A VISITA DO “AÇOUGUEIRO” ARTHUR HARRIS A NATAL E AO BRASIL

O Que Uma Das Mais Controvertidas Figuras da Segunda Guerra Mundial, Tido Por Muitos Como Um Implacável e Sanguinário Criminoso de Guerra, Veio Fazer em Nosso País e em Parnamirim Field?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros  

Na tarde do dia 10 de agosto de 1945, uma bela sexta-feira de sol, o povo da cidade do Natal foi surpreendido pelo sobrevoo de duas grandes aeronaves estranhas e bastante chamativas.

E observem que durante grande parte da Segunda Guerra Mundial, os natalenses testemunharam a passagem de milhares de aeronaves envolvidas naquele conflito e nessa época pouca coisa que voava ainda chamaria a atenção dos que aqui viviam. Mas aqueles dois aviões certamente fizeram as pessoas olharem para o céu!

Eles eram grandes quadrimotores, com duas grandes aletas elípticas na cauda onde ficavam os lemes que as guiavam. A parte de baixo das aeronaves era pintada de negro e na parte superior eram totalmente brancas[1]. Voando em um dia claro como aquele, aquelas aeronaves se destacaram bastante na paisagem.

Mas certamente para os natalenses que testemunharam o voo daqueles colossos aéreos, uma das coisas que mais deve ter chamado à atenção foi o ronco dos quatro motores que cada um daqueles majestosos aviões emitia. Pois era o inconfundível som dos motores Rolls-Royce Merlin, que equiparam e fizeram a fama de aeronaves inglesas como os caças Supermarine Spitfire e De Havilland Mosquito, além dos bombardeiros Vickers Wellington, Handley Page Halifax e os pesados Avro Lancaster. E as aeronaves que sobrevoaram Natal naquela sexta feira eram dois originais quadrimotores Avro Lancaster da RAF (Royal Air Force).

Bem, alguém deve ter se perguntado – Mas o que aqueles aviões estavam fazendo em Natal?

Enfim, a guerra na Europa já havia cessado desde abril, os combatentes da FEB e da FAB retornavam da Itália cobertos de glórias e no dia anterior os americanos haviam lançado uma superarma chamada “Bomba Atômica” na cidade japonesa de Nagasaki, depois de terem destruído dias antes e com o mesmo tipo de artefato outra cidade chamada Hiroshima!

Certamente quase ninguém em Natal sabia a razão da vinda daqueles pesados bombardeiros Lancaster, ou de quem viajavam neles. Mas um dos tripulantes era ninguém menos que Sir Arthur Harris, o comandante da toda poderosa força de bombardeiros da RAF.

Seguramente essa ainda é uma das figuras mais controversas de toda a História da Segunda Guerra Mundial. Tudo por causa das suas ordens que provocaram indiscriminados ataques aéreos contra as cidades alemãs e a morte de milhares de pessoas, a grande maioria delas civis. Certamente a ação de Harris que mais chamou a atenção do público ocorreu nos últimos dias do conflito, ao ordenar a total destruição da cidade alemã de Dresden. Um objetivo militar sem nenhuma importância concreta, repleta de refugiados que fugiam dos exércitos russos e que sofreu três dias de bombardeios devastadores.

Sir Arthur Travers Harris – Fonte – Wikipédia.

Mas o que esse homem veio fazer no Brasil e em Natal?

Um Militar Rude e Difícil, Mas que Inspirava Seus Comandados

Arthur Travers Harris nasceu em Cheltenham, sudoeste da Inglaterra, em 13 de abril de 1892. Seu pai era um engenheiro e arquiteto lotado no serviço público indiano e sua mãe uma típica dona de casa inglesa. Sua família vivia na Índia, mas Harris estudou na Inglaterra. Aos dezessete anos e contra a vontade do seu pai, largou tudo e foi para a colônia britânica da Rodésia, na África, atual Zimbábue. Ali tentou a sorte na mineração de ouro, na condução de diligências e na agricultura. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, ele se juntou ao 1º Regimento da Rodésia e lutou na vitoriosa campanha para dominar territórios alemães no sudoeste da África.

Harris retornou à Inglaterra em 1915 e decidiu se juntar ao incipiente corpo de aviadores do exército. Ali obteve sucesso como piloto, provando ser um combatente tranquilo e eficaz, sendo-lhe atribuídas cinco vitórias aéreas. Em 1918 se juntou à recém-fundada RAF como oficial de carreira e chegou a comandar um esquadrão. Foi lembrado como um oficial que buscava constantemente maneiras de aprimorar o desempenho tático e técnico de seus comandados, mas era também rigoroso e exigia altos padrões de desempenho de todos ao seu redor.

Com o fim da Primeira Guerra Harris serviu na Índia, Iraque e Irã. Durante esse período a RAF realizou bombardeios com gás e bombas de ação retardada contra as tribos iraquianas que se rebelaram contra o domínio britânico. O Comodoro do ar Lional Evelyn Oswald Charlton, chefe do Estado Maior da RAF no Iraque, ficou horrorizado ao visitar em 1924 um hospital que abrigava vítimas civis desses ataques aéreos. Ele então se opôs a essa política e passou a criticar abertamente tais ações de bombardeio, o que o levou a renunciar ao seu comando. Não descobri o quanto e como Arthur Harris participou dessas ações, mas sei que ao lhe perguntarem o que achava dos bombardeios, a sua resposta foi “-A única coisa que os árabes entendem é a força e a mão pesada“.

Entre 1928 e 29, Harris frequentou a Escola de Estado-Maior e foi tendo uma progressão normal na sua carreira. Ele defendeu abertamente a produção de bombardeiros que pudessem atingir a União Soviética. Acreditava que o comunismo era a principal ameaça à Grã-Bretanha e foi considerado um dos primeiros “Combatentes da Guerra Fria“. Acreditava também que a Inglaterra entraria em guerra contra a Alemanha Nazista e previu corretamente 1939 como o ano do início desse conflito.

Bombardeio noturno da RAF na Segunda Guerra Mundial – Fonte – Wikipédia.

Harris passou os primeiros meses da Segunda Guerra comprando aeronaves para a RAF nos Estados Unidos. Mas ele achou seu relacionamento com os americanos muito difícil. Disse a amigos que não gostava de ter que lidar com “um povo tão arrogante, que simplesmente se recusava a ouvir os conselhos técnicos dos britânicos”. Harris também reclamou que os americanos não iriam lutar, a menos que fossem empurrados para a guerra.

Em fevereiro de 1942, Harris foi chamado de volta a Londres para ser nomeado comandante em chefe do Comando de Bombardeiros. Embora muitos no Ministério da Aeronáutica o considerassem rude e inacessível, ele também era capaz de inspirar intensa lealdade naqueles que serviram com ele.

Harris herdou uma força de uns 400 bombardeiros em condições de combate e apenas um punhado eram quadrimotores novos. Nessa época as suas aeronaves eram capazes de modestos e imprecisos ataques contra áreas do oeste da Alemanha e o lançamento de inúteis panfletos com pedidos para as forças de Hitler encerrarem as suas ações de combate.

Heinkel 111, o principal bombardeiro dos alemães na Segunda Guerra, em ação nos céus da Polônia em setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.

Mas é bom que se registre que quem começou os bombardeios contra civis na Segunda Guerra foram os alemães. Aconteceu já no primeiro dia do conflito, 1º de setembro de 1939, quando Varsóvia, capital da Polônia, foi alvo de uma campanha irrestrita de bombardeios aéreos iniciados pela Luftwaffe, a força aérea nazista. Em seguida foi atacada com extrema violência a cidade de Roterdã, na Holanda, seguida de Coventry, Londres e outros centros urbanos britânicos. Isso apenas para citar alguns alvos da Luftwaffe.

Harris e seus comandados decidiram então dar o troco!

Tempestade de Fogo

Arthur Harris não foi o inventor da guerra aérea contra as cidades, nem o comandante de unidades de bombardeiros que fizeram mais vítimas na Segunda Guerra Mundial e nem sequer o criador do conceito de bombardeamento estratégico. Mas ele foi um dos primeiros oficiais generais a aplicar esse conceito.

Foi o general italiano Giulio Douhet, que argumentou em sua influente obra “O Comando do Ar“, publicada em 1921, que o bombardeio estratégico — particularmente contra populações civis e a infraestrutura existente — poderia destruir a vontade de lutar de uma nação. O italiano acreditava que, ao infligir terror e destruição suficientes do ar, o moral da população civil entraria em colapso, forçando o governo inimigo a capitular. Chamou essa prática de “a mais alta arte da guerra aérea“, que provocaria nos inimigos “o esmagamento de todas as forças materiais e morais de um povo“.

Já seu colega britânico Hugh Trenchard defendia a ideia de decidir futuras guerras pelo ar, bombardeando alvos civis na retaguarda do inimigo.

Com o desenrolar da Segunda Guerra, a RAF passou a realizar ataques noturnos, mas os resultados foram decepcionantes. As perdas continuaram inaceitáveis ​​e a precisão dos bombardeios era péssima. Harris então buscou aperfeiçoar as táticas de bombardeamento de uma forma até então inimaginável: com base em critérios cientificamente estabelecidos, sua equipe selecionou as cidades na Alemanha que poderiam ser mais facilmente incendiadas do ar, realizando o chamado “Bombardeamento de área” e sem se importar com a precisão.

Esquadrilha de Lancaster durante a Segunda Guerra.

Seus pilotos aprenderam a lançar sua carga mortal nos centros densamente povoados, com ataques que concentravam muitos bombardeiros para destruir o máximo que pudessem e sobrecarregar os serviços de uma cidade. Harris também decidiu apostar as reservas do Comando de Bombardeiros em ataques de peso sem precedentes: centenas de aeronaves contra um único objetivo.

O primeiro-ministro britânico Winston Leonard Spencer Churchill e sua equipe aérea de alto escalão acreditava que o bombardeio de área desaceleraria a produção bélica alemã, destruiria o moral da frente interna e talvez levasse a uma revolta dos trabalhadores contra o regime nazista.

Em 1942 o Comando de Bombardeiros Britânico passou a contar com a parceria da formidável Oitava Força Aérea dos Estados Unidos, com suas tripulações e seus bombardeiros quadrimotores B-17 e B-24, que uniram forças aos bombardeiros ingleses Wellington, Blenheim, Stirling, Halifax e Lancaster.

Não demorou e a destruição das cidades alemãs logo ultrapassou o alcance e a ferocidade que a Luftwaffe havia feito em Varsóvia, Roterdã, Coventry ou Londres. As cidades de Lübeck, Rostock e Colônia foram as primeiras urbes alemãs a serem quase que totalmente destruídas por bombardeios. Em Hamburgo, outra “primeira vez” foi alcançada em 1943: em uma tempestade de fogo de proporções apocalípticas, cerca de 40.000 pessoas, a maioria delas civis, morreram queimadas. Nesse período, em apenas dez dias, mais civis foram mortos na Alemanha do que na Grã-Bretanha durante toda a Segunda Guerra.

A partir do verão de 1944, a RAF e os americanos conseguiam incendiar qualquer cidade alemã do ar, como Trier, Essen, Heilbronn, Stuttgart e Darmstadt. A sequência de ataques e seus resultados são inúmeros e seria até enfadonho listá-las nesse texto.

Já sobre os quadrimotores Lancaster, pode-se considerá-lo um dos maiores aviões de guerra de todos os tempos. Transportava uma carga normal de bombas de 6.300 kg e chegou a ser utilizado por 56 esquadrões do Comando de Bombardeiros da RAF. As tripulações dos Lancaster realizaram 156.000 surtidas sobre a Europa ocupada pelos nazistas e lançaram 681.645 toneladas de bombas. Com isso ajudaram a matar cerca de 600.000 pessoas, a maioria mulheres e crianças, e mais de um terço das moradias urbanas da Alemanha foram destruídas.

Três Lancaster da RAF em 1942– Fonte – Wilipédia.

Harris compreendeu as implicações sombrias do que lhe era exigido e dedicou-se à sua tarefa ingrata e nada glamorosa com vigor e por isso ganhou o apelido de Butcher (Açougueiro). Some-se a tudo isso o fato que mais de 55.000 homens das tripulações do Comando de Bombardeiros Britânico morreram e um total de 10.321 aeronaves foram perdidas em 389.809 surtidas.

O Controverso Herói de Guerra

No entanto, como comentamos anteriormente, Arthur Harris é mais conhecido pelo bombardeio à cidade alemã de Dresden, ocorrido entre 13 e 15 de fevereiro de 1945.

Poucos dias depois desse terrível e cruel ataque, ele teria dito a um dos secretários de Churchill: “– Dresden? Esse lugar não existe mais!”

Um dos dois únicos Lancaster em condições de voo na atualidade – Fonte – Wilipédia.

Com a destruição terrivelmente eficiente da velha cidade barroca alemã, que custou a vida de 25.000 pessoas, Harris havia ultrapassado um determinado limite na barbárie. Tanto que a necessidade do ataque a Dresden tão no fim da guerra tem sido muito debatida desde então.

A questão é que, em meio ao horror da Segunda Guerra Mundial, bombardear algumas cidades matando centenas de milhares de civis para desacelerar a produção bélica não parecia algo extraordinariamente cruel, especialmente se encerrasse a guerra mais cedo. Mas, ao final da guerra, quando os alemães estavam claramente prestes a se renderem em algumas semanas ou dias, o ataque a Dresden causou indignação e muitas vozes passaram a reclamar dos ataques indiscriminados às cidades alemãs e das mortes de tantos civis.

Dresden, vista parcial do centro da cidade destruído, do outro lado do Rio Elba, até o bairro de Neustadt. No centro da imagem, estão a praça Neumarkt e as ruínas da Frauenkirche – Fonte – Bundesarchiv.

O primeiro-ministro Winston Churchill havia defendido o bombardeio da Alemanha e trabalhado em estreita colaboração com o Harris por três anos, mas em 1945 estava perpetuamente preocupado com o bombardeio de civis. Após Dresden e diante da reação indignada dos países neutros ao ataque, Churchill se distanciou do chefe do Comando de Bombardeiros, primeiro internamente e depois também em relação aos Aliados.

No fim das contas Arthur Harris nunca fez nada além de cumprir os desejos do seu Primeiro Ministro. A sua contribuição foi a consistência assassina, a determinação férrea, a crueldade para com seus próprios homens e também para com as vítimas alemãs.

O primeiro-ministro britânico Winston Churchill. 

E o que Arthur Harris fez diante das repercussões negativas e das críticas?

Deu uma esticadinha até o Brasil!

No Grande País Tropical

A razão divulgada nos jornais brasileiros para o comandante inglês sair da distante e fria Inglaterra para o nosso caliente e varonil país, seria assistir no Rio de Janeiro ao desfile da chegada do 2º escalão da Força Expedicionária Brasileira. Ao menos isso foi o que publicou com destaque os jornais cariocas, mas Harris só chegou três dias depois que nossos pracinhas da FEB desfilaram pelas ruas do Rio e ninguém explicou a razão da sua não participação!

Independente disso, no dia 25 de julho de 1945, três quadrimotores Lancasters B.III partiram da base da RAF de St. Mawgan, na Cornualha, no extremo sudoeste da Inglaterra. Eram as aeronaves com os indicativos NX687, NX688 e NX689, todas do 156 Squadron.

Os Lancaster que trouxeram Arthur Harris aop Brasil., estavam pintados com o esquema da “Tiger Force”.

Após paradas para reabastecimento e descanso em Rabat, no Marrocos, e na cidade de Bathurst, então capital da colônia inglesa da Gâmbia e atualmente conhecida como Banjul, o primeiro dos três quadrimotores ingleses chegou ao Recife na tarde do dia 27 de agosto, faltando dez minutos para as quatro horas.

Foi o Lancaster NX687 que aterrissou no Campo do Ibura, ou Ibura Field para os americanos, onde um grande número de autoridades e populares aguardava o “Grande Herói Inglês”. Mesmo depois de nove horas de voo, Harris e seu séquito só desembarcaram depois que os funcionários do Serviço Nacional da Malária dedetizaram totalmente a aeronave.

Desembarque no Campo do Ibura, em Recife.

Ao finalmente desembarcar, Harris foi recebido por Etelvino Lins de Albuquerque, Interventor Federal em Pernambuco, e pelo brigadeiro Ajalmar Vieira Mascarenhas, comandante da 2ª Zona Aérea da FAB. Depois das solenidades de praxe, seguiram em cortejo pelas ruas da capital pernambucana até o Grande Hotel, onde atualmente funciona o Fórum Thomaz de Aquino Cyrillo Wanderley, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, na Avenida Martins de Barros, 593, bairro de Santo Antônio.

Às quatro e meia chegou o segundo Lancaster e devido a um problema mecânico o terceiro avião ficou de aterrissar em Recife só no outro dia. Um dado interessante é que na chegada da segunda aeronave desembarcou no Campo do Ibura um oficial inglês alto, de boa aparência, falando português fluentemente com os oficiais brasileiros e que trazia pela mão uma criança.

Harris discursando para as autoridades brasileiras, tendo a sua esquerda o capitão da RAF Walter Pretyman como seu tradutor. A direita de Herris está o brigadeiro Eduardo Gomes.

Esse oficial era o capitão Walter Frederick Pretyman, um londrino de família pertencente ao mais fino High Society britânico, antigo estudante da Universidade de Oxford, que havia desembarcado no Brasil em 1923 e se apaixonou pelo país. Aqui Walter Pretyman morou no Rio de Janeiro, se tornou um empresário de sucesso no ramo açucareiro na cidade carioca de Campos e foi um dos fundadores da poderosa Usina Santa Cruz. Também no Rio ele foi um dos fundadores e assíduo frequentador do Gávea Golf and Country Club e um dos pioneiros do jogo de polo em nosso país[2].

Pretyman era muito ativo na alta sociedade carioca, com amizades entre muitos oficiais das forças armadas brasileiras e membros do governo de Getúlio Vargas. Com a entrada da Inglaterra na guerra ele voltou para Londres em 1942 e se alistou na RAF. Quis o destino que se tornasse um dos membros do staff de Arthur Harris no Comando de Bombardeiros e foi Pretyman que articulou a vinda deste chefe britânico ao Brasil.

Arthur Harris obsevando de binoculos uma corrida de cavalos no Jockey Club no Rio de Janeiro, tendo ao seu lado Walter Pretyman e o Ministro da Aeronáutica Salgado Filho.

Seu entrosamento com o comandante dos bombardeiros era tanto, que Harris deixou que o capitão Pretyman trouxesse no Lancaster a sua filha Cristina, nascida no Brasil e com cinco anos de idade em 1945. Nessa época Pretyman era viúvo e poucos anos depois se casaria com a paranaense Vera Sá Souto Maior.

Visitando o Rio, Petrópolis, São Paulo e Porto Alegre

No dia 28 de agosto, com a esquadrilha britânica já completa, partiram do Recife às nove da manhã em direção ao Rio de Janeiro. Na chegada fizeram um sobrevoo sobre a Cidade Maravilhosa, chamando a atenção dos cariocas e depois pousaram no Aeroporto Santos Dumont.

Quem primeiro se entendeu com Arthur Harris na pista do aeroporto foi o gaúcho Joaquim Pedro Salgado Filho, Ministro da Aeronáutica. Pelos próximos doze dias o inglês iria conhecer muita coisa no Brasil e aproveitar a estadia.

Sentados da esquerda para direita estão Donald Saint Clair Gainer, Getúlio Vargas, Arthur Harris e Salgado Filho. O capitão da RAF Walter Pretyman está em pé e de costas, atuando como tradutor. Junto com ele nessa função está o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto, visível no reflexo do espelho e com uniforme claro.

Logo Harris teve um encontro protocolar com Getúlio Vargas e os tradutores foram o capitão Walter Pretyman e o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto.

Depois o comandante inglês e Sir Donald Saint Clair Gainer, Embaixador do Reino Unido no Brasil, ofereceram as autoridades brasileiras um concorrido jantar na Embaixada Britânica.

Arthur Harris apreciando um belo churrasco, junto com o brigadeiro Appel Neto.

Em outro momento Harris participou de um evento especial no grill-room do mundialmente famoso Casino da Urca. O “grill” era um grande salão com um bem estruturado palco para apresentações e recebia grandes atrações e shows. Harris não ficou só no Rio, visitou também a cidade de Petrópolis, onde se hospedou no Hotel Quitandinha, o maior cassino hotel da América do Sul. Depois seguiu de avião para São Paulo e na sequência para Porto Alegre, onde Salgado Filho o ciceroneou na capital dos gaúchos e visitaram a Base Aérea de Canoas.

Nessas visitas, para deleite dos brasileiros, Harris deixou de lado o tradicional chá inglês e publicamente se fartou de café brasileiro de primeira qualidade.

Em nome da RAF o inglês homenageou a figura de Santos Dumont, colocando uma coroa de flores no monumento existente em frente ao terminal de passageiros do aeroporto que homenageia o nosso Pai da Aviação.

Nesse dia os quadrimotores Lancaster foram abertos para a visitação pública e o comparecimento dos cariocas foi enorme.

Como não poderia deixar de ser em se tratando de uma personalidade estrangeira, mesmo sendo um controverso herói de guerra, o governo brasileiro outorgou a Harris a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria que o Brasil concede a cidadãos estrangeiros. Mesmo sem achar que Harris merecia receber uma medalha dessas, eu até entendo as razões diplomáticas para o governo lhe entregar esse belo regalo. Só não entendi mesmo foi porque os aviadores da RAF Alan John Laird Craig, Charles Cranston Calder e Robert Martin Brown Cains foram igualmente agraciados com essa comenda[3].

Finalmente em Parnamirim Field

Na manhã de 10 de agosto duas aeronaves Lancaster da RAF decolaram para Natal, onde chagaram na parte da tarde. Não encontrei nos jornais nenhuma informação sobre o destino do terceiro avião.

Após sobrevoarem a cidade do Natal, os Lancaster aterrissaram em Parnamirim e Harris foi recebido pelo Desembargador João Dionísio Filgueira (então Interventor Federal Interino do Governo do Rio Grande do Norte)[4], o coronel norte-americano William David (Subcomandante da Divisão do Comando de Transporte Aéreo para o Atlântico Sul)[5], o coronel John M. Price (Comandante da Base Americana em Natal)[6], Jaime Wanderley (Representante de José Augusto Varela, então Prefeito de Natal), o major Salvador Roses Lizarralde (Comandante da Base Aérea de Natal) e outras autoridades brasileiras e americanas.

Em síntese a visita de Arthur Harris a Parnamirim foi rápida e pouca coisa em termos de informações eu consegui sobre o que aconteceu. Sabemos que ele percorreu as dependências da grande base, que houve um jantar no casino dos oficiais, que ele e seu séquito não vieram para Natal (pernoitaram na base) e que no outro dia pela manhã partiu para os Estados Unidos.

Apesar de parecer uma visita rápida, protocolar e simplória, o que mais me chamou a atenção foi encontrar várias declarações que Arthur Harris fez aos jornalistas brasileiros sobre a importância de Natal e sua grande base aérea para o esforço de guerra. Trago aqui duas destas declarações que foram publicadas em jornais cariocas.

Tal como muitos militares de renome e prestígio que atuaram na Segunda Guerra Mundial e estiveram em Parnamirim Field, como os generais Dwight D. Eisenhower, Mark Clark, Willis Crittenberger e outros, o inglês Arthur Harris sabia o valor daquela base e desejou conhecer esse local que ajudou as forças aliadas a ganhar a guerra contra o nazi fascismo.

As suas impressões sobre esse local eu não consegui encontrar. Mas, quem sabe, como Harris era um estrategista de mão cheia, talvez ele tenha pensado que os americanos iriam continuar por aqui depois de construir aquela cara e enorme base aérea e não entregariam nada aos brasileiros. Então, em um possível e futuro conflito contra os soviéticos, estar presente em Parnamirim Field poderia ser interessante para a RAF!

Bem, se ele assim pensou isso logo se desvaneceu, pois Harris deixou à RAF em 15 de setembro de 1945. Isso aconteceu em meio a uma disputa com o novo primeiro-ministro inglês Clement Attlee. Amargurado, ele foi viver na África.

Criminoso de Guerra?

Após a sua temporada africana e logo depois que Winston Churchill retornou ao poder na Grã Bretanha em 1951, Arthur Harris voltou ao seu país de origem.

Foi quando recebeu a oferta de ser agraciado com um título de nobreza, situação que ele recusou. Mas em 1953 aceitou um título mais modesto de baronete. No final das contas Harris nunca foi homenageado no mesmo nível de outros heróis de guerra britânicos, como os generais de exército Bernard Law Montgomery e Harold Alexander, ou comandante de caças da RAF Hugh Dowding.

Arthur Harris então se estabeleceu definitivamente com a sua família em Oxfordshire, aproveitando uma aposentadoria tranquila, porém ativa. Mas na década de 1960 a opinião pública britânica se voltou fortemente contra Harris e ele passou a ser visto por muitos como um “criminoso de guerra“.

Enfim, Arthur Harris foi um criminoso de guerra?

Não há uma resposta simples para isso: de acordo com critérios objetivos, a destruição seletiva dos centros urbanos alemães não era justificada militarmente e, portanto, era uma violação grave das leis da guerra. Por outro lado, essa violação não relativizou a culpa exclusiva de Hitler pela Segunda Guerra Mundial, nem pelos crimes de guerra da Wehrmacht e das tropas SS, e muito menos pelos assassinatos de milhões de judeus, eslavos, deficientes, homossexuais, ciganos e outros grupos de seres humanos.

Harris trabalhando no Comando de Bombardeiros.

Apesar disso, no entanto, o horror em relação à figura de Arthur Harris permaneceu. E ele ajudou bastante em tudo isso!

O ex-comandante dos bombardeiros lançou um livro com as suas memórias da Segunda Guerra. Intitulado “Bomber Offensive”, veio com muitas justificativas para as suas ações e entre estas existe a seguinte passagem: “Apesar de tudo o que aconteceu em Hamburgo, o bombardeio era um método de guerra relativamente humano“.

Arthur Harris provavelmente nunca se considerou um humanitário, mas sim um comandante militar encarregado de matar alemães, fossem eles soldados ou civis.

Quando Arthur Harris faleceu, uma aeronave Lancaster sobrevivente realizou um sobrevoo sobre o cemitério onde acontecia o sepultamento.

Faleceu discretamente no dia 5 de abril de 1984, oito dias antes de completar 92 anos. Um preservado Lancaster sobrevoou o seu sepultamento e anunciou a homenagem final da RAF ao último de seus grandes comandantes da Segunda Guerra Mundial.

Quando foi decidido erigir uma estátua de Harris do lado de fora da igreja de St. Clement Danes, em Westminster, Londres, houve amplas objeções e severas críticas.

O homem se foi, mas a controvérsia que o cercava ainda persiste.

NOTAS ————————————————————————


[1] Essas pinturas brancas existentes nesses aviões Lancaster que vieram para o Brasil foram feitas para os Avro Lancaster do Comando de Bombardeiros Britânico que estavam destinados a atacar alvos no Japão. Essa foi uma oferta de Winston Churchill aos Estados Unidos para que 40 esquadrões de Lancaster fossem disponibilizados para uso na área do Oceano Pacífico e esse grande grupo de bombardeiros foi denominado “Tiger Force”. Durante a Segunda Guerra o esquema padrão do Comando de Bombardeiros Britânico em ação na Europa era a parte inferior preta e a parte superior com tons verde e marrom. Já nos Lancaster da “Tiger Force” a parte inferior preta foi mantida, mas a parte superior foi pintada de branco para refletir o calor. Com o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão e a rendição desse país, a ideia da “Tiger Force” foi colocada de lado.

[2] Em 1926 Walter Pretyman sagrou-se campeão com a sua equipe em um badalado torneio de polo no Rio e a taça de vencedor foi entregue pelo então Presidente da República Arthur Bernardes.

[3] E ainda sobre essa história da entrega dessa comenda existe uma situação interessante. Antes da chegada de Arthur Harris ao Brasil, esteve em nosso país o general norte-americano Mark Clark, que foi o comandante do 5º Exército dos Estados Unido, que atuou na Campanha da Itália e tinha sob seu comando a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Ocorre que Clark, que inclusive nessa ocasião veio ao Brasil para assistir a chegada do 1º escalão da FEB no Rio, não recebeu essa mesma honraria e desconheço a razão disso. Clark só veio a receber essa comenda em maio de 1975, das mãos do Presidente Ernesto Geisel.

[4] Dionísio Filgueira estava recepcionando o comandante Arthur Harris em razão da ausência de Natal do general Antônio Fernandes Dantas, o Interventor Federal do Rio Grande do Norte na época.

[5] O Comando de Transporte Aéreo (em inglês Air Transport Command – ATC) era o setor da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF) que durante a Segunda Guerra Mundial organizou e operou os transportes aéreos do exército americano em todo o mundo.

[6] Essa base aérea era a famosa Parnamirim Field, que se subdividia em uma base área da força aérea do exército americano e outra da marinha dos Estados Unidos, que trabalhavam em parceria com a base aérea brasileira, a chamada Base Aérea de Natal, todas na mesma região. O coronel Price havia assumido esse posto recentemente, substituindo o coronel Léo F. Post.  

AS INCRÍVEIS FOTOS DE NAUFRÁGIOS INGLESES

A barca Mildred, que encalhou em 1912
A barca Mildred, que encalhou em 1912

O que dizer de uma família que ao longo de 125 anos, durante quatro gerações, realizou 1.360 imagens, de mais de 200 naufrágios ocorridos nas águas traiçoeiras da região da Cornualha e das ilhas de Scilly, no sudoeste da Inglaterra.

Pela qualidade das imagens, no mínimo obrigado!

A costa da Cornualha é conhecida como um dos locais mais perigosos para a navegação, um verdadeiro cemitério de navios e tripulações. Diante da frequência de desastres e das imagens dramáticas, o fotógrafo John Gibson fez a sua primeira fotografia de um naufrágio em 1869.

John fundou um pequeno negócio fotográfico familiar na década de 1860, mas foram seus filhos e inseparáveis ​​irmãos Alexander e Herbert que aperfeiçoaram a técnica de fotografar o drama cruel destes naufrágios.

o Glenbervie, que encalhou, de Glasgow,  sobre as rochas em Coverack logo após encalhar em 13 janeiro de 1902. Este desastre foi muito festejado.
o Glenbervie, que encalhou, de Glasgow, sobre as rochas em Coverack logo após encalhar em 13 janeiro de 1902. Este desastre foi muito festejado.

Se um navio encalhava na costa da Cornualha, um membro da família Gibson seria um dos primeiros na cena. Na coleção existem fotos como a do vapor alemão Schiller, de 3.500 toneladas, que em 1876 afundou deixando um rastro de 300 mortes. Mas os Gibsons fotografam casos de acidentes pitorescos e felizes, como a da barca britânica Glenbervie, que bateu em rochas na área de Coverack. Felizmente toda a tripulação foi salva e grande parte de sua carga de 600 caixas de uísque e 400 de brandy foi recolhida pela população local.

O Cviet que encalhou perto Porthleven em 1884 com a perda de três vidas.
O Cviet que encalhou perto Porthleven em 1884 com a perda de três vidas.

Muitas destas imagens foram destaque em jornais, revistas, cinema e na TV inglesa ao longo de décadas, bem como em livros de autores famosos, como John Le Carré .

Em novembro de 2013 esta magnifica coleção foi colocada à venda na conhecida casa de leilões Sotheby e adquirida pelo National Maritime Museum, um museu marítimo localizado em Greenwich, Londres, que pagou 122.500 libras pela coleção.

O Voorspoed de 1901.
O Voorspoed de 1901.

O estado do Granite destruído em Porthcurno em 1895
O estado do Granite destruído em Porthcurno em 1895

O barco britânico Cromdale bateu nas rochas em meio a névoa espessa em 1913. Transportava uma carga de nitrato do Chile.
O barco britânico Cromdale bateu nas rochas em meio a névoa espessa em 1913. Transportava uma carga de nitrato do Chile.

A Barca Hansey naufragou em 13 de novembro de 1911. Você pode ver claramente a navios de carga de madeira muito do que foi recuperada e usada localmente.
A Barca Hansey naufragou em 13 de novembro de 1911. Você pode ver claramente a navios de carga de madeira muito do que foi recuperada e usada localmente.

O Seine bateu em terra no dia 28 de dezembro de 1900. Vindo do Chile com uma carga de salitre e  a tripulação foi forçada a abandonar o navio em mar revolto. A barca era um desastre total e o que restou foi vendido por apenas 42 libras.
O Seine bateu em terra no dia 28 de dezembro de 1900. Vindo do Chile com uma carga de salitre, a tripulação foi forçada a abandonar o navio em mar revolto e o que restou foi vendido por apenas 42 libras.

A escunas Mary Barrow e Lizzie R Wilce encalharam  durante uma tempestade em janeiro de 1908. Ambos os navios estavam transportando carvão e conseguiram voltar a navegar.
A escunas Mary Barrow e Lizzie R Wilce encalharam durante uma tempestade em janeiro de 1908. Ambos os navios estavam transportando carvão e conseguiram voltar a navegar.

A família Gibson fotografou estes desastres marítimos durante quatro gerações
A família Gibson fotografou estes desastres marítimos durante quatro gerações

Fonte – http://www.bbc.co.uk/news/uk-england-24623410

ARTHUR, O HERÓI DA BRETANHA

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No mundo real, o dono da lendária Excalibur não foi rei nem se reunia com seus cavaleiros em torno da távola redonda, mas organizou uma resistência sem precedentes contra os bárbaros que ameaçavam sua terra

Para a maioria dos europeus, o fim do mundo talvez nunca tenha estado tão próximo quanto lá pelo fim do século 5. A única ordem que a região havia conhecido por quase 500 anos – o poder de Roma – tinha virado pó depois de uma longa agonia e o futuro parecia pertencer aos bandos de bárbaros do norte e do leste, fundando reinos que brotavam e sumiam como cogumelos nas terras do antigo império. Mas havia um lugar em que a vida não estava sendo nada fácil para os invasores. Na ilha da Bretanha, os ex-súditos de Roma montaram a resistência mais bem-sucedida da Europa e detiveram a maré bárbara por décadas. Cada vez mais parece provável que um líder militar poderoso conduziu os bretões, um guerreiro que iria virar lenda: Arthur.

A figura que está emergindo das brumas do ano 500 muito provavelmente não era um soberano e com certeza jamais botou os pés num castelo. Mesmo assim, existem paralelos intrigantes entre o Arthur lendário e o do mundo real, que podem incluir detalhes como o local de nascimento, a morte nas mãos de um conterrâneo bretão e, segundo uma das teorias mais polêmicas, até batalhas travadas do outro lado do canal da Mancha, em pleno território da atual França.

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Muito antes da carreira militar de Arthur, a Bretanha romana (que correspondia mais ou menos à Inglaterra, ao País de Gales e ao sul da Escócia de hoje) já andava em maus lençóis havia um bom tempo. Em parte, isso era culpa dos próprios soldados que deviam comandar a defesa da ilha: volta e meia a Bretanha exportava um general que almejava tonar-se imperador, como o famoso Magnus Maximus, que chegou perto de conseguir seu intento antes de ser derrotado no ano 388. Esses sujeitos arrastavam consigo os exércitos responsáveis por patrulhar a província, deixando-a cada vez mais vulnerável à sanha dos piratas bárbaros.

Esse problema era endêmico no império todo na época, mas, no caso da Bretanha, o incômodo era triplo. Do norte da Alemanha e do sul da Dinamarca vinham tribos germânicas, os anglos, saxões e jutos, falantes de dialetos ancestrais do inglês de hoje. Do nordeste da Escócia atacavam os escotos e os pictos, guerreiros violentos que lutavam de um jeito selvagem, quase nus, com o corpo coberto por tatuagens. Para completar a desgraça, havia os escotos da Irlanda, que também eram um povo celta como seus primos bretões e gauleses, mas tinham ficado de fora do domínio romano.

Muita gente costuma imaginar que, em dado momento, Roma acabou desistindo de manter a ilha dentro de seus domínios, já que tinha de se preocupar com a própria sobrevivência, e abandonou a Bretanha. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário: os bretões ficaram de saco cheio de serem deixados na mão por mais um general que queria virar imperador (um tal de Constantino III) e declararam independência. “A idéia de que a ilha ficou indefesa porque os romanos retiraram suas legiões não passa de um mito. As legiões foram embora porque Constantino as levou com ele para tentar conquistar o continente, sem sucesso, e a mudança seguinte no status da Bretanha foi ativa, e não passiva”, afirma o historiador britânico Geoffrey Ashe, autor de Kings and Queens of Early Britain (“Reis e Rainhas da Antiga Bretanha”, inédito no Brasil). O imperador legítimo, Honório, reconheceu a independência da região em 410, numa carta em que delegou às cidades bretãs a responsabilidade de se defenderem militarmente.

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Uma lança de duas pontas

Parecia ousadia demais dos bretões. E era mesmo. A estratégia de defesa que a Bretanha independente passou a adotar seguia os padrões dos romanos em seus anos finais de dominação: contratar mercenários bárbaros, normalmente germânicos, para fazer o trabalho sujo. Muitos deles eram saxões, parentes dos invasores, como mostra a presença de fivelas de cintos militares típicos desse povo em sítios arqueológicos da época.

Sujeitos ambiciosos e com alguma tradição de liderança aproveitaram o momento para ganhar poder. “Os aristocratas nativos tinham se romanizado, mas, quando a ligação com Roma foi cortada, as antigas tradições de nobreza retornam com força. Os bretões eram muito conservadores nesse sentido”, diz o historiador Christopher Snyder, da Universidade Marymount, nos Estados Unidos. Um desses homens, chamado Vortigern, parece ter conseguido se tornar superbus tyrannus (“governante supremo”, em latim) de boa parte da Bretanha por volta do ano 430.

Mas algo deu muito errado. Talvez os mercenários saxões não tenham sido pagos, ou talvez apenas tenham percebido que seria fácil tomar mais do que os bretões lhes haviam prometido. O fato é que o tiro saiu pela culatra, e os saxões se apossaram de terras por todo o leste da atual Inglaterra. Mais e mais levas deles vinham se juntar aos que já estavam na Bretanha, e os ataques de pictos e escotos voltaram com força total. Os bretões chegaram a pedir a ajuda de Roma, numa carta desesperada ao general Aetius: “A Aetius, três vezes cônsul, os lamentos dos bretões. Os bárbaros nos empurram para o mar; o mar nos empurra de volta para os bárbaros. Entre esses dois tipos de morte, somos ou afogados ou assassinados”, dizia a mensagem, datada de 446. Às voltas com os hunos de Átila batendo nos portões de Roma, Aetius não tinha como ajudar.

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É uma tarefa ingrata reconstruir o que aconteceu nas décadas seguintes. Além dos restos arqueológicos (que dizem pouco sobre pessoas ou batalhas específicas), tudo o que temos são anais compilados por monges na Bretanha e na Gália, às vezes séculos depois dos eventos narrados, e o apocalíptico De Excidio et Conquestu Britanniae (Da Destruição e Conquista da Bretanha), do também religioso Gildas. Esse livro tem, pelo menos, a vantagem de ter sido escrito mais ou menos perto dos eventos narrados, lá pelo ano 530. A principal preocupação de Gildas era moralizante (o monge diz que os bretões andavam levando a pior por causa de seus pecados), mas, no meio de tanto sermão, há também informações preciosas.

Segundo o monge, os bretões finalmente conseguiram iniciar uma resistência, sob o comando de um certo Ambrosius Aurelianus. “Gildas o descreve como um vir modestus, ou seja, um homem decente, e afirma que seus pais usavam a púrpura, o que é uma indicação de que eles eram de uma família romana de origem nobre”, diz Christopher Snyder. A partir daí, a briga ficou indefinida, com vitórias de um lado e de outro, até que os bretões conseguiram um grande triunfo, num lugar chamado monte Badon (Gildas não deixou claro se foi Ambrosius quem conduziu os bretões nessa vitória). Dali por diante, os bretões teriam conseguido uma trégua de quase meio século. Textos compilados séculos mais tarde, provavelmente com base em antigos anais do século 5, não deixam dúvidas sobre quem teria sido o vencedor de Badon: seu nome era Arthur.

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Num dos raros momentos em que dá para comparar dados históricos com os da arqueologia, parece que ao menos o esquema básico dessa narrativa está correto: pesquisadores como John Hines, da Universidade de Cardiff, no País de Gales, verificaram que os cemitérios saxões (caracterizados pelas jóias e armas típicas dos mortos) avançam progressivamente para o oeste, sinalizando a expansão dos invasores, até pararem de repente por volta do ano 500. O avanço só recomeça meio século depois. Alguém ou algo deteve os saxões – resta saber se o fenômeno atende mesmo pelo nome de Arthur.

Curiosamente, outras pistas quase contemporâneas sobre o líder bretão são exatamente isso: nomes. Praticamente não há menção a pessoas chamadas “Arthur” na Bretanha antes de Badon, mas o nome, de repente, se torna um dos favoritos da nobreza nos dois séculos seguintes. “Há uma série de breves referências a reis e príncipes galeses e irlandeses chamados Arthur a partir do fim do século 6”, conta Kenneth Dark, historiador da Universidade de Reading, na Inglaterra. “Nenhum desses homens deve ser o Arthur histórico, mas o que eles mostram é que o nome se tornou popular entre as famílias reais, e que pode ter havido um Arthur famoso que inspirou o batismo deles”, afirma Dark. O poema épico “Y Gododdin”, provavelmente do século 6, cita Arthur como modelo de bravura em combate. Dali por diante, o guerreiro começa a ser chamado de rei e vira presença constante nas lendas galesas, até ser transformado na figura cavalheiresca e mágica que conhecemos (com Merlin, Guinevere e tudo o mais) pelo clérigo Geoffrey de Monmouth, num livro de 1136.

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Lendas, mitos e tradição

É nesse ponto que comparar a lenda com a história começa a se tornar um exercício útil. Diz a tradição, por exemplo, que Arthur teria nascido no castelo de Tintagel, na Cornualha (região sudoeste da Inglaterra). Acontece que escavações e análises feitas no final dos anos 90 nessa região mostraram que, de fato, Tintagel foi o lar de um nobre poderoso no fim do século 5. Havia ali um movimentado porto, que comerciava com a Gália (atual França), a Itália e o norte da África. Quem quer que habitasse o lugar podia pagar pelo luxo de beber vinho e usar azeite do Mediterrâneo, carregados em vasilhas de fina cerâmica. Mas a descoberta mais impressionante no local foi uma laje de pedra com uma espécie de assinatura de quem mandou construir o lugar: Artognou (pronuncia-se “Arthnou”). No mínimo, é uma coincidência das grandes.

A 100 quilômetros de Tintagel, escavações que se sucedem desde os anos 60 têm mostrado que a região de Cadbury, identificada com a lendária Camelot há séculos, realmente abrigou a maior praça forte da Bretanha nos séculos 5 e 6. Um colosso com muralhas de madeira e pedra que iam subindo, em círculos, as encostas de uma colina até terminar num portão, cercado por torres.

Tudo indica, então, que as áreas por onde Arthur andava ainda eram prósperas e bem guarnecidas militarmente. Mas será que ele as governava? Arthur deve ter sido um nobre bretão, mas as referências mais antigas às batalhas vencidas por ele, no manuscrito do século 6 conhecido como Historia Brittonum (“História dos Bretões”), de autoria desconhecida, o chamam de dux bellorum, “líder de batalhas”, e dizem que ele lutava ao lado dos reis bretões. Esse texto também mostra que a imagem de Arthur como um herói cristão é muito antiga: numa de suas vitórias, ele teria carregado uma imagem de Nossa Senhora. Em Badon, teria empunhado “a cruz de Nosso Senhor Jesus” (provavelmente uma referência a um amuleto muito comum na época: um pedaço de madeira supostamente retirado da cruz em que Cristo morreu). Ser um líder guerreiro, na época, significava trabalhar muito. Lutava-se um tipo de guerra altamente móvel e sobre qualquer terreno. “A maioria de suas tropas provavelmente era montada e lutava com espadas, lanças e dardos, aproximando-se do inimigo numa série de investidas, e não numa carga de cavalaria coordenada”, diz Leslie Alcock, arqueólogo da Universidade de Glasgow, na Escócia, e autor de Arthur’s Britain (“A Bretanha de Arthur”, sem versão em português).

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Até a idéia de que Arthur teria levado um exército para a Gália, por séculos considerada uma invenção de Geoffrey de Monmouth, tem sido reconsiderada. Para Geoffrey Ashe, registros sobre um chefe bretão chamado Riothamus, que levou 12 mil homens para ajudar os romanos contra os visigodos, poderiam, na verdade, se referir a Arthur. É que Riothamus aparenta ser não um nome, mas um título, significando “rei supremo”. No entanto, como a aventura de Riothamus data de 470 e ele desaparece logo depois, fica difícil reconciliá-lo com a vitória de Arthur em Badon (por volta do ano 490).

O fim de Arthur registrado por antigos textos galeses oferece mais uma conexão intrigante entre história e lenda. No mito, o rei teria sido traído por seu sobrinho, Mordred, conseguiu matá-lo em combate, mas recebeu um ferimento letal. Os anais registram “a contenda de Camlann, em que Arthur e Medraut [Mordred?] pereceram”. Nos dois séculos seguintes, os bretões seriam cada vez mais empurrados para o oeste, embora sempre lutassem para preservar sua identidade, ainda viva no País de Gales de hoje.

No fundo, os detalhes passíveis de recuperação são poucos para uma vida que inspirou tantas lendas. “Não acho que algum dia teremos mais informações seguras sobre o Arthur histórico além das que já conhecemos e, para falar a verdade, isso não me parece um problema”, diz Christopher Snyder. “Há uma mágica em torno do personagem que é parte de seu fascínio.” Considerando os ideais de cavalheirismo e resistência que essa mágica inspirou, não dá para dizer que Arthur não concordaria.

Cronologia da Grande Bretanha – Dos antigos celtas a Elizabeth I, dos romanos ao maior império sobre a Terra

2000 a.C.

Em várias etapas, povos pré-célticos de agricultores constroem o santuário e observatório astronômico de Stonehenge, um dos maiores monumentos da Europa pré-histórica

1000 a.C.

Começam a chegar às Ilhas Britânicas as tribos célticas, em duas levas distintas (uma se estabelece na Grã-Bretanha e a outra na Irlanda). Os celtas trazem conhecimentos avançados de metalurgia e guerreiam em carros puxados por cavalos

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55 a.C.

Depois de lutar na Gália, o general romano Júlio César desembarca na Bretanha e consegue a submissão de alguns chefes, mas não chega a estabelecer um domínio romano efetivo na ilha

43

O imperador romano Cláudio retoma o projeto de César e ordena a invasão da Bretanha por um exército de 40 mil soldados. O sul da ilha torna-se província do Império e muitos chefes bretões aderem ao novo governo

60

Boadicéia, rainha dos icenos, inicia uma revolta contra os romanos, depois de ser chicoteada e ver suas filhas serem estupradas. A rebelião é sufocada

122

Começa a construção da Muralha de Adriano (sob orientação do imperador romano de mesmo nome). Com 120 quilômetros de extensão, ela ajuda a proteger a Bretanha dos ataques de caledônios e pictos, da Escócia

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383

O general espanhol Magnus Maximus, comandante das tropas romanas na Bretanha, é aclamado imperador por suas tropas e governa por cinco anos a parte ocidental do Império Romano

410

O imperador romano Honório reconhece o direito dos bretões à autodefesa e aconselha as cidades da ilha a se armarem contra os bárbaros. A soberania romana na região está encerrada

597

Uma missão enviada pelo papa Gregório Magno inicia a conversão do reino anglo-saxão de Kent ao cristianismo. Um a um, os reinos germânicos que iriam formar a Inglaterra se tornam católicos

871

Sobe ao trono o rei saxão Alfred, que começa a contra-atacar os invasores vikings e dá os primeiros passos para unificar o que se tornaria a Inglaterra

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1066

Guilherme, o Conquistador, duque da Normandia (norte da França), invade a Inglaterra e mata o último rei saxão, Harold. Seus sucessores atacarão Gales

1215

O rei inglês João Sem Terra é forçado por seus barões a assinar a chamada Magna Carta, considerada o embrião das constituições do Ocidente por limitar os poderes do soberano

1283

Último reduto da antiga resistência bretã, o País de Gales é conquistado pelo rei inglês Eduardo I e se torna um feudo dos herdeiros da coroa, chamados então de príncipes de Gales

1532

O rei Henrique VIII rompe com o papa e nomeia a si mesmo chefe da Igreja , tornando a Inglaterra um país protestante, embora teologicamente muito próximo do catolicismo

1559

Elizabeth I, filha de Henrique VIII, sobe ao trono. Em seu reinado, os ingleses vencem a invasão da frota espanhola conhecida como Invencível Armada

Mito e história lado a lado – Os elementos da lenda que até podem ter uma base factual e os que são pura invenção

Pode até ser

Excalibur e o lago

Prestes a morrer, Arthur manda que joguem sua espada num lago. Esse era um costume comum entre os antigos soberanos celtas

Avalon

O melhor candidato para ser a ilha de Avalon é Glastonbury, que hoje fica em terra firme. Mas estudos mostram que no século 5, com as cheias, o local ficava ilhado

Espada na pedra

O mito de que o jovem Arthur retirou sua espada de uma pedra remonta à Idade do Bronze, quando elas eram forjadas em moldes de pedra

Tristão

Na lenda, ele é um dos cavaleiros. Uma lápide do século 6, encontrada na Cornualha, tem o nome Drustanus, a forma céltica original de Tristão.

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Não é de jeito nenhum

Castelo de Camelot

Os bretões do ano 500 usavam técnicas toscas de construção e até palácios e igrejas eram feitos de madeira. Camelot certamente não era um castelo

Lancelot e Guinevere

O amor entre a esposa do rei e seu melhor amigo é uma invenção medieval, criada pelo poeta francês Chrétien de Troyes, no século 12

Cavalaria

O Arthur histórico provavelmente lutou a cavalo, mas o conceito medieval das ordens de cavalaria só iria aparecer séculos mais tarde

Merlin

Os romanos perseguiram ferozmente os druidas (sacerdotes celtas), e nenhum deve ter sobrado nos séculos 5 e 6, ainda mais com tanto poder sobre um rei

Os outros “Arthurs” – Teorias sobre a verdadeira face de Arthur nunca faltaram. Conheça algumas das principais interpretações sobre o personagem

Guerreiro bretão

Para os defensores dessa tese, Arthur teria sido um bretão com poucas influências de Roma, e talvez nem pudesse ser considerado cristão. Seu principal campo de atuação teriam sido os reinos celtas do norte da Bretanha, no território da atual Escócia, e seus inimigos foram os invasores anglos do reino de Nortúmbria. Tudo indica, no entanto, que a cultura romana e principalmente o cristianismo já estavam bastante espalhados pela elite bretã da época, o que torna essa versão improvável

Último romano

Argumentando que Gildas não cita o nome de Arthur e que as referências ao personagem são todas muito tardias, alguns estudiosos preferem considerar Ambrosius Aurelianus como o melhor candidato a “Arthur histórico”. Nesse caso, o grande líder da resistência bretã seria descendente direto de uma família nobre romana e teria tentado manter as conexões da ilha com o antigo Império, ao mesmo tempo em que teria combatido o surgimento de heresias cristãs na Bretanha

Cavaleiro bárbaro

Essa tese é baseada na presença de um oficial da cavalaria romana, Lucius Artorius Castus, na Bretanha do século 2. Ele liderou um grupo de cavaleiros sármatas (bárbaros da Europa oriental) numa série de batalhas que parecem bater com as do Arthur lendário. Essa, aliás, é a versão escolhida pelo filme Rei Arthur – só que no filme a história se passa no século 5 mesmo, e Arthur é meio romano e meio bretão. Enfim, Hollywood adora um samba do bretão doido

Saiba mais

Livros

Arthur·s Britain, de Leslie Alcock, Penguin, 1990 – O autor traduz as partes relevantes dos textos antigos sobre o herói, como os livros de Gildas e Nennius, e proporciona um panorama completo de como era a Bretanha do século 5 ao 7. Há mapas, fotos e desenhos.

Kings and Queens of Early Britain, de Geoffrey Ashe, Methuen Publishing, 2000 – Detém-se sobre os personagens desse período nebuloso da história bretã e mostra como os erros romanos conduziram à independência.

The Age of Tyrants, de Christopher Snyder, Sutton Publishing, 1998 – Um completo e claro relato sobre a vida dos bretões no final da presença romana na ilha.

Site

http://www.mun.ca/mst/heroicage/ – Quem estiver interessado em acompanhar os estudos mais recentes sobre o mundo arturiano e temas correlatos pode acompanhar a revista científica eletrônica The Heroic Age, no endereço acima.

Autor – Reinaldo José Lopes

Fonte – http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/arthur-heroi-bretanha-433765.shtml?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_avhistoria&