CANUDOS

Monumento de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos LUCIANO ANDRADE/
Monumento de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos
LUCIANO ANDRADE/

Canudos, Bahia (6/11/1896 – 5/10/1897)

Movimento que surgiu na primeira metade da década de 1890, com a pregação de Antônio Conselheiro, um líder beato local que passou a ser seguido pelas populações do sertão baiano como uma espécie de messias. O beato começo a pregar por volta de 1870, tendo sido proibido de fazê-lo em 1882 por ordem da Igreja Católica. Após a proclamação da República de 1889, passou a criticar a República devido ao estabelecimento do casamento civil e à separação entre Igreja e Estado.

Participou de uma rebelião contra a cobrança de impostos em 1893, e fixou-se no arraial de Canudos (no vale do rio Vaza-Barris), ao lado de milhares de sertanejos aos quais prometia a salvação espiritual. Fundou-se uma comunidade autônoma onde se produziam os próprios meios de subsistência. Os produtos básicos era divididos e a condição de miséria das populações marginalizadas era amenizada.

O movimento é normalmente associado às péssimas condições de vida que existiam na região nordeste desde o final do Império. A área era dominada por grandes latifúndios de baixa produtividade, por uma oligarquia política arcaica e contendo uma grande massa de excluídos e miseráveis. Somando-se a isso a frequência de secas e a baixa produtividade das terras locais, o resultado era que muitos sertanejos juntavam-se em bandos paralegais ou criminosos (como o cangaço) visando garantir sua sobrevivência, fenômeno que passou a ser chamado de “banditismo social” pelos historiadores.

Ruínas da entrada do cemitério da antiga cidade de Canudos Arquivo/AE
Ruínas da entrada do cemitério da antiga cidade de Canudos
Arquivo/AE

Em 1896, Canudos contava com uma população estimada entre 10 mil e 25 mil habitantes, e continuava crescendo. Tal inchaço demográfico e a atração que a comunidade causava começaram a incomodar as oligarquias, o clero e a imprensa locais, que difundiram rumores de que Canudos seria um movimento monarquista e uma ameaça à República. Os sertanejos de Canudos eram qualificados como “fanáticos”.

No mesmo ano, Conselheiro encomendou uma remessa de madeira em Juazeiro com o objetivo de construir uma igreja. Quando esta atrasou, alegou-se que a comunidade de Canudos estaria se preparando para lançar uma ofensiva armada contra as autoridades para conseguir o produto pela força. O governo da Bahia, por conseguinte, enviou duas expedições armadas contra os beatos. A primeira com cerca de uma centena de homens, e a segunda com 500 homens. Ambas as expedições foram derrotadas pelos sertanejos.

Face às humilhantes derrotas, o governo baiano organizou uma terceira expedição, mais volumosa e bem equipada. Eram cerca de mil e duzentos homens, comandados pelo célebre coronel Moreira César.

Vista do mirante de Canudos, a estátua de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos, na Bahia LUCIANO ANDRADE/AE
Vista do mirante de Canudos, a estátua de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos, na Bahia – LUCIANO ANDRADE/AE

No entanto, a nova expedição não obteve sucesso e seu comandante foi morto pelos sertanejos. Essa derrota levou a uma enorme insatisfação da opinião pública no Rio de Janeiro, culminando com a depredação de jornais monarquistas e um assassinato.

Finalmente, foi organizada uma nova expedição militar pelo governo federal, na época representado pelo presidente Prudente de Morais. A quarta leva de soldados cercou a comunidade e a bombardeou. Os rebeldes forma aniquilados em outubro de 1897. O cadáver de Antônio Conselheiro foi exumado e sua cabeça decepada.

O jornalista Euclides da Cunha foi correspondente do jornal “O Estado de S. Paulo” (na época “Província de São Paulo”) em Canudos e descreveu a quarta campanha do exército republicano contra a comunidade. Sua cobertura para o jornal rendeu ao Brasil um de seus maiores clássicos literários, o livro “Os Sertões”. Após a derrota da terceira expedição, Cunha havia publicado no jornal um artigo intitulado “A nossa Vendéia”, no qual comparava o conflito baiano a um episódio da revolução francesa, e demonstrara seu apoio à República.

Vista das ruínas da igreja de Canudos LUCIANO ANDRADE/AE
Vista das ruínas da igreja de Canudos
LUCIANO ANDRADE/AE

No entanto, ao visitar pessoalmente os revoltosos e assistir ao extermínio perpetrado pelas forças republicanas, o autor se decepcionou profundamente com o exército e passou a ver o conflito com outros olhos.

Seu clássico foi publicado em 1902. Nele, o jornalista enaltecia a raça dos sertanejos (“rocha viva de nossa raça”) em oposição aos “litorâneos” e apontava os problemas da República, como o militarismo. Denunciou, através de seu livro, o massacre dos vencidos e o comércio de mulheres e crianças, interpretação que se tornou marcante e hegemônica na memória nacional.

Fonte – http://acervo.estadao.com.br/noticias/topicos,canudos,881,0.htm

ÂNGELO ROQUE – A REGENERAÇÃO DE UM CANGACEIRO

Manchete da reportagem da década de 1950, sobre a regeneração de Ângelo Roque
Manchete da reportagem da década de 1950, sobre a regeneração de Ângelo Roque

Autor – Rostand Medeiros

No Brasil a palavra “regeneração”, definitivamente é algo que o nosso povo não sabe trabalhar muito bem em suas mentes e seus corações, quando aplicada aqueles que erraram junto a sociedade, contra os que praticaram crimes diversos, contra os que sofreram as duras penas da lei e estiveram um período em alguma unidade prisional.

Dificilmente vemos o antigo presidiário como alguém que se regenerou. Olhamos para ele mais com medo do que com esperança de que ali está uma pessoa recuperada. Isso não é difícil diante verdadeiras masmorras medievais que existem nos nossos presídios.

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Por isso é que na história carcerária brasileira chama tanto atenção o fato dos homens que foram cangaceiros, pelo menos os que se entregaram e passaram um tempo presos, terem tido um índice de reincidência criminal baixíssimo.

Na verdade digo “terem tido um índice de reincidência criminal baixíssimo”, pois ouvi isso de outros pesquisadores do tema cangaço. Mas confesso que nunca li e não tenho dados que comprovem especificamente quantos antigos cangaceiros padeceram na prisão e quantos voltaram ao crime após a liberdade.

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Entretanto é vasto, inclusive amplamente divulgado na imprensa brasileira das décadas de 1950 e 1960, que vários homens que andaram nas caatingas debaixo do peso do chapéu de couro e do “pau de fogo”, ao deixarem a prisão se tornaram os ditos “cidadãos de bem”, totalmente regenerados. Muitos se tornaram pacatos funcionários públicos, pequenos comerciantes, caixeiros viajantes e outros exerceram simples e honestas atividades. Um dos casos mais emblemáticos na minha opinião é a recuperação do chefe cangaceiro Ângelo Roque.

Vida Bandida

Em uma entrevista a um periódico carioca, repleta de fotografias, temos a história de Ângelo Roque da Costa, o conhecido cangaceiro Anjo Roque, o conhecido Labareda. Teria nascido em 1910, no lugar Jatobá, depois pertencente ao município pernambucano de Tacaratu (e por isso conhecido como Jatobá de Tacaratu), era filho de família humilde, mas respeitada em seu lugar.

Lampião, o primeiro a esquerda, e seus cangaceiros
Lampião, o primeiro a esquerda, e seus cangaceiros

Na reportagem afirmou que entrou na vida do cangaço após matar um soldado de polícia que desvirginou a sua irmã de 14 anos de idade. Roque contou que o conquistador se chamava Horácio Cavalcanti, que havia casado quatro vezes e quatro vezes abandonou as esposas. Consta que sua família buscou a justiça de sua região, mas um juiz e outras autoridades pouco deram importância ao sentimento de raiva de seus familiares.

Logo houve um encontro dos dois homens em um trem, a faca vibrou e ambos ficaram feridos. Mas logo o jovem Roque, então com 16 ou 17 anos, matou o soldado com um tiro de rifle e caiu “em desgraça” perante a justiça.

Para sobreviver em uma situação como esta, naquele sertão atrasado, só entrando para o cangaço. Foi em uma propriedade denominada Jurema que Roque entrou no bando de Lampião, que lhe deu apoio e ambos se tornaram grandes amigos.

Um Cangaceiro

Na reportagem Ângelo Roque detalhou que esperou 13 dias por Lampião na propriedade Jurema. Logo Roque ficou alcunhado no bando como Labareda. Comentou que Lampião sempre foi um homem de pouca conversa, mas era extremamente hábil na luta das caatingas. Labareda informou que passou dois anos andando junto a Lampião no seu bando, onde teve um grande aprendizado na arte da guerrilha nordestina. Devido a sua capacidade de comando e de combate, logo Labareda passou a comandar um subgrupo de cangaceiros.

No seu processo de regeneração, o antigo cangaceiro aprendeu a ler e escrever
No seu processo de regeneração, o antigo cangaceiro aprendeu a ler e escrever

Para Roque era normal Lampião ter cerca de 60 homens em seu bando. Já o famigerado cangaceiro Corisco andava com um grupo que tinha em torno de 20 a 25 combatentes e Labareda seguia com uma média de 15 cangaceiros. Nesta vida Ângelo Roque da Costa permaneceu 16 anos em luta, onde afirmou a reportagem ter combatido “200 vezes contra a polícia”.

Lembrou aos repórteres que seu primeiro combate, sem especificar datas, foi em Sergipe, onde cerca de 40 cangaceiros brigaram diretamente com vários policiais, sem perdas para os “cabras” de Lampião, mas com a morte de vários homens da lei.

Ângelo durante a entrevista
Ângelo durante a entrevista

Para o cangaceiro Labareda os dias de cangaço eram “Dias miseráveis!”, onde os cangaceiros tinham um ódio extremo aos policiais e, assim que tinham alguma oportunidade, não perdiam a oportunidade de desfechar terríveis ações violentas contra os membros da “Força”.

Em seus relatos Labareda afirmou categoricamente que era “Um bandido”, que aquela vida lhe trazia muitas amarguras. Tanto que para conceder a entrevista ele perguntou primeiramente ao Professor Estácio de Lima se aquela exposição na imprensa seria positivo para ele. O Professor Estácio concordou.

Ângelo Roque e o Professor Estácio de Lima
Ângelo Roque e o Professor Estácio de Lima

Na época da entrevista Ângelo Roque era um pacato funcionário do Concelho Penitenciário da Bahia, morando em Salvador, onde trabalhava como auxiliar de confiança do Professor Estácio.

Na Prisão

Após a morte de Lampião em 28 de julho de 1938, o cangaceiro Labareda andou ainda quase dois anos pelas caatingas de armas na mão, tendo se entregado as autoridades no início de abril de 1940, em Paripiranga, Bahia. Logo ele e mais outros companheiros foram recambiados para Salvador.

Fim de Lampião e seu bando
Fim de Lampião e seu bando

Na capital baiana, nos primeiros contatos com a imprensa na Secretaria de Segurança, os cangaceiros já se encontravam de cabelos cortados e usando paletó e gravata, mas Labareda fazia questão de ser tratado pela patente de “capitão”. Na ocasião houve um encontro muito animado com o cangaceiro Juriti, que já se encontrava detido. Comentaram que do terraço da repartição chamou atenção dos agora ex-cangaceiros a chegada ao porto de Salvador do paquete “L’Argentine”.

Saracura, companheiro de cangaço e de prisão de Ângelo Roque
Saracura, companheiro de cangaço e de prisão de Ângelo Roque

Após a sua entrega justiça, Ângelo Roque da Costa foi julgado e condenado a 95 anos de prisão, depois reduzidas a 30 anos e comutadas a apenas 10 anos de cárcere. Mesmo com condenações tão elevadas no início do seu período de detenção, ele manteve a calma e se tornou um prisioneiro de comportamento exemplar.

O antigo cangaceiro Labareda entre as cabeças de Corisco e Lampião
O antigo cangaceiro Labareda entre as cabeças de Corisco e Lampião

Primeiramente foi enviado para o “Campo Experimental de Ondina”, em Salvador, onde passou a cumprir seu tempo de prisão junto com os companheiros de luta.

Lembrou que na época do início do cumprimento de sua pena, lhe chamou atenção o interesse e a curiosidade provocada em várias pessoas pelos ex-cangaceiros. Recordou que em uma ocasião receberam a visita de Renato Monteiro, documentarista da “Tupy Films”, que realizou um pequeno filme (provavelmente pago pelo Governo Federal), mostrando a regeneração dos anteriormente temidos “Guerreiros das Caatingas”. Foram realizadas filmagens daqueles homens em uma lavoura, tendo sido capturado as imagens do antigo Labareda, de Saracura, Juriti, Jitirana, Velocidade e cinco outros ex-cangaceiros.

Inclusive pelo bom trabalho realizado nesta lavoura, em 1944, durante o período da Segunda Guerra Mundial, ele e outros 20 condenados pela justiça receberam um prêmio da LBA-Legião Brasileira de Assistência. Este programa era denominado “Hortas para a vitória!” e havia sido implantado para incrementar e ampliar o que hoje denominamos de agricultura familiar, tudo em prol do esforço de guerra brasileiro.

Ângelo Roque e a cabeça de Lampião
Ângelo Roque e a cabeça de Lampião

Como comentei anteriormente, não sei estatisticamente quantos dos cangaceiros que se entregaram as autoridades reincidiram no crime. Mas não deixa de chamar atenção pelas fotos aqui publicadas, como as autoridades faziam questão de propagar a regeneração dos antigos cangaceiros a imprensa brasileira.

Não sei se é utopia da minha parte, sei que os tempos e os problemas são outros, mas bom seria se alguém da área de direito penal, ou de alguma área relativa aos estudos penitenciários, se dispusesse a pesquisar mais a fundo estes casos específicos dos ex-cangaceiros.

Talvez o resultado de um trabalho assim, poderia trazer lições do passado que possam ajudar os “homens das leis” dos nossos conturbados e violentos dias, a terem uma nova abordagem para a recuperação dos nossos apenados.

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CIAO MERLETTÀ: A VOLTA ITALIANADA DA MUIÉ RENDERA – A INTERESSANTE E INUSITADA HISTÓRIA DE UM FILME ITALIANO SOBRE O CANGAÇO

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Antônio Carlos Amâncio*

Fonte – Estud. hist. (Rio J.) vol.24 no.47 Rio de Janeiro Jan./June 2011 – http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-21862011000100005&script=sci_arttext

RESUMO

O cangaceiro é personagem marcante no cinema brasileiro, ligado a uma dada mitologia do sertão e a uma perspectiva regional. Associado ao filme de cangaço, reapropriação do western, mereceu poucas representações em cinematografias estrangeiras e por isto causa surpresa a produção, na Itália de 1970, do filme O cangaceiro,de Giovanni Fago, que pretendemos analisar à luz de algumas interfaces com elementos da cultura brasileira.  Consideramos a dupla apropriação do gênero (western, filme de cangaço, western spaguetti), e as atualizações temáticas, pensando as transgressões aos modelos canônicos, a partir de uma singular absorção de conteúdos historicamente definidos.

Como traduzir para o italiano a expressão “Olê, muié rendera”, tema musical do filme O Cangaceiro e canção popular do folclore nordestino? Foi esta estupefação de minha amiga napolitana naturalizada que me deu as coordenadas iniciais deste texto. Para chegar a Ciao merlettá ela me descreveu todo o percurso dessa transcodificação linguística: “Olê” seria “ciao”, “salve”,  e “rendeira” é “merlettaia”: Ciao merlettaia, ciao merlettà…? O “ciao”, que em italiano significa “salve” (“oi”) e “arrivederci” (“até logo”), era muito usado em músicas populares ligadas ao trabalho ou à guerra: “Bella ciao”, “Ciao amore ciao“. O “merlettà” seria um neologismo, aceitável porque é possível cortar a sílaba final de uma palavra desse jeito, sobretudo num italiano mais popular.

Essa explicação me serve como uma luva, porque na verdade estou lidando com transferência de códigos, intertextualidades, adaptação, remake. E me serve porque aqui temos um procedimento usual neste gênero de operação de linguagem: aproximamos sentidos, imaginamos associações, sintetizamos ou ampliamos conceitos, montamos correspondências. Tudo em nome de estabelecer uma relação de contato, diacrônica ou sincrônica, com um fato original de cultura no momento de transpô-lo a outro sistema de referências. Pois esta introdução certamente localiza nosso assunto, uma reflexão assistemática sobre o filme O Cangaceiro. Não o original escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos de Rachel de Queiroz, realizado em 1953 e produzido pela Vera Cruz. Não este, premiado em Cannes como melhor filme de aventura e também como melhor trilha sonora – o clássico “Muié Rendera” – interpretado por Vanja Orico e com coro dos Demônios da Garoa, um filme que teve ampla circulação internacional.

Cartaz de um dos filmes de western dirigidos pelo italiano Giovanni Fago
Cartaz de um dos filmes de western dirigidos pelo italiano Giovanni Fago

Estaremos falando de outro O Cangaceiro, seu sucedâneo italiano, filmado em 1970 por Giovanni Fago, chamado de Viva Cangaceiro nos Estados Unidos, com locações na Bahia e temática associada ao gênero cinematográfico inventado no Brasil, o nordestern. É ele que nos leva a pensar na questão do remake, no universo expressivo do filme de cangaço e suas apropriações e finalmente no que este filme em particular evoca.

remake, ou refilmagem, faz parte do universo das interfaces com obras pré-existentes, onde cabem também a adaptação, a referência e a alusão. Em sua proporção  industrial, o remake é associado à serie, à continuação ou ao ciclo, a domínios expressivos no interior de uma obra ou na serialização de produtos, temas ou estilos. Um campo determinado por um sistema de repetições, já institucionalizado, que integra procedimentos ligados ao universo legal, de direitos e plágios, ou referencial, de citações e iterações. Constantine Verevis se debruça sobre o assunto, e é de seu livro Film remakes que vêm as principais considerações aqui apresentadas.

Citando outros estudiosos, ele identifica três marcas para o remake: a de uma categoria industrial, que lida com assuntos de produção, que envolve estruturas de comércio e negociação de direitos; a de uma categoria textual, que lida com taxonomias e textos, enredos e estruturas; e finalmente a de uma categoria crítica, que lida com recepção, incluindo públicos, com seus processos de reconhecimento e com a consolidação de um discurso institucional. Mas é o uso da variação e da diferença (em relação aos originais) que vai levar a outras categorizações, estabelecidas por Michael Druxman e desenvolvidas por Harvey Roy Greenber: a) a refilmagem estrita, identificável; b) a refilmagem identificável, mas transformada; e c) a refilmagem não identificável, disfarçada (apud Verevis, 2006: 7). As leituras avançam por esse caminho tortuoso, com variações sobre a similaridade entre obras, a tensão entre inovação e imitação, empréstimos, autoria, questões de autenticidade e de referencialidade, homenagem, imitação ou roubo.

Mas não cabe aqui apenas articular conceitos. O que finalmente encontramos é a perspectiva, também rarefeita, de uma estética da diluição, na qual elementos de variadas formas culturais se dissolvem em outros, de maneira indefinida e inconstante, integrando- se ao universo da nova obra gestada. É de uma espécie de solução química que estamos falando aqui, dispersões que montam um sistema homogêneo, inseparáveis do dispersante. O resultado desta operação, entretanto, nem sempre é líquido e transparente. Como em qualquer obra de cinema, aliás.

A ira de Deus

O que motivou Giovanni Fago naquele longínquo 1970 a se debruçar sobre os cangaceiros foi a ideia de que eles eram “bandidos políticos”, ou seja, não apenas ladrões, mas rebeldes com posição firmada contra os latifundiários. Segundo o autor, o filme define-se, assim, pela escolha ideológica de seu objeto: uma posição política forte contra a colonização e o imperialismo. Obviamente ele já conhecia O Cangaceiro, de 1953, grande sucesso comercial na época, assim como alguns filmes do Cinema Novo. Fago argumenta que sua intenção não era fazer uma “releitura comercial” desse fenômeno, até porque respeitava certas características da cinematografia brasileira, a qual, primitiva na aparência, era, na verdade, dotada de grande refinamento e inteligência, animada por forte tensão política e impulso à rebelião. Um cinema que correspondia a suas convicções políticas e sociais, frente aos conflitos da América Latina. 1 Porém, o que define objetivamente o projeto de produção é a aquisição dos direitos da canção do velho filme O Cangaceiro.

Essa perspectiva comercial vai ser um dos únicos elementos de ligação entre a produção italiana e uma larga tradição brasileira de filmes de cangaço. Há toda uma linha de parentesco sustentando esta arquitetura, que começa nos filmes de cowboys, no bangue-bangue, nos filmes de faroeste.

Se o western – considerado o cinema americano por excelência num texto de André Bazin, publicado em 1953 (Bazin, 1991: 204) – sofreu contaminações passageiras, o que, segundo ele, não deve ser lastimado, também resistiu, mantendo os símbolos e signos que o fizeram mitológico. O cenário, a paisagem, a cavalgada e a briga, as referências históricas, “o grande maniqueísmo épico que opõe as forças do Mal aos cavaleiros da justa causa”, a Mulher em sua relação com a Virtude, até mesmo os cavalos, são todas marcas pelas quais se expressa uma ética da epopeia e mesmo da tragédia. Marcas que geram um estilo de mise-en-scène e transparecem numa composição da imagem, os grandes planos de conjunto, a quase abolição do primeiro plano, o travelling e a panorâmica que “negam o quadro da tela e restituem a plenitude do espaço” (Bazin, 1991: 206). Um gênero dotado de situações excessivas, de exagero dos fatos e de uma inverossimilhança ingênua, fundado, entretanto, numa moral que o justifica.

Cartaz do filme brasileiro O Cangaceiro, de Lima Barreto
Cartaz do filme brasileiro O Cangaceiro, de Lima Barreto

Diluindo-se pelo mundo, o western passa pelo Brasil, onde assume a forma do filme de cangaço, tematizando elementos da história local e acrescentando uma tintura cultural própria. O Cangaceiro, de Lima Barreto, é a matriz que vai moldar um longo ciclo que se condensa entre os anos 1950 e 1970, com tonalidades diversas, que vão do filme de aventuras à comédia erótica e que promove um retorno pós-modernizado na virada do milênio. 2

Walnice Nogueira Galvão (2005) associa o fenômeno da sertanização, no qual o representante mais marcante é o cangaceiro, ao regionalismo literário dos anos 1930, às artes plásticas do expressionismo social e engajado dos anos 1940 e ao faroeste americano, como de praxe, bem como a uma certa composição gráfica do cinema mexicano, com suas paisagens desérticas, seus cactos na caatinga, o gado à solta tocado por cavaleiros de sombreros. Rica iconografia calcada no inacabado Que Viva México, de Eisenstein, e suas contrafações. 3 Um circuito de referências que passa obrigatoriamente por Elia Kazan e seu Viva Zapata de 1952, e chega ao western de Lima Barreto, rodado em Vargem Grande do Sul, no interior de São Paulo, com seu contrastante preto e branco, sua luz ofuscante, seu emblemático contraluz dos cangaceiros no pôr do sol, quando o cangaço vira pura mitologia, depois de desaparecido do mundo social desde a década de 1940, com a morte de Corisco.

O Cinema Novo vai retomar o imaginário sertanejo do western, relido numa tecla nacional e popular, e vai ainda segundo Walnice Galvão, ressemantizá-lo num arco cinematográfico em vários segmentos. O primeiro segmento era aquele temporalmente próximo ao golpe militar e aí estará o também emblemático Deus e o diabo na terra do Sol, junto com Vidas secas, Os fuzis e A hora e a vez de Augusto Matraga, certamente o conjunto mais visitado e seguramente, o mais próximo do olhar de Giovanni Fago. O dragão da maldade contra o santo guerreiro, anos depois, completa o grupo (Galvão, 2005: 87).

Cartaz da película Deus e o diabo na terra do sol, de Gláuber Rocha, de 1964
Cartaz da película Deus e o diabo na terra do sol, de Gláuber Rocha, de 1964

Glauber já preconizara, em 1957, a autonomia do cinema perante as outras manifestações artísticas, assim como Bazin, em 1953, caracterizara o western como “filho autêntico e puro do cinema”, no qual o herói se dilui no gênero, que progride em concentração expressiva (Rocha, 1997). Esta é certamente uma boa referência para pensarmos a relação western-cangaço-spaghetti e vermos como O Cangaceiro de Fago se comporta frente a tantas hibridações.

Compañeros 

Na Itália, o western-spaguetti chegou num momento de crise da indústria cinematográfica e dos grandes estúdios. No entanto, para que lembremos que a releitura do western expandiu-se por toda parte e não foi só uma invenção italiana, o primeiro faroeste europeu é, na verdade, alemão. Refiro-me a O Tesouro dos renegados, de 1961, as aventuras de um índio chamado Winnetou, filmado na antiga Iugoslávia por Harald Reinl (Carreiro, 2009).  De todo modo, na Itália foram rodados mais de 600 filmes nas décadas de 1960 e 1970, insuflando um pouco de oxigênio ao gênero, já desgastado, através do fomento à aparição de uma galeria de novos cineastas-autores, da composição de um elenco estelar multinacional, sem o peso da história de sua matriz americana. Boa parte dos cineastas possuía inclinações à esquerda, valendo-se das mitologias do gênero e das revoluções (principalmente da mexicana, aproveitada à exaustão), uma levada pop, uma música onipresente, expansão do campo temático das histórias, maxi-valorização da paisagem e dos recursos técnicos contemporâneos, do zoom intenso à moldura dos rostos em primeiro plano, valorizando a profundidade de campo, e mais as explosões apresentadas em uma montagem lacônica, dando sempre a impressão de faltar alguns fotogramas.

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Giovanni Fago mantém desse universo, a moldura e a embalagem, mas vai buscar outros conteúdos. Ele se cerca de muitos cuidados. Seu roteirista é Bernardino Zapponi, que trabalhou com Fellini em Satyricon, Os palhaços, Roma, Casanova e muitos outros. A música cabe a Riz Ortolani, compositor experiente, com participação em mais de duzentas trilhas. Conta ainda com a colaboração do fotógrafo Alejandro Ulloa, que trabalhara com Sergio Corbucci, Umberto Lenzi, Enzo Castellari e muitos outros. Uma equipe afiada! O ator principal, Tomas Milian, vinha de uma carreira marcante no western-spaghetti, e no mesmo ano participa de Compañeros, um filme de Sergio Corbucci, na companhia de Franco Nero. Esse filme que, por várias razões, guarda muitos pontos de contatos com O Cangaceiro, entre os quais o de que ambos foram co-produções ítalo-espanholas.

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Ao som de “Muié rendera”, a trama tem início com um ataque da polícia a um bando de cangaceiros, sitiados num vilarejo. O coronel Minas coordena o extermínio do bando de Firmino… e para seu azar, nesta confusão a vaca do camponês Expedito é fuzilada. Expedito é recolhido pelo beato Julião das Miragens, que lhe ensina o valor da justiça, de um Cristo que usa o chicote e pune os maus, distribuindo o que comer e o que beber entre os pobres, e lhe anuncia que ele, Expedito, é o enviado do Senhor, sob o nome de Redentor!

Um acaso, um personagem que é levado a uma situação inusitada, um protetor que o acolhe e instrui, tudo isso compõe uma situação modelar. Mas a caracterização física dos personagens é quase caricata, os diálogos são trespassados por uma ingenuidade cômica que, se não compromete a verossimilhança da narrativa, aponta para um registro de tonalidades mais associadas à comédia de costumes italiana e ecos de Brancaleone.

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Expedito prega nos vilarejos, convocando apóstolos em meio ao desinteresse da população. Mas quem aparece em sua frente é o bando do Diabo Negro, a quem Expedito se apresenta como o novo rei do cangaço, sagrado pelo arcanjo Gabriel para combater pela verdade e a justiça, a cruz e o facão na mão. Convidado a integrar o grupo, outra das situações-modelares do gênero, Expedito recusa e promete ter sua própria gente. A frase do cangaceiro soa quase como ameaça quando estabelece, metaforicamente, a hierarquia das relações sociais: “um facão é mais longo que a mão, mas um fuzil é mais longo que um facão”. E Expedito responde a ela se livrando da cruz.

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Em Angicos, na festa cívica de inauguração da bateria de canhões da cidade, com a presença do cardeal, vemos então o dissimulado Expedito na situação de paralítico, sentado sobre um carrinho de rolimã, mas seu jeito debochado vai levá-lo à prisão, determinada pelo coronel Minas. Na cadeia, ele constituirá seu bando, depois de demonstrar sua astúcia e explodir os canhões. Expedito/Redentor, com as armas que consegue, mata os que o desobedecem, parte para o sertão e ganha notoriedade, passando a ser procurado.

É então que se apresenta sua contrapartida dramática. Num vilarejo, chega um automóvel de classe, dirigido por um holandês louro e elegante, de botas de cano alto e foulard. Munido de livros, mapas e de instrumentos, o homem dirige-se à praia. A população olha com curiosidade o automóvel diferente. Voltando, o homem encontra seu carro totalmente depenado. Só sobrou a estrutura de ferro. Enquanto ele se indaga o que teria acontecido, cresce sobre seus livros a sombra do Redentor! No contra plano, em contraplongée, Redentor aparece santificado, envolto por um halo solar. O cangaceiro intima o viajante a ler para ele um longo romance sobre o mar. E daí, deste contraste entre a força, a violência e a submissão física e a educação, a leitura e os modos cultivados do europeu vai se estabelecer o elo central da relação entre os dois homens. Esta é a trama principal, denunciada por alguns críticos como sustentada por um homo erotismo casto, demarcando um campo pouco explorado até então pelo gênero e suas derivações, normalmente pré-determinados pelo machismo e pela virilidade.

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O holandês Vincenzo Helfen aproveita-se da atração que exerce sobre o camponês analfabeto e desenvolve essa amizade de acordo com sua estratégia. Torna-se a interface do cangaço com o poder local, e mesmo internacional, do qual será o representante, como veremos, e que implica finalmente a exploração de jazidas de petróleo e a maximização de seus ganhos agregados, tais como a ocupação de mão de obra local e a mais intensa circulação financeira. O holandês é relacionado ao progresso, e o cangaceiro vai ser seu associado contra o atraso do sertão.

Essa oposição qualifica a temática da transição do rural ao urbano, do pré-capitalismo ao capitalismo de ponta, permitindo, assim, que o filme seja inscrito na representação da modernização e da evolução industrial do Nordeste brasileiro. O avanço do segmento agroexportador para o de prospector de petróleo se dará na realidade com a instalação da primeira refinaria do Brasil, a Landulfo Alves em Mataripe, no Recôncavo baiano, em 1956, operações que antecedem o futuro pólo petroquímico de Camaçari. 4 O filme expressa, portanto, uma situação alegórica e quase premonitória, já que estamos presumivelmente nos anos 1930. A pertinência da objetivação do petróleo como mote propulsor da trama, guarda, certamente, relação com o olhar contemporâneo dos anos 1970.\

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Dramaticamente, esse acerto é negociado por Helfen que vai possibilitar a ascensão de Redentor como autoridade no sertão, já que este, depois de perseguido, passa a compor com as autoridades, e extermina os bandos rivais, para que a empreitada do petróleo possa prosseguir. O Redentor torna-se a ponta de lança de um acordo que engloba o poder civil local, os militares, a Igreja e os interesses estrangeiros, representados e patrocinados não só por Helfen e sua companhia petrolífera, mas também por um inverossímil bando de gangsters, como que saídos de uma peça de Bertolt Brecht.

Não faltam emboscadas, tiroteios e mobilizações de tropas, em que, às vezes, um tom contemplativo desarruma a potência de um filme de ação. Como, por exemplo, na caminhada ao pôr do sol, onde quem se alinha na contraluz, em postura desconstrutora e modernizante, são o destacamento militar e mais tarde, o negociador Helfen, num pungente adeus à iconografia do velho sertão.

Essas são transgressões às marcas do gênero, assim como o são a repartição equânime do tempo dramático entre os dois personagens centrais, o louro europeu e o mestiço Expedito, em encontros e confrontos, negociação de armas e tratados de paz, jantares de apresentação, concessões de salvo-conduto e danças de forró em ritmo acelerado, quase de samba. É nessa ocasião que, em um rápido plano, Expedito é visto beijando uma empregada uniformizada, único acesso dramático do universo feminino em relação direta com um dos dois protagonistas masculinos. Um beijinho e só, o máximo de relação hetero permitida.

Os elementos da representação, associados ao gênero e suas diluições, são bastante completos, não faltando os duelos de facão, as feiras, com cantadores e fotógrafos, a relação de subserviência dos camponeses e da própria Igreja. Na história, então, Redentor ganha uma fazenda que quer transformar num paraíso terrestre, prova de sua entrega aos desígnios divinos.

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A trama entra em seu desenvolvimento final, que implica no jorro do petróleo e na aparição dos gangsters americanos comandados por Frank Binaccio e seus homens, fugitivos do governo republicano de Calvin Coolidge por evasão fiscal. O governador decide matar Expedito e, pagando um bom preço, pede que os gangsters lhe tragam a cabeça do cangaceiro. Sentindo-se traído, Expedito culpa o holandês, que aparece e explica que o governador mandou matar todos do vilarejo, responsabilizando-os por acolher cangaceiros. A vila assim foi evacuada para a perfuração dos poços. Helfen assume sua parte de culpa e denuncia a negociação com Binaccio. É esta traição, que o holandês faz ao governador e ao seu país, que salva o cangaceiro. Helfen define aqui seus afetos e assume junto ao Redentor sua redenção. Esta união, movida por vingança, provoca a morte dos gangsters e do governador e o apaziguamento da região.

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Encontro na duna, Expedito e seu bando, Vincenzo Helfen partindo de vez. Na despedida, Helfen confessa sua simpatia e cumplicidade com o cangaceiro, que admite não ser o enviado que imaginara. Mas o holandês o conforta, dizendo que ele tinha cumprido muito bem o seu papel. Happy-end. Expedito volta para a estrada, Helfen provavelmente para a Holanda.

O filme termina de modo convencional, centrado no selo da amizade entre os dois protagonistas. O grupo, finalmente conscientizado, continua a atuar e isso é uma possibilidade de novas aventuras, como num western tradicional. Vence o pressuposto violento e vingador, mas ético, do bandido, sob o arrependimento do adversário.

Giovanni Fago conta que o filme fez sucesso na Itália e no resto da Europa, mas só chegou à América Latina três ou quatro anos depois (por conta de sua perspectiva política, foi considerado perigoso). O cineasta renega a etiqueta de western, considerando-a inexata, preferindo defini-lo como um filme político de aventuras.

Jornal carioca de 1973 apresentando o filme italiano, que foi intitulado no Brasil "Rebelião de Brutos"
Jornal carioca de 1973 apresentando o filme italiano, que foi intitulado no Brasil “Rebelião de Brutos”

A apropriação do nome O cangaceiro e de seu universo mitológico estabelece uma conexão obrigatória com a obra original e este gesto não pode ser considerado, de nenhuma maneira, como ingênuo, desprovido de intencionalidade, inclusive comercial. Os direitos da canção original5 são o aval desta operação.

Somos levados a buscar na obra italiana elementos presentes no filme de Lima Barreto, mas nos deparamos com traços soltos, pertencentes ao gênero, e quase nenhuma marca do original. O impulso criador do western clássico, de sua apropriação pelo Cinema Novo e pelo spaghetti, perde-se num pastiche sem alma. É essa estética da diluição sucessiva que leva a um processo de abrandamento das especificidades de cada forma cinematográfica utilizada, solvendo num texto comum o que foi um dia ousadia ou expressão dinâmica.

Notas

1 Entrevista do diretor, bônus do DVD O Cangaceiro, coleção L´âge d´or du cinéma européen. Wild Side films

2 O Almanaque, boletim eletrônico da jornalista Maria do Rosário Caetano dá conta, em 15/06/2010, de várias produções sobre o cangaço em andamento. Homero Olivetto, Wolney Oliveira, Hermano Penna, Geraldo Sarno e Ícaro Martins preparam filmes sobre o cangaço ou sobre cangaceiros. A filiação prossegue.

3 Filme feito entre 1930 e 1932 por Eisenstein e que gerou algumas montagens executadas sem sua presença e renegadas pelo cineasta: Thunder Over Mexico, Eisenstein in Mexico, Death Day e Time in the Sun.

4 Carta IEDI n. 201 – O Futuro do Pólo Petroquímico de Camaçari – Publicada em 31/03/2006http://www.iedi.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=2037&sid=20&tpl=printerview – acessado em 27/09/2010

5 A canção, cuja autoria foi atribuída a Zé do Norte, teve grande repercussão internacional. Foi gravada por um naipe de músicos que vai dos Demônios da Garoa, em 1953, até Joan Baez, em 1964, passando por Astrud Gilberto e muitos outros.

Referências bibliográficas

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CARREIRO, Rodrigo. Do desprezo à glória: o spaghetti western na cultura midiática. Baleia na Rede,  vol. 1, nº 6, ano VI, dez/2009 (http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/BaleianaRede/Edicao06/4_Do_desprezo_a_gloria_western_spaghetti.pdf) [ Links ]

GALVÃO, Walnice Nogueira. Metamorfose do sertão. In: CAETANO, Maria do Rosário (org). Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. Brasília: Avatar, 2005. [ Links ]

ROCHA, Glauber. O western: uma introdução ao estudo do gênero e do herói. Mapa, nº1, Salvador, ABES, 1957. [ Links ]

GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. [ Links ]

VEREVIS, Constantine. Film remakes. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd, 2006. [ Links ]

Referências filmográficas

A hora e a vez de Augusto Matraga (BRA, 1965, dir: Roberto Santos)

Casanova de Fellini (ITA, 1976, Federico Fellini)

Compañeros (ITA, 1970, dir: Sergio Corbucci)

Deus e o diabo na terra do sol (BRA, 1963 , dir: Glauber Rocha)

O cangaceiro (BRA, 1953, dir: Lima Barreto)

O cangaceiro (ITA, 1970, dir: Giovanni Fago)

O dragão da maldade contra o santo guerreiro (BRA, 1969,  dir: Glauber Rocha)

O incrível exército de Brancaleone, (ITA, 1965, dir: Mário Monicelli)

O tesouro dos renegados (ALE/ITA/IUG, 1961, dir: Harald Reinl)

Os fuzis (BRA, 1964, dir: Ruy Guerrra)

Os palhaços (ITA, 1970, Federico Fellini)

Que viva México (MEX, 1932, dir: Grigori Aleksandrov, Sergei M. Eisenstein)

Roma de Fellini (ITA, 1972, Federico Fellini)

Satyricon (ITA, 1969, dir: Federico Fellini)

Thunder over Mexico (EUA, 1933, dir: Sol Lesser)

Time in the Sun (EUA, 1939/40, dir: Mary Seton)

Vidas secas (BRA, 1963, dir: Nelson Pereira dos Santos

Viva Zapata (EUA, 1952, dir: Elia Kazan)

Este artigo é dedicado a Mariarosaria Fabris. 

*Antônio Carlos Amâncio é mestre e doutor em Cinema pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e professor associado III do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil (tunicoamancio@gmail.com).

COMENTÁRIO DO ADMINISTRADOR DESTE BLOG – Para quem desejar assistir o filme na íntegra é só clicar no link que segue. Aqui temos a versão original em italiano, com legendas em espanhol. 

http://www.youtube.com/watch?v=N3JvtkZKsbE

REVOLTA DA CACHAÇA – PRIMEIRO EXERCÍCIO DE DEMOCRACIA NO BRASIL

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Autor – Pedro Doria

No anoitecer do dia 6 de abril, em 1661, Jerônimo Barbalho Bezerra foi decapitado no Largo da Polé, hoje Praça XV, perante a população. Sua cabeça, escreveu dias depois o governador Salvador Corrêa de Sá e Benevides, foi posta “no pelourinho para se conseguir a quietação” do povo. Terminou assim o período de cinco meses em que os cariocas governaram-se a si mesmos, no primeiro exercício de democracia da História do Brasil. Faz mais de 350 anos.

A Revolta da Cachaça, que Bezerra liderou, é pouco documentada e por isso mesmo objeto de polêmica. Ele era, nos dizeres do tempo, “nobre da terra”. Senhor de engenho, filho de herói da batalha que expulsou os holandeses da Bahia em 1625, um homem que tinha ao seu lado vereadores e outros donos de terra na região. É o que sugere ter sido uma briga interna da elite.

Não era a impressão do importante historiador britânico Charles Boxer, corroborada recentemente pelo geógrafo Maurício de Almeida Abreu, autor de “Geografia Histórica do Rio de Janeiro”. Ao lado de Jerônimo, entre os 131 listados como revoltosos, tinha gente da elite, mas aparentemente também despossuídos de terras. Foi um levante amplo, de todas as classes, contra um ditador.

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Salvador Corrêa de Sá e Benevides tinha 58 anos. Pertencia à terceira geração da família Sá no comando do Rio, desde Estácio. Com quase um século de idade, a pequena cidade era pobre, como todo o Brasil sul, e domínio absoluto de sua família. Salvador era também uma lenda viva no Brasil e em Portugal. Místico, passou a juventude seguindo os conselhos do padre jesuíta João d’Almeida, um sujeito que diziam flutuar em transes longos. Todos os Sás eram ligados aos jesuítas.

Salvador era também bandeirante e, como todo bandeirante, mais tupi do que europeu em batalha. Lutava com os pés descalços, acompanhado em mar de longas canoas de índios flecheiros. Venceu assim Piet Heyn, o maior corsário holandês de seu tempo. Heyn quebrou a Espanha ao saquear, no Caribe, o navio que levava o ouro das Américas. E Salvador o venceu com índios, expulsando-o do Espírito Santo, quando ainda tinha 23 anos. Assim como, também acompanhado de índios, conquistou Angola dos holandeses e venceu em seu próprio território a mítica rainha N’Zinga, uma das mais ferozes líderes guerreiras da África. (Vem de seu nome o termo ginga, da capoeira).

O corsário Pieter Pieterszoon Heyn
O corsário Pieter Pieterszoon Heyn

Se tupi em batalha, a corte em Lisboa não o intimidava. Tinha assento no Conselho Ultramarino, a mais alta instância de comando do império. Ainda antes de sua morte, esteve entre os líderes de uma tentativa de depor o rei português. Na Ilha do Governador, sua ilha posto que era Sá, o governador, e dono das terras ali, construiu o galeão d’El Rey, maior navio do mundo de então. Construiu-o na Ponta do Galeão. Salvador Corrêa de Sá e Benevides era muito maior do que o Rio e fazia do Rio o que bem quisesse. Como, por exemplo, aumentar impostos.

No fim de 1660, decidido a aumentar o número de soldados no Rio, Salvador liberou a produção de cachaça e instituiu sobre ela um pesado tributo. Daí criou um imposto predial. A população, ricos e pobres, já enfrentava sérias dificuldades. A cidade vivia uma crise. Os conjurados reuniram-se por várias madrugadas em São Gonçalo, onde ficava a fazenda de Jerônimo. No dia 7 de novembro, cruzaram de madrugada a Guanabara. O sol ainda não havia raiado quando uma turba invadiu a Câmara, no alto do Morro do Castelo, e derrubou o interino Thomé Corrêa de Alvarenga, primo de Salvador. O governador estava em São Paulo.

Os cariocas instituíram governo, mandaram cartas ao rei português garantindo fidelidade e pedindo só que pudessem governar com um nível tolerável de impostos. Pediram também aos paulistas que prendessem Salvador – mas, em São Paulo, os de lá decidiram que era boa política não aderir.

Gravura da cidade de Salvador feita no século XVII por Hessel Gerritsz - Fonte - http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/memoria-em-apuros
Gravura da cidade de Salvador feita no século XVII por Hessel Gerritsz – Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/memoria-em-apuros

Tão espetacular quanto o golpe foi o contragolpe. Salvador tinha o comando da frota da Companhia Geral de Comércio, que anualmente navegava para o Brasil para recolher os produtos que voltariam à Europa. Ele esperou que os navios chegassem ao Rio. Naquele 6 de abril, de madrugada – era sempre madrugada nos ataques de surpresa de antanho – Salvador, seu filho João e um exército de índios tupis invadiram o Rio e tomaram o paiol onde ficava a munição. Os soldados da frota desceram a terra e enfileiraram-se na Praça XV, um bocado o centro da cidade do tempo. Quando o dia amanheceu, o Rio independente já havia caído sem que um tiro fosse disparado. O próprio Salvador decidiu pela execução de Jerônimo, naquela noite.

Se venceu militarmente, perdeu na política. Em menos de um ano, Lisboa deu ordens para que ele deixasse o cargo de governador. Convocado para a Europa em 1663, nunca mais pôs os pés do Brasil. Assim como, nunca mais, um Sá governou o Rio. O filho primogênito de Salvador foi feito Visconde de Asseca, um título de nobreza alto. Mas não ele. Era o equivalente real a uma punição na alta esfera.

O primeiro experimento com democracia no Brasil, de certa forma, deu mais liberdade à cidade que ainda demoraria algumas décadas para se tornar capital. Não há qualquer monumento a Jerônimo Barbalho, mas não custa nada lembrar que ele morreu há mais de 350 anos.

Fonte – http://saibahistoria.blogspot.com.br/2012/11/revolta-da-cachaca-primeiro-exercicio.html

Quer saber mais? Clique também nos links abaixo:

http://guerras.brasilescola.com/seculo-xvi-xix/revolta-cachaca.htm

http://www.historiabrasileira.com/brasil-colonia/revolta-da-cachaca/

http://www.apaixonadosporcachaca.com.br/revolta-da-cachaca/26/01/2010/ 

ENCONTRO DO CORONEL E DO CANGACEIRO LAMPIÃO

AUTOR-Rostand Medeiros

Lampião e seu bando, depois de vários anos atuando nos sertões dos estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, passaram a sofrer uma grande perseguição dos aparatos policiais destes estados.

Jornal recifense “A Província”, edição de sexta feira, 28 de agosto de 1928, 1ª página.

Ciente da perseguição que as volantes infligiam a seu debilitado grupo, Lampião precisava de repouso para repor as energias, recrutar novos homens e procurar novas áreas de atuação. Nesse sentido, em agosto de 1928, ele resolveu atravessar o grande Rio São Francisco e se internar nos sertões baianos.

Em um primeiro momento, buscando refúgio nas fazendas de novos amigos, Virgulino Ferreira da Silva, o nome real do “Rei do Cangaço”, encontrou nestas paragens a almejada paz para recompor suas forças.

Primeiramente a polícia da Bahia fez vista grossa em relação ao ilustre visitante. Lampião aproveitou para firmar contatos, compor alianças, ampliar sua rede de coiteiros que lhe dariam apoio e proteção.

Propalou que estava “em paz” no território baiano, utilizava a velha cantilena que “havia entrado no cangaço pelos sofrimentos sofridos pela sua família” e que se “houvesse condições”, ele largaria aquela vida em armas e buscaria ficar em paz.

Mesmo divulgando estas novas intenções, não deixou de coagir os fazendeiros baianos, pedindo para estes lhe “ajudar” no sustento do seu bando.

Lampião e seu equipamento – Fonte – http://www.joaodesousalima.com/2010/04/lampiao-rei-do-cangaco.html

E assim, ao seu modo, durante quase três meses, Lampião e seus cangaceiros viveram tranquilos junto ao povo do sertão da “Boa Terra”.

FOTO FAMOSA

Sua primeira aparição pública ocorreu na antiga vila do Cumbe, atual município de Euclides da Cunha, em um sábado, dia 15 de dezembro de 1928.

Ali não houve alterações. Mas o chefe não deixou de fazer uma arrecadação pecuniária com os abonados do lugar e chegou até mesmo a almoçar e beber cerveja com o delegado. A tranquilidade era tanta que deu até para alguns alfaiates do lugar confeccionar novos uniformes para seus homens.

Depois do Cumbe os cangaceiros seguiram para a cidade de Tucano, onde novamente nada de anormal ocorreu. Ali os bandoleiros das caatingas chamaram a atenção de todos, tratavam todos bem e foram bem acolhidos pelos moradores.

Mercado Público de Ribeira do Pombal na década de 1950.

Para Oleone Coelho Fontes, autor de “Lampião na Bahia” (4ª Edição), após a estada em Tucano, o chefe cangaceiro e seus homens, seguiram em direção nordeste, por cerca de 40 quilômetros, até a vila, atualmente município, de Ribeira de Pombal, já próximo a fronteira sergipana. Para este deslocamento consta que Lampião obrigou o padre de Tucano a ceder o seu carro e um motorista.

Segundo o pesquisador baiano, o chefe e mais sete cangaceiros chegaram ao lugarejo às seis da manhã do domingo, 16 de dezembro. Os moradores locais sabiam através da passagem de viajantes, que Lampião encontrava-se em Tucano e que certamente logo chegaria a Pombal.

O intendente local era Paulo Cardoso de Oliveira Brito, mais conhecido como Seu Cardoso, e foi ele quem recebeu Virgulino e seus homens.

Foi ofertado café a todos os bandoleiros e Lampião avisou que não queria brigar com os poucos policiais que estavam de serviço no lugarejo, comandados pelo cabo Esmeraldo. Com a boa hospitalidade oferecida, Lampião se sentiu a vontade e logo procurou saber se havia um fotógrafo no lugar.

A famosa foto de Lampião e seu bando, batida por Alcides Fraga em Ribeira do Pombal e divulgada na edição de quarta feira, 30 de janeiro de 1929, no jornal carioca “A Noite”. Coloquei a notícia na íntegra para que seja visto e analisado o cangaceiros ali nomeados.

Foi chamado Alcides Fraga, alfaiate e maestro da Filarmônica XV de outubro, que prontamente bateu uma chapa. Esta é uma das mais célebres fotografias do ciclo do cangaço, que inclusive circulou com destaque em jornais do Rio de Janeiro, em janeiro de 1929.
Por volta de oito horas da manhã o bando saiu da vila, acompanhados do cabo Esmeraldo, partindo em direção destino ao município de Bom Conselho, atual Cícero Dantas, 30 quilômetros em direção nordeste.

Bom Conselho, atual Cícero Dantas, na década de 1950.

A chegada dos cangaceiros ocorreu em um dia de feira, com o cabo baiano já rouco de tanto gritar: – Viva Lampião! – Viva o Capitão Virgulino!

Apesar deste detalhe, a única outra alteração praticada pelos cangaceiros, foi terem se apoderado dos fuzis dos quatro soldados da polícia baiana destacados no lugar.

Após saírem de Bom Conselho, ainda motorizados, o bando seguiu em direção mais ao norte, cerca de 40 quilômetros, para um pequeno aglomerado de casas denominado Sítio do Quinto.

A hora exata que os facínoras chegaram de caminhão a esta localidade não sabemos, mas lá onde procuraram a casa de José Hermenegildo.

Por volta da meia noite de 16 para 17 de dezembro de 1928, um pequeno automóvel modelo Ford, que transportava três homens, também chegou ao mesmo lugar.

AO ENCONTRO DO PERIGO

Enquanto Lampião e seus homens passavam por Pombal, Bom Conselho e chegavam a Sítio do Quinto, da cidade baiana de Jeremoabo, cerca de 50 quilômetros ao norte, partia um automóvel conduzindo três homens, entre estes estava um dos mais importantes coronéis do interior baiano.

Este era João Gonçalves de Sá, referência regional, prestigiado líder político e rico proprietário de muitas fazendas com grande extensão territorial, que englobava muitos dos municípios da região Nordeste da Bahia. Naquele dezembro de 1928 o coronel João Sá exercia os cargos de presidência da Intendência de Jeremoabo e, pela segunda vez, o mandato de deputado estadual pelo legislativo baiano.

Junto ao coronel João Sá seguia seu pai Jesuíno Martins de Sá e um dos secretários da Intendência de Jeremoabo, o jovem José da Costa Dórea. O destino de todos era Salvador, onde o trajeto naquele tempo exigia seguirem pelo território sergipano e depois todos continuariam o trajeto por via ferroviária, utilizando os trens da ferrovia conhecida como Leste Brasileira.

Segundo nos conta Oleone Coelho Fontes, no capítulo 5 do seu livro “Lampião na Bahia”, através de extenso relato descritivo feito por Dórea (e até hoje, aparentemente, inédito na sua íntegra), devido a um problema mecânico no automóvel, a viagem foi realizada a noite, tendo a saída ocorrido às seis horas.

Mesmo sabendo que o grupo de Lampião circulava pela região, o coronel Sá confiou que guiando durante grande parte da noite, seguindo pelas antigas estradas poeirentas da região, eles poderiam passar despercebidos pelo bando.

Ao realizarem uma parada para tomar café na fazenda Abobreira, o medo de um encontro com Lampião e seus cangaceiros se tornou mais real, pois o proprietário do lugar, José Saturnino de Carvalho Nilo, confirmou que eles estavam nas redondezas. Mesmo assim seguiram adiante, em direção ao lugarejo Sítio do Quinto.

Já na edição do dia 30 de dezembro de 1928 do jornal carioca “A Crítica” (cujo proprietário era o pernambucano Mário Rodrigues, pai do dramaturgo Nelson Rodrigues), na sua página 5, encontramos um relato inédito sobre o encontro do coronel João Sá com Lampião e seus homens.

Nas duas descrições desta aventura, consta que os viajantes de Jeremoabo, ao entrarem no pequeno arruado, viram diante de uma casa um veículo parado, com alguns homens ao seu redor.

A reportagem do jornal carioca informa que um deles estava com um candeeiro. O coronel João Sá imaginou que a casa onde o veículo e os homens estavam deveria oferecer algum tipo de apoio aos viajantes.

Após brecarem, os passageiros do Ford foram cercados por homens armados e intimados a informarem quem eram. Após isso o coronel João Sá descobriu que estava diante do cangaceiro Lampião. E como para confirmar, o homem armado aproximou o candeeiro de seu rosto, mostrando a característico defeito em seu olho.

MOMENTOS ENTRE O CORONEL E O CANGACEIRO

Em um primeiro momento o medo e o pavor com o que iria acontecer tomou conta dos viajantes, mas o chefe cangaceiro, prontamente lhes garantiu que nada de ruim lhe aconteceria.

Conduzidos por Lampião e seus homens, todos entraram na casa de José Hermenegildo e foram se acomodando em cima de sacos de algodão e de peles de animais, que na época era um produto mais fácil de encontrar no sertão e tinha mercado nas capitais.

O informante Dórea afirma que em certo momento Lampião chamou o coronel João Sá para uma conversa particular na parte de fora da casa, fato que o deixou assustado, imaginando que o chefe político de Jeremoabo seria fuzilado. Mas nada aconteceu.

Enquanto isso Dórea e Jesuíno Martins de Sá, então com 76 anos, entabulavam conversa com alguns cangaceiros, entre estes o irmão do chefe, Ezequiel, conhecido pela alcunha de Ponto Fino. Dórea afirmou que o coronel João Sá não transportava dinheiro vivo, apenas ordens bancárias, assim este lhe chamou fora da casa e lhe solicitou 200$000 réis para dar a Lampião. Este por sua vez deixou que os viajantes do Ford escrevessem cartas as suas famílias, que um portador levaria as missivas para Jeremoabo.

As duas versões apontam que em dado momento a tensão se desvaneceu e o clima ficou mais tranquilo.

Segundo o coronel João Sá observou, e assim ficou registrado no jornal carioca, os cabelos do chefe cangaceiro chegavam aos seus ombros, seu uniforme de mescla azul se mostrava já bastante gasto e Lampião trazia um semblante abatido.

Na sequência Lampião pediu a José Hermenegildo que colocasse três redes para acomodar a ele, ao coronel e a seu pai no mesmo quarto. Neste momento o líder político do Nordeste da Bahia pediu ao maior cangaceiro do Brasil que narrasse a epopeia de sua vida. Lampião descreveu as perseguições que sofreu ao longo da vida como bandoleiro das caatingas, mas que estava “a fim de descansar” no sertão baiano.

O coronel João Sá descreveu nas páginas de “A Crítica” que depois das narrativas feitas por Lampião, este foi dormir. Mesmo com a vida atribulada que levava, em meio a tantos combates e com tantas mortes nas costas, o coronel descreveu que o chefe cangaceiro dormiu um “sono profundo”. Mesmo estando em companhia de estranhos “adormeceu como um justo”. Logo todos os homens, “cavaleiros e salteadores”, como descreveu a reportagem, dormiram “confiantes e tranquilos”.

NO “TRANCO”

No capítulo 5 do livro de Oleone, o texto em que José da Costa Dórea conta este episódio sobre Lampião, este afirma que foi ele quem fez a solicitação para que o chefe cangaceiro narrasse a sua vida e que anotou tudo em um bloco escolar.

O livro de Oleone Coelho Fontes, “Lampião na Bahia”. Para mim esta é uma das obras mais inspiradoras e interessantes sobre o tema cangaço.

Segundo a opinião do autor de “Lampião na Bahia”, esta entrevista é seguramente a mais longa que o “Rei do Cangaço” fez em toda a sua vida e que seria parte integrante de um livro de Dórea intitulado “Vida e morte do cangaceiro Lampião”. Vale ressaltar que Oleone Coelho Fontes informou em seu livro possuir os originais deste material, mas que, salvo engano, até o momento continua inédito.

Nas páginas de “A Crítica”, nos primeiros albores da manhã, após o despertar, o coronel João Sá comenta a Lampião que na condição de deputado estadual teria de informar as autoridades sobre aquele encontro. Consta que Lampião não se alterou com as palavras do político baiano.

Quando o coronel deu na partida do seu automóvel, provavelmente devido ao frio noturno do sertão, a máquina não pegou. Na mesma hora, vários comandados de Lampião deram uma mãozinha ao coronel João Sá, empurrando o carro que pegou no “tranco” e estes seguiram viagem.

SIMPATIA OU NECESSIDADE?

Dali Lampião continuaria seu caminho pela Bahia e logo a sua lua de mel com os habitantes daquele estado estaria encerrada. O fato se deu com o combate ocorrido no lugar Curralinho, no dia 28 de dezembro de 1928, onde foram mortos o sargento José Joaquim de Miranda, apelidado “Bigode de Ouro” e os soldados Juvenal Olavo da Silva, e Francellino Gonçalves Filho. Depois destas primeiras mortes na Bahia, Lampião e seus homens, ainda no primeiro semestre de 1929, cobrariam um alto preço a polícia baiana. Logo veio o combate do Arraial de Abóbora, em Jaguarary, hoje povoado de Juazeiro, ocorrido no dia 7 de janeiro e que ocasionou a morte de dois soldados. Depois veio Novo Amparo, no dia 26 de fevereiro de 1929, com a morte de mais outros dois soldados. Ainda no primeiro semestre de 1929 temos o sangrento combate do Brejão da Caatinga, município de Campo Formoso, no dia 4 de junho, com a morte de um cabo e quatro soldados.

Quanto ao coronel Sá e sua família, segundo Oleone Coelho Fontes afirma em seu livro (Pág. 39), enquanto Lampião na Bahia jamais ocorreu nada com suas terras e seus protegidos. O pesquisador afirma que, fosse por simpatia, ou por necessidade de preservar seus bens, ou por ter vislumbrando vantagens outras nesta aliança com o grande cangaceiro, o coronel Sá se tornou um dos mais importantes protetores de Lampião na Bahia.

E tudo aparentemente começou naquele encontro divulgado até em jornais cariocas.

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CASAL DE EX-CANGACEIROS DE LAMPIÃO CONTA COMO ERA A VIDA NO CANGAÇO

AUTOR – Nonato Freitas – Jornalista, bacharel em Letras pela Universidade de Fortaleza (UniFor), poeta, pesquisador e servidor aposentado pelo Senado Federal

FONTE – Revista SENATUS – Maio 2008, Senado Federal, Brasília – DF

Depois de 66 anos no mais absoluto anonimato, sem contar nada a ninguém sobre a vida deles no cangaço, Moreno e Durvalina, a Durvinha, único casal de cangaceiros do bando de Lampião (Virgulino Ferreira da Silva) e Maria Bonita ainda vivo, resolveram relatar os longos e dramáticos momentos que juntos passaram na caatinga sob a perseguição implacável da polícia. No dia da morte do Rei do Cangaço, na Gruta de Angico, na beira do rio São Francisco, em Sergipe, pela volante (força policial) do tenente João Bezerra, Moreno e Durvalina estavam em Mata Grande, distante 70 quilômetros do local. Homem de confiança de Virgulino, ele cumpria uma missão no comando de um subgrupo de cangaceiros.

Moreno lembra que, além de Lampião e Maria Bonita, mais nove cangaceiros foram mortos e degolados naquele dia (28 de julho de 1938). Ao todo, entre homens e mulheres, eram cerca de 47 pessoas. Os que escaparam do cerco se entregaram em seguida à polícia. Corisco, o Diabo Louro, sanguinário e igualmente homem de total confiança de Lampião, no momento do massacre encontrava-se do outro lado do rio, a três quilômetros de Angico.

Tinha sob seu comando um subgrupo. Moreno recorda que Corisco chegou a ouvir os tiros, mas nada pôde fazer em defesa dos companheiros por estar à margem oposta do rio, sem condição de atravessá-lo.

Hoje, aos 98 anos, Moreno vive com Durvalina, de 93, em Belo Horizonte. Ambos estão aí vivinhos, lúcidos e cheios de histórias para contar. Histórias repletas de dramas vividos num tempo em que, no Nordeste, a lei era ditada pela boca do mosquetão e pelas afiadas lâminas de punhais que chegavam a medir 87 centímetros.

Com a morte de Lampião, o medo se espalhou como um fantasma entre os cangaceiros que não haviam sido capturados.

Eles temiam ser degolados a qualquer momento. Assim mesmo continuavam a desafiar as incansáveis volantes que eram comandadas por homens experientes e destemidos.
Dois anos após a morte de Lampião, o tenente Zé Rufino, da polícia alagoana, temível caçador de cangaceiros, decepou a cabeça de Corisco, que preferiu morrer lutando a se entregar às forças do governo. Naquele tempo, a ordem era uma só: ou o cangaceiro se entregava, ou então era morto e degolado em seguida. Diante dessa crua realidade, Moreno tomou uma decisão. Homem corajoso que sempre foi, chamou a companheira de um lado e confessou que não se entregaria aos macacos, termo usado por Lampião e seus cabras para desqualificar os soldados das volantes.

SOZINHOS NA CAATINGA

Depois daquela manhã em que Lampião tombou morto ao lado de sua amada Maria e de mais nove companheiros, o cangaço, na verdade, ficaria riscado, definitivamente, do mapa do Nordeste.

Corisco ainda resistiu durante dois anos ao lado de Dadá, sua brava e fiel companheira. Mas sem Lampião, sem Maria Bonita, e tantos outros, como Corisco, Luiz Pedro, Virgínio, Zé Baiano, Juriti, Ezequiel (Ponto Fino, irmão de Lampião), Sabonete, Menino de Ouro e Jararaca, todos eles homens rudes e de extrema valentia, sem essas legendas do cangaço, que ficaram para trás, mortos em combate com as volantes, o mundo do crime nada mais representava para Moreno e sua Durvalina.

O que fazer então com a vida? Abrir mão da liberdade e se entregar à polícia? Ou seria melhor pôr o pé na estrada e fugir?

Fugir para onde, se apenas conheciam as veredas áridas e abrasadoras das caatingas? E se na próxima curva dos caminhos desérticos fossem surpreendidos por uma volante? Ah, isso tudo ia moendo, pouco a pouco, o juízo de Moreno.

Era o ano de 1940. Lá fora Hitler mostrava suas garras para o mundo. A Segunda Grande Guerra, com as famigeradas câmaras de gás, começava a ceifar milhares de vidas inocentes. No cinema, a grande sensação era E o vento levou, rodado um ano atrás em Hollywood. No Brasil, para variar, surgia um movimento simpático ao III Reich, ou seja, algumas figuras importantes da nossa política trabalhavam, às escondidas, em prol das idéias nazistas lideradas por Hitler. Felizmente o raciocínio não vingou e, dois anos depois,no dia 23 de agosto de 1942, Getúlio Vargas decide declarar guerra ao eixo formado por Alemanha, Itália e Japão. Mas para Moreno, perdido naquele mundinho de nada, sem tomar conhecimento de qualquer fato exterior, nada disso tinha a menor importância.

Em pleno sertão nordestino, acuado agora pela solidão de haver perdido tantos amigos, Moreno optou então pela fuga. Mas, como um homem rude, sem nenhuma instrução escolar, que mal conhecia os limites da região onde nasceu e da qual nunca se
ausentou, conseguiu romper a vigilância dos homens da lei e fugir, ao lado de sua amada, para um lugar tão distante como Minas Gerais? Pois Moreno e Durvalina, caro leitor, conseguiram romper esse cerco.

Antes de contar esta fascinante história de fuga, vamos conhecer um pouco a trajetória desses dois intrépidos cangaceiros.

Natural de Tacaratu, Pernambuco, Moreno, cujo nome completo é Antonio Ignácio da Silva, nasceu no dia lº de novembro de 1909. São seus pais: Manuel Ignácio da Silva e Maria Joaquina de Jesus. Ele entrou para o cangaço ali pelo ano de 1930, quando era apenas um jovem de 21 anos. Antes de abraçar a vida do cangaço, Moreno era um acato trabalhador que ganhava seu honesto dinheirinho prestando serviços nas fazendas da região. Numa destas fazendas, de propriedade de um senhor chamado André, Moreno, ou melhor, Antonio (como era chamado antes de ingressar no cangaço), praticou o primeiro homicídio, das 21 mortes que cometeu durante sua longa vida de cangaceiro. O fato é narrado em todos os seus detalhes por João de Sousa Lima, diretor de publicação e arquivo público do Instituto Histórico e Geográfico de Paulo Afonso, na Bahia, no livro intitulado Moreno e Durvinha – Sangue, amor e fuga no cangaço, lançado em 2006.

Uma sobrinha do dono da fazenda enamora-se de Antonio. Para azedar a amizade entre ambos, uma agregada da propriedade, conhecida por Antoninha, conta para Antonio que a moça não é mais virgem. Acrescenta que ela havia “se perdido” em troca de uma novilha de gado. Esta mesma conversa é levada ao conhecimento de André pela própria Antoninha, mas de forma envenenada. Diz que o boato fora espalhado por Antonio, que é abordado pelo patrão. Injuriado, ele nega tudo, argumentando que soube do fato pela boca de Antoninha. Ao entardecer, André reúne no pátio da fazenda, além de sua sobrinha, todas as pessoas que convivem ali com ele. Lá estão também Antonio, um irmão de André, de nome Ananias, Antoninha e seu marido. Ao notar a aproximação de Antonio, Antoninha se antecipa, dizendo:

– Oh, seu Zé, que história é essa que o senhor foi contar
para o André?

– Aquela que você me contou.

– Mentira sua, disse ela nervosa.

Antonio respondeu que não era homem de mentira e aplicou um violento murro na orelha de Antoninha, que caiu zonza no chão. Diante da cena, o marido dela partiu furioso sobre Antonio, que sacou de uma faca peixeira e, ato contínuo, cravou a arma no peito do homem, que caiu se esvaindo em sangue sobre a mulher e, em seguida, morreu.

Antes de fugir, Antonio, a faca assassina em punho, ainda mirou as pessoas ali presentes com o olhar transtornado de quem estava pronto para o que desse e viesse. “Quem se considerar meu amigo não se aproxime!”. Como ninguém fez um único gesto para detê-lo, pegou o caminho do mato e sumiu no meio do mundo. Esta foi a porta aberta para Antonio entrar no desafiante e incrível mundo do cangaço. Depois de trabalhar numa usina de açúcar e em algumas fazendas da região, Antonio se depara, numa dessas propriedades, com um bando de cangaceiros. Eram eles: Virgínio, Luiz Pedro, Maçarico, Fortaleza e Salviano, vulgo Medalha.

Deixaram com ele um recado para o Sr. Antonim, dono da fazenda, avisando que em determinado prazo voltariam para pegar uma encomenda. Eram duzentos mil réis. Quando voltaram, trouxeram com eles um coiteiro, devidamente amarrado, que os havia denunciado à polícia. Traição no cangaço era sinônimo de morte. Os cangaceiros se arrancharam na fazenda durante uns três dias e fizeram amizade com Antonio, que se mostrou interessado em segui-los. Antes de partirem, submeteram-no a um teste de fogo. Entregaram-lhe uma “Mauser” (carabina automática, de fabricação alemã) e pediram que fizesse o serviço.

Frio como uma pedra de gelo, Antonio segurou a arma com firmeza e mirou calmamente o peito do miserável. Em seguida, acionou o gatilho. O pobre homem caiu morto no meio do acampamento. Naquele instante, Luiz Pedro, famoso pela valentia e por ser um dos homens de confiança de Lampião, deu dois passos em direção a Antonio e afirmou, convicto: “Você vai com a gente. E de agora em diante seu novo nome será Moreno”. Estava, assim, selado o batismo do ingresso de Antonio Ignácio da Silva no cangaço. Por ser um homem extremamente arisco e muito valente e, acima de tudo, pelo faro que tinha das coisas, cedo se destacou entre os companheiros como uma pessoa altamente preparada para o cangaço. Mais tarde vamos vê-lo substituindo Virgínio, cangaceiro morto em combate, no comando de um subgrupo de Lampião.

Durvalina Gomes de Sá nasceu em Paulo Afonso, BA, no dia 25 de dezembro de 1915. Seu umbigo está enterrado na Fazenda Arrasta-pé, de propriedade de seus pais, Pedro Gomes de Sá e Santina Gomes de Sá. A fazenda, um oasisinho aconchegante, ficava a dois passos do Raso da Catarina, região inóspita, talvez a mais inóspita do País. Era lá, no Raso, onde Lampião e seus cabras se refugiavam quando a perseguição das volantes se tornava mais intensa. Amigo da família de Durvalina, Lampião escolheu a fazenda Arrasta-pé como um dos seus coutos preferidos. O local, palco de comemorações familiares, com direito às devidas festinhas, vivia sempre rodeado de cangaceiros.

Numa dessas visitas, o cangaceiro Virgínio, vulgo Moderno, viúvo de Angélica Ferreira da Silva, irmã mais velha de Lampião, se enfeitiçou por Durvalina, que tinha apenas 15 anos. Ela era muito bonita e vivia triturando o coração dos rapazes que frequentavam a fazenda de seus pais. Virgínio, 27 anos, natural do Rio Grande do Norte (nasceu em 1903), com fama de galanteador, não perdeu tempo. Pegou Durvalina e, para desespero dos pais dela, fugiu com a moça para o cangaço.

Amigo próximo e ex-cunhado de Lampião, Virgínio era chefe de um sub-bando. Perverso, costumava castrar suas vítimas.

Há registro de diversos casos em que ele mesmo castrava ou mandava alguém do bando executar o serviço.

Durvalina nutria por ele um grande amor. Tiveram dois filhos, Lourdes e Pedro, que, criados longe dos pais, vieram a falecer nos primeiros anos de vida. Durvalina ficou ao lado de Virgínio até o dia em que, atingido no joelho por uma bala desferida em combate por um soldado, ele morreu depois de perder muito sangue.

Profundamente abatida, Durvinha é amparada por Moreno, que faz parte do grupo, sendo a segunda pessoa de Virgínio. Ele pergunta se ela quer voltar para a casa dos pais ou se quer ficar com ele. Ela aceita ficar com Moreno. Então, a partir daquele momento, Durvalina e Moreno iniciam um romance que se perpetua até os dias de hoje. São 72 anos de união.
Agora, Moreno é o novo chefe do bando. Amigo inseparável de Virgínio, ele chora copiosamente no momento em que vai enterrar o velho companheiro de incontáveis lutas. Em seu livro, João de Sousa Lima conta que, no dia seguinte à morte de Virgínio, ocorrida em outubro de 1936, nas proximidades da fazenda Rejeitado, sul de Sertânia, Pernambuco, os soldados desenterraram o corpo dele e arrancaram os dentes de ouro que estavam incrustados na boca do morto. E ainda, num ato de extrema selvageria, cortaram a orelha do cangaceiro e a levaram salgada para ser exibida no povoado Morro Redondo.

Com a morte de Virgínio, Moreno assume a chefia do grupo, que começa a se esvaziar. Mas a debandada é passageira. Logo o bando se fortalece de novo e Moreno segue sua vida no cangaço ao lado de Durvalina. Vez por outra ele retoma o contato com Lampião para juntos discutirem estratégias e novas investidas dos grupos. Nesses encontros, que se dão em coutos ou em plena caatinga, as presenças de Corisco, Luiz Pedro e Zé Sereno, também chefes de subgrupos, são imprescindíveis. Vale lembrar que os subgrupos funcionavam sob a supervisão de Virgulino.

No intenso calor das caatingas, saqueando ou fugindo das volantes, a vida de Moreno e Durvalina era um verdadeiro inferno. Nos poucos momentos em que não estavam sob a mira dos fuzis inimigos, os dois aproveitam as sombras da noite para fazer
amor. Algumas vezes nem podiam terminar o ato porque eram surpreendidos pelas volantes e tinham que fugir às pressas.

Numa dessas paradas, com o céu incendiado de estrelas, conforme lembra Durvalina, a polícia não apareceu. E ali, no meio da mais profunda solidão da caatinga, os dois se amaram intensamente. E vieram outras noites calmas e abençoadas por Cupido.
Outras manhãs, outras tardes, outras madrugadas. E haja amor entre os dois cangaceiros. Corria o ano de 1937. Durvalina passou a mão sobre a barriga e descobriu que estava grávida. No dia 03 de janeiro de 1938, ela deu à luz um menino, nos carrascais da fazenda Riachão, em Tacaratu. Quem serviu de parteiro foi o próprio Moreno.
Com muitas dificuldades para criar o menino na vida de nômades que levavam, Moreno e Durvalina decidiram doar a criança para o cônego Frederico Araújo de Oliveira , de Tacaratu. A criança foi batizada com o nome de Inácio e ficou com o padre até o dia em que este morreu, 14 de janeiro de 1944. Depois, Inácio foi levado à cidade de Paulo Afonso para conhecer a verdadeira família. Hoje, Inacinho, como é mais conhecido, vive no Rio de Janeiro, onde é oficial da Polícia Militar daquele estado.

A FUGA

Agora que o cangaço não tinha mais horizontes, pois todos os seus grandes líderes, como Lampião e Corisco, estavam mortos, só haviam duas saídas para Moreno: se entregar à polícia ou fugir. O próprio padre Frederico Oliveira fazia apelos insistentes para que o casal fugisse, pois do contrário a presença deles em suas terras, caso fossem descobertos, poderia trazer grandes problemas para o sacerdote. Moreno decidiu atender os pedidos do padre, mas disse para Pedro Tiririca, porta-voz do vigário, que precisava de ajuda para ir embora. O padre lhe mandou roupas, calçados, um burro com mantimentos e 200 mil réis.

No dia 02 de fevereiro de 1940, dia da Festa de Nossa Senhora da Saúde, Padroeira de Tacaratu, os cangaceiros aproveitaram o silêncio da noite e partiram. Tiveram, antes, o cuidado de trocar as tradicionais roupas do cangaço por vestes comuns. Em seguida, Moreno escondeu todas as balas num oco de pau. Depois, emocionado, pegou o velho mosquetão que o acompanhou por tanto tempo e o colocou, cuidadosamente, na fenda de uma rocha. Ali também deixou o chapéu, mas não se esqueceu de arrancar da peça uma moeda de ouro e uma libra esterlina que serviam de adorno. Com o coração partido, Durvalina chorou copiosamente por se ver forçada a afastasse do filho. Moreno, acostumado às brutais estocadas do cangaço, também não resistiu e seus olhos encheram-se de lágrimas. E ainda improvisou os seguintes versos: “Dentro do meu coração/Nasceu um pé de flor/Mas toda folhinha murchou/por causa de meu filho Inacinho/Que em Tacaratu ficou”. Matos têm olhos e paredes têm ouvidos. Era preciso, portanto, muito cuidado nessa nova empreitada. O peito protegido por uma medalha de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus, Durvalina, um longo xale a cobrir-lhe a cabeça e os ombros, era a imagem perfeita de uma pacata senhora em sua monótona mas decidida marcha rumo ao desconhecido. De nomes mudados, os cangaceiros pegaram as margens do rio São Francisco, cuja rota seguia em direção a Minas Gerais. Quando perguntavam para onde iam, a resposta era a sempre a mesma: “Somos romeiros e vamos pagar uma promessa em Bom Jesus da Lapa”.

O autor deste blog junto ao filho de Moreno e Durvinha, Inácio.

Depois de quatro longos e extenuantes meses, alimentando-se de peixes, arroz de leite, arroz solto, feijão, farinha, rapadura, tudo isso servido por pescadores e ribeirinhos, sem falar nos mantimentos dados pelo padre, chegam finalmente a Bom Jesus
da Lapa, interior da Bahia.

Logo nos arrabaldes da cidade, foram acolhidos na casa de uma senhora chamada Gertrudes. “Durvalina chegou aos extremos de suas capacidades, dentro do seu limite, enfadada, sentindo dores e o corpo com um pouco de inchaço”, observa João Lima em seu livro. A cangaceira estava há vários dias com a menstruação atrasada. Mesmo recebendo o carinho e a atenção da dona da casa, que abrigou o casal por uns dias, o estado de saúde de Durvalina se agravava cada vez mais. Chegou um momento em que, enlouquecida, saiu correndo totalmente nua ao encontro de Moreno, que estava descansando, sentado debaixo de uma árvore na frente da casa. Ao perceber a cena, assustado, ele segurou a companheira e a conduziu para dentro da residência. Dias depois, já restabelecida, Durvalina parte em companhia de Moreno na carroceria do primeiro caminhão que encontraram parado na feirinha da cidade. No bolso, os duzentos mil réis que acabara de receber com a venda do burro. Seguiram rumo a Montes Claros, Minas Gerais, mas desceram em Araçuaí, no entroncamento, pois o motorista havia avisado que só ia até aquele local. De lá foram furando de novo a estrada a pé. Doçura de caminhada. O pior já tinham deixado lá para trás. Chegaram em Montes Claros ao alvorecer do outro dia. Compraram umas coisinhas na estação, com o dinheiro apurado na venda do burrinho e, em seguida, tomaram a direção de Bocaiúva. Ali passaram um ano na fazenda Taboa, onde Moreno trabalhava cortando lenha para a velha Maria Fumaça, maquinazinha a vapor que até hoje encanta as pessoas.

Moreno queria abrir novas veredas. Então, arrumou de novo as tralhas e partiu com Durvalina para Augusto de Lima, onde trabalharam na fazenda Curumataí, no povoado de Santa Bárbara, de propriedade do Sr. Torval Sampaio, durante dez anos. Dez anos de trabalhos abençoados. Moreno começou a crescer. Além de cultivar muita mandioca, ele extraía lenha e vendia o produto para a Estrada de Ferro Central do Brasil. Chegou a ser o maior fornecedor de farinha da região do Norte de Minas. Seus negócios prosperam bastante. Depois, abriu uma casa noturna, que permaneceria em seu poder até o ano de 2000, quando resolveu “se aposentar”, aos 91 anos.

Hoje, ele vive em Belo Horizonte ao lado da mulher e dos cinco filhos (além dos netos e bisnetos), todos nascidos em Minas. São eles: Murilo, João, Nely, Dadá e Dinho. Inacinho, o primeiro filho deixado para o padre Frederico criar, virou oficial de polícia e vive no Rio de Janeiro. Aliás, o casal soube orientar bem os filhos. João, além de poliglota (escreve e fala fluentemente vários idiomas sem nunca ter ido a uma escola especializada), é maître de um grande hotel em Belo Horizonte. Nely é funcionária pública, Murilo foi motorista e aposentou-se como instrutor da empresa de ônibus Gontijo, e Dinho é comerciante. O casal passou 66 anos, desde o dia em que deixou o cangaço, no mais absoluto segredo, sem contar um dedo de sua emocionante história a ninguém. A ninguém mesmo. Nem os filhos sabiam de nada. Em 2005, adoentado, Moreno pensou que ia morrer e resolveu contar tudo para os filhos. Antes, conversou com Durvalina sobre o assunto, mas ela não concordou com o marido. Depois de muita insistência ela cedeu. A primeira pessoa a saber dos fatos foi Murilo, filho mais velho do casal. Depois, os ex-cangaceiros reuniram o restante da família e contaram, olho no olho de cada filho, a longa e dramática vida que levaram no cangaço.

A emoção tomou conta de toda a família e, como não podia ser diferente, as lágrimas inundaram os olhos de todos. Nely começa a travar uma alucinada busca na esperança de localizar o irmão Inacinho. Faz desesperadas tentativas. Liga pra quase todo mundo em Tacaratu, cidade onde ele foi deixado pelos pais com o padre Frederico Araújo. Depois de angustiantes telefonemas conseguiu falar com a Casa de Cultura e, por intermédio de dona Joana, fica sabendo que Inacinho vivia no Rio de Janeiro e só aparecia em Tacaratu durante os festejos da Padroeira. Quando Nely falou com o irmão pelo telefone e contou a história dos pais, Inacinho pensou tratar-se de mais um dos muitos trotes que recebera na ânsia de localizá-los. Então, para convencer o irmão, Nely pôs Durvalina do outro lado da linha.

Finalmente convencido de que Durvalina era sua mãe, ele desabou a chorar.
O encontro de Inacinho com os pais e o restante dos irmãos e demais parentes, inclusive os tios, irmãos de Durvalina, se deu no dia 05 de novembro de 2005 na casa de Moreno, em Belo Horizonte. Parecia cena de filme. Aliás, o cineasta cearense Wolney Oliveira vai aproveitar algumas imagens que fez desse encontro para o filme que está rodando sobre o cangaço, intitulado Lampião, Governador do Sertão.

Durvinha faleceu em 2008 e Moreno em 2010

FAMILIARES NARRAM A IMPRENSA SOBRE A MARIA DO CAPITÃO LAMPIÃO

Maria Bonita – Fonte – http://raimundopajeu.blogspot.com

Estamos na semana do Dia Internacional da Mulher. Uma data muito positiva para glorificar aquelas as quais os homens devem muito. Pois sem elas, para começo de conversa, nem sequer veríamos a luz do nosso caliente sol nordestino.

Em minha opinião, pela força, garra, capacidade e muitos outros adjetivos positivos, todo dia é dia das mulheres.

Sobre mulheres, mais especificamente sobre mulheres nordestinas, acredito que para o imaginário da grande maioria dos habitantes da nossa região, quando por aqui desejamos facilmente visualizar a figura de uma mulher batalhadora, lutadora, normalmente projetamos em nossas mentes a imagem das cangaceiras.

Evidentemente que não foram as cangaceiras as únicas mulheres de luta de nossa região. Nem vale a pena caracterizá-las apenas como companheiras de fora-da-lei que seguiam armados pelos sertões nordestinos, com suas roupas características, suas armas, sua valentia, seus cabelos grandes, suas apragatas. Igualmente em relação à entrada das mulheres no cangaço não podemos dizer que elas desejavam tão somente a busca de uma certa liberdade.

Os pesquisadores do assunto enumeram vários motivos que levaram as mulheres a se tornarem cangaceiras. Mas certamente em termos de liberdade, as cangaceiras estavam muito mais avançadas que a grande maioria das mulheres que viviam naquele Nordeste extremamente machista.

E entre estas mulheres de cangaceiros, a figura maior é indubitavelmente Maria Gomes de Oliveira, a Maria do Capitão Lampião, Maria Déia, ou Santinha, mas que ficou conhecida em todo o mundo como Maria Bonita.

 A NARRATIVA DE ZÉ FELIPE 

Sobre esta mulher sabemos que se chamava Maria Gomes de Oliveira, que nasceu no dia 8 de março de 1911, na fazenda Malhada do Caiçara, no Estado da Bahia e seus familiares chamavam-na de Maria Déia. Já seus pais eram os fazendeiros Maria Joaquina da Conceição e José Gomes de Oliveira.

Muito já foi escrito, muito já foi analisado e muito já foi comentado sobre ela. Mas não custa nada trazer para o público do nosso blog “Tok de História” duas antigas reportagens jornalísticas realizadas com familiares da famosa cangaceira.

O Jornal, Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1958

Vinte anos após a morte de Lampião e Maria Bonita na Grota do Angico, o repórter A. C. Rangel e o fotógrafo Rubens Boccia seguiram para o sertão a serviço do periódico carioca “O Jornal”. Este era autodenominado o “órgão líder dos Diários Associados”, sendo o primeiro veículo jornalístico adquirido pelo poderoso Assis Chateaubriand e se tornou o embrião do que viria a ser a empresa jornalística Diários Associados. O objetivo dois profissionais da imprensa era realizar uma entrevista com o pai de Maria Bonita, José Gomes de Oliveira, mais conhecido como Zé Felipe. [1]

Na edição de domingo, 7 de setembro de 1958, o periódico carioca estampava a manchete “Maria Bonita era tão má quanto Lampião” e informava sobre a entrevista junto ao pai da famosa cangaceira.

Zé de Neném – Fonte – http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Para o jornalista Rangel, o seu entrevistado estava “na casa dos setenta”, mas mostrava-se forte e lúcido. O homem do jornal ficou surpreso ao descobri que Maria Bonita havia habitado cinco anos debaixo do mesmo teto com outro homem, o sapateiro José Miguel da Silva, apelidado Zé de Neném (ou “Zé de Nenê”).

O pai de Maria Bonita nada narrou sobre a esterilidade do sapateiro e nem sobre o primeiro marido da sua filha, mas comentou que ficou arruinado com a união de Maria e o “Rei do Cangaço”. Ele afirmou ao jornalista que em consequência daquela união passou oito anos andando pelo norte do país, verdadeiramente como um “cão escorraçado e sem sossego”.

Zé Felipe comentou que após Maria decidir seguir os passos de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, nas poucas vezes que pode estar frente a frente com a sua filha, buscou convencê-la a deixar aquela vida. Atitude bastante razoável para um pai diante daquela situação. Comentou que Lampião vivia como um “alucinado” e que não parava em parte alguma. Mas como bem sabemos, ele não conseguiu convencer a filha.

Grande parte da entrevista procura mostrar Maria Bonita como uma mulher muito valente, até mesmo violenta, que encarava Lampião sem medo.

O jornalista Rangel informa que Zé Felipe lhe narrou que em uma ocasião em meio a uma caminhada forte, com a polícia seguindo nos calcanhares, Maria Bonita foi ficando cada vez mais para trás, pois trazia embalada uma criança sua, com pouco tempo de nascida. Sem explicar como, a reportagem informa que a cangaceira com seu filhinho pegou um cavalo e conseguiu chegar próximo ao bando. Como a criança chorava muito, Lampião se exasperou e, para evitar que o bando fosse encontrado pela polícia, quis “sangrar” com um punhal seu próprio filho.  Mas Maria saltou de punhal na mão e encarou o chefe cangaceiro frente a frente e este desistiu de sua ação. Noutra ocasião Zé Felipe narrou ao jornalista Rangel que Maria tinha ficado raivosa com o companheiro e chegou a quebrar-lhe uma cabaça d’água na cabeça. [2]

Em outra parte da narrativa, o velho Zé Felipe narrou uma desobediência de sua filha perante Lampião.

Sem dizer a data, afirmou que em uma ocasião o bando chegou a um lugar denominado Girau do Ponciano após haver praticado saques. Por alguma razão que Zé Felipe não detalhou, Maria passou a pegar várias peças de pano, de várias cores, jogando-as para cima e depois pisando no pano. Daí media até o alto da sua cabeça e depois mandava cortar aquele pedaço e entregava aos mais pobres do lugarejo dizendo “-Quem tá noiva prá casar ganha uma peça”. O pai da cangaceira afirmou que apenas ela podia fazer aquele tipo de coisa e que Lampião estava zangado com ela na ocasião por alguma “Ruga” (Rusga), mas não comentou a razão. [3]

Maria Bonita – Fonte – http://umas-verdades.blogspot.com

Zé Felipe aos periodistas comentou que até aquela data não conseguia compreender o desejo irascível de Maria seguir atrás de Lampião. Mas quem pode explicar as razões do amor?

É sempre interessante ler antigas reportagens ligadas aos participantes do cangaço, com informações transmitidas por seus próprios parentes, por aqueles que conviveram com a figura pesquisada debaixo do mesmo teto. Mas interessante ainda é quando estas opiniões foram relatadas a jornalistas anos depois do fim do cangaço, quando muito da apreensão de se falar sobre os personagens deste assunto havia desparecido. Mas esta matéria de 1958 se mostrou bastante limitada, pouco detalhista e tendenciosa ao sensacionalismo. Mostrando uma extrema limitação do jornalista, que a nosso ver perdeu uma grande oportunidade de conhecer mais detalhes da vida da companheira de Lampião através do relato do seu próprio pai.

UM POLÍTICO DESCOBRE A IRMÃ DE MARIA BONITA

Publicada no periódico soteropolitano “Diário de Notícias”, edição de domingo, 4 de novembro de 1970, trinta e dois anos depois da morte do mais famoso casal de bandoleiros do país, trás a assinatura do jornalista Renato Riella e fotos de Aristides Baptista e a principal entrevistada foi a Senhora Amália Oliveira, a irmã de Maria Bonita. [4]

Naquele ano de políticas ditadas pelos militares que dominavam Brasília e a euforia do tricampeonato de futebol, o jornalista Riella tratou a irmã da cangaceira respeitosamente como Dona Amália. Já no começo do relato esta senhora informou que Maria tinha era “Muito medo de Lampião antes de conhecê-lo”. Mas completou afirmando que ela era “Uma mulher comum, com sentimentos bastante humanos”.

Diário de Notícias, Salvador, ed. 4 de novembro de 1970

O jornalista Renato Riella encontrou Dona Amália hospedada em Salvador, na casa de um cidadão por nome de José Augusto, então candidato a deputado estadual. Ela havia chegado a esta casa quando, em um dia de 1970, este aspirante a um cargo político visitou um pequeno povoado denominado Riacho, na região próxima a cidade de Paulo Afonso, Bahia, em plena campanha eleitoral. [5]

Nesta localidade o candidato foi lanchar em um bar e soube que ali morava um cidadão que tinha graves problemas de saúde e que necessitava de ajuda e José Augusto foi então visitar esta pessoa. Nesta casa ele conheceu Dona Amália e descobriu que seu marido se chamava Manuel Silva e era a pessoa que precisava de apoio. Em meio a conversa, o candidato soube que aquela senhora era irmã de Maria Bonita. [6]

Depois de conhecer a situação o casal seguiu para a residência do candidato na capital baiana. No momento em que era feita a reportagem, José Augusto ainda não havia conseguido vaga na rede hospitalar para Manuel Silva. Imaginava-se que ele estava acometido de reumatismo, mas descobriu-se que era câncer no pulmão, em avançado grau. [7]

Diário de Notícias, Salvador, ed. 4 de novembro de 1970

Ao ler a reportagem e ver as fotos que trazem Dona Amália, aparentemente ela estava bastante tranquila quando respondeu aos questionamentos do jornalista Renato Riella. Logo o repórter descobre que o marido de Dona Amália era irmão do sapateiro José Miguel da Silva, o Zé de Neném, ex-marido da famosa cangaceira.

A SEPARAÇÃO DE MARIA BONITA

Ela informou que era alguns anos mais jovem que Maria Bonita, mas que havia sido criada junto a ela. Já em relação a razão da separação do casal, Dona Amália em nenhum momento fez algum comentário sobre a provável infertilidade do seu cunhado. Mas narrou ao jornalista Riella uma interessante história.

Um dia Maria encontrou no bolso da calça do esposo um pente de pedra. Um pente de pentear cabelo de mulher. Sabendo que o marido tinha o hábito de realizar “aventuras” fora do leito matrimonial, ao inquiri-lo sobre a existência daquele objeto o diálogo azedou, logo se transformou em bate boca e culminou em uma agressão física. Segundo a irmã de Maria Bonita, Zé de Neném feriu sua esposa três vezes no braço, com um canivete do tipo “corneta”. [8]

Segundo Dona Amália o diálogo que levou a agressão, textualmente reproduzido na reportagem, se desenrolou desta maneira;

– Onde achou este pente? Perguntou Maria.

– Não lhe interessa.

– Não me interessa por quê? Retrucou a esposa.

– Porque não. Foi a resposta dura de Zé de Neném.

Diante da violência vergonhosa, Maria seguiu para a casa dos seus pais no Sítio Malhada da Caiçara. Zé Felipe ao saber do ocorrido teria sentenciado “-Daqui a dois dias você esquece tudo”.

Segundo a versão transmitida por Dona Amália, a sua irmã Maria não esqueceu e passados oito dias do entrevero conjugal estourou a notícia:

-Lampião vem aí!

Dona Amália comentou que todos ficaram com medo, inclusive Maria. A irmã mais nova da “Rainha do Cangaço” informou ao repórter que estava gripada e tossindo muito. Maria avisou que ela deveria parar de tossir “-Por que ele (Lampião) pode lhe matar”.

Dona Amália, irmã de Maria Bonita – Diário de Notícias, Salvador, ed. 4 de novembro de 1970

Ela afirma que Lampião e seus homens ficaram em um local próximo a propriedade da família e que seu pai matou um bode para alimentar os cangaceiros. As moças do lugar, diante do acontecimento anormal, resolveram fazer uma visita ao local. Dona Amália afirma que Maria primeiramente tinha bastante medo de se aproximar dos cangaceiros, mas acabou seguindo para o coito. Lá conheceu o chefe do bando, sendo por ele bem tratada. Aos poucos, segundo sua irmã mais nova, foi se aproximando do grande cangaceiro.

Lendo a versão transmitida por Dona Amália, é fácil deduzir que certamente Maria estava bastante magoada com a agressão realizada por seu marido. Consequentemente a ideia (e depois a decisão) de abandonar o esposo foi uma reação natural de defesa. Neste sentido, baseado no relato da reportagem, é possível conceber que a aproximação com Lampião poderia ter sido iniciada tanto pela admiração natural que a vida de cangaceiro exercia nas sertanejas, como por uma ideia de ter um homem que a protegesse?

Independente desta questão, logo após este encontro Dona Amália afirma que receberam a notícia que a polícia logo viria “visitar” a casa de Zé Felipe, para saber da sua relação com Lampião. Em pouco tempo todos estavam arrumando seus pertences, inclusive Maria. Seguiram em direção ao estado de Alagoas e transportavam poucas coisas, alguns membros da família praticamente saíram apenas com a roupa do corpo.

Quando o grupo familiar chegou à casa de uma das avós das meninas, no lugarejo Rio do Sal, a jovem Maria Déia decidiu ficar nesta casa. [9]

Oito dias depois a família tomou conhecimento que ela estava acompanhando Lampião.

ÚLTIMO ENCONTRO

Dona Amália recordou em 1970 o último encontro que teve com a irmã famosa.

O fato se deu no lugar Salobro e nesta ocasião Dona Amália encontrou sua irmã “muito alegre”. O seu relato aponta que Maria Déia estava realmente muito bem com a sua nova vida.

Ela conta que a irmã chegou até mesmo a fazer uma brincadeira “até certo ponto infantil”. Ela colocava dentro de uma rede vários objetos tipo pentes anéis e outras joias.  Daí quem saltasse mais alto sobre a rede ganhava os prêmios. Dona Amália afirmou que não ganhou nada, mas que uma moça do lugarejo ficou com vários dos regalos. Ela lembrou que sua irmã mais velha lhe falou que estava gostando da vida ao lado de Lampião e revelou uma grande admiração por ele. Mas também lhe disse que não queria ninguém de sua família naquela vida.

Com o passar do tempo Dona Amália só tomava conhecimento da vida da irmã através da narrativa de pessoas vindas de fora. E foi desta forma que ela soube da morte de Maria Déia em 1938.

Fim de Lampião, Maria Bonita e seu bando. Fonte – http://blogdathayanne.blogspot.com

Ao ler o trabalho do jornalista Renato Riella percebi que este se apresenta com uma narrativa muito mais detalhista e aberta, mostrando que esta entrevista foi muito bem conduzida, trazendo alguns fatos sobre a vida da mulher de Lampião.

Infelizmente esta reportagem de 1970 não informou maiores detalhes do destino de Dona Amália e seu esposo. Já o pesquisador e escritor da cidade de Paulo Afonso, João de Sousa Lima, em seu ótimo livro “A trajetória guerreira de Maria Bonita, a Rainha do cangaço”, 1ª ed., 2005, na página 90, informa que Amália nasceu em 10 de julho de 1916, era conhecida na família como Dondon. O autor informa que ela e seus seis filhos seguiram para a cidade de Osasco, no estado de São Paulo, aonde veio a falecer no dia 12 de maio de 1996, em decorrência de um infarto.

NOTAS


[1] Sobre o jornalista A. C. Rangel nenhuma referência encontrei. Mas em relação ao fotógrafo Rubens Boccia temos várias informações (Ver – http://terceirotempo.bol.uol.com.br/quefimlevou_especial_foto.php?id=2288&sessao=f&galeria_id=2052&foto_id=19532  /  http://edemarannuseck.blogspot.com/2011/04/wilson-de-freitas.html

[2] Existem algumas obras sobre o tema cangaço que apontam situações parecidas como as narradas pelo pai de Maria Bonita nesta matéria. Mas no caso da criança, por mais bruto que fosse Lampião quanto bandoleiro, havia uma relação muito positiva entre ele e Maria Bonita e não acredito que ele chegasse a este tipo de atitude em relação ao seu próprio filho.

[3] Existe um município no sul do estado de Alagoas denominado Girau do Ponciano, a vinte e seis quilômetros da cidade de Arapiraca. Segundo o pesquisador Kiko Monteiro, em artigo publicado neste blog “Tok de História”, um comerciante deste local de nome Eloy Mauricio, tive os seus armazéns saqueados pelo bando de lampião em abril de 1938, três meses antes da morte de Maria Bonita e seu companheiro. Teria sido nesta ocasião e neste local que se deu o fato narrado por Zé Felipe aos jornalistas em 1958? Infelizmente não conseguiu confirmação. (Ver – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/08/06/canhoba-em-sergipe-e-rota-do-cangaco-os-carvalhos-lampiao-e-o-estado-menor/). Já sobre o pai de Maria Bonita, segundo o pesquisador e escritor João de Sousa Lima, no seu livro “A trajetória guerreira de Maria Bonita, a Rainha do cangaço”, na pág. 87 temos a informação que Zé Felipe faleceu em 5 de março de 1965, sete anos após a entrevista aos jornalistas de “O Jornal”.

[4] João de Sousa Lima, no seu livro “A trajetória guerreira de Maria Bonita, a Rainha do cangaço”, na pág. 90 informa que o nome desta irmã de Maria Bonita seria Amália Oliveira Silva e Amália Gomes de Oliveira seria provavelmente seu nome de solteira. Sobre o jornalista Renato Riella ver – http://riella.blog-se.com.br

[5] O Povoado riacho dista vinte e cinco quilômetros de Paulo Afonso. (Ver – http://www.juraemprosaeverso.com.br/HistoriasDasCidadesBrasileiras/HistoriaDaCidadeDePauloAfonso.htm)

[6] Sobre o candidato a deputado estadual José Augusto informo que nada encontrei. A Assembleia Legislativa do Estado da Bahia possui em seu site na internet uma interessante página com pequenas biografias dos vários deputados que atuam e atuaram na casa. Mas não encontrei nenhuma referência a algum político com este nome. É certo que em 1970 houve um pleito onde os eleitores dos estados da federação escolheram diretamente seus candidatos ao senado, a câmara federal, para as assembleias legislativas, prefeituras e câmara de vereadores. (Ver – http://www.al.ba.gov.br/v2/deputados.cfm /   http://www.tse.jus.br/eleicoes/cronologia-das-eleicoes)

[7] João de Sousa Lima, livro “A trajetória guerreira de Maria Bonita, a Rainha do cangaço”, na pág. 90 confirma que Dona Amália havia casado com Manuel Oliveira Silva.

[8] Este canivete “Corneta”, comentado na reportagem pela Dona Amália seria o que atualmente é conhecido popularmente como canivete de “Eletricista”. Também era conhecido antigamente como “Pica Fumo”. Já o nome como esta peça de cutelaria era conhecido naquela época vem da tradicional fábrica Indústria e Comércio Corneta S.A., implantada a mais de 70 anos no Brasil por imigrantes alemães na cidade de São Paulo. Ver – http://www.corneta.com.br/

[9] João de Sousa Lima, livro “A trajetória guerreira de Maria Bonita, a Rainha do cangaço”, na pág. 30 informa que esta avó era a materna e se chamava Ana Maria. O autor aponta que Maria Déia decidiu ficar neste local para cuidar da saúde da avó e teria sido dali que ela seguiu definitivamente com Lampião.

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1830 – O REGISTRO DE BATISMO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO

O PRIMEIRO DOCUMENTO OFICIAL DE UM GAROTO CEARENSE QUE MUDOU A HISTÓRIA DO BRASIL

O Conselheiro

Rostand Medeiros – IHGRN

O documento que vou apresentar no nosso Tok de História é como está documentado o batismo de Antônio Vicente Mendes Maciel, que ficaria conhecido na história do Brasil como Antônio Conselheiro.

Esta é a íntegra do texto;

“Aos vinte e dois de maio de mil oitocentos e trinta batizei e pus os Santos Óleos nesta Matriz de Quixeramobim ao párvulo Antônio, pardo, nascido aos treze de março do mesmo ano supra, filho natural de Maria Joaquina. Foram padrinhos, Gonçalo Nunes Leitão e Maria Francisca de Paula. Do que, para constar, fiz este termo, em que me assinei.

O Vigário, Domingos Álvaro Vieira”

– Livro de Assentamentos de Batizados da Paróquia de Quixeramobim, Livro 11, fl. 221 v.

O registro de batismo de Antônio Conselheiro

Este documento já a muito havia sido pesquisado pelo cearense Ismael Pordeus, que inclusive já havia publicado na íntegra, no periódico cearense “O Nordeste”, na edição de quinta feira, 6 de julho de 1949.

Mas lendo com calma o que está escrito no Livro de Assentamentos algumas equenas e interessantes informações surgem.

Visão que a imprensa conservadora do final do séc. XIX tinha de Antônio Conselheiro

Primeiramente temos que registrar que Antônio Vicente Mendes Maciel nasceu em Quixeramobim, Ceará, em 13 de março de 1830, uma quinta feira, em um ano considerado seco.

Casa onde nasceu Atônio Conselheiro, ainda preservada na rua Cônego Aureliano Mota, nº 210, próximo à Praça Dias Ferreira, Quixeramobim, Ceará – Fonte – Magno Lima

Era filho do comerciante Vicente Mendes Maciel e de Maria Joaquina de Jesus. Para outros o nome da sua mãe era Maria Joaquina do Nascimento, tinha o apelido de Maria Chana e ainda Maria Maciel (In Benício, Manuel. O Rei dos Jagunços, Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, Págs. 8 e 9, 2ª Ed. / Levine, Robert. O sertão prometido-O massacre de canudos, São Paulo, EDUSP, 1995, Págs.181 a 183, 1ª Ed.).

Dois meses depois do nascimento do jovem Antônio Maciel, no dia 22 de maio de 1830, um sábado, ele foi batizado na Matriz de Quixeramobim, uma majestosa igreja construída em 1755, cujo padroeiro é Santo Antônio, sendo considerado o primeiro templo religioso da região do Sertão Central do Ceará.

Matriz de Quixeramobim – Fonte – Walter Leite

Coincidentemente, o dia em que o jovem Antônio Maciel foi batizado é dedicado pela Igreja católica a devoção da monja agostiniana batizada como Rita, que morreu na cidade de Cássia, no ano de 1457, na província de Umbria, Itália. Mas não existe nenhuma indicação que a mãe de Antônio Maciel, Dona Maria Joaquina, fosse devota desta santa e decidiu batizar seu filho neste dia.

Certo é que ao lemos o Livro de Assentamentos de Batizados da Paróquia de Quixeramobim, Livro 11, fl. 221 v., atualmente pertencente à Diocese da cidade cearense de Quixadá, vemos que somente o jovem Antônio foi batizado naquele sábado.

Capa do livro de Assentamentos, onde está o registro de Antônio Conselheiro

Primeiramente chama atenção na foto do registro, logo abaixo do nome “Antônio”, a designação de sua cor como sendo “Pardo”, o que aponta o alcance das designações raciais no Nordeste do Brasil daquela época.

Percebemos a ausência do pai no registro e, provavelmente, na própria cerimônia.

Para aqueles que estudam a vida do Conselheiro, a ausência documentada de Vicente Maciel naquele livro de registro e a possível ausência na cerimônia de batismo de seu único filho varão não é nenhuma novidade.

Vicente era tido como um homem direito, trabalhador, mas muito complicado, como se diz atualmente. Estava no segundo casamento, era parcialmente surdo, considerado taciturno, que ocasionalmente realizava péssimos negócios que geravam dívidas e era alcoólatra. Em uma ocasião, quando bêbado, havia espancado a primeira mulher quase até a morte.

Analisando as folhas de batismo dos meses anteriores e posteriores ao batizado de Antônio Maciel, o seu registro é o único que não consta o nome do pai.

Teria havido problemas com o vigário local?

Ou alguma alteração séria teria ocorrido na época, a ponto de indispôr Vicente com o meio social do seu lugar e comprometer sua participação no evento?

Ou estaria vergado de cachaça, sem condições físicas para participar da cerimônia?

A razão não se sabe. Mas seu nome não consta do documento.

Igualmente nada sabemos dos padrinhos Gonçalo Nunes Leitão e Maria Francisca de Paula.

Outra situação interessante diz respeito ao nome do vigário. Para muitos o nome do representante da igreja em Quixeramobim que batizou Antônio Maciel seria Domingos Álvaro Vieira. Mas analisando a sua assinatura, o nome que surge é Domingos Alvares Vieira. Na foto da assinatura do vigário é possível distinguir nitidamente o “S” de Alvares.

Assinatura do vigário Domingos Alvares Vieira

Sendo este o nome correto do vigário, encontramos a figura de Domingos Alvares Vieira, um religioso católico nascido na cidade pernambucana de Goiana e batizado em 22 de outubro de 1795. Era filho de José Alvares Vieira e de Francisca Lourenço. Ordenou-se em Olinda e depois foi vigário no Ceará (Em Quixeramobim?).

Depois tornou-se lente do Liceu da Paraíba. Teve participação política, onde foi Deputado Provincial da Paraíba, na 1.ª Legislatura, cuja sessão de instalação ocorreu no dia 7 de abril de 1835. Foi Deputado à Assembleia Geral, pela Paraíba, na 3.ª Legislatura, de 3 de maio de 1834 a 15 de outubro de 1837.

Após esta experiência política, o sacerdote Vieira voltou a Goiana de onde foi vigário durante muitos anos. Foi Conselheiro do Governo de Manuel de Carvalho e ainda vivia em 1849. (In Pio, Fernando. Apontamentos Biográficos do Clero Pernambucano (1535 – 1935). Recife, Arquivo Público, 1994, 2 volumes).

Seria o religioso Vieira, que foi Deputado Provincial, o mesmo que anos antes batizou uma criança que se tornaria Antônio Conselheiro?

O registro do jovem Antônio Maciel é o primeiro da folha esquerda

Infelizmente é outro questionamento sem uma resposta.

Sobre o local de nascimento de Antônio, segundo material contido no site http://meltingpot.fortunecity.com/hornsey/372/evolucao.htm, informa que Quixeramobim primeiramente surgiu a partir de uma propriedade denominada Santo Antônio. Depois o lugarejo foi paulatinamente evoluindo pra a pequena povoação denominada Santo Antônio do Boqueirão, ou Santo Antônio de Quixeramobim.

Consta que oficialmente o lugarejo  pertenceu primeiramente à Vila de São José de Ribamar do Aquiraz até a sua elevação a vila, o que se confirma mais uma vez com asa transcrições que se seguem: Ao ouvidor Manuel de Magalhães Pinto de Avelar de Barbedo “coube-lhe instalar a Vila de Campo Maior de Quixeramobim, até então pertencente a Aquiraz, a 13 de junho de 1789”.

O site ainda aponta que os sertões de Quixeramobim eram constituídos de vastos campos que se estendiam pelas planícies adjacentes. Porém, sobre o nome Campo Maior a verdade histórica aponta que por orientação do marquês de Pombal, primeiro ministro de D. José I, foi expedida uma Carta Régia, datada de 6 de maio de 1758, determinando que toda vila a serem criada no Brasil-Colônia, teriam que receber nomes de localidades existentes em Portugal. Essa medida perdurou até metade do ano de 1803, quando deixou de ser cumprida.

Quixeramobim atualmente – Fonte – Magno Lima

Ao ser elevada a categoria de vila, o lugarejo teve seu nome mudado para Vila de Campo Maior, devido à determinação contida na lei acima. O nome de Vila de Campo Maior não foi bem aceito pela população, que continuou a fazer uso do termo Quixeramobim, isto é, Vila de Quixeramobim e, raramente, Vila de Campo Maior de Quixeramobim.

Outra visão do texto original

Na época do nascimento de Antônio Vicente Mendes Maciel, a comunidade já era conhecida apenas como Quixeramobim e assim está descrito nos autos do batismo.

O resto da história de Antônio Conselheiro é bem conhecido e todos sabem o seu desfecho.

P.S. – Um agradecimento todo especial aos membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, sede de Natal,  pelo apoio na realização deste artigo. (http://www.lds.org.br)

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O RIO GRANDE DO NORTE HÁ DUZENTOS ANOS

UM MAPA DE 1811 MOSTRA INTERESSANTES ASPECTOS DA TERRA POTIGUAR

Rostand Medeiros – IHGRN

Através do amigo José Cardoso de Paula Morais, que da sua bela Cidade Maravilhosa, me manda dos arquivos da fantástica Biblioteca Nacional, um interessante mapa digitalizado do nosso Rio Grande do Norte, do qual tenho enorme orgulho de ser filho desta terra.

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A foto do mapa, conforme recebi no original. Fonte – Biblioteca Nacional, através de José Cardoso de Paula Morais 

ATENÇÃO – NO LINK QUE SEGUE É POSSÍVEL VISUALIZAR O MAPA EM ARQUIVO HTM, COM ÓTIMAS POSSIBILIDADES DE AMPLIAÇÃO. 

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart542340.htm

Intitulado “Mappa Topographico da Capitania do Rio Grande do Norte”, é datado de 1811 e a sua execução e foi realizado sob as ordens do então governador das terras potiguares, José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, um homem aparentemente bastante interessado em saber o que havia na área sob a sua administração, conforme veremos mais adiante.

Aparentemente o autor específico da carta topográfica é um sábio de nome “Montenegro”, conforme está mostrado no canto esquerdo inferior deste material. Se não estou errado, vemos escrito “Montenegro desenhou” e acompanha um indicativo do local e do ano onde o “Mappa Topographico da Capitania do Rio Grande do Norte” foi finalizado – “Recife:1811”.

Um ponto de interesse são as desembocaduras dos rios, os cursos destes para o interior, o quanto estes eram caudalosos etc. Como na carta não aparece o mínimo rasgo de uma simples estradinha, estes rios eram os verdadeiros caminhos potiguares da época. Vemos os Rios Piranhas, “Apody”, o Maxaranguape, entre outros.

Já a nossa capital é denominada “Cidade do Natal” e está junto a “Barra do Rio Grande”.

Destaque também para as pequenas áreas habitacionais, muitas destas nada mais que simples arruados, marcados com uma uma cruz. Esta era uma marcação muito comum em mapas desta época, que servia também para mostrar a um crente seguidor da igreja que naqueles ermos havia uma casa do senhor, onde ele poderia fazer suas orações.

Como era uma época sem estradas de qualidade, sem placas indicativas (a maioria do povo era analfabeta) e muito menos GPS, o mapa mostra as muitas serras do nosso sertão, servindo como pontos de referência para possíveis viajantes que seguissem a conhecer a região.  Vemos a Serra de Martins, a de Luís Gomes, de “Sta. Anna” e a grande Serra do Camará, hoje mais conhecida como Serra de São Miguel.

O mapa se encontra bastante amarelado, mas ainda bem visível no original. Não tenho ideia de suas dimensões reais. Mesmo com todas as dificuldades da baixa resolução, vemos que o autor olhou o nosso estado como um observador posicionado ao norte, parecendo a olhos atuais que a carta está de cabeça para baixo.

Mas na perspectiva de quem o concebeu, importava mostrar principalmente a localização dos pontos de atracação ao longo do nosso litoral (marcado com pequenas âncoras), uma ação muito importante para o uso do principal meio de transporte e de escoamento de mercadorias da época – o marítimo.

Tanto assim que na base do mapa encontramos 34 indicações dos pontos do nosso litoral, com informações para os navegantes e marcações de áreas ao longo de nossas praias. Tudo de suma importância para os navegadores daquela época.

Muitas das denominações litorâneas foram esquecidas, ou alteradas. É o caso da de número 1, com a denominação “Mossoró”, onde vemos a nossa primeira praia a partir do Ceará e acompanhado do indicativo “Banco de Areia”, provavelmente a região da praia de Areias Alvas.

Já outras marcações permanecem, como as de números 2 e 3, onde aparece a denominação ainda corrente da bela praia de Redonda. Interessante é que neste ponto do mapa já aparece o nome “Ponta do Mel”, mas a localidade não foi contemplada com uma numeração e nem algum indicativo sobre a área.

O mapa com alterações do programa PICASA

Já na de número 9 aparece o nome “Guamaré” e não mais “Água-Maré”, como era denominado em tempos anteriores a feitura desta carta.

A marcação 10 é apresentada como “Gallos” (ainda existente, próximo ao município de Galinhos) e seguem inúmeras outras como o Cabo de São Roque e Maxaranguape (25), Ponta Negra (28), Pirangí (29), Tabatinga (31) e Baía Formosa como a nossa última praia antes da mal traçada fronteira com a Paraíba.

O mapa chega a mostrar locais que sumiram da face da terra, como no caso da Ilha de Manuel Gonçalves.

Neste local consta que existiu uma pequena fortaleza, construída pelo mesmo governador que mandou fazer o mapa aqui mostrado. Ali teve início uma povoação que hoje é a cidade de Macau. Ocorre que devido a ações da natureza, esta ilha desapareceu, tornando-se uma verdadeira “Atlântida Potiguar”. Com ela sumiu o fortim, as primeiras casas de Macau e grande parte de sua história. Os Macauenses mudaram suas casas para outro local e lá a cidade permanece até hoje.

Detalhe do mapa de 1811, mostrando a região de Macau

Mas o mapa mostra que a “Manoel Gonçalves”, com o número 7, estava lá em 1811.

A partir do local onde está a desembocadura do Rio Piranhas, seguindo os contornos do rio um pouco mais acima, vamos encontrar o local “Oficinas”. Esta era uma antiga povoação que aproveitava a grande quantidade de sal existente na região, junto com a carne de gado dos rebanhos que ali eram criados e produzia charque em suas denominadas oficinas. Um pouco mais acima de “Oficinas” encontramos a “Villa da Princeza”, o atual município de Assú. E por aí vai o que se pode aproveitar desta interessante carta.

Sobre o homem que mandou confeccioná-lo, consta que José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque foi um militar de artilharia e funcionário público da coroa portuguesa com muitos serviços prestados.

Mas nem tanto assim.

Segundo os “Annais de Pernambuco”, em 21 de Maio de 1801, um delator informou às autoridades da Capitania de Pernambuco os planos de um grupo de conjurados, que desejavam deflagrar um movimento separatista, o que conduziu à detenção de diversos implicados. Vejamos o que foi publicado sobre o fato.

O Forte dos Reis Magos, na Barra do Rio Grande, na época dos holandeses. Fonte – Foto do autor, feita no Instituto Ricardo Brennand, em Recife, Pernambuco

“Em 10 de junho do mesmo ano é preso o comandante militar da freguesia do Cabo de Santo Agostinho, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, ilustre e alentado fidalgo, senhor do engenho Suassuna em Jaboatão, como chefe de uma conspiração política, que tinha por objeto formar de Pernambuco uma república independente sob o protetorado de Napoleão Bonaparte, o grande líder francês.

Um dos seus irmãos, o terceiro, José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, então em Lisboa, figurava na conjuração como agente no Reino, e escapou de ser preso, fugindo para a Inglaterra.

O público jamais penetrou os esconderijos deste mistério, porque molas reais e secretas fizeram correr sobre ele cortinas impenetráveis; foi certo, contudo, que rios de dinheiro correram pelas religiosas mãos de Frei José Laboreiro, respeitável pelo seu saber e virtudes, lente de teologia dogmática do Seminário Episcopal de Olinda, e de grande prestígio na corte, de onde recentemente chegara, tirando por fruto serem os acusados restituídos à liberdade, à posse dos seus bens sequestrados, e à estima e prêmios do soberano”.

José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque soube dar a volta por cima nesta situação e em 23 de março de 1806 é designado para governar a capitania do Rio Grande do Norte.

Câmara Cascudo (In “História do Rio Grande do Norte”, MEC, 1955, páginas 130 e 131) comenta que Cavalcanti foi um dos melhores governadores que o estado já teve e exerceu seu mandato até maio de 1811.

Além de erguer pequenos fortes de pedra e cal ao longo do litoral potiguar, entre outras ações Cavalcanti fundou um asilo para as viúvas dos soldados.  O governador mandou proceder em 1805 a um censo demográfico, que apontou existirem 49.181 potiguares, sendo 24.834 homens e 24.347 mulheres, entre brancos, pardos, negros e índios.

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Escreveu Cascudo que este governante se preocupava desde abrir estradas, a comida dos presos e teria sido o primeiro a promover, em 1809, a vacinação de potiguares contra doenças, tendo sido utilizada a vacina jenneriana. (1)

Cavalcanti estava no poder quando o viajante inglês Henry Koster passou por Natal a cavalo, vindo de Recife e seguindo em direção ao Ceará. Cascudo informa que Koster, apesar da miudeza do lugar, elogiou alguns aspectos gerais da capital da pequena província. (2)

Este governador reformou até mesmo os costumes sociais em Natal, onde introduziu o uso de tecidos ingleses e promoveu o costume das reuniões sociais. Será então que os natalenses cobriam suas “vergonhas” com simples panos de chita e mal colocavam a cabeça para fora de seus alpendres de tão matutos que eram?

Não sei se José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque esteve envolvido na Revolução de 1817. Creio que não, pois em fevereiro de 1817 ele assumiu o posto de governador de Moçambique, na África. Consta que lá restaurou a Fortaleza de Mossuril e faleceu em setembro do ano seguinte.

Notas

Nota 1 – Descoberta pelo criador da vacinação, o médico inglês Edward Jenner (1749 a 1823), a forma como esta vacina chegou ao Brasil é uma verdadeira história do terror, do que era a escravidão e de como seus senhores utilizavam suas “peças”.

Em 1804 comerciantes baianos, sob o patrocínio de Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta, o poderoso Marquês de Barbacena, bancaram a viagem de alguns escravos à Europa para serem inoculados com o chamado “pus vacínico” e trazerem a vacina jenneriana para o Brasil. Já no ano seguinte, os capitães-mores de algumas províncias tornavam a vacinação obrigatória, entre estes estava o atuante Cavalcanti.

Para entender melhor o porquê de enviar escravos nesta viagem nada turística, a vacina descoberta por Jenner no final do século XVIII a partir de observações sobre a relação entre a varíola e a imunidade provocada no homem quando em contato com o “cow-pox”, ou pústula da vaca, doença similar à varíola desenvolvida pelos bovinos. O produto extraído do “cow-pox” foi denominado “vacina” e ao ser inoculado no homem causava erupções semelhantes às da varíola. A vacina jenneriana consistia na inoculação da “linfa” ou “pus variólico” produzido por estas erupções da pele humana provocadas pelo “cow-pox”. Por este motivo, também era chamada vacinação “braço a braço” devido ao método. Este tipo de vacina, porém, começou a ser questionado quando se percebeu que, além de perder o efeito após algum tempo, ele poderia estar associado à transmissão de outras doenças, em particular da sífilis.

Ver – http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/P/verbetes/instvacimp.htm

Nota 2 – Filho do comerciante inglês de Liverpool, John Theodore Koster, Henry Koster nasceu em Lisboa, Portugal. Não se sabe ao certo a data do seu nascimento, mas ao chegar no Recife, no dia 7 de setembro de 1809, consta que tivesse 25 anos de idade. Considerado um dos mais importantes cronistas sobre o Nordeste brasileiro, Koster viajou para o Brasil em busca de um clima tropical para curar uma tuberculose.

Teve um papel importante na vida social, artística e até política do Recife na época. Fez muitas amizades, conheceu governadores, senhores-de-engenho, comerciantes, coronéis.

Falava o português com fluência, o que fazia com que algumas pessoas duvidassem da sua nacionalidade, tratando-o brasileiramente por Henrique da Costa.

Em 1810, sentindo-se bem melhor da doença que o acometia, resolveu viajar a cavalo para a Paraíba e de lá foi até Fortaleza, no Ceará. Voltou ao Recife no início de fevereiro de 1811 e já no final do mês viajou novamente, desta vez por mar, para o Maranhão, de onde regressou para a Inglaterra.

Em 27 de dezembro do mesmo ano, voltou ao Recife e fez uma viagem ao sertão de Pernambuco. Quando retornou, arrendou o engenho Jaguaribe, na ilha de Itamaracá, tornando-se agricultor e senhor-de-engenho.

Como bom observador anotava, com detalhes, tudo o que via em suas viagens e no seu dia-a-dia. Tomava parte da vida brasileira, conhecendo seu povo, seus usos e costumes, convivendo nas ruas com as mais diferentes camadas da população e frequentando festas da sociedade local.

Retornando à Inglaterra, em 1815, resolveu escrever um livro sobre o Brasil. Publicou-o em Londres, sob o título “Travels in Brazi”l, em 1816. A obra obteve uma grande repercussão na Europa, com várias edições publicadas em diversas línguas. A primeira edição brasileira do livro, com tradução de Luís da Câmara Cascudo foi publicada em 1942, com o título Viagens ao Nordeste do Brasil.

Koster não pretendia voltar ao Brasil, mas ao concluir o livro e sentindo o recrudescimento da tuberculose, retornou a Pernambuco em 1817.

Transferiu-se depois para a Goiana, ao norte de Pernambuco, à procura de um clima melhor para sua saúde. Segundo informações de um outro viajante inglês, seu contemporâneo James Henderson, Henry Koster teria retornado ao Recife em fins de 1819, onde faleceu no início de 1820, sendo enterrado no Cemitério dos Ingleses, em local não identificado.

Ver http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=291&Itemid=187

 P.S. – Antes que alguém reclame da resolução do mapa, eu recebi o material com 406 KB e, mesmo não sendo nenhum expert, tentei dar uma melhorada através do programa PICASA. Mas o resultado não ficou 100%. De forma alguma reclamo o regalo recebido, antes disso. Mas é o que tenho para mostrar.

Um forte abraço ao amigão José Cardoso de Paula Morais, a Laura, a Paulinha e estou na luta para ir para o Rio no fim do ano e visitar estes maravilhosos arquivos.

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AFUNDAMENTO DO “AFONSO PENA” NO ATLÂNTICO SUL

A ACADÊMICA E MÉDICA PARAIBANA EUDÉSIA VIEIRA E A SUA EXPERIÊNCIA NO AFUNDAMENTO DO “AFONSO PENA” EM 1943

Autor – Rostand Medeiros

Aos 49 anos de idade, a médica paraibana Eudésia de Carvalho Vieira, mãe de cinco filhos, realizava, em pleno período de vigência da Segunda Guerra Mundial, uma viagem de navio entre Recife e o Rio de Janeiro. Era o dia 2 de março de 1943 e este tipo de viagem estava se tornando muito perigosa devido à ação de submarinos alemães e italianos que até aquela data já haviam afundado vinte e sete navios brasileiros e levado a morte várias pessoas.

Mas a Doutora Eudésia precisava seguir para o sul do país, até porque este era o único meio de ligação eficaz entre a então Capital Federal e a Região Nordeste.

Navio de Cabotagem “Aspirante Nascimento”. O transporte marítimo era o principal meio de contato entre as capitais brasileiras. Fonte-http://www.portogente.com.br 

Segundo artigo publicado na Revista do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante – SINDMAR – ANO VI – Nº 21 – Agosto/2005, na primeira metade do século passado, a principal via para movimentação de cargas e passageiros no Brasil era a marítima. Como hoje, onde 95% das mercadorias importadas e exportadas são transportadas pelo mar, apesar da Marinha Mercante brasileira ser responsável apenas por 4% desse total, o tráfego marítimo na década de 30 do século passado era muito utilizado.

A razão era simples: as rodovias, quase inexistentes na época, e as ferrovias, completamente obsoletas, dependiam de investimentos do governo. O transporte aéreo também não era muito utilizado pelo alto custo financeiro. Por isso, as comunicações se faziam ao longo da costa por meio da navegação de cabotagem e de longo curso e a nossa Marinha Mercante exercia um papel fundamental para a economia nacional.

Uma Mulher Corajosa

Já que a paraibana Eudésia de Carvalho Vieira, uma mulher disposta, corajosa e batalhadora, tinha de seguir em um navio, em meio a submarinos espreitando como lobos ferozes, ela via aquele momento como mais um outro desafio, em meio a tantos que enfrentou no seu passado.

Nascida no dia 8 de abril de 1894, na povoação de Livramento, no município de Santa Rita, fez seus estudos primários em uma escola particular na então cidade da Parahyba, atual João Pessoa. Recebeu o diploma de professora pública e iniciou a carreira do magistério dando aulas particulares. Só em 1915, através de concurso público, ingressou no magistério oficial. Casou-se em 1917, nascendo desse casamento 14 filhos, dos quais apenas cinco sobreviveram. Foi professora pública em várias escolas primárias da Paraíba e já casada, decidiu ser médica, contrariando a vontade do marido e enfrentando todos os obstáculos e preconceitos da época.

Eudésia foi à única mulher numa turma de homens a receber o grau de doutora e a primeira paraibana a conquistar o título pela Faculdade de Medicina de Recife. Na provinciana capital paraibana instalou um consultório em sua residência, a Rua Duque de Caxias, onde passou a atender e dedicar-se à sua clientela, fazendo da medicina o seu apostolado. Foi Assistente Social da Penitenciária Modelo, sendo muito querida pelos presidiários. Além de Professora e médica, atuou como jornalista e poetisa. Ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Paraibano em 3 de junho de 1922.

Um Navio venerável

Apesar de ser um momento negativo para se encontrar no alto mar, o navio em que a paraibana Eudésia seguia era o confiável Afonso Pena.

O “Afonso Pena”

A tradicional nave fora construído em 1910 no estaleiro Workman, Clark & Co., de Belfast, na Irlanda do Norte. Foi entregue no mesmo ano a companhia de navegação Lloyd Brasileiro, sendo registrado no Rio de Janeiro e batizado como “Afonso Pena”, em homenagem ao ex-presidente brasileiro Afonso Augusto Moreira Penna.

Apesar de ter 33 anos singrando os mares, o navio era uma nave ainda respeitável. Tinha mais de 110 metros de comprimento, 15 metros de largura e quase 5 metros de calado. Fora todo construído em casco de aço, para o transporte de carga e de passageiros. Possuía um motor a vapor e podia transportar mais de 250 passageiros em três classes distintas, em várias cabines.

Havia partido dias antes de Manaus, tendo feito escalas em Belém, São Luís, Fortaleza, Recife e transportava 242 tripulantes e passageiros.

O “Afonso Pena” havia saído de Recife em um comboio escoltado por vasos de guerra. Mas desde o dia anterior a embarcação estava navegando de forma solitária e o clima de medo e apreensão no navio onde estava a Dra. Eudésia havia crescido.

Comboio

Aconteceu que o comboio se separou em duas rotas distintas, onde uma parte seguiria para Maceió e outra em direção a África do Sul. Mas o Capitão de Longo Curso da Marinha Mercante, Euclides de Almeida Basílio, alegou que iria por outra rota em direção ao Rio de Janeiro, por não conhecer aquela que o comboio seguiria. Ele era um homem experiente, veterano da Primeira Guerra Mundial e detentor da “Medalha da Vitória”, segundo consta no Diário Oficial da União, de 5 de maio de 1934, na página 6.

Falou-se que o fato de não estar mais no comboio não teria tanto problema por ser uma semana de lua nova, onde a escuridão poderia proporcionar, junto com a ordem de não acender luzes a bordo, uma maneira da nave de passageiros e carga não ser vista através do periscópio de um submersível.

Mas a atitude de seguir sozinho fez o “Afonso Pena” se tornar um alvo fácil.

O Atacante

Enquanto isso, na costa do estado da Bahia, o Regio Sommergibile “Barbarigo”, um submarino italiano da classe “Marcello”, estava espreitando o fundo do mar feito um tubarão de aço.

Torre do “Barbarigo”, mostrando desenhos com as silhuetas de navios atacados e afundados pelos italianos

Estes submersíveis eram construídos na cidade de Monfalcone, sendo considerados os melhores modelos que a marinha italiana possuía no seu inventário durante a Segunda Guerra Mundial. Foram completadas onze unidades, que podiam alcançar até 100 metros de profundidade operacional máxima, com velocidade que variava de 19 a 8.5 nós. Eram tidos como confiáveis, robustos, manobráveis e transportavam 59 toneladas de combustível, sendo por esta razão designados como submersíveis oceânicos.

Revista italiana com os feitos do “Barbarigo”

Inicialmente eram utilizadas no Mediterrâneo, depois algumas unidades foram transferidas para a base de Betasom, uma unidade de submarinos italianos em Bordeaux, França, dentro da área de ocupação alemã naquele país.

Estando atuando na Marinha da Itália (ou Regia Marina) desde 1938, a carreira do “Barbarigo” foi considerada pelos italianos positiva no desenrolar do conflito. Esta era a sua décima missão de guerra e a segunda patrulha de caça e destruição de navios aliados no Atlântico Sul, próximo a costa brasileira.

O submarino embandeirado em dia de festa

O “Barbarigo” havia saído do porto de La Pallice, na cidade francesa de La Rochelle, no dia 24 de janeiro de 1943, sob o comando do tenente Roberto Rigoli.

No dia 24 de fevereiro o submarino italiano atacou próximo ao Arquipélago de Fernando de Noronha o cargueiro espanhol “Monte Igueldo”, afundando-o. Ocorre que hidroaviões norte-americanos testemunharam o ataque do “Barbarigo” e o atacaram impiedosamente com três bombas. Estas aeronaves eram modelos Martim PBM-3 Mariner, pertencentes ao esquadrão VP-74 da Marinha dos Estados Unidos, com base em Natal, Rio Grande do Norte, mais precisamente na área da “Rampa”, no Rio Potengi.

Um Martim PBM-3 Mariner do esquadrão VP-74, da Marinha dos Estados Unidos

Por sorte o tenente Rigoli conseguiu fugir e seguiu em direção sul, onde pretendia atacar navios que estivessem na região próxima ao Arquipélago dos Abrolhos, onde seu caminho cruzaria com o do “Afonso Pena”.

Tem Início a Matança e o Heroísmo

No começo da noite do dia 2 de março de 1943, uma terça feira, a cerca de 250 quilômetros de Porto Seguro, o tenente Rigoli e sua tripulação haviam diminuído a marcha do “Barbarigo” e acompanhavam um lento navio que se deslocava a no máximo 10 nós de velocidade. O destino do “Afonso Pena” estava selado.

Dezessete dias depois do afundamento do navio brasileiro, o jornal “Poughkeepsie New Yorker”, do estado de Nova York, edição do dia 19 de março, trás na sua primeira página uma reportagem exclusiva sobre o afundamento do “Afonso Pena”. Foi a paraibana Eudésia de Carvalho Vieira quem fez um sucinto relato para este jornal sobre o terror que aconteceu no Atlântico Sul.

Tripulação do “Barbarigo” em patrulha no Atlântico Sul

Na cama de um hospital de Salvador, Eudésia afirmou que estava no seu camarote quando sentiu a vibração da nave com o impacto do torpedo. Depois escutou um forte grito de uma mulher e logo outros passageiros estavam em pânico, pois o “Afonso Pena” começou a afundar. Para ela o caminho mais rápido para fora foi através de uma vigia, através da qual foi puxada. Mas em meio ao pandemônio formado, Eudésia bateu a cabeça e sofreu um severo corte. Daí ela e seus salvadores correram ao redor do convés tentando encontrar salva-vidas, ou entrar em alguma baleeira. Ela afirmou ao jornalista que pulou no mar ao lado de uma balsa (raft, em inglês). Alguns homens já estavam no pequeno barco salva-vidas e um deles lhe colocou um pano em volta da sua cabeça, que sangrava muito.

Em busca de alvos no horizonte

Mas o triste nesta história é que, mesmo de forma lenta, o “Afonso Penna” não parou. Continuou navegando, adernando e afundando.

Segundo o artigo publicado na Revista do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante – SINDMAR – ANO VI – Nº 21 – Agosto/2005, o Capitão de Longo Curso João Batista Rodrigues, anotou no Livro de Registro de Histórias da Marinha Mercante, arquivado na biblioteca do SINDMAR, que o “Afonso Pena” afundou de proa (parte dianteira do navio), a cerca de três milhas da balsa onde ele se encontrava, ou seja, a mais de cinco quilômetros e meio de distância.

Um artigo exclusivo do uniforme da tripulação do “Barbarigo”

Provavelmente as máquinas do navio não pararam após o impacto do torpedo. Havia uma ordem para no caso de uma emergência, o oficial encarregado, antes de subir, deveria parar o motor sob a sua responsabilidade, para que a hélice não colhesse náufragos ou baleeiras em caso de torpedeamento. Mas isso não foi feito e várias pessoas e balsas foram sugadas para próximo a grande hélice em movimento e estraçalhadas.

Durante o trajeto final do “Afonso Pena”, já ferido de morte, o tenente Rigoli trouxe o “Barbarigo” para a superfície e isto foi presenciado pela paraibana Eudésia.

Tenente Roberto Rigoli. Sob suas ordens o “Barbarigo” atacou o “Afonso Pena”

O radiotelegrafista do navio, Pedro Mota Cabral, de forma extremamente heroica, em nenhum momento da tragédia deixou de enviar mensagens para chamar reforços e socorro. Os italianos temendo a presença de aviões, abriram fogo com o canhão dianteiro e silenciaram a estação de rádio, matando seu operador.

Segundo o Capitão Batista, provavelmente devido ao cabo de apito ter ficado preso, o “Afonso Pena”  submergiu apitando, tal como um grito de desespero.

Salvamento em Meio a Tubarões

Nesse meio tempo o “Barbarigo” desceu para as profundezas e se foi. No meio da noite escura, ao redor do sinistro, ficaram tentando se salvar mais de uma centena de pessoas.

Documento da Marinha dos Estados Unidos, informando sobre os ataques do “Barbagiro”na costa brasileira. As datas dos afundamentos apresentadas no documento não estão corretas.

Eudésia e o Capitão Barbosa, mesmo feridos, assustados e molhados, estavam em relativa segurança nas balsas. Ao passo que muitas das 240 pessoas que estavam a bordo do “Afonso Pena” não tiveram a mesma sorte. Estes eram principalmente os passageiros da terceira classe e os foguistas do porão, que tinham alguns lances de escada para subirem e se salvarem. Entre estes se encontrava a família Duarte, de Belém do Pará. José Duarte Junior, sua esposa Maria Duarte Brandão, e seus filhos Ester, Sidônio e Guilherme, afundaram junto com o “Afonso Pena”.

A médica paraibana informou a imprensa norte-americana que viu aterrorizada a presença de tubarões próximos a concentração de balsas, que buscavam ficar juntas enquanto o mar as levava em direção a costa baiana. Eudésia também viu um casal com colete salva-vidas passar pela sua balsa, ambos mortos e abraçados.

Resgate no mar durante a Segunda Guerra Mundial

Durante dois dias eles vagaram, até que um navio-tanque da marinha norte-americana avistou alguns dos sobreviventes e passou a resgatá-los.

No momento de embarcar, ela caiu e um desconhecido oficial americano pulou na água para ajudá-la, enquanto membros da tripulação abriam fogo com rifles e metralhadoras contra tubarões que circulavam nas proximidades.

Morreram 33 tripulantes e 92 passageiros, num total de 125 pessoas. Muitas balsas que não foram resgatadas pelo navio americano conseguiram chegar as praias de Porto Seguro. Houve 117 sobreviventes.

Esquecimento

No outro dia o submarino “Barbarigo”, cujo lema era “Chi teme la morte, non è degno di vivere!” (Quem teme a morte, não é digno de viver!), conseguiu mais um tento com o afundamento do navio norte-americano S.S. Staghound, um cargueiro tipo “Liberty Ship”. Depois de três vitórias no Atlântico Sul, a nave italiana voltou para sua base.

“Barbarigo” retornando da costa brasileira

Mas sua carreira teria um fim até hoje desconhecido. Ainda em 1943, no dia 16 de julho, o submarino partiu em direção ao Japão e jamais foi visto novamente. Acreditasse que tenha sido afundado na área da Baía de Biscaia, próximo a Espanha, por ação de forças aliadas na caça de submarinos. Mas até hoje o fato não foi devidamente comprovado.

O lema do “Barbarigo”

Não consegui maiores informações sobre o Capitão João Batista Rodrigues, mas a paraibana Eudésia continuou o seu sacerdócio na medicina e desenvolvendo novos trabalhos literários, um deles narrando suas experiências no torpedeamento do “Afonso Pena” e em 1974 recebeu o título de cidadã Benemérita da Paraíba. Faleceu no dia 16 de julho de 1981, em João Pessoa .

No artigo publicado na Revista do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante temos a informação que 927 pessoas morreram em navios brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial, entre tripulantes e passageiros e 21% da frota brasileira foi a pique nesse período.

O estrago só não foi pior devido ao esforço da Força Naval do Nordeste, que participou junto com a Marinha dos Estados Unidos, na proteção de 575 comboios, escoltando mais de três mil navios.

A Marinha Mercante, seus tripulantes e passageiros, foram os brasileiros que mais sofreram e tiveram o maior número de vítimas durante a Segunda Guerra, mas pouco são lembrados nos dias atuais.

Fontes:

http://en.wikipedia.org

http://bloggerdocma.blogspot.com

http://www.sindmar.org.br/

http://www.sbhe.org.br/

Livro – O Brasil na Mira de Hitler, Roberto Sander, 2007, pág 138.

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OS TERREMOTOS E O RIO GRANDE DO NORTE

Em relação aos terremotos, existem alguns estados do Brasil nas quais este tipo de notícia causa nas pessoas apreensão e um arrepio, daqueles que começam bem lá no “pé” da espinha cervical.

Entre estes estados, seguramente um deles é o Rio Grande do Norte.

Uma Velha Convivência com Terremotos

O maior terremoto já registrado no Brasil ocorreu na Serra do Tombador, no Mato Grosso, em 1955. Atingiu 6.6 pontos na escala Richter e foi sentido a 600 quilômetros de distância do epicentro. No caso do Rio Grande do Norte, pelo menos em termos de registro, o maior ocorreu em 1986, quando na região da antiga Baixa Verde, hoje município de João Câmara, a 80 quilômetros de Natal, foi sentido uma pancada de 5.3 pontos da escala Richter, que chegou até na Bahia, sendo considerado o terceiro maior terremoto da história do Brasil.

E o pior é que não faltam ocorrências deste fenômeno geológico na história potiguar.

Nas amareladas folhas de papel do “Almanaque Brasileiro Garnier”, de 1909, nas páginas 458 a 461, temos a informação que as oito da manhã de uma segunda feira, 8 de agosto de 1808, nos “Sertões do Assu”, ocorreram fortes tremores de terra que fizeram louças balançar nos armários dos casarões do sertão e pessoas cairam no chão desequilibradas.

Em 2 de dezembro de 1852, entre uma e duas horas da tarde, na cidade de Aracati, no vizinho Ceará, estado quede vez em quando “treme nas bases”, um abalo muito forte rachou as casa e foi fortemente sentido em Areia Branca, Mossoró e parte da região oeste potiguar.

Dois anos depois, no dia 10 de janeiro de 1854, uma terça feira, durante mais de um minuto o chão tremeu, derrubou telhas das casas e foi sentido principalmente na Vila de Touros, a beira-mar. Ainda bem que não vieram ondas fortes.

Segundo o pesquisador e escritor Elísio Augusto de Medeiros e Silva, em um artigo publicado no Jornal de Hoje, em 20 de janeiro de 2011, este abalo de terra não teve muita importância em Natal, visto ter tido maior intensidade em Touros, onde foi forte, aterrador, com diferença de poucos segundos para Natal. Informa o pesquisador que entre os antigos moradores de Touros, reza a tradição que o estrondo teria sido no Touro Grande, cabeça de pedra existente no mar. Em Natal, o estrondo foi mais sentido na Ribeira, Redinha e praias da região norte.

Recorremos novamente a Elísio para informar que em 1879, em meio a uma seca que devastava o Nordeste, a famosa seca de 1877 a 1879, houve um abalo, que em Natal chegou a derrubar algumas moradias no bairro da Ribeira, sem maiores consequências.

Abalos em Luís Gomes em 1928

Há poucos anos, creio que em 2007, muitas pessoas se espantaram em saber que na comunidade do Sítio Arara, a cerca de dez quilômetros da cidade de Luís Gomes, no oeste do Rio Grande do Norte, vários tremores de terra ocorreram ao longo de meses.

O espanto é que se imaginava que este fenômeno estava restrito a região de João Câmara, mas a história mostra que não.

Na sua página 3 do jornal potiguar “A Republica”, edição de 17 de abril de 1928, uma terça feira, informa nas suas notas policiais que o tenente Napoleão de Carvalho Agra, então delegado de Luís Gomes, comunicou que por volta das dez da noite, um forte abalo sísmico foi sentido na pequena cidade, que na época tinha em todo o município, segundo o Censo de 1920, 5.661 habitantes.

Agra informa não informa sobre nenhum estrago, nem a reação da população, que certamente deve ter passado por um susto muito grande.

Estive na área rural de Luís Gomes em 2009, na área do Sitio Arara, como parte de um trabalho realizado para o SEBRAE-RN. Ao conversar com as pessoas tive uma percepção que, diferentemente de João Câmara, não existe uma sensação de que este tipo de fenômeno possa se repetir. Para eles se trata de um caso extra, sem perspectivas de repetição.

Mas as páginas do velho jornal aparentemente mostram que não.

Segundo os geólogos, o Nordeste é a região do país que mais sente os abalos sísmicos. Em 1980, a região de Pacajus e Cascavel, no Ceará, sofreu um abalo que chegou a 5.2 de magnitude. Mas outros abalos já foram sentidos São Caetano e Caruaru, em Pernambuco, Cascavel e Jaguaribara, no Ceará, Tabuleiro Grande e Apodi, no Rio Grande do Norte.

João Câmara – 1986 – Eu Estive Lá

A cidade de João Câmara cresceu junto com os trilhos da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte. Era um lugar inicialmente denominado “Matas”, mas seu desenvolvimento justificou que em 29 de outubro de 1928, fossem desmembradas terras dos municípios de Touros, Taipu e Lajes. Tudo sacramentado pela Lei nº 697, que oficialmente criou o município de Baixa Verde.

A Antiga Baixa Verde. Fonte-http://joaocamararn.multiply.com/

Quem é da região tem alguma história sobre tremores de terras. É coisa comum e frequente, tanto que o pessoal de Natal inventou que João Câmara é a terra do “treme, treme”.

Segundo o site Wikepédia (que possui algumas informações que valem a pena), consta que os fenômenos de 1986, foi a sequência de abalos sísmicos mais bem documentadas no Brasil.

O primeiro abalo ocorreu em 21 de agosto, alcançou magnitude 4.3, e foi sentido em Natal, mas sem maiores repercussões. Em setembro ocorreram dois tremores, respectivamente 4.3 e 4.4 de magnitude na escala Richter e foram acompanhados por várias réplicas. Depois as coisas pareciam ter se acalmado.

Fonte-http://joaocamararn.multiply.com/

Mas aí veio o maior abalo. Cravou 5.1 pontos na escala Richter, ocorreu oficialmente às cinco e dezenove da manhã, de 30 de novembro de 1986, de um domingo que prometia praia. Depois ocorreram outros tremores, todos na faixa de 4.0 ou superior.

Quem tem mais de 30 anos, vive neste estado e sentiu o tremor, nunca vai esquecer aquela noite. Pessoalmente me acordei com a minha irmã Carla Régia assustada, com as janelas da nossa antiga casa batendo. Nada caiu, mas depois foi engraçado ver toda a vizinhança da Rua Hemetério Fernandes, no Tirol, de pijamas, quase amanhecendo o dia, no meio da rua, esperando coisa pior e sentindo outros pequenos tremores. Em uma rodinha de amigos rolou até café e cachaça. Era para passar o frio e o sono. Ou seria para espantar o medo?

Em João Câmara, além dos danos materiais, houve o pavor e isto eu assisti.

No mesmo dia 30 de novembro fui a esta cidade para testemunhar os fatos.

Naquele domingo, após o almoço, peguei meu fusquinha cinza 1.300 e segui devagarinho a região.

Conforme chegávamos perto da cidade, dava para ver uma “carreata” de ônibus pertencentes a empresa “Expresso Cabral”, saindo da cidade lotados de gente. Mudanças eram feitas em carroças puxadas por jumentos, carros pequenos, camionetes ¾, caminhões 1113 e o que desse para carregar os “teréns”. Era uma verdadeira fuga em massa.

Fonte-http://joaocamararn.multiply.com/

Contabilizaram duas dezenas de casas destruídas e mais de mil foram parcialmente danificadas. Faltaram em um primeiro momento luz, água e telefone, mas depois foi restabelecido. Como não existia celulares, a sensação de medo e desamparo era muito acentuada pela falta de comunicações. Vimos uma grande rachadura na igreja Matriz de Nossa Senhora Mãe dos Homens e pessoas ajoelhadas rezando para que o templo sagrado não caísse.

Vimos várias casas rachadas, sem uma parede, as ruas desertas, tudo fechado e havia policiais ligadaços, circulando em “Rurais” pintadas de azul e branco. Um cenário que jamais vou esquecer. Pena não ter levado uma máquina fotográfica.

Fonte-http://joaocamararn.multiply.com/

Em pouco tempo os órgãos públicos, tanto a nível estadual quanto federal, se fizeram presentes e a coisa amenizou. Até Sarney, o presidente da República na época, pouso na cidade com um helicóptero Puma da FAB e foi visitar os estragos.

Não é o “Se”, Mas o “Quando”

O que ocorreu em João Câmara é um exemplo de que o Brasil não está imune aos terremotos.

A pior sensação de presenciar estes fenômenos da natureza é a total condição de impotência e o despreparo para saber o que fazer. Passado o susto vem a velha questão; quando virá o próximo?

Pode parecer exagero, mas é que as pessoas que vivem em terras potiguares não ficam paradas pensando nestas coisas (se não endoidam). Mas para quem mora por aqui, esta questão de haver terremotos é tão certa que o que importa não é o “se”, mas o “quando”. O problema, segundo especialistas, é que não há como prever quando vai acontecer um terremoto, nem mesmo qual será a magnitude do sismo.

Não podemos esquecer que em 2010 foram registrado dois tremores, um de magnitude 3.0 e outro dois dias depois, de 4.3, que atingiram quatro estados da região Nordeste.

Mas como Deus é brasileiro, certamente vai proteger estas terras para aproveitar suas praias. Assim espero!

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OS POTIGUARES E A GUERRA DO FIM DO MUNDO

COMO A GUERRA DE CANUDOS MARCOU

O RIO GRANDE DO NORTE

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Algum tempo atrás fiquei curioso em saber o que a Guerra de Canudos representou para o Rio Grande do Norte na época, além de suas variáveis no contexto histórico.

Não consegui descobrir quando a primeira notícia sobre Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, chegou aterras potiguares, mas já a partir de fevereiro de 1897, esta singular figura começa a ser conhecida e divulgada com maior frequência.

Em um artigo, o Conselheiro era comparado a Zumbi, e Canudos ao Quilombo dos Palmares. Chamava a atenção o fato dos seguidores do Conselheiro queimarem as cédulas da República e utilizarem o dinheiro da época do imperador. As notícias informavam que o número de fanáticos seria em torno de 5.000, mas que eles eram uns “pobres diabos, que buscavam confusão diante das armas do exército”. Entretanto, as notícias já propalavam, com certa surpresa, a força, a motivação e a tranquilidade como os fanáticos do Conselheiro iam para a luta.

A partir da derrota da Segunda Expedição do exército brasileiro, comandada pelo major Febrônio de Brito, e o início da marcha da Terceira Expedição, comandada pelo tenente-coronel Moreira César, as notícias sobre Canudos se tornam semanais. Cópias de  relatórios passam a ser divulgados, se tornam mais alarmistas as notícias, mas o assunto, ainda não frequentava com assiduidade as páginas de o “Diário de Natal” e “A Republica”, os principais jornais de Natal naquela época. Parecia apenas um simples entrevero entre a forte força militar do Exército, e um grupo de “despojados”, onde o resultado era mais do que previsível.

Cresce o conflito

Tudo muda a partir de 10 de março de 1897, quando os jornais locais noticiam que sete dias antes, a coluna comandada por Moreira César, fora fragorosamente derrotada pelos conselheiristas.

Notícia no jornal natalense A República, sobre a derrota da expedição comandada pelo coronel Moreira César.

Após a surpreendente derrota, a elite brasileira estava histérica e exigia medidas drásticas do governo para uma rápida solução do conflito. Esta então se torna uma ação, que mobiliza toda a nação.

Em Natal tem início à preparação do quartel federal existente na cidade, o 34º Batalhão de Infantaria. Em 13 de março, assume o comando da guarnição o major Antônio Ignácio de Albuquerque Xavier, cujo primeiro ato, foi mandar publicar nos jornais da cidade, uma convocação que traz em suas letras uma colocação peculiar; “foi autorizado a aceitar voluntários que queiram servir somente durante a expedição de Canudos, dando-lhe baixa após sua terminação, caso não queiram continuar a servir o Exército, pelo que convida a todos os cidadãos que desejarem alistar-se apresentarem-se no quartel do 34º Batalhão de Infantaria, a qualquer hora do dia ou da noite”.

O interessante, é que esta nota deixa transparecer que o efetivo do batalhão, ou era reduzido para a crise que ocorria, ou aparentemente havia resistências na população de Natal para o alistamento voluntário.

Área do centro de Natal, na Praça André de Albuquerque, como se encontrava entre o final do Século XIX e início do XX.

Outra notícia informa que em algumas comunidades do interior do estado, havia apreensão em relação ao recrutamento. Temia-se uma reprise do que ocorrera na Guerra do Paraguai, onde o recrutamento era obrigatório, e os “voluntários”, eram presos e enviados para frente de guerra sob escolta.

O governador potiguar, Joaquim Ferreira Chaves.

Todos buscavam ajudar. Uma nota mostra que o pagamento aos quais os oficiais tinham direito antes de embarcar, seria efetuado pela Alfândega Federal, mas como esta repartição estava desprovida de recursos, foi o próprio governador Ferreira Chaves que adiantou o soldo da oficialidade do 34º Batalhão.

No domingo 21 de março, o 34º Batalhão realizava manobras militares na Praça André de Albuquerque. Já na cidade de Macaíba, foi realizado um comício patriótico onde Eloy de Souza e Tavares de Lyra, enalteciam a participação do batalhão potiguar e protestavam contra os “inimigos da República”.

Eloy de Souza

Apesar de todo o patriotismo, nem todos desejavam ir para a guerra. O soldado André Cavalcante de Albuquerque desertou do batalhão e se refugiou em Cuitezeiras, atual município de Pedro Velho. Apenas em março de 1898 ele foi capturado e entregue aos militares.

No sábado, 29 de março, o padre João Maria de Britto, celebrou missa solene na Matriz, para o bom êxito da expedição. Praticamente todos os militares e suas famílias, estiveram presentes ao principal templo católico da cidade.

A Partida

Às 13h de uma segunda-feira, 29 de março de 1897, os militares estavam formados diante do quartel. Compareceu à solenidade o então governador Ferreira Chaves e houve muitos discursos dos políticos e de intelectuais como Ferreira Itajubá. O poeta Segundo Wanderley declamou um verso produzido para enaltecer o feito dos potiguares. As bandas da Polícia Militar e da Escola de Aprendizes de Marinheiros tocaram para os companheiros do exército.

Ferreira Itajubá.

Segundo Manoel Rodrigues de Melo, em artigo escrito em 1978, para a revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, uma multidão estimada em 5.000 pessoas, compareceu ao embarque do 34º Batalhão. Este fato é significativo quando se sabe que nesta época, Natal era uma cidade com pouco mais de 15.000 habitantes. Neste dia, o comércio fechou as portas.

Após as solenidades oficiais, o batalhão embarcou no Vapor “Una”, da Companhia Pernambucana de Navegação. Após zarpar, ao passar ao lado da antiga Fortaleza dos Reis Magos, os passageiros do “Una” foram homenageados pelo farol que lá existia, através de uma mensagem visual em código Morse.

O 34º Batalhão de Infantaria seguiu para Canudos, com um contingente composto de quatro companhias, possuindo um efetivo de 36 oficiais e graduados, além de 225 “inferiores”, como eram chamados os cabos e soldados. Sua arma de combate eram as carabinas alemães da marca “Mannlichers”.

A guerra passa então a ser assunto corrente e notícia diária de primeira página nos jornais de Natal.

Organização

Em 5 de abril de 1897 é publicada a Ordem do Dia criando a Quarta Expedição Militar contra Canudos. Organizou-se então, a maior de todas as expedições, formada por tropas de 17 estados, equipadas com os mais modernos armamentos da época.

O efetivo militar era composto de seis Brigadas, cada uma com três batalhões, divididas em duas colunas que investiam sobre Canudos por direções opostas, sendo o comandante central, o general Artur Oscar.

A Primeira Coluna ficava sob o comando do general Silva Barbosa e a Segunda Coluna era comandada pelo general Cláudio Savaget, por isso ficou conhecida como Coluna Savaget.

A Segunda Coluna se concentrará em Aracaju, partindo para o interior em tropas isoladas, se agrupando em Jeremoabo, já na Bahia, e depois seguem para Canudos. Entre os batalhões que compunham a Segunda Coluna estava o 34º Batalhão de Infantaria.

Após sair de Natal, o 34º Batalhão seguiu primeiramente para Recife, onde ficou alojado no Quartel do Largo do Hospício. Desfilou pela capital pernambucana, juntamente com os batalhões 35º (do Piauí) e 40º (do Pará). Estas unidades militares formavam então a 5ª Brigada da Segunda Coluna. O comando desta Brigada estava a cargo do coronel Julião Augusto de Serra Martins.

A 23 de abril a 5ª Brigada embarca nos vapores “Una” e “Itanema”, em direção a Aracaju e a Guerra de Canudos efetivamente tinha início para os potiguares.

Brigada Faz Seu Batismo de Fogo em Cocorobó

Após o desembarque, a ida para a área de combate deu-se de forma lenta, tanto que o contingente do 34º Batalhão apenas chegou a Jeremoabo no dia 8 de junho, segundo informações do alferes potiguar João Augusto, secretário do coronel Silva Teles.

Euclides da Cunha informa que a 25 de junho, a 5ª Brigada da Coluna Savaget fez o seu batismo de fogo oficial, atacando o desfiladeiro de Cocorobó. Neste dia a vanguarda da força de Savaget fez alto uns quinhentos metros antes daquela barreira.

Um esquadrão de lanceiros do 40º Batalhão descobrira o inimigo, tendo seguido em seu encalço, ficando o 34° e o 35°, além de elementos da 4ª Brigada como unidades de reforço, mas logo todos atacavam.

Neste combate, segundo Euclides da Cunha, “mais de oitocentos homens ao mando do coronel Serra Martins, iniciavam o ataque num tiroteio nutrido, em que os fogos irregulares da linha de atiradores se intermeavam das descargas rolantes dos pelotões, que a reforçavam mais de perto, revidando vigorosamente aos tiros dos antagonistas. Estes sustentaram o choque com valor”.

O então jornalista paulista descreve outros detalhes do combate; “A 5ª Brigada foi admirável de disciplina, afrontando-o por duas horas, na posição em que estacara, à margem do Vaza-Barris, abrigando-se entre os ralos arbustos que a revestem”.

Após chegarem à periferia de Canudos, na região da Favela, as forças militares passam a ter outros fortes inimigos; a fome ocasionada pela falta de mantimentos, que ainda se mantinham distantes na retaguarda.

O desânimo diante de uma guerra estranha, a surpresa frente a um inimigo forte, perspicaz e totalmente desconhecido. Mas que no fundo eram irmãos, eram todos brasileiros.

Enquanto isso em Natal, no final de junho, era noticiado em “A Republica” uma nota repudiando alguns boatos comentados na cidade, sobre fortes baixas no contingente do 34º Batalhão. Se estes boatos tinham fundamento os jornais não comentam.

Os militares decidem realizar no dia 18 de julho um grande ataque à cidadela do Conselheiro, onde entrariam em ação 3.349 homens, repartidos em cinco brigadas. Mas o 34º Batalhão não estava listado para o combate. Euclides da Cunha comenta que o 34º era um dos quatro batalhões que protegiam o Quartel General do comandante Artur Oscar.

Neste combate de 18 de julho, os jornais locais listam o primeiro potiguar oficialmente morto no conflito. Era o alferes João Mafaldo de Oliveira Praxedes, natural da cidade de Martins, nascido no sitio Lagoa Nova, filho de Dona Antônia Mafalda de Oliveira Praxedes e Vicente Praxedes. Este oficial fazia parte do 30º Batalhão de Infantaria, do Rio Grande do Sul.

Mesmo os jornais não publicando a lista dos mortos do 34º Batalhão eles existiam, tanto assim que no dia 6 de agosto são publicados pela primeira vez os nomes de pessoas da sociedade que estavam doando dinheiro para ajudar “as viúvas e vitimas de Canudos”. Entre os doadores estavam Hemetério Fernandes, Manoel Dantas, Augusto Leite, Ferreira Chaves e outros.

Na frente de batalha, Euclides da Cunha narra que o 34º Batalhão participa de um contra ataque a um grupo de jagunços, que às seis da manhã de 23 de julho, tentam atacar a retaguarda das forças militares. Quinze conselheiristas são mortos e uma “cabocla” é aprisionada.

Estrada do Calumbi

Mas para o famoso escritor, a ação mais importante realizada pelo 34º Batalhão na Guerra de Canudos, em conjunto com os cariocas do 22º Batalhão e os baianos do 9º Batalhão, foi à tomada da estrada do Calumbi. Para Euclides esta ação, ocorrida em 4 de setembro, foi “um movimento mais sério; talvez a ação realmente estratégica da campanha”.

Através de informações de vaqueiros leais, os militares souberam da existência de um caminho pelo Cambaio, que diminuía em um dia a viagem a Monte Santo, facilitando a chegada de mantimentos, onde as tropas poderiam partir para o ataque final a Canudos. Comandados pelo major Lídio Porto, os combatentes tomaram esta estrada e apertou mais ainda o cerco final a cidadela do Conselheiro.

No ato final da tragédia, novamente o 34º estaria no palco dos acontecimentos, juntamente com os batalhões que tomaram a estrada do Calumbi, os potiguares protegeram um dos flancos do ataque final, que teve inicio em 1 de outubro.

Depois os potiguares combateram de casa em casa, onde cada morada era uma fortaleza que cobrava um preço alto pelo avanço.

Para Euclides “os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra: enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota”.

Tudo acabou em 5 de outubro, quando Canudos não se rendeu. Em “Os Sertões” o fim ficou assim registrado “Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”.

Jornal dos Estados Unidos comentando a vitória das forças legais em Canudos.

A Volta Para Casa

Enquanto os sobreviventes do 34º se preparavam para voltar, os natalenses se mobilizavam. Em 11 de setembro, Alberto Maranhão realizou uma festa de caridade para arrecadação de fundos, tendo sido apurados 333 mil réis e estes entregues diretamente ao governador Ferreira Chaves.

Os municípios do interior participam. De Acari foi arrecadado e enviado 101$800 mil réis, de Jardim do Seridó 88$000, de Currais Novos 968$200, de Martins 182$000 mil réis.

Com o eminente retorno do Batalhão, tinha inicio os preparativos para uma grande recepção festiva. No dia 6 de novembro o 34º seguia de navio da capital baiana para Natal, mas devido a problemas de transporte, apenas em 10 de dezembro eles chegariam a capital potiguar.

A tropa voltou no mesmo vapor “Una” que os levaram oito meses antes. Às onze e meia da manhã, em torno de 4.000 pessoas, aguardavam o desembarque, depois seguiram para a Matriz para uma missa, havendo uma quase interminável seção de discursos no quartel e finalmente para as suas casas.

Os jornais comentam, com uma sutileza típica da impressa na época, que muitos soldados voltaram “doentes e inutilizáveis”. No outro dia a tropa e a população da cidade inauguraram o monumento aos mortos da guerra no cemitério do Alecrim.

Uma atitude honrada, que chamou a atenção da população, foi a publicação nas primeiras páginas dos jornais locais, do pedido do alferes Ezequiel Medeiros, que desejava entregar a quantia de 10$000 mil réis a família do soldado Euclides Celestino Baracho, que na hora da morte lhe pedira para entregar esta quantia a sua família que vivia em Ceará-Mirim.

As manifestações de apreço continuaram por alguns dias, contudo, logo os oficiais do 34º foram surpreendidos por diversas ordens de transferência, para várias unidades militares em todo Brasil e alguns são enviados para o longínquo Mato Grosso.

A principal igreja de Canudos destruída.

Os jornais de Natal publicam sérias criticas a atitude do governo federal. Já o novo comandante, major Martiniano de Oliveira, ferido em Canudos, vinha transferido de Recife. Aparentemente a ideia do governo Prudente de Moraes era  enfraquecer a criação de um “exército de salvadores da pátria”, e debelar possíveis voos políticos dos novos heróis.

Para o presidente, a melhor situação era que Canudos caísse no esquecimento.

Deliberado Esquecimento

Quanto às viúvas e familiares dos mortos potiguares da Guerra de Canudos, estranhamente os jornais declaram que estas só vieram a receber os apoios e as doações apenas em 18 de julho de 1898, um ano após o primeiro grande ataque das forças do governo, no valor de 12$000 mil réis, mas apenas em apólices do governo do estado e não em dinheiro vivo.

Na edição de “A Republica” de 17 de julho, estão listados os nomes dos mortos, seus beneficiários e suas patentes.

Ao ler a lista, salta aos olhos um fato interessante; dos 41 integrantes do 34º Batalhão de Infantaria listados pelo jornal como mortos no conflito, não há um único oficial. No total são 3 sargentos, 9 cabos, 3 anspeçadas (patente atualmente extinta), 3 músicos (corneteiros) e 23 soldados.

Quem se debruça sobre a história de Canudos, sabe que houve unidades militares onde a quase totalidade de seus oficiais foi morta em combate. Não foram poucos os oficiais de patente graduada que pereceram no conflito. O próprio Euclides da Cunha lista vários.

A razão deste fato é motivo para novas pesquisas.

Antes mesmo de Euclides da Cunha lançar o livro “Os Sertões” e mostrar as crueldades do conflito, percebe-se que a Guerra de Canudos é totalmente esquecida dos círculos oficiais. Seja pela ação do governo, ou pelo próprio horror da guerra, o certo é que não são visíveis nos jornais comemorações posteriores. Estas ocorrem timidamente apenas no primeiro ano.

Nos anos seguintes, é mais comum vermos nos jornais potiguares notícias sobre a realização de festas comemorativas a feitos militares ocorridos na Guerra do Paraguai.

Atualmente em Natal, temos poucas lembranças deste conflito. No Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte encontra-se a bandeira que foi doada ao 34º Batalhão, em substituição a original, que voltou esfarrapada da guerra. Já no cemitério do Alecrim, ainda existe o monumento aos mortos potiguares do conflito.

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1875 – UM INFORMATIVO ESPÍRITA EM TERRAS POTIGUARES

Rostand Medeiros – Escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Na metade da década e 1870, ainda nos tempos do Império do Brasil, a cidade de Natal era uma pequena capital de uma província verdadeiramente insignificante no cenário político e social brasileiro da época.

Antes que alguém fique chateado com esta minha colocação, para se ter uma ideia do que escrevo, segundo o resumo publicado nas páginas 37 e  39, do livro “População do Brazil”, publicado no Rio de Janeiro em 1922, pela “Directoria Geral de Estatistica”, do então “Ministério da Agricultura, Indústria e Commercio”,  informa que em  1872, a população potiguar alcançava a cifra de 273.979 almas e a capital então era possuidora de uma população de 20.392 pessoas. Mas esta pequenez populacional não impedia que existissem na nossa cidade pessoas e grupos com ideias interessantes e diferenciadas do quadro geral reinante.

Espiritismo no Brasil

No Brasil, desde a década de 1840, que existiam grupos de pessoas que buscavam o entendimento relativo às questões do espiritismo, principalmente a possibilidade de comunicação com os espíritos através de médiuns. O movimento cresce e vinte anos depois grandes jornais do Rio de Janeiro debatiam em suas páginas aspectos desta Doutrina. Logo são criados centros espíritas na Bahia e Rio de Janeiro.

Em 1869, Luiz Olímpio Teles de Menezes publica o jornal “O Eco D’além Túmulo-Monitor do Espiritismo no Brasil”, considerado o primeiro jornal espirita do país. Em 1873, vinte anos após o lançamento do “Livro dos Espíritos”, ele é traduzido e publicado no país. De autoria do pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que adotou o pseudônimo de Allan Kardec, é o primeiro livro sobre a doutrina espirita e foi o primeiro de uma série de cinco livros editados pelo pedagogo sobre o mesmo tema.

Apenas dois anos depois do lançamento do “Livro dos Espíritos” no Brasil e quase nove anos antes da fundação da Federação Espírita Brasileira, pessoas em Natal decidem fundar um jornal exclusivamente dedicado a debater e propagar a doutrina espiírita na capital potiguar. Em uma quarta feira, 1 de setembro circulou “O Espirita”.

“Informativo Espiritista”

O informativo dizia-se “Informativo Espiritista”, sendo um jornal pequeno, com apenas quatro páginas e era editada em uma redação a Rua Santo Antônio, provavelmente na casa do seu diretor, Manoel Gomes da Silva. O pesquisador Manoel Rodrigues de Melo, em seu livro “Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte 1909 – 1987”, página 139, comenta que Manoel Gomes da Silva era poeta e prosador. O jornal era impresso na “Typographia Liberal”, conforme está na capa e custavam um mil réis.

É composto de cinco artigos, alguns datados de agosto daquele ano, e um longo poema denominado “Virgem Santíssima”, de autoria de Manoel Gomes da Silva. Aparentemente a maioria dos artigos é de autoria do mesmo autor do poema anteriormente comentado. Em apenas um deles encontramos um autor assinando com o pseudônimo de “Sensus”.

Os artigos vão desde uma apresentação e saudação ao espiritismo, doutrinamento e uma severa crítica aos representantes da igreja católica. Este artigo em particular, intitulado “O Espiritismo e o Padre”, chama a atenção pela virulência das letras, que bem poderia ser um reflexo do clima reinante no Brasil da época.

Área da Santa Cruz da Bica no início do século XX, região próxima a redação de “O Espirita”. Foto Manoel Dantas.

É inegável que neste período a igreja católica predominava como força religiosa em Natal e em todo o Brasil imperial. Mas contestações e conflitos ocorriam desafiando este poderio e o mais importante foi sem dúvida a chamada Questão Religiosa.

Momento de Conflitos Religiosos

No passado as relações entre o Estado e o clero católico sempre foram muito próximos. A Constituição do ano de 1824 estabelecia expressamente que a religião oficial do Estado era o catolicismo e existia uma relação formal entre a Igreja e a Coroa, que atendia aos interesses de ambos. Chegava ao ponto dos membros do clero ter as mesmas vantagens e tratamentos dos funcionários públicos da época, recebendo seus salários através da Coroa.

No final da década de 1860 houve uma forte reação da direção da igreja católica contra instituições que defendiam a secularização e o anticlericalismo, como a Maçonaria, que possuía grande prestígio no Brasil, onde o Imperador Pedro II e vários clérigos da própria igreja católica eram maçons.

Não demorou muito para altos dirigentes da igreja católica atacarem os religiosos ligados à Maçonaria, ameaçando-os

omo um caricaturista viu o conflito entre a Coroa e a Igreja católica. Fonte-http://imagohistoria.blogspot.com

de desligamento de suas  atividades religiosas e até de absolvição sacramental. O caso chegou a tal ponto de ruptura que os Bispos de Belém do Pará e de Olinda, respectivamente Dom Antônio de Macedo Costa e Dom Vital, foram processados, presos e condenados a quatro anos de prisão.

Como sempre ocorre entre as classes dirigentes no Brasil, foi conseguida uma acomodação entre o Império e a Santa Sé. Mesmo não estando relacionado diretamente ao fim do Império em 1889, este conflito de ideias criou sérias rupturas entre o Império do Brasil e a igreja católica.

Talvez o momento brasileiro da década de 1870 explique a acidez do artigo de “O Espirita”.

Independente desta questão a existência deste jornal aponta que mesmo Natal sendo uma capital com pouca expressividade no cenário brasileiro do final do século XIX, setores de parte de sua sociedade mostrava que possuíam um pensamento independente da maioria.

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