PAULO – O ÚLTIMO ESCRAVO AFRICANO EM NATAL

Aparentemente Desembarcou no Brasil em 1855, no Último Carregamento de Escravos Vindo da África – Marcou Época em Natal Por Tocar Zambê e Ser “Feiticeiro” – Foi Batizado como Paulo José de Oliveira e Morreu em 1905

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Nos primórdios do Brasil existiu por aqui uma curiosa sociedade, que foi resumida dessa maneira – “Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição”. Uma sociedade que marcou fortemente a formação do povo brasileiro e que foi tão brilhantemente descrita na obra “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.[1]

Quem detinha o poder nessa sociedade era riquíssimo e vivia na opulência. Habitavam em belas casas grandes construídas de pedra, barro e cal. Eram cobertas de palha ou telhas, com varandas nas laterais, telhados inclinados para dar proteção contra chuvas tropicais e o calor do sol, sendo esses lugares ao mesmo tempo “fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos”.[2]

Quadro do holandês Frans Post intitulado “Engenho de Pernambuco”.

Os homens e mulheres que criaram este primeiro grande boom do açúcar no mundo viveram muito bem. Muitas histórias são contadas sobre a opulência dos fazendeiros daquele Brasil antigo.

Suas mesas eram carregadas de prata e porcelana fina comprada de capitães de barcos a vela em seu caminho de volta do Oriente. Diziam que as portas de suas casas tinham “fechaduras de ouro”[3], que suas mulheres usavam enormes pedras preciosas em prendedores de cabelos, que músicos animaram os banquetes, que suas camas eram cobertas de tecido de damasco produzidos na Itália e um exército de serviçais negros estavam sempre pairando ao redor para satisfazer todos os seus desejos.

E esses lacaios satisfaziam de verdade essa gente em tudo e por tudo que desejassem. Pois se assim não fizessem iam para o chicote, para o açoite no tronco, presos a dolorosos grilhões e padecendo de uma morte sofrida e aterradora.

Engenho de Itamaracá, de Frans Post para mapa de Gaspar Barlaeus, 1647 – Fonte – https://ensinarhistoria.com.br/para_colorir_engenho_frans_post/ – Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues

A fortuna aproveitada pelos donos dos engenhos de cana repousava sobre o açúcar e o açúcar sobre a escravidão africana. Onde seus “donos” massacraram esses cativos, usando e abusando do seu suor, do seu sangue e de suas vidas, na mais nefasta página da História do Brasil. Os africanos que vieram para essa parte do mundo eram tratados como meros animais de carga, bichos brutos e, situação pior, as mulheres serviam para todos os tipos de taras dos seus senhores.

E tudo indica que no ano de 1905 faleceu em Natal um homem que viveu todas as agruras desse flagelo, que aqui ficou conhecido como Paulo Africano e que, segundo Câmara Cascudo seria o “último africano legítimo”, o último cativo vindo da África a falecer na capital do Rio Grande do Norte.

Essa é a sua história!

Poucos Escravos

Em 1937 Luís da Câmara Cascudo já era considerado o intelectual maior da terra potiguar e o que ele escrevia, apesar do seu provincianismo militante, já repercutia no Rio de Janeiro, onde se concentrava o poder do país e os principais jornais e rádios da nação.

Família brasileira na época da colônia e império.

No dia 12 de junho daquele ano, o jornal carioca Diário de Notícias publicou o texto intitulado “O povo do Rio Grande do Norte” (pág. 28), de autoria de Cascudo, onde ele comenta sobre a formação do povo potiguar. Para o autor o escravo negro já estava no Rio Grande do Norte desde 9 de janeiro de 1600, onde trabalhavam em benfeitorias e vinham da Guiné. Comentou também que o número de escravos “nunca foi avultado, nem mesmo na sua relação da pequena população branca”. Tanto que em “1808 eram 1.127 pretos, para 1.956 brancos em Natal”. Para Cascudo o 13 de maio de 1888 “não encontrou senão uns trezentos e poucos”.

O texto informava que os escravos que viviam em terras potiguares eram procedentes do “Sudão, angolas, congos, banguelas (SIC), trazidos de Pernambuco que os importava”. Para Cascudo o Rio Grande do Norte era uma “terra de parcos capitaes, não teve negreiros e nem commercio. Era apenas um mercado, um pequeno mercado consumidor”.

O jornal carioca Diário de Notícias, 12 de junho de 1937.

Cascudo então comenta, através de informações transmitidas por Francisco Artemio Coelho, que faleceu em 1945, que “O último africano puro que morreu em Natal, Paulo Africano, morador da rua do Camboim, mestre de zambê e feiticeiro, fallecido a 24 de abril de 1905”. Tempos depois o Mestre Cascudo vai descobrir que essa data estava errada.

Coelho informou também que Paulo Africano “dizia ter desembarcado numa praia e levado para Sirinhaém”, atualmente um município autônomo próximo ao litoral de Pernambuco, ao sul de Recife.

E é nesse ponto de sua afirmação, que Câmara Cascudo nos aponta uma possível ligação do momento da chegada de Paulo Africano ao Brasil.

O Terrível Tráfico

A justificativa das potências marítimas europeias para trazer africanos negros à força para trabalhar como animais, foi motivada pela necessidade econômica, pois nos séculos XVI e XVII as suas possessões no Novo Mundo eram os locais mais importantes para a criação de divisas e riquezas.

Comércio de escravos no Cais do Valongo, porto do Rio de Janeiro.

No século XVI os africanos eram comprados na região subsaariana e enviados em barcos de propriedade de europeus, mas estes não estavam diretamente envolvidos na captura dos escravos, ou no comércio interafricano de cativos. Para os brancos europeus bastava suprir a crescente demanda de escravos para as plantações nas colônias no Novo Mundo.

Aqueles que capturavam os escravos eram em sua maioria africanos negros, que conseguiam as suas “peças” em conflitos étnicos e tribais, ou mesmo em guerras de maior escala. Não era incomum trocar cativos com outras tribos. Daí não houve maiores dificuldades em vendê-los para os brancos no litoral.

Por volta de 1550, os portugueses começaram a enviar vários povos africanos como os bantos de Angola, Moçambique e Congo; Yorubá, Ewe, Mandinga do Sudão e da África Ocidental. Ao longo dos próximos 300 anos, mais de quatro milhões de africanos seguiram de maneira forçada para o Brasil. Esse tipo de negócio foi considerado um dos mais lucrativos do reino português.

Como os cativos seguiam a bordo de barco negreiro.

As condições a bordo dos navios de transporte de escravos, ou navios negreiros, como ficaram conhecidas as naves que transportaram esse verdadeiro “gado humano”, eram terríveis. Acorrentados e deitados juntos, os escravos tiveram que dormir sobre suas próprias fezes durante toda a travessia, que podia demorar semanas. A mortalidade a bordo era muito alta, mas as perdas resultantes pareciam aos traficantes de escravos menores do que os custos que teriam acarretado condições de transporte menos desumanas. 

70% dos escravos no Novo Mundo estavam empregados no cultivo de cana-de-açúcar e, ao longo do tempo, outros tiveram que trabalhar nas colheitas de café, algodão, tabaco e na atividade de mineração. Os produtos obtidos do trabalho servil eram então enviados para a Europa e os barcos retornavam com produtos processados das metrópoles, ou novas levas de escravos da África.

Representação do desembarque de escravos.

Naqueles primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil, a região que mais lucrou com a plantação de cana-de-açúcar e a que foi a principal “anfitriã” de milhares e milhares de escravos africanos foi o que hoje é o nosso ensolarado Nordeste. E por aqui as duas capitanias, hoje estados, que mais receberam cativos foram a Bahia e Pernambuco.

Joseph Cliffe descreveu que quando os escravos chegavam ao Rio, ou à Bahia, se encontravam tão fracos que mal conseguiam andar e tinham de ser retirados dos barcos. Depois eles eram mantidos em barracões e ali alimentados, engordados e bem tratados antes da venda. Às vezes eles eram mantidos até seis meses nesses acampamentos antes de serem vendidos[4].

Quadro de Rugendas mostrando habitação de escravos – Fonte – http://www.joseferreira.com.br/

Pode parecer até uma redundância, ou ironia, mas também ocorreram nesses barcos vários massacres e crimes em massa contra os escravos, como o chamado “Massacre do barco Zong”. Em 1781 este transporte negreiro britânico teve dificuldades na navegação e acabou desviando do curso na região do Caribe. Como foram ficando sem mantimentos e água, a tripulação simplesmente jogou no mar cerca de 130 a 150 africanos. Inicialmente os fatos ocorridos no Zong não tiveram o mínimo eco no público britânico. Mas no médio prazo o caso começou a ser debatido e amplamente comentado, desenvolvendo um papel interessante na ascensão do abolicionismo naquele país. O caso do Zong então se tornou um símbolo da crueldade da escravidão. 59 anos depois da tragédia, William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura, retratou o incidente em seu quadro The Slave Ship, que se tornou um símbolo da causa abolicionista.

Quadro de The Slave Ship, do inglês William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura e se tornou um símbolo da causa abolicionista. Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/The_Slave_Ship.

Abolicionismo e Pressão Britânica

Os opositores do tráfico de escravos se reuniram na Inglaterra desde 1787, onde fundaram uma sociedade para abolir a escravidão e foram chamados de abolicionistas. O movimento foi politicamente apoiado por William Wilberforce, que repetidamente levou a abolição do tráfico de escravos à votação na Câmara dos Comuns. Wilberforce foi o pivô do que ficou conhecido como a “Seita Clapham”, um grupo de membros politicamente influentes da Igreja da Inglaterra, fundado pelo ex-capitão de navio negreiro e mais tarde ministro John Newton. Os chamados “Santos de Clapham” tornaram sua principal tarefa abolir todas as formas de escravidão e seu comércio.[5]

A Revolução Francesa de 1789 ajudou a difundir ideias sobre direitos humanos e liberdades civis. As Guerras Revolucionárias Francesas (1792–1797), as Guerras Napoleônicas (até 1815) e a ocupação de algumas áreas pelas tropas francesas, difundiram essas ideias para partes da Europa e além.

Símbolo da British Anti-Slavery Society (1795)

Depois que os britânicos encerraram seu próprio comércio de escravos com o “Slave Trade Act” de 24 de fevereiro de 1807, eles tiveram de obrigar outros povos a fazerem o mesmo, caso contrário as colônias britânicas teriam uma desvantagem competitiva em comparação com as de outras nações. Por exemplo, sob pressão britânica no Congresso de Viena em 1814 e 15, a escravidão foi proibida no artigo 118 da Lei do Congresso. Os Estados Unidos proibiram o comércio ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha, assim como a Dinamarca.[6] Outros países como a Suécia aboliram a escravidão logo em seguida, assim como os Países Baixos, que nessa época era a terceira maior potência colonial, atrás apenas da Grã-Bretanha e da França.

Para a França, derrotada pelos britânicos nas guerras napoleônicas, não apenas foi exigido a proibição do comércio de escravos, mas também o policiamento dessa proibição. A Marinha Real Britânica, a Royal Navy, passou a inspecionar e apreender todos os navios suspeitos que transportavam escravos, ou eram equipados para tais fins, até que em 1815 a França concordou formalmente em proibir o comércio de escravos. Mas vale frisar que, mesmo com essas ações de repressão, esse nefasto comércio só parou completamente na França em 1848.

A busca de escravos fugitivos foi um grande negócio para os rastejadores no período da escravatura no Brasil.

Portugal e Espanha, antigas aliadas em dívida com a Grã-Bretanha após as Guerras Napoleônicas, só gradualmente concordaram em acabar com o comércio de escravos e após grandes pagamentos. Em 1853, o governo britânico pagou a Portugal mais de 3 milhões de libras e à Espanha mais de 1 milhão de libras para acabar com esse nefasto comércio.

E no Brasil, como foi?

Encarando o Império Britânico

O Brasil, independente de Portugal em 1822, não concordou em parar o tráfico de escravos. Além de lucrativo, ao longo de décadas a escravidão criou um fator que ampliou essa “desobediência” brasileira aos britânicos – a dependência dos escravos para quase tudo que significava trabalho.

Em 1850 a maioria dos brasileiros que tinham posses possuíam cativos. Fossem eles grandes latifundiários no campo, ou pequenos comerciantes das cidades, funcionários públicos de alto ou baixo escalão, indo até artífices, o elemento negro predominava nos afazeres diários dessa gente. Igualmente seus ancestrais utilizaram escravos ao longo de trezentos anos. Então, não é nenhuma surpresa que esse pessoal observasse a instituição da escravidão como algo normal, como parte da ordem natural das coisas e sua dependência em relação aos cativos era enorme.

Gilberto Freyre mostra claramente em “Casa Grande e Senzala” um exemplo do que essa dependência criou no Brasil – “a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas molequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele”[7].

Escravos sendo surrados no Brasil, em pintura de Debret.

E quanto poderia ser lucrativo participar do tráfico de escravos?

Segundo o autor Hugh Thomas, entre outubro de 1846 e setembro 1848, o iate Andorinha, de oitenta toneladas, pertencente a Joaquim Pereira Marinho, fez uma série de oito viagens, trazendo quase 4.000 escravos e ganhando cerca de £40.000 (quarenta mil libras esterlinas), o que tornou seu proprietário milionário. Para se ter uma ideia do que naquele tempo poderia significar essa dinheirama, o Reino da Dinamarca vendeu aos britânicos cinco assentamentos territoriais, com seus postos de comércio e fortes, todos localizados na Costa do Ouro, atual região de Gana, África. Em 31 de dezembro de 1849, foi assinado um tratado entregando a área e suas benfeitorias por “apenas” £10.000 (dez mil libras esterlinas). A venda também incluiu os canhões dos fortes.[8]

Diante da “desobediência”, a Grã-Bretanha partiu então para um endurecimento diplomático contra o Brasil.

Fragata britânica.

Em 9 de agosto de 1845 foi criada a Lei Aberdeen, proposta pelo secretário de relações exteriores britânico Lord Aberdeen, que deu à Royal Navy autoridade para parar e revistar em alto mar qualquer navio brasileiro suspeito de ser um transportador negreiro e prender os traficantes de escravos. A Lei Aberdeen também estipulava que os comerciantes brasileiros presos poderiam ser julgados em tribunais britânicos. A lei foi projetada para suprimir o tráfico de escravos no Brasil, para tornar efetivas as leis brasileiras e a implementação do Tratado Britânico-Brasileiro de 1826, que tinha como objetivo acabar com o tráfico de escravos no Oceano Atlântico. O Império do Brasil havia assinado e ratificado esse acordo, mas não cumpriu.

Essa ação repressora provocou indignação entre os brasileiros, onde foi vista como uma violação do livre mercado, da liberdade de navegação, como uma afronta à soberania e integridade territorial do país, além de uma tentativa de impedir a ascensão do Brasil como potência mundial.

Escravos brasileiros chamavam muito a atenção dos estrangeiros que visitavam o país e era comum serem reproduzidos em pinturas.

Os membros do Parlamento no Rio de Janeiro debateram o assunto e praticamente todos foram contra a forma arrogante com que a Grã-Bretanha havia imposto suas leis ao Brasil e abominavam a ideia de ação britânica perto do nosso litoral. Até Joaquim Nabuco, que estava se tornando líder do movimento antiescravista brasileiro, descreveu o novo projeto de Lei Aberdeen como “um insulto à nossa dignidade como pessoas.” [9]

Independente dessas questões, a Royal Navy começou a interceptar traficantes de escravos brasileiros em alto mar e eles foram processados ​​nos tribunais do almirantado britânico, principalmente na Ilha de Santa Helena, uma pequena massa de terra vulcânica no meio do Atlântico. Apesar da aplicação agressiva dessa lei, o volume do tráfico brasileiro de escravos aumentou no final da década de 1840 e as tensões continuaram crescendo constantemente.

Foto de uma corveta britânica, semelhante a HMS Cormorant, que trocou tiros de canhão com a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, em Paranaguá, Paraná, em 1850.

Um punhado de navios de guerra britânicos começou a entrar em águas territoriais brasileiras para atacar barcos negreiros, até mesmo em nossos portos. Em junho de 1850 a nave de guerra britânica HMS Cormorant, após apreender três embarcações brasileiras na Baía de Paranaguá, no Paraná, trocou tiros de canhão com os artilheiros da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres e o barco inglês foi atingido. Houve um morto e dois feridos entre os estrangeiros e duas das naves apreendidas foram destruídas.[10]

Diante dessas tensões, o Brasil sabia que não podia se dar ao luxo de entrar em guerra aberta e total contra a Grã-Bretanha. Além disso, crescia o sentimento popular contra o tráfico de escravos no Brasil. Diante da situação, o governo imperial brasileiro decidiu então acabar com esse negócio. 

Um projeto de lei sobre o tema foi aprovado na Câmara de Deputados, no Rio de Janeiro, em 17 de julho de 1850. Foi aceito pelo Senado e Dom Pedro II assinou. Consta que o rei deu a canetada com grande satisfação e em 4 de setembro o projeto se tornou lei.[11] Doravante, os navios negreiros brasileiros estavam sujeitos a apreensão, a importação de escravos para o Brasil foi declarada pirataria, todas as embarcações capturadas deveriam ser vendidas, e os rendimentos deveriam ser divididos entre os captores e informantes. Pela primeira vez essa nova legislação levou a uma verdadeira transformação.

E é nesse ponto da história que provavelmente Paulo Africano veio parar no Brasil.

O Navio Negreiro das Crianças

Apesar do aperto contra os traficantes de carne humana, eles continuaram a operar clandestinamente pelos lucros envolvidos. Entretanto, ninguém ficaria indiferente à possibilidade de prisão e, mais importante, aos cerca de 40 canhões que naquela época normalmente equipavam uma fragata britânica.

Escravos conduzindo Carro de Boi em Sirinhaém. Pernambuco, pintura de Frans Post, 1638.

O negócio então era utilizar de mil e um artifícios para enganar a Royal Navy ao chegar ao Brasil, sobre onde a sua carga seria desembarcada, fazendo uso inclusive de pequenos barcos que poderiam levar os escravos e entregá-los ao longo da costa brasileira.

Não sei com detalhes quantos transportes negreiros conseguiram passar pelas naves de guerra da Royal Navy e nem quantos foram apreendidos. Mas sei quando aconteceu o último desembarque de africanos cativos no Brasil, onde um dos que estavam a bordo poderia ser Paulo Africano.

Na noite de 11 de outubro de 1855, um homem desconhecido apareceu no Engenho Trapiche, região de Sirinhaém. Ele se apresentou como Augusto Cezar de Mesquita, informou que era o capitão de um pequeno barco a vela do tipo Palhabote e que havia chegado no dia anterior de Angola. Sua nave estava ancorada na ilha de Santo Aleixo, defronte a barra do rio Sirinhaém, a cerca de seis quilômetros de distância do engenho. Mesquita explicou que trazia uma carga de africanos, cerca de 200 a 250 seres humanos, sendo umas 30 mulheres e o resto jovens e crianças…

O Engenho Trapiche pertencia ao Coronel Gaspar Menezes de Vasconcellos Drummond, rico proprietário, figura muito poderosa na política pernambucana da época e que depois afirmou que até estava doente no momento do encontro com o tal Mesquita.

Consta que Drummond recusou a carga de cativos, mas alegou que não tinha gente armada para prender a tripulação. Enquanto esperava ajuda, a tripulação fugiu e dezenas de africanos foram levados pelos contratantes do barco, o coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins e José Francisco de Accioli Lins, conhecido por “Cazumba”, proprietário de um engenho na região. O Coronel Drummond apreendeu os 165 africanos que ainda estavam na praia, onde o barco estava fundeado. Logo as autoridades começaram a chegar.

O caso gerou problemas para o Brasil junto aos britânicos, foi debatido no parlamento brasileiro, gerou polêmicas em Pernambuco e foi parar na justiça. Inclusive o próprio Coronel Drummond escreveu um opúsculo sobre o caso, denominado “Breve exposição acerca dos factos occorridos antes e depois da apprehensão dos africanos, effectuadas na barra de Serinhãem em Outubro de 1855”.

Palhabote dos pilotos da Barra do Tejo com Farol do Bugio, pintura de V. Armand, 1908 – Fonte – https://pt.wikipedia.org/

Sabemos que alguns dos participantes dessa situação em Sirinhaém foram julgados e condenados, inclusive os de sobrenome nobre. Mas estes apelaram à justiça pernambucana da época e, tal como acontece agora, rapidamente todos foram absolvidos pela nobreza togada. A alegação foi falta de provas. Outro detalhe – O Dr. Manoel de Barros Wanderley Lins, Suplente de Juiz municipal dos termos de Sirinhaém e Rio Formoso, era irmão do coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins.[12]

No final das contas a confusão toda só começou porque Mesquita foi mal orientado, aportou no lugar errado e foi atrás de quem não devia. Se o capitão tivesse sido bem orientado, acertado o local do desembarque e encontrado os destinatários corretamente, jamais saberíamos sobre esse desembarque.

Aparentemente o tal barco do tipo Palhabote que chegou à praia perto do Engenho Trapiche era algo tão medíocre, que nem sei se tinha um nome, pois nada ficou registrado. Sabemos que esse tipo de embarcação era um veleiro de dois, ou no máximo três mastros, tinham dimensões que iam de 30 a 80 metros de comprimento e uns 8 a 10 metros de largura. Eram normalmente estreitos na parte traseira (popa) e largos na frente (proa), sendo muito rápidos e associados a uma grande manobrabilidade. Eram conhecidos entre os britânicos como “Pilot boat” (barco do piloto) e eram utilizados principalmente na navegação de cabotagem.

Entretanto, não podemos deixar de perceber uma terrível particularidade em relação a esse caso, que me incomodou de verdade ao ler esses relatos – o tal Mesquita e seus asseclas verdadeiramente “socaram” entre 200 a 250 pessoas naquela pequena embarcação. Por essa razão não é de se estranhar que ele trouxe da África basicamente jovens e crianças, pois assim cabiam mais “peças” para serem vendidas em Pernambuco.

Mas enfim, Paulo Africano estava a bordo desse Palhabote de Sirinhaém?

Escravo africano no Brasil na década de 1890.

Sem maiores dados fica difícil corroborar essa questão. Mas se é verdadeira a informação que ele transmitiu aos seus contemporâneos em relação a sua chegada ao Brasil, que foi depois retransmitida a Câmara Cascudo, então na data do seu falecimento fazia quase 50 anos que havia acontecido o desembarque em Sirinhaém.

Vamos apenas imaginar que muitos daqueles jovens e crianças que desembarcaram do Palhabote tivessem uma média de oito a dezessete anos de idade, então é inteiramente plausível que Paulo Africano estivesse a bordo e, mesmo com todas as agruras da escravidão, tenha falecido em Natal 60 anos depois.

O problema sobre isso é que, conforme o leitor poderá ler mais adiante, ele não tinha a menor ideia da data do seu nascimento.

A vida de Paulo Africano, ou Paulo José de Oliveira, em Natal

Nada sabemos sobre o andamento de sua vida até o fim da escravidão. Tampouco temos dados de como e porque ele veio parar na capital potiguar. Mas uma coisa é certa – a sua passagem por aqui não ficou sem registros.

A informação mais antiga que encontrei sobre Paulo Africano também foi escrita por Luís da Câmara Cascudo. É um texto existente no extinto Diário de Natal, sobre a vida de um francês chamado Vitor Lafosse, que viveu na capital potiguar entre o final do século XIX e início do XX e morou na Rua Camboim, atual Rua Professor Fontes Galvão, a mesma que se inicia defronte ao portão principal do Colégio Marista, no bairro do Tirol.

Atual Rua Professor Fontes Galvão, antiga Rua Camboim – Fonte – Google Street View.

Foi através das informações de Francisco Artêmio Coelho, que Cascudo soube que o francês morava nessa rua em 1882 e que teria sido o primeiro habitante do logradouro. Mas o próprio Cascudo contesta a informação de Coelho e afirma que “Antes disso, porém, lá residia Paulo Africano”.[13] Cascudo não aponta a fonte dessa informação e nem uma data de quando Paulo passou a morar nesse setor de Natal.

Existem outras informações sobre Paulo Africano e elas são notícias relacionadas ao Coco de Zambê, a prática de rituais religiosos de matriz africana e a atenção que a polícia de Natal tinha com Paulo Africano e suas atividades.

Ele foi preso por um dos subdelegados da cidade em dezembro de 1897, por “ofensas à moral pública”. No mesmo dia foi posto em liberdade junto com um cidadão de nome Luiz Cândido de Mello, este detido por embriaguez. A notícia de sua prisão não explica o que foram essas ofensas, mas na foto abaixo é possível ler e compreender o que para a justiça potiguar daquela época significava essas “ofensas à moral pública”.[14]

Em abril de 1902 Paulo Africano volta a se encontrar com a polícia e a justiça. Ele foi preso pelo subdelegado da Cidade Alta por “embriaguez e distúrbios”, junto com outros sete homens. Tal como na prisão anterior, a nota do jornal nada explica sobre a detenção e todos foram soltos no dia seguinte à prisão.

No ano seguinte uma nova detenção, dessa vez com muito mais detalhes.

O jornal A República da época, órgão oficial do governo estadual, que neste período estava nas mãos de Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, informou que na área da Praça Pedro Velho, então muito maior e mais aberta do que conhecemos atualmente, aconteceu um “samba”. Na edição de 8 de julho de 1903 deste jornal, uma quarta feira, sabemos que o evento ocorreu em um “casebre em ruínas”, que era “uma ameaça à segurança e higiene públicas” e que o evento ocorreu “sábado, até a manhã do dia 3 de julho”, quando uma “súcia de vadios”, promoveram um “samba” com “gritos infernais”. Afirma a nota que o problema não era novo e o local era utilizado para “Práticas imorais”.

Uma coisa é certa, o termo “Samba” utilizado pelo jornal, não tinha nenhuma relação direta com o ritmo musical que tanto sucesso faz no carnaval do Rio de Janeiro. Nessa época esse termo era muito comum nas páginas deste periódico. Era como normalmente a elite natalense designava um lugar onde pessoas pobres e negras se divertiam na provinciana Natal do início do século XX. O tal “Samba” seria um baile de gente simples, equivalente a uma função, um pagode, um arrasta-pé, ou um forrobodó.

A próxima notícia, infelizmente, foi a morte de Paulo Africano. Entretanto a nota do seu falecimento é o texto mais completa sobre a vida desse antigo escravo e conta interessantes detalhes. Trago a transcrição na íntegra, conforme foi noticiado no jornal A República, edição de 15 de abril de 1905, página dois.

PAULO AFRICANO – Todos os habitantes desta capital, mesmo os mais velhos, conhecem por lhes haver feito as delícias do tempo de infancia, em que a meninada costumava andar à solta, o célebre Zambê, ou Puita dos campos do Camboim, que, um pouco decadente mas sempre feroz, veiu atravessando as edades até a epoca actual, apezar das advertencias da policia e dos protestos da visinhança que não apreciava aquellas matraqueações.

Como quer que seja, o Zambê de Mestre Paulo era uma das notas curiosas desta capital, Não só pela gravidade com que rangia a puita e o ardor do sapateado, como pela figura interessante do Mestre Paulo, africano, cuja edade nem elle sabia. Tinha por profissão pescador, respeitado e cortez, porém valente como as próprias armas.

Mestre Paulo era um bom chefe de família e identificou-se tanto com seu Zambê, a ponto de fazer delle uma espécie de religião. Não compreendia a vida sem o Zambê. E de seu natural valente, nada subserviente, tinha posturas humilhantes, a sua voz subia toda sua gamma de supplica, quando o ameaçavam de impedir seu divertimento.

Ao tocar puita, e a sapatear no solo zambêou a vida – durante 60, 70, 80, 90 annos, um seculo quem sabe? – até que no dia 12 do corrente, sereno e calmo como um justo, passou desta à melhor vida, vencido e derrotado no seu unico e terrivel combate com a morte.

Escravos brasileiros tocando tambores.

É muito interessante ler no mesmo jornal oficialista, que várias vezes noticiou Paulo Africano como um “perturbador da ordem pública”, uma interessante coluna à guisa de seu necrológico. Isso em um tempo onde nesse jornal era muito raro se escrever algo mais substancioso sobre um homem pobre e negro, que “Não compreendia a vida sem o Zambê”.

Luís da Câmara Cascudo em seu livro “Meleagro – Pesquisa do Catimbó e notas da magia branca no Brasil” (2ª Edição, Editora Agir, Rio de Janeiro, 1978, pág. 91 e 92), complementou esse texto informando que as danças promovidas por Paulo Africano quase sempre ocorriam no sábado, onde o Mestre “roncava a puíta a noite inteira”. A puíta é um instrumento musical de origem africana, feito de um tronco ou cilindro oco, tapado por uma pele num dos lados.

Marcas de açoites em escravo.

Nessas mesmas páginas, Cascudo também registrou sobre as danças promovidas por Paulo Africano – “Mas dançava quem queria dançar, ricos e pobres, gente do comércio, estudantes, soldados, empregados públicos, brancos, pretos e cinzentos. Ninguém esqueceu, quarenta anos depois, o zambê de Mestre Paulo”.[15] 

Já no livro “O Ritual Umbandista”, de autoria de Renato Sérgio Santiago de Melo e publicado em 1973, encontramos uma interessante informação. Segundo o autor, através de informações conseguidas com a neta de Paulo Africano, Alzira de Oliveira, encontrada pelo pesquisador no início da década de 1970 e vivendo no Bairro de Lagoa Seca, seu avô tinha uma casa onde se dançava o mais puro Coco de Zambê. O seu nome cristão era Paulo José de Oliveira, sendo considerado “bem quisto” e “bom pai de família”. O livro afirma que Paulo Africano havia se identificado tanto com o Coco de Zambê, a ponto de fazer desta manifestação cultural “uma espécie de religião”.

Sérgio Santiago informa que seu próprio sogro, Lupicínio Ramos, morador do Bairro da Ribeira, fazia questão de ir com alguns amigos, sempre aos sábados, para assistir o Zambê que acontecia na casa de Mestre Paulo.

Apesar do Coco de Zambê apresentado na casa de Paulo Africano ser tido pela sociedade local como uma festa, para esse autor ele era na verdade uma manifestação do sincretismo afro-brasileiro, distorcida pela ação policial que existia. Para o autor de “O Ritual Umbandista”, o Coco de Zambê era uma dança africana de significação religiosa. Esta tese foi originalmente proposta pelo médico alagoano e antropólogo Arthur Ramos de Araújo Pereira.

NOTAS


[1] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 55.

[2] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 33.

[3] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 315. 

[4] Depoimento de Joseph Cliffe. In CONRAD, Robert. Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton, Princeton University Press, 1983, p. 34.

[5] Como é de conhecimento geral, na Grã-Bretanha existe a Câmara dos Comuns, como eles chamam a câmara baixa do parlamento, que, se não me engano, equivale no Brasil a nossa Câmara dos Deputados. Essa instituição parlamentar possui um site muito interessante, onde estão digitalizadas e transcritas milhares de páginas da atuação dos seus membros, dos debates e ação das comissões ali criadas, entre os anos de 1803 até 2005 (https://api.parliament.uk/historic-hansard/index.html). Esse material mostra através dos muitos debates sobre a questão da escravidão, do tráfico de escravos e da atuação da Royal Navy na repressão ao comércio humano entre a África e o Brasil, detalhes interessantíssimos sobre esse tema.

[6] Um naufrágio encontrado no início de 2019 no Rio Mobile, Alabama, Estados Unidos, mostrou que era a escuna Clotilda, que afundou em 1860. Naquela época, 110 mulheres, homens e crianças foram trazidos ilegalmente para Mobile em um veleiro desde Benin, na África Ocidental. Para encobrir o crime, o navio foi incendiado e, assim, afundado. A descoberta prova que o comércio de escravos continuou nos Estados Unidos após a proibição e fez surgir um extenso mercado negro de escravos que durou anos. 

[7] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Págs. 469 e 470. 

[8] Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 796, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997. Sobre os assentamentos dinamarqueses na Costa do Ouro ver https://da.wikipedia.org/wiki/Den_danske_Guldkyst

[9] Ver Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 790, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997.

[10] Sobre esse caso ver – https://tokdehistoria.com.br/2015/02/22/1850-o-combate-do-hms-cormorant-contra-o-forte-de-paranagua/

[11] Decreto nº 731, de 14 de Novembro de 1850, que regulou a execução da Lei N.º 581, que estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império do Brasil. Ver em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-731-14-novembro-1850-560145-publicacaooriginal-82762-pe.html

[12] Sobre o desembarque de Sirinhaém ver CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de; CADENA, Paulo Henrique Fontes. A política como “arte de matar a vergonha”: o desembarque de Sirinhaém em 1855 e os últimos anos do tráfico para o Brasil. Topoi. Rio de Janeiro, v. 20, n. 42, p. 651-677, set/dez. 2019 Disponível no site: http://www.scielo.br/pdf/topoi/v20n42/2237-101X-topoi-20-42-651.pdf.

[13] Ver Diário do Natal, ed. 25/06/1962, segunda-feira, pág. 3.

[14]  Ver Collecção de Leis Provinceais do Rio Grande do Norte – Anno de 1884, pág. 42.

[15] Câmara Cascudo comentou “quarenta anos depois”, porque a 1ª edição do livro Meleagro foi lançado em 1951. 

O NAVIO PIRATA BRASILEIRO

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Combate no alto mar, em pintura do século XIX – Fonte – https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

A História do Navio Negreiro Brasileiro Defensor de Pedro Que Se Transformou Em Um Barco Pirata

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN 

Em 1827 o Império do Brasil era uma nação bem jovem, que apenas cinco anos antes havia deixado de ser colônia de Portugal. O país tinha Dom Pedro I como seu Imperador, que governava em uma época de instabilidades. Era um tempo em que o Brasil era majoritariamente agrário, onde utilizava e dependia da mão de obra escrava vinda da África e tinha no tráfico negreiro através do Atlântico Sul a principal maneira destes cativos chegarem a seus portos.

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Engenho de cana de açúcar na Paraíba na época da invasão holandesa.

Mas nessa época a Inglaterra desejava à extinção do tráfico negreiro intercontinental para o Brasil, entretanto suas razões jamais foram por questões humanitárias. Estava no fato do açúcar produzido no Brasil, devido à mão de obra servil, ser bem mais barato do que o produzido nas colônias inglesas do Caribe. Além do que as áreas de plantação nestas colônias caribenhas eram pequenas comparadas com as brasileiras, havia um baixo número de cativos  e a escravidão como força de trabalho nestas colônias estava em processo de extinção definitiva[1].

E para acabar com esse tráfico humano os ingleses estavam dispostos a utilizarem até mesmo os canhões de sua poderosa marinha de guerra, a Royal Navy. Dom Pedro I ratificou então um tratado em 13 de março de 1827, que definia um prazo de três anos para extinguir o tráfico de escravos para o Brasil. A partir desta data, quem fosse pego transportando seres humanos cativos no mar seria enquadrado como pirata e a punição básica existente nas leis inglesas para esse tipo de crime marítimo era a forca.

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Dama em liteira carregada por escravos e suas acompanhantes. A escravidão no Brasil foi um grave e grandiosos problema que até hoje se reflete no país de muitas maneiras – Foto Carlos Julião.

Essa situação de pressão estrangeira gerou um grande desconforto entre a elite política e agrária brasileira. Estes poderosos contestaram muito o Governo Imperial por ceder aos ingleses em algo que para eles “prejudicava o Brasil”. Até por que, antes mesmo do final do prazo de três anos, navios brasileiros que estavam vindos da África com escravos e não estavam com toda a parte burocrática em concordância com as regras impostas pelos ingleses, começaram a ser detidos pelas naves de guerra. Foram criadas duas comissões mistas com a finalidade de resolver estas questões de retenção e apresamento de navios. Uma das sedes destas comissões era no Rio de Janeiro e a outra na cidade de Freetown, na África Ocidental Inglesa, hoje capital de Serra Leoa[2].

O certo é que entre janeiro de 1827 e dezembro do ano seguinte, nada menos que doze navios negreiros, sendo nove brasileiros e três espanhóis, foram capturados apenas pela corveta inglesa HMS North Star, ocasionando a libertação de um número próximo de 2.000 escravos[3].

Realmente os dias do nefando tráfico de homens, mulheres e crianças negras vindos da África para o Brasil estava chegando ao seu final.

O Defensor de Pedro

Mas se o trafico negreiro estava com seus dias contados, não faltava no Brasil quem quisesse pagar por mão de obra escrava para tocar suas fazendas. Com a consequente diminuição do fluxo e do número de cativos vindos da África, o preço por cada escravo começou a subir. O que atiçou a cobiça dos proprietários de barcos negreiros e dos seus capitães a cruzarem o Atlântico Sul, mesmo sem toda a papelada burocrática e a presença vigilante e perigosa da Royal Navy.

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Rio de Janeiro, entrada da Barra perto do alto-mar, 1820 – Fonte – https://culturalrio.wordpress.com/2011/05/18/rio-ontem-e-hoje-bonito-por-natureza/

Não sei se o proprietário do barco brasileiro Defensor de Pedro havia cumprido todas as exigências da burocracia para satisfazer os ingleses, mas em novembro de 1827 este zarpou do Rio de Janeiro em busca de escravos na África[4]. 

O seu comandante era Pedro Mariz de Souza Sarmento, um português de Lisboa nascido em 1790 e que em 1808 fez parte da esquadra portuguesa que veio para o Brasil com Dom João VI. Na época Mariz Sarmento tinha o posto de primeiro tenente e seguiu para a grande colônia portuguesa a bordo da nau Afonso de Albuquerque. Mas em 1827, sabemos que ele estava reformado na patente de capitão-tenente da Marinha Imperial do Brasil e sua única função naquele ano era o comando do navio negreiro Defensor de Pedro[5].

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Já em relação ao Defensor de Pedro, as informações também são bem limitadas. Algumas fontes apontam que ele seria uma nave do tipo brigue, que era um modelo de veleiro de dois mastros principais, muito utilizado no comércio e podendo carregar de doze a vinte canhões. Já outras fontes apontam que este barco seria do tipo bergatin, também um veleiro com dois mastros principais, pequenos, que foram utilizados nos séculos XVIII e XIX para o comércio e transporte normalmente em rotas curtas. Os dois tipos de barcos são bastante similares em dimensões, onde as tonelagens são bem próximas e eram muito rápidos e manobráveis. Populares não apenas entre mercadores, mas também entre piratas[6].

Um Corsário Brasileiro 

No dia 22 de novembro de 1827 o Defensor de Pedro se fez ao mar com destino a Molembo, atualmente o município costeiro de Cacongo, no enclave de Cabinda, Angola.

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Descrição da carga do Defensor de Pedro antes de sair do Rio de janeiro.

A nave transportava várias toneladas de tecidos típicos daquela época, como zuarte e chita, além de caixas com 200 dúzias de lenços. Mas o Defensor de Pedro transportava itens mais explosivos. Tais como 100 barris de pólvora, 12 arrobas de balas de chumbo (equivalente a 180 quilos), 15 caixas com espingardas, 4.600 pederneiras para detonar as armas de fogo, 200 facas de cabo de ferro e 24 pipas (barris) de cachaça. Cada uma das pipas tinha capacidade para cerca de 500 litros, ou seja, aquele barco levava 12.000 litros da mais pura “branquinha” brasileira[7].

Consta que o capitão Mariz Sarmento pretendia navegar levando toda essa mercadoria para ser trocada por escravos nos portos africanos. A ideia era trazer de 200 a 300 “Peças” de escravos, como se dizia na época. Mesmo com a mortandade média de uns 80 a 100 prisioneiros, era considerado um negócio lucrativo. 

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Panorama circular do porto do Rio de Janeiro, 1827 (detalhe), pintado pelo artista inglês Emeric Essex Vidal – Fonte – https://culturalrio.wordpress.com/2011/05/18/rio-ontem-e-hoje-bonito-por-natureza/

Na nota existente no Jornal do Commercio do Rio, temos a informação que o capitão Pedro Mariz de Souza Sarmento tinha uma licença, ou carta, de corso, o que significava que para as autoridades brasileiras o Defensor de Pedro era um barco corsário.

No período inicial do Império do Brasil, assim como noutras nações, nosso país teve a sua marinha corsária e é importante aqui fazer a distinção entre corsário e pirata. Os piratas agiam ilegalmente em tempo de guerra e de paz, sem qualquer regra, sem pertencer a reis ou a qualquer governo. Ao contrário dos corsários, que agiam de acordo com seu soberano, exclusivamente em período de conflito, onde seus navios eram armados por particulares, que possuía licença do rei para combater os inimigos do Estado, visando interromper seu comércio e sua navegação. Além de ganhar dinheiro com o que fosse capturado.

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Rota do La Argentina ao redor do mundo – Fonte – http://grupolagazette.com/al/index.php?option=com_content&view=article&id=567:hyppolite-bouchard&catid=9&Itemid=109

A Argentina, por exemplo, possuiu uma frota corsária e um de seus navios realizou uma viagem de circunavegação pelo globo entre 1817 e 1819[8]. Mas essa não foi uma viagem de adestramento de Guardas Marinhas, foi uma viagem para atacar barcos e colônias espanholas. Chamado La Argentina, esta nave era comandada pelo francês Hippolyte de Bouchard e esteve em locais como Madagascar, Indonésia, Filipinas, Havaí e costa da Califórnia. Navegava negociando com barcos amigos e atacando impiedosamente os espanhóis. Nessa aventura Bouchard capturou 26 barcos, mas acabou preso no Chile pelo almirante inglês Thomas Alexander Cochrane, que na época servia junto à neófita marinha chilena e depois foi o primeiro almirante da Marinha do Brasil, onde combateu os portugueses na Bahia. Na época o cruzeiro do La Argentina se tornou um fato muito conhecido e comentado nos portos do Atlântico Sul[9].

landing-of-slaves-in-cais-do-valongo-painted-by-rugendas-in-1835-e1431619895836Comércio de escravos no Cais do Valongo, porto do Rio de Janeiro.

Para isso ele necessitava de uma tripulação experiente e foi no porto do Rio de Janeiro que o capitão arregimentou um grupo de 40 tripulantes onde constavam brasileiros, portugueses, franceses e espanhóis, a maioria deles renegados e fugitivos da justiça em suas nações.

É possível que quando algum dos 40 tripulantes soube da rota que o Defensor de Pedro iria seguir e viu o que aquele barco carregava, certamente começou a pensar diferente do seu capitão.

O Pirata Galego 

Benito Soto Aboal é considerado pelos espanhóis não o último pirata do Atlântico Sul, mas o último de todo Oceano Atlântico. 

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Benito Soto Aboal

Mais conhecido como Benito Soto, nasceu na área do porto marítimo que deu origem ao atual município de Pontevedra, na Região Autônoma da Galícia, Espanha[10]Desde o século XII Pontevedra era uma das cidades mais importantes da Galícia e, graças ao comércio marítimo e seus estaleiros, um dos mais importantes portos do Atlântico Ocidental na Península Ibérica. Naquele distrito de marinheiros, Benito Soto nasceu em 22 de março de 1805. 

Segundo o pesquisador espanhol Marcos Iglesias, este jovem galego era o sétimo de uma prole de catorze filhos de um pescador e uma dona de casa. Marinheiro desde precoce idade, junto com seu pai e irmãos realizou vários trabalhos nas costas galegas, em diferentes funções, algumas delas de legalidade duvidosa. Tais atividades o levaram a ser respeitado entre os ambientes portuários e de contrabandistas. Então, por volta de 1822, Benito Soto embarca em direção a Havana, Cuba.

De acordo com algumas fontes foi nessa ilha do Caribe que o espanhol se envolveu primeiramente com piratas e corsários, onde lutou a bordo de barcos cubanos ou colombianos. Segundo outros ele era um marinheiro honesto envolvido com tráfico de escravos, atividade que na época era considerada lícita em vários lugares. Talvez todas as versões mostrem alguma verdade, já que ele poderia estar a bordo de barcos, atacando navios escravos de outras nações para roubar suas mercadorias e suas “Peças” de cativos. Tudo isso sem ter atingido a idade de 20 anos.

Seja como for, segundo o pesquisador espanhol Marcos Iglesias, em 1823 Benito Soto viajou de Havana para o Rio de Janeiro, a bordo de um navio mercante espanhol. Mas este barco foi capturado pela marinha brasileira na área costeira de Salvador, Bahia, por suspeita de ser aquele uma nave pirata. Neste ponto o pesquisador Marcos Iglesias aponta no seu trabalho que o rastro deste marujo tornou-se nebuloso e ele só volta a comentar sobre Benito Soto quando este embarca no Defensor de Pedro, quatro anos depois do encontro com a nossa antiga Marinha Imperial[11].

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A Batalha de 4 de maio de 1823 foi o maior combate naval durante a Guerra de Independência do Brasil quando as frotas brasileiras e portuguesas se enfrentaram. A frota brasileira estava sob o comando do inglês Thomas Cochrane – Fonte – Wikipedia

Talvez Benito Soto e outros companheiros, certamente marujos com vasta experiência, tenham passado a atuar como mercenários contratados a bordo de alguma das naves de guerra da nossa recém-criada Força Naval. Não podemos esquecer que em 1823 nossos navios de guerra se bateram contra as naves lusitanas na costa baiana e na Baía de Todos os Santos, na luta pela consolidação de nossa Independência. Além disso, a maioria destes barcos brasileiros eram comandados por capitães oriundos principalmente da Inglaterra, sob o comando geral do inglês Thomas Alexander Cochrane. Então neste contexto não fazia muita diferença nos barcos brasileiros ter um espanhol a mais, ou a menos, contanto que ele fosse um bom marinheiro, soubesse usar com destreza a espada em uma das mãos e uma pistola de pederneira na outra.

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Quadro de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830)-‘Vista do Morro de Santo Antonio” – Museu Nacional de Belas Artes – Fonte – http://viticodevagamundo.blogspot.com.br/2013/03/rio-de-janeiro-by-nicolas-antoine-taunay.html

De toda forma, pelos registros da época, vamos encontrar Benito Soto como um homem livre no Rio de Janeiro em novembro de 1827 e pronto para zarpar. 

O Motim 

O certo é que o capitão do Defensor de Pedro não seguiu para a costa do atual enclave de Cabinda, mas para o Golfo da Guiné, especificamente na atual Gana, aonde chegou em 3 de janeiro de 1828. Para vários pesquisadores isso talvez tenha acontecido pela presença de patrulhas navais inglesas, ou por uma cobiça maior que a desejada. O capitão Pedro Mariz de Souza Sarmento seguiu para uma região onde provavelmente poderia comprar escravos a uma taxa muito menor do que seria a regular[12]. Sabemos que ele chegou na costa africana e conseguiu adquirir um número considerável de escravos. Então, para completar a carga, foi para a terra para conseguir mais cativos. Foi aí o seu erro!

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Piratas levando barris rum para trocar por escravos. No caso do Defensores de Pedro os escravos seriam trocados por cachaça e outros produtos.

Benito Soto transmitiu a ideia de tomar pela força o Defensor de Pedro ao colega Miguel Ferreira e torná-lo um barco pirata. Ferreira, um natural da Galícia, não só concordou em se juntar ao seu conterrâneo, mas declarou que ele próprio estava pensando em uma empresa similar durante a viagem.

Sem o capitão a bordo Soto e Ferreira enfrentaram o resto da equipe com gritos de “Abaixo com os portugueses”. Eles, de forma incisiva, deram cinco minutos para os membros da tripulação tomar uma decisão – ou se juntavam aos amotinados para assumir o navio, ou eles seriam colocados em um barco com um par de remos. Alguns membros da tripulação leais a Mariz Sarmento recusaram o convite e tiveram de remar por dez milhas náuticas (cerca de dezoito quilômetros e meio) até a costa africana. 

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Quandro que mostra uma típica luta no convés. No caso a cena mostra o combate no barco Triton pelo corsário francês Hasard (ex- Cartier ), sob o comando de Robert Surcouf . No caso do motim do Defensor de Pedro esse tipo de luta não foi necessário.

Defensor de Pedro foi então renomeado La Burla Negra, tendo sido pintado desta cor. Existem versões que falam de um triunvirato para gerenciar o motins, com Miguel Ferreira (Cognominado pelos tripulantes como o Mercúrio e que por alguma razão foi apontado inicialmente como líder), Benito Soto (O Barredo), e um certo Victor Saint-Cyr (Barbazan ou François)[13].

Logo Benito Soto começou a entender que para impor sua autoridade em meio à corja com que convivia, só sendo mais bruto que todos aqueles brutos. E logo alguém iria sentir a sua força.

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Miguel Ferreira, o Mercúrio, como chefe dos piratas passou a agir como verdadeiro tirano. O olho agudo de Soto viu que ele era um fraco, pois aquele que tinha adulações com ele no dia anterior, no dia seguinte o governaria com uma barra de ferro na mão. Ele não pensou duas vezes e quando Miguel estava em um forte sono inebriado pela cachaça, colocou uma pistola em sua cabeça e disparou.

Soto se desculpou com a tripulação, afirmando que aquela atitude era para sua proteção e fez uma promessa a todos; que como seu novo líder, prometia trazer uma colheita de ouro nos seus futuros “trabalhos”, desde que obedecessem fielmente a ele. 

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Piratas montando um ardil para atacar um barco mercante em alto mar.

Soto foi unanimemente saudado pela equipe do barco como seu capitão e reivindicou a honra de ser o último pirata real do século XIX no Atlântico.

Mas logo também impôs mão de ferro entre os homens. Alguns dos franceses reclamaram que não podiam falar em sua língua natal. Consta que Soto entendia os marinheiros portugueses e brasileiros, mas não os franceses, que geraram ocasionais altercações. Desconfiava destes quando falavam em “Petit comité”.

O plano inicial foi cruzar o Atlântico para vender a carga de escravos no Caribe. Para este fim a pessoa necessária para o governo do barco era o brasileiro Manoel Antônio Rodrigues, que tinha prática de navegação e possuía a função de “piloto”[14]. Entretanto eu acredito que, se essa venda realmente aconteceu, o fato pode ter ocorrido na costa brasileira, mais precisamente em algum ponto da costa nordestina brasileira[15].

Manuel Antonio Rodrigues, o piloto brasileiro. Desenho retirado de um esboço encontrado entre os papéis do promotor do julgamento, Jorge Pérez Lasso de la Vega. Imagem retirada da página do livro “Os Piratas do Defensor de Pedro”. 59 (Madrid, 1892) Biblioteca Jurídica de Harvard via Google Books.

Independente desta questão, após o objetivo da venda dos escravos haver sido pretensamente alcançado, os piratas partiram para a região da Ilha de Ascensão, no meio do Atlântico Sul, abrindo a possibilidade de atacar navios que viam das ricas terras da Índia e dobravam o Cabo da Boa Esperança em direção a Europa.

Logo uma presa surgiu no horizonte.

As Chacinas e as Crueldades no Morning Star 

De todos os ataques o mais conhecido e que ensejou uma forte perseguição ao La Burla Negra foi o ataque ao barco inglês Morning Star, o primeiro que Benito Soto realizou. 

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Major William Logie

Seu capitão se chamava Thos Gibbs e havia partido de Colombo, no Ceilão, atual Sri Lanka, em 13 de dezembro de 1827, com uma carga de café, canela e alguns passageiros. O principal destes era o Major William Logie, um Representante Militar de Sua Majestade Jorge IV na Ceilão. Logie estava acompanhado de sua família, além de terem a companhia de um cirurgião assistente, dois civis, cerca de vinte soldados inválidos e três ou quatro de suas esposas e filhas. 

O navio cruzou o Cabo da Boa Esperança em 28 de janeiro de 1828 e avistou a Ilha de Ascensão ao amanhecer do dia 19 de fevereiro. Quando estavam a três milhas náuticas a oeste desta ilha, às sete da manhã, os tripulantes do Morning Star viram surgir no horizonte uma estranha nave negra. 

[The Sea: its stirring story of adventure, peril & heroism.]
Desenho do ataque do La Burla Negra contra o barco inglês Morning Star

O barco estava a seis ou sete milhas a popa, mas era rápido e logo diminuiu a distância. Os tripulantes perceberam que a nave escura era bem armada e trazia as cores britânicas. Quando este chegou a menos de meio quilômetro do Morning Star abriu fogo com seus canhões, destruindo velas e ferindo alguns marujos. Ao cruzar com a proa do barco inglês, os do barco negro içaram a bandeira argentina.

Não é a toa que vários autores apontaram o La Burla Negra, antigo Defensor de Pedro, como sendo de origem argentina, bem como o seu nefasto capitão ser cidadão argentino. Mas eu acredito que a utilização daquela bandeira tinha mais haver com a fama na época do cruzeiro do corsário La Argentina e também servia para, no caso de alguém conseguir se salvar, informar erroneamente as autoridades a origem do barco pirata pela bandeira desfraldada.

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Foto do Morning Star no final de sua carreira – Fonte – http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

Logo ambos os veleiros ficaram a menos de cinquenta metros e os piratas jogaram ganchos com cordas para emparelhar os barcos. As testemunhas sobreviventes narraram que os piratas eram homens atléticos e estavam todos armados. Cada um deles carregava pelo menos duas pistolas, facas e uma espada longa. Seu vestuário era composto de uma espécie de jaqueta de algodão grosseiro, camisas abertas até o peito, barretes de lã vermelha e cintos largos de lona, ​​nas quais estavam as pistolas e as facas.

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Desenho representando a morte do capitão Thos Gibbs, do Morning Star.

Na sequência mataram o capitão do barco inglês e Benito Soto ordenou ao francês Barbazan que pilhasse o que pudesse e exterminasse todos os tripulantes a bordo. Ato contínuo os ganchos foram retirados e os barcos ficaram afastados por cerca de 100 metros. Barbazan e seus piratas começaram a matança com pistolas e espadas, pois os ingleses, mesmo em maior número, estavam completamente desarmados. Foi quando os atacantes deram conta da existência das mulheres, que estavam trancadas na cabine do capitão.

Depois de prostrarem várias pessoas no convés, eles levaram a maioria dos sobreviventes para o porão principal e reservaram alguns para ajudar suas operações de pilhagem. Começaram a saquear o navio levando as velas, cordas, caixa de remédios, todos os materiais de navegação, dinheiro, sete pacotes de joias valiosas que fazia parte da carga e toda a bebida existente. Os piratas também saquearam os passageiros da maior parte de suas roupas, todo seu dinheiro e artigos valiosos que puderam encontrar. Durante duas horas trabalharam no saque, levando o botim em baleeiras até o La Burla Negra.

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Desenho representando o ataque as mulheres no Morning Star.

Depois de muito trabalharem no transporte do material pilhado, enquanto seu capitão apreciava este material, Barbazan decidiu relaxar com seu grupo no Morning Star. Primeiramente obrigaram o mordomo a lhes servir vinhos e comestíveis, onde as testemunhas afirmaram que os Piratas se entregaram aos prazeres da garrafa por algum tempo. Depois Barbazan ordenou que seus companheiros “tratassem bem as mulheres”, então começou o terror para elas. Os gritos destas indefesas foram ouvidos durante horas por aqueles que estavam presos no porão.

Antes de voltar para o navio pirata, já de noite, depois de doze horas donos do Morning Star, Barbazan abriu buracos abaixo da linha d’água do veleiro, de modo que o barco começou a afundar e logo afogaria todos a bordo. 

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Anne Smith Logie, uma das mulheres que foram atacadas no barco inglês.

Só que a água do mar entrava lentamente no barco e no meio da madrugada as mulheres seviciadas conseguiram arrombar a porta da cabine do capitão e libertaram o resto da tripulação. Estes conseguiram parar o afundamento e retiraram depois de penosa atividade a água a bordo. Montaram algumas poucas velas e foram se arrastando em direção a Inglaterra. Pensaram em se dirigir primeiramente até a cidade do Recife, mas tiveram medo de cruzar com outros barcos piratas.

Quase um mês depois, no dia 13 de março, eles encontraram o navio inglês Guildford retornando da China e receberam provisões, instrumentos de navegação e o seu capitão emprestou marinheiros experientes para ajudar. O Morning Star chegou a Inglaterra em 18 de abril de 1828 e sua desgraça foi notícia em todo o Império Britânico.

Navio Pirata

O La Burla Negra se tornou famoso em toda parte do Oceano Atlântico e passou a ser caçado sem dó e nem piedade por todas as marinhas de guerra, principalmente a Royal Navy.

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Vida de pirata – O capitão pirata John Phillips obrigando um prisioneiro sob uma arma a beber álcool.

Mas se Benito Soto era muito cruel, verdadeiramente insano, também era muito inteligente. Pois após o ataque ao Morning Star ele e sua tripulação vão continuar atacando e destruindo barcos ingleses, norte-americanos, espanhóis e portugueses.

Sabe-se que Benito Soto destruiu quase uma dúzia de embarcações, incluindo a galera norte-americana Topaz, que navegava de Calcutá, na Índia, para o porto de Boston. Benito Soto atacou, saqueou e não deixou sobreviventes. Consta que após ser concluído o massacre no Topaz, Soto ateou fogo à embarcação para garantir o seu desaparecimento. Um menino negro, certamente um escravo, que permanecia escondido no porão é obrigado a sair; Ele sobe no mastro e pula de cordame em cordame enquanto as chamas atingem as velas, até que ele cai indefeso na água e se afoga “para grande diversão dos piratas que testemunharam a cena de seu navio quando o fogo atinge o salitre”, conforme ficou descrito no futuro processo. Logo uma explosão que destrói a nave.

Um antigo barco queimando, tal como aconteceu com o Topaz, que foi destruído pela explosão do salitre em seu porão.

Foram atacados também os barcos Cassnock (Capitão Thompson), o New Prospect (Capitão Cleland), o Simbry  (Ou Sumbury) e o barco português Melinda, cujos sobreviventes da tripulação afirmaram conhecer alguns membros do La Burla Negra, quando este ainda era o Defensor de Pedro e estava ancorado no Rio de Janeiro em novembro de 1827[16].

Estes portugueses certamente foram uma rara exceção de sobrevivência, pois a ideia principal de Benito Soto era não deixar ninguém com vida para narrar as autoridades os ataques e assim poder navegar por mais tempo. Inclusive quando Soto soube que Barbazan não obedeceu a sua ordem explícita para matar todos no Morning Star, preferindo se divertir com as mulheres e confiar que o barco inglês afundaria pelos furos provocados, recriminou duramente seu comandado e lhe disse um velho ditado pirata – “Os homens mortos não contam contos“. Mas agora era tarde![17]

O barco pirata carregava os porões e bodegas cheias e Soto decidiu ir à Galícia para reparar o La Burla Negra e vender o saque.

Os piratas lidavam com a ideia de se aposentar, ou continuar com suas práticas. Em qualquer caso, qualquer decisão envolvia a venda dos bens. Assim, em 10 de abril de 1828, eles acabaram ancorando nas proximidades da praia de Beluso, perto de Pontevedra. Com a ajuda do tio materno de Soto, José Aboal, e pagando pesado suborno, os piratas conseguem vender grande parte do saque. Dizem que enterrou um grande tesouro em Pontevedra.

O movimento acabou levantando suspeitas, situação que lhes obrigou a deixar a região em direção ao porto de La Coruña. No caminho, em meio a uma situação particularmente desagradável, o La Burla Negra encontrou um pequeno barco que Soto saqueou e matou com já tradicional crueldade a quase todos da tripulação. A exceção foi um indivíduo que havia dito a Soto que poderia encontrar o caminho mais rápido de volta a região de La Coruña, Espanha. Poucos dias depois, após seguir o conselho desse homem, chegaram ao seu objetivo. Soto ficou agradavelmente surpreendido e chamou aquele homem para uma conversa:

“Amigo, esse é realmente o porto de La Coruña?”

“Sim, meu capitão”, respondeu o rapaz.

“Nesse caso”, Soto sorriu e disse, “você fez bem e agradeço seu serviço.”

Ele então atirou no homem e calmamente jogou seu corpo ao mar.

Seja esta história verdade, ou não, afirma-se que Benito Soto foi responsável por ferir e matar 75 pessoas e saquear e afundar dez embarcações. Outros diziam que seus assassinatos atingiram bem mais de 100 pessoas.

O barco entra no porto no dia 26 de abril sob bandeira do Império Brasileiro, com as bombas de esgoto funcionando para chamar a atenção para um navio “maltratado” que acaba de sofrer grandes “dificuldades” em uma tempestade. O que houve discrição e sigilo em Pontevedra, haverá ostentação em La Coruña.

Mas em La Coruña as coisas também não correram positivamente. Mais subornos e mais obstáculos para se livrar do resto da mercadoria, para não mencionar os excessos cometidos por alguns marinheiros sob a influência do álcool e que resultaram em algumas prisões. Eles então partiram para região de Gibraltar. 

O Fim Do Defensor de Pedro e Um Sortudo Pirata Brasileiro

Rumo ao sul, perto de Lisboa, Soto informou a sua tripulação a sua intenção de rumar para Gibraltar, até hoje uma colônia inglesa na entrada do Mar Mediterrâneo. Em 9 de maio de 1828, avistaram as luzes do farol de San Sebastián, na ilha de León, na baía de Cádiz, que consideraram ser as do farol de Tarifa, muito mais ao sul. Acreditam ter chegado ao Estreito de Gibraltar e encalham o La Burla Negra  na praia de Santa Maria, entre a fortaleza de Cortadura e o Ventorrillo del Chato.

Quatro meses depois do início desse frenesi de loucura, o antigo Defensor de Pedro, transformado em La Burla Negra, chegou ao seu fim.

Soto rapidamente organizou o dinheiro para possíveis subornos e forneceu ordens aos marujos para que se misturassem entre as pessoas comuns sem atrair atenção. O capitão tentou se passar por um honesto navegador de um barco naufragado, junto com seus marinheiros. Sua história foi ouvida com simpatia e durante alguns dias tudo aconteceu conforme os planos.

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Desenho moderno representando Benito Soto sendo preso nas ruas de Gibraltar.

Mas como todo vagabundo que pega em muita grana, os piratas acabam sendo notados por seu comportamento inadequado. Andavam pela cidade desperdiçando dinheiro, farreando, certamente indo aos prostíbulos. Um tipo de comportamento que não combinava com náufragos. As autoridades de Cádiz suspeitaram dos tripulantes e foram convocado eles separadamente para que pudessem testemunhar sobre o seu barco e a viagem que realizavam. Logo cairam em contradição e foram presos.

Mas Soto e um membro da tripulação, que o pesquisador espanhol Marcos Iglesias aponta como sendo o famigerado brasileiro José dos Santos, desapareceram instantaneamente de Cádiz[18].

Conseguiram fugir para Gibraltar, onde finalmente os ingleses pegaram o pirata galego. Ainda segundo Marcos Iglesias, o único que escapou foi o brasileiro José dos Santos, homem de extrema confiança de Soto. Até que provem o contrário, parece que esse homem foi o único que tenha aproveitado o butim. Existe a informação que esse brasileiro foi para Gênova, na Itália, e os ingleses afirmam que este fugitivo seria um francês[19].

Pesquisadores ingleses afirmam que por um incrivelmente golpe de sorte, um dos sobreviventes do Morning Star estava em Gibraltar e reconheceu um de seus algozes. O pensamento pirata de Benito Soto era, sob alguns aspectos, correta – Os homens mortos não contam histórias.

Charles Ellms, um autor britânico da época, que escreveu vários livros sobre piratas, parece ter conhecido Benito Soto na sua prisão em Gibraltar e o visitou várias vezes enquanto estava detido. Ellms nos diz que ao longo de sua permanência na colônia, o antigo capitão do La Burla Negra  se vestia com roupas caras, ostentando meias de seda, calças brancas e um vistoso casaco azul. Utilizava um chapéu branco inglês, impecavelmente limpo e da melhor qualidade. Sua aparência, longe de ser a de um bandido, era muito mais a de um comerciante de Londres, dando a impressão de ser um homem agradável e honesto.

O antigo capitão foi julgado, considerado culpado de pirataria e condenado à morte. Enquanto ficou na prisão por um ano e meio, Benito Soto continuou a declarar sua inocência, reclamando constantemente sobre a injustiça que estava sendo vítima. Soto finalmente desistiu e admitiu sua culpa quando o governador de Gibraltar, o general Sir George Don, o sentenciou oficialmente a ser enforcado, esquartejado, sendo seus membros cortados e pendurados em ganchos. Era um aviso para todos os piratas de como a justiça ali era feita. 

Ele fez uma confissão sem reservas dos seus crimes e tornou-se verdadeiramente penitente. Soto entregou ao carcereiro a lâmina de uma navalha que ele escondeu entre as solas de seus sapatos para o propósito reconhecido de adicionar o suicídio como ato final de sua  vida nojenta.

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Desenho representando o cadáver do famoso pirata Willian Kidd exibido após sua execução. No caso de Benito Soto o seu cadáver também foi exposto após ser enforcado, só que foi mostrado esquartejado.

Os que testemunharam sua execução no dia 25 de janeiro de 1830, entre eles Charles Ellms, parecem ter ficado impressionados com o seu comportamento, com sua calma e tranquilidade, enquanto ele avançava para facilitar as coisas para o carrasco. No final Soto parecia desejar o momento que seria colocado diante de seu Criador.

O pirata galego disse a plateia presente suas últimas palavras – Adeus, todos. Na época essas palavras criaram um grande debate em Gibraltar, pois foram ditas em bom português[20]. Sua cabeça foi então espetada em uma lança como um aviso aos outros.

Apesar da região da Galícia fazer fronteira com o norte de Portugal e o idioma galego possuír proximidade linguística com o português, as pessoas do lugar acharam difícil de acreditar que um espanhol teria falado em português no momento da sua morte.

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Navio pirata perseguindo sua presa – Fonte – http://www.aliexpress.com

Mas os que eles não sabiam na época, ou não perceberam, era que talvez para o pirata Benito Soto àquelas palavras ditas na hora da morte não tivessem ligações com fatos ocorridos em terras Lusitanas, mas lhe traziam a memória algo importante que aconteceu em uma grande ex-colônia de Portugal no Novo Mundo[21].

No “Jornal do Commercio”, em sua edição de 11 de maio de 1830 e publicado no Rio de Janeiro, temos informações do destino dos outros piratas presos, vários deles brasileiros. Estavam encarcerados em Cadiz e sofreram duras sentenças.

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Notícia de jornal carioca “Jornal do Commercio”, em sua edição de 11 de maio de 1830 informando a destruição do Defensor de Pedro na Espanha e a condenação de Benito Soto e seus asseclas.

Bento Souto, José dos Santos, Nicolao Fernandes, Antônio de Layda (ou Laida), João Maria Guilherme Teto (ou Terto), Frederico Lerendo e Nuno Pereira foram arrastados pelas ruas, enforcados, esquartejados e seus restos expostos na praia. Quanto ao francês Victor Saint-Cyr, o Barbazan, ele se apresentou as autoridades com uma esmerada educação, bons modos e afirmou diversas vezes que era da família de Laurent de Gouvion-Saint-Cyr, um famoso marechal de Napoleão. Mas não colou e ele o mesmo destino. Já Francisco Gondim, Pedro Antônio, Domingos Antônio e Joaquim Francisco foram “apenas” enforcados. O piloto Manoel Antônio Rodrigues foi condenado a dez anos de cadeia e Caetano Ferreira a oito anos. Já Manoel José de Fretas, Antônio Joaquim e José Antônio da Silva receberam a sentença de seis anos de prisão. Todos que não morreram foram obrigado a presenciar a execução. Quanto ao escravo Joaquim Palavra, foi entregue ao consul portugues para ser enviado ao seu dono no Brasil.


NOTAS

[1] Fato que efetivamente se consumou em 1834.

[2] Ver o livro O tráfico de escravos no Atlântico. Herbert S. Klein. FUNPEC Editora, 2004.

[3] Os espanhóis transportavam escravos para suas plantações de cana de açúcar em Cuba. Já a HMS North Star era uma corveta da Classe Atholl, construída pela Woolwich Dockyard  em 1824, com 28 bocas de fogo. Ver o site http://www.pbenyon.plus.com/18-1900/N/03276.html.

[4] Apesar de todas as buscas eu não consegui apurar o nome do proprietário do barco Defensor de Pedro. Já Pedro Mariz de Souza Sarmento é apontado em todas as fontes como o capitão do barco. Ele até pode ter sido o proprietário, mas sem confirmação.

[5] Mesmo sem conseguir encontrar qualquer informação que aponte, ou conteste, a razão desse pensamento, é provável que essa situação seja um indicativo que o capitão Mariz Sarmento não conseguiu uma projeção maior na Armada Nacional. Mas qual, ou quais, seriam a causa: Talvez a sua origem portuguesa de Pedro Mariz de Souza Sarmento não tenha lhe ajudado muito na nossa Marinha? Ou ocorreu algo na sua carreira naval que o marcou de forma negativa ao ponto de ser precocemente reformado? Ou porque para ele era bem mais lucrativo transportar escravos pelo Atlântico Sul, do que está a bordo de uma nave pertencente a uma força naval que lhe pagava pouco e da qual ele não tinha espaço para progredir?

[6] Algumas fontes apontam que o Defensor de Pedro era um barco argentino, o que é errado, já que sua denominação remete especificamente ao imperador Pedro I do Brasil.

[7] Sobre aspectos da partida e da carga do barco ver o jornal Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, edições de 20 (terça-feira) e 23 (sexta-feira) de novembro de 1827, respectivamente nas páginas 2 e 4. Já sobre os detalhes das negociações para a compra de escravos, ver o livro O tráfico de escravos no Atlântico. Herbert S. Klein. FUNPEC Editora, 2004.

[8] Esses corsários argentinos deram muito trabalho aos brasileiros durante a Guerra da Cisplatina.

[9] Aparentemente, conforme narro no texto, o cruzeiro do La Argentina teve uma tênue ligação com o caso do Defensor de Pedro, quando este se tornou um barco pirata. Ainda sobre o barco La Argentina ver Nuevos Documentos sobre el Crucero de La Argentina a través del Mundo, Volumen I. Autores: Rossi Belgrano, Alejandro y Mariana, Buenos Aires, 2016.

[10] Segundo as lendas antigas o herói troiano Teucer, filho de Telamon e meio-irmão do Ajax, fundador da cidade, chegou a Terra em Pontevedra. Já de acordo com a história, também foi nesse local onde os romanos fundaram o Ad duo ponte, o atual Pontevedra.

[11] Sobre o interessante texto de Marcos Iglesias, em espanhol, ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html.

[12] Para alguns pesquisadores, pelo número de armas e pelo tipo de gente que comandava, é possível que o capitão Pedro Mariz de Souza Sarmento pretendesse retirar pela força o máximo de cativos que pudesse.

[13] Barbazan seria oriundo de uma aristocrática família francesa, sobrinho do marechal Laurent de Gouvion Saint-Cyr, chefe militar dos exércitos napoleônicos. Ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html.

[14] No futuro este homem vai declarar que foi obrigado a permanecer com aquela súcia durante o tempo da viagem e pilhagens. No processo subsequente, Manuel Antônio Rodrigues afirmou que ficou “sofrendo todo tipo de violência por isso” e ele nunca teve a confiança total de Soto.

[15] Em minha opinião existe uma dúvida na história deste barco. Uma viagem entre a costa africana e o Caribe parece ser muito longa, principalmente quando sabemos que o tempo total de ação do La Burla Negra como nave pirata foi de apenas quatro meses. Apesar desta viagem não ser impossível e algumas fontes consultadas afirmarem que esta nave vendeu os escravos no Caribe, eu acredito que a venda se deu mesmo foi no Nordeste do Brasil. Pois, além de haverem brasileiros no La Burla Negra que certamente conheciam a costa nordestina, nesta região não faltavam quem quisesse comprar escravos africanos de forma rápida e discreta.

[16] Ver Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3.

[17] Existem vários relatos do cruel ataque de Benito Soto ao barco inglês Morning Star. Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3. É possível encontrar este jornal no endereço eletrônico https://books.google.com.br. Existem dois textos bem detalhados no jornal carioca  ver o jornal Diário Fluminense, Rio de Janeiro, edições de 15 (terça-feira) de julho de 1828, páginas 51 e 52 e do dia 10 (segunda-feira) de maio de 1830, nas páginas 411 e 412. Mas o primeiro destes textos erra o nome do barco atacado. Existem igualmente bons sites ingleses que trazem inclusive reprodução dos depoimentos dos sobreviventes – Ver http://www.scarboroughsmaritimeheritage.org.uk/article.php?article=297 e http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

[18] Ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

[19] Ver os sites http://www.scarboroughsmaritimeheritage.org.uk/article.php?article=297 e http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

[20] Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3.

[21] Talvez o trabalho que reúne com mais precisão todos os eventos envolvendo Benito Soto foi escrito em 1892, pelo militar espanhol Joaquín Bautista Lazaga y Garay, que publicou o ensaio histórico intitulado “Los piratas del Defensor de Pedro. Extracto de las causas y proceso formados contra los piratas del bergantín brasileño Defensor de Pedro”.

O DIA EM QUE OS PARANAENSES ABRIRAM FOGO CONTRA UM NAVIO DE GUERRA INGLÊS

Corveta inglesa HMS Driver, identica ao HMS Cormorant - Fonte - http://en.wikipedia.org/wiki/HMS_Driver_(1840)#mediaviewer/File:HMS_Driver.jpg
Corveta inglesa HMS Driver, idêntica ao HMS Cormorant que provocou o Incidente de Paranaguá – Fonte – http://en.wikipedia.org – CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR

1850 – O COMBATE DO HMS CORMORANT CONTRA O FORTE DE PARANAGUÁ

Apesar de serem países amigos e cordiais parceiros comerciais, na segunda metade do século XIX o Brasil e a Inglaterra tinham um ponto conflitante quando o assunto era o tráfico negreiro. A Inglaterra era totalmente contra a prática, enquanto os políticos brasileiros, em concordância com os fazendeiros latifundiários, procuravam ganhar tempo quando o assunto era a extinção deste comércio. Acordos já existiam, porém, mas sua aplicação não era executada na costa brasileira. 

Rigor da Lei 

A resposta britânica veio através do seu parlamento que aprovou a lei Bill Aberdeen dando totais poderes à Royal Navy (Marinha Real) para reprimir o tráfico negreiro. Os navios de Sua Majestade cumpriram com determinação e rigor esta ordem. Para a costa brasileira algumas naves britânicas, baseadas no Rio da Prata, foram orientadas a intensificar esta atuação no início de 1850.

Fragata HMS Winchester, navio da mesma classe da HMS Southampton
Fragata HMS Winchester, navio da mesma classe da HMS Southampton

A flotilha inglesa chegou ao Brasil, vinda da África, em setembro de 1849, sob o comando do contra-almirante Barrington Reynolds. A nau capitânia era a veterana fragata, com 34 anos de serviço, HMS Southampton, sob o comando do capitão Nicholas Cory e guarnecida com quase 60 peças de artilharia.[1]

Havia ainda a corveta a vapor com hélices HMS Sharpshooter sob o comando do tenente John Barley, a corveta a vapor HMS Rifleman sob o comando do tenente Stephen Smith Lowther Crofton, a corveta a vapor HMS Tweed sob o comando de Lorde Francis Russell, a corveta a vapor HMS Harpy sob o comando do tenente Dalton, a corveta a vapor com rodas laterais HMS Cormorant sob o comando do capitão Herbert Schomberg e barcos de apoio que traziam carvão da Inglaterra.

O Cormorant era uma corveta da Classe Drive, tinha casco de madeira, havia sido lançado em 1842, possuía propulsão a vapor e a vela, com uma grande roda de pá na lateral.[2] Tinha um deslocamento de 1.590 toneladas, 55 metros de comprimento, uma tripulação com 45 homens e um armamento de quatro canhões laterais de calibre 64 e duas torres sobre eixos com canhões de calibre 80.[3]

Capitão Sir Alexander Schomberg, avô do capitão do HMS Cormorant. Quadro de Willian Hogarth - Fonte - es.wahooart.com
Capitão Sir Alexander Schomberg, avô do capitão do HMS Cormorant. Quadro de Willian Hogarth – Fonte – es.wahooart.com

Já o capitão Herbert Schomberg era um calejado comandante naval, que vinha de uma linhagem de preparados oficiais da Royal Navy. Seu avô era o capitão Sir Alexander Schomberg, que se destacou na Guerra dos Sete Anos.[4] Seu pai era o almirante Alexander Wilmot Schomberg, que obteve comados importantes nas Guerras Napoleônicas.[5]. Alexander Schomberg entrou na Royal Naval em dezembro de 1817. Serviu durante quatro anos, ao largo da costa da América do Norte, no Canal da Mancha e nas Índias Ocidentais onde o navio foi empregado na repressão da pirataria. Foi promovido tenente em setembro de 1827 e entre fevereiro 1828 a setembro de 1829 esteve envolvido em operações de combate ao contrabando na costa da Irlanda e no bloqueio de Tânger. Recebeu a promoção de capitão em junho de 1841.

Vista da entrada do Rio de Janeiro com o Pão-de-Açúcar e a Igreja da Glória do Outeiro, óleo do inglês Robert Dampier.
Vista da entrada do Rio de Janeiro com o Pão-de-Açúcar e a Igreja da Glória do Outeiro, óleo do inglês Robert Dampier.

Mas voltando ao caso brasileiro, como os barcos de guerra ingleses deveriam impedir o tráfico de escravos em veleiros nas costas brasileiras, havia uma lista de navios brasileiros preparada pelo inglês Mr. Hudson, encarregado dos negócios da Inglaterra no Brasil, ao contra-almirante Reynolds. Hudson era na verdade um espião a serviço de Sua Majestade no Rio de Janeiro e com sua ajuda as embarcações da Royal Navy caçavam estes barcos em nossas costas na maior tranquilidade. 

Afogando a “Carga” 

Em um modorrento domingo, 29 de junho de 1850, surgiu na Baía de Paranaguá o casco negro da corveta HMS Cormorant.

Paranaguá, litoral da província do Paraná, tornou-se um dos principais centros de contrabando de escravos no Brasil. Naquele labirinto natural de ilhas costeiras, os traficantes utilizavam algumas delas para desembarques clandestinos. Essa informação também era do conhecimento da Royal Navy. 

Foto de satélite da região da Baía de Paranaguá, com destaque para a Ilha do Mel. Pela imagem é possível ver a posição estratégica da Ilha do mel em relação ao resto da baía. Fonte - timblindim.wordpress.com
Foto de satélite da região da Baía de Paranaguá, com destaque para a Ilha do Mel. Pela imagem é possível ver a posição estratégica da Ilha do Mel em relação ao resto da baía. Fonte – timblindim.wordpress.com

Para seguir adiante naquele setor e transpor a Barra de Paranaguá, o capitão Schomberg contratou os serviços de um prático na Ilha do Mel, situada na embocadura da baía. Este foi o pescador Manoel Felipe.[6]

Os ingleses chegaram ao porto do Alemão, na Ilha de Cotinga. Neste porto estavam fundeados seis navios mercantes. Utilizando-se de dois escaleres e sob o comando dos tenentes Charles Maxwell Luckraft e Herbert Philip de Kantzow, os invasores atacaram em um golpe rápido e o brigue Dona Ana, seguido do brigue Serea foram dominados. Vendo o ataque aos mercantes, o comandante do terceiro brigue, o Astro, resolveu afundá-lo para evitar que a “carga” (dezenas de sofridos escravos oriundos da África) fosse pilhada e o navio apreendido. O barco de 176 toneladas ficou apenas com os três mastros para fora d’água e todos os africanos morreram afogados.

Ilha da Cotinga - Fonte - www.guiageo-parana.com
Ilha da Cotinga – Fonte – http://www.guiageo-parana.com

Após o ataque, os ingleses foram vistoriar os porões dos navios que capturaram. Tal foi a surpresa ao constatar que ali existiam apenas víveres.

Houve uma manifestação por parte do guarda-mor da alfândega de Paranaguá, o sr. Francisco Pinheiro, que visitou o capitão Schomberg no tombadilho do Cormorant e discutiram sobre os fatos ocorridos na baía. Nessa visita, o capitão inglês apresentou um ofício relatando seus atos às autoridades locais, porém, o coronel Manuel Antônio Guimarães, comandante da Guarda Nacional, o delegado de polícia, José Francisco Barroso, e o juiz municipal Dr. Filastro Nunes Pires recusaram-se a receber o documento. Tomado pela cólera, o capitão Schomberg descontou o seu ódio nas autoridades locais, acusando-as de cúmplices do tráfico negreiro. Como ação definitiva, decidiu rebocar no dia seguinte os dois navios atacados (Dona Ana e Serea) mais a galera Campeadora.

Aqui cabe um aparte para comentar que a maioria dos relatos sobre este episódio aponta que o principal motivo para a reação dos paranaenses contra o barco de guerra inglês foi que “alguns jovens resolveram tomar uma atitude em nome da soberania nacional”. Não discordo que isso tenha ajudado a “esquentar” o sangue dos brasileiros, mas não foi só isso!

Navio negreiro - Fonte - www.revistadehistoria.com.br
Navio negreiro – Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br

Desde a chegada da nave de guerra inglesa a Baía de Paranaguá muita coisa aconteceu e certamente muita raiva fluiu entre ambos os lados. Além de possíveis violências, afrontas e provocações que os membros da mais importante marinha de guerra do mundo na época possam ter feito aos paranaenses, os prejuízos causados aos marítimos brasileiros, aos proprietários dos barcos e, principalmente, aos fazendeiros que esperavam a chegada de mais “mercadoria humana” daquele sórdido tráfico, deve ter influenciado a reação que se seguiu.

Montando a Bateria Debaixo de Chuva

Durante a comemoração do cinquentenário do Incidente de Paranaguá, em julho de 1900, o jornal paranaense “A República”, em sua edição dominical de 1 de julho, informava que na noite de 29 de julho de 1850, membros da comunidade parnanguara, entre estes Manuel Ricardo Carneiro, Caetano José de Souza, Bento Antônio de Menezes, José Cardenes do Amaral, Joaquim Caetano de Souza Lino de Souza Ferreira, Antônio José de Medeiros, Custódio Borges, Antônio José da Costa Junior, Francisco Pires, Paulo José Dias Cardoso, Victor da Silva Freire, Manoel José de Oliveira, Antônio Gonçalves Pindahy, Salvador do Prado, José da Cruz, João Feliciano dos Santos, Manoel Luiz Fernandes, entre outros (alguns afirmam que seriam mais de 200 pessoas), partiram para enfrentar os britânicos.

Nota do o jornal paranaense “A República”, durante a comemoração do cinquentenário do Incidente de Paranaguá, em 1 de julho de 1900
Nota do o jornal paranaense “A República”, durante a comemoração do cinquentenário do Incidente de Paranaguá, em 1 de julho de 1900.

Acompanhados das tripulações dos navios detidos, discretamente seguiram para a Ilha do Mel, onde ao desembarcarem e buscaram um entendimento com o capitão Joaquim Ferreira Barbosa, comandante da fortaleza Nossa Senhora dos Prazeres, também conhecida como Forte de Paranaguá. Logo iniciaram os preparativos para o enfrentamento. O comandante da fortaleza tinha consciência da gravidade da situação, já que a Inglaterra era uma nação amiga. Mas ele não conseguiu (ou não quis) impedir que os revoltosos abrissem fogo contra o navio britânico.[7]

Mas o forte, concluído pelos portugueses em 1769 e reformado em 1820, encontrava-se desmantelado e suas baterias eram obsoletas contra o moderno navio de guerra estrangeiro. A guarnição possuía uma artilharia básica e em desuso desde o ano de 1839, mesmo assim aquele animado e inexperiente grupo de “combatentes” seguiu com o seu plano.

Durante a noite, debaixo de muita chuva, um intenso fluxo de embarcações de pequeno porte levou para a fortaleza muita pólvora, armas portáteis, explosivos e até projéteis retirados dos porões do Colégio Velho dos Jesuítas. Para lá também seguiram carpinteiros e ferragens. Em tempo recorde, aquele grupo de pouco mais de cinquenta homens conseguiu organizar uma resistência considerável e aprontar doze peças de artilharia. Nos anais históricos da Royal Navy afirmam que a bateria era composta de quatorze canhões.[8]

Eu tenho minhas dúvidas se o neto de Alexander Schomberg e sua tripulação não perceberam toda esta movimentação na madrugada, em direção à velha fortaleza. Se não perceberam foram inaptos. Se perceberam e não levaram em consideração o perigo, certamente foi porque a sua superioridade bélica, soberba e a ideia de colher os louros da vitória junto ao contra-almirante Barrington Reynolds, levando os três barcos capturados, deve ter falado mais alto.

Outra corveta da Clase Driver, irmã do HMS Cormorant, neste caso uma foto da HMS Virago.
Outra corveta da Clase Driver, irmã do HMS Cormorant, neste caso uma foto da HMS Virago – Fonte – Wikipedia.org

Eram cerca de nove da manhã de segunda feira, 1 de julho de 1850, quando o  HMS Cormorant apareceu no rumo à barra, trazendo consigo a reboque os barcos brasileiros. Como o barco britânico vinha lento, o comandante da fortaleza enviou um ofício ao capitão inglês, através de um escaler comandado por um sargento. O oficial brasileiro buscava orientar a corveta a seguir viagem sem os navios apreendidos, deixando estes em poder das autoridades locais e na desobediência deste ofício a fortaleza faria fogo. O ofício nunca foi entregue, pois o escaler nacional foi repelido com tiro de pólvora seca pela tripulação inglesa.

“Para Inglês Ver”

O ataque ao escaler pegou a “guarnição” do forte de surpresa. Interpretando a ação como um ato hostil e beligerante, a fortaleza passou a disparar contra a embarcação inglesa. Mais surpresos ainda ficaram os tripulantes do Cormorant, que não esperavam uma reação tão feroz de uma velha fortaleza. Começou assim um combate entre ambos, que durou cerca de meia hora. A troca de disparos rebombou por toda Baía de Paranaguá e só terminou quando os canhões da fortaleza da barra já não tinham alcance contra a corveta britânica.

A Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres de Paranaguá está localizada na praia da Fortaleza, no sopé do Morro da Baleia (hoje da Fortaleza), na Ilha do Mel, cidade de Paranaguá, no litoral do Estado do Paraná.- Fonte - fortalezas.org
A Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres de Paranaguá está localizada na praia da Fortaleza, no sopé do Morro da Baleia (hoje da Fortaleza), na Ilha do Mel, cidade de Paranaguá, no litoral do Estado do Paraná.- Fonte – fortalezas.org

A nave de guerra levou a pior. Combatendo em águas interiores e com suas manobras limitadas pelo reboque, o Cormorant teve a sua roda de bombordo danificada e a popa atingida. Os brigues Dona Ana e Serea foram seriamente atingidos e o capitão Schomberg afundou-os na entrada da baía. Mas a galera Campeadora seguiu viagem até Serra Leoa, na África. Houve três baixas na nave britânica, sendo uma fatal e outras duas feridas, que ficaram na enfermaria durante toda a viagem rumo a África. No combate o barco estrangeiro ficou limitado em suas manobras por está rebocando os barcos brasileiros. No lado dos paranaenses os danos foram mínimos fisicamente e houve apenas feridos leves.

A reputação da Royal Navy havia sido manchada. Um moderno navio inglês ser atacado por uma velha fortaleza com armamento improvisado e guarnecida em parte por civis destreinados, era motivo de vergonha suficiente.  Os atos ocorridos na Baía de Paranaguá acirraram os ânimos britânicos que exigiram uma reparação formal do governo brasileiro.

Os canhões do forte de Paranaguá - Fonte - www.panoramio.com
Os canhões do Forte de Paranaguá – Fonte – http://www.panoramio.com

Era necessário acalmar os ânimos britânicos através de alguma ação prática ou a situação poderia terminar num conflito naval entre os dois países. O ministro da justiça – Eusébio de Queirós – apresentou ao Congresso um projeto de lei extinguindo o tráfico negreiro de forma definitiva. Dois meses após o combate em Paranaguá a lei foi aprovada. A aprovação da lei Eusébio de Queirós no ano de 1850 esfriou um pouco os ânimos de ambas as partes. Pelo lado brasileiro o governo achava que havia colocado um ponto final na discórdia. Já a elite agrária e escravagista via na lei mais uma forma de ludibriar os súditos da coroa britânica e manter o seu Status Quo[9].

A Marinha Brasileira acompanharia a Royal Navy no patrulhamento da costa brasileiras, porém, na prática o tráfico continuou por longos anos até a sua extinção total. Ou seja, a Lei Eusébio de Queirós foi mais uma ação paliativa do Governo do Brasil para postergar o fim do trabalho escravo no país, seguindo a política “para inglês ver”.[10]

Fonte - viveravela.blogspot.com
Fonte – viveravela.blogspot.com

Como consequência desta situação os parnanguaras que atentaram contra o navio foram recebidos com honras pela população da cidade, mas não podemos esquecer que muitos dos que foram ovacionados não passavam de pessoas que viviam do tráfico de escravos.

Com soberba, ou não, apesar de ter seu navio acertado por uma bateria de canhões de um velho forte brasileiro, o capitão Schomberg alcançou o posto de almirante no final de sua carreira. Já o capitão Barbosa, comandante da fortaleza, por não impedir a tomada do quartel por civis, foi rebaixado à condição de soldado de terceira categoria.

Enfim, os ingleses “precisavam ver” as autoridades brasileiras fazendo alguma coisa[11].

NOTAS


[1] Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Southampton-class_frigate_(1820)

[2] Ver http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_corvette_and_sloop_classes_of_the_Royal_Navy e http://www.pbenyon.plus.com/18-1900/C/01129.html

[3] O número do calibre dos canhões refere-se ao peso da bala de ferro em libras (0,453 kg).

[4] Ver http://familypedia.wikia.com/wiki/Seven_Years%27_War

[5] Ver http://familypedia.wikia.com/wiki/Alexander_Wilmot_Schomberg_%281774-1850%29

[6] Ver jornal “A República”, Curitiba, edição de 1 de julho de 1900 (pág. 1)

[7] Ver http://fortalezas.org/?ct=fortaleza&id_fortaleza=433

[8] Ver “The Royal Navy – A History – From the earliest times to the present”, de Sir William Laird Clowes, Volume VI, pág. 391 e 392, Londres, 1901.

[9] Ver http://www.achetudoeregiao.com.br/atr/diplomacia_das_canhoneiras.htm

[10] Para a criação deste artigo foram utilizados http://pt.wikipedia.org/wiki/Incidente_de_Paranagu%C3%A1

e http://teiadehistorias.blogspot.com.br/2012/08/batalha-do-cormorant-embarcacao-inglesa.html

[11] Ver http://fortalezas.org/?ct=fortaleza&id_fortaleza=433