A VISITA DO “AÇOUGUEIRO” ARTHUR HARRIS A NATAL E AO BRASIL

O Que Uma Das Mais Controvertidas Figuras da Segunda Guerra Mundial, Tido Por Muitos Como Um Implacável e Sanguinário Criminoso de Guerra, Veio Fazer em Nosso País e em Parnamirim Field?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros  

Na tarde do dia 10 de agosto de 1945, uma bela sexta-feira de sol, o povo da cidade do Natal foi surpreendido pelo sobrevoo de duas grandes aeronaves estranhas e bastante chamativas.

E observem que durante grande parte da Segunda Guerra Mundial, os natalenses testemunharam a passagem de milhares de aeronaves envolvidas naquele conflito e nessa época pouca coisa que voava ainda chamaria a atenção dos que aqui viviam. Mas aqueles dois aviões certamente fizeram as pessoas olharem para o céu!

Eles eram grandes quadrimotores, com duas grandes aletas elípticas na cauda onde ficavam os lemes que as guiavam. A parte de baixo das aeronaves era pintada de negro e na parte superior eram totalmente brancas[1]. Voando em um dia claro como aquele, aquelas aeronaves se destacaram bastante na paisagem.

Mas certamente para os natalenses que testemunharam o voo daqueles colossos aéreos, uma das coisas que mais deve ter chamado à atenção foi o ronco dos quatro motores que cada um daqueles majestosos aviões emitia. Pois era o inconfundível som dos motores Rolls-Royce Merlin, que equiparam e fizeram a fama de aeronaves inglesas como os caças Supermarine Spitfire e De Havilland Mosquito, além dos bombardeiros Vickers Wellington, Handley Page Halifax e os pesados Avro Lancaster. E as aeronaves que sobrevoaram Natal naquela sexta feira eram dois originais quadrimotores Avro Lancaster da RAF (Royal Air Force).

Bem, alguém deve ter se perguntado – Mas o que aqueles aviões estavam fazendo em Natal?

Enfim, a guerra na Europa já havia cessado desde abril, os combatentes da FEB e da FAB retornavam da Itália cobertos de glórias e no dia anterior os americanos haviam lançado uma superarma chamada “Bomba Atômica” na cidade japonesa de Nagasaki, depois de terem destruído dias antes e com o mesmo tipo de artefato outra cidade chamada Hiroshima!

Certamente quase ninguém em Natal sabia a razão da vinda daqueles pesados bombardeiros Lancaster, ou de quem viajavam neles. Mas um dos tripulantes era ninguém menos que Sir Arthur Harris, o comandante da toda poderosa força de bombardeiros da RAF.

Seguramente essa ainda é uma das figuras mais controversas de toda a História da Segunda Guerra Mundial. Tudo por causa das suas ordens que provocaram indiscriminados ataques aéreos contra as cidades alemãs e a morte de milhares de pessoas, a grande maioria delas civis. Certamente a ação de Harris que mais chamou a atenção do público ocorreu nos últimos dias do conflito, ao ordenar a total destruição da cidade alemã de Dresden. Um objetivo militar sem nenhuma importância concreta, repleta de refugiados que fugiam dos exércitos russos e que sofreu três dias de bombardeios devastadores.

Sir Arthur Travers Harris – Fonte – Wikipédia.

Mas o que esse homem veio fazer no Brasil e em Natal?

Um Militar Rude e Difícil, Mas que Inspirava Seus Comandados

Arthur Travers Harris nasceu em Cheltenham, sudoeste da Inglaterra, em 13 de abril de 1892. Seu pai era um engenheiro e arquiteto lotado no serviço público indiano e sua mãe uma típica dona de casa inglesa. Sua família vivia na Índia, mas Harris estudou na Inglaterra. Aos dezessete anos e contra a vontade do seu pai, largou tudo e foi para a colônia britânica da Rodésia, na África, atual Zimbábue. Ali tentou a sorte na mineração de ouro, na condução de diligências e na agricultura. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, ele se juntou ao 1º Regimento da Rodésia e lutou na vitoriosa campanha para dominar territórios alemães no sudoeste da África.

Harris retornou à Inglaterra em 1915 e decidiu se juntar ao incipiente corpo de aviadores do exército. Ali obteve sucesso como piloto, provando ser um combatente tranquilo e eficaz, sendo-lhe atribuídas cinco vitórias aéreas. Em 1918 se juntou à recém-fundada RAF como oficial de carreira e chegou a comandar um esquadrão. Foi lembrado como um oficial que buscava constantemente maneiras de aprimorar o desempenho tático e técnico de seus comandados, mas era também rigoroso e exigia altos padrões de desempenho de todos ao seu redor.

Com o fim da Primeira Guerra Harris serviu na Índia, Iraque e Irã. Durante esse período a RAF realizou bombardeios com gás e bombas de ação retardada contra as tribos iraquianas que se rebelaram contra o domínio britânico. O Comodoro do ar Lional Evelyn Oswald Charlton, chefe do Estado Maior da RAF no Iraque, ficou horrorizado ao visitar em 1924 um hospital que abrigava vítimas civis desses ataques aéreos. Ele então se opôs a essa política e passou a criticar abertamente tais ações de bombardeio, o que o levou a renunciar ao seu comando. Não descobri o quanto e como Arthur Harris participou dessas ações, mas sei que ao lhe perguntarem o que achava dos bombardeios, a sua resposta foi “-A única coisa que os árabes entendem é a força e a mão pesada“.

Entre 1928 e 29, Harris frequentou a Escola de Estado-Maior e foi tendo uma progressão normal na sua carreira. Ele defendeu abertamente a produção de bombardeiros que pudessem atingir a União Soviética. Acreditava que o comunismo era a principal ameaça à Grã-Bretanha e foi considerado um dos primeiros “Combatentes da Guerra Fria“. Acreditava também que a Inglaterra entraria em guerra contra a Alemanha Nazista e previu corretamente 1939 como o ano do início desse conflito.

Bombardeio noturno da RAF na Segunda Guerra Mundial – Fonte – Wikipédia.

Harris passou os primeiros meses da Segunda Guerra comprando aeronaves para a RAF nos Estados Unidos. Mas ele achou seu relacionamento com os americanos muito difícil. Disse a amigos que não gostava de ter que lidar com “um povo tão arrogante, que simplesmente se recusava a ouvir os conselhos técnicos dos britânicos”. Harris também reclamou que os americanos não iriam lutar, a menos que fossem empurrados para a guerra.

Em fevereiro de 1942, Harris foi chamado de volta a Londres para ser nomeado comandante em chefe do Comando de Bombardeiros. Embora muitos no Ministério da Aeronáutica o considerassem rude e inacessível, ele também era capaz de inspirar intensa lealdade naqueles que serviram com ele.

Harris herdou uma força de uns 400 bombardeiros em condições de combate e apenas um punhado eram quadrimotores novos. Nessa época as suas aeronaves eram capazes de modestos e imprecisos ataques contra áreas do oeste da Alemanha e o lançamento de inúteis panfletos com pedidos para as forças de Hitler encerrarem as suas ações de combate.

Heinkel 111, o principal bombardeiro dos alemães na Segunda Guerra, em ação nos céus da Polônia em setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.

Mas é bom que se registre que quem começou os bombardeios contra civis na Segunda Guerra foram os alemães. Aconteceu já no primeiro dia do conflito, 1º de setembro de 1939, quando Varsóvia, capital da Polônia, foi alvo de uma campanha irrestrita de bombardeios aéreos iniciados pela Luftwaffe, a força aérea nazista. Em seguida foi atacada com extrema violência a cidade de Roterdã, na Holanda, seguida de Coventry, Londres e outros centros urbanos britânicos. Isso apenas para citar alguns alvos da Luftwaffe.

Harris e seus comandados decidiram então dar o troco!

Tempestade de Fogo

Arthur Harris não foi o inventor da guerra aérea contra as cidades, nem o comandante de unidades de bombardeiros que fizeram mais vítimas na Segunda Guerra Mundial e nem sequer o criador do conceito de bombardeamento estratégico. Mas ele foi um dos primeiros oficiais generais a aplicar esse conceito.

Foi o general italiano Giulio Douhet, que argumentou em sua influente obra “O Comando do Ar“, publicada em 1921, que o bombardeio estratégico — particularmente contra populações civis e a infraestrutura existente — poderia destruir a vontade de lutar de uma nação. O italiano acreditava que, ao infligir terror e destruição suficientes do ar, o moral da população civil entraria em colapso, forçando o governo inimigo a capitular. Chamou essa prática de “a mais alta arte da guerra aérea“, que provocaria nos inimigos “o esmagamento de todas as forças materiais e morais de um povo“.

Já seu colega britânico Hugh Trenchard defendia a ideia de decidir futuras guerras pelo ar, bombardeando alvos civis na retaguarda do inimigo.

Com o desenrolar da Segunda Guerra, a RAF passou a realizar ataques noturnos, mas os resultados foram decepcionantes. As perdas continuaram inaceitáveis ​​e a precisão dos bombardeios era péssima. Harris então buscou aperfeiçoar as táticas de bombardeamento de uma forma até então inimaginável: com base em critérios cientificamente estabelecidos, sua equipe selecionou as cidades na Alemanha que poderiam ser mais facilmente incendiadas do ar, realizando o chamado “Bombardeamento de área” e sem se importar com a precisão.

Esquadrilha de Lancaster durante a Segunda Guerra.

Seus pilotos aprenderam a lançar sua carga mortal nos centros densamente povoados, com ataques que concentravam muitos bombardeiros para destruir o máximo que pudessem e sobrecarregar os serviços de uma cidade. Harris também decidiu apostar as reservas do Comando de Bombardeiros em ataques de peso sem precedentes: centenas de aeronaves contra um único objetivo.

O primeiro-ministro britânico Winston Leonard Spencer Churchill e sua equipe aérea de alto escalão acreditava que o bombardeio de área desaceleraria a produção bélica alemã, destruiria o moral da frente interna e talvez levasse a uma revolta dos trabalhadores contra o regime nazista.

Em 1942 o Comando de Bombardeiros Britânico passou a contar com a parceria da formidável Oitava Força Aérea dos Estados Unidos, com suas tripulações e seus bombardeiros quadrimotores B-17 e B-24, que uniram forças aos bombardeiros ingleses Wellington, Blenheim, Stirling, Halifax e Lancaster.

Não demorou e a destruição das cidades alemãs logo ultrapassou o alcance e a ferocidade que a Luftwaffe havia feito em Varsóvia, Roterdã, Coventry ou Londres. As cidades de Lübeck, Rostock e Colônia foram as primeiras urbes alemãs a serem quase que totalmente destruídas por bombardeios. Em Hamburgo, outra “primeira vez” foi alcançada em 1943: em uma tempestade de fogo de proporções apocalípticas, cerca de 40.000 pessoas, a maioria delas civis, morreram queimadas. Nesse período, em apenas dez dias, mais civis foram mortos na Alemanha do que na Grã-Bretanha durante toda a Segunda Guerra.

A partir do verão de 1944, a RAF e os americanos conseguiam incendiar qualquer cidade alemã do ar, como Trier, Essen, Heilbronn, Stuttgart e Darmstadt. A sequência de ataques e seus resultados são inúmeros e seria até enfadonho listá-las nesse texto.

Já sobre os quadrimotores Lancaster, pode-se considerá-lo um dos maiores aviões de guerra de todos os tempos. Transportava uma carga normal de bombas de 6.300 kg e chegou a ser utilizado por 56 esquadrões do Comando de Bombardeiros da RAF. As tripulações dos Lancaster realizaram 156.000 surtidas sobre a Europa ocupada pelos nazistas e lançaram 681.645 toneladas de bombas. Com isso ajudaram a matar cerca de 600.000 pessoas, a maioria mulheres e crianças, e mais de um terço das moradias urbanas da Alemanha foram destruídas.

Três Lancaster da RAF em 1942– Fonte – Wilipédia.

Harris compreendeu as implicações sombrias do que lhe era exigido e dedicou-se à sua tarefa ingrata e nada glamorosa com vigor e por isso ganhou o apelido de Butcher (Açougueiro). Some-se a tudo isso o fato que mais de 55.000 homens das tripulações do Comando de Bombardeiros Britânico morreram e um total de 10.321 aeronaves foram perdidas em 389.809 surtidas.

O Controverso Herói de Guerra

No entanto, como comentamos anteriormente, Arthur Harris é mais conhecido pelo bombardeio à cidade alemã de Dresden, ocorrido entre 13 e 15 de fevereiro de 1945.

Poucos dias depois desse terrível e cruel ataque, ele teria dito a um dos secretários de Churchill: “– Dresden? Esse lugar não existe mais!”

Um dos dois únicos Lancaster em condições de voo na atualidade – Fonte – Wilipédia.

Com a destruição terrivelmente eficiente da velha cidade barroca alemã, que custou a vida de 25.000 pessoas, Harris havia ultrapassado um determinado limite na barbárie. Tanto que a necessidade do ataque a Dresden tão no fim da guerra tem sido muito debatida desde então.

A questão é que, em meio ao horror da Segunda Guerra Mundial, bombardear algumas cidades matando centenas de milhares de civis para desacelerar a produção bélica não parecia algo extraordinariamente cruel, especialmente se encerrasse a guerra mais cedo. Mas, ao final da guerra, quando os alemães estavam claramente prestes a se renderem em algumas semanas ou dias, o ataque a Dresden causou indignação e muitas vozes passaram a reclamar dos ataques indiscriminados às cidades alemãs e das mortes de tantos civis.

Dresden, vista parcial do centro da cidade destruído, do outro lado do Rio Elba, até o bairro de Neustadt. No centro da imagem, estão a praça Neumarkt e as ruínas da Frauenkirche – Fonte – Bundesarchiv.

O primeiro-ministro Winston Churchill havia defendido o bombardeio da Alemanha e trabalhado em estreita colaboração com o Harris por três anos, mas em 1945 estava perpetuamente preocupado com o bombardeio de civis. Após Dresden e diante da reação indignada dos países neutros ao ataque, Churchill se distanciou do chefe do Comando de Bombardeiros, primeiro internamente e depois também em relação aos Aliados.

No fim das contas Arthur Harris nunca fez nada além de cumprir os desejos do seu Primeiro Ministro. A sua contribuição foi a consistência assassina, a determinação férrea, a crueldade para com seus próprios homens e também para com as vítimas alemãs.

O primeiro-ministro britânico Winston Churchill. 

E o que Arthur Harris fez diante das repercussões negativas e das críticas?

Deu uma esticadinha até o Brasil!

No Grande País Tropical

A razão divulgada nos jornais brasileiros para o comandante inglês sair da distante e fria Inglaterra para o nosso caliente e varonil país, seria assistir no Rio de Janeiro ao desfile da chegada do 2º escalão da Força Expedicionária Brasileira. Ao menos isso foi o que publicou com destaque os jornais cariocas, mas Harris só chegou três dias depois que nossos pracinhas da FEB desfilaram pelas ruas do Rio e ninguém explicou a razão da sua não participação!

Independente disso, no dia 25 de julho de 1945, três quadrimotores Lancasters B.III partiram da base da RAF de St. Mawgan, na Cornualha, no extremo sudoeste da Inglaterra. Eram as aeronaves com os indicativos NX687, NX688 e NX689, todas do 156 Squadron.

Os Lancaster que trouxeram Arthur Harris aop Brasil., estavam pintados com o esquema da “Tiger Force”.

Após paradas para reabastecimento e descanso em Rabat, no Marrocos, e na cidade de Bathurst, então capital da colônia inglesa da Gâmbia e atualmente conhecida como Banjul, o primeiro dos três quadrimotores ingleses chegou ao Recife na tarde do dia 27 de agosto, faltando dez minutos para as quatro horas.

Foi o Lancaster NX687 que aterrissou no Campo do Ibura, ou Ibura Field para os americanos, onde um grande número de autoridades e populares aguardava o “Grande Herói Inglês”. Mesmo depois de nove horas de voo, Harris e seu séquito só desembarcaram depois que os funcionários do Serviço Nacional da Malária dedetizaram totalmente a aeronave.

Desembarque no Campo do Ibura, em Recife.

Ao finalmente desembarcar, Harris foi recebido por Etelvino Lins de Albuquerque, Interventor Federal em Pernambuco, e pelo brigadeiro Ajalmar Vieira Mascarenhas, comandante da 2ª Zona Aérea da FAB. Depois das solenidades de praxe, seguiram em cortejo pelas ruas da capital pernambucana até o Grande Hotel, onde atualmente funciona o Fórum Thomaz de Aquino Cyrillo Wanderley, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, na Avenida Martins de Barros, 593, bairro de Santo Antônio.

Às quatro e meia chegou o segundo Lancaster e devido a um problema mecânico o terceiro avião ficou de aterrissar em Recife só no outro dia. Um dado interessante é que na chegada da segunda aeronave desembarcou no Campo do Ibura um oficial inglês alto, de boa aparência, falando português fluentemente com os oficiais brasileiros e que trazia pela mão uma criança.

Harris discursando para as autoridades brasileiras, tendo a sua esquerda o capitão da RAF Walter Pretyman como seu tradutor. A direita de Herris está o brigadeiro Eduardo Gomes.

Esse oficial era o capitão Walter Frederick Pretyman, um londrino de família pertencente ao mais fino High Society britânico, antigo estudante da Universidade de Oxford, que havia desembarcado no Brasil em 1923 e se apaixonou pelo país. Aqui Walter Pretyman morou no Rio de Janeiro, se tornou um empresário de sucesso no ramo açucareiro na cidade carioca de Campos e foi um dos fundadores da poderosa Usina Santa Cruz. Também no Rio ele foi um dos fundadores e assíduo frequentador do Gávea Golf and Country Club e um dos pioneiros do jogo de polo em nosso país[2].

Pretyman era muito ativo na alta sociedade carioca, com amizades entre muitos oficiais das forças armadas brasileiras e membros do governo de Getúlio Vargas. Com a entrada da Inglaterra na guerra ele voltou para Londres em 1942 e se alistou na RAF. Quis o destino que se tornasse um dos membros do staff de Arthur Harris no Comando de Bombardeiros e foi Pretyman que articulou a vinda deste chefe britânico ao Brasil.

Arthur Harris obsevando de binoculos uma corrida de cavalos no Jockey Club no Rio de Janeiro, tendo ao seu lado Walter Pretyman e o Ministro da Aeronáutica Salgado Filho.

Seu entrosamento com o comandante dos bombardeiros era tanto, que Harris deixou que o capitão Pretyman trouxesse no Lancaster a sua filha Cristina, nascida no Brasil e com cinco anos de idade em 1945. Nessa época Pretyman era viúvo e poucos anos depois se casaria com a paranaense Vera Sá Souto Maior.

Visitando o Rio, Petrópolis, São Paulo e Porto Alegre

No dia 28 de agosto, com a esquadrilha britânica já completa, partiram do Recife às nove da manhã em direção ao Rio de Janeiro. Na chegada fizeram um sobrevoo sobre a Cidade Maravilhosa, chamando a atenção dos cariocas e depois pousaram no Aeroporto Santos Dumont.

Quem primeiro se entendeu com Arthur Harris na pista do aeroporto foi o gaúcho Joaquim Pedro Salgado Filho, Ministro da Aeronáutica. Pelos próximos doze dias o inglês iria conhecer muita coisa no Brasil e aproveitar a estadia.

Sentados da esquerda para direita estão Donald Saint Clair Gainer, Getúlio Vargas, Arthur Harris e Salgado Filho. O capitão da RAF Walter Pretyman está em pé e de costas, atuando como tradutor. Junto com ele nessa função está o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto, visível no reflexo do espelho e com uniforme claro.

Logo Harris teve um encontro protocolar com Getúlio Vargas e os tradutores foram o capitão Walter Pretyman e o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto.

Depois o comandante inglês e Sir Donald Saint Clair Gainer, Embaixador do Reino Unido no Brasil, ofereceram as autoridades brasileiras um concorrido jantar na Embaixada Britânica.

Arthur Harris apreciando um belo churrasco, junto com o brigadeiro Appel Neto.

Em outro momento Harris participou de um evento especial no grill-room do mundialmente famoso Casino da Urca. O “grill” era um grande salão com um bem estruturado palco para apresentações e recebia grandes atrações e shows. Harris não ficou só no Rio, visitou também a cidade de Petrópolis, onde se hospedou no Hotel Quitandinha, o maior cassino hotel da América do Sul. Depois seguiu de avião para São Paulo e na sequência para Porto Alegre, onde Salgado Filho o ciceroneou na capital dos gaúchos e visitaram a Base Aérea de Canoas.

Nessas visitas, para deleite dos brasileiros, Harris deixou de lado o tradicional chá inglês e publicamente se fartou de café brasileiro de primeira qualidade.

Em nome da RAF o inglês homenageou a figura de Santos Dumont, colocando uma coroa de flores no monumento existente em frente ao terminal de passageiros do aeroporto que homenageia o nosso Pai da Aviação.

Nesse dia os quadrimotores Lancaster foram abertos para a visitação pública e o comparecimento dos cariocas foi enorme.

Como não poderia deixar de ser em se tratando de uma personalidade estrangeira, mesmo sendo um controverso herói de guerra, o governo brasileiro outorgou a Harris a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria que o Brasil concede a cidadãos estrangeiros. Mesmo sem achar que Harris merecia receber uma medalha dessas, eu até entendo as razões diplomáticas para o governo lhe entregar esse belo regalo. Só não entendi mesmo foi porque os aviadores da RAF Alan John Laird Craig, Charles Cranston Calder e Robert Martin Brown Cains foram igualmente agraciados com essa comenda[3].

Finalmente em Parnamirim Field

Na manhã de 10 de agosto duas aeronaves Lancaster da RAF decolaram para Natal, onde chagaram na parte da tarde. Não encontrei nos jornais nenhuma informação sobre o destino do terceiro avião.

Após sobrevoarem a cidade do Natal, os Lancaster aterrissaram em Parnamirim e Harris foi recebido pelo Desembargador João Dionísio Filgueira (então Interventor Federal Interino do Governo do Rio Grande do Norte)[4], o coronel norte-americano William David (Subcomandante da Divisão do Comando de Transporte Aéreo para o Atlântico Sul)[5], o coronel John M. Price (Comandante da Base Americana em Natal)[6], Jaime Wanderley (Representante de José Augusto Varela, então Prefeito de Natal), o major Salvador Roses Lizarralde (Comandante da Base Aérea de Natal) e outras autoridades brasileiras e americanas.

Em síntese a visita de Arthur Harris a Parnamirim foi rápida e pouca coisa em termos de informações eu consegui sobre o que aconteceu. Sabemos que ele percorreu as dependências da grande base, que houve um jantar no casino dos oficiais, que ele e seu séquito não vieram para Natal (pernoitaram na base) e que no outro dia pela manhã partiu para os Estados Unidos.

Apesar de parecer uma visita rápida, protocolar e simplória, o que mais me chamou a atenção foi encontrar várias declarações que Arthur Harris fez aos jornalistas brasileiros sobre a importância de Natal e sua grande base aérea para o esforço de guerra. Trago aqui duas destas declarações que foram publicadas em jornais cariocas.

Tal como muitos militares de renome e prestígio que atuaram na Segunda Guerra Mundial e estiveram em Parnamirim Field, como os generais Dwight D. Eisenhower, Mark Clark, Willis Crittenberger e outros, o inglês Arthur Harris sabia o valor daquela base e desejou conhecer esse local que ajudou as forças aliadas a ganhar a guerra contra o nazi fascismo.

As suas impressões sobre esse local eu não consegui encontrar. Mas, quem sabe, como Harris era um estrategista de mão cheia, talvez ele tenha pensado que os americanos iriam continuar por aqui depois de construir aquela cara e enorme base aérea e não entregariam nada aos brasileiros. Então, em um possível e futuro conflito contra os soviéticos, estar presente em Parnamirim Field poderia ser interessante para a RAF!

Bem, se ele assim pensou isso logo se desvaneceu, pois Harris deixou à RAF em 15 de setembro de 1945. Isso aconteceu em meio a uma disputa com o novo primeiro-ministro inglês Clement Attlee. Amargurado, ele foi viver na África.

Criminoso de Guerra?

Após a sua temporada africana e logo depois que Winston Churchill retornou ao poder na Grã Bretanha em 1951, Arthur Harris voltou ao seu país de origem.

Foi quando recebeu a oferta de ser agraciado com um título de nobreza, situação que ele recusou. Mas em 1953 aceitou um título mais modesto de baronete. No final das contas Harris nunca foi homenageado no mesmo nível de outros heróis de guerra britânicos, como os generais de exército Bernard Law Montgomery e Harold Alexander, ou comandante de caças da RAF Hugh Dowding.

Arthur Harris então se estabeleceu definitivamente com a sua família em Oxfordshire, aproveitando uma aposentadoria tranquila, porém ativa. Mas na década de 1960 a opinião pública britânica se voltou fortemente contra Harris e ele passou a ser visto por muitos como um “criminoso de guerra“.

Enfim, Arthur Harris foi um criminoso de guerra?

Não há uma resposta simples para isso: de acordo com critérios objetivos, a destruição seletiva dos centros urbanos alemães não era justificada militarmente e, portanto, era uma violação grave das leis da guerra. Por outro lado, essa violação não relativizou a culpa exclusiva de Hitler pela Segunda Guerra Mundial, nem pelos crimes de guerra da Wehrmacht e das tropas SS, e muito menos pelos assassinatos de milhões de judeus, eslavos, deficientes, homossexuais, ciganos e outros grupos de seres humanos.

Harris trabalhando no Comando de Bombardeiros.

Apesar disso, no entanto, o horror em relação à figura de Arthur Harris permaneceu. E ele ajudou bastante em tudo isso!

O ex-comandante dos bombardeiros lançou um livro com as suas memórias da Segunda Guerra. Intitulado “Bomber Offensive”, veio com muitas justificativas para as suas ações e entre estas existe a seguinte passagem: “Apesar de tudo o que aconteceu em Hamburgo, o bombardeio era um método de guerra relativamente humano“.

Arthur Harris provavelmente nunca se considerou um humanitário, mas sim um comandante militar encarregado de matar alemães, fossem eles soldados ou civis.

Quando Arthur Harris faleceu, uma aeronave Lancaster sobrevivente realizou um sobrevoo sobre o cemitério onde acontecia o sepultamento.

Faleceu discretamente no dia 5 de abril de 1984, oito dias antes de completar 92 anos. Um preservado Lancaster sobrevoou o seu sepultamento e anunciou a homenagem final da RAF ao último de seus grandes comandantes da Segunda Guerra Mundial.

Quando foi decidido erigir uma estátua de Harris do lado de fora da igreja de St. Clement Danes, em Westminster, Londres, houve amplas objeções e severas críticas.

O homem se foi, mas a controvérsia que o cercava ainda persiste.

NOTAS ————————————————————————


[1] Essas pinturas brancas existentes nesses aviões Lancaster que vieram para o Brasil foram feitas para os Avro Lancaster do Comando de Bombardeiros Britânico que estavam destinados a atacar alvos no Japão. Essa foi uma oferta de Winston Churchill aos Estados Unidos para que 40 esquadrões de Lancaster fossem disponibilizados para uso na área do Oceano Pacífico e esse grande grupo de bombardeiros foi denominado “Tiger Force”. Durante a Segunda Guerra o esquema padrão do Comando de Bombardeiros Britânico em ação na Europa era a parte inferior preta e a parte superior com tons verde e marrom. Já nos Lancaster da “Tiger Force” a parte inferior preta foi mantida, mas a parte superior foi pintada de branco para refletir o calor. Com o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão e a rendição desse país, a ideia da “Tiger Force” foi colocada de lado.

[2] Em 1926 Walter Pretyman sagrou-se campeão com a sua equipe em um badalado torneio de polo no Rio e a taça de vencedor foi entregue pelo então Presidente da República Arthur Bernardes.

[3] E ainda sobre essa história da entrega dessa comenda existe uma situação interessante. Antes da chegada de Arthur Harris ao Brasil, esteve em nosso país o general norte-americano Mark Clark, que foi o comandante do 5º Exército dos Estados Unido, que atuou na Campanha da Itália e tinha sob seu comando a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Ocorre que Clark, que inclusive nessa ocasião veio ao Brasil para assistir a chegada do 1º escalão da FEB no Rio, não recebeu essa mesma honraria e desconheço a razão disso. Clark só veio a receber essa comenda em maio de 1975, das mãos do Presidente Ernesto Geisel.

[4] Dionísio Filgueira estava recepcionando o comandante Arthur Harris em razão da ausência de Natal do general Antônio Fernandes Dantas, o Interventor Federal do Rio Grande do Norte na época.

[5] O Comando de Transporte Aéreo (em inglês Air Transport Command – ATC) era o setor da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF) que durante a Segunda Guerra Mundial organizou e operou os transportes aéreos do exército americano em todo o mundo.

[6] Essa base aérea era a famosa Parnamirim Field, que se subdividia em uma base área da força aérea do exército americano e outra da marinha dos Estados Unidos, que trabalhavam em parceria com a base aérea brasileira, a chamada Base Aérea de Natal, todas na mesma região. O coronel Price havia assumido esse posto recentemente, substituindo o coronel Léo F. Post.  

HISTÓRIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE – PARTE 2 – OS COMBATENTES

Felipe Nery de Brito Guerra – Publicada originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 228 a 239.

* Informação do Blog Tok de História – Como comentado anteriormente, busquei atualizar o centenário texto do Desembargador Felipe Guerra, sem, contudo, alterá-lo. Foi necessário também dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.. 

Entre seus filhos que mais se distinguiram por feitos militares é preciso citar que nos dois primeiros séculos da conquista, os Potiguares ILHA GRANDE, JACAÚNA, e o maior de tolos eles, Dom Antônio Felipe Camarão, chefe dessa valorosa tribo que, já em 1603, havia fornecido 800 guerreiros para pacificar os Aimorés, que se revoltaram na Bahia, e para dar fim aos Quilombos, que infestavam a região do Itapecuru, na mesma Capitania.

Retrato anônimo de Felipe Camarão, do século XVII, no Museu do Estado de Pernambuco– Fonte – Wikipedia.

Inquestionavelmente na grande crise da luta holandesa, o mais sério e grave perigo que ameaçou a integridade do Brasil, na frase de Silvio Romero, foi Camarão um dos mais valorosos generais, e o completo conhecimento que tinha, do teatro da luta, pode-se bem avaliar quão decisivo foi o papel que desempenhou na campanha. Não é esta a ocasião de escrever a vida de Camarão, já proficientemente estudada pelo desembargador Luiz Fernandes.

Cabe, porém, citar ligeiramente alguns episódios.

Camarão recebera ordens para estabelecer guerrilhas contra os holandeses entre Goiana e Itamaracá. “O terror que incutia o seu nome era tal que o general holandês Arciszewski (Krzysztof Arciszewski) saiu de propósito do Recife com mil soldados para destruir esse punhado de valentes guerrilheiros e prender seu chefe”.

Krzysztof Arciszewski- Fonte – Wikipedia.

Sobre o resultado da empresa disse o próprio general holandês: “Há mais de quarenta anos que milito na Polônia, na Alemanha e em Flandres, ocupando sem interrupção postos honrosos; mas só o índio Camarão veio abater-me o orgulho”.

Logo depois, seguiu Camarão para Alagoas guiando, através de 70 léguas de território dominado pelo inimigo, milhares de pessoas até Porto Calvo, onde se achavam as forças do general em chefe de então. Sob o comando do conde da Torre, auxiliou eficazmente a defesa da Bahia, recebendo ordens dele para percorrer os sertões hostilizando os holandeses. Portou-se de tal forma nessa excursão que, referindo se a ele, o inimigo chamou-o Anjo do extermínio.

Juntou-se depois as forças de Luiz Barbalho, que haviam desembarcado em Touros, no Rio Grande do Norte, após a derrota sofrida pela esquadra do conde da Torre, guiando essas forças, com Vidal e Henrique Dias, por ínvios sertões em luta aberta contra os inimigos até a Bahia, onde chegaram “a tempo de poder livra-la de ser atacada e tomada pelas forças do almirante Lichthart (Jan Cornelisz Lichthart), já as suas portas“. Os holandeses haviam seguido de porto a coluna sem alcança-la, vingando-se cruelmente ao matar aqueles que, doentes ou estropiados, não podiam acompanhar a heroica retirada que assim caminhou cerca de quatrocentas léguas.

Quadro que mostra os fortes na foz do Rio Paraíba, capturados pelo almirante Lichthart em 1634 – Fonte – Wikipedia.

Regressando a Pernambuco ordenou Vital a Camarão que viesse prosseguir novas hostilidades no Rio Grande do Norte e vingar, nesta parte do Brasil, tantas crueldades não só dos selvagens, como dos próprios holandeses, que se bem que cristãos de nome, mais bárbaros se haviam mostrado que os índios.

Camarão cumpriu o seu mandato muito além do que se podia esperar; e conseguindo chamar a si um grande número de índios que estavam com o inimigo, chegou a dominar todo o sertão do norte até os confins do Ceará”. Assim se exprimiu o visconde de Porto Seguro, citado pelo desembargador Luiz Fernandes, que muito judiciosamente acrescenta: Acreditamos que esse fato reduzindo a força dos Tapuias, poderosos aliados dos holandeses, foi uma das causas determinantes do seu enfraquecimento e consequente perda das suas conquistas“.

Frota de guerra holandesa – Fonte – Wikipedia.

Esse homem superior ao cansaço, lutando da Bahia ao Ceará, esse general de gênio que soube aliar o esforço e a disciplina no cumprimento do dever à coragem do soldado, à estratégia do índio, gozando da férrea resistência do selvagem, pode ser colocado ao lado de Caxias, como um dos fatores da integridade nacional, sem desdouro para este general que ocupa o ponto culminante na história militar e política do Brasil.

Não houve uma só ação, diz Fernandes Pinheiro, em que se pleiteasse a causa da liberdade, em que os batavos não sentissem o peso do seu braço, empalidecendo ao ouvir seu nome aqueles mesmos que nas águas do Zuiderzee haviam submergido os brasões de Castela.

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

Hoje, para bem se poder aquilatar o valor da intervenção de Camarão na guerra holandesa é suficiente refletir que, em uma época de arraigados preconceitos de raça, de nobreza e de religião, ele representante de selvagens, sobre os quais a qualidade de “humanos” havia sido objeto de controvérsias, recebia excepcionais distinções não só da parte dos que se achavam à frente da luta como também da parte da Côrte da Metrópole.

Assim, por carta regia de 1633 foi-lhe conferido brasão d’armas, 40$ de soldo e patente de Capitão-mor de todos os Índios do Brasil. Depois o rei da Espanha também lhe conferiu o Hábito de Cristo e o tratamento de Dom, e mais tarde foi recompensado cora a comenda lucrativa, na Ordem de Cristo dos Moinhos da Vila de Soure, em Portugal, com que eram galardoados os heróis lusitanos que se distinguiam por serviços em guerras na África, havendo excepção para Camarão, conforme diz o visconde de Porto Seguro: “Por faltarem serviços em África, ocorreram dúvidas e foi necessário dispensa da Cúria, de modo que a comenda só chegou a realizar-se a 3 de maio de 1641”.

De volta de suas excursões guerreiras, a junção de Camarão aos chefes da guerra era recebida como um desafogo. A sentinela, diz o historiador Southey, que teve a fortuna de anunciar a vinda de sete índios do regimento de Camarão, que traziam aviso da próxima chegada do seu comandante, deu Vieira dois escravos de alvissaras..

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

O Brasil ainda está em dívida para com esse seu glorioso filho: falta-lhe um monumento digno, capaz de exteriorizar a gratidão nacional para com o mais genuíno representante da raça aborígene.

E Portugal? Os holandeses chegaram a dominar até Sergipe. A política portuguesa pensou seriamente — e manifestou em acordo — reconhecer o domínio holandês. Firmado essa dominação, teria a colonização portuguesa resistido a pressão holandesa do norte para o sul; a pressão espanhola ao sul; as ambições francesas?

E se a bela língua de Camões se estende hoje a uma região cem vezes maior que Portugal, e é falada por uma população cinco vezes maior do que a do seu país de origem, deve a expulsão dos holandeses do Brasil, para qual o gênio de Dom Antônio Felipe Camarão teve preponderante e decisivo valor. Portugal acha-se assim também em dívida para com o grande Poti.

Dona Clara Camarão era mulher do índio potiguara Antônio Felipe Camarão (na gravura da direita), herói decisivo na guerra dosbrasileiros e portugueses contra o invasor holandês. Fonte – https://auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_diversidade/clara-camarao

Dona Clara Camarão, legitima esposa de Felipe Camarão, tomou parte nas lutas e acompanhou seu marido nas horas de extremo perigo, batendo-se denodadamente ao seu lado. Da grande emigração de Mathias de Albuquerque, diz a história: “Nesta penosa emigração distinguiram-se pelos seus grandes feitos militares Felipe Camarão e sua mulher Clara Camarão”.

Na revolução do 1817, como já ficou dito, não foram os feitos guerreiros que imortalizaram a gloriosa tentativa. Assim diz o Capitão Alípio Bandeira no seu completo estudo histórico — O Brasil Heroico de 1817 — “o que constitui a gloria dos heróis de 1817 é o esforço valoroso com que trabalharam pela nossa autonomia política, são as reformas verdadeiramente liberais que eles tentaram implantar no governo que estabeleceram, são a lisura e o desprendimento, a lhaneza e a tolerância, em suma — a honesta fraternidade com que invariavelmente procederam”.

Depois de abafado o movimento, nenhuma revolução no Brasil fez tantos mártires quanto a de 1817. Segundo a citada obra do Capitão Alípio Bandeira, foram fuzilados quatro patriotas, enforcados nove, supliciados em horrorosas prisões por mais de três anos e meio cerca de trezentos, e por mais de um ano cerca de duzentos!

Do Rio Grande do Norte, além do nobre chefe André de Albuquerque, estúpida e barbaramente assassinado em Natal, além de Miguelinho, o puro e evangélico mártir, ambos riograndenses, fornece a história numerosa lista de patriotas martirizados nos cárceres, sendo talvez João Francisco Fernandes Pimenta, com o ardor de seus vinte anos, a encarnação mais forte e mais ativa do guerrilheiro e lutador que, nos sertões do Rio Grande do Norte, durante meses, zombou de forças legalistas que o perseguiam.

Bênção das bandeiras da Revolução de 1817, óleo sobre tela de Antônio Parreiras– Fonte – Wikipedia.

Estudando a história da revolução de 1817 no Rio Grande do Norte, fica-se certo de que se o governador de então, José Ignacio Borges, talvez inclinado aos ideais da revolução, tivesse os mesmos sentimentos ferozes e sanguinários daqueles que dirigiram a reação em Pernambuco e Bahia, muito mais elevado teria sido o número dos mártires riograndenses.

Considerando que grande número de pessoas de destaque daquele tempo, no sertão do Rio Grande do Norte, principalmente em Portalegre, Patu, Martins, Pau dos Ferros, Apodi e Campo Grande, estiveram implicados na revolução, em comunicação direta com os chefes do movimento em Recife, é de supor, com bons fundamentos, que duas causas concorreram para diminuir o número daqueles mártires riograndenses.

A primeira foi o espirito de benevolência, de camaradagem e amizade reinante entre os sertanejos do Rio Grande do Norte, naquela época principalmente, oriundos de pequeno número de famílias, já então ligados por entrelaçamentos e afinidades, formando quase que uma só família: não houve delações; o esforço de cada um e de todos foi salvar o amigo das garras tigrinas das Juntas Militares.

O Carmelita Miguel de Almeida e Castro, conhecido como Frei Miguelinho, era potiguar de Natal e teve participação ativa na revolta de 1817 em Pernambuco. O quadro mostra seu julgamento em Salvador, onde foi condenado a morte pelo fuzilamento e a pena cumprida no dia 12 de junho de 1817. É nome de cidade em Pernambuco e muito cultuado no Rio Grande do Norte– Fonte – Wikipedia.

A segunda causa deve ser procurada na coragem nobre e santa de Miguelinho, em seu elevado espirito.

Sabendo que no dia seguinte seria encarcerado, não se abateu, não se entregou a inúteis fraquezas; passou a noite queimando papeis e documentos capazes de comprometer a sorte de seus amigos. Ao entrar em casa disse Á sua irmã em lagrimas, as memoráveis palavras: “Mana, nada de choros; estás órfã. Tenho enchido os meus dias. Logo virão buscar me para a morte; entrego te à vontade de Deus, nele terás um pai que não morre mais aproveitemos a noite. Imita-me. Ajuda-me a salvar a vida de milhares de desgraçados”.

Miguelinho durante alguns anos fora professor no Seminário de Olinda. Muitos vigários do Rio Grande do Norte haviam sido seus discípulos e, naturalmente, continuavam amigos do mestre. O seminarista José Ferreira da Motta, de Portalegre, e que então cursava o seminário de Olinda, correspondeu-se diretamente com seu pai, capitão José Ferreira da Motta. Seguiu imediatamente, disfarçado em boiadeiro a entender-se com os chefes em Recife, o sargento Mór Manoel Fernandes Pimenta. Teve assim a revolução, que depois relacionou-se com os chefes do movimento em Natal, fortes ramificações pelo sertão. Não foram relativamente numerosos os sertanejos que padeceram nos cárceres. É de supor que a noite de vigília de Miguelinho, queimando papeis, o amargurado Horto da vítima votada ao sacrifício, tenha redimido muito sofrimento e evitado muita lagrima em seu torrão natal.

Quadro de um combate de forças de cavalaria, como os que ocorreram durante a Guerra do Paraguai – Fonte – Wikipedia.

Durante a guerra do Paraguai foram inúmeros os contingentes enviados do Rio Grande do Norte. Muitos de seus filhos lá cumpriram o seu dever, derramaram o sangue, perderam a vida. Entre os riograndenses, já mortos (em 1927), que ocuparam postos de destaque no Exército, acham-se:

– José Xavier Garcia de Almeida, engenheiro militar e brigadeiro José Correia Telles, natural do Assú, praça em 1856, fez toda a campanha do Paraguai a começar pela do Uruguai. Cavaleiro da Ordem de Aviz, recebeu a medalha argentina da comemoração da guerra. Fez parte da junta governativa de Alagoas em 1891, Coronel em 1894, foi reformado como general em 1897 e faleceu no mesmo ano.

Nota sobre José Pedro de Oliveira Galvão após a Guerra do Paraguai.

– José Pedro de Oliveira Galvão, praça em 1862. coronel efetivo em 1895. Fez a campanha do Paraguai. Senador pelo Rio Grande do Norte, por seis anos, faleceu em 1896.

Coronel Fonseca e Silva, anos após a Guerra do Paraguai– Fonte – Wikipedia.

– Francisco Victor da Fonseca e Silva, natural de São Gonçalo, praça em 1865, reformou-se com a graduação de general de divisão, vindo a falecer em 1905. Fez também a campanha do Paraguai. Como comandante da força policial da então Província do Rio de Janeiro foi um dos auxiliares da revolução de 15 de novembro de 1889. Foi deputado à Constituinte Republicana pelo Estado do Rio de Janeiro, e, ainda, deputado da primeira legislatura da Câmara Federal pelo mesmo Estado. Eleito, depois, deputado pelo Rio Grande do Norte, representou este Estado na quarta e quintas legislaturas.

– Antônio da Rocha Bezerra Cavalcante, fez com distinção, a campanha do Paraguai, falecendo no posto de general, reformado.

Foto de combatentes da Guerra do Paraguai. O terceiro sentado da esquerda para a direita, é o Coronel Joca Tavares e seus auxiliares imediatos, incluindo José Francisco Lacerda, mais conhecido como “Chico Diabo” (terceiro em pé, da esquerda para a direita), que matou o ditador paraguaio Solano Lopez. Imagem: Wikipedia, Domínio Público. In: Salles, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003. ISBN 85-333-0264-9 (p.180)

– Francisco de Paula Moreira. Fez a campanha do Paraguai. Tomou parte na organização republicana do Estado, como deputado à Constituinte. Faleceu no posto de Coronel, reformado.

Antônio Florêncio Pereira do Lago

– Antônio Florêncio Pereira do Lago. Foi um distintíssimo rio-grandense-do-norte que morreu no posto de coronel, reformado. Nascido em 1827, bacharelou se em ciências físicas e matemáticas e pertenceu ao corpo do Estado-Maior de primeira classe. Oficial da Ordem da Rosa, cavaleiro da Ordem de Cristo e da de São Bento de Aviz, foi condecorado, ainda, com a medalha da campanha do Uruguay em 1851 e com a da guerra do Paraguai. Exerceu com brilho comissões do Ministério da Guerra e do da Agricultura. Por ordem do Governo fundou a colônia do Alto Uruguai.

Escreveu várias obras e trabalhos oficiais, entre os quais “Relatório dos estudos da comissão exploradora dos rios Tocantins e Araguaia”. Ilustre e esquecido brasileiro que honra a sua pátria e é uma legitima glória de sua corporação. O visconde de Taunay traçou o retrato de sua personalidade: “Lago, isto é, a prudência, a força, a reflexão, o sentimento apurado de dever; Lago, a personificação do bom senso, mas, ao mesmo tempo, a tenacidade levada ao extremo da teima. Alto, gordo, então simples capitão, mas com proporções para ser general, tem ele fisionomia, franca e simpática. Possui inteligência, ilustração e, sobretudo, consciência. Reto e leal, é amigo as deveras, mas também inimigo decidido”.

No posto de capitão de engenheiros fez parte do Corpo de Exercito que seguiu para Mato Grosso, e que escreveu a heroica e dolorosa pagina que é a Retirada de Laguna. O visconde de Taunay escreveu que a expedição de Mato Grosso escapou de completo aniquilamento devido á energia e ao estoicismo de Pereira do Lago que, nos momentos mais cheios de angustia, perigo e desalento, conseguia com seu exemplo, sua calma e coragem, levantar o espirito de todos. “Oficial do maior valor moral, nunca foi apreciado na medida de seus méritos”, ainda repetia Taunay, em 1896, em seu livro “Viagens de Outrora”.

Pereira do Lago faleceu na idade de 65 anos, no posto de coronel, reformado, 1º de janeiro de 1892.

– Padre Amaro Theó Castor Brasil, que seguiu de Campo Grande (RN) com mais dois irmãos e dois parentes para o Paraguai, onde fizeram toda a campanha como Voluntários da Pátria, e voltaram como oficiais. Um deles, José Lucas Barbosa prestou depois valiosos serviços nas3 lutas e na organização do Acre, onde foi comandante da Guarda Nacional.

– Ulysses Olegário Lins Caldas e João Percival Luiz Caldas, eram irmãos, ambos do Assú, seguiram como Voluntários da Pátria para o Paraguai. O primeiro, ardente e destemido jovem de 18 anos, encetou seus passos na campanha como herói, e assim continuou até cair fulminado por uma bala no coração, nas avançadas de Curuzu, em novembro de 1866. Galgando trincheiras inimigas, arrebatando canhões, morreu pouco depois de completar vinte anos e alcançara o posto de tenente e por distinção o Hábito de Cavalleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. A ordem do dia do Exército em campanha, de 4 de setembro de 1866, referindo-se ao assalto de Curuzu, citando o nome de alguns oficiais, diz: “…que quais leões, se lançaram sobre as baterias inimigas, chegando ao ponto de subir sobre sua artilharia, como fez este último oficial, com uma intrepidez que a todos surpreendeu”. Este último oficial, que “a todos surpreendeu com sua intrepidez” era, na citação, Ulysses Caldas.

O Barão de Porto Alegre liderando as tropas em Curuzu, pintura de Victor Meirelles– Fonte – Wikipedia.

– Alexandre Baraúna Mossoró. Filho da cidade de Mossoró, humílimo e obscuro herói, soldado da quinta companhia do terceiro batalhão de infantaria, fez a campanha do Uruguai. Tomou parte no assalto de Paissandu. Ferido, continuou a bater-se encarniçadamente. Novo ferimento lhe vasou uma vista; mandam-no retirar-se do combate e ele continua a bater-se. Terceiro ferimento inutiliza-lhe o braço direito. Empunha então a arma com a mão esquerda, pois “com o canhoto ainda pôde dar uma lição aos gringos“, conforme grita ao comandante; escala a trincheira e cai lutando ainda, do lado oposto, em meio dos inimigos, sendo então morto! O seu comandante cerca de veneração o cadáver do herói. Ao espirar, vêm-lhe à lembrança sua mãe e seu torrão natal: “minha mãe… viva o Mossoró!…” Indômito filho do povo não menos herói, mais infeliz, porém, do que o corneta Jesus ainda não teve a consagração condigna, nem mesmo da poesia, a imortalizar lhe o nome!

– Ponciano Souto, natural do Assú, Voluntário da Pátria que fez toda a campanha do Paraguai, voltando como capitão, e faleceu em 1882, em Bananal, São Paulo, como tabelião vitalício.

João Mafaldo, do Martins, alferes, morto no assalto à cidadela de Canudos.

Nota sobre o batalhão de potiguares na Guerra de Canudos, no Jornal “A República”, 10 de dezembro de 1897.

José da Penha, de Angicos, sincero republicano, escritor, polemista e tribuno, absorvido e sacrificado, infelizmente, pela politicagem que o vitimou no posto de capitão, a 19 de fevereiro de 1914, em Iguatu (Ceará).

Theophilo Guerra, jornalista, e cronista das secas. Quando cadete em Minas Geraes, levantou uma “questão militar,’ não se sujeitando, em serviço local, ao cominando de oficial de polícia. Submetido, então, a conselho de guerra, foi absolvido. Faleceu no posto de alferes..

São esses os traços gerais da história militar do Rio Grande do Norte, que poderia comportar largo desenvolvimento, mas não é possível em ligeira “introdução” nomear todos aqueles, numerosos, que no cumprimento do dever, souberam honrar a Pátria.

As figuras culminantes desta história são — Camarão, Pereira do Lago e o obscuro soldado Baraúna Mossoró. Sofredores, incansáveis, superiores ao desalento e aos revezes, tenazes na luta, devotados, estoicos, são bem tipos representativos desta população martirizada pelas secas, oferecendo sempre sobre humana e tenaz resistência a desapiedados golpes da natureza, sem abandonar o ingrato e querido solo, que, afinal, será conquistado.

FELIPE GUERRA.

Agosto—1920. (Socio effectivo)