Introdução – Na época dessa reportagem da revista O Cruzeiro, o Coronel Chico Romão, de Serrita Pernambuco, foi acusado de ser o mentor intelectual de um crime ocorrido em Recife, de extrema repercussão, inclusive a nível nacional, conhecido como “Crime de Apipucos”. Chico Romão se encontrava foragido quando o jornalista da revista esteve nessa cidade.
SERRITA, IMPÉRIO AUTOCRÁTICO DO CORONEL CHICO ROMÃO
Revista O Cruzeiro – 1 de março de 1952. Texto: Neiva Moreira. Fotos: Utaro Kanai.
Um município onde só uma vontade predomina e atua – Quando o juiz tentou ficar neutro, teve de imigrar sem um copo d’água para beber ou um amigo para falar A pitoresca figura desse mandachuva da caatinga, que é, ao mesmo tempo, a sociedade e a lei – Braços do feudo chegam ao Ceará – Desaparecido, o coronel é uma presença invisível naquela cidadezinha traumatizada.
A Vila Maria, o “castelo” do Coronel Chico Romão, de onde ele comandava seu verdadeiro feudo chamado Serrita.
– SENHOR vai mesmo à Serrita? Perguntavam, inquietas as pessoas, desde que o nosso automóvel começou rodar para Salgueiro, deixando para trás o São Francisco.
De Feira de Santana até lá, passando por Serrinha, Euclides da Cunha, Tucano, Canudos, Jatinan[1], e em todo o percurso da rodovia central de Pernambuco, de Salgueiro, Serra Talhada, Arcoverde, Pesqueira, Caruaru ao Recife, Serrita é um nome mágico que empolga a imaginação e alimenta fantasias. Inúmeras vezes nos detivemos ao longo dos caminhos, sob aquele sol inclemente da caatinga nordestina, para ouvir histórias daquele espantoso reduto de um poder pessoal que não encontra paralelo em qualquer parte deste país.
Nos dias atuais, o nome de Serrita ligado ao de Chico Romão é uma espécie de “background” de um dos crimes que mais emocionaram o nordeste. Mas, antes mesmo que aquele “comando” do cangaço se abastasse do sertão para um ajuste de contas sangrento e odioso em pleno coração do Recife, não havia pernambucano, letrado, que não se tivesse debruçado sobre os mapas para indicar naquela localidade perdida nas distâncias, mundo fabuloso que nasceu, cresce, progride, se rejubila ou sofre sob o império de uma só vontade e ao sopro de uma única inspiração.
Vila Maria em janeiro de 2025.
Em várias eleições, Serrita foi o desespero da oposição, e, sobre as urnas invioláveis de Chico Romão, repousou Agamenon[2], na certeza de que funcionara como um maquinismo de precisão, aquele eleitorado monotonamente uniforme e disciplinado. Mais do que isso: mesmo quando as divisões partidárias levaram ramos mais inquietos do clã a uma atitude destoante no campo político, era aquela numa esfera distante que não tocava a liderança indiscutível desse caudilho da caatinga, em cuja cintura nunca se viu um revólver e nem uma daquelas clássicas peixeiras que as ocasiões fazem brotar por encanto, nos ajustes de contas das estradas ermas.
CHICO FAZ O SEU MUNDO
Até parece que o mundo de Chico Romão começa ali em Salgueiro, naquela esquina movimentada do Nordeste, símbolo dessa civilização sobre rodas que está invadindo o interior.
Chico Romão em Recife.
O arrendatário do hotel nos diz que é ele uma propriedade de uma irmã de Chico e mesmo em frente, está à mercearia de Filinto Sampaio, seu irmão.
Durante muitos anos, o coronel fez política em Salgueiro, mas o que ele queria era o seu próprio feudo, onde uma vontade autocrática exercesse sem contraste, o seu domínio. Foi assim que nasceu Serrinha, um distrito municipal, enfiado num fundo de montanhas e que se isola do mundo no inverno inteiro pela precariedade do seu ramal rodoviário.
Quando se fez a revisão dos nomes dos municípios constou que o técnico em nomenclatura municipal, Mario Melo tinha um para lhe impor, como tantos outros que nos fizeram desaprender corografia, em 24 horas. Chico preveniu que a mudança deveria fica mesmo em duas (2) letras, pois nunca consentiria numa transformação, que fosse além de sua atual denominação de Serrita e assim se fez.
Aspecto em janeiro de 2025da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
A localidade é pequena e parece sempre dormindo, como lembrou certa vez o deputado e sociólogo pernambucano Luiz Magalhães Melo. A trinta quilômetros de Salgueiro, poucos se animam em ir até lá. No conjunto, dá-nos uma ideia de asseio e até de cuidados administrativos. Os prédios públicos são confortáveis, há luz, a água e boa, o mercado amplo, uma igreja bem tratada e um grupo escolar que é uma contrafação de estilo moderno meio despropositado e sem ambiente.
O grupo velho é, hoje, o hotel que mestre José afilhado e leal amigo de Chico administra, “mais para agradar o padrinho e completar a féria da carceragem”, por ele até a pouco exercida, segundo nos confessa, enquanto nos conta a história do retrato do velho por cuja reposição ostensiva teve de sustentar discussões com os policiais.
Soldados da polícia pernambucana circulando pelas ruas de Serrita na época do “Crime de Apipucos”.
PRESENÇA INVISÍVEL, MAS ATUANTE.
Parecia que encontrávamos no hotel o primeiro sintoma da posse. Já, antes, no entanto, nas luzes que brilhavam havia a marca da propriedade do Coronel e, dali, para diante, até o ar estava impregnado daquela presença invisível, mas atuante. No rádio do automóvel, ouvíramos a notícia de que a polícia cercara Serrita. Evadido Chico Romão, grande tem sido o empenho dos policiais em lhe deitar a mão. Toda a zona Sampaio, que compreende áreas entre Salgueiro, Serrita, Bodocó e Exú esta sob vigilância severa e intensas investigações e buscas se efetivaram logo em seguida ao mandado de prisão. De Exu, o Major Presciliano Pereira de Morais dirige a operação de busca, assistido, naquele comando, pelo Tenente Olímpio Correia dos Santos. Em Bodocó, está o Tenente Propecio, em Salgueiro, o Sargento Waldomiro e, em Serrita, o suave e jeitoso Tenente José Gonçalves Lopes, com um destacamento de trinta praças, veículos e uma estação de rádio portátil que o coloca em comunicação permanente com a Secretaria de Segurança no Recife.
Em 1952, Antônio de Sá Sampaio, primo de Chico Romão, era o líder da |UDN em Serrita.
Os parentes de Chico atribuem à nomeação do Major a amenização das medidas coercitivas que o Tenente Lopes teria tomado a sua chegada. Penetrando numa cidade em que só da Chico, não havia policial, por mais suave que fosse que não tomasse medidas de segurança, tanto mais que devia ele prender um homem que, para o comum dos sertanejos, é um ente inviolável e inatingível. Foi esse o argumento com que o Tenente Lopes explicou a sua conduta.
– O senhor avalia – diz-nos ele – o que é estar aqui para uma tarefa dessas. Não encontro uma só pessoa que preste depoimento num inquérito sobre o Coronel Romão. É um cerco inverso que a população exerce sobre nós.
A HISTÓRIA DO JUIZ QUE NÃO BEBIA E NEM CONVERSAVA
Na verdade, o tenente queria muito. Não sabia ele da história daquele juiz de direito, que, desentendido com o Coronel, teve de imigrar para Salgueiro, sem encontrar uma só pessoa que lhe abrigasse o juizado, lhe desse água para beber e o consolo de uma palavra para suavizar a solidão. Vinha da outra cidade para trabalho, com o frito nos alforjes e as garrafas d’água, voltando tão pronto ultimasse as audiências.
Dona Maroca, esposa de Chico Romão, e seu filho Francisco Sampaio Filho.
Encontramos Serrita num estado de espírito de profunda consternação. Chamo pessoas a esmo, nas ruas, e todas suspiram pela volta do velho numa revivescência agreste do queremismo. Ninguém fala sobre o crime e os poucos que se aventuram para opinar são para dizer que Chico é inocente, “mas se é que ele fez, tinha razão, pois tudo que faz, está bem feito”. Quase nem ousamos pedir informes a seu respeito, para não incorrer na violação do código de segurança que protege o desaparecimento do chefe.
Esmerino Sampaio nos informou que muitas famílias se mudaram e outras estão no interior. A feira, que assistimos, foi fraca, mas não de todo inoperante. E a impressão que a polícia nos dava era a de que cansara de esperar pelo regresso de Chico. O Tenente Lopes engordou onze quilos e queixa-se muito dos queijos de Serrita e de um leite que tem fama de pureza e de proteínas. Na rua, os soldados começam a quebrar a ordem de não confraternizar, mesmo porque quem resiste um mês sem um bate-papo tão ao agrado de policiais destacados? Um deles está popular. Esbelto, bem apresentado, consciente de sua tarefa, não entra na intimidade de Serrita. Por isso mesmo, ganhou um apelido de “Simpatia”, que muitas pessoas nos pediram entendesse pelo método vice-versa.
Vizinho a Vila Maria vemos o prédio da Câmara de Vereadores de Serrita e do Centro Cultural Mansueto de Lavor.
DANÇA QUADRILHA, NÃO USA LINHO, FALA POUCO E QUASE NÃO RI
Francisco Filgueira Sampaio, que incorporou ao apelido de Chico Romão o nome do pai, é o centro desse mundo à parte, o qual a maioria das pessoas não teve notícia da bomba atômica e, para tantas outras não há informações exatas sobre o fim da Segunda Guerra.
As estatísticas mais rigorosas que o mano José Romão nos fornece, dá vinte irmãos vivos, além de quatro mortos, e cerca de seiscentos sobrinhos, sem falar num aguerrido regimento de primos e parentes afins ou colaterais.
Aos 64 anos, casado com Dona Maroca (Maria Maia Arrais Sampaio), é, ele próprio cearense de Barbalha, enquanto a esposa nos conta, com orgulho, que veio criança do Piauí fazendo lastro numa carga de jumentos. O único filho homem que tem, Francisco Sampaio Filho é comerciante, tendo desistido, cedo, dos estudos, desinteressado igualmente da carreira política. O casal tem sete filhas, sendo duas casadas e quase todas professoras, educadas em Triunfo para não se distanciar muito da terra. Os casamentos, quase sempre ocorrem entre primos e, no estado atual, teríamos que recorrer a operações holeríticas para precisar graus de parentescos. Um primo nos disse: “Nós, aqui, casamos por edital. O velho é quem ajeita tudo e indica a noiva”.
Segundo a reportagem da revista O Cruzeiro essas tres jovens eram Terezinha, Neuza e Letice, filhas mais novas de Chico Romão, que rezavam pelo retorno do pai.
Baixo, alvo, meio ruivo com traços holandeses no aspecto, Chico Romão tem hábitos rijamente sertanejos. Deita cedo e as quatro horas está de pé para o café que compreende, pão de milho com leite. Dirige suas cinco fábricas de caroá, três engenhos e cerca de oito fazendas e está sempre à frente dos negócios próprios e dos do município, do qual é prefeito. É um homem que fala pouco e tem fama de não repetir uma declaração duas vezes. Quase não ri, mas no dia de festa, dança de sobrolho fechado, uma quadrilha da qual participam as suas filhas.
Suas viagens são, de raro em raro ao Recife e ai se hospeda em pensões baratíssimas, porque considera o Grande Hotel incompatível com a maneira de viver dos homens do interior. Nos círculos de suas relações, não há noticia de que tenha visto com roupa de linho ou de casimira. É sempre aquele brim de carregação, tipicamente interior.
Retrato do Coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, pai de Chico Romão.
Nosso confrade Gomes Maranhão que faz, agora, manchetes na Secretaria de Agricultura, com tratores e algodão, rememora as vezes que Chico esteve em sua repartição para pleitear coisas para Serrita. Homem precavido, sua infiltração maior foi na política, onde empregava afilhados, amigos e até parentes. Um detalhe curioso é que não é ele filho legítimo do casal, mas se impôs desde cedo, como a figura dominante da família e todos fazem questão de olvidar a circunstância. Em Serrita é magistrado, executivo, legislativo e juiz de paz.
Pilheria-se que o padre da freguesia dava a absolvição, “em nome do Coronel Chico” e sua senhora se queixa de que boa parte das noites foi roubada das amenidades do lar para que fosse ele pacificar esposos desavindos em distritos distantes.
Antigo prédio da Prefeitura de Serrita, hoje demolido.
Certa vez no Recife, um amigo, que desertara da polícia, pediu a colaboração de Chico na tarefa de fazer um casamento que o responsável sonegara de realizar. O Coronel mandou chamar “aquele pilantrinha” e nem precisou muitos esforços: Moço você não quer casar amanhã? O rapaz rapidamente convertido ás leis morais do matrimônio, não teve outra resposta: “Quero, sim, senhor…” E Chico testemunhava vinte quatro horas depois mais uma união que se iniciara, ilegalmente, nos desvios dos comandos ilícitos.
OS BRAÇOS DO FEUDO ABRAÇAM O CARIRI
Seu domínio espiritual vai até o lado cearense do cariri, onde o Deputado Federal Leal Sampaio é figura dominante. No Recife, Cid e Leal Sampaio são seus parentes, e o Brigadeiro Macedo[3] como o Coronel Sampson, são primos próximos. Nertan Macedo[4], seu sobrinho, inquieto e fértil repórter associado que o asfalto do Recife não conseguia “civilizar” de todo, nos conta que a atração da terra sobre a família é tão grande, que o Brigadeiro, reformado da FAB, cria bois em Quixeramobim e nunca perdeu as comunicações com Serrita. Essa história de partido, para Chico, é secundária, o que vale e reter o domínio e ser leal aos amigos.
Placa com o nome da rua que homenageava o pai de Chico Romão em 1952 e que ainda existe. Inclusive o Coronel Chico Romão batiza na atualidade a pricipal artéria de Serrita.
Em Bodocó, seu irmão José chefia o PTB[5] e quando nós pedimos que nos apresentem aos udenistas[6] de Serrita, quem nos aparece, Chico até debaixo d’água, são primos do Coronel, que, de logo, confessam que a “eterna vigilância” cedera, agora, lugar a defesa do clã ameaçado.
Ninguém resiste à atração natural de amparar parentes, mas na escala de Serrita, não deve haver algo parecido no Brasil. A única autoridade não Romão foi o Promotor Manoel Ozório, e agora, os policiais retirados, aqueles que o crime de Apipucos que encontrou nos seus postos. Vejamos essa lista realmente sensacional: Prefeito Chico Romão, licenciado por um ano; Presidente da Câmara e prefeito em exercício, José Xavier Sampaio, genro; Coletor Estadual, Antônio de Oliveira Sampaio, sobrinho; Escrivão, Walter Cruz Sampaio, sobrinho; Diretora do grupo, Maria Lima Sampaio Xavier, sendo outra, professora; Agente de Correio, Laura Filgueira Sampaio, irmã; Agente de Estatística, Vadeci da Franca Sampaio, sobrinho; Tabelião, Otávio Angelim, casado com uma sobrinha; Chefes da UDN[7], os primos e sobrinhos: Romão da Cruz Sampaio, Caraciole Filgueira Sampaio, Antonio Sá Sampaio.
Um ardoroso jovem de Missão Velha, e sobrinho Wilson Sampaio, que Edith Lucena recorda como um dos que atirou em seu irmão Edmilson, nos diz, com convicção: “Para mudar isso aqui, o governador deve começar, primeiro, trazendo gente de fora. Aqui mesmo só dá Sampaio”. O trabalhista José Romão, que perdeu um irmão trocando tiros com adversários na praça pública de Bodocó, acrescenta visivelmente orgulhoso: “Não somos um Estado, como dizem ai pelo Recife, mas na verdade, constituímos um poder para todas as épocas”. Onde houver um Sampaio, Chico conta com um leal amigo, pronto a tudo”. Vários outros bateram no peito de que atirarão até na lua, se Chico mandar, e mensagens semelhantes estão chegando de outros municípios até onde vão às influências da família.
SERRITA OLHA PARA AS GALERIAS DA ASSEMBLÉIA
Serrita é isto. Vida, agonia e paixão de Chico. O bloco Sampaio acredita-se com um eleitorado de 10 mil votos e ramificações extensas em outros “colégios”. Todos se mostram muito ressentidos com o governador. Um primo de Esmerino nos indica os filhinhos gêmeos desse deputado e herdeiro presuntivo de Chico e nos conta: “O Otávio Correia queria que o Esmerino desse os nomes de Agamenon e Etelvino. Veja que contrariedade não estaríamos nós, agora, pelo menos na metade”.
Vaqueiros encourados da região de Serrita – Foto – Álvaro Severo.
É possível que o governador chame de novo Serrita ao aprisco. Mas isso terá que ser feito via Chico Romão. De outro modo, deve haver uma recolonização intensa. Mas poderá fazê-lo? Esmerino Sampaio mostra-se muito atento às galerias da Assembleia. “A opinião do Recife está mudando, informa ele: Já recebemos palmas, quando defendemos Chico”.
Na verdade, a esta altura, dificilmente se separará Serrita do crime de Apipucos. Mais ainda: apesar de aparente suavidade do domínio, é um sistema feudal que encontra a repugnância nas camadas populares do Recife. Por outro lado, a extensão e a profundidade daquele império familiar trazem para a ordem do dia o problema que procuraremos abordar na reportagem seguinte: poderá o Coronel Roberto de Pessoa levar a bom termo a sua tarefa? A conjugação do esforço policial, dos aviões e das estradas, derrotará os coronéis ou lhes imporá novos métodos de liderança municipal?
Vamos ver isso. Para começo de conversa, o simples fato de que o poderoso caudilho de Serrita foi envolvido em investigações sobre um crime fez deflagrar uma crise política, que contornada agora, será um rastilho quando as definições forem mais oportunas e cômodas. O Deputado João Roma insiste: há uma injustiça em tudo isso porque Chico é inocente.
O Governador Agamenon Magalhães reúne três condições para fazer um juízo exato da situação – é um homem de Estado, um sociólogo e um jornalista. Ele sabe que o crime de Apipucos pode ser o começo de uma reforma política e de métodos, jogando por terra uma estrutura solidamente instaurada em Pernambuco. Para os coronéis, muitos dos quais desfilarão impressões na reportagem futura, é este um tema fascinante, que a sua comunidade encara com uma rara consciência de classe e uma aguda atenção aos movimentos da ofensiva deflagrada por aquele “servicinho mal feito” de Apipucos, como o consideram alguns caudilhos do agreste e do sertão.
NOTAS – ———————————————————————-
[1] Atual município pernambucano de Belém de São Francisco.
[2] Agamenon Sérgio de Godoy Magalhães (Serra Talhada, 5 de novembro de 1893 — Recife, 24 de agosto de 1952) foi um promotor de direito, geógrafo, professor (de Geografia) e político brasileiro; deputado estadual (1918), federal (1924, 1928, 1932, 1945), governador de estado (1937, 1950) e ministro (Trabalho e Justiça).
[3] José Sampaio de Macedo (Crato, 17 de outubro de 1907 — Fortaleza, 14 de fevereiro de 1992) também conhecido como Zé do Crato ou Sertanejo da FAB foi um major-brigadeiro do ar da Força Aérea Brasileira, piloto militar, empresário, desbravador e pioneiro da aviação brasileira.
[4] Nertan Macêdo de Alcântara (Crato, 20 de maio de 1929 — Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1989), foi um escritor com obras dedicadas aos aspectos culturais e históricos do Nordeste brasileiro.
[6] Como eram conhecidos os membros do partido UDN.
[7] A UDN – União Democrática Nacional foi um partido político brasileiro, fundado em 1945, de orientação conservadora e frontalmente opositor às políticas e à figura de Getúlio Vargas. Era um partido conhecido por sua defesa da democracia, do liberalismo clássico, da moralidade e pela forte oposição ao populismo. Além disso, algumas de suas bandeiras eram a abertura econômica para o capital estrangeiro, a valorização da educação pública e a austeridade econômica. Detinha forte apoio das classes médias urbanas e de alguns setores da elite, pela posição favorável às influências do imperialismo americano no Brasil. Concorreu às eleições presidenciais de 1945, 1950 e 1955, postulando o brigadeiro Eduardo Gomes nas duas primeiras e o general Juarez Távora na última, perdendo nas três ocasiões. Em 1960, apoiou Jânio Quadros (que não era filiado à UDN), obtendo assim uma vitória histórica. Seu principal rival nas urnas era o Partido Social Democrático (PSD). Como todos os demais partidos, a UDN foi extinta pela ditadura militar em 27 de outubro de 1965.
1970 foi um ano de seca muito forte, onde pouco sobrou para o homem do sertão nordestino conseguir sobreviver. Na época, o Governo Federal procurou minimizar os impactos sociais decorrentes dessa estiagem e atender as grandes levas de flagelados. Em anos anteriores haviam sido criados programas que consistiam na utilização de trabalhadores rurais em obras de pequeno e médio porte, as chamadas “Frentes de Emergência”. Normalmente executadas em grandes propriedades privadas de lideranças políticas, a criação desses subempregos fomentou entre os pequenos agricultores do sertão do Nordeste brasileiro uma forte dependência política e financeira. Mas para muitos, em certos momentos, foi a principal fonte de sobrevivência.
Uma dessas “emergências”, como o sertanejo denominavam os locais onde ocorriam as obras desse programa, ficava localizada a cerca de trinta quilômetros ao norte da sede do município pernambucano de Serra Talhada, na região do Pajeú (412 km de Recife e então com 65 mil habitantes).
No final de dezembro de 1970 ali foi realizada a obra de melhoramento da estrada carroçável que seguia até o povoado de Santa Rita, passando pela comunidade de São João dos Gaia e o sítio Serrote Branco.
A maioria dos trabalhadores rurais alistados naquele setor eram membros da família Magalhães, cujos os integrantes eram considerados um clã familiar tradicional, tidos como pessoas honestas, trabalhadoras, com muitos deles possuindo pequenas propriedades rurais, mas recursos financeiros limitados. Até hoje na região são conhecidos como a família Gaia, ou simplesmente os Gaia. Mesmo sem comprovação, é possível que essa denominação exista por eles possuírem um antepassado oriundo do município de Vila Nova de Gaia, norte de Portugal.
Foto ilustrativa de uma Frente de Emergência no sertão nordestino.
O certo é que no dia 30 de dezembro de 1970, uma quarta-feira, esses trabalhadores estavam reunidos para receber de um funcionário da extinta SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) o pagamento pela semana trabalhada na Frente de Emergência. Fazendo a segurança desse funcionário estavam dois soldados da Polícia Militar do Estado de Pernambuco (PMPE), que se chamavam Adalberto Clementino de Moura e Alberto Alves de Oliveira, este último conhecido como Alberto Cipriano. O pagamento ocorreu na comunidade de São João dos Gaia, em um local onde hoje existe um Grupo Escolar.
Segundo a reportagem de primeira página do Diário de Pernambuco (edição de 17/01/1971), na hora de entregar o miserável salário, o funcionário público da SUDENE buscou organizar uma fila e houve algum tipo de alteração entre ele e Edmundo Gaia, tido como chefe da família e da turma de trabalhadores, pois na sequência o pagador mandou que o soldado Adalberto revistasse Edmundo para ver se ele trazia alguma arma de fogo e em caso positivo, que fosse preso.
A Serra Talhada.
O material do jornal informa, sem trazer detalhes, que o soldado Adalberto não gostava de Edmundo e para impor autoridade empurrou o rapaz, que reagiu empurrando o militar de volta. O soldado então revidou com um violento murro na cara do trabalhador rural.
Aí a coisa desandou!
Cícero Batista Gaia tentou apartar a briga entre Edmundo e o soldado Adalberto, quando o outro soldado baleou Cícero. Na época uma das testemunhas do fato foi uma mulher conhecida como Maria Barraqueira, que tinha montado no local uma banquinha e vendia algumas peças de roupas. Ela contou que no momento do tiro atendia Antônio, irmão de Edmundo, que ao ouvir o disparo disse “Valha-me Nossa Senhora… Briga com meus irmãos! Corra Enoque (outro irmão)”. Maria Barraqueira contou ao repórter do Diário de Pernambuco que “A essa altura eu me vali das pernas e me fiz no mato, de onde ouvia, somente, a saraivada de balas pelo ar”.
Outra testemunha do conflito, um trabalhador rural local, narrou que “Nossa Senhora valeu os irmãos Gaia, pois aguentar uma chuva de balas daquelas, foi um verdadeiro milagre”. Ainda segundo essa testemunha os Gaia, ao verem Cícero baleado, “lutaram como leões”. Um deles partiu para cima do soldado Alberto Cipriano, conseguiu tomar seu revólver e matá-lo. O soldado Adalberto também tombou sem vida. Uma versão aponta que Cícero, Edmundo, Tozinho, Antônio e Enoque Gaia reagiram apenas com facões e punhais aos dois policiais armados de revólveres. O menor Luiz Ferreira da Silva testemunhou tudo e afirmou à imprensa que também havia sido agredido por um dos policiais, cujo nome não sabia. Comentou também que os Gaia reagiram às arbitrariedades “como um homem deve fazer” e que os soldados “estavam pagando para morrer”.
Após as mortes, os membros da família Gaia envolvidos no conflito desapareceram.
Covardia
Em março de 1975, quando o caso Vilmar Gaia estava no auge, o então capitão da PMPE Jorge Luiz de Moura, que nessa época era o Assistente Policial Militar Adjunto a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, produziu um interessante relatório de onze páginas sobre o caso. Uma cópia foi entregue ao extinto DOPS (Delegacia de Ordem Política Social) de Recife e se encontra no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, cujo conteúdo utilizei para produzir esse artigo.
Neste material o capitão Jorge afirmou que a morte daqueles dois policiais “gerou a inimizade entre alguns elementos da Polícia Militar, destacados nesta cidade (Serra Talhada), que ficaram solidários com as famílias dos soldados assassinados”. O problema dessa “inimizade” foi a forma como os policiais agiram contra os membros da família Gaia que não fugiram. Um grupo formado basicamente de velhos, mulheres e crianças.
Um funcionário municipal de Serra Talhada, cuja identidade não foi revelada, comentou aos jornalistas do Diário de Pernambuco (edição de 17/01/1971) que “as sevícias”, que os familiares dos assassinos dos soldados sofreram da polícia, a fim de descobrirem o paradeiro dos mesmos, foi um “procedimento reprovável sob todos os pontos de vista”.
Francisca Maria Alves, seus filhos. Membros da família Gaia, atacados por policiais.
Os repórteres recifenses estiveram no casebre de Antônio Paes de Lima, sogro de Edmundo, onde viram as portas arrombadas pelos policiais ao iniciar as diligências para capturar os criminosos e ouviram do dono da casa que os soldados chegaram por volta da meia noite do dia 31 de dezembro de 1970. Antônio começou o Ano Novo “recebendo murros, pontapés, pancadas nos peitos com a coronha de um fuzil e empurrões”. O mesmo aconteceu com seu filho Joaquim Paes, que foi arrastado pelos cabelos e jogado em cima de um caminhão. Já a Senhora Virginal Vieira Alves, esposa de Edmundo, tentou fugir com os seus filhos, mas foi obrigada a retornar para sua casa em meio a muitas ameaças dos soldados, que mantiveram fuzis apontados para ela e suas crianças.
Já as jovens Maria José Paes de Lima, Lucinda Francisca Alves e Maria Ginave Alves, tiveram as mãos e os pescoços amarrados e foram violentamente açoitadas com cordas para revelarem o paradeiro dos parentes.
Mas não ficou só nisso!
A mãe de Edmundo, a Senhora Manuela Maria Cordeiro de Magalhães, então com 72 anos de idade, foi arrastada pelo chão, teve fuzis apontados para sua cabeça e foi ameaçada com sabres no pescoço. Nem o motorista da viatura policial aguentou ver o sofrimento daquela mulher e clamou pela sua defesa. Ainda segundo a reportagem do Diário de Pernambuco a tentativa de proteção não adiantou, pois seus companheiros de farda jogaram Dona Manuela em cima de um banco de madeira e, em janeiro de 1971, ela se encontrava entre a vida e a morte.
Já Francisca Maria Alves, mãe de dez filhos e que estava grávida na época dessa tragédia, foi ameaçada de ser sangrada se não informasse o paradeiro do seu marido Antônio Gaia. A experiência de Dona Francisca foi verdadeiramente terrível, pois sofreu violências na frente dos filhos e nada falou sobre o esposo.
No outro dia, por pura necessidade, essa mulher foi buscar água em uma cacimba nas proximidades. Nesse meio tempo seus filhos, já massacrados de tanto terror acontecido na noite anterior, ao escutarem um carro circulando pelas imediações de sua casa, correram desesperados para o meio do mato. Pensavam que a polícia retornava para uma nova seção de violências.
Ocorre que as crianças se perderam na caatinga e só foram encontrados já à noite. O mais novo dos filhos de Dona Francisca se achava doente e acabou morrendo por falta de assistência.
A Morte do Velho Batista Gaia
Aparentemente as notícias das arbitrariedades policias contra idosos, mulheres e crianças da família Gaia obtiveram certo nível de repercussão em Recife. Mas isso não significou o fim das violências.
Segundo uma reportagem da Revista Manchete, assinada por Laércio Vasconcelos (Edição 1568, 08/05/1982, págs. 118 a 121), quem passou a ajudar os membros da família Gaia envolvidos no conflito da “Frente de Emergência” foi um tio chamado João Batista de Magalhães, mais conhecido como João Batista Gaia. Ocorre que esse cidadão, guarda aposentado da Coletoria Estadual, era amigo de José Cipriano, pai do falecido soldado Alberto Alves de Oliveira, o Alberto Cipriano. Segundo o jornalista Laércio Vasconcelos, nas décadas de 1920 e 30 eles haviam participado de volantes que haviam caçado Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seu bando de cangaceiros. Quando José Cipriano soube que seu velho amigo de correrias contra Lampião estava ajudando na defesa dos assassinos do seu filho, evidentemente que não gostou nem um pouco daquela situação.
Em 06 de julho de 1971, seis meses após os acontecimentos em São João dos Gaia, o velho Batista Gaia foi assassinado em Serra Talhada com cinco tiros, duas facadas e uma forte cacetada na cabeça. O fato se deu quando ele estava no quarto de uma prostituta, aparentemente denominada “Ina” e seu corpo foi então jogado ao lado da caixa d’agua da cidade, em um lugar conhecido como Alto do urubu, ou simplesmente Urubu.
O então delegado de Serra Talhada, o capitão João Virgílio Oliveira de Morais, instaurou um inquérito para saber quem matou João Batista Gaia. Este solicitou a Secretaria de Segurança Pública um Delegado Especial e quem assumiu a função foi o Bacharel Fernando José Pereira de Albuquerque. Essa autoridade afirmou, e consta do relatório do capitão Jorge (Pág. 02), que “dada as inimizades da vítima, neste município, as pessoas conhecedoras dos detalhes, se furtaram a prestar informações”.
Ainda segundo esse relatório de 1975, logo surgiram três versões acerca da morte de Batista Gaia na cidade de Serra Talhada. A primeira dizia que os autores foram soldados da 17ª Companhia de Polícia Militar; a segunda que o autor foi José Cipriano; e a última versão era que o velho Batista Gaia desempenhara a função de guarda da Coletoria Estadual (atual Secretaria da Fazenda), onde conseguiu muitos inimigos e foi assassinado pelas suas ações como funcionário público. O relatório também informou que na época desse homicídio João Batista Gaia tinha 75 anos, mas era um homem que frequentava cabarés, bebia e arranjava confusões nesses ambientes.
Igreja de Nossa Senhora da Penha, em Serra Talhada.
Mesmo sem apontar autores, o inquérito foi então remetido à justiça. Durante a instrução criminal o promotor público de Serra Talhada, cujo nome não é informado, solicitou o arquivamento do processo, mas o pedido foi negado pelo juiz Ítalo José de Miranda Fonseca. Aí o processo foi encaminhado para o Procurador Geral, que acatou as alegações do juiz Ítalo Fonseca e mandou que o promotor público da cidade de Triunfo, distante 33 quilômetros de Serra Talhada, oferecesse denúncia.
O processo foi em seguida remetido para a Secretaria de Segurança Pública, para diligências complementares. Estas foram realizadas pelo Delegado de Homicídios da época, que concluiu pela participação do soldado da PMPE Natalício Nunes Nogueira. Ainda segundo o relatório do capitão Jorge em decorrência dessa conclusão, o soldado Natalício foi denunciado pelo promotor público (não é informado se foi o de Triunfo, ou de Serra Talhada) e enquadrado no crime de homicídio qualificado. Mas o soldado foi impronunciado pelo próprio promotor, alegando falta de provas.
O leitor deve levar em consideração que naqueles primeiros anos da década de 1970, a situação de violência na região de Serra Talhada alcançou um tal nível, que em 1975 existia naquela comarca 102 processos de homicídio, sendo que em dez constava o uso de tocaias para perpetrar os crimes e outros dez envolviam nada menos que quinze policiais (Revista Manchete, edição 1220, 06/09/1975, página 23). Já o relatório do capitão Jorge (Relatório, pág. 11), através de informações fornecidas pelo juiz Ítalo, nos três cartórios criminais de Serra Talhada havia 150 processos criminais em andamento, sendo 80 abertos entre abril de 1974 e março do ano seguinte.
Foto antiga de Serra Talhada.
Ou seja, o caso da morte do velho Batista Gaia era mais um entre tantos.
Independentemente dessa questão, o certo é que os membros da família Gaia não viram ninguém ser preso, julgado e condenado pela morte de João Batista Gaia. Enquanto isso, alguns integrantes dessa família envolvidos no conflito da “Frente de Emergência” estavam detidos na Delegacia de Serra Talhada.
“Se Fosse Vivo Eu o Mataria Novamente”
Vilmar Alves Magalhães, o Vilmar Gaia, nasceu em 15 de maio de 1949 e era filho do velho Batista Gaia e de Dona Francisca Alves de Lima, que faleceu quando Vilmar tinha oito anos de idade. Esse rapaz era uma figura típica do meio rural da região do Pajeú. Nasceu na povoação de Santa Rita, estudou até o segundo ano primário, gostava de gado e jogar pião, trabalhou na roça e, na ausência de sua mãe, foi criado pela irmã mais velha, Maria de Lourdes. Esta enviuvou cedo e, sem filhos, deu todo carinho possível ao irmão mais novo. Não era uma criança de chorar por besteiras e cedo ganhava alguns trocados tangendo o gado de Seu Luís Inácio. Segundo a maioria das fontes, Vilmar Gaia se encontrava em São Paulo e após saber do assassinato do pai voltou para o Pajeú (Diário de Pernambuco, 22/08/1975).
Vilmar Gaia
Segundo o relatório do capitão Jorge Luiz de Moura, até a época do assassinato do seu pai, Vilmar Gaia não tivera problemas com a justiça. Inclusive o capitão Jorge descobriu que ele havia tentado ingressar na polícia em julho de 1970, no quartel do 5º Batalhão de Polícia Militar, quando este era sediado na cidade pernambucana de Salgueiro. Em uma reportagem assinada pelo jornalista Ricardo Noblat, na Revista Manchete (edição 1220, 06/09/1975, páginas 22 e 23), existe a informação que quando mataram seu pai, mesmo tendo ido para São Paulo, Vilmar estava inscrito em um novo exame de admissão na polícia do seu estado.
Mas agora, de volta ao sertão pernambucano e cheio de ódio, ele iria mostrar que era melhor com uma arma na mão do que com um lápis!
Novamente na Revista Manchete, Vilmar deu uma declaração a Ricardo Noblat onde buscou resumir sua vingança – “O processo não andava, nunca andou direito. A gente ia, pedia ao delegado, capitão Virgílio, comandante da 17ª Companhia de Polícia Militar, e não adiantava, e não fazia nada. E o que era pior: ainda passava os domingos na casa de José Cipriano, o homem que mandou matar meu pai. Aí compreendi que a justiça tinha que ser feita pela gente mesmo”.
Evidentemente que Vilmar desejava colocar os assassinos do seu pai na alça de mira de sua arma. Para ele seus alvos prioritários eram José Cipriano, seus familiares e os policiais que ajudaram na morte do velho Batista Gaia.
Em uma entrevista o tenente reformado da polícia pernambucana David Gomes Jurubeba, ex-integrante das “volantes” que combateram o cangaceiro Lampião e seu bando na década de 1930, comentou que Vilmar Gaia descobriu que os soldados Natalício Nunes Nogueira e Luís Gonzaga Mendes estavam envolvidos na morte do velho Batista Gaia. Estes possuíam laços de parentesco com a família Ferraz e este clã foi acusado por Vilmar de protegê-los (Diário de Pernambuco, edição de 17/11/1975). Uma outra versão aponta que Vilmar soube que a prostituta que estava com seu pai no dia de sua morte e se chamaria “Ina”, teria traído seu cliente por CR$ 500,00, pagos pelos assassinos. Ela então teria se arrependido do que fez e narrou tudo ao filho de Batista Gaia.
Policiamento em Serra Talhada.
Somente em 13 de janeiro de 1973, um ano e meio depois da morte de seu pai, foi que Vilmar Gaia conseguiu matar com um tiro na testa Arnaldo Alves de Oliveira, o Arnaldo Cipriano, em um bar na cidade de Salgueiro, quando a vítima jogava bilhar. Este era filho de José Cipriano e irmão do soldado Alberto, o mesmo que morreu no penúltimo dia de 1970.
Vilmar nunca negou a autoria desse crime. Quando foi preso em 1975 ele afirmou para o juiz de Salgueiro, o Dr. Enéas Bezerra de Barros, que “Se Arnaldo Cipriano fosse vivo eu o mataria novamente. Ele foi um dos assassinos de papai e eu o escolhi para mandá-lo para o inferno em primeiro lugar” (Diário de Pernambuco, edição de 14/11/1975).
Logo Vilmar focava em outros alvos e angariava novos inimigos e amigos.
Se havia militares que Vilmar Gaia desejava ver diante da mira do seu revólver, outros lhe protegiam com “o braço forte” e estendiam a “mão amiga”.
Seu parente Lindauro Gaia comentou em um documentário com direção de Eduardo Coutinho e intitulado “O Pistoleiro de Serra Talhada”, que após a morte de Arnaldo Cipriano, Vilmar passou a circular livremente ao lado de policiais. Comentou que seu parente “ficou dentro da cidade, com a polícia com a mão por cima dele e até bebendo”.
Mas logo essa aproximação traria problemas.
Mais Problemas
Sentindo-se protegido, Vilmar Gaia foi a uma festa na comunidade do Jardim, próximo a São João dos Gaia. Era uma noite de sábado, 22 de junho de 1974, bem no período de festas juninas e ele foi acompanhado de amigos policiais e algumas mulheres.
Vilmar começou a dançar com uma dessas damas, considerada “de vida fácil” pelo povo da região. Seja pela forma de vestir, ou de agir, a dança de Vilmar e da parceira começou a incomodar os presentes. Estes foram até Pedro Inácio dos Santos, suplente de Comissário de Polícia, pedir que ele tomasse providências. Sem outro jeito, Pedro foi até Vilmar e mandou que ele e seus amigos se comportassem, ou fossem embora do ambiente.
Com o que aconteceu depois, teria sido melhor ter deixado o casal dançar do jeito que bem entendessem.
Logo estourou uma discursão, que gerou um tiroteio pesado, onde foram disparados mais de 40 tiros. O resultado foi a morte de Pedro Inácio, ferimento em três homens e duas mulheres. Segundo o relatório do capitão Jorge (Relatório, págs. 03 e 04), embora não conste nos autos do processo aberto sobre esse episódio, Vilmar Gaia também saiu ferido e recebeu tratamento médico no Hospital Barão de Lucena, em Recife.
Ao ler esse relatório, acredito que para o capitão Jorge o mais incrível desse episódio ocorreu cerca de quinze dias depois, na delegacia de Serra Talhada.
Vilmar Gaia esteve neste local para prestar depoimento sobre o tiroteio em Jardim. Ele foi acompanhado de outras pessoas, alguns de sua família, todos armados até os dentes. Ocorre que na hora do depoimento chegou de Salgueiro um cabo, três soldados e um motorista, com ordens do tenente Almir Ferreira de Morais, delegado daquela cidade, para levar Vilmar até sua presença, onde ele deveria prestar depoimento sobre a morte de Arnaldo Cipriano.
Mas o delegado de Serra Talhada, um subtenente, negou ao cabo que Vilmar Gaia estivesse naquele momento em sua delegacia, o que era mentira. Um soldado de Salgueiro sabia quem era Vilmar, o reconheceu e informou ao cabo. Este por sua vez, vendo a atitude de seu superior e a presença de pessoas armadas em favor de Vilmar Gaia, decidiu recuar.
Vilmar Gaia na Delegacia de Serra Talhada.
O capitão Jorge descreveu em seu relatório oficial que a atitude do militar que respondia pela delegacia de Serra Talhada foi classificada como “omissão”, além de “pura falta no cumprimento do dever” e “covardia”.
Com esse tipo de ação por parte das autoridades policiais junto a Vilmar Gaia, o que reservava o futuro?
Mais Mortes
Três meses depois, em 13 de outubro de 1974, por volta das sete ou oito da manhã de um domingo, mesmo estando respondendo ao processo sobre a morte de Pedro Inácio dos Santos, que tinha o número 2.746 e corria no 2º Cartório da Comarca de Serra Talhada, Vilmar circulava livre e solto em um carro, na povoação de Santa Rita. Então ocorreu na estrada a colisão do seu veículo com o do primo Antônio Augusto Batista. Ao invés de procurarem resolver o problema na conversa, logo surgiu uma discursão e o clima esquentou. Existe uma versão que durante a troca de palavras ásperas, Antônio Augusto teria ido até o seu carro pegar uma arma e por isso o “Vingador do sertão” atirou nele, matando-o na hora.
Vilmar, certamente buscando um fiapo de justificativa, comentou em uma entrevista para o Diário de Pernambuco (14/11/1975) que seu primo Antônio Augusto lhe protegia após o início dos problemas com seus inimigos, mas depois, com medo, passou para o lado da família de José Cipriano. Muita gente em Serra Talhada afirma que isso era mentira.
E quase que Vilmar Gaia mata outro primo nesse mesmo dia!
José Augusto Batista, irmão da vítima, se dirigiu para o local e foi recebido a tiros por Vilmar Gaia. Só não morreu por que entrou no seu carro e fugiu.
José Augusto veio até o quartel da 17ª Companhia de Polícia Militar e pediu auxílio. Foi organizada uma patrulha composta de um cabo e seis soldados a fim de capturar Vilmar Gaia, que descaradamente ainda se encontrava em Santa Rita. Consta que o cabo levou uma submetralhadora calibre 45, completamente municiada.
O pistoleiro estava no interior de uma casa, quando por volta das nove ou dez horas da manhã (algumas fontes apontam que foi a tarde) a polícia chegou. Ao Diário de Pernambuco Vilmar Gaia afirmou (14/11/1975) que “ao invés de lhe darem voz de prisão, começaram a atirar e, para não morrer, me defendi”.
O soldado Natalício Nunes Nogueira, seu inimigo implicado na morte de seu pai, entrou pela porta traseira e Vilmar o matou a tiros. Após isso tratou de fugir. Já o cabo armado com a submetralhadora continuou com a mesma nas mãos e não disparou um único tiro.
Vaqueiros do sertão do Pajeú – Foto Rostand Medeiros
Com esses homicídios, os ânimos se acirraram em Serra Talhada e a situação de Vilmar Gaia começou a se complicar. Depois de matar um primo e tentar contra a vida de outro, houve um rompimento na família Gaia, com uma parte querendo a cabeça do pistoleiro e outra o protegendo.
Com a morte do soldado Natalício a polícia novamente voltou a circular na região da família Gaia, agora com violência redobrada. Houve invasão de casas, pessoas apanharam e outras foram presas. Zuleide Alves de Magalhães, irmã de Vilmar, ficou detida nas dependências da 17ª Companhia de Polícia Militar.
Lindauro Gaia comentou ao diretor Eduardo Coutinho em 1977 que, a partir da morte do soldado Natalício, a perseguição contra Vilmar Gaia só fez crescer e ele deixou de circular por São José dos Gaia e Santa Rita.
Luta entre Famílias
Enquanto a polícia perseguia os integrantes da família Gaia e corria atrás de Vilmar, as violências se sucediam.
Consta que ainda em 1974, Vilmar Gaia participou da morte de um homem chamado Luiz Desidério, ou Luiz de Izidério, na cidade de Irecê, Bahia. Esse cidadão, quase octogenário, havia praticado um assassinato em Serra Talhada no ano de 1926 e, mesmo passados tantos anos, seu filho, conhecido como Baiãozinho, desejava a vingança. Esse era amigo de Vilmar Gaia e ele teria supostamente participado desse crime por amizade. Para outros a motivação foi apenas dinheiro. Vilmar afirmou apenas testemunhou a morte. O certo é que Baiãozinho assumiu toda a culpa, foi a julgamento e acabou absolvido pelo júri.
Em meio aos conflitos, não demorou para que outros membros da família Gaia pagassem com a vida pelo parentesco com Vilmar.
Em janeiro de 1975 foi assassinado o motorista de taxi Francisco Gaia Filho, o conhecido Batinha. Uma noite ele estava estacionado com seu fusca na porta do Cabaré de Nivalda, quando seus assassinos chegaram e o mataram. Quem socorreu Batinha para o hospital foram as prostitutas, mas nada pôde ser feito. Na Revista Manchete (edição 1220, de 1975) existe a informação que no dia de sua morte Batinha foi revistado três vezes pela polícia antes de ser assassinado.
Policiamento em Serra Talhada.
Vilmar não demorou para responder essa morte e partiu para ação.
Mais ou menos às cinco da tarde do dia 19 de março de 1975, o soldado Luiz Gonzaga Mendes, outro implicado na morte do pai de Vilmar, ao voltar de um roçado pertencente ao seu pai na fazenda São José, Distrito de Tauapiranga, foi inesperadamente alvejado no coração com um tiro de um rifle calibre 44. Ele caiu ferido, mas faleceu no outro dia. Segundo a documentação existente, o soldado Gonzaga era casado com Neomar de Araújo Ferraz Mendes, filha do comerciante serra-talhadense Irineu Gregório Ferraz, que prestou depoimento juntos as autoridades pelo assassinato do genro. Irineu afirmou que Antônio de Souza Mendes, irmão de Gonzaga, testemunhou o crime e apontou como autores da emboscada Vilmar e um soldado reformado da PMPE, que tinha o apelido de “Brucutu”. Vale frisar que além de sogro do soldado Gonzaga, Irineu Ferraz era primo do soldado Natalício Nunes Nogueira.
Um dia depois da morte do soldado Gonzaga, o comerciante Álvaro Batista Gaia, irmão de Batinha e casado com uma irmã de Vilmar Gaia, foi brutalmente assassinado em sua casa de comércio chamada “Aliança de Ouro”. O comerciante tombou ao lado da caixa registradora, após receber disparos de revólveres e rifles, desfechados por cinco ou seis homens armados. Segundo o escritor e pesquisador Valdir Nogueira, essa loja ficava no Alto de Bom Jesus, em Serra Talhada.
Na época suspeitou-se que os assassinos seriam comandados por Irineu Ferraz, acompanhado de vaqueiros, ou de colegas do soldado Gonzaga. Mas não consegui maiores informações sobre esse processo, ou se alguém foi preso.
Vilmar sendo entrevistado após sua prisão.
Famoso e Sendo Reconhecido
As notícias desses crimes ecoaram por toda parte. Eram difundidas pelas emissoras de rádio e logo circulavam por todo Nordeste. Segundo o relatório do capitão Jorge, essas mortes causaram impacto na opinião pública de Pernambuco, sendo bastante divulgados pela imprensa da capital e do sul do país. Consta que até repórteres da Rede Globo e do jornal O Estado de São Paulo estiveram na região (Relatório, pág. 06).
Vilmar, a quem as mulheres chamavam de “galã”, teve seu ABC cantado nas feiras sertanejas pelos poetas e violeiros, ou exposta através de folhetos de cordel. Em Recife seu nome era comentado desde o Mercado de São José, nas esquinas da Rua do Imperador, ou da Avenida Guararapes. Já o poeta popular Olegário Fernandes, da cidade pernambucana de Caruaru, produziu o folheto de cordel intitulado “Vilmar Gaia, o cangaceiro de Serra Talhada” e assim escreveu:
“Agora peguei a pena
Com divina inspiração
Para escrever uma história
Sobre o cavalo negro
Da Caatinga e do sertão.
Vira-se em cavalo preto
Corre-se dentro da campina
Vira-se em pau, ou pedra
Para cumprir sua sina
Come lagarta e besouro
Como ave de rapina”.
Mas essa exposição nos cordéis e na mídia, mesmo a televisiva ainda sendo limitada no sertão nordestino na primeira metade da década de 1970, trouxe um lado bastante negativo para Vilmar Gaia, pois ele foi visto e seu rastro seguido em vários locais. Essas informações chegaram aos policiais e após investigações o capitão Jorge listou em seu relatório onde ele se escondia e recebia abrigo.
Inicialmente Vilmar se homiziava em áreas onde predominavam membros de sua família, como Santa Rita, São João dos Gaia e Serrote Branco. Mas com o rompimento ele se afastou dessas áreas e passou a frequentar uma propriedade rural a 15 quilômetros de Serra Talhada, na altura onde se inicia a estrada que dá acesso ao Distrito de Bernardo Vieira e ao Estado da Paraíba.
Conforme a perseguição crescia ele passou a frequentar mais as terras paraibanas. Tinha “coitos”, esconderijo no linguajar sertanejo, em uma fazenda no município de Princesa Isabel (de um político local), uma casa de uma mulher afastada do centro da cidade de Teixeira, em uma fazenda de um ex-deputado estadual próximo a cidade de Piancó e em um sítio em Itaporanga, onde receberia apoio de um ex-policial.
Em Pernambuco foi visto circulando com os pistoleiros conhecidos como “Nunes” e “Pitu”, sendo o primeiro o ex-policial José Nunes da Silva. Vilmar também recebia apoios nas cidades de Salgueiro, Floresta, Tacaratu (onde um rico do lugar lhe fornecia dinheiro quando necessitava). Andou também por Serrita, Calumbi (na fazenda de um político local) e em Recife (na casa de amigos no bairro do Cordeiro). Segundo o capitão Jorge havia notícias que Vilmar estivera circulando em Alagoas, na cidade baiana de Feira de Santana, na cidade cearense de Juazeiro do Norte e até mesmo em Caxias, no Maranhão (Relatório, pag. 09).
A existência desses apoios, esconderijos e o fato de Vilmar andar com matadores conhecidos, foi visto por muitos em Serra Talhada e região que de “Vingador do Sertão” Vilmar Gaia não tinha nada. Ele seria apenas mais um pistoleiro que vagava pelo Nordeste destruindo vidas humanas em troca de dinheiro e já teria matado, dependendo das fontes, de 27, 32 e chega a até 35 pessoas.
Vilmar Gaia sempre negou essa situação. Diante das câmeras afirmou que matou o soldado Natalício Nunes Nogueira, seu primo Antônio Augusto Batista e o Comissário de Polícia Pedro Inácio dos Santos. Além deles, conforme ele narrou ao juiz Enéas Bezerra de Barros e está registrado no Diário de Pernambuco, edição de 14/11/1975, matou Arnaldo Alves de Oliveira, o Arnaldo Cipriano, na cidade de Salgueiro.
A Lei se Impõem
Em meio a tantas mortes em sequência, o aparato jurídico e policial do Estado de Pernambuco começou a agir. E a ação se incrementou por ordem direta do então governador pernambucano José Francisco de Moura Cavalcanti, certamente pressionado pela opinião pública.
De Recife veio o capitão Jorge Luiz de Moura, com a missão de “Oficial Observador”. Após inspecionar o setor e tomar conhecimento pormenorizado dos fatos, transferiu de Serra Talhada para a cidade de Petrolina os policiais suspeitos de estarem envolvidos nos crimes anteriormente narrados e os que tinham processos abertos. De Petrolina vieram militares para manter a ordem em Serra Talhada e o policiamento ostensivo foi intensificado.
Vilmar Gaia após sua prisão.
Outra ação do capitão Jorge que é digna de nota, é que após a sua chegada ele buscou os líderes da comunidade de Serra Talhada e chamou todos para uma reunião. Estavam presentes o prefeito, o delegado, comerciantes, profissionais liberais e outros. Nela o militar expôs as ordens recebidas, a forma de atuação do seu trabalho e ouviu as reclamações das lideranças locais. Nesse diálogo o capitão Jorge sentiu “certa falta de confiança na ação policial local, oriunda de acontecimentos anteriores” (Relatório, pág. 10).
Em seu comentado relatório o capitão Jorge apontou para seus superiores a necessidade de se trazer para Serra Talhada um Delegado Especial, que fosse “imparcial e experiente e com total apoio da SSP e do Comando da PMPE”. Em abril de 1975 foi nomeado o capitão José Ferreira dos Anjos, um oficial tido como valente, operacional e campeão de tiro da polícia pernambucana na época.
O capitão Ferreira veio para a região conflituosa e trouxe uma equipe de 38 policiais. Consta que esse oficial arrochou geral para cima da família Gaia, sendo dez dos seus membros presos e houve denúncias de arbitrariedades por parte desse oficial. Em uma nota publicada no jornal carioca A Luta Democrática (18/04/1975, pág. 02), o capitão Ferreira foi acusado de deixar todos os integrantes da família Gaia detidos em uma única cela, algemados e passando fome. A ideia era forçar os membros da família a “abrir o bico”, como se diz no jargão policial, e informar o paradeiro de Vilmar para prendê-lo.
Vilmar preso e recebendo a visita de parentes.
Meses depois o capitão Ferreira recebeu a informação que Vilmar Gaia estava em uma fazenda chamada Quiterno, ou Quitéria, na cidade cearense de Ipaumirim, a 215 km de Fortaleza e a 27 da fronteira com a Paraíba. Vilmar foi encontrado trabalhando como um empregado da fazenda, era conhecido por “Tonho”, foi preso com apenas um revólver e cinco balas. Aceitou se render ao capitão Ferreira e sua equipe sem maiores problemas, pois para o fugitivo o oficial militar o “tratou muito bem e o respeitou como homem” (Diário de Pernambuco, 22/08/1975).
Vilmar Gaia se tornou notícia em todo país e era centro de atenções na Delegacia de Serra Talhada, onde muitas fãs iam lhe levar comida e carinho. Mas ele gostava mesmo de receber uma moça jovem, de boa família sertaneja, funcionária de um tribunal federal, que a tempos mantinha um relacionamento íntimo com Vilmar e que tinha gerado uma bela menina.
Uma noite, menos de três meses após sua prisão, Vilmar soube que o capitão Ferreira seria exonerado de suas funções em Serra Talhada e sairia da cidade. Então, utilizando uma vitrola que lhe foi presenteada por uma prima colocou um disco e abriu o volume no máximo com músicas de Waldick Soriano e Raul Sampaio. O prisioneiro aproveitou o barulho, abriu um buraco de 50 cm na parede da prisão e fugiu.
Três dias depois foi novamente capturado. Estava na fazenda Altinho, do primo Lindauro Gaia e não tinha armas de fogo. Se entregou ao capitão Ferreira e sua escolta com 30 soldados e lhe afirmou que não queria fugir, mas temeu que com a saída desse militar em pouco tempo seria trucidado pelos inimigos. Ficou decidido que Vilmar Gaia seria levado para a cadeia de Caruaru, onde acreditavam que ele poderia cumprir sua pena com segurança.
Vilmar e sua filha.
Reviravolta
Quase dois anos depois, no dia 8 de março de 1977, um veículo do tipo Chevette, cor azul, estava estacionado com quatro homens a somente 100 metros da cadeia de Caruaru. A polícia desconfiou daquela gente e um grupo deles foi até o carro de arma em punho. Descobriram que os ocupantes daquele carro estavam com dois rifles calibre 44, quatro revólveres, muita munição e quatro placas frias. Eles vieram de Serra Talhada e tinham uma missão – Matar Vilmar Gaia (Diário de Pernambuco, 09/03/1977).
Poucos dias antes o “Vingador do sertão”, depois de um ano e sete meses preso pelos quatro homicídios que havia confessado, estava prestes a deixar o cárcere. O fato havia sido bastante divulgado e isso motivou a vinda daqueles quatro homens para tentar liquidar Vilmar.
O advogado Juarez Viera da Cunha, que representava Vilmar Gaia, entrou com um habeas corpus em favor do seu cliente, alegando excesso de prazo durante o sumário de culpa. Cinco desembargadores do Tribunal de Justiça de Pernambuco concederam o habeas corpus por unanimidade, mas se pronunciaram afirmando que aquilo era um “desprestígio para a justiça pernambucana, que se demonstrou incapaz de cumprir os prazos mais elementares para o desenrolar dos processos” (O Fluminense, Rio de Janeiro, 04/03/1977).
Após a saída de Vilmar Gaia da cadeia de Caruaru eu não encontrei mais nada referente a essa figura e nem o que aconteceu com ele. Sob todos os aspetos ele sumiu. Talvez em sua mente aquele ano e sete meses de cadeia já estavam de bom tamanho, ou ele soube de algo que o fez sumir.
Bem, com Vilmar solto pelo mundo, para quem quisesse eliminá-lo era só encontrá-lo e liquidá-lo. Mas encontrar Vilmar Gaia não era algo tão simples assim. Homem criado e vivido no sofrido sertão nordestino, sem os confortos da capital, ele poderia se esconder desde o Oiapoque ao Chuí, em qualquer vilazinha, recanto distante, ou pequeno sítio. O que sei é que entre 1977 e 1982, afora memórias esparsas sobre os acontecimentos ocorridos na primeira metade da década de 1970, Vilmar Gaia some dos jornais.
Mas algo aconteceu que mudou completamente toda a situação e, no meu entendimento, favoreceu enormemente essa figura!
Necessidade de Mitos
Assassinato do procurador da república Pedro Jorge, em 1982.
No dia 3 de março de 1982, na Padaria Panjá, no Jardim Atlântico, na cidade de Olinda, foi assassinado com seis tiros, três dos quais à queima-roupa, o procurador federal Pedro Jorge de Melo e Silva.
Três meses antes essa autoridade ofereceu denúncia contra dois oficiais da Polícia Militar de Pernambuco, um deputado estadual e outras 21 pessoas envolvidas no desvio de recursos federais para financiamento agrícola do Banco do Brasil da cidade de Floresta, no rumoroso caso que ficou conhecido nacionalmente como o Escândalo da Mandioca.
Entre os anos de 1979 e 1981, mais de 300 empréstimos foram feitos na agência do Banco do Brasil daquela cidade pernambucana, onde os criminosos fraudaram empréstimos do PROAGRO (Programa de Crédito Agrícola Federal), com cadastros falsos de pequenos agricultores da região, que simulavam plantio de várias culturas, principalmente mandioca. Além de não plantarem o que foi acertado, os controladores do esquema declaravam as safras como perdidas por causa da seca e ainda recebiam o dinheiro do seguro. O desvio alcançou mais de Cr$ 1,5 bilhão de cruzeiros (quase R$ 68 milhões de reais em valores atualizados), configurando um dos maiores casos de corrupção daquele período. A maracutaia foi denunciada por um agricultor, investigada pela Polícia Federal e o procurador Pedro Jorge recebeu o inquérito e, mesmo tendo sido ameaçado, denunciou vários envolvidos, entre eles o militar José Ferreira dos Anjos, o homem que prendeu Vilmar Gaia e que tinha a patente de major em 1982.
Foi Ferreira quem contratou Elias Nunes Nogueira, o atirador que acabou com a vida de Pedro Jorge na Padaria Panjé. Elias era irmão do soldado Natalício Nunes Nogueira e um dos quatro homens que estiveram em Caruaru para tentar exterminar Vilmar Gaia em um Chevette azul no dia 8 de março de 1977. (Diário de Pernambuco, 06/05/1982). Vale frisar que no Chevette estava um outro irmão de Natalício, de nome Pedro Afonso da Silva, que, apesar dos sobrenomes distintos, eram dois dos sete filhos de Afonso Nunes da Silva, o Afonso Terto, e de Vitalina Nogueira da Silva.
E onde estes acontecimentos favoreceram Vilmar?
Simples, a partir do Escândalo da Mandioca as atenções e preocupações de muita gente em Serra Talhada e região focaram nas investigações da Polícia Federal e os problemas ligados a esse escândalo de proporções nacionais. Como vários inimigos de Vilmar estavam no meio desse problema todo e, se muitos ainda tinham a intenção de matá-lo, ela se tornou algo secundária.
O povo do Nordeste – Se não são as secas, a ação nefasta dos políticos, é a violência que aflige o povo dessa região a séculos.
Não sei se Vilmar Gaia está vivo? Ou se ele morreu? Mas percebi que sua história marcou muitos na região do Pajeú, principalmente diante da repercussão nacional do caso.
Sobre toda essa situação eu acredito que a pessoa que melhor definiu esse caso foi o Padre Afonso de Carvalho Sobrinho, de Serra Talhada, que comentou com Ricardo Noblat, em uma entrevista para a Revista Manchete sobre o caso – “O machismo expresso no desejo de vingança pela morte de parentes, na sua aparente infalibilidade no manejo das armas, na capacidade de escapar à prisão, identificava-se plenamente com uma linha de pensamento popular necessitada de mitos e heróis profundamente enraizada, principalmente no sertão”.
Uma última nota – Passados mais de 50 anos desde as primeiras mortes nesse conflito, me chamou atenção como alguns membros da família Gaia relembram esses episódios. Vários deles abraçaram a religião evangélica e alguns deles são até pastores que utilizam em seus processos de evangelização os problemas sofridos pelos mais velhos da família, as perseguições e como eles conseguiram, através da fé em Jesus Cristo, de alguma forma conviver com os traumas sofridos.
O Grande Mestre da Música Nordestina Se Apresentou na Rádio Poti de Natal em 1956, Junto Com Seu Pai, O Velho Januário, Em Meio a Uma Tournée Pelo Nordeste.
Rostand
Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN.
Em meio as lembranças pelos 30 anos da partida do Mestre
Luiz Gonzaga, achei interessante apresentar um material que encontrei nos
velhos jornais sobre a primeira apresentação dessa lenda da cultura nordestina
na capital potiguar. E foi a primeira de muitas!
Em 1954 Luiz Gonzaga do Nascimento, pernambucano da
cidade de Exu e se encontrava no auge da carreira. Ele, suas músicas, o seu
chapéu de couro e sua sanfona eram apresentados com extrema assiduidade nas
principais revistas dedicadas aos artistas do rádio. Os mesmos rádios, então o
principal veículo de comunicação popular existente nos lares do país naquela
época, onde os brasileiros ouviam e admiravam a sua potente voz.
Luiz Gonzaga e sua alegria, registrada na Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro de 1952.
Luiz Gonzaga foi o primeiro artista musical oriundo do
Nordeste a ser um grande sucesso popular. Isso pode ser comprovado em junho de
1952, no Rio de Janeiro, quando ocorreu uma festa que reuniu 60.000 pessoas
para escutar o Rei do Baião e dançar xaxado. Foi durante os festejos juninos realizados
no bairro de São Cristóvão, mais precisamente no antigo Campo de São Cristóvão,
onde até hoje acontece a famosa feira no atual Centro Luiz Gonzaga de Tradições
Nordestinas. A festança foi promovida pelas Rádios Tamoio e Tupi, onde contou
com ampla cobertura da Rede Tupi de Televisão, a primeira emissora de TV da
América Latina e inaugurada apenas dois anos antes[1].
As câmeras da Rede Tupi de Televisão registrando a festa de 1952 em São Cristovão. Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro de 1952.
Segundo Dominique Dreyfus, escritora francesa que
escreveu a biografia Vida de Viajante: A
Saga de Luiz Gonzaga, os anos de 1953 e 1954 foram de muitas viagens para
realização de tournées pelo Brasil afora. Perto da metade do ano de 1954 teve início
mais uma, com o patrocínio do Colírio Moura Brasil, onde o aclamado Rei do
Baião percorreu várias cidades nordestinas.
Uma carioca de belas pernas, da equipe de dançarinas da TV Tupi, xaxando feito uma nordestina. Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro de 1952.
Pouco antes de iniciar a nova série de viagens, quando no dia 25 de maio realizou uma apresentação na Rádio Mayrink Veiga, Luiz Gonzaga recebeu um exemplar de uma asa branca em uma gaiola, ofertado pelo povo de Exu, que lhe foi entregue por Cândido Holanda Cavalcanti, oficial médico da Força Aérea Brasileira e seu conterrâneo[2].
Na
Estrada
Quando realizou uma apresentação na cidade baiana de
Feira de Santana, no Campo do Gado, quem testemunhou o espetáculo foi o
escritor, sociólogo e jornalista Muniz Sodré de Araújo Cabral, então com 12
anos de idade, que registrou “Era noite de céu
brilhante. Enluarado, Gonzaga subiu ao palanque, com chapéu de couro cru e três
estrelas na aba da frente, gibão de couro, alpercatas e sanfona prateada
dependurada no pescoço. O grito de louvação do povo, longo, em uníssono, fez
vibrar o madeirame do palco. Como esquecer?”[3].
Sabemos que nessa tournée Gonzaga esteve no Maranhão, no
Piauí e em Campina Grande, na Paraíba. Nessa cidade fez uma apresentação na
Rádio Borborema e esteve na sede do Partido Democrático Social, o PSD, uma das
maiores agremiações políticas do Brasil na época, onde recebeu um abraço do
então senador Rui Carneiro[4].
Luiz Gonzaga ao centro, com um grande lenço e Humberto Teixeira é o primeiro da direita para esquerda com chapéu de couro.
No Ceará também houve a mescla de show e política. Primeiramente Gonzaga realizou em Fortaleza uma apresentação no auditório da Rádio Clube do Ceará, na sequência cantou ao ar livre durante a Primeira Festa do Radialista, em evento transmitido pela Rádio Iracema[5]. Depois seguiu para apoiar politicamente o amigo Humberto Teixeira em sua terra natal, a cidade cearense de Iguatu. Formado em 1944 pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, Humberto Cavalcanti Teixeira ganhou fama como compositor em parceria com Luiz Gonzaga, principalmente a partir de 1945[6].
Logo Gonzaga, trazendo sua sanfona, apontou a bússola para a direção da capital potiguar. Segundo o jornal natalense O Poti, o Rei do Baião chegou acompanhado de uma figura ilustre; Januário José dos Santos, seu pai, o conhecido Velho Januário.
Januário era da região do Pajeú, em Pernambuco, tendo nascido a 25 de setembro de 1888. Consta que premido pela estiagem chegou à Fazenda Caiçara, a doze quilômetros de Exu, acompanhado de seu irmão Pedro Anselmo, no ano de 1905. Lavrador e exímio sanfoneiro de oito baixos ficou conhecido por ser um homem dedicado à família e respeitado em toda a sua região pela sua arte. Foi casado primeiramente com Ana Batista de Jesus Gonzaga do Nascimento, a mãe de Luiz Gonzaga, conhecida na região por “Santana”, ou “Mãe Santana”, cuja união com Januário gerou nove filhos[7]. Em 1954 o Rei do Baião já havia levado seu pai para o Rio de Janeiro, mas ele decidiu voltar para Exu, próximo a Serra do Araripe. Não sei como ocorreram as circunstâncias e negociações para o Velho Januário acompanhar seu filho Luiz Gonzaga nessas apresentações pelo Nordeste há 65 anos, mas o certo é que os dois vieram juntos para Natal.
O Rei do Baião também veio acompanhado de Osvaldo Nunes Pereira, baiano de Jequié. Este era um jovem humilde, que era anão e tocava triângulo. Pela baixa estatura recebeu primeiramente o nome artístico de Anão do Xaxado e depois Salário Mínimo[8]. Além deste fazia parte do grupo que chegou a Natal o zabumbeiro conhecido como Aluízio.
Sobre esse último integrante temos um pequeno mistério!
Nas páginas 181 a 186 do livro de Dominique Dreyfus encontramos os detalhes sobre a saída do zabumbeiro Catamilho e do tocador de triângulo Zequinha como instrumentistas acompanhantes de Gonzaga em 1953. Bem como podemos ler sobre a entrada de Osvaldo Nunes Pereira e de um zabumbeiro piauiense chamado Juraci Miranda, conhecido como Cacau.
Dreyfus
inclusive traz uma foto na página 187, onde Luiz Gonzaga se apresenta em um
palco ao lado do Anão do Xaxado com o triângulo e de um zabumbeiro que é apontado
como sendo Cacau. Ocorre que na página 29 do livro Forró – The Ecoding by Luiz Gonzaga, de autoria de Climério de
Oliveira Santos e Tarcísio Soares Resende, publicado pela CEPE Editora em 2014,
como parte da série Batuque Book, com edição bilíngue em português/inglês, é
possível ver a mesma foto com a legenda (em inglês) que indica ser Salário
Mínimo no triângulo e na zabumba o tocador era Aluízio. Como o jornal natalense
O Poti também aponta que Aluízio
esteve com o Rei do baião na capital potiguar, na sequência de suas
apresentações em Fortaleza, creio que o trabalho de Santos e Resende parece
está correto.
Independente
desse pormenor, o certo é que em agosto de 1954 o Anão do Xaxado e Aluízio eram
relativamente novos na parceria com Gonzaga.
No “Auditório B” da Rádio Poti de
Natal
Luiz Gonzaga, seu pai e os dois tocadores que lhe acompanhavam a Natal iriam se apresentar nos auditórios da Rádio Poti.
Postal com o anteprojeto da Rádio Educadora de Natal, de autoria de Carlos Lamas e construção da empresa de Gentil Ferreira de Souza. O sonho de uma rádio em Natal se concretizava.
Essa rádio se originou a partir da Rádio Educadora de Natal – REN, a
primeira emissora do Rio Grande do Norte e que entrou efetivamente no ar em 29
de novembro de 1941. Francisco de Assis
Chateaubriand Bandeira de Mello, proprietário de um conglomerado midiático chamado
Diários Associados, que nessa época abrangia
jornais em várias cidades brasileiras, revistas e estações de rádio, compra m
1944 a REN e a transforma na Rádio Poti. A renovada emissora transmitia em AM (amplitude
modulada), na frequência de 1.270 kHz e mantendo o tradicional prefixo da
REN – ZYB-5.
Assis Chateaubriand discursando.
Essa rádio se torna um grande sucesso
na cidade, pois através da ação dos Diários
Associados o seu auditório passou a receber muitos cantores
nacionalmente conhecidos. Um deles foi Sílvio Caldas, que ali se apresentou
entre 25 e 27 de maio de 1948, sob o patrocínio do “Creme dental Nicotan”[9].
Logo Chateaubriand decidiu realizar
alterações na rádio, sendo a principal ação a ampliação e modernização do
chamado “palco-auditório”, na sede que a Rádio Poti possuía na Avenida Deodoro.
Isso proporcionou uma maior e melhor capacidade de transmitir programas de
auditório, humorísticos, jornalísticos, musicais, radionovelas e outros. A
festa de inauguração do novo auditório, o conhecido “Auditório da Avenida
Deodoro”, ocorreu em uma sexta-feira, 3 de novembro de 1950. O mestre da
cerimônia foi o radialista Genar Wanderley e a principal atração foi uma bela e
exuberante cantora de 21 anos de idade, nascida na cidade paulista de Taubaté e
chamada Hebe Camargo[10].
Ao ler os jornais da época percebe-se
nitidamente o estrondoso sucesso do novo “palco-auditório” da Rádio Poti, aonde
as apresentações vão ocorrendo e movimentando intensamente a vida cultural de Natal.
Diante do sucesso dessas apresentações e buscando ampliar o público, a direção da Rádio Poti decidiu utilizar o que passou a ser chamado de “Auditório B”. Este era um auditório amplo e confortável, que ficava na antiga sede do Alecrim Futebol Clube, na Avenida Presidente Bandeira, ou Avenida 2[11].
Antiga sede da Rádio Poty, a principal de Natal.
Esse era um local que,
além das atividades próprias da administração dessa tradicional equipe de
futebol natalense, também era um ponto de grande efervescência cultural. Ali
ocorreram grandes bailes de carnaval, festas juninas, reuniões de partidos
políticos, festas dançantes aos domingos e até peças de teatro. Em março de 1949,
o renomado teatrólogo Inácio Meira Pires ali criou um núcleo de teatro amador
chamado “Teatro do Bairro”, que utilizava o auditório do Alecrim Clube como
local de apresentações[12]. Vale
ressaltar que muitas dessas festas, reuniões políticas, peças de teatro e
outros acontecimentos importantes eram transmitidos pela Rádio Poti.
No sábado, 31 de agosto
de 1954, ocorreu a transmissão no palco do Alecrim Clube do programa “Vesperal
dos Brotinhos”, sob o comando de Luiz Cordeiro e Rubens Cristino. No outro dia
aconteceu no mesmo palco a comemoração do sexto aniversario do popular programa
de auditório “Domingo Alegre”, apresentado por Genar Wanderley, sendo os ingressos
vendidos por apenas CR$ 3,60 (três cruzeiros e sessenta centavos)[13].
Logo foi anunciada a apresentação
de Luiz Gonzaga.
Sucesso em Natal
Certamente ser
supersticioso era algo que o grande Luiz Gonzaga não era, pois sua primeira
apresentação na capital do Rio Grande do Norte ocorreu em uma sexta-feira, dia
13, do mês de agosto. E foi um sucesso!
Sabemos que os ingressos foram
vendidos ao preço de CR$ 10,00 (dez cruzeiros). Um valor não tão elevado em
1954, equivalente a uma corrida de taxi para o que era considerado naquele
tempo o perímetro urbano de Natal. Pois fora dessa área tudo era mais caro. Uma
corrida para a praia de Ponta Negra custava R$ 80,00 (oitenta cruzeiros). Já
para o Aeroporto de Parnamirim o valor saltava para R$ 100,00 (cem cruzeiros)[14].
Luiz Gonzaga trouxe “um repertório
inteiramente novo, suficiente para um espetáculo completo”. Se aconteceu como
foi descrito no jornal natalense O Poti,
certamente o Rei do Baião tocou no palco do Alecrim Clube os sucessos produzidos
no primeiro semestre de 1954. Tais como “Feira do gado” (Luiz Gonzaga/Zé
Dantas), “Velho novo Exu” (Luiz Gonzaga/Sylvio M. Araújo), “Olha a pisada”
(Luiz Gonzaga/Zé Dantas) “Lascando o cano” (Luiz Gonzaga/Zé Dantas) e outros. A
estes com certeza se juntaram aos sucessos criados do ano anterior, como a
fantástica música “O xote das meninas”, a bela “Algodão” (ambas as composições fruto
da parceria Luiz Gonzaga/Zé Dantas) e outros grandes sucessos. Os informes
jornalísticos apontam que o auditório “superlotou” para assistir o Rei do
Baião, sendo muito aplaudidas as apresentações musicais.
No sábado por volta das
quatro da tarde, Luiz Gonzaga realizou aparentemente sozinho, uma entrevista na
Rádio Poti. À noite, por volta das oito horas, nos estúdios da mesma rádio foi
realizada uma nova apresentação musical com Luiz, seu pai e os instrumentistas,
que O Poti informou ter sido
transmitida em “ondas médias e curtas”.
Já no domingo a tarde, 15
de agosto, Luiz Gonzaga, o Velho Januário, Anão do Xaxado e Aluízio bisaram o
show no palco do Alecrim Clube. Depois, às nove horas da noite, o grupo seguiu
para o Auditório da Avenida Deodoro, que se encontrava completamente lotado
para a despedida de Luiz Gonzaga de Natal. Eles tocaram no âmbito do programa
“Domingo Alegre”, que contou com a apresentação do radialista Genar Wanderley.
Na ocasião estava presente o jornalista Edilson Varela, representante dos
Diários Associados no Rio Grande do Norte, o grupo de mídia e comunicação comandado
por Assis Chateaubriand. Varela era também diretor dos jornais O Poti e Diário do Natal, além de responder administrativamente pela Rádio
Poti.
Luiz Gonzaga diante do microfone de uma rádio.
Show em Currais Novos e Os Vários Retornos ao
Rio Grande do Norte
Sabemos que provavelmente
naquele agosto de 1954 o tocador Luiz Gonzaga, acompanhado de seu pai e seus
instrumentistas, também estiveram na cidade potiguar de Currais Novos.
Segundo o blog “Pimenta com Mel”, do comunicador Felipe Félix, encontramos a informação transmitida por José Nobre de Medeiros, conhecido nessa cidade como Zénobre. Nascido em 1942 na zona rural currais-novense, no Sítio Saquinho da Malhada da Areia, Zénobre informou que viu Luiz Gonzaga em sua cidade em 1954, que assistiu a apresentação do pernambucano de Exu no coreto da Praça Cristo Rei e que o Rei do Baião foi patrocinado pela fábrica de bicicletas Monark[15].
Recebemos a informação do engenheiro civil Moacir Avelino Bezerra Junior e do seu irmão Haroldo Márcio Avelino Bezerra, Professor do IFRN de Mossoró, que nesse mesmo 1954, após uma possível apresentação em Mossoró, Luiz Gonzaga foi convidado pelo rico agropecuarista Francisco das Chagas Sousa, conhecido como Chico Sousa, para cantar na cidade de Afonso Bezerra. A apresentação para a população local foi realizada na carroceria de um caminhão.
Provavelmente nessa ocasião Luiz Gonzaga tocou em outras cidades potiguares, mas infelizmente não consegui dados sobre isso.
Perto do fim do mês Luiz
Gonzaga está com o seu pai e seus dois instrumentistas em Recife, Pernambuco.
Na noite de sábado, 21 de agosto, ele realizou uma apresentação no tradicional
Clube Internacional, na Rua Benfica, no bairro da Madalena. Foi uma ação em
prol da Sociedade Pernambucana de Proteção a Lepra, onde buscavam angariar
fundos para a construção da Colônia de Férias de Olinda, destinada as crianças
que sofriam dessa doença naquele estado[16].
Sobre as apresentações de
Luiz Gonzaga no Rio Grande do Norte, percebemos que o sucesso foi total. Nove
meses depois o tocador retornava para novos shows em Natal.
No início de maio de 1955
o pernambucano de Exu retornou para as novas apresentações
junto aos auditórios da Rádio Poti sem trazer o Velho Januário. Estavam ao seu
lado dois instrumentistas que não foram listados. O interessante é que dessa
vez o patrocínio veio da empresa italiana de bebidas Martini & Rossi, que
havia desembarcado no Brasil cinco anos antes e procurava se popularizar através
do Rei do Baião[17].
O Rei do Baião era artista contratado da empresa RCA Victor, sendo um dos seus campeões de vendagem.
Como no ano anterior, as apresentações
de Luiz Gonzaga em Natal foram cobertas de êxito.
Luiz Gonzaga Não Gostava de Natal e do Rio Grande do Norte?
E esse sucesso se repetiu ao longo dos
anos, a cada nova apresentação desse incomparável sanfoneiro na capital
potiguar.
Nota em jornal natalense para novas apresentações de Luiz Gonzaga na capital potiguar, após 1954.
Mas alguns pesquisadores afirmam que
Luiz Gonzaga tinha uma relação negativa com Natal e o Rio Grande do Norte. Isso
teria ocorrido em razão de alguns calotes que o mesmo teria levado de
empresários de shows locais. Mas para quem pesquisa as páginas dos jornais
antigos isso não fica aparente, pois são inúmeras as apresentações desse
artista em Natal ao longo de décadas. Creio que dificilmente Rei do Baião
retornaria a Natal para continuar sendo mal tratado e vilipendiado!
Propaganda das apresentações de Luiz Gonzaga em Natal no ano de 1956.
Além das apresentações de agosto de
1954 e de maio de 1955, ele retornou em dezembro de 1956 (quando se apresentou
para o povão na Praça André de Albuquerque). Depois voltou em dezembro de 1960,
no final de junho de 1961 e em fevereiro de 1962. Já no ano de 1975 esse
artista esteve em Natal em duas ocasiões. A primeira no mês de março, no show
de inauguração solene da Avenida Bernardo Vieira, quando estiveram no mesmo
palco que cantou o Rei do Baião os potiguares Ademilde Fonseca, Trio Irakitan e
Fernando Luís. A segunda em 9 de agosto, quando juntamente com o Trio
Nordestino realizaram um show maravilhoso, para uma Praça Gentil Ferreira
completamente lotada. Esse evento aconteceu no mesmo bairro do Alecrim onde
Luiz Gonzaga tocou em Natal pela primeira vez no ano de 1954. Esses grandes
músicos nordestinos participavam da chamada “Caravana do Sucesso”, uma série de
shows por todo o Brasil, patrocinados por uma indústria de bebidas.
Luiz Gonzaga em Natal em agosto de 1975.
Desse momento posso comentar como
testemunha ocular.
Garoto de oito anos de idade, assisti a
esse show pendurado no pescoço, ou no cangote, do meu pai. Recordo dos potentes
holofotes que iluminavam tudo, das milhares de pessoas que lotavam a principal
praça do Alecrim e, principalmente, de Luiz Gonzaga com sua sanfona branca, seu
chapéu de couro cintilando na mesma cor e de sua voz forte e marcante. Desse
dia nunca esqueci que meu pai, Calabar Medeiros, me disse ao sairmos de nossa
velha casa na Rua Borborema, no mesmo bairro do Alecrim, para ir assistir esse
grande espetáculo – “Esse homem canta a alma da nossa terra, da nossa gente”.
Anos depois, no dia 23 de agosto de
1983, eu tive a oportunidade de assistir ao grande encontro de Luiz Gonzaga e
do cantor Raimundo Fagner, além de outras grandes figuras da música nordestina.
Foi no atualmente esquecido show “Canta Nordeste – Vozes contra seca”, no
chamado movimento “SOS Seca”, que aconteceu no atualmente estádio de futebol
Castelão de Natal, sendo uma iniciativa do Instituto Varela Barca. Foi
verdadeiramente delirante se encontrar naquele local e acompanhar novamente
Luiz Gonzaga, em uma interessante parceria com Fagner. Encontro que renderia três
ótimos discos nos anos seguintes. Quis Deus que em 2010 eu conhecesse Raimundo
Fagner e ele gentilmente realizasse o prefácio do meu segundo livro João Rufino – Um visionário de fé.
Meu pai deixou esse plano no último dia 9 de julho de 2019 e, como meu pai me ensinou, eu jamais deixei de escutar as músicas de Luiz Gonzaga do Nascimento e de me emocionar com sua voz.
NOTAS
[1]
Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro
de 1952, págs. 21 a 23.
[2]
Ver Radiolândia, Rio de Janeiro – RJ,
Rio Gráfica Editora, ed. da 1ª quinzena de junho de 1954, pág. 11.
[4] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição
de 25 de agosto de 1954, pág. 11.
[5] Ver Radiolândia, Rio de Janeiro-RJ, Rio
Gráfica Editora, ed. 4 de setembro de 1954, pág. 18.
[6] No pleito de outubro de 1954, Humberto Teixeira candidatou-se
a deputado federal pelo Ceará na legenda do Partido Social Progressista, mas
obteve apenas uma suplência. Ao longo da legislatura 1955-1959, exerceu o
mandato em quatro ocasiões. Como deputado federal, obteve a aprovação da
chamada Lei Humberto Teixeira, que permitiu a realização de caravanas para a
divulgação da música popular brasileira no exterior. Concorreu à reeleição em
outubro de 1958, mas não foi bem sucedido.
[8] Sobre a
participação de Osvaldo Nunes Pereira ver DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Ed.
34, 1996, pags. 182 a 186.
[10] Sobre
essa festa ver o Diário de Natal,
edição de 4 de novembro de 1950, pág. 6.
[11] O Alecrim
Futebol Clube foi fundado no bairro do mesmo nome no ano de 1915 e o seu
primeiro goleiro foi o futuro presidente da República
do Brasil, João Café Filho. O Alecrim foi campeão de futebol potiguar nos anos
de 1924, 1925, 1963, 1964, 1968 (Invicto), 1985 e 1986. Mais sobre esse
tradicional clube ver https://www.campeoesdofutebol.com.br/alecrim_historia.html
[12] Sobre o
Teatro do Bairro, ver Diário de Natal,
edição de 9 de março de 1949, pág. 6.
[13]
Ver jornal O Poti, Natal-RN, edição
de 1º de agosto de 1954, pág. 8.
[14]
Ver jornal O Poti, Natal-RN, edição
de 7 de outubro de 1954, 1ª pág.