproduções da famosa foto com as cabeças cortadas de Lampião, Maria Bonita e nove outros integrantes do bando e expostas um mês e uma semana antes na escadaria do prédio da prefeitura da cidade de Piranhas. Talvez tenha imaginado que se fizesse igual aos policiais, poderia ser mais bem aceito por estes.

Coronel José Lucena de Albuquerque Maranhão - Fonte - www.pm.al.gov.br
Coronel José Lucena de Albuquerque Maranhão – Fonte – http://www.pm.al.gov.br

Seu pai inclusive havia entrado em entendimento com o tenente José Tenório e o então todo poderoso coronel José Lucena de Albuquerque Maranhão, maior inimigo conhecido do cangaceiro Lampião e comandante do 2º Batalhão da Polícia Militar de Alagoas, sediado na cidade de Santana do Ipanema. O coronel Lucena comentou ao velho Manoel Correia que seu filho não sofreria problemas, desde que auxiliasse as forças volantes no combate aos cangaceiros. Barreira então aguardou uma oportunidade de sair fora daquela vida de arma na mão.

Corisco
Corisco

Percebemos igualmente no relato de Barreira ao jornalista que para ele, após as mortes na Grota do Angico, o desbaratamento dos grupos de cangaceiros era eminente e isso foi relevante para sua decisão. Além disso o conhecido chefe Corisco teria “fracassado terrivelmente” (talvez em uma provável rearticulação dos bandos) e estava “bebendo muito”. Quanto a Português, seu ex-chefe, Barreira o considerou “covardíssimo”, que “fugia das lutas” e apenas enviava seus cangaceiros em “missões” de extorsão e punição a fazendeiros da região que não lhes dava dinheiro.

E foi numa dessas “missões” que Barreira colocou seu plano de sair do cangaço em funcionamento[6].

Negociando Com Uma Cabeça

Ele, Atividade e o irmão deste, alcunhado Velocidade, seguiram na madrugada do dia 5 de setembro para o povoado de Belo Horizonte, próximo a propriedade Santo Antônio. O trio de cangaceiros era comandado por Atividade e tinham como missão incendiar uma casa no povoado, cujo proprietário era Elísio Maia. Porém Atividade ordenou a Barreira algo muito impactante e muito controverso – o jovem cangaceiro teria de “matar o seu próprio irmão e um seu tio, que lá moravam”[7].

Barreira Cangaceiro (2)

Segundo o relato de Barreira ao jornalista do periódico “Jornal de Alagoas”, sem especificar como, este começou a “azucrinar” propositadamente a paciência do cangaceiro Atividade para evitar cumprir esta função. Na sequência, ao passarem próximo a um riacho, Atividade ordenou a Barreira que fosse buscar água para os cantis e teve início uma nova discussão. Nisso, a fim de evitar problemas, Velocidade se prontificou a fazer a tarefa, descendo por uma rampa até o riacho.

Era a oportunidade que Barreira queria e sem titubear este desfechou um tiro de rifle nas costas de Atividade!

Velocidade voltou rapidamente para socorrer o irmão e Barreira passou a descarregar vários balaços na direção deste. Ao jornalista do periódico alagoano Barreira afirmou que atingiu e matou Velocidade com seus tiros, o que é uma mentira, pois este cangaceiro foi capturado meses depois.

Cangaceiro Atividade - Fonte - http://blogdomendesemendes.blogspot.com.br/
Cangaceiro Atividade – Fonte – http://blogdomendesemendes.blogspot.com.br/

Após isso Barreira chegou próximo de Atividade, que segundo o seu algoz ainda estava vivo, e com um facão decepou lhe a cabeça[8].

Queria Ser Policial, Mas Ficou na Cadeia… 

A história da decapitação de Atividade foi publicada em pequenas notas em alguns jornais do Rio de Janeiro e de outras capitais do Brasil. Não encontrei registros que a terrível fotografia circulou na imprensa.

Jornal A República, Natal, edição de 12 de setembro de 1938
Jornal A República, Natal, edição de 12 de setembro de 1938

Pouco tempo após a detenção de Barreira outros cangaceiros foram se entregando as autoridades, como o grupo do cangaceiro Pancada. Além deste chefe faziam parte do bando sua mulher Maria Jovina (ou Maria de Pancada), Cobra Verde, Peitica, Vinte e Cinco, Vila Nova e Santa Cruz. Todos foram levados para o quartel de Santana de Ipanema, onde Barreira se encontrava.

Entrega do grupo do cangaceiro Pancada - Fonte - cariricangaco.blogspot.com
Entrega do grupo do cangaceiro Pancada – Fonte – cariricangaco.blogspot.com

Apesar do crime hediondo praticado por Barreira, que poderia ocasionar retaliação por parte dos outros cangaceiros, nada aconteceu. Acredito que os cangaceiros estavam mais preocupados com o seus incertos destinos naquele momento.

Sob as ordens do coronel Lucena havia uma atmosfera positiva no quartel e uma relação entre cangaceiros e seus antigos perseguidores que pode ser considerada como amistosa. Até porque os policiais precisavam da ajuda dos cangaceiros detidos para prender os que ainda se encontravam soltos, principalmente Corisco[9].

Atual fachada do antigo quartel de Santana de Ipanema onde ficaram detidos os cangaceiros. Depois foi o Ginásio Santana, atual Colégio Cenesista
Atual fachada do antigo quartel de Santana de Ipanema onde ficaram detidos os cangaceiros. Depois foi o Ginásio Santana, atual Colégio Cenesista

Em novembro este grupo de cangaceiros estive em Maceió, a capital alagoana. Ali foram alvos de extrema curiosidade pública, tomaram banho de mar, realizaram compras no comércio acompanhados dos soldados e pagaram regiamente o que adquiriram. Os antigos cangaceiros estavam felizes e muitos comentavam aos jornalistas que desejavam ser policiais e não queriam mais ser chamados pelos seus antigos “nomes de guerra”[10].

Em pé: Barreira, Santa Cruz, Vila Nova , Peitica. sentados: Pancada, Vinte e cinco e Cobra Verde - Fonte -   http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2009/08/o-periodo-das-entregas.html
Em pé: Barreira, Santa Cruz, Vila Nova , Peitica. sentados: Pancada, Vinte e cinco e Cobra Verde – Fonte – http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2009/08/o-periodo-das-entregas.html

O jornal carioca “A Noite”, na sua edição de segunda-feira, 14 de novembro de 1938, página 8, trás uma interessante reportagem sobre estes cangaceiros em Maceió. Os membros do antigo grupo de Pancada, além de Barreira, tiveram oportunidade de narrar um pouco de suas vidas antes e durante o período como cangaceiros.

João Correia dos Santos, o Barreira, então com apenas vinte anos de idade, era o mais novo dos bandidos. Nesta nova entrevista não negou que matou Atividade, não escondeu os motivos e nem que o decapitou. Mas acrescentou que era sempre “insultado” por ele. Daí em diante nesta entrevista, Barreira começou a mudar os relatos sobre sua vida pregressa.

Ele já não vinha mais do lugar Furnas, mas havia sido “vaqueiro do fazendeiro João Lessa, da cidade de Propriá” (quase 90 quilômetros de Pão de Açúcar). Já não havia entrado no grupo de Português obrigado, mas por vingança. Informou que passou apenas seis meses no cangaço e soltou a pérola que durante os combates “tinha vontade de passar para o outro lado, mas tinha medo de ser assassinado”. Finalizou que estava feliz, desejava ser policial e caçar seus antigos companheiros!

Barreira
Barreira

Se assim desejava aparentemente ficou só na vontade, pois tudo indica que a polícia alagoana dispensou seus serviços como “caçador de cangaceiros”. Além disso, se Barreira imaginava que conseguiria amenizar alguma condenação trazendo a cabeça do cangaceiro Atividade para os policiais, isso funcionou em parte, pois ele ficou atrás das grades por quatro anos e seis meses.

Liberdade

Em uma entrevista realizada em 2012, concedida ao jornalista Antônio Sapucaia, do jornal “Gazeta de Alagoas”, o funcionário público aposentado José Alves de Matos, o antigo cangaceiro Vinte e Cinco, comentou que após passar mais de quatro anos na Penitenciária do Estado, em Maceió, gozava de certo privilégio naquele ambiente, a ponto de tornar-se o “chaveiro” da prisão.

O cangaceiro Vinte e Cinco no destaque - Fonte - http://lampiaoaceso.blogspot.com.br
O cangaceiro Vinte e Cinco no destaque – Fonte – http://lampiaoaceso.blogspot.com.br

Certa vez, provavelmente no segundo semestre de 1942, Vinte e Cinco recebeu a visita do Promotor Público Rodriguez de Melo, o qual ao se inteirar da situação dos ex-cangaceiros afirmou que nada poderia fazer em favor deles, a não ser que surgisse um milagre e o fato chegasse ao conhecimento do então Presidente da República, Getúlio Vargas, haja vista que todos estavam presos sem nenhum processo formalizado, à disposição do Governo do Estado.

Utilizando-se da confiança de que desfrutava, Vinte e Cinco recorreu ao engenheiro Ernesto Bueno, que estava preso por crime de homicídio contra um cidadão de Coruripe, pedindo-lhe que, em seu nome, escrevesse uma carta a Getúlio Vargas expondo a situação vexatória em que se encontravam. Seu pedido foi atendido e, usando de uma manobra habilidosa, apelou para uma mulher de nome Maria Madalena, que era encarregada de vender os produtos de artesanato que os presos fabricavam na prisão, a qual escondeu a carta no seio e depois a postou nos correios.

Segundo relata Vinte e Cinco, o Presidente Vargas, depois de manter contato com o Interventor alagoano Ismar de Góes Monteiro e com o Dr. José Romão de Castro, diretor da penitenciária, baixou um ato e pediu-lhes que os colocassem em liberdade, conseguissem empregos para todos, objetivando evitar o retorno deles à vida nômade e violenta no Sertão[11].

Cangaceiro Pancada na cadeia - Fonte - fotonahistoria.blogspot.com
Cangaceiro Pancada na cadeia – Fonte – fotonahistoria.blogspot.com

Mas na reportagem do jornal carioca “O Globo”, edição de quinta-feira, 7 de janeiro de 1943, existe uma outra versão.

Nela o diretor da penitenciária, Dr. José Romão de Castro, informa que encaminhou para Alexandre Marcondes Machado Filho, então Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores, através do Interventor Ismar de Góes Monteiro, uma exposição do aspecto jurídico e social da prisão, onde apresentou em linhas gerais o seu pensamento a respeito daqueles ex-cangaceiros, que se mostravam extremamente trabalhadores, obedientes e alguns muito estudiosos. Dos dez remanescentes, sete haviam se alfabetizado com o professor Manoel de Almeida Leite, dentre estes Barreira. Mérito dele!

Vale a leitura dos argumentos apresentados pelo Dr. José Romão de Castro para a soltura daqueles antigos combatentes das caatingas:

Pois eles não podem ser encerrados como verdadeiros delinquentes uma vez que não havia entre eles e a sociedade aquilo que se chama semelhança social, harmonia de compreensão de deveres. Para eles, a figura de Lampião não era somente de chefe, a quem obedeciam, mas, sobretudo representava um princípio de autoridade, e, em torno de certas determinações, eles sentiam a última extensão da influência do poder público. Logo, penso que podem regressar ao meio social os últimos homens do grupo de Lampião, embora vigiados e sendo dado a cada um profissão certa.”

Seja pela carta enviada por Vinte Cinco, seja pelo parecer do Dr. José Romão de Castro, o certo é que no dia 10 de fevereiro de 1943, ao meio-dia, em meio a uma solenidade presidida pelo Dr. Ari Pitombo, Secretário do Interior, Educação e Saúde de Alagoas, os antigos cangaceiros foram libertados.

Barreira foi um dos que foram empregados pelo poder público de Alagoas e não perdeu a oportunidade oferecida[12].

Marcado Para Sempre

Vamos reencontrar este controverso ex-cangaceiro em uma reportagem de 1982 e em um momento muito festivo. Presentado pelo amigo Paulo Moreira, esta reportagem mostra que depois de quase 40 anos de trabalho como funcionário público estadual, lotado na Secretária da Fazenda do Estado de Alagoas, João Correia dos Santos se aposentava.

Gazeta de Alagoas, 7 de maio de 1982 - Fonte - Paulo Moreira
Gazeta de Alagoas, 7 de maio de 1982 – Fonte – Paulo Moreira

Neste período o antigo Barreira estava com 64 anos, era casado e pai de cinco filhos. Consta que sua passagem como funcionário público foi bastante positiva, a ponto dele ser considerado o “Funcionário Modelo do Estado” do ano de 1976 e receber um prêmio e um diploma das mãos de Divaldo Suruagy, então Governador de Alagoas.

Ainda nesta reportagem de 1982, o velho Barreira falou em tom bastante crítico sobre a minissérie da TV Globo “Lampião e Maria Bonita”, um grande sucesso na época. Para ele a obra televisiva “Nada tinha a ver com a história real”[13]. Que a protagonista de Maria Bonita na minissérie, a ótima atriz Tânia Alves, não era “branca o suficiente e os dedos da original eram mais curtos”.

João Correia dos Santos , o Barreira - Fonte - http://blogdomendesemendes.blogspot.com.br/
João Correia dos Santos , o Barreira – Fonte – http://blogdomendesemendes.blogspot.com.br/

Mas concordava que a Maria Bonita real, tanto quanto o personagem apresentado na minissérie, tinha influência sobre Lampião. Outra concordância estava no fato de que realmente Corisco recusou-se a se “amoitar” com Lampião na Grota do Angico. Barreira ainda discorreu sobre vários outros aspectos relativos ao local do derradeiro combate do chefe cangaceiro e de como seu desparecimento contribuiu para o fim do cangaço, principalmente diante das perdas dos contatos dos fornecedores de armas e munições[14].

Barreira 2 (7)

Nesta reportagem Barreira pouco comentou especificamente sobre seu período como cangaceiro e nada sobre a morte de Atividade. Aquele degolamento e a triste foto daquele ato era um passado que não valia a pena recordar.

Igualmente não sabemos quando Barreira faleceu, mas sua passagem em relação a história do cangaço está firmemente associada à fotografia do degolamento de Atividade. Para a grande maioria dos pesquisadores do cangaço a figura de Barreira praticamente se centraliza apenas em seu ato covarde.

NOTAS


[1] Para aqueles que desejarem adquirir este livro entrem em contato com Luiz Ruben pelo telefone 75 – 3281 – 5080, ou pelo email – luiz.ruben54@gmail.com

[2] Pesquisadores apontam a data deste acontecimento como sendo em 5 de julho de 1938, o que acreditamos ser um equívoco.

[3] O periódico “Jornal de Alagoas”, edição de sexta-feira, 9 de setembro de 1938, apresenta o oficial José Tenório Cavalcanti com a patente de tenente. Mas o periódico “Diário de Pernambuco”, edição de 4 de agosto de 1938, quarta-feira, apresenta o oficial com a patente de capitão. Ficamos devendo a exatidão da informação neste detalhe e seguimos o pensamento do autor Luiz Ruben.

[4]Ás margens da asfaltada estrada AL-220 existe um distrito da cidade de São José da Tapera denominado Caboclo, mas não sabemos se é a mesma localidade dos fatos de 1938. São José da Tapera se emancipou de Pão de Açúcar em dezembro de 1957. Ver – http://ibge.gov.br/cidadesat/painel/historico.php?codmun=270840&search=alagoas%7Csao-jose-da-tapera%7Cinfograficos:-historico&lang=

[5]No passado existia nesta região uma propriedade denominada Furna da Onça. Não sabemos se é o mesmo local, mas na atualidade existe na zona rural de Pão de Açúcar uma comunidade denominada Furnas, ou Furnas de Cima, localizada a cerca de 40 quilômetros da sede do município. Ver – http://www.paodeacucar.al.gov.br/?p=1692

[6] Ver BONFIM, Luiz Ruben F. de A. Fim do Cangaço: As Entregas. Paulo Afonso-BA: Edição do autor, 2015. Págs. 19.

[7] Na atualidade encontramos referência em Pão de Açúcar a uma propriedade rural denominada Belo Horizonte, mas não a um povoado. Ver – http://www.paodeacucar.al.gov.br/?p=3222

[8] Os irmãos Atividade e Velocidade eram nascidos na zona rural de Pão de Açúcar, sendo conhecidos na “vida civil” como Manoel e Pedro Pau Ferro. Integrantes da família destes rapazes já militavam nas fileiras do Cangaço quando eles iniciaram suas atividades no bando de Corisco. Existe a informação que Atividade era exímio castrador de homens, função que exercia com a maior presteza, eficiência e naturalidade, onde propalava que perdeu as contas das vítimas do seu horrendo oficio. Já Velocidade sobreviveu aos pretensos tiros disparados por Barreira. Segundo reportagem publicada no “Jornal de Alagoas”, em sua edição de 17 de dezembro de 1938, ele foi preso na fazenda Boa Vista, em Pão de Açúcar, pelo tenente José Joaquim Grande e sua volante, ajudados pelo ex-cangaceiro Pancada. Existe inclusive um interessante foto com o tenente Joaquim Grande, Velocidade, Pancada e outro militar. Os cangaceiros Atividade e Velocidade podem ser oriundos de uma propriedade denominada Pau Ferro, em Pão de Açúcar, que foi de João Vieira Damasceno em 1923. Sobre o cangaceiro Atividade e sua função de castrador ver – http://blogsolvermelho.blogspot.com.br/2012/09/manoel-pau-ferro-o-cangaceiro-capador.html

Sobre a notícia da prisão de Velocidade ver BONFIM, Luiz Ruben F. de A. Fim do Cangaço: As Entregas. Paulo Afonso-BA: Edição do autor, 2015. Págs. 53 a 55.

Sobre a foto do tenente Joaquim Grande, Velocidade, Pancada e outro militar ver ALBUQUERQUE, Ricardo (org). Iconografia do Cangaço. São Paulo-SP: Editora Terceiro Nome, 2012. Pág. 183.

Sobre a propriedade Pau Ferro ver Relação dos Proprietários dos Estabelecimentos Ruraes Resenceados, Directoria Geral de Estatística. Rio de Janeiro-RJ: Typografia da Estatística, 1923. Pág. 84.

[9] O local do antigo quartel que recolheu os cangaceiros, entre eles Barreira, se transformou depois no Ginásio Ipanema e é atualmente o Colégio Cenecista Santana. Ver – http://www.maltanet.com.br/noticias/noticia.php?id=4265

[10] Ver BONFIM, Luiz Ruben F. de A. Fim do Cangaço: As Entregas. Paulo Afonso-BA: Edição do autor, 2015. Págs. 43 a 50.

[11] Ver http://blogdomendesemendes.blogspot.com.br/2014/08/sensacional-entrevista-com-o-ex.html

[12] Ver BONFIM, Luiz Ruben F. de A. Fim do Cangaço: As Entregas. Paulo Afonso-BA: Edição do autor, 2015. Págs. 198 a 207.

[13] Primeira minissérie da TV Globo, “Lampião e Maria Bonita foi exibida originalmente em 1982. Com os atores Nelson Xavier e Tânia Alves nos papéis principais, a trama contou como foram os últimos meses de vida do rei do cangaço. Com cenas gravadas no sertão nordestino, nos mesmos locais por onde andou Lampião, a minissérie ganhou prêmios internacionais e marcou a teledramaturgia da TV Globo. Ver – http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/lampiao-e-maria-bonita.htm

[14] Consta que Barreira deu uma entrevista para uma revista alagoana em setembro de 1984, onde nada falou sobre o caso de Atividade. Ver BONFIM, Luiz Ruben F. de A. Fim do Cangaço: As Entregas. Paulo Afonso-BA: Edição do autor, 2015. Págs. 233 a 235. Existe a informação que no ano de 1990, por uma semana, o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello recebeu o ex-cangaceiro Barreira em sua casa no Recife, onde este estudioso realizou entrevistas com o antigo celerado. Ver http://lentescangaceiras.blogspot.com.br/2010/11/resposta-alcino.html