1941 – SÓ UM VOLTOU… E PASSOU PELO RIO, RECIFE E NATAL

A Interessante História do Piloto da Luftwaffe Franz von Werra, o Único Prisioneiro de Guerra Alemão Que Conseguiu Voltar Para a Sua Pátria. E no Caminho Dele Estava o Brasil. Uma Vitória da Espionagem Nazifascista em Nosso País e Como Eles Enganaram a Polícia de Getúlio Vargas..

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Franz von Werra, cujo nome original era François Gustave von Werra, nasceu em Leuk, no cantão suíço de Valais, em 13 de julho de 1914. Era filho do Barão Leo von Werra, um nobre empobrecido devido a decadência econômica dos seus negócios.

Quando a família perdeu as finanças, seu pai confiou a educação de Franz e de sua irmã Emma à família da Baronesa von Haber, uma representante autorizada da aristocracia alemã. Eles cresceram na casa Haber e o menino mudou seu nome, tornando-se Franz von Werra.

Franz von Werra

Em 1936, após a sua formatura, Werra alistou-se na Luftwaffe, a Força Aérea da Alemanha de Hitler. Obteve sua licença de piloto em 1938 e foi designado para um esquadrão de caça. Com a eclosão da Segunda Guerra, Werra e a sua unidade participam da conquista da França e em maio de 1940 ele derruba sozinho dois bombardeiros franceses e é condecorado com a Cruz de Ferro. Consta que teria destruído mais duas aeronaves inimigas.

Desenho com o esquema de cores do caça Messerschmitt ME 109 do tenente Werra.

A Autopromoção de Um Piloto de Caça.

Durante a Batalha da Inglaterra, quando os pilotos alemães se bateram contra os aviadores da Força Aérea Real, ou Royal Air Force (a famosa RAF), Werra alegou que derrotou e destruiu nove aviões ingleses, quatro no ar e cinco em terra. No entanto, por falta de testemunhas, seus superiores creditaram apenas quatro aeronaves abatidas em voo e ele recebeu uma segunda condecoração.

Werra e o filhote de leão.

Ambicioso, o tenente Franz von Werra logo percebeu que para ter uma carreira de sucesso na Luftwaffe não bastava apenas conquistar vitórias no ar, era necessário realizar muita autopromoção. Ele começou a usar regularmente o título de “Barão” e em uma ocasião, quando um grupo de jornalistas visitou a sua esquadrilha para uma sessão de fotos e entrevistas, o tenente Werra apareceu com um pequeno leão vindo de um zoológico alemão. O animal era chamado de Simba e o piloto disse aos visitantes que ele era “o mascote da unidade”. Como era uma mascote bem diferente, os fotógrafos fizeram a festa. A série resultante de fotografias mostrava Werra posando no cockpit de seu caça Messerschmitt ME 109, usando o boné de oficial e segurando Simba para a câmera. As imagens do piloto e do leãozinho apareceram nas mais populares revistas da Alemanha.

Em 5 de setembro de 1940, caças ME 109 decolaram de Calais, França, em direção à Inglaterra, como parte de uma escolta para um ataque de bombardeiros, sendo um dos caças pilotado por Werra. No retorno da missão eles foram atacados por vários aviões de caça Spitfire e a aeronave de Werra foi atingida. Ele então realizou um pouso de emergência bem sucedido em uma área de plantação. Depois que a nuvem de poeira baixou, o piloto do Messerschmitt danificado levantou o capô e saiu do cockpit ileso. Percebeu que não tinha como fugir e ficou ao lado da aeronave. Seus captores o encontraram queimando calmamente seus documentos de voo.

O caça Messerschmitt ME 109 de Werra nas mãos dos ingleses.

O Cativeiro e as Fugas.

Franz von Werra foi levado pelos militares para interrogatório. Ocorre que os ingleses sabiam do gosto daquele alemão pelos holofotes e lhe dedicaram uma atenção especial.

Os oficiais dos serviços de informação lhe questionaram várias vezes, usando seus melhores meios disponíveis para fazê-lo falar. Segundo Werra explicou em seu relatório, produzido após ele conseguir retornar para Berlim e que depois foi transformado em um livro (Einer kam durch. Fluchtbericht des Fliegerleutnants Franz von Werra / Um conseguiu passar –  Relatório de fuga do Tenente Franz von Werra), ele resistiu e nunca perdeu a calma, fechando-se em um silêncio quase absoluto.

Depois de vinte dias de infrutíferos interrogatórios, os britânicos o transferiram para um campo de prisioneiros em uma antiga casa chamada Grizedale Hall, localizada em um pântano a 30 quilômetros do Mar da Irlanda, no noroeste da Inglaterra.

Grizedale Hall.

O piloto alemão estava determinado a escapar e logo estudou as características daquela prisão. Em 7 de outubro, com a cooperação dos outros prisioneiros, Werra realizou a sua fuga. Durante uma caminhada diurna fora do acampamento, quando os ingleses ordenaram uma parada para descanso, o piloto alemão deslizou sobre um muro de pedra seca e ganhou o campo. Após descobrirem que ele fugira, os guardas alertaram os agricultores locais. Werra conseguiu ficar escondido durante três dias, mas no quarto foi localizado por dois soldados da Home Guard, a força de vigilância interna da Inglaterra na época. Estava em uma cabana de materiais agrícolas, mas percebeu a chegada dos seus captores e novamente conseguiu escapar. Em 12 de outubro ele foi visto por agricultores, que informaram as autoridades e a área onde se encontrava foi cercada. Finalmente Werra foi achado em uma depressão lamacenta no chão completamente exausto. Foi levado de volta para Grizedal Hall, onde passou 21 dias de confinamento na solitária.

Local da prisão em Swanwick, o casarão “The Hayes”.

Mais tarde o piloto alemão foi transferido para Swanwick, região de Derbyshire, centro da Inglaterra, onde foi encarcerado em uma grande casa construída na década de 1860. Chamada “The Hayes”, essa velha residência foi denominada na Segunda Guerra como “Campo 13” e apesar das medidas de alta segurança desse local, Werra começou a estudar a possibilidade de uma nova fuga.

Werra conseguiu desenvolver um plano com outros quatro companheiros e começou a construir um túnel subterrâneo. Trabalharam por cerca de um mês e mesmo com um colapso parcial do teto da galeria e o risco constante de serem capturados, os cinco presos fugiram na noite de 20 para 21 de dezembro de 1940.

O túnel aberto por Werra e seus companheiros no subsolo do casarão “The Hayes” ainda existe.

Segundo Werra comentou em seu relatório, o plano era um tanto simples, como imprudente: ele iria até uma base aérea dos ingleses, se apresentaria na porta da frente como um capitão da aviação holandesa e tentaria na base da conversa se apossar de uma aeronave.

Nessa época a Holanda havia sido ocupada pelos alemães e muitos dos seus pilotos voavam agora em esquadrilhas britânicas. Ele deu um jeito de fazer junto com seus companheiros de prisão um traje de voo improvável e uma identidade falsa. Mas as suas principais armas eram o seu talento e a sua audácia para inventar histórias.

Aviadores holandeses na Inglaterra, sendo fotografados em um caça Spitfire.

Aproveitando-se de seu bom conhecimento de inglês, o jovem tenente chegou a uma base aérea da RAF chamada Codnor Park Station, onde convenceu os guardas que era o “capitão van Lott” e entrou. Disse então a um funcionário local que seu avião teve que fazer um pouso forçado ao retornar de uma missão sobre a Dinamarca e que ele telefonasse para a base de Hucknall pedindo que fosse buscá-lo. Esperando o carro, a polícia submeteu o piloto a algumas perguntas sobre a sua história, concluindo que aquele estranho dizia a verdade. O carro chegou e ele partiu.

Base de Hucknall.

Na base de Hucknall sua história foi ainda verificada por um oficial de plantão, que telefonou para uma base, a qual o holandês disse que pertencia. Nesse meio tempo Von Werra pediu para ir ao banheiro e deixou a sala, caminhou até o hangar e, com a ajuda involuntária de um mecânico, entrou na cabine de um avião de caça Hurricane. Enquanto tentava freneticamente ligar a aeronave, o oficial de serviço saltou sobre a asa com a arma na mão e o prendeu. Os ingleses ficaram impressionados, pois até então ninguém tinha sido capaz de entrar em uma base aérea pelo portão da frente e quase se apossar de uma aeronave para fugir. O audacioso piloto alemão foi enviado de volta para o campo Swanwick.

Os ingleses já estavam fartos dele e decidiram enviá-lo em janeiro de 1941 para o distante Canadá, junto com outros 1.050 prisioneiros alemães.

A Fuga do Navio.

Ele cruzou o Oceano Atlântico no navio Dusshes of York e a bordo começou a arquitetar uma nova fuga.

Navio Dusshes of York.

Werra conheceu entre os prisioneiros alguns oficiais de submarinos alemães e descobriu que se o navio fosse tomado à força, seria possível conseguir apoio dos submarinos germânicos espalhados pelo Atlântico Norte e chegar até a costa da França dominada pelos alemães.

Mas havia um empecilho: o Dusshes of York transportava 1.050 alemães prisioneiros e 1.500 soldados britânicos armados, que iriam para a África do Norte lutar contra as tropas do Afrika Korps, comandado pelo famoso general Erwin Rommel. Aí realmente complicou para um possível motim a bordo.

Prisioneiros alemães desembarcando no Canadá.

Mas o endiabrado piloto da Luftwaffe não parou. Logo ele deu um jeito de roubar os documentos, dinheiro e um uniforme do contramestre Arthur Wood, um dos tripulantes do navio. Preparou-se corretamente e escapuliu quando a nave atracou no porto da cidade canadense de Halifax. Demorou mais de três horas para os ingleses e canadenses descobrirem a sua fuga e começaram uma busca pela cidade.

Apesar de ter conseguido com esse roubo certa quantidade de libras esterlinas, a moeda da Inglaterra, Werra descobriu amargamente que o comércio local estava proibido de transacionar com dinheiro estrangeiro devido ao estado de guerra. Continuou então a circular feito um vagabundo pelos próximos dias. Chegou a ver a sua foto em um cartaz de procura-se e tratou de ser ainda mais cauteloso. Por onde passou em Halifax se apresentou como um marinheiro inglês em busca de trabalho. Chegou a dormir no relento e conseguiu alguma comida.

Docas de Halifax em 1941.

Espertamente ele lembrou que próximo aos portos de todo mundo, sempre existiram pessoas para as quais as regras e as leis normalmente são burladas. Ele encontrou essa pessoa na figura de um chinês, que tinha um bar perto do cais. Era um lugar de péssima fama, que aparentemente também servia de prostíbulo, mas o proprietário do estabelecimento não teve problemas em trocar o dinheiro inglês por dólares canadenses e conseguiu para ele um quarto verdadeiramente imundo, mas com uma cama grande e alguma comida.

Marinheiros na região do Porto de Halifax durante a Segunda Guerra Mundial 

Mas a Real Polícia Montada do Canadá continuava procurando Werra em toda Halifax e eles fizeram uma verdadeira operação pente fino na área do porto. Não demorou quando dois homens da lei chegaram até o seu quarto e procuraram saber quem ele era. Em um primeiro momento os policiais até acreditaram na sua conversa de homem do mar desempregado e em busca de trabalho. Só que um deles desconfiou do linguajar refinado daquele homem, bem diferente do rude e típico palavreado dos marinheiros ingleses, normalmente cheio de palavrões. Werra continuou tentando levá-los na conversa, mas acabou novamente preso.

Nessa ocasião, por um ato de rebeldia ao se negar a colocar algemas com a alegação que era um oficial da Luftwaffe, levou foi uma boa surra dos policiais canadenses!

Cruzando a Fronteira e Se Tornando Uma Estrela.

Ele foi colocado em um trem com os mesmos prisioneiros que conhecera no Dusshes of York e, sem nenhuma novidade, começou a planejar uma nova fuga.

Soube que o trem estava seguindo para um lugar chamado Schreiber, no Lago Superior, na província de Ontário, onde os oficiais alemães seriam alojados no chamado “Campo W” e que o trajeto levaria três dias para ser completado.

Para a sorte de Werra, os canadenses colocaram cerca de 200 homens da Guarda de Veteranos Canadenses, que já haviam servido na Primeira Guerra Mundial. Aquilo para alguém com o currículo de Franz von Werra era uma situação muito positiva.

Não demorou e ele conseguiu saltar do seu vagão quando a composição fazia uma curva e diminuiu a velocidade. Só que a ação foi à noite, com uma temperatura de menos 20 graus célsius, a neve com mais de um metro de profundidade e um céu magnificamente estrelado.

Werra novamente deu muita sorte, pois a fuga só foi descoberta na manhã seguinte. Sete outros prisioneiros tentaram escapar do mesmo trem, mas foram logo recapturados.

Já o fugitivo solitário alcançou a pé a fronteira com os Estados Unidos, delimitada pelo Rio São Lourenço, que na época estava congelado. Ele tentou atravessar o rio caminhando sobre o gelo, mas então encontrou um canal aberto e foi obrigado a desistir. Voltou então para a região canadense, tomou posse de um barco a remos e conseguiu chegar ao território dos Estados Unidos.

Nessa época esse país mantinha-se neutro em relação à guerra na Europa, mas o clima interno era completamente a favor dos ingleses.

1941 – SÓ UM VOLTOU... E PASSOU PELO RIO, RECIFE E NATAL - A Interessante História do Piloto da Luftwaffe Franz von Werra, o Único Prisioneiro de Guerra Alemão Que Conseguiu Voltar Para a Sua Pátria. E no Caminho Dele Estava o Brasil. Uma Vitória da Espionagem Nazifascista em Nosso País e Como Eles Enganaram a Polícia de Vargas.
Foto do tenente Werra em jornais americanos.

O fugitivo conseguiu chegar à cidade americana de Ogdensbur, no estado de Nova York, e entregou-se à polícia. Quando encontrou um guarda caminhando na rua, ele levantou os braços e disse “- Eu me rendo!”.

As autoridades de imigração o acusaram de entrar ilegalmente no país e foi arbitrada uma fiança de 5.000 dólares. No outro dia o advogado do consulado alemão de Nova York chegou à cidade e pagou a fiança. O juiz local encerrou o processo e Franz von Werra estava novamente livre. Naquela mesma noite ele viajou para Nova York, onde a colônia alemã o recebeu com entusiasmo.

No outro dia após a sua chegada, esteve com o Cônsul Geral Dr. Hans Borchers e o General Friedrich von Bötticher, adido militar da Embaixada da Alemanha em Washington. Diante da situação, o consulado alemão lhe deu dinheiro, e crédito para ele comprar ternos caros das melhores lojas de roupas masculinas da Quinta Avenida.

Logo ele começou a sair pelas ruas da “Big City” americana e se apresentar a todos como o “Barão von Werra”. As qualidades de autopromoção de Werra o fizeram rapidamente se tornar famoso em todo o país, enquanto a história de sua fuga se espalhava por todo o mundo.

A chegada de Werra em um joprnal americano.

Ele se deixou fotografar com mulheres bonitas, visitou os teatros da Broadway e as pequenas e intimistas casas noturnas da Times Square. Quase sempre estava acompanhado por uma legião de admiradores. Deu entrevistas e, sem nenhuma surpresa, começou a se gabar por se considerar “um estrangeiro ilegal nos Estados Unidos”. Aos jornalistas, Werra deu uma versão muito embelezada de sua história.

Nesse meio tempo o governo canadense passou a exigir a sua extradição como um reles ladrão, pois ele havia roubado um barco para escapar pelo Rio São Lourenço. Essa era uma forma de contornar a extradição ilegal de um prisioneiro de guerra de um país neutro. O Cônsul Geral Borchers ofereceu-se para enviar aos canadenses um cheque de 35 dólares — o valor que o barco havia custado. Os canadenses recusaram. Eles queriam Werra, não o cheque.

Em 1º de fevereiro, um tribunal federal em Albany, capital do estado de Nova York, julgou o imigrante ilegal Franz von Werra. O tribunal não conseguiu chegar a um veredito final, sendo a audiência adiada e a sua fiança foi arbitrada em 10.000 dólares (algumas fontes afirmam que foram 15.000). Mas o Cônsul Geral Borchers pagou sem pestanejar.

Werra e sua fuga foram noticiados em jornais de todo o mundo.

Nos bastidores, uma batalha feroz por Werra se desenrolava.

Enquanto o público americano estava, em geral, bastante satisfeito com o fugitivo e suas aventuras, as relações entre os Estados Unidos e a Alemanha Nazista pioravam a cada dia e se tornou óbvio que aquele fugitivo era um problema complicado.

Já para o governo inglês, além de Werra ter se tornado um sério aborrecimento pelas muitas fugas empreendidas, havia algo muito pior. Aquele piloto havia se tornado um perigo para a segurança militar, pois testemunhara as técnicas de interrogatório durante a sua prisão e, se conseguisse retornar a Alemanha, levaria para os nazistas toda a sua experiência. Algo que futuramente poderia ser utilizado contra os ingleses.

Nova York em 1941.

Em meio a toda essa confusão, na noite de 24 de março de 1941, Franz von Werra partiu de Nova York sem que as autoridades americanas percebessem.

Ele então embarcou em sua última grande jornada, que o levaria a percorrer metade do mundo, com passagem pelo Brasil.

Rumo ao Sul Caliente.

Passando por uma longa série de mudanças de trem, táxis, ou carros particulares, Werra chegou à cidade de El Paso, no Texas, onde ele poderia misturar-se a uma verdadeira legião de humildes trabalhadores mexicanos, que cruzavam a fronteira do seu país com os Estados Unidos em busca de trabalho nas lavouras texanas.

Cartão postal de El Paso, no Texas, em 1941.

O fugitivo ultrapassou a fronteira em meio aos que retornavam dos Estados Unidos e conseguiu chegar à estação ferroviária de Ciudad Juárez, onde comprou uma passagem de trem destinada à Cidade do México.

Werra viajou na terceira classe, a mais barata, reservada apenas para os mexicanos mais pobres. Mas ele tinha certeza que os funcionários da alfândega mexicana deixariam em paz aqueles que utilizavam aquela parte do trem. E acertou, pois ninguém lhe perturbou naquela longa viagem através do território mexicano.

Trabalhadores mexicanos em uma lavoura nos Estados Unidos na década de 1940.

O alemão sentou-se espremido entre fazendeiros, operários, trabalhadores do campo, moças de pele escura, velhas de cabelos brancos emaranhados e crianças chorando. Em seu relatório afirmou que “Os mexicanos tagarelaram da manhã à noite”. Mas eram pessoas de boa índole, que lhe ofereceram um pouco da sua comida e lhe estenderam jarras de barro com água e vinho. Ele tentou se comunicar com muitos gestos, mas os nativos não entenderam absolutamente nada.

Depois de dois dias e meio viajando 1.970 quilômetro no compartimento superlotado e quente, ele não precisava mais se preocupar em ser reconhecido. Estava suado, com o terno amassado, sujo, coberto com a poeira cor vermelha-tijolo daquele país e que constantemente entrava pelas janelas abertas do vagão.

Estação Central da Cidade do México.

Na noite de 28 de março, Werra chegou à Cidade do México, na Estação Central. A embaixada alemã havia recebido a informação que o fugitivo era esperado naquele dia. Quando a multidão se dispersou, Werra foi até o pátio da estação e viu um grande Mercedes-Benz preto, com o motorista examinando as pessoas que saíam. Ele não prestou atenção alguma a Werra em seu traje mexicano. O piloto então ficou na sua frente e lhe disse sorrindo: “Grüß gott!” (Bom dia!). O motorista o encarou e então compreendeu a situação. Com uma risada larga, abriu a porta do carro, bateu discretamente os calcanhares e disse “Seja bem-vindo à Cidade do México tenente Werra”.

Na embaixada alemã, Franz von Werra se transformou no estudante “Bernd Natus”, o nome que constava em um passaporte falso, que incluía vistos de trânsito para o Peru, a Bolívia e o Brasil.

Consulado da Alemanha Nazista no México em 1940.

Evidentemente tudo foi tratado de maneira muito discreta, sem recepções à imprensa, entrevistas ou celebrações públicas no México. Werra conta que passou o fim de semana recluso na propriedade do cônsul alemão em Cuernavaca e chegou até a fazer algumas compras para sua noiva Elfi, e ainda lhe escreveu contando suas aventuras. Werra visitou vários monumentos astecas e ficou maravilhado diante dessas testemunhas do grande passado do México.

A Fuga Durante a Semana Santa.

Voou do México para o Peru em 1º de abril. Após três dias deixou Lima, onde havia se hospedado com o cônsul alemão, e seguiu em um avião de transporte trimotor Junkers Ju 52 para a Bolívia. Passou uma noite na capital La Paz, e em 9 de abril voou para o território brasileiro em uma aeronave do Lloyd Aéreo Boliviano, pertencente a empresários alemães. Chegou sem problemas a Corumbá, Mato Grosso.

Aquele era um tempo onde viajar de avião no Brasil era para muito poucos e os jornais da época registravam os que tinham esse privilégio. Era normalmente divulgadas as listas de passageiros, que também não eram muitos. Assim é possível compreender a operação de apoio ao tenente Werra no Brasil.

O hidroavião JU-52 Maipó, do Sindicato Condor.

Os jornais informaram que no dia 8 de abril de 1941, partiu do Rio de Janeiro o hidroavião Junkers Ju 52, batizado como “Maipó”, e pertencente à empresa aérea Sindicato Condor. Essa era uma subsidiária da Deutsche Lufthansa, que operava em todo o Brasil. A aeronave tinha como destino Cuiabá, com escala em Corumbá, e transportava onze passageiros, entre eles o engenheiro alemão Gustav Albert Salz, que desembarcou em Cuiabá. Consta então nos jornais que Salz retornou para o Rio um dia após a sua chegada à capital mato-grossense, utilizando o mesmo hidroavião “Maipó” e que na escala de Corumbá embarcou um certo elemento de nome Bruno Krause. Eles dois estavam entre os quatro passageiros que desembarcaram no Rio no dia 10 de abril, que Werra afirma em seu relatório ter sido a data de sua chegada à então Capital Federal.

Seria então Bruno Krause uma nova e falsa identidade de Franz von Werra?

Notícia publicada após a passagem do tenente Werra pela América do Sul, mostrando a rota da sua fuga.

Meses depois que esse piloto alemão passou pela América do Sul e conseguiu chegar ao seu país, jornais cariocas publicaram uma nota vinda da agência de notícias norte-americana United Press, que basicamente resumiu parte da trajetória do fugitivo pelos países sul-americanos e informou que ele vinha com nome falso. Isso pode apontar que os americanos da OSS que estavam no encalço de Werra, tenham perdido a sua pista na capital peruana por ele utilizar os nomes falsos de Bernd Natus e Bruno Krause. Em tempo, a OSS era a sigla em inglês para o antigo Office of Strategic Services, ou Escritório de Serviços Estratégicos, o serviço de inteligência dos Estados Unidos na época da Segunda Guerra e que hoje é conhecido como CIA.

E qual foi à razão do engenheiro alemão Salz realizar essa viagem tão longa e de maneira tão rápida? Seria para ele dar apoio e cobertura a Werra? Não sabemos!

Mas temos conhecimento que o engenheiro Salz havia inicialmente chegado ao Brasil em 29 de maio de 1940, vindo do Peru, passando depois pela Bolívia e utilizando a mesma rota aérea que o “Maipó” percorreu em 10 de abril de 1941 para chegar ao Rio. Outra informação aponta que ele morava no 8º andar de um prédio na Avenida Rio Branco, 128, Centro do Rio. Guardem o endereço!

Rua Paissandu, no bairro do Flamengo, onde ficava a sede da Embaixada Alemã no Brasil em 1941.

Em seu relatório Werra não informa, mas como ele fez isso no México e no Peru, é muito provável que após a sua chegada ele tenha se dirigido a Embaixada da Alemanha, que nessa época ficava na bela e arborizada Rua Paissandu, número 53, no bairro do Flamengo.

Se em seu relatório Werra não comenta nenhuma visita a embaixada do seu país no Rio, entretanto afirma que esteve na sede da empresa LATI, ou Linee Aeree Transcontinentali Italiane. Essa era uma empresa de aviação e também um verdadeiro valhacouto de espiões do Eixo atuando no Brasil. Sua sede ficava no térreo de um edifício na Avenida Rio Branco, 104, Centro do Rio, a poucos metros de onde morava o engenheiro alemão Gustav Albert Salz.

Propaganda da empresa LATI no Rio, com seu endereço.

Seria apenas coincidência?

Independente dessa questão, temos que observar a astúcia das autoridades alemãs que atuaram na fuga do piloto da Luftwaffe, que culminou com a sua chegada ao Rio em plena Quinta Feira Santa. Em um país que nessa época era majoritariamente católico, o feriado da Semana Santa era o melhor momento para qualquer fugitivo estar circulando tranquilamente por aqui.

Mas qual seria a melhor maneira de continuar essa fuga e voltar ileso para a Alemanha?

Uma Empresa Complicada.

Certamente o avião era o melhor transporte para Werra e naquele momento no Brasil só os italianos da LATI poderiam resolver a questão.

Chegada de avião da LATI no Rio – Fonte – Arquivo Time-Life.

A LATI foi oficialmente fundada em 11 de setembro de 1939, dez dias após o início da Segunda Guerra Mundial, como uma empresa aérea destinada a atuar em uma rota que buscava ligar a Itália à América do Sul em menos de 48 horas.

Os voos experimentais foram então iniciados em 3 de outubro de 1939 e a empresa contava com apoio do governo italiano. Tanto que o seu diretor era simplesmente Bruno Mussolini, filho do ditador Benito Mussolini. Com esse aporte a organização da empresa e dos seus voos seguiu bem rápido e em 22 de dezembro ocorreu o voo inaugural partindo do Brasil para a Itália.

Chegada de avião da LATI no Rio – Fonte – Arquivo Time-Life.

Os italianos utilizaram nesta rota da LATI os confiáveis e resistentes aviões trimotores Savoia Marchetti SM.75, SM.76, SM.82 e SM.83. Até 19 de junho de 1940, essas aeronaves conseguiram realizar quase 60 travessias atlânticas, levando principalmente correspondência, a uma média de 260 a 330 kg de malotes por voo, além de alguns passageiros adicionais.

A linha previa uma viagem semanal nas duas direções, com a rota partindo de Roma (Itália), depois Sevilha (Espanha), Lisboa (Portugal), Villa Cisneros (atual cidade de Dakhla, no Saara Ocidental, na época uma possessão espanhola), Ilha do Sal (no Cabo Verde, então colônia portuguesa), Natal, Recife e Rio de Janeiro.

Chegada de avião da LATI no Rio – Fonte – Arquivo Time-Life.

Com o tempo, os voos regulares entre o Brasil e a Europa passaram a transportar importantes figuras nacionais e estrangeiras, além de correios especiais dos diplomatas alemães e italianos, que não podiam ser violados. Muitos desses diplomatas eram na verdade espiões nazifascistas disfarçados. Já nos voos de retorno a Europa seguiram materiais raros e estratégicos, como diamantes, platina, mica, substâncias químicas, livros e filmes de propaganda dos Aliados. Um verdadeiro “buraco” no bloqueio militar e econômico efetuado pelos ingleses contra a Alemanha e a Itália.

Mas tinha mais. O historiador norte-americano Stanley E. Hilton, em seu livro Hitler’s Secret War In South America, 1939-1945: German Military Espionage and Allied Counterespionage in Brazil informou que membros da embaixada americana no Brasil transmitiram aos britânicos que durante as travessias no Oceano Atlântico, os pilotos da LATI estavam visualizando navios britânicos, marcando suas posições em mapas e informando os alemães para enviar seus submarinos e afundá-los.

Mas os voos da LATI não seguiam sem problemas e houve um bem sério!

Em 15 de janeiro de 1941, um SM.75C com a matrícula I-BAYR, partiu de Natal para a ilha do Sal com dez tripulantes e passageiros. Ao se aproximarem de Fernando de Noronha o motor central nº 2 perdeu potência e o piloto foi forçado a descer a aeronave no mar. Ninguém que estava a bordo foi encontrado com vida. Existiu na época a informação que esse acidente poderia ter ocorrido pela sobrecarga de minerais estratégicos sendo contrabandeados para o aliado alemão, ou por uma bem montada operação de sabotagem dos ingleses.

Houve outras situações negativas envolvendo a LATI e sua atuação no Brasil, mas agora uma de suas aeronaves serviria para uma missão diferenciada; transportar clandestinamente um combatente das forças armadas nazistas para a Alemanha. 

A Viagem Para o Nordeste do Brasil.

Como comentamos anteriormente, Franz von Werra chegou na Quinta Feira Santa ao Rio de Janeiro. Já a sua partida se deu no dia 13 de abril de 1941, Domingo de Páscoa. E o que ele fez no Rio enquanto ali esteve? Não sabemos, pois nada deixou escrito em seu relatório.

Provavelmente ele ficou mesmo escondido na embaixada, ou na casa de algum funcionário. Até porque a espionagem britânica atuava então fortemente no Brasil e recapturar Werra, ou mesmo matá-lo, seria algo bastante desejado.

Campo do Ibura durante a Segunda Guerra Mundial.

Nos jornais cariocas não existe nenhuma informação da partida de alguma aeronave da LATI para o Nordeste do Brasil no dia 13. Mas no Diário de Pernambuco, encontrei uma nota (abaixo) que comenta sobre a aterrissagem da aeronave Savoia Marchetti SM.83, prefixo I-ASSO, no Campo do Ibura, Recife. Eram 13h50min do domingo e a bordo vinha um único passageiro – Berd Notus.

Após desembarcar e diante de sua situação, seria de esperar que esse único passageiro agisse de maneira discreta e sem chamar a atenção. Mas foi tudo exatamente o contrário.

Notus (Werra) não resistiu e começou a dar declarações ao encontrar o jornalista do Diário de Pernambuco que estava de plantão no Ibura e acompanhava os pousos e as decolagens das aeronaves. Apresentou-se como “estudante” e “filho do ministro da Alemanha no México” e chegou ao cúmulo de afirmar que “vai à Alemanha alistar-se na Luftwaffe” e que “esperava lutar ainda esse ano”. Só faltou dizer que era um “Barão”!

Era uma total falta de senso de segurança, muita irresponsabilidade e, certamente, um extremo excesso de arrogância. Aparentemente o tenente alemão nem se importou com a presença de Gino Portesi, um capitão da Regia Aeronáutica, a força aérea fascista, que além de ter sido o piloto do avião que trouxe Werra do Rio, era o subdiretor no Brasil da Ala Littoria, a companhia aérea nacional italiana e controladora do capital da LATI.

Através de um documento (acima) da Delegacia de Ordem Política e Social, DOPS, de Recife, produzido em 5 de maio de 1942, descobrimos que realmente o piloto alemão quase colocou tudo a perder no Campo do Ibura. Nesse documento, produzido um ano depois da passagem de Franz von Werra pela capital pernambucana, existe a informação que um inspetor da Polícia Marítima desconfiou do jovem falastrão que se dizia “estudante” e apresentou o passaporte nº 298. Mas ficou só nisso.

A verdade é que Werra passou pelo Brasil e a polícia do ditador Getúlio Vargas nem se deu conta e nem tomou conhecimento. Isso se ele não recebeu algum tipo de ajuda de alguma autoridade brasileira. Situação que não duvido, dado o grande número de simpatizantes nazifascistas em nosso país.

Esquema de cores de um trimotor SM.82 da empresa LATI.

Na mesma tarde o fugitivo embarcou em um moderno Savoia Marchetti SM.82 de prefixo I-BATO. Era uma aeronave recém-construída, que transportava dez passageiros, possuía um piloto automático, banheiro, rádios aprimorados e dois tanques de combustível adicionais. Além da tripulação, o I-BATO transportava oito passageiros, sendo cinco alemães e três italianos, entre eles Werra e Portesi. A aeronave decolou do Ibura utilizando a potência máxima de seus três poderosos motores Alfa Romeo 128RC e chegou a Natal cerca de uma hora depois.

No Campo de Parnamirim.

A pista era longa, mas de terra batida. Entretanto era boa, bem preparada, com 700 metros de extensão, 40 de largura e o SM.82 aterrissou sem problemas no chamado Campo de Parnamirim. Sabemos que Natal entrou na rota de retorno da LATI porque Recife não possuía em seu campo de pouso uma pista longa o suficiente para permitir a decolagem das aeronaves completamente carregadas.

A aeronave chegou pilotada por Guido Pavia, com Bruno Palermo como copiloto, Michele de Toma como radiotelegrafista e Alfredo Piacentini como mecânico. Foi informado que transportava “grande quantidade de mercadoria e malas postais”.

No antigo jornal natalense O Diário, futuro Diário de Natal, encontrei a informação que normalmente o avião da LATI vinha para a capital potiguar na sexta feira, mas aquele chegou em pleno Domingo de Páscoa e isso aparentemente não foi visto como estranho ou anormal.  

Os tripulantes e passageiros foram então acomodados no que era conhecido como “Hotel da LATI”, próximo do hangar da empresa. Não existem maiores informações sobre esse local, mas tudo indica que era tipo uma estalagem, sem maiores confortos, servindo apenas para acomodar os que embarcariam na manhã seguinte para a travessia do Atlântico Sul.

Situação atual da antiga casa de apoio construida para os aviadores franceses no Campo de Parnamirim.

Próximo ao hangar dos italianos existia outros dois Hangares, uma casa de apoio, uma estação de rádio e outras infraestruturas. Elas pertenciam aos franceses da Air France e algumas delas estavam ali desde o início da década anterior. Inclusive a casa de apoio havia servido em algumas ocasiões ao mítico piloto francês Jean Mermoz, quando das suas passagens por Natal. Não era sem razão que nos primeiros tempos de sua utilização, aquele local era conhecido como o “Campo dos Franceses”.

Não sabemos de nenhuma outra movimentação específica no Campo de Parnamirim naquela tarde e início da noite de 13 de abril de 1941, mas sabemos que nessa época o aeroporto estava com uma boa movimentação de estrangeiros, com vários deles circulando por Natal e as regiões Norte e Nordeste. Segundo os jornais natalenses, poucos dias antes de Werra desembarcar no Campo de Parnamirim, em 5 de abril, esteve em Natal uma “missão comercial japonesa” com quatro membros. Eles viajavam em um hidroavião do Sindicato Condor batizado como “Curupira”, que depois de Natal seguiu para Belém do Pará.

Situação atual do antigo hangar da LATI no Campo de Parnamirim.

E após a chegada do fugitivo Werra ao Rio Grande do Norte, ele teria vindo para Natal? Acho difícil!

Era algo que chamaria bastante a atenção para alguém com um passado que, se não era muito conhecido pela população local, certamente era conhecido de muitos estrangeiros que circulavam na cidade, a grande maioria deles de países contrários aos interesses da Alemanha, Itália e Japão, os países do Eixo. E em caso de Werra ser reconhecido, coisa que poderia acontecer com a sua terrível e constante indiscrição, logo os ingleses estariam no seu encalço.

Além do mais, se havia alguma coisa interessante naquela parte do Brasil para ser vista por um piloto da Luftwaffe, estava no próprio Campo de Parnamirim onde ele havia desembarcado. Pois dali era possível ver como o dinheiro do governo americano alterava drasticamente aquele lugar.

A grande base de Parnamirim Field durante a Segunda Guerra Mundial.

Desde novembro de 1940 que o governo de Franklin Delano Roosevelt, utilizando a fachada de uma das empresas de aviação do país, estava construindo vários aeroportos em todo o Brasil, sendo o maior o de Parnamirim. Pelo mesmo motivo, estes eram empreendimentos destinados à aviação civil. Mas que sem muitas alterações poderia acomodar centenas de aeronaves militares e com diversas finalidades.

Diante daquela situação e da oportunidade, acredito que dificilmente Werra e os outros ocupantes deixaram de dar uma espiadinha no que estava acontecendo naquela grande obra e levar essa informação aos seus superiores em Roma e Berlim. E se assim fizeram, certamente visualizaram a partir do hangar da LATI e com a utilização de binóculos, pois as construções estavam a 1.700 metros de distância.

Aeronave da companhia aérea LATI – Este tipo de aeronave opera voos entre Roma e Rio de Janeiro – Fonte – http://www.spmodelismo.com.br/howto/ac/lati.php

No outro dia, por volta das cinco da manhã, o Savoia Marchetti SM.82 de prefixo I-BATO decolou de Natal.

O Fim da Sua Sorte.

A estrela da sorte brilhou mais uma vez para Franz von Werra.

A aeronave italiana cruzou o Atlântico Sul sem problemas. Na sequência aterrissou em Barcelona e Werra trocou de avião pela última vez. Na quinta-feira, 17 de abril de 1941, ele chegou a Roma, desembarcando no Aeroporto de Guidonia, pisando em solo do Eixo pela primeira vez em mais de meio ano.

Werra estava livre e sua fuga foi bem-sucedida. Ele voou para a Alemanha a bordo de um bimotor Junkers Ju 90 e finalmente chegou em Berlim, no Aeroporto de Tempelhof, onde sua noiva Elfi e os amigos lhe esperavam.

Haviam decorrido exatamente 32 semanas desde a derrubada do seu avião de caça e sob todos os aspectos, a sua audaciosa fuga foi realmente prodigiosa.

Foi algo que o levou desde os campos de prisioneiros da Inglaterra, através do Atlântico, até chegar ao Canadá. Depois atravessou o congelado Rio São Lourenço e entrou clandestinamente nos Estados Unidos. Mesmo em meio a muita divulgação, ele conseguiu burlar as autoridades daquele país e atravessou sua larga extensão até o México, circulando completamente incógnito. Finalmente chegou à América do Sul, passou sem problemas pelo Brasil e em poucos dias atravessou o Atlântico Sul até a Europa.

O agora capitão Franz von Werra.

Rapidamente Franz von Werra tornou-se um herói em toda a Alemanha.

Houve um encontro com Adolf Hitler, que lhe concedeu uma alta condecoração.

Já Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda do Reich alemão, celebrou freneticamente o jovem Werra, que adorava ser o centro das atenções. Foi Goebbels que afirmou que durante o curso de sua fuga, Werra escreveu regularmente cartões postais para a sua irmã e nunca se esqueceu de enviar postais para os oficiais ingleses que haviam lhe interrogado.

O intrépido aviador foi promovido a capitão e chegou a ser recebido pelo obeso Hermann Goering, o todo poderoso chefe da força aérea alemã. Nesse meio tempo von Werra se casou com a sua noiva, na melhor tradição da pompa nazista.

O antigo prisioneiro relatou ao comando alemão sobre seu tratamento como um prisioneiro de guerra e com base em sua própria experiência esses relatos ajudaram a melhorar as técnicas para os pilotos alemães capturados atrapalharem ao máximo os britânicos no momento dos interrogatórios. Inclusive consta que esses relatos ajudaram a melhorar o tratamento dos prisioneiros de guerra dos países aliados presos na Alemanha.

O agora capitão Franz von Werra retornou então à luta e foi inicialmente enviado para frente russa. Nesse front de guerra ele elevou até julho de 1941 o seu registro para 21 vitórias aéreas. Quando sua esquadrilha foi retirada da Rússia, ele passou a voar em patrulhas sobre o Mar do Norte.

Em 25 de outubro de 1941, apenas sete meses depois de seu retorno à Alemanha, Werra estava realizando um voo de rotina, em mais um patrulhamento solitário, quando a sua sorte acabou. Ele desapareceu sobre o Mar do Norte, nas proximidades da cidade holandesa de Vlissingen. Provavelmente foi uma falha no motor da aeronave que o levou ao desastre e seu corpo nunca foi encontrado. Ele viveu apenas 27 anos.

O ator alemão Hardy Krüger no papel do tenente Werra.

Em 1957 a história de Werra foi tema de um filme chamado The One That Got Away, estrelado pelo alemão Hardy Krüger no papel principal. Consta que a película produzida pelo cinema inglês conseguiu uma grande bilheteria na Europa, principalmente na Alemanha.

Atualmente o avião com o qual ele caiu na Inglaterra, está em exposição no Museu da Força Aérea Real em Folkestown, Kent, sul do país.

APROVEITE A GUERRA ENQUANTO PODE, PORQUE A PAZ SERÁ TERRÍVEL – A MOTIVAÇÃO E A RESISTÊNCIA DO SOLDADO ALEMÃO NO FINAL DA SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

No Brasil sempre existiu uma polêmica envolvendo a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) em solo italiano na Segunda Guerra Mundial e trata sobre seus principais adversários – os militares alemães.

Desde muito jovem escutei essas coisas aqui em Natal, principalmente quando estava na loja do meu pai, lá no tradicional bairro da Ribeira. Ficava ouvindo a conversa dos mais velhos, que de quando em vez rememoravam a participação do Brasil na guerra e o que não faltavam eram críticos a ida das nossas tropas a Itália. Eu ouvia coisas do tipo “– A FEB lutou com soldados alemães velhos e cansados”. Ou algo como “– As tropas alemãs que lutaram na Itália não tinham treinamento adequado e foi tudo muito fácil para os brasileiros”. Tinha também “– Os alemães que combateram a FEB eram pessoas que anteriormente não seriam aproveitadas nas tropas de Hitler, mas com a guerra chegando ao fim os líderes nazistas empurraram para frente de combate qualquer tipo de gente”. Depois descobri através de textos antigos que esse tipo de pensamento em relação a FEB, de uma maneira ou de outra, já vinha acontecendo desde o fima da Segunda Guerra Mundial.

Soldados Brasileiros da FEB treinando com morteiros – Colorizada por Ricardo Morais – @imagemepoesia

Talvez por haver escutado essas críticas, eu sempre me perguntei quem eram esses alemães que combateram a FEB?

Sei que existe muita informação sobre as unidades germânicas que enfrentaram os brasileiros na Itália, a maioria delas veteraníssimas nas várias frentes de combate que as forças de Hitler atuaram. Mas confesso que sempre quis saber algo mais sobre esses combatentes, mas por aqui esse tipo de informação é limitada.

Comboio de viaturas da FEB rodando pela Itália – Colorizada por Ricardo Morais – @imagemepoesia.

É verdade que no Brasil foi lançado o livro As duas faces da glória: a FEB vista pelos seus aliados e inimigos” (São Paulo. Ed. Planeta, 2015), do jornalista William Waack“. Esse livro, tido como polêmico na sua essência, até que trouxe alguns relatos e memórias de militares alemães que atuaram na Itália contra a FEB, mas ele não respondeu aquilo que mais desejava saber – Quais os motivos para as forças armadas da Alemanha Nazista a continuar lutando na Itália e em outros locais, quando a guerra já estava claramente perdida?

A Visão Alemã da “Ponte Longe Demais”

Recentemente eu tive a oportunidade de ler o interessante livro “It Never Snows in September” – The German View of Market-Garden and The Battle of Arnhem, September 1944” (“Nunca Neva em Setembro” – A visão alemã de Market Garden e a Batalha de Arnhem, setembro de 1944), de autoria do norte-americano Robert J. Kershaw.

Esse livro foca nas batalhas travadas no sul da Holanda, ou Países Baixos, entre os dias 17 a 25 de setembro de 1944, como parte da famosa Operação Market Garden, o maior lançamento de paraquedistas que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.

Não vou detalhar os fatos envolvendo essa operação, já bastante esmiuçado em livros, filmes, documentários e na internet, mas basicamente essa história se resume assim – Após os desembarques aliados no dia 6 de junho de 1944 na Normandia, França, as forças alemães recuaram e perderam a França e a Bélgica. No começo de setembro os Aliados estavam na fronteira da Holanda, com os alemães recuando e se nada fosse feito, logo depois entrariam na Alemanha. Foi quando o general inglês Bernard Law Montgomery decidiu realizar um grande ataque. A ideia básica seria o lançamento de 34.000 paraquedistas ingleses, norte-americanos e poloneses na Holanda, que deveriam conquistar nove pontes, sendo os alvos principais as pontes sobre os rios Waal e o Baixo Reno, nas cidades de Nimegen e Arnhem. Os paraquedistas deveriam lutar e manter as suas posições, enquanto uma grande quantidade de unidades blindadas e de infantaria Aliadas, com mais de 50.000 homens, partiriam da Bélgica. Após o encontro das duas forças, eles avançariam sobre a Alemanha.

Paraquedas abrem no alto enquanto ondas de paraquedistas pousam na Holanda durante operações do 1º Exército Aerotransportado Aliado. Setembro de 1944.

A questão é que os Aliados saltaram em uma região onde estavam acampadas divisões blindadas, de paraquedistas e tropas de infantaria do Exército Alemão e das temidas e fanáticas unidades SS.

Ao final de oito dias de combate mais de 17.000 militares das forças de Montgomery foram mortos, feridos, ou caíram prisioneiros dos alemães. Os blindados aliados não conseguiram se unir aos paraquedistas e estes, apesar de muito heroísmo, foram subjugados. No final das contas, o estrago foi tanto que Arnhem só seria libertada no final da guerra na Europa e, como sempre, quem mais sofreu foram os civis. Nos meses seguintes após os combates, o oeste da Holanda ficou sem fornecimento de alimentos e durante o inverno de 1945 morreram mais de 20.000 pessoas.

Operação Market Garden.

Os fatos ligados a história da Operação Market Garden são bem conhecidas no Brasil através do livro “Uma Ponte Longe Demais” (A Bridge Too Far), do inglês Cornelius Ryan e publicado em 1974. O resultado desse trabalho serviu de base para um filme homônimo rodado em 1977, que obteve um grande sucesso e foi dirigido pelo também inglês Richard Attenborough. Muitos outros materiais foram criados com foco nesse grande fracasso militar. Só que o livro de Robert J. Kershaw, lançado pela primeira vez em 1990, fez algo bem diferente dos demais, pois ele buscou uma perspectiva que contemplou as experiências dos soldados alemães comuns envolvidos nesses combates e no qual eles saíram vitoriosos.

Estávamos Preparados Para Continuar Lutando

Segundo Kershaw, os documentos alemães para este período são incompletos e por isso ele recorreu a relatos contemporâneos de testemunhas oculares e grande parte deste livro se preocupou com experiências individuais.

Hitler nos primeiros anos do Nazismo na Alemanha.

Na época de sua pesquisa ele teve a oportunidade de conversar com antigos combatentes do Exército Alemão (Wehrmacht), das tropas SS (Waffen SS) e da Força Aérea Alemã (Luftwaffe). Nessa última os principais entrevistados foram os sobreviventes das famosas Fallschirmjäger, os paraquedistas alemães. Além das entrevistas o autor teve acesso a diários pessoais e correspondências não publicadas para leitura. Mas o autor não deixou de ir aos arquivos na Holanda, Alemanha, Inglaterra, França, Bélgica, Estados Unidos e outros locais, bem como percorreu as áreas dos combates na Holanda e conversou com os sobreviventes locais daqueles dias intensos e complicados.

No livro “It Never Snows in September”, Kershaw escreveu nas páginas 53 a 62 um texto intitulado “Beliefs and concerns” (Crenças e preocupações), onde o autor norte-americano basicamente respondeu ao meu questionamento. E muitas das respostas vieram dos próprios alemães que Kershaw entrevistou.

Como, por exemplo, o cabo mensageiro Alfred Ziegler, um jovem de 19 anos, que fazia parte da equipe antitanque da 9ª Divisão Panzer SS Hohenstaufen. Ziegler relembrou a atmosfera e a situação da sua unidade pouco antes de chegar à cidade belga de Mons (285 km de Arnhem), onde a unidade foi reorganizada como uma companhia de infantaria de resposta rápida na véspera da famosa Operação Market Garden:

“O moral estava bom, mas não tínhamos ilusões de que a guerra tinha acabado. A piada quando fomos enviados para Tamopol, na Rússia, era: “Estamos a caminho para escolher um bom quartel na Sibéria”. As coisas melhoraram com a invasão da Normandia, agora tínhamos mais probabilidade de acabar cortando lenha no Canadá! Um dos meus melhores amigos me disse em segredo: “Não banque o herói, a guerra está perdida”.

Já Wolfgang Dombrowski, outro membro da SS na Holanda em 1944, se colocou de maneira que o autor definiu como “filosófico, mas em um sentido prático”:

“Nós pensávamos que a guerra provavelmente acabaria logo. Mas você deve ter em mente que as classes de tropas tinham apenas 18 ou 19 anos. Nossos oficiais tinham 24 ou 29. Eles ainda eram jovens! As questões mais profundas da vida não nos preocupavam muito. Estávamos preparados para continuar lutando”.

Os reveses catastróficos sofridos pelos militares alemães em todas as frentes de combate no verão de 1944 serviram para ressaltar o principal fator que os manteve unidos até o fim: uma crescente consciência de que a Pátria estava agora em perigo. Este fator por si só provavelmente encorajou a vontade de resistir mais do que toda a propaganda nazista.

O Medo Universal Não Era a Morte

Kershaw apontou através de seus estudos e entrevista que o medo de perder a guerra raramente era expresso abertamente e certamente não era mencionado pelos oficiais e suboficiais aos soldados. Dúvidas sobre um final feliz teriam enfraquecido a resistência. E o único final feliz concebível naquela época era defender as fronteiras da pátria e negociar para preservar o status quo pré-guerra com a ajuda das novas “armas maravilhosas”, a V1 e a V2. Ninguém poderia imaginar as consequências de uma derrota total. Mesmo no meio do desastre do Bolsão de Falaise[1], na Normandia, um cabo assim escreveu para a sua esposa em 18 de agosto de 1944:

“Tivemos que recuar às pressas. O resto das unidades recuou sem disparar um tiro e nos fez ficar para trás para cobri-los… Eu me pergunto o que será de nós. O bolsão está quase fechado, e o inimigo já está em Rouen. Acho que nunca mais verei meu lar. Apesar de tudo, lutamos pela Alemanha e por nossos filhos, e não importa o que aconteça conosco. Estou finalmente esperando que um milagre aconteça e que eu veja meu lar novamente”.

Para Kershaw, de qualquer forma, o soldado alemão nas frentes de combates nunca encontrou a paz e a solidão necessárias para pensar no curso da guerra. Sua preocupação imediata era a mera sobrevivência. O medo universal não era a morte, mas algo pior: que ninguém sairia da guerra com vida. Ninguém queria morrer heroicamente ou sofrer mutilação naquela altura do campeonato. Para a maioria, e particularmente para os veteranos, o período de maior ansiedade era a espera nas áreas de reunião antes de partir para a troca de tiros na linha de frente. Os substitutos novatos demonstraram uma ignorância feliz, até receberem o duvidoso privilégio da experiência de combate.

Portanto, a sobrevivência era uma questão mais importante na frente do que a política e o partido. De vez em quando havia reclamações sobre os “chefões do partido” em casa. Quando as cartas das suas famílias mencionavam os escândalos de membros importantes do partido, a resposta geralmente era: “Espere até chegarmos em casa e acertaremos as contas…”

O interessante é que Kershaw aponta que tais declarações raramente eram levadas a sério pelos oficiais superiores que censuravam as correspondências, dando pouca atenção a tais manifestações. Afinal, reclamar era prerrogativa do soldado na frente de batalha. Desabafar fez mais bem do que mal. O mais significativo foi que as reclamações sobre os líderes do partido nunca chegaram a Hitler; talvez ainda houvesse uma medida de confiança ou fé cega nele. Um comandante de batalhão ecoou as opiniões de seus homens quando escreveu depois da guerra:

“Não sabíamos quão tensa ou desesperadora era a situação no front, nem sabíamos nada sobre o impacto negativo que as diferenças entre Hitler e seus generais tiveram nas decisões operacionais”.

Poder de Combate

Robert J. Kershaw comentou que era inevitável que o súbito afluxo de pessoal clinicamente inapto e mal treinado causasse uma séria deterioração no moral das forças alemãs estacionadas na Holanda. Mas os soldados ainda dependiam de transmissões de rádio, jornais de primeira linha, correspondências e ordens para acompanhar a situação geral.

O que um soldado viu em primeira mão teve um impacto profundo, e a retirada da França abriu os olhos de muitos, mas não era esperada uma oposição em massa à guerra. A disciplina estava profundamente enraizada, e os soldados alemães apreciavam as medidas organizacionais e de controle instituídas nos vários destacamentos de recepção. Os horrores da retirada prenunciaram um colapso potencial que poucos poderiam imaginar ou mesmo pensar inconscientemente.

De fato, o “sistema” os manteve juntos. A formação de uma linha defensiva no início de setembro ao longo do Canal Albert, na Holanda, foi um excelente exemplo da resiliência do Estado-Maior Alemão em retardar a derrota total.

Kershaw aponta que o autor Martin van Creveld[2] escreveu trabalhos sugerindo que o Exército Alemão infligiu mais baixas per capita em seus inimigos do que qualquer um de seus adversários Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Isto foi alcançado através do desenvolvimento de uma infraestrutura militar dedicada quase exclusivamente às operações. Construído para atender às necessidades operacionais, sociais e psicológicas do combatente; produziu por unidade uma maior concentração de “poder de combate” do que qualquer outro Exército Aliado.

O Estado-Maior Alemão desempenhou um papel fundamental em tudo isso. O planejamento inteligente e preciso do quartel-general, que continuou a funcionar apesar da aniquilação das unidades de combate, desempenhou um papel fundamental na restauração da ordem entre os comandantes da frente, sobrecarregados por crises locais. Os soldados alemães ansiavam por ordem e lutavam melhor quando estavam organizados.

Nos níveis mais baixos, os laços de camaradagem também mantinham a coesão. Dificuldades compartilhadas produziram amizades próximas, que significavam mais do que identificação com Hitler e o Terceiro Reich quando se tratava de lutar e morrer. O exército levou esses laços em consideração ao estruturar o sistema de treinamento que o apoiaria para o serviço ativo. As divisões eram responsáveis ​​por treinar seus próprios recrutas em batalhões de substituição, os Feldersatz, cujas três companhias tinham como objetivo alimentar os três regimentos que formavam a divisão. Após a conclusão do treinamento, os recrutas eram designados para os “Batalhões em marcha”, que eram unidades inteiras que podiam ser enviadas como reforços em qualquer estágio da jornada até o front, se a situação local exigisse.

Esse era o sistema adotado pelos centros de recepção localizados atrás da linha de frente no sul da Holanda. Lá os “Batalhões em marcha” eram frequentemente empregados por necessidade, antes que tivessem a chance de formar uma identidade como unidade. Uma das maneiras de promover a identidade era nomear a unidade em homenagem ao seu oficial em comando. Por exemplo, durante as lutas dos alemães contra os Aliados na Operação Market Garden, os Kampfgruppen (Grupos de combate) “Walther”[3], “Chill”, “Möller” e outros, seguiram esse padrão.

O quartel-general conhecia a personalidade dos oficiais em questão e, com o tempo, os soldados podiam sentir certo grau de associação com seus comandantes. O sistema era preferível à atribuição de um número as unidades, um número que era antes de tudo impessoal.

Verrückte Helmuts

O contato pessoal com as famílias em casa também teve impacto no moral do combatente na frente de batalha. Apesar das restrições, as cartas que chegavam de casa não correspondiam necessariamente aos boletins oficiais publicados. Isso podia ser perturbador para alguns. Entretanto, a principal preocupação dos soldados na frente de batalha era a segurança de suas famílias, expostas a terrível e destruidora campanha de bombardeios dos Aliados.

Kershaw descobriu o caso da Senhora Doris Dantscher, que tinha 71 anos quando sofreu os efeitos dos bombardeios em Munique. A carta escrita aos filhos em 20 de julho de 1944 é típica das centenas recebidas pelas tropas no front. Ela tinha acabado de ser evacuada para a cidade de Münnerstadt, na Baixa Francónia.

“Desde quinta-feira, não temos mais um teto sobre nossas cabeças; perdemos tudo. Tudo aconteceu tão rápido que não conseguimos salvar nada; Tudo o que resta é o que estava no porão, que sobreviveu… a casa está completamente queimada… O pai conseguiu limpar a entrada do porão nos fundos com uma pá. É impossível entrar pela rua, você tem que descer a Zentnerstraße e passar pelo jardim para entrar… Johanna me tirou desse inferno na segunda-feira e me levou para Münnerstadt. O pai ainda está em Munique, e estou muito preocupada porque ele tem que viver e dormir no porão… Espero que ele ainda esteja vivo, porque nos dias 18 e 19 houve ataques intensos em Munique… Ainda não consigo me acostumar com o fato de que não temos mais um lar. Em nosso infortúnio, temos a sorte de ter a tia Johanna, com quem conseguimos nos recuperar. Quem diria que quando você saiu da casa dos seus pais pela última vez, seria para sempre. Tudo o que foi querido para nós teve que ser abandonada… Não pudemos nos mover por cinco dias. Não havia água, nem eletricidade, nem gás. Foi um alívio poder lavar roupa em Münnerstadt.

Essas cartas, que muitas vezes chegavam atrasadas, tinham um efeito particularmente negativo no moral dos envolvidos. Às vezes, essas notícias nem eram comunicadas. Quando isso acontecia, oficiais superiores tentavam amenizar o golpe por meio de camaradas que eram amigos próximos da pessoa em questão.

Mas os soldados alemães estavam constantemente preocupados com suas famílias e por vezes surgiam reclamações como esta – “É uma inutilidade de lutar, se nossas famílias estão sendo mortas em casa“. Ou também – “Por que ouvir discursos sobre armas maravilhosas quando a Luftwaffe não pode mais abater bombardeiros inimigos!

Kershaw aponta que as notícias das atrocidades perpetradas pelo Exército Vermelho na Prússia Oriental e as tragédias contínuas causadas pela ofensiva de bombardeio criaram os chamados “Verrückte Helmuts” (Helmuts Loucos). Um veterano paraquedista relatou que “havia um em cada pelotão“. Homens que perderam tudo — famílias, namoradas, casas — ficaram despersonalizados pelo desespero. Eles não tinham mais nada pelo que viver, exceto talvez lutar e vender suas vidas para se vingar. Esses indivíduos imprevisíveis se tornaram adversários mortais para o inimigo, apesar de seu treinamento inadequado, mas sua imprudência fanática tinha que ser constantemente monitorada por seus comandantes. 

Queimado Suas Pontes

Todos esses fatores tiveram um impacto coletivo na qualidade da luta na frente. Talvez a principal emoção que motivou a tenacidade alemã nessa fase da guerra, e que muitas vezes não é reconhecida, foi o medo de que logo estariam lutando em suas próprias ruas e praças, juntamente com o desejo de proteger sua terra natal e suas famílias contra os mesmos crimes que foram perpetrados pelos exércitos alemães em suas próprias campanhas até então.

Seria incorreto dizer que isso era um sentimento de culpa sobre a guerra, já que a extensão total da matança sistemática de judeus e “indesejáveis” estava apenas gradualmente começando a se tornar pública. A maioria dos alemães, como eles próprios afirmam, desconhecia as atrocidades perpetradas no submundo administrado pelo braço político da SS. Mas havia evidências visíveis o suficiente para deixar qualquer um desconfortável.

Isso produziu uma resignação fatalista: uma consciência de que o Reich havia “Queimado suas pontes[4] e que a única saída era continuar lutando. Na época, isso não estava claro para o combatente, que já estava cansado da pressão dos acontecimentos. Começava a surgir um sentimento de mal-estar, que era sentido, embora ainda não definido.

Fritz Fullriede

O diário do Oberstleutnant (tenente-coronel) Fritz Fullriede[5], que tantas vezes criticou a condução das operações durante esse período, não mostra nenhuma emoção. O que ele escolheu não contar é, em alguns aspectos, mais significativo do que o que ele contou. Depois de discutir a situação com seus camaradas no refeitório dos oficiais em Utrecht, Holanda, no dia 2 de setembro, ele escreveu em seu diário:

“A Frente Ocidental acabou, o inimigo já está na Bélgica e na fronteira alemã; Romênia, Bulgária, Eslováquia e Finlândia pedem paz. É exatamente como em 1918”.

Para aquela geração, o ano de 1918 foi o equivalente ao ano zero. Teríamos que começar tudo de novo, do zero.

Em 1944, a Wehrmacht e a Waffen SS não estavam totalmente imunes às atrocidades que haviam cometido até então. As divisões que estavam em campo na Frente Oriental, que eram a maioria naquela época, testemunharam o tratamento dado aos guerrilheiros e prisioneiros soviéticos. Consequentemente, pouca misericórdia era esperada dos Aliados como um todo e nenhuma dos Russos. Dos 5,7 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, 3,3 milhões morreram em cativeiro. E aqueles infelizes alemães que foram cercados pelos soviéticos após o colapso do Grupo de Exércitos do Centro[6], estavam recebendo o mesmo tratamento.

Kershaw informa que relatórios oficiais alemães se referiam aos guerrilheiros como “bandidos“. Não havia lugar na mentalidade militar alemã organizada, ou em sua doutrina tática, alguma norma ou mesmo ideias para lidar com civis irregulares. Essa incapacidade da Wehrmacht de compreender a mentalidade da “guerrilha” foi responsável por sua incapacidade de enfrentar levantes de Resistência e pela utilização em larga escala de um terror cruel e sádico para combatê-las. Historicamente, esse tem sido o caso desde a Guerra Franco-Prussiana de 1870 até a Primeira Guerra Mundial e igualmente na Segunda.

Milhares de soldados foram designados para tarefas policiais nas áreas de retaguarda da Frente Oriental. Incapaz de lidar com o mesmo fenômeno na Frente Ocidental, atrocidades como as de Vercors[7] e Oradour-sur-Glane[8] ocorreram. Os guerrilheiros holandeses, capturados ou suspeitos, eram frequentemente fuzilados de maneira rápida. Houve execuções perto de Arnhem pouco antes do desembarque dos paraquedistas.

Em 1944, a derrota do Exército Alemão na Holanda e no resto da Europa era iminente. Mesmo que houvesse dúvidas sobre as qualidades de liderança do Führer Adolf Hitler após os desastres no Leste e no Oeste no verão de 1944, a exigência dos Aliados de “Rendição incondicional” provocou uma resposta visceral e instintiva de que não havia outra saída a não ser continuar lutando.

Essa situação obscureceu as diferenças entre nazistas e antinazistas. Uma pesquisa dos Aliados com prisioneiros alemães revelou que, em uma unidade típica, nazistas fanáticos, nazistas apolíticos e antinazistas eram praticamente iguais. Os nazistas eram consideravelmente mais numerosos entre os oficiais subalternos e suboficiais, e estes últimos, como espinha dorsal das tropas, escolheram continuar lutando.

Durante as entrevistas, ao perguntar a um antigo cabo o que ele pensava em relação à derrota da Alemanha próximo do final da guerra, ele me disse que certa vez perguntou a um suboficial de sua inteira confiança o porquê deles não se renderem, se tudo estava praticamente perdido?

Sua resposta evasiva e sarcástica, cheia de humor negro, foi: “Aproveite a guerra enquanto pode, porque a paz será terrível.

E O Que Tem Isso Com a FEB?

Realmente, como comentamos anteriormente, o material produzido pelo norte-americano Robert J. Kershaw está focado na atuação dos alemães na Holanda em setembro de 1944, mesmo mês em que a FEB se engajava nos seus primeiros combates na Itália.

Mas, ao ler o livro de Willian Waack (páginas 298 a 290), o autor parece não deixar muitas dúvidas que o alemão que combatia na Holanda era o mesmo que estava na Itália.

Transcrevo essas páginas e deixo os leitores à vontade para considerarem essa minha opinião correta, ou não!   

“Quando se considera a situação sem saída dos alemães a partir de meados de 1944, ainda assim se pode estabelecer a hipótese plausível de que o soldado raso alemão, sem grandes possibilidades de ouvir rádios estrangeiras (a população “em casa” tinha mais acesso a esse tipo de informação “inimiga” do que o soldado na frente), nutrisse àquela altura algum tipo de crença na possibilidade de uma vitória. Para oficiais com discernimento médio, em posições de comando, as dificuldades de abastecimento, a superioridade material inimiga e o constante movimento de recuo – fora as assombrosas notícias sobre derrotas alemãs na Frente Russa – deveriam constituir, no mínimo, motivo para alguma reflexão. Para oficiais inteligentes, como o general von Gablenz ou o coronel Herre (que muito antes do final da guerra já se preparava para o seu prosseguimento sob a forma da “guerra fria”), em 1944 o conflito era abertamente dado como perdido para a Alemanha. A motivação do alemão que enfrentou brasileiros na Itália a partir de outubro de 1944 teria sido a crença na vitória? A motivação ideológica? O fanatismo do desespero?

Não. Nenhum dos sobreviventes aponta a “motivação ideológica” como elemento central para prosseguir numa luta desigual contra um adversário reconhecidamente superior. Deve ser verdade. A grande maioria dos entrevistados passara por horrores em outras frentes e pensava, sobretudo em sair viva de uma guerra na qual já não via muito sentido. “O general von Gablenz tinha um jeito especial de pedir maiores esforços às tropas”, recorda-se o ex-major Goetze. “Ele se dirigia frequentemente aos homens dizendo que a única maneira de voltar logo para casa seria resistir e organizar uma retirada cautelosa, que nos permitisse chegar à fronteira da Suíça e passar daí para a Alemanha. Entregar-se ao inimigo não era solução, ele dizia, e seu apelo tinha muito efeito.”

Os soldados alemães na Itália eram veteranos experimentados com a própria propaganda e a adversária. O que os mantinha juntos e ainda, mal ou bem, lutando parecia ser um forte senso de disciplina e, no caso de alguns oficiais, de dever profissional (se se preferir, de uma falsa ética vilipendiada por uma causa errada, prova de que as “virtudes” têm de ser consideradas sempre em relação aos propósitos que se perseguem), mesmo que isso levasse a casos beirando o fatalismo inútil.

Alguns, como o capitão Otto Schweitzer, gostam de lembrar (talvez um álibi) o caso do coronel Kurt Stöckel, oficial declaradamente simpático aos social-democratas, “mas preocupado em cumprir seu dever como soldado”. “O que dizer dos brasileiros, o que estavam fazendo lá, se não cumprindo seu dever como soldados, da mesma maneira que nós fizemos? Acho que deve ter sido ainda mais difícil explicar para os brasileiros o que tinham a fazer na Itália do que a nós mesmos, que já não compreendíamos o sentido daquela luta.”

Outros, como o capitão Alfred Pfeffer, pergunta-se qual teria sido a alternativa: “Que iria eu fazer? Mandar meus homens se entregarem?

Sabotar a linha de frente? Tinha, afinal, de pensar também na minha responsabilidade frente aos outros camaradas nos outros trechos da frente, que poderiam ser dominados pelo inimigo se eu abandonasse meu pedaço.” Ao longo do tempo, evidentemente, os oficiais sobreviventes fizeram questão de serem tratados só como os soldados profissionais que afirmam ter sido – e sequer dos mais entusiasmados: apenas um grupo preso a uma resignação obstinada, ao sabor de um destino sobre o qual julgavam não ter a menor influência.

NOTAS————————————————————————


[1] O Bolsão de Falaise, ou Batalha do Bolsão de Falaise, foi o engajamento decisivo da Batalha da Normandia na Segunda Guerra Mundial e ocorreu entre 12 a 21 de agosto de 1944. As forças aliadas formaram um bolsão ao redor da cidade francesa de Falaise, no qual o Grupo de Exércitos B alemão, consistindo do 7º Exército e do 5º Exército Panzer, foram cercados pelos Aliados Ocidentais. A batalha resultou na destruição da maior parte do Grupo de Exércitos B a oeste do rio Sena, o que abriu caminho para Paris, depois Bélgica, Holanda e a fronteira franco-alemã.

[2] Fighting Power. German and US Army Performance 1939—45 (Greenwood Press, USA, 1982)

[3] Um exemplo desses “Grupos de Combate” é o Kampfgruppe Walther, que surgiu em meio às lutas da Operação Market Garden com o objetivo inicial de aniquilar as concentrações de paraquedistas ingleses e americanos e bloquear qualquer avanço adicional dos Aliados. Esse grupo de batalha improvisado foi formado sob o comando do coronel Erich Walther, do Fallschirmjäger (paraquedistas), e eventualmente consistiu em soldados de todos os serviços; Fallschirmjäger, Luftwaffe, exército regular e SS. O grupo entrou em ação pela primeira vez em 11 de setembro de 1944, depois que a Divisão de Guardas Britânica capturou a ponte em Lommel/Neerpelt, apelidada de Ponte de Joe. Depois o Kampfgruppe Walther lutou contra os americanos e britânicos em uma série de batalhas sangrentas nos pântanos de Peel, ainda na Holanda. A história culmina na Batalha de Overloon, sudeste da Holanda, onde algumas das lutas foram as mais difíceis travadas desde a Normandia e as baixas aliadas e alemãs foram horrendas. Durante seu breve período de existência o Kampfgruppe Walther lutou contra a 101ª Divisão Aerotransportada e a 7ª Divisão Blindada, ambas norte-americanas, como também contra a 3ª Divisão, a Divisão de Guardas e a 11ª Divisão Blindada, todas britânicas.

[4] A expressão “Queimar pontes” tem suas origens em estratégias militares antigas. Quando um exército cruzava uma ponte rumo ao território inimigo, era comum destruí-la atrás de si. Essa atitude eliminava qualquer possibilidade de recuo, simbolizando um compromisso irreversível com a batalha.

[5] Fritz Fullriede (4 de janeiro de 1895 – 3 de novembro de 1969) foi um oficial alemão e criminoso de guerra durante a Segunda Guerra Mundial . Fullriede lutou na invasão alemã da Polônia , na Frente Oriental , no Afrika Korps e na Campanha Italiana . O último comandante do Festung Kolberg , Fullriede recebeu a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro com Folhas de Carvalho em 1945. A defesa capaz de Fullfriede de Kolberg permitiu que 70.000 civis e 40.000 militares evacuassem Kolberg por via marítima para outras partes da Alemanha. Após a guerra, Fullriede foi julgado e condenado por um tribunal holandês por seu papel no ataque de Putten em 1944. Ele foi sentenciado a 2,5 anos de prisão.

[6] Grupo de Exércitos do Centro, ou Heeresgruppe Mitte, foi um grupo de exércitos da Wehrmacht (Exército Alemão), criado durante a Segunda Guerra Mundial para lutar primordialmente na Frente Oriental. Foi um dos três exércitos reunidos pelos alemães para a chamada Operação Barbarossa, a invasão da antiga União Soviética em 1941.

[7] A Batalha de Vercors, ocorrida entre julho e agosto de 1944, foi um intenso combate entre um grupo rural das Forças do Interior Francesas (FFI), os conhecidos “Maquis”, e as forças nazistas que ocuparam a França desde 1940. Os Maquis usaram o Massif du Vercors (Planalto de Vercors) como refúgio e de onde partiam para realizarem sabotagens e operações contra os alemães. Os Aliados apoiaram os insurgentes com lançamentos de armas de paraquedas e fornecendo equipes de conselheiros e treinadores. Mas a revolta foi prematura. Em julho de 1944, até 10.000 soldados alemães invadiram o maciço e mataram mais de 600 Maquis e 200 civis, muitos deles executados. Foi a maior operação da Alemanha na Europa Ocidental contra guerrilheiros.

[8] Oradour-sur-Glane era uma comunidade rural tranquila no centro da França. Na manhã de 10 de junho de 1944, apenas quatro dias após o Dia D, entrou na vila algo entre 120 e 200 soldados do regimento Panzer Der Führer da Waffen-SS (um ramo da 2ª Divisão Panzer SS Das Reich). Sob o comando do SS-Sturmbannführer (Major) Adolf Diekmann, em meio a gritos, empurrões e coronhadas, os SS separaram em três grupos os homens, as mulheres e as crianças no mercado e na igreja local. Carros blindados saíram atrás dos cidadãos que estavam trabalhando nos campos e em uma hora os SS reuniram todos os moradores que puderam encontrar. Na sequência, abriram fogo com suas metralhadoras e puseram fogo na igreja., onde. Ao final massacraram 642 seres humanos e queimaram a vila até o chão. Até hoje o motivo do ataque alemão a Oradour permanece desconhecido. As ruínas da vila estão preservadas exatamente como foram deixadas em 10 de junho de 1944. Oradour agora serve como um símbolo de lembrança às atrocidades que os franceses enfrentaram sob a opressão nazista.

UM MILITAR EXEMPLAR

Tenente-brigadeiro Rui Moreira Lima
Tenente-brigadeiro Rui Moreira Lima

Herói de guerra e democrata, o brigadeiro Rui Moreira Lima soube posicionar-se nos melhores e piores momentos das Forças Armadas

Paulo Ribeiro da Cunha

Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/um-militar-exemplar

Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada a serviço do Direito”. Boa parte das gerações militares contemporâneas, bem como setores políticos e acadêmicos, parecem desconhecer o real significado destas palavras atualmente.

Rui Moreira Lima em fotografia de 1953, no Rio de Janeiro. O militar ganhou condecorações por sua participação na Segunda Guerra Mundial e foi torturado por se opor ao regime ditatorial de 1964. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Rui Moreira Lima em fotografia de 1953, no Rio de Janeiro. O militar ganhou condecorações por sua participação na Segunda Guerra Mundial e foi torturado por se opor ao regime ditatorial de 1964. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

Escritas em 1939 pelo juiz de direito Bento Moreira Lima numa carta para seu filho, o cadete Rui Moreira Lima, que aos 20 anos ingressava na Força Aérea Brasileira (FAB), elas parecem ter servido como uma declaração de princípios que nortearia a vida do futuro brigadeiro.

Tenentes Rui Moreira Lima, Alberto Martins Torres e Renato Goulart Pereira
Tenentes Rui Moreira Lima, Alberto Martins Torres e Renato Goulart Pereira

Poucos anos depois, Rui Moreira Lima seria um herói de guerra. Com outros jovens aviadores brasileiros, todos voluntários, integrou o grupo de aviação da FAB, o “Senta Púa”, unidade que recebeu uma das mais altas condecorações americanas em reconhecimento pela bravura de seus membros. Ao final da Segunda Guerra, sua folha de serviços computava 94 missões, pelas quais ganhou as mais altas condecorações militares do Brasil, da França e dos Estados Unidos. 

Representação do Republic P-47 Thunderbolt com que o tenente Rui combateu na Itália - Fonte -www.militar.org.ua
Representação do Republic P-47 Thunderbolt com que o tenente Rui combateu na Itália – Fonte -www.militar.org.ua

Sempre que podia, declamava com sabor de poesia a carta recebida de seu pai. Em um dos trechos, ela aconselhava: “Obediência a seus superiores, lealdade aos teus companheiros, dignidade no desempenho do que te for confiado, atitudes justas e nunca arbitrárias”. Nada mais válido nos tempos da Guerra Fria pra lá de quente que se iniciaria em 1947. O debate em que esteve imerso o jovem oficial trazia não somente o desafio de edificar uma nação, mas principalmente o de construir e defender uma democracia. Patriota, democrata e nacionalista, Rui Moreira Lima teve uma discreta empatia à esquerda, e uma identificação sem militância com o PSB (Partido Socialista Brasileiro), agremiação que tinha entre seus membros militares históricos, compromissados com a democracia e a nação, como o almirante Herculino Cascardo (1900-1967) e o general Miguel Costa (1885-1959).

Ao retornar da guerra, como tenente, Moreira Lima foi condecorado pelas missões na 2ª Guerra Mundial pela FAB (Foto: Agência Força Aérea/Arquivo)
Ao retornar da guerra, como tenente, Moreira Lima foi condecorado pelas missões na 2ª Guerra Mundial pela FAB (Foto: Agência Força Aérea/Arquivo)

Nos anos 1950 e 1960, atuou na defesa da legalidade democrática e em causas nacionalistas, como a do Petróleo é Nosso. Na polarização entre grupos políticos e ideológicos dentro da própria FAB, condenou tentativas golpistas – como a de abortar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek (1956) e as Revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) – e apoiou a posse de João Goulart por ocasião da renúncia de Jânio Quadros (1961). “O soldado não conspira contra as instituições a que jurou fidelidade. Se o fizer, trai seus companheiros e pode desgraçar a nação”, escreveu o pai. 

Jango assiste, em 1963, à demonstração da FAB, com a presença de Rui Moreira Lima, à sua esquerda. O militar se pôs em defesa da ordem democrática e da manutenção da legalidade nos momentos de ruptura. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Jango assiste, em 1963, à demonstração da FAB, com a presença de Rui Moreira Lima, à sua esquerda. O militar se pôs em defesa da ordem democrática e da manutenção da legalidade nos momentos de ruptura. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

A chegada de 1964 encontrou o militar no comando da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, a mais poderosa unidade de combate da FAB no período, cuja tradição ele ajudou a forjar como piloto de caça nos campos de batalha italianos.

Rui Moreira Lima acompanhava com preocupação os desdobramentos golpistas e lamentava a imobilidade do governo em reagir naquilo que era o princípio basilar das Forças Armadas: a hierarquia e a disciplina.

Reprimiu com rigor tentativas de envolver os comandados em aventuras, chegando a prender alguns de seus jovens oficiais. Em reação à movimentação das tropas do general Mourão, em março de 1964, sobrevoou em um rasante a coluna golpista já próxima de Areal (RJ), cuja tropa foi tomada por pânico. Na volta à unidade, confabulou com seus superiores que os rebelados poderiam ser dissolvidos em um ataque de precisão, sem maiores baixas. Mas só tomaria essa iniciativa se recebesse ordens para tanto. Diante do posicionamento do presidente João Goulart em não resistir e partir para o exílio, deu-se por encerrada qualquer possibilidade de reação.

1964 - Fonte - www.ocafezinho.com
1964 – Fonte – http://www.ocafezinho.com

Ali estava encerrada sua carreira militar, bruscamente interrompida. Antes, porém, teve ainda um ato de resistência: só aceitou passar  o comando da Base Aérea se fossem cumpridas todas as formalidades, postura que constrangeu seus algozes. “A honra é, para ele [o militar], um imperativo e nunca deve ser mal compreendida”. Pouco depois, Rui Moreira Lima foi preso em casa e teve de responder a três inquéritos policiais militares. Amargou um total de 153 dias no cárcere. Em uma das prisões, nos anos 1970, chegou a ser torturado.

30-12-1964

Diante do quadro de vilania que caracterizou o regime militar, qualificou de infame e covarde a figura do torturador – que, portanto, não deveria ser contemplado com a anistia. Visão compartilhada com o pai: “O soldado nunca deve ser um delator, senão quando isso importar a salvação da pátria. Espionar os companheiros, denunciá-los, visando a interesses próprios, é infâmia, e o soldado deve ser digno”.  

Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, após o golpe militar de 1964 - Fonte - https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)
Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, após o golpe militar de 1964 – Fonte – https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)

Inegavelmente a pátria estava em perigo, e o campo de batalha passou a ser outro para o então coronel. A perseguição foi uma constante para as centenas de cassados, entre oficiais e praças das Forças Armadas e das Polícias Militares. Todos os aviadores, por portarias secretas, foram proibidos de voar.

Rui 1964 (1)Rui 1964 (2)

JORNAIS DE 1964 MOSTRAM O QUE O BRIGADEIRO RUI MOREIRA LIMA SOFREU

Por convicção, não aderiu à opção de resistência armada ao regime militar: decidiu combater a ditadura na ação política. Foi um dos que ergueram a bandeira pela anistia ampla, geral e irrestrita. Ao lado do brigadeiro Francisco Teixeira e de outros oficiais, Rui Moreira Lima foi um dos fundadores da Adnam (Associação Democrática e Nacionalista dos Militares).

O Brigadeiro Rui de novo na cabine de um P-47 - Fonte - http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-mentira-que-insiste-em-sobreviver-8561.html
O Brigadeiro Rui de novo na cabine de um P-47 – Fonte – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-mentira-que-insiste-em-sobreviver-8561.html

A anistia saiu em 1979, mesmo ano em que faleceu seu pai. Mas ela veio restrita em relação aos militares cassados, inclusive o brigadeiro, a despeito de sua folha de serviços. 

À frente da Adnam, continuou intervindo na agenda política com o objetivo de aprofundar a democracia e a construção de um efetivo estado de direito. Buscava não só a ampliação da anistia como a reintegração, mas também a  reincorporação dos militares cassados. Em outra frente de luta, preocupava-se com a memória e a história. Escreveu Senta Púa e Diário de Guerra, e contribuiu com depoimentos em livros, teses e documentários. Por sua intervenção direta, o acervo da Adnam foi entregue para a guarda do Cedem – Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Acima, recebe pedido de desculpas por meio do ministro da Justiça, em 2011. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Acima, recebe pedido de desculpas por meio do ministro da Justiça, em 2011. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

Em seus últimos anos, através de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) patrocinada pela Adnam e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contestou a anistia aos torturadores e apoiou com entusiasmo a formação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012. Segundo ele, a CNV era um instrumento necessário para aproximar os militares e a sociedade civil, e não pode ser considerada expressão de revanchismo, mas sim de justiça e de um necessário resgate da história. Inclusive a sua história. 

Já com mais de 90 anos, não se furtou a outras polêmicas. Em 2012, subscreveu pela Adnam o manifesto “Aos Brasileiros”, confrontando um manifesto de golpistas elaborado por militares da reserva do Clube Militar. No ano seguinte patrocinou a “Carta do Rio de Janeiro”, documento endereçado à Presidência da República com vistas a equacionar em definitivo a questão de uma anistia ampla para os militares cassados e perseguidos após o golpe. 

Rui Moreira Lima * 12/06/1919 + 13/08/2013 - Fonte - revistaaerolatina.blogspot.com
Rui Moreira Lima * 12/06/1919 + 13/08/2013 – Fonte – revistaaerolatina.blogspot.com

Só depois de seu falecimento, em fins de 2013, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa a uma ação reparatória reconhecendo seus direitos. Não viveu, portanto, para ver o epílogo de uma longa trajetória militar e política: a promoção à patente de tenente-brigadeiro, último posto da Força Aérea.

A FAB o dignificara já no enterro, com toque de silêncio e voos rasantes de aviões de caça da unidade Senta a Púa. A homenagem ao oficial cassado seria um passo importante para a decisão posterior do STF. 

Reconhecimento ainda mais cheio de significado, particularmente para os cadetes da Academia da Força Aérea, seria se a instituição de ensino reverenciasse Rui Moreira Lima em um dos painéis de sua ampla entrada onde constam pronunciamentos de várias personalidades civis e militares. Como texto, o ensinamento da carta de Bento Moreira Lima, um conselho que retrata a vida do filho ao mesmo tempo em que serve de lição aos militares e cadetes das novas gerações: “O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas. Estas não devem esquecer que é este povo que deve inspirá-las nos momentos graves e decisivos”.   

Paulo Ribeiro da Cunha é professor de Teoria Política na Universidade Estadual Paulista e autor de Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa (Editora Unesp/Fapesp, 2014).

Saiba Mais

BONALUME NETO, Ricardo. A nossa Segunda Guerra: os brasileiros em combate, 1942 -1945. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995.

FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro/ São Paulo: Ed. Civilização Brasileira/ Expressão Popular, 2010 [1965].

Documentários

Senta a Pua! (Erik de Castro, 1999) 

A Cobra Fumou (Erik de Castro, 2003)

O Brasil na Batalha do Atlântico (Erik de Castro, 2012)

Internet

Carta de Bento Moreira Lima a Rui Moreira Lima: http://bit.ly/1I5lKCi