1923 – UM CONCORRIDO CONCERTO NO TEATRO ALBERTO MARANHÃO

Quem se Apresentou e o Que foi Tocado na Festa de Despedida de Alcides Cicco?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Muitos podem imaginar que há 101 anos a capital potiguar era uma cidade cujo ritmo da vida era muito lento, calmo e sem maiores novidades. Isso tem muito de verdade e pode estar relacionado com o fato dessa velha urbe possuir nessa época cerca de 32.000 habitantes. Número menor que as 35.725 pessoas que em 2022 viviam no bairro de Lagoa Nova.

Mas se essa situação de calmaria e tranquilidade era normal, nas atividades artísticas do belo Theatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, a situação era bem diferente.

Inaugurado em 24 de março de 1904, após sete anos de construção, o Carlos Gomes se tornou o principal centro de apresentações culturais de Natal, com variados artistas subindo no seu palco e deleitando o público local. O interessante livro Teatro Carlos Gomes – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão, lista um grande número de recitais, conferências, concertos, apresentações diversas e até eventos políticos que ali se ocorreram durante a sua História.

O antigo Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Fundação José Augusto.

Para impulsionar o movimento musical em Natal, em 31 de março de 1908 o governador Alberto Maranhão assinou, o Decreto nº 176, criando a Eschola de Musica, que funcionaria anexa ao teatro. Quem ficou à frente desta instituição foi o maestro Luigi Maria Smido, que além dessa função acumulou a direção da banda de música do Batalhão de Segurança (Polícia Militar). Segundo o professor Claudio Galvão, o verdadeiro nome de Smido era Luigi Maria Schmidt und Insbruck e a maioria das fontes aponta que ele era italiano.

Mas em 6 de janeiro de 1914, sete dias após ser empossado pela segunda vez governador do Rio Grande do Norte, o recifense Joaquim Ferreira Chaves extinguiu a escola de música e alegou que fazia isso por falta de dinheiro. Somente dois anos depois foi criada uma nova escola no teatro e sob o comando do italiano Thomaz Babini.

Orquestra do Teatro Calos Gomes nas primeiras dércadas do século XX – Fonte – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.

Essas iniciativas educacionais na área musical deixaram muitos frutos, pois uma interessante plêiade de artistas passou a existir na cidade e estes tinham no Theatro Carlos Gomes o local ideal para desenvolver a sua arte. No livro do Professor Claudio Galvão existe muitas informações sobre essa evolução e o desenvolvimento musical em Natal nessa época.

Ele nos conta que com o passar dos anos o teatro passou por altos e baixos, com momentos em que sua orquestra ficou reduzida a um sexteto e quando o local precisou de uma reforma, a luta para conseguir a verba destinada para esse trabalho foi duríssima. Mas no ano de 1922, diante as comemorações do centenário da Independência em Natal, o governador Antônio de Souza caprichou nos festejos e apoiou no que foi necessário para que o Theatro Carlos Gomes pudesse receber apresentações dignas da casa e do público natalense.

Praça Augusto Severo e Estação da Great Western of Brazil Railway em 1906, na Ribeira, na mesma área onde se encontra o Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Fundação José Augusto.

Em meio a todos esses problemas e processos, cada vez mais crescia o número de músicos em Natal e a muitos deles mostravam extrema capacidade musical. Um desses músicos foi Alcides Cicco.

O Escriturário Que Era Barítono

Alcides Cicco nasceu em 1894 na cidade de São José de Mipibu, sendo filho de Vincenzo De Cicco, um italiano da comuna de Sapri, província de Salerno, região da Campânia, sudoeste da Itália. Vincenzo imigrou para o Brasil e casou em São José de Mipibu com Ana Albuquerque e Melo, com quem teve doze filhos. Depois ele se mudou com toda a família para Natal e se tornou comerciante.  

Alcides Cicco – Fonte – – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.

Sobre os primeiros anos de Alcides eu não tenho muitas informações, mas sei que ele não seguiu seus irmãos Januário na medicina e nem Celso como padre. A música falou mais alto!

Segundo o Professor Claudio Galvão, o jovem Alcides fez parte da Eschola de Musica do Carlos Gomes em 1908 e desde cedo apresentou inclinação para o canto lírico, mas também tocava violino. Existem nos antigos jornais natalenses da década de 1920, várias citações da participação de Alcides em um grande número de eventos e sempre fazendo bom uso da sua privilegiada voz.

Uma das muitas referências da participação de Alcides em eventos musicais em Natal.

Foi quando se espalhou a notícia em Natal que o virtuoso Alcides estava de partida para centros maiores e mais desenvolvidos, em busca de aprimoramentos para a sua capacidade artística. E seria com tudo pago pelo erário público e com direito a Lei proferida pelos altos dirigentes do Estado. Enfim, não dava mesmo para um 4º Escriturário do Tesouro do Rio Grande do Norte bancar do próprio bolso dois anos de estudos musicais lá fora.

Diante da notícia, a classe musical local decidiu realizar um evento no Theatro Carlos Gomes. Ficou acertado que aquele acontecimento se chamaria pomposamente “Festival de Artes e Letras”, seria dedicado ao governador Antônio de Souza e teria a participação de Luigi Maria Smido, Thomaz Babini, o jovem músico Waldemar de Almeida e outros mais. Apesar do nome oficial, todo mundo em Natal sabia que a festa era o “bota-fora” de Alcides Cicco para o Rio de Janeiro…

Finalmente, às oito e meia da noite de sábado, 27 de janeiro de 1923, a festa começou!

A Festa de Alcides

O Theatro Carlos Gomes lotou, ficou até apertado, estava “à cunha” como expressou um jornalista na época. O governador e sua família estiveram presentes e mais um grande número de políticos que hoje são nomes de ruas e avenidas em Natal. Mas o que valeu mesmo foram as apresentações no palco.

Waldemar de Almeida na juventude – Fonte – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.

Nos jornais antigos temos em detalhes a sequência das apresentações, com as obras que foram executadas e seus respectivos autores naquela. O nosso BLOG TOK DE HISTÓRIA, fazendo uso das atuais tecnologias existentes, traz para seus leitores a sequência exata de quase todas as obras que ali foram executadas. Essa é uma interessante oportunidade de compreender que tipo de música os natalenses apreciavam no seu principal teatro, em uma época onde o rádio ainda dava os primeiros passos (e demoraria quase vinte anos para chegar a Natal), a televisão estava engatinhando e a internet não era nem ficção cientifica.

O evento iniciou com a orquestra do teatro sendo conduzida pelo maestro Smido e tocando uma ouverture, ou abertura, intitulada Poète et Paysan, do austríaco Franz von Suppé (1819 – 1895). Essa peça estreou em Viena no ano de 1846, mas após a morte do autor foi transformada em uma opereta em três atos, sendo a sua abertura a mais difundida e tocada.

Após a execução da abertura de Suppé, houve uma “Ligeira sessão literária”. Mesmo sem maiores detalhamentos de como se desenrolou esse momento, sabemos que primeiramente subiu ao palco o Doutor Sebastião Fernandes de Oliveira, então juiz de direito de Ceará-Mirim e diretor do “Centro Polymathico”, que trouxe perante o público natalense os “belletristas” Luís da Câmara Cascudo, José Gabat (sic), Ezequiel Wanderley, Othoniel Menezes, F. Palma, Virgílio Trindade e Jayme Wanderley.

Na sequência houve a 2ª Parte, que começou com Thomaz Babini assumindo a orquestra e Alcides Cicco como barítono. Foi executada com maestria a terceira função da ópera Zazà, do italiano Rugero Leoncavallo (1857 – 1919). A estreia dessa ópera aconteceu no Teatro Lírico de Milão, Itália, em 10 de novembro de 1900 e essa terceira função se chamava Cascart, um cantor de sala de concertos.

A segunda obra da 2ª parte da apresentação foi a Polonais em dó sustenido menor, Opus 26, 1, composta pelo polonês Frédéric Chopin (1810 – 1849). Quem tocou essa obrafoi o jovem pianista Waldemar de Almeida, então com 19 anos e natural da cidade de Macau, Rio Grande do Norte.

Veio então a 3ª Parte, a mais longa, que começou com a peça Air de Ballet, do francês Jules Massenet (1842 – 1912), novamente com a participação da orquestra do teatro, com o maestro Babini na regência.

A segunda obra dessa parte do espetáculo foi Fantaisie-Impromptu, Op. 66, de Frédéric Chopin. Essa foi peça composta em 1834 e publicada postumamente em 1855, sendo uma das composições mais frequentemente executadas e populares de Chopin. Naquela noite de 1923 no nosso teatro, foi o jovem Waldemar de Almeida que a executou ao piano.

Bem, nessa altura das apresentações não dava para deixar de fora algum compositor brasileiro e a escolha foi pelo cearense Alberto Nepomuceno (1864 – 1920). Este foi um compositor, pianista, organista, regente e membro da Academia Brasileira de Música, sendo considerado o “pai” do nacionalismo na música erudita brasileira. Coube a Waldemar de Almeida tocar ao piano o Noctuno, Op. 33.

A última peça a ser tocada foi executada pela orquestra do teatro, sob a regência de Luigi Maria Smido e se chamava Romance em fá. Infelizmente o texto não comentou quem era o autor dessa obra. Talvez o próprio Smido. Nesse caso não encontrei nenhum material em áudio e vídeo que mostrasse a apresentação dessa peça.

Então o evento se encerrou e Alcides Cicco partiu para o Rio de Janeiro. Em poucos anos voltou para a sua terra e seu teatro.

Um Boêmio Bondoso e Tímido

Luís da Câmara Cascudo assim se expressou em uma Acta Diurna Sobre Alcides Cicco, publicada no jornal natalense A República, edição de 20 de junho de 1959. O Professor Claudio Galvão a transcreveu em parte no seu interessante livro Teatro Carlos Gomes – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura.

Cascudo o descreveu como modesto, tímido, raras vezes se apresentou em público. Quanto ao seu objetivo artístico, comentou: Preparou-se a vida inteira para ser o que não conseguiu realizar: um artista dramático, um tenor de óperas, de óperas especialmente italianas, Verdi, Puccini, Leoncavallo, Mascagni. Sobre seu trabalho como administrador do Theatro Carlos Gomes, evocava: […] prestou inolvidáveis serviços, batendo-se pela manutenção, trabalhando diretamente na sua conservação. Quantas vezes o vi, de pincel na mão, pintando paredes e gradis, com tinta paga do seu bolso.  

Três anos antes de Alcides Cicco falecer, o escritor Gumercindo Saraiva escreveu uma interessante crônica sobre ele no jornal O Poti, edição de 13 de julho de 1956, que achei mais interessante transcrever na íntegra.

POR QUE ALCIDES NÃO SE CASOU?

Alcides Cicco, antigo diretor do Teatro Carlos Gomes, é figura excêntrica de boêmio da cidade. Vez por outra o encontro num dos bares da Ribeira tomando cerveja e cantando trechos de óperas, com toda força de seus pulmões.

Sempre achei que Alcides deve ser personagem de uma opereta, ou de um desgarrado na vida em um romance de Balzac. Seu tipo físico, bondade, boêmia, sua vida sem ambições e sem pessimismos, tudo nele é estranho e romanesco.

Creio que quase todo mundo sabe por que Alcides não seguiu a sua carreira de cantor lírico. Estudava no Rio e conseguiu uma bolsa de estudos na Itália. Veio a Natal se despedir dos seus parentes. Aqui, uns amigos convidaram-no a dar um passeio em Papari (atual cidade de Nísia Floresta) e comer uns camarões. Pois bem. Ele gostou tanto dos camarões que desistiu para sempre de sua viagem à Europa…

E não se diga que Alcides não tem habilidades que o destacam do comum dos homens. Uma das melhores macarronadas que já comi nesta cidade foi feita por Alcides Cicco em sua própria casa, faz alguns anos. Ele preparou os quitutes com verdadeiro gosto artístico.

Numa roda de amigos João Meira Lima divulgou o motivo por que ainda hoje Alcides Cicco persiste solteirão. Ouviu a história de sua própria boca, num momento de recordações e confidências…

Alcides era jovem e passava uma noite na antiga rua da Palha (atual rua Vigário Bartolomeu, no Centro). Casualmente, viu numa janela uns olhos cintilantes, quase de fogo. Achou-os maravilhosos e sentiu que estava loucamente apaixonado. Todas as noites, infalivelmente, Alcides desfilava pela rua de Palha para contemplar os mais belos olhos de sua vida. Tímido e romântico – foi sempre assim – não tinha coragem de abordar a criatura dos lindos olhos. Afinal, uma noite, tomou umas cervejas, encheu-se de coragem e resolveu enfrentar a dama dos seus sonhos. De longe viu os olhos brilhantes e aproximou-se, quase hipnotizado pelo fogo daquele olhar… Quando chegou em frente á janela – foi a maior decepção de sua vida – ouviu um miado longo e notou que a dona dos olhos de fogo era apenas uma velha gata de estimação… Desde esse dia não quis mais saber de casamento…

Alcides Cicco faleceu por volta das seis da manhã do dia 19 de junho de 1959, de complicações do diabetes. Expirou na antiga residência da família Cicco, no número 190 da Avenida Duque de Caxias, na Ribeira, e que por um verdadeiro milagre ainda se conserva preservada.

Alcides nunca casou, mas criou uma união permanente com a música e o velho teatro de Natal.

1876 – QUANDO UMA DESESPERADA MENSAGEM CHEGOU DENTRO DE UMA GARRAFA NA PRAIA DE MURIÚ

Rostand Medeiros – IHGRN.

Publicado originalmente no site tokdehistoria.com em 25/06/2016.

Em um tempo quando o mar não trazia tanto lixo para a terra e um vasilhame de vidro usado tinha certo valor comercial, à beira mar da bela praia potiguar de Muriú alguém encontrou uma garrafa que continha uma mensagem com um conteúdo diferente[1].

Típica garrafa inglesa do final do século XIX com uma mensagem.

É quase certo que quem a encontrou, em fins de novembro de 1876, não tinha a menor ideia do que ali estava escrito, já que nessa época grande parte dos norte-rio-grandenses era analfabeta.

É provável, como seria normal deduzir, que a pessoa que realizou este achado fosse um pescador, mas talvez não! Apesar da comunidade de Muriú já existir[2], a beira mar era uma ótima alternativa como via de circulação de pessoas montadas em alimárias, em carroças, ou até mesmo a pé[3].

Praia de Muriú na atualidade. Local aprazivel, ainda com uma comunidade de pescadores, visitado por milhares de turistas que circulam pelo local no passeio de buggys e ótima praia de veraneio – Fonte – http://www.praiasdenatal.com.br/praia-de-muriu/

Fosse uma pessoa livre, ou um escravo que sofria nos engenhos de cana de açúcar da região de Ceará Mirim, é provável que esta pessoa tenha levado aquela garrafa com sua mensagem para ser lida por alguém mais instruído. Naqueles tempos anteriores a criação de comunicação, a descoberta deste tipo de mensagem requeria atenção e normalmente era encaminhada a autoridades.

Sabemos que o objeto chegou lacrado no litoral, provavelmente com betume utilizado para calafetar embarcações[4], mas não sabemos se ela foi aberta antes de percorrer as cinco léguas de distância que separavam Muriú da pequena Natal, que neste tempo tinha superado pouco mais de 20.000 habitantes[5].

Letras Desesperadas

Acredito que na capital potiguar a mensagem e a garrafa foram encaminhadas às autoridades portuárias e alfandegárias, onde certamente haveria algum funcionário afeito ao idioma bretão, pois não era incomum a presença de barcos ingleses no porto da Cidade dos Reis.

Após aberto o recipiente surgiu uma mensagem que foi publicada na íntegra pelo pouco conhecido jornal natalense O Atalaia, na sua edição de 2 de dezembro de 1876, na página três, conforme reproduzimos na fotografia abaixo[6].

Em 29 de setembro daquele ano um tripulante, ou passageiro, escreveu que estava a bordo de um barco inglês, que os jornalistas potiguares designaram como “galera”, e que se chamava Collingrone. Este barco aparentemente se encontrava na costa sudoeste da África (ou “suéste”, como está descrito no texto original)[7].

Quem escreveu narrou que um “Máo tempo” tinha destruído a vela bujarrona e outras velas do barco. Mais grave ainda era a informação de que quatro pessoas a bordo já tinham perecido “pela febre”.

Em meio a este cenário um tanto caótico, em um texto onde a desesperança e o medo são claros, a mensagem encontrada em Muriú é bem direta ao apontar a objetiva finalidade do autor – Que alguém que porventura encontrasse a missiva, a destinasse para a mãe de quem escreveu. A destinatária seria a esposa de Mr. John Bryce, que vivia na Fountain House, na pequena cidade de Loanhead, próximo a Edimburgo, a capital da Escócia[9].

Dia festivo em Loanhead, Escócia, 1879 – Fonte – http://lothianlives.org.uk/category/photographs/

Pesquisando na internet descobri que Loanhead possui na sua área algumas localidades e casas históricas que utilizam a denominação “Fountain” (Fonte), mas não especificamente algum ponto conhecido como “Fountain House” (Casa da Fonte).

Ao pesquisar algo sobre um certo John Bryce, ou sua esposa, que viviam em Loanhead na metade da década de 1870, esbarrei em um verdadeiro paredão de nomes similares, que só me levavam a becos sem saída.

Como a edição do periódico “O Atalaia”, conforme podemos ver na foto aqui mostrada, nada mais trazia informações sobre o tema eu fui procurar em outros jornais da época. Infelizmente nada encontrei no material arquivado na hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, ou nos jornais potiguares digitalizados e disponíveis na Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional.

A história toda era muito limitada e necessitava de novas pesquisas para responder a vários questionamentos. Tais como a natureza deste veleiro e quem escreveu a mensagem? Qual a nacionalidade do barco? Qual era sua rota marítima? O que aconteceu com esta nave e o autor da mensagem?

Mastros que poderiam chegar a alturas de um prédio de vinte andares

Pessoalmente eu tenho uma grande admiração pela Grã-Bretanha, principalmente pelo prazer que os súditos da Rainha Elizabeth II têm pela sua história e pelo intenso esforço que instituições britânicas fazem para democratizar preciosas informações históricas guardadas em seus arquivos através da internet. Assim, sem maiores contratempos, é possível acessar os arquivos do Lloyd Register, uma organização de classificação marítima que remonta a 1760[10].

O clipper Collingrove – Fonte – collections.slsa.sa.gov.au

Mas ao pesquisar neste arquivo altamente acurado não encontrei nenhuma referência sobre algum veleiro denominado Collingrone, registrado na Inglaterra e que navegava na década de 1870. Mas sempre esbarrava na referência de um grande clipper denominado Collingrove. E comecei a suspeitar que 140 anos atrás os membros da redação de O Atalaia haviam reproduzido equivocadamente o nome do barco.

O Collingrove era uma embarcação do tipo clipper, foi construído em 1869 pelo estaleiro de Sir James Laing & Sons Ltd., em Deptford Yard, na cidade de Sunderland, Nordeste da Inglaterra. Tinha 861 toneladas brutas, 181,4 metros de comprimento, 33,5 de largura e foi registrado em Londres no início dos anos 1870 para a empresa de navegação A. L. Elder & Co.

O barco estava envolvido no comércio de carga e transporte de imigrantes entre a Inglaterra e o sul da Austrália, se destinando principalmente para a cidade de Port Adelaide e retornando a Londres. Podia transportar 75 passageiros e carga geral.

Outra imagem do Collingrove – Fonte – collections.slsa.sa.gov.au

O Clipper Collingrove fazia parte de uma classe de barcos que marcou época, sendo os mais rápidos, elegantes e imponentes veleiros desenvolvidos no século XIX. Estas belas naves começaram a ser construídos a partir da década de 1830 e várias qualidades definiram a história deste tipo de veleiro. Um clipper era tecnicamente um navio com três mastros, que possuía uma grande extensão de velas quadradas, muito rentável em longas distâncias e que desenvolviam alta velocidade. Com mastros que poderiam chegar a ser tão altos quanto um prédio de vinte andares, linhas de casco longas, combinados ao enorme poder de condução das velas, fazia com que a maioria deles percorressem 250 milhas náuticas em um único dia. Os melhores atingiam velocidades que cobriam 400 milhas por dia.

Um típico clipper, mostrando toda sua imponência e elegância – Fonte – http://www.oilpaintingsframes.com

Já o Collingrove era considerado um barco muito regular e seguro. Relatos apontam que seu tempo mais rápido entre Londres e Port Adelaide foi de 65 dias e os mais lentos 85, com uma média de 74 dias por viagem. Era comum nestas grandes viagens que os clippers seguissem com um médico a bordo para atender os passageiros e não era incomum haver em alguns destes barcos uma vaca para fornecer leite fresco. Como o tempo de viagem era longo, sem escalas, era normal o incentivo para que os passageiros que tinham algum dom artístico, realizassem apresentações. 

Medo de Viajante

Descobri através dos arquivos do Collingrove que em 1876 o seu comandante, ou Mestre, como os ingleses designavam, era H. Angel, um veterano navegador, sem máculas em sua ficha e com extrema capacidade profissional.

Nota de jornal mostrando uma das partidas do Collingrove em 1876.

Aparentemente o que a carta na garrafa significou foi apenas o medo de uma pessoa pouco experiente com viagens marítimas, em meio a uma tempestade que danificou, mas não afundou o Collingrove. Certamente esta pessoa também estava extremamente estressada diante das mortes em decorrência de uma febre em um ambiente limitado, em um tempo onde as pessoas pouco compreendiam a possibilidade de contrair esse tipo de doença.

Infelizmente nada encontrei que apontasse que no final de 1876 este barco tenha se envolvido em uma tempestade que o deixou com danos de tal ordem que significasse um perigo real de afundamento e nada sobre mortes provocadas por um surto de febre.

O clipper Collingrove anhcorado na Austrália – Fonte – collections.slsa.sa.gov.au

Como notas finais desta história marítima posso comentar que o Collingrove continuou navegando por mais 24 anos sem maiores alterações, até ser vendido no ano de 1900 em Xangai.

Já o experiente comandante H. Angel, em outro barco da empresa A. L. Elder & Co., comandou o mais famoso dos tripulantes de barcos clippers. Este foi o imigrante polonês chamado Józef Teodor Konrad Korzeniowski, que na Inglaterra passou a ser conhecido como Joseph Conrad.

O escritor Joseph Conrad. Por conta de sua experiência de trabalho em clippers, muitas das suas obras centram-se em marinheiros e no mar.

Considerado um dos maiores romancistas a escrever no idioma inglês, foi um mestre da prosa que trouxe uma sensibilidade diferenciada para a literatura inglesa. Nas suas obras Conrad escreveu contos e romances, muito destes baseados na sua larga experiência náutica, enquanto explorava profundamente a psicologia humana, retratando através de ensaios um universo impassível, inescrutável.

Um visitante regular para Port Adelaide a partir do momento que ela foi construída até o final de 1890.

FONTES NA INTERNET 

https://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Conrad

http://collections.slsa.sa.gov.au/resource/PRG+1373/2/18

https://en.wikipedia.org/wiki/Torrens_(clipper_ship)

http://www.findboatpics.net/zpel.html

http://users.adam.com.au/easby/Chapter%205%20-%20The%20Clarkes,%20Grays%20and%20Adams.html

http://passengersinhistory.sa.gov.au/node/943903


NOTAS

[1] Enviar garrafas com mensagens pelo mar não é nada recente na história da humanidade. o primeiro registro de uma mensagem lançada ao mar foi realizado pelo filósofo grego Theophrastus que, por volta de 310 a.C. jogou garrafas ao Mar Mediterrâneo para tentar provar que as águas deste mar eram formadas por um fluxo que vinha do Mar Atlântico. Este pensador é considerado o sucessor imediato de Aristóteles, por quem foi nomeado como sucessor e guardião de toda a biblioteca de seu mentor! Sobre este tema ver – http://tcmuseum.org/collections/message-in-a-bottle/

[2] Nesta época Muriú já tinha um quadro populacional que necessitava de uma escola primária. Nas páginas 45 e 46 da Coleção de Leis Provinciais do Rio Grande do Norte para os anos de 1872 e 1873, encontramos a Lei nº 667, sancionada pelo então Presidente da Província João Bandeira de Mello Filho, em um exemplar existente na biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, se lê no seu Artigo 1º que “Ficam criadas cinco cadeiras de instrução primaria para o sexo masculino nossa lugares Muriú e Capela, do município de Ceara Mirim, Poço Limpo, do Natal, Laranjeiras, do de São José de Mipibu, e praia do Tibau, do de Goianinha”. Vale frisar que grande parte das comunidades de pescadores que conhecemos hoje entre a capital potiguar e a cidade litorânea de Touros também já existiam.

[3] Em 25 de maio de 2016, junto com o pesquisador argentino, radicado em Natal, German Zaunseder, ao realizar uma pesquisa sobre a chegada de um grupo de náufragos ingleses na cidade litorânea de Rio do Fogo em 1941, entrevistamos o Sr. Miguel Alves de Souza, nascido nesta comunidade em 18 de setembro de 1921. Sobre a carência de estradas e transportes para as comunidades do litoral potiguar, ele comentou que até sua juventude era normal as pessoas da localidade seguirem principalmente em barcos para Natal. Mas não era incomum que muitos realizassem este trajeto pela beira mar em lombo de animais e até mesmo a pé. 

[4] Popularmente conhecido como piche, é uma mistura líquida de alta viscosidade, cor escura e inflamável. É formada por compostos químicos (hidrocarbonetos), e que pode tanto ocorrer na natureza como ser obtido artificialmente, em processo de destilação do petróleo. Produto conhecido desde a Antiguidade é considerado uma das melhores opções para acabamento e calafetagem para impedir vazamentos de cascos de barcos de madeira. Ver – http://lojadoimper.blogspot.com.br/2014/11/primeira-referencia-sobre.html

[5] A população de Natal em 1876 se equivaleria atualmente ao do município de Monte Alegre. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_municípios_do_Rio_Grande_do_Norte_por_população . Sobre números da população de Natal ao longo de sua história ver – http://www.webcitation.org/6OL6BlLnX

[6] O jornal O Atalaia era um jornal de apenas quatro páginas, publicado duas vezes por mês, sendo apresentado como “Literário, crítico, noticioso e dedicado aos interesses da liberdade, igualdade e do progresso”. Tinha a sua sede na Rua Correia Telles, número 29, Ribeira e era impresso na tipografia Independência, na Rua Santo Antônio. Só encontrei apenas um exemplar deste jornal, disponível nos jornais potiguares digitalizados e disponíveis na Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional.

[7] É possível que este barco não estivesse tão próximo da costa africana. Pois a garrafa teria sido lançada ao mar em 29 de setembro de 1876 e chegou à praia de Muriú cerca de um mês após.

[9] Na atualidade Loanhead é uma pequena comuna onde habitam pouco menos de 7.000 escoceses e fica localizada a cerca de dez quilômetros ao sul da dinâmica cidade de Edimburgo. Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Loanhead

[10] Para pesquisar sobre antigos barcos nos registros do Lloyds, acesse http://www.lrfoundation.org.uk/public_education/reference-library/register-of-ships-online/