1964 – A REVOLTA DOS MARINHEIROS E FUZILEIROS NAVAIS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Marinheiros e fuzileiros navais sublevados no interior do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, sendo cercados por tropas do Exército Brasileiro. Essa manifestação militar foi um dos estopins da Revolução de 1964, que implantou o regime ditatorial no Brasil por vários anos.

A Revolta dos Marinheiros ocorreu entre os dias 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro e foi um conflito entre as altas autoridades da Marinha do Brasil e a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB).

Momento em que os fuzileiros navais foram enviados para desalojar seus colegas de farda. Mas…

No Brasil, a primeira metade na década de 1960 foi um período de grande mobilização de grupos como “estudantes, sindicalistas, políticos, artistas, camponeses organizados, comunistas e outros. Como parte dessa agitação social e vinculados às demais forças, surgiram movimentos nos membros formadores dos grupos de baixa patente nas Forças Armadas, como sargentos, cabos e soldados. Eles eram tipicamente esquerdistas, com ideologia nacionalista e reformista. Foram organizados em associações de classe, incluindo a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil,

vários deles aderiram ao movimentro e largaram suas armas!

A AMFNB fez parte dos movimentos dos militares de baixa patente no início da década de 1960, onde também figura a revolta dos sargentos do Exército e da Marinha em 1963, da qual participaram muitos de seus integrantes. Era uma associação de classe para uma categoria pobre, com condições de trabalho difíceis, privada de direitos como o voto e o casamento, e marcada pela extrema diferença social em relação aos oficiais das Forças Armadas, situação que inclusive perdura até hoje!

A AMFNB foi fundada 25 de março de 1962 por marinheiros e fuzileiros navais e em 1964 seu presidente era José Anselmo dos Santos, o conhecido “Cabo Anselmo”.

Plenária dos marinheiros e fuzileiros navais durante o movimento. Ao microfone uma das principais lideranças, o marinheiro José Anselmo dos Santos.

Nesses dois anos essa associação conquistou milhares de membros e uma liderança mais combativa, aproximando-se do presidente João Melchior Marques Goulart, o Jango, e de organizações de esquerda, além de se interessar por questões externas à corporação, como as reformas de base.

A entidade encontrou hostilidade por parte dos oficiais da Marinha sobre a questão da indisciplina militar. Sua politização não foi tolerada, ao contrário das atividades políticas do funcionalismo.

Ocupação da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro pelos marinheiros e fuzileiros navais.

O aniversário de dois anos da Associação, no dia 25, foi comemorado no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, na Rua Ana Neri, 152, bairro de Benfica. Cerca de dois mil marinheiros estavam no local, quando o então ministro da Marinha, Sílvio Mota, ordenou a prisão dos 40 organizadores do evento, por declaração proferida no dia 20. Em reação, os marinheiros se recusaram a abandonar o local até o cumprimento de uma série de demandas.

O ministro da Marinha, Silvio Mota, decretou prontidão estrita, o que exigia a presença de marinheiros em suas unidades, mas eles desobedeceram e ficaram na sede do Sindicato.

Tropas da Polícia do Exército na hora do almoço, ou rancho, agaurdando o desfecho das negociações.

Essa desobediência não constituiu um movimento armado. No dia 26, o ministro queria invadir o sindicato com fuzileiros navais reforçados por tropas do exército.

Vinte e cinco soldados da tropa enviada pelo ministro para desmobilizar o protesto resolveram depor as armas e aderir ao motim. O comandante dos fuzileiros navais, almirante Cândido Aragão, foi exonerado por sua recusa de realizar o ataque. Vale ressaltar que a esquerda em geral era a favor dos rebeldes, enquanto a oficialidade era contra. Uma segunda operação de retirada dos amotinados, mas foi cancelada.

As mulheres dos amotinados apoiaram intensamente seus companheiros, até porque uma das reivindicações desses militares era a possibilidade dos praças das Forças Armadas contrairem matrimônio.

O presidente João Goulart voltou às pressas de São Borja para o Rio de Janeiro, nomeou Paulo Mário da Cunha Rodrigues como novo ministro no lugar de Sílvio Mota, e assumiu as negociações. Na manhã do dia 27, ele acertou a saída dos amotinados e, à tarde, declarou a anistia dos marujos.

O motim saía vitorioso e as Forças Armadas afrontadas. A ação de Goulart foi duramente criticada pela oposição e visto pelas autoridades como conivente com a quebra da disciplina militar.

Na rua outras tropas bem armadas aguardam o desfecho da situação.

Além disso a revolta dos marinheiros unificou muitos militares contra Goulart, fragilizou o governo e forneceu às lideranças que conspiravam contra Jango o pretexto para sustentarem a denúncia de ilegalidade do presidente. Enquanto isso, o horizonte do golpe ficava perigosamente mais próximo e no final do mês de março os militares derrubaram Jango.

Fim do movimento e a retirada dos marinheiros e fuzileiros em viaturas do Exército.

O episódio da revolta dos marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro está relacionado com a Revolta de Chibata de 1910, como se sentiu na época, e foi seguida da punição dos envolvidos. Outras consequências foi que muitos dos punidos participaram da luta armada contra a ditadura militar. Entretanto, a longo prazo, ocorreu o aperfeiçoamento das condições dos praças da Marinha.

Poucos dias depois do fim do movimento dos marinheiros e fuzileiros navais, novamente as viaturas militares deixaram os quartéis para ajudarem na deflagração do Golpe de Estado de 31 de março de 1964.

A revolta é frequentemente acusada de ser obra de agentes provocadores (especialmente o “Cabo Anselmo”) a serviço dos golpistas que derrubaram Goulart, o que tem sido contestado por historiadores.

José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, é ainda hoje o mais conhecido informante a serviço da Marinha e da CIA durante a Ditadura Militar.

Fonte – https://riomemorias.com.br/memoria/revolta-dos-marinheiros/

INSPIRADO EM RECORDAÇÕES, ARTISTA POTIGUAR RETRATA COTIDIANO DO SERTANEJO

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Pintura de uma festa junina em Currais Novos (Foto: Assis Costa) – Fonte – G1

‘Não podemos negar nossas origens’, diz o curraisnovense Assis Costa.
Para pintar, ele lembra das brincadeiras de criança e dos banhos de açude.

Nascido na cidade de Currais Novos, no Seridó potiguar, o artista plástico Assis Costa retrata o cotidiano do sertanejo através das próprias recordações. Prestes a fazer 40 anos, o pintor ainda lembra da sensação única de construir os próprios brinquedos, tomar banho de açude e subir em árvores.

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Circo na cidade (Foto: Assis Costa) – Fonte – G1

O gosto pela arte começou cedo. “Quando eu era criança, comecei a experimentar e usar tintas, além de desenhar. Fiz um curso e, com 14 anos, comecei a vender minhas telas”, disse. Hoje, ele vive da venda das obras.

Com mais de 15 exposições durante a carreira, Assis tem uma preferida. Em 2012, fez uma mostra chamada ‘Seridós’. Ao portal G1, ele disse que foi uma maneira marcante de expor a cidade para quem não conhecia. “Quero ressaltar meu respeito pela cultura potiguar. O que eu vejo é que a religião é muito forte no interior, principalmente a católica. A fé, a paisagem e o povo sertanejo são minhas maiores inspirações”.

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Paisagem do Seridó (Foto: Assis Costa) – Fonte – G1

Os trabalhos sobre o Seridó continuam. “Minha memória reflete em tudo que produzo. Uma das minhas telas mostra como era quando um circo chegava a cidade. Era extraordinário. Toda a população assistia os espetáculos. E é esse o sentimento que procuro demonstrar”, relembrou.

Assis também lembra de situações engraçadas que serviram de inspiração. “Eu estava tomando vinho na casa de um amigo e ele me disse ‘rapaz, você está bebendo muito e daqui a pouco você não vai saber com o que está pintando’, e eu comecei a experimentar o vinho como tinta. E deu certo! Resultou em uma exposição chamada Dom Quixote de Las Manchas de Vinho”, emendou.

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Teatro de João Redondo (Foto: Assis Costa) – Fonte – G1

Não há dúvidas sobre o futuro. “Sempre fui artista e vou continuar sendo. Apesar de morar no interior, pretendo mostrar minhas obras para pessoas do Brasil inteiro, quem sabe até de outros países. Não podemos negar nossas origens. E é por isso que retrato minha cidade com tanto carinho”, afirmou Assis.

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Ceia dos Meninos (Foto: Assis Costa) – Fonte – G1

FONTE – http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2016/07/inspirado-em-recordacoes-artista-potiguar-retrata-cotidiano-do-sertanejo.html

 

O ESQUECIDO REPENTISTA POTIGUAR JOÃO DA TAPITANGA

Curitiba no início do século XX - Fonte - curitibanosdasilva.blogspot.com
Curitiba no início do século XX – Fonte – curitibanosdasilva.blogspot.com CLIQUE NAS FOTOS PARA AMPLIAR

Homem de vida curta, mas que realizava sua arte com talento e fez muito sucesso no Paraná

Autor – Rostand Medeiros

Sou nascido e vivo em um pequeno estado nordestino chamado Rio Grande do Norte. Aqui é uma terra boa, onde a natureza foi muito benéfica e criou paisagens incríveis e maravilhosas. É também uma terra de gente amiga e onde não é difícil surgir pessoas com muito talento para realizar muitas coisas, principalmente para as artes.

Mas, infelizmente, como tudo na vida sempre possui dois lados, esses talentosos artistas normalmente são sempre vistos em segundo (talvez terceiro? Ou quarto? Quinto?) plano por vários setores de nossa sociedade. Estes artistas são muitas vezes marginalizados, desprezados e esquecidos em sua própria terra. Por vezes o melhor caminho para estes potiguares talentosos vencerem através de sua arte é saindo fora desta terra maravilhosa.

Dizem que na atualidade existem mais facilidades para nossos artistas conquistarem seu lugar ao sol por aqui mesmo. Não sei se esta informação é correta, sei que pesquisando sobre a nossa história em jornais antigos disponíveis na internet, não é difícil encontrar dados sobre pessoas que deixaram nosso chão para tentar vencer em terras distantes.

Um destes foi João da Tapitanga… 

No Sul

Em 1871 Natal era uma esquecida capital de província do Império do Brasil, de vida muito tranquila, onde moravam cerca de 20.000 almas (equivalente atualmente em número de habitantes a cidade potiguar de Monte Alegre). No dia 8 de março nascia João, filho de Francisco I. Emereciano China, membro de uma tradicional família que vivia em Natal, onde não faltavam renomados médicos e até um deputado estadual[1].

Curitiba início do século XX - Fonte - Wikipédia
Curitiba início do século XX – Fonte – Wikipédia

Eu nada encontrei sobre a infância de João Emereciano China, sua adolescência, detalhes sobre sua família, seus estudos e o despertar para a arte do repente. Mas podemos apontar com certa tranquilidade, principalmente através do que deixou escrito, que João China teve uma boa educação. Além disso, sobre estes primeiros anos deste repentista, existe documentação que comprova que João era empregado dos Correios e Telégrafos, na função de “praticante de 2ª classe”[2].

Em 1893, aos 22 anos, João China veio viver em Curitiba, a bela capital paranaense, aonde chegou transferido pela repartição pública que trabalhava. Logo este natalense se envolveu em um sangrento conflito de sérias proporções no Paraná, que marcou a história do Brasil.

Em Meio a Guerra

Nesta época Curitiba era uma cidade menor que Natal, com cerca de 11.500 pessoas vivendo por lá[3]. Muitos dos que ali moravam eram imigrantes alemães, italianos, poloneses e ucranianos, que influenciavam a sociedade, a cultura e a economia da capital paranaense. Mesmo convivendo entre pessoas com maneiras de falar tão distintas e aspectos bastante diferenciados aos encontrados em Natal, sabemos que João China não sentiu muitas dificuldades em se adaptar a nova localidade e logo começou a fazer várias amizades entre os curitibanos.

Maragatos em Santa Catarina Prefeitura de Braço do Norte - SC - Fonte - http://ecomoveiogente.blogspot.com.br/2012/09/a-revolucao-federalista.html
Maragatos em Santa Catarina
Prefeitura de Braço do Norte – SC – Fonte – http://ecomoveiogente.blogspot.com.br/2012/09/a-revolucao-federalista.html

Ativo politicamente, se colocou ao lado do marechal Floriano Vieira Peixoto, presidente do Brasil durante a chamada Revolução Federalista.

Este sério conflito, que se estendeu de 1893 a 1895, foi travado entre os partidários de dois oligarcas gaúchos: de um lado, os federalistas liderados por Gaspar Silveira Martins (conhecidos como maragatos e de lenço vermelho amarrado no pescoço como distintivo); de outro, os republicanos (chimangos ou pica-paus e identificados pelo lenço branco), seguidores do positivista Júlio de Castilhos.

Os federalistas defendiam a instalação de um regime parlamentarista nos moldes do que existiu no Segundo Reinado. Já os republicanos defendiam um presidencialismo forte, centralizador, no estilo do governo de Floriano Peixoto. O confronto ultrapassou as fronteiras gaúchas, estendendo-se até Santa Catarina, Paraná e até no Uruguai [4].

Fotografia de 1894 é de um prédio em ruínas, durante a Revolta da Armada no Rio - Fonte - http://www.revistadehistoria.com.br/secao/na-rhbn/ruinas-em-flashback
Fotografia de 1894 é de um prédio em ruínas, durante a Revolta da Armada no Rio – Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/na-rhbn/ruinas-em-flashback

Em setembro de 1893, paralelo aos conflitos no sul do país, estourou no Rio de Janeiro, mais precisamente na Baía de Guanabara, a Revolta da Armada. Seus principais líderes eram os almirantes Saldanha da Gama e Custódio de Mello, que comandaram a tomada de navios de guerra e bombardearam a então Capital Federal. Na sequência Custódio de Mello seguiu para o sul com seus navios, unindo-se aos revoltosos da Revolução Federalista. Na sequência foi criado um governo provisório para os revoltosos na ilha do Desterro, Santa Catarina.

Floriano Peixoto ficou em uma situação difícil, pois além de ficar impedido de deslocar tropas por mar para o sul do país, ao mesmo tempo precisava defender o Rio de um ataque por terra.

Quando ocorreu o ataque dos federalistas estes conseguiram dominar boa parte do Rio Grande do Sul e Santa Catarina e estabeleceram planos de derrotar o Paraná. A ideia era seguir depois para tomar São Paulo e alcançar o Rio. Em território paranaense os revoltosos visaram dominar por mar a cidade de Paranaguá, vindos de Santa Catarina tomariam a cidade de Tijucas do Sul e a tomada da localidade de Lapa deixaria Curitiba indefesa.

Coronel Dulcídio (militar com menor estatura) em pé, atrás de uma metralhadora Nordenfelt - Fonte - Wikipédia
Coronel Dulcídio (militar com menor estatura) em pé, atrás de uma metralhadora Nordenfelt – Fonte – Wikipédia

Desde o início do Império, a região de Curitiba, sempre se colocou ao lado do poder central, funcionando como uma barreira contra revoluções que vinham do sul e o Paraná se preparou para enfrentar este novo problema. O coronel Cândido Dulcídio Pereira, Comandante do Regimento de Segurança, atual Polícia Militar do Paraná, criou uma nova unidade militar que foi denominada Batalhão Patriótico 23 de outubro e colocou seu efetivo à disposição do Governo Federal. O comando da unidade ficou a cargo de Domingos Virgílio do Nascimento, um antigo aluno das Escolas Militares do Rio de Janeiro e Porto Alegre, mas também conhecido como jornalista, poeta e autor do hino do Paraná. Entre os civis incorporados a este batalhão, com a patente de tenente, estava o repentista potiguar João da Tapitanga.[5]

Informações apontam que o Batalhão Patriótico 23 de Novembro foi colocado à disposição das Forças Federais, sendo esta unidade reunida ao 8º Regimento de Cavalaria e o 17º Batalhão de Infantaria do Exército, todos sob o comando do general Francisco de Paula Argolo. Estas unidades militares receberam ordens para avançar sobre a ilha de Desterro, onde se concentravam os federalistas e os marinheiros sublevados da Revolta da Armada.

Devido o iminente cerco por outras colunas móveis, o general Argolo decidiu recuar as tropas para Rio Negro, no Paraná. Esse procedimento desagradou Floriano Peixoto, que ordenou a Argolo que repassasse o comando das tropas para o coronel Antônio Ernesto Gomes Carneiro, com ordens de reter ao máximo os revoltosos no Paraná, em uma linha de defensiva concentrada na cidade de Lapa, até receber reforços de São Paulo. Mas os reforços paulistas nunca chegaram.

Entrada dos federalistas em Curitiba, Alm. Custódio de Mello e Gal. Gumercindo Saraiva Acervo do Museu Paranaense
Entrada dos federalistas em Curitiba, Alm. Custódio de Mello e Gal. Gumercindo Saraiva
Acervo do Museu Paranaense

Curitiba estava sem exército e governantes, só a Lapa estava guarnecida. Carneiro e suas tropas foram cercadas na cidade, em um dos mais célebres episódios da vida militar brasileira, conhecido como Cerco da Lapa. A cidade foi continuamente bombardeada por 28 dias, entre 15 de janeiro e 11 de fevereiro de 1894 e a luta seguiu ferrenha pelas ruas da cidade, onde restavam apenas escombros. Logo após a rendição e desarmamento dos derrotados, começaram as degolas. Curitiba seria invadida pelos maragatos no dia 20 de janeiro, que permaneceram na cidade até o dia 26 de abril, num total de quase 100 dias.

Com o tempo que conseguiu com a resistência no Paraná, Floriano pôde adquirir armamentos e navios de guerra nos EUA e com eles derrotar Saldanha da Gama. Os comandantes maragatos resolveram voltar ao sul, alguns deles refugiando-se no Uruguai e Argentina. Este conflito deixou um saldo de cerca de 10.000 mortes[6].

No meio dessas movimentações militares, segundo os jornais da época, o tenente, depois promovido a capitão fiscal, João da Tapitanga esteve em ação em fins de 1893, na região de Villa Tamandaré e esteve no Cerco da Lapa, mas não teve a cabeça cortada.[7]

O Repentista Curitibano

Aparentemente a participação militar de João da Tapitanga na Revolução Federalista o colocou em um patamar extremamente positivo junto a sociedade curitibana. Este patamar se ampliou com a sua arte, seu jeito tranquilo, carisma e sua boêmia.

Cartão Postal - Setor HIstórico de Curitiba no início do século XX. Acervo Fundação Cultural de Curitiba
Cartão Postal – Setor HIstórico de Curitiba no início do século XX. Acervo Fundação Cultural de Curitiba

Um dos paranaenses de renome que conviveram com o potiguar foi Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo, então Procurador-Geral do Estado, escritor, um dos fundadores e professores da Universidade do Paraná (atual UFPR). Azevedo Macedo e sua esposa Clotilde Portugal Macedo, comentaram em 1913 que João da Tapitanga era considerado um jovem poeta talentoso, que versejava com uma espontaneidade extraordinária e era tido como um homem de maneiras simples e honesta[8].

Era conhecido simplesmente e carinhosamente pelos amigos curitibanos como “Tapi”. Boêmio, tinha no álcool um grande amigo e o seu maior inimigo, que inclusive o levou a demissão dos Correios e Telégrafos. Não era difícil encontrá-lo na Confeitaria Bube, verdadeiro areópago e centro da boemia curitibana, localizado na antiga Rua das Flores, depois Rua 15 de novembro, cujo proprietário, Roberto Bube, lhe havia presenteado com uma cadeira cativa, pois atraia os clientes.

Gostava de participar de reuniões politicas, sempre se colocando como republicano fiel e seguidor ardoroso do marechal Floriano Peixoto. Não era raro nestas reuniões que Tapitinga proferisse discursos arrebatadores com seu forte sotaque nordestino (ou nortista, como chamavam na época), repletos de entusiasmo, recebendo aplausos dos presentes e destaque na imprensa curitibana[9].

Para Azevedo Macedo, o poeta João da Tapitanga chegou ao Paraná já homem feito, com seu espirito já formado e havia estudado longe de Curitiba, mas o que ele trouxe de sua terra natal, a sua arte do repente, impressionou os curitibanos. Chamava atenção quando alguém pedia a Tapitanga um verso, ou lhe davam um mote, que ele respondia sem pestanejar cvom uma grande quantidade de versos “cheio de imagens arrojadas, em redondilha menor”, como registrou Azevedo Macedo.

Detalhe da parte inicial da reportagem produzida  por Euclides da Mota Bandeira sobre Tapitanga em 1926 e publicada em Natal.
Detalhe da parte inicial da reportagem produzida por Euclides da Mota Bandeira sobre Tapitanga em 1926 e publicada em Natal.

Vale ressaltar que nos jornais que li sobre este natalense, raramente era tratado de poeta, sendo normalmente apresentado como REPENTISTA.

Outro contemporâneo de João da Tapitanga, pessoa de renome em Curitiba, foi Euclides da Mota Bandeira e Silva, jornalista, poeta e membro da Academia Paranaense de Letras. Este considerava os repentes do potiguar algo que pelo sul era pouco conhecido e chamava atenção. João da Tapitanga deixou em Bandeira o registo de ser um “incorrigível boêmio, perdulário de rimas e de verves, o qual foi durante alguns anos o bardo popular da cidade”. Comentou também que ele era totalmente autêntico, que “não se prestava a digressões acadêmicas, recheadas de complexidades psicológicas e coisas campanudas sobre escolas literárias” e que “escreveria para gente simples”. [10]

Euclides Bandeira trás a informação que o repentista natalense trabalhava, ou como ele mesmo dizia, “ganhava dinheiro quando este lhe faltava”, em jornais curitibanos, ou passando um tempo como um barnabé que não se preocupava muito com a folha de ponto na Secretária do Interior do Paraná e ganhando uns cobres produzindo folhetins com versos de sua lavra. Um deles, intitulado “Alzira”, fez sucesso e chamou atenção dos curitibanos em 1896, cujo um dos trechos foi assim escrito;

“Alzira, fitando o espaço

Cheios de pontos de luz,

E as mãos unidas em cruz

Sobre o pequeno regaço,

 

Pede ao azul transparente,

Onde os astros ascendem,

Que guarde a alma inocente

Das flores que já morreram…”

João da Tapitanga  era um homem típico do final do século XIX, em um período de comunicações limitadas, mas não era distante dos acontecimentos que ocorriam no exterior. Fez versos e produziu folhetos sobre a Guerra de Independência Cubana de 1895, a vitória do imperador etíope Menelik II contra tropas italianas em Ádua no ano de 1896, ou sobre a Guerra dos Bôeres, na África do Sul.

Em 1897 o 39° Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro partiu de trem de Curitiba em direção ao porto de Paranaguá, seguindo depois para a Bahia de barco, com a missão de participar da Campanha de Canudos. Em meio à multidão delirante que assistia à partida dos militares, Tapitanga, com seu sotaque forte nordestino (algo que nunca perdeu e nem escondia), proferiu um inflamado discurso em prol dos soldados e foi intensamente ovacionado. 

Esquecido

O repentista natalense casou com uma jovem prendada e humilde chamada Jesuína Silva da Cunha e tiveram um filho e duas filhas, cujos nomes na época não eram nada convencionais; Jesoão, Joina e Transvalina. Morava em uma casa alugada na Rua da Assembleia, atual Alameda Dr. Muricy, centro de Curitiba[11].

Um "causo" de joão da Tapitanga em Curitiba - Gazeta de Notícias, 15 de dezembro de 1935
Um “causo” de joão da Tapitanga em Curitiba – Gazeta de Notícias, 15 de dezembro de 1935

Mesmo com informações limitadas, percebemos um João da Tapitanga batalhador e desejando melhorar de vida, mas com dificuldades. Através de pesquisas soubemos que este natalense tentou manter uma escola na chamada Colônia de Agua Verde, hoje um bairro de Curitiba. Esta área, então periférica, era pouco assistida pelas autoridades e os que ali viviam recorriam ao uso de abaixo-assinados para reclamarem, denunciarem e suplicarem pelas mais diversas melhorias na sua região. Um destes abaixo-assinados, produzido em 27 de fevereiro de 1896, foi enviado ao então govenador paranaense, José Pereira Santos Andrade, solicitando a subvenção para uma escola particular que era mantida pelo professor João da Tapitanga desde o mês de janeiro daquele ano. Na tese de doutorado “A escolarização dos imigrantes e de seus descendentes nas colônias italianas de Curitiba, entre táticas e estratégias de italianità e brasilitá (1875-1930)”, apresentada na Universidade Federal do Paraná, pela pesquisadora Elaine Cátia Falcade Maschio, temos a transcrição deste abaixo-assinado; 

“Neste sentido, Nós abaixo assignados, moradores na Colônia Água Verde, a qual não tem actualmente escola nem subvencionada pelo Estado nem pública ou contractada pelo mesmo, mas onde há um ellevadissimo número de meninos de ambos os sexos, vimos confiadamente pedir a VEª para que seja subvencionado o estabelecimento de ensino n’esta colônia dirigido pelo cidadão João da Tapitanga desde o princípio de Janeiro último a contento de todos, e onde já se vê o ellevado numero de alumnos que se verifica dos mappas junctos fornecidos pelo mesmo cidadão.”

O repentista natalense aparentemente continuou buscando melhorar sua condição financeira e o futuro de seus familiares. No primeiro semestre de 1897 ele participou de um concurso para o cargo “vitalício de ofício privativo de Escrivão de Casamentos”. Tapitanga concorria com um certo Luciano José Garcia e perdeu a vaga[12].

Pequeno trecho de um verso de João da Tapitanga sobre a sorte, ou a falta dela.
Pequeno trecho de um verso de João da Tapitanga sobre a sorte, ou a falta dela.

Jornais apontam que nos últimos anos de sua vida a sua produção em termos de poesia declinou e o nome do natalense começa a desaparecer dos jornais curitibanos.

Sobre a morte do repentista curitibano nascido em Natal
Sobre a morte do repentista curitibano nascido em Natal

João da Tapitanga faleceu de uma febre, provavelmente adquirida indiretamente das mazelas advindas do álcool, na noite de 28 de setembro de 1901, aos 31 anos de idade. Foi enterrado no cemitério municipal de Curitiba e sua morte foi extensamente noticiada na imprensa local. Na edição de 30 de setembro do jornal “A República” de Curitiba a um extenso necrológico na 1ª página sobre a vida deste repentista potiguar. Vale ressaltar que sua esposa Jesuína ficou em uma situação de extrema pobreza, que foram socorridos pelos amigos que levantaram fundos através para a compra de uma casa. Seu nome foi sendo aos poucos esquecido em Curitiba.

Sua obra ficou dispersa, não foi reunida pelos amigos e parentes. João da Tapitanga jamais retornou ao Rio Grande do Norte e, aparentemente, não voltou a manter contato com a sua família em Natal. Em uma correspondência datada de 23 de março de 1932, a pedido da família de Tapitanga em Natal, o poeta potiguar Henrique Castriciano solicita ao critico literário e ficcionista curitibano José Cândido de Andrade Muricy, alguma informação do repentista potiguar. Não sabemos se houve alguma resposta[13].

 NOTAS


[1] Ver jornal “A República”, Natal, edição de 21 de agosto de 1926, página 1.

[2] Ver jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 22 de julho de 1891, página 1. Neste jornal encontramos o parecer positivo do “Ministro da instrução pública”, referente a um pedido feito por João China para alterar oficialmente seu nome para João da Tapitanga. Sabemos que o termo em tupi para pedra vermelha é Itapitanga, ou Tapitanga, e que no atual município catarinense de Balneário Barra do Sul existe uma ilha denominada Tapitanga, mas não sabemos porque o potiguar que foi morar em Curitiba passou a assinar com esse nome indígena.

[3] Hoje Curitiba possui de 1.800.000 habitantes.

[4] Embora Floriano tivesse tropas federais nos estados sulistas, somente em 1895, no governo de Prudente de Morais é que seria assinado um acordo de paz na região. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Federalista .

[5]  Informações apontam que o tenente João da Tapitanga já pertencia ao batalhão patriótico desde maio daquele ano. Em 21 deste mês ele participou de uma celebração a um companheiro de corporação, onde proferiu um marcante discurso. Ver exemplar do jornal “A República”, Curitiba, edIções de 23 de maio de 1893 (pág. 2).

[6] A Revolução Federalista foi um exemplo de barbárie e violência de ambos os lados. Não apenas os maragatos promoveram degolas, estupros e assassinatos de prisioneiros. Os legalistas ocuparam a capital eliminando todos aqueles que acusados de haver colaborado com os federalistas, ou de haver desertado. Ver – http://www.museuparanaense.pr.gov.br/arquivos/File/a_revolucao_federalista_no_parana.pdf

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lapa_%28Paran%C3%A1%29

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Ernesto_Gomes_Carneiro

[7] Ver exemplares do jornal “A República”, Curitiba, edições de 11 de outubro de 1893 (pág. 1), 1 de dezembro de 1893 (pág. 2), 13 de dezembro de 1893 (pág. 1), 14 de dezembro de 1893 (pág. 2). Atualmente a Villa Tamandaré se denomina Almirante Tamandaré. Sobre João da Tapitanga no Cerco da Lapa, ver jornal “Gazeta de Notícias”, Rio de Janeiro, edição de 15 de dezembro de 1935.

[8] Ver jornal “Diário da tarde”, Curitiba, edição de 23 de agosto de 1913. Nesta reportagem ele é apontado erradamente como sendo natural do estado de Alagoas (pág. 3).

[9] Tapitanga também participava como um dos principais oradores de eventos comemorativos ao nascimento e morte de Floriano Peixoto. Ver jornal “A República”, Curitiba, edição de 1 de julho de 1900 (pág. 1) e “o Comércio”, Curitiba, ed. De 30 de junho de 1900 (pág. 1).

[10] Entre os dias 1 e 4 de julho de 1926, Euclides Bandeira publicou no jornal matutino curitibano “O Dia”, uma extensa reportagem biográfica sobre João da Tapitanga, que foi reproduzida no jornal natalense “A República” nas edições de 18 e 19 de agosto daquele ano, sempre nas primeiras e segundas páginas.

[11] Ver jornal “A República”, Curitiba, edição de 13 de agosto de 1898 (pág. 2).

[12] Ver http://www.ppge.ufpr.br/teses/D12_Elaine%20C%C3%A1tia%20Falcade%20Maschio.pdf

[13] Na fundação Casa Rui Barbosa, no bairro Botafogo, Rio de Janeiro, encontra-se o arquivo de José Cândido de Andrade Muricy, onde está a carta de Henrique Castriciano. Ver http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/texto/FCRB_AMLB_Arquivo-Andrade-Muricy.pdf

O BRASIL ENTRE BEATOS, CANGACEIROS E CORONÉIS

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Em ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro’ Glauber Rocha capta as fissuras da sociedade brasileira. Retratando a violência e a crueza das relações sociais no sertão nordestino, constrói a ‘estética da fome’

Alexandre Leitão

Eu andei por esse mundo gente, e conheci a desgraça dos outros… e aprendi uma verdade que estava na Sagrada Bíblia: É olho por olho e dente por dente!

Cangaceiro Coirana, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.

Durante o século XX, amadureceu no seio da intelectualidade brasileira o desejo de identificar os traços mais característicos do ethos nacional. Sociólogos, antropólogos, historiadores e artistas se perguntavam no que, de fato, se constituiria o Brasil, e o que o impediria de transformar-se num país plenamente realizado nos planos socioeconômico e político. Nomes como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda publicariam obras-chave na tentativa de encontrar um significado para a existência nacional. No campo das artes plásticas, Cândido Portinari retrataria a existência sofrida do sertanejo, e na poesia e dramaturgia Oswald de Andrade ergueria a bandeira do antropofagismo cultural, como resposta e atestado do processo de realização artística no país.

Foi unindo diversas dessas teses, além de criando suas próprias, que Glauber Rocha definiu uma narrativa da história brasileira, expressa em obras como Terra em Transe (1967); e plenamente desenvolvida em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Neste longa-metragem, continuação de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), acompanhamos o destino melancólico de Antônio das Mortes, personagem vivido por Maurício do Valle, jagunço e matador de cangaceiros, contratado para realizar um último serviço.

Gláuber Rocha
Gláuber Rocha

Logo nos créditos iniciais, o filme apresenta um rápido sumário em francês, que Glauber – além de diretor, também roteirista do filme – julgou necessário para a compreensão dos eventos e do recorte histórico que queria construir (fruto de uma coprodução franco-brasileira, o prefácio quer explicar a um público estrangeiro os eventos históricos que considera mais relevantes para a compreensão do filme): “Chamam-se – ‘Jagunços’ assassinos de aluguel; ‘Coronel’ grandes proprietários de terras; ‘Beatos’ comunidade de camponeses miseráveis e místicos; ‘Santo’ pessoa que dirige espiritualmente essas comunidades”. Junto ao glossário se encontra uma rápida descrição dos cangaceiros enquanto “bandidos místicos que desapareceram do Nordeste do Brasil em 1940”, tendo sido Lampião o “mais célebre de todos”.

A apresentação reforça o sentido de disparidade estilística e narrativa em relação a Deus e o Diabo na Terra do Sol, que se passa no final da década de 1930. Ocorrendo em um momento relativamente atemporal, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro retrata um Nordeste em franco processo de modernização capitalista, no qual crescem as cidades, constroem-se estradas e postos de gasolina, e já se considera inevitável o advento da industrialização e da reforma agrária.

O sertão de Glauber

É em meio a esse cenário de abandono forçado de estruturas arcaicas, que um bando de cangaceiros e beatos, liderado pelo bandoleiro Coirana, ataca um pequeno povoado da caatinga, despertando pavor nas pessoas da região, que são forçadas a implorar pela ajuda de Antônio das Mortes – um jagunço aposentado.

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Chegando à cidade, um oficial da lei esclarece ao pistoleiro que, diferente do tempo das intensas volantes (expedições militares que partiam à caça dos bandos de Lampião, Corisco, e tantos outros), ele espera que tudo seja resolvido de forma rápida. Percebe-se que o perigo real de rompimento da ordem mantida pelo Estado no Nordeste simplesmente inexiste no que concerne ao bando de Coirana. Eles representam uma mera surpresa inconveniente, já que as condições para o surgimento dos cangaceiros por aquelas paragens já haviam, há muito, desaparecido.

O fato pode ser observado quando ocorre a segunda invasão do povoado pelos cangaceiros, retratada por Glauber em uma interminável panorâmica (como se chama a tomada em que a câmera gira sobre seu próprio eixo), na qual o bando, vestido com roupas tradicionais do sertão nordestino e indumentárias próprias de cultos afro-brasileiros, em vez de disparar suas armas contra o inimigo, dança e canta anarquicamente uma gira de louvor a São Cosme e Damião e ao orixá Xangô. O ataque, neste caso, é alegórico, representando a invasão de todo um legado cultural, popular e mestiço, que as elites brasileiras teriam sempre buscado frear.

E é sob esse aspecto que triunfam as pretensões estilísticas do filme de Glauber Rocha. Ao criar um grupo de cangaceiros extemporâneos, o cineasta retrata uma espécie de vingança histórica, segundo a qual uma segunda vinda do Cangaço tenderia a se justificar pela necessidade de punição simbólica da estrutura agrária brasileira, responsável primeiramente pela opressão secular sofrida pelos sertanejos. O chefe local, coronel Horácio (interpretado por Jofre Soares), longe de representar o perigo dos outrora onipotentes donos de terra do Norte, não passa de um velho cego, cuja vida se resume a divagar sobre uma realidade que ele jamais consegue apreender completamente. O velho é também desprovido do respeito do delegado Mattos (personagem de Hugo Carvana) e de sua própria mulher Laura, interpretada por Odete Lara, cujo caso amoroso é conhecido por todos os personagens.

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À ausência da necessidade material de uma rebelião (em vista do processo de modernização do sertão nordestino), corresponderia o imperativo de uma justiça simbólica capaz de punir os poderosos pelos crimes que haveriam cometido em tempos já remotos. É a percepção disso que faz Antônio das Mortes arrepender-se do assassinato de Coirana, a quem fere com uma peixeira, e decidir proteger os beatos. Estes são então chacinados por outro exército de jagunços, convocado pelo coronel Horácio.

Em uma cidade já fantasma, resta a Antônio das Mortes, Antão (comandante negro dos beatos, encarnado pelo ator Mário Gusmão) e ao professor de história do vilarejo, interpretado por Othon Bastos, concluírem a vingança iniciada por Coirana, eliminando o coronel e seus matadores. Ao cabo da trama, porém, não há uma multidão jubilosa tomando as ruas da cidade, ou uma sequência explicativa que mostre a celebração dos sertanejos.

300-O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro

A justiça histórica retratada por Glauber Rocha é crua e desprovida de consequências práticas: o processo de modernização do Nordeste seguirá inexoravelmente, deixando cair por terra as arcaicas relações de trabalho e poder da região, repostas por outras, mais adequadas a um mundo em contínua transformação. Resta a Antônio das Mortes, o pistoleiro redimido, simplesmente marchar sem rumo por uma rodovia empoeirada, tomada por grandes caminhões de carga e ladeada por um posto de gasolina da Shell, símbolos do novo mundo que invade o Sertão e altera sua paisagem.

A estética da fome

A protoanarrativa histórica de Glauber acaba assim por ecoar aquela delineada por Euclides da Cunha, cuja obra Os Sertões, caracteriza a relação entre o Brasil capitalista e modernizante do litoral, e o interior antigo e isolado, como sendo marcada pelo signo da violência. Violência que permeia os laços entre senhores e camponeses – mediada por jagunços – e a violência dos grandes centros urbanos, que desde o final do século XIX buscam sufocar, progressivamente, qualquer experiência ou modelo social que se interponha à marcha do “progresso”.

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Em 1965, o próprio Glauber ressaltaria o traço brasileiro da violência e a necessidade desta existir como nervo central do projeto artístico do Cinema Novo (representando ainda um relevante instrumento de transformação política) em seu manifesto “Uma estética da fome”, publicado na Revista Civilização Brasileira.

Nele, o cineasta defende que “somente uma cultura da fome, mirando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. (…) Pelo cinema novo: o comportamento exato de um faminto é a violência e a violência de um faminto não é primitivismo”. Esta se veria traduzida de maneira ritualizada nas alegóricas cenas de assassinato de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, primeiro filme colorido do diretor: a paleta de cores de cada plano e cada sequência remete quase sempre ao vermelho, a tons terrosos, à sujeira e ao sangue.

O imenso impacto estilístico e narrativo do Cinema Novo (com destaque para as obras de Glauber Rocha) rondaria fantasmagoricamente a história do cinema nacional, ecoando até os dias de hoje. Como se pode atestar em produções recentes, caso de O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, escolhido para ser o candidato brasileiro ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2014.

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Na trama, seguimos diversos grupos de personagens, de distintos níveis econômicos, habitantes da mesma rua ocupada por um condomínio de luxo, em Recife. Os prédios, que compõem o conjunto habitacional da narrativa, acabam por se tornar o espaço de realização de tensões sociais e históricas, ecoantes do Brasil colonial, tal qual descrito por Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande & Senzala: “Na zona agrária (brasileira) desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha, vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”.

Na nova realidade de um Brasil que se urbaniza, o antigo senhor de engenho, representado em O som ao redor pelo personagem Francisco, torna-se investidor imobiliário, não se furtando em considerar a vizinhança em que habita como sua propriedade pessoal. O papel antes reservado aos escravos passa a ser exercido pelas empregadas domésticas, que muitas vezes, quando jovens, são “pegas para criar” por seus patrões, os quais afirmam, por vezes, considera-las “da família” – materializando relações profissionais que estão muito distantes do que se esperaria de uma lógica de trabalho livre. As senzalas transformam-se nas famigeradas “áreas de serviço” e “quartos de empregada”, recintos de dimensões reduzidas e altas temperaturas, por vezes dominados pelo mofo e pela umidade – reservados a uma força de trabalho que, no condomínio, considera-se estar apenas de passagem.

E quanto aos outrora folclóricos jagunços, estes se transmutam nos sempre presentes vigias de rua – representados no filme pelo personagem Clodoaldo, interpretado por Irandir Santos, e seus comandados. Estes deixam de lado o gibão e o chapéu de couro, a peixeira, e a garrucha, para vestirem o já habitual colete preto, sem mangas, marcado nas costas com palavras como SEGURANÇA ou CONTENÇÃO. Longe de visarem cangaceiros e beatos, buscam agora os chamados intrusos, pivetes e trombadinhas, nos quais preferem aplicar seus “cala-boca” ou “sossega-leão”, do que apelar para a lei de um Estado racionalista, sustentado por instituições, ao menos oficialmente, não-patriarcais. E talvez seja neste aspecto que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro tenha se tornado, infelizmente, defasado. O Brasil arcaico que tanto Glauber Rocha quanto a época em que viveu consideravam moribundo e superado, parece continuar vivo nas entranhas do Brasil moderno.

FONTE – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/cine-historia/o-brasil-entre-beatos-cangaceiros-e-coroneis