A VISITA DO “AÇOUGUEIRO” ARTHUR HARRIS A NATAL E AO BRASIL

O Que Uma Das Mais Controvertidas Figuras da Segunda Guerra Mundial, Tido Por Muitos Como Um Implacável e Sanguinário Criminoso de Guerra, Veio Fazer em Nosso País e em Parnamirim Field?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros  

Na tarde do dia 10 de agosto de 1945, uma bela sexta-feira de sol, o povo da cidade do Natal foi surpreendido pelo sobrevoo de duas grandes aeronaves estranhas e bastante chamativas.

E observem que durante grande parte da Segunda Guerra Mundial, os natalenses testemunharam a passagem de milhares de aeronaves envolvidas naquele conflito e nessa época pouca coisa que voava ainda chamaria a atenção dos que aqui viviam. Mas aqueles dois aviões certamente fizeram as pessoas olharem para o céu!

Eles eram grandes quadrimotores, com duas grandes aletas elípticas na cauda onde ficavam os lemes que as guiavam. A parte de baixo das aeronaves era pintada de negro e na parte superior eram totalmente brancas[1]. Voando em um dia claro como aquele, aquelas aeronaves se destacaram bastante na paisagem.

Mas certamente para os natalenses que testemunharam o voo daqueles colossos aéreos, uma das coisas que mais deve ter chamado à atenção foi o ronco dos quatro motores que cada um daqueles majestosos aviões emitia. Pois era o inconfundível som dos motores Rolls-Royce Merlin, que equiparam e fizeram a fama de aeronaves inglesas como os caças Supermarine Spitfire e De Havilland Mosquito, além dos bombardeiros Vickers Wellington, Handley Page Halifax e os pesados Avro Lancaster. E as aeronaves que sobrevoaram Natal naquela sexta feira eram dois originais quadrimotores Avro Lancaster da RAF (Royal Air Force).

Bem, alguém deve ter se perguntado – Mas o que aqueles aviões estavam fazendo em Natal?

Enfim, a guerra na Europa já havia cessado desde abril, os combatentes da FEB e da FAB retornavam da Itália cobertos de glórias e no dia anterior os americanos haviam lançado uma superarma chamada “Bomba Atômica” na cidade japonesa de Nagasaki, depois de terem destruído dias antes e com o mesmo tipo de artefato outra cidade chamada Hiroshima!

Certamente quase ninguém em Natal sabia a razão da vinda daqueles pesados bombardeiros Lancaster, ou de quem viajavam neles. Mas um dos tripulantes era ninguém menos que Sir Arthur Harris, o comandante da toda poderosa força de bombardeiros da RAF.

Seguramente essa ainda é uma das figuras mais controversas de toda a História da Segunda Guerra Mundial. Tudo por causa das suas ordens que provocaram indiscriminados ataques aéreos contra as cidades alemãs e a morte de milhares de pessoas, a grande maioria delas civis. Certamente a ação de Harris que mais chamou a atenção do público ocorreu nos últimos dias do conflito, ao ordenar a total destruição da cidade alemã de Dresden. Um objetivo militar sem nenhuma importância concreta, repleta de refugiados que fugiam dos exércitos russos e que sofreu três dias de bombardeios devastadores.

Sir Arthur Travers Harris – Fonte – Wikipédia.

Mas o que esse homem veio fazer no Brasil e em Natal?

Um Militar Rude e Difícil, Mas que Inspirava Seus Comandados

Arthur Travers Harris nasceu em Cheltenham, sudoeste da Inglaterra, em 13 de abril de 1892. Seu pai era um engenheiro e arquiteto lotado no serviço público indiano e sua mãe uma típica dona de casa inglesa. Sua família vivia na Índia, mas Harris estudou na Inglaterra. Aos dezessete anos e contra a vontade do seu pai, largou tudo e foi para a colônia britânica da Rodésia, na África, atual Zimbábue. Ali tentou a sorte na mineração de ouro, na condução de diligências e na agricultura. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, ele se juntou ao 1º Regimento da Rodésia e lutou na vitoriosa campanha para dominar territórios alemães no sudoeste da África.

Harris retornou à Inglaterra em 1915 e decidiu se juntar ao incipiente corpo de aviadores do exército. Ali obteve sucesso como piloto, provando ser um combatente tranquilo e eficaz, sendo-lhe atribuídas cinco vitórias aéreas. Em 1918 se juntou à recém-fundada RAF como oficial de carreira e chegou a comandar um esquadrão. Foi lembrado como um oficial que buscava constantemente maneiras de aprimorar o desempenho tático e técnico de seus comandados, mas era também rigoroso e exigia altos padrões de desempenho de todos ao seu redor.

Com o fim da Primeira Guerra Harris serviu na Índia, Iraque e Irã. Durante esse período a RAF realizou bombardeios com gás e bombas de ação retardada contra as tribos iraquianas que se rebelaram contra o domínio britânico. O Comodoro do ar Lional Evelyn Oswald Charlton, chefe do Estado Maior da RAF no Iraque, ficou horrorizado ao visitar em 1924 um hospital que abrigava vítimas civis desses ataques aéreos. Ele então se opôs a essa política e passou a criticar abertamente tais ações de bombardeio, o que o levou a renunciar ao seu comando. Não descobri o quanto e como Arthur Harris participou dessas ações, mas sei que ao lhe perguntarem o que achava dos bombardeios, a sua resposta foi “-A única coisa que os árabes entendem é a força e a mão pesada“.

Entre 1928 e 29, Harris frequentou a Escola de Estado-Maior e foi tendo uma progressão normal na sua carreira. Ele defendeu abertamente a produção de bombardeiros que pudessem atingir a União Soviética. Acreditava que o comunismo era a principal ameaça à Grã-Bretanha e foi considerado um dos primeiros “Combatentes da Guerra Fria“. Acreditava também que a Inglaterra entraria em guerra contra a Alemanha Nazista e previu corretamente 1939 como o ano do início desse conflito.

Bombardeio noturno da RAF na Segunda Guerra Mundial – Fonte – Wikipédia.

Harris passou os primeiros meses da Segunda Guerra comprando aeronaves para a RAF nos Estados Unidos. Mas ele achou seu relacionamento com os americanos muito difícil. Disse a amigos que não gostava de ter que lidar com “um povo tão arrogante, que simplesmente se recusava a ouvir os conselhos técnicos dos britânicos”. Harris também reclamou que os americanos não iriam lutar, a menos que fossem empurrados para a guerra.

Em fevereiro de 1942, Harris foi chamado de volta a Londres para ser nomeado comandante em chefe do Comando de Bombardeiros. Embora muitos no Ministério da Aeronáutica o considerassem rude e inacessível, ele também era capaz de inspirar intensa lealdade naqueles que serviram com ele.

Harris herdou uma força de uns 400 bombardeiros em condições de combate e apenas um punhado eram quadrimotores novos. Nessa época as suas aeronaves eram capazes de modestos e imprecisos ataques contra áreas do oeste da Alemanha e o lançamento de inúteis panfletos com pedidos para as forças de Hitler encerrarem as suas ações de combate.

Heinkel 111, o principal bombardeiro dos alemães na Segunda Guerra, em ação nos céus da Polônia em setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.

Mas é bom que se registre que quem começou os bombardeios contra civis na Segunda Guerra foram os alemães. Aconteceu já no primeiro dia do conflito, 1º de setembro de 1939, quando Varsóvia, capital da Polônia, foi alvo de uma campanha irrestrita de bombardeios aéreos iniciados pela Luftwaffe, a força aérea nazista. Em seguida foi atacada com extrema violência a cidade de Roterdã, na Holanda, seguida de Coventry, Londres e outros centros urbanos britânicos. Isso apenas para citar alguns alvos da Luftwaffe.

Harris e seus comandados decidiram então dar o troco!

Tempestade de Fogo

Arthur Harris não foi o inventor da guerra aérea contra as cidades, nem o comandante de unidades de bombardeiros que fizeram mais vítimas na Segunda Guerra Mundial e nem sequer o criador do conceito de bombardeamento estratégico. Mas ele foi um dos primeiros oficiais generais a aplicar esse conceito.

Foi o general italiano Giulio Douhet, que argumentou em sua influente obra “O Comando do Ar“, publicada em 1921, que o bombardeio estratégico — particularmente contra populações civis e a infraestrutura existente — poderia destruir a vontade de lutar de uma nação. O italiano acreditava que, ao infligir terror e destruição suficientes do ar, o moral da população civil entraria em colapso, forçando o governo inimigo a capitular. Chamou essa prática de “a mais alta arte da guerra aérea“, que provocaria nos inimigos “o esmagamento de todas as forças materiais e morais de um povo“.

Já seu colega britânico Hugh Trenchard defendia a ideia de decidir futuras guerras pelo ar, bombardeando alvos civis na retaguarda do inimigo.

Com o desenrolar da Segunda Guerra, a RAF passou a realizar ataques noturnos, mas os resultados foram decepcionantes. As perdas continuaram inaceitáveis ​​e a precisão dos bombardeios era péssima. Harris então buscou aperfeiçoar as táticas de bombardeamento de uma forma até então inimaginável: com base em critérios cientificamente estabelecidos, sua equipe selecionou as cidades na Alemanha que poderiam ser mais facilmente incendiadas do ar, realizando o chamado “Bombardeamento de área” e sem se importar com a precisão.

Esquadrilha de Lancaster durante a Segunda Guerra.

Seus pilotos aprenderam a lançar sua carga mortal nos centros densamente povoados, com ataques que concentravam muitos bombardeiros para destruir o máximo que pudessem e sobrecarregar os serviços de uma cidade. Harris também decidiu apostar as reservas do Comando de Bombardeiros em ataques de peso sem precedentes: centenas de aeronaves contra um único objetivo.

O primeiro-ministro britânico Winston Leonard Spencer Churchill e sua equipe aérea de alto escalão acreditava que o bombardeio de área desaceleraria a produção bélica alemã, destruiria o moral da frente interna e talvez levasse a uma revolta dos trabalhadores contra o regime nazista.

Em 1942 o Comando de Bombardeiros Britânico passou a contar com a parceria da formidável Oitava Força Aérea dos Estados Unidos, com suas tripulações e seus bombardeiros quadrimotores B-17 e B-24, que uniram forças aos bombardeiros ingleses Wellington, Blenheim, Stirling, Halifax e Lancaster.

Não demorou e a destruição das cidades alemãs logo ultrapassou o alcance e a ferocidade que a Luftwaffe havia feito em Varsóvia, Roterdã, Coventry ou Londres. As cidades de Lübeck, Rostock e Colônia foram as primeiras urbes alemãs a serem quase que totalmente destruídas por bombardeios. Em Hamburgo, outra “primeira vez” foi alcançada em 1943: em uma tempestade de fogo de proporções apocalípticas, cerca de 40.000 pessoas, a maioria delas civis, morreram queimadas. Nesse período, em apenas dez dias, mais civis foram mortos na Alemanha do que na Grã-Bretanha durante toda a Segunda Guerra.

A partir do verão de 1944, a RAF e os americanos conseguiam incendiar qualquer cidade alemã do ar, como Trier, Essen, Heilbronn, Stuttgart e Darmstadt. A sequência de ataques e seus resultados são inúmeros e seria até enfadonho listá-las nesse texto.

Já sobre os quadrimotores Lancaster, pode-se considerá-lo um dos maiores aviões de guerra de todos os tempos. Transportava uma carga normal de bombas de 6.300 kg e chegou a ser utilizado por 56 esquadrões do Comando de Bombardeiros da RAF. As tripulações dos Lancaster realizaram 156.000 surtidas sobre a Europa ocupada pelos nazistas e lançaram 681.645 toneladas de bombas. Com isso ajudaram a matar cerca de 600.000 pessoas, a maioria mulheres e crianças, e mais de um terço das moradias urbanas da Alemanha foram destruídas.

Três Lancaster da RAF em 1942– Fonte – Wilipédia.

Harris compreendeu as implicações sombrias do que lhe era exigido e dedicou-se à sua tarefa ingrata e nada glamorosa com vigor e por isso ganhou o apelido de Butcher (Açougueiro). Some-se a tudo isso o fato que mais de 55.000 homens das tripulações do Comando de Bombardeiros Britânico morreram e um total de 10.321 aeronaves foram perdidas em 389.809 surtidas.

O Controverso Herói de Guerra

No entanto, como comentamos anteriormente, Arthur Harris é mais conhecido pelo bombardeio à cidade alemã de Dresden, ocorrido entre 13 e 15 de fevereiro de 1945.

Poucos dias depois desse terrível e cruel ataque, ele teria dito a um dos secretários de Churchill: “– Dresden? Esse lugar não existe mais!”

Um dos dois únicos Lancaster em condições de voo na atualidade – Fonte – Wilipédia.

Com a destruição terrivelmente eficiente da velha cidade barroca alemã, que custou a vida de 25.000 pessoas, Harris havia ultrapassado um determinado limite na barbárie. Tanto que a necessidade do ataque a Dresden tão no fim da guerra tem sido muito debatida desde então.

A questão é que, em meio ao horror da Segunda Guerra Mundial, bombardear algumas cidades matando centenas de milhares de civis para desacelerar a produção bélica não parecia algo extraordinariamente cruel, especialmente se encerrasse a guerra mais cedo. Mas, ao final da guerra, quando os alemães estavam claramente prestes a se renderem em algumas semanas ou dias, o ataque a Dresden causou indignação e muitas vozes passaram a reclamar dos ataques indiscriminados às cidades alemãs e das mortes de tantos civis.

Dresden, vista parcial do centro da cidade destruído, do outro lado do Rio Elba, até o bairro de Neustadt. No centro da imagem, estão a praça Neumarkt e as ruínas da Frauenkirche – Fonte – Bundesarchiv.

O primeiro-ministro Winston Churchill havia defendido o bombardeio da Alemanha e trabalhado em estreita colaboração com o Harris por três anos, mas em 1945 estava perpetuamente preocupado com o bombardeio de civis. Após Dresden e diante da reação indignada dos países neutros ao ataque, Churchill se distanciou do chefe do Comando de Bombardeiros, primeiro internamente e depois também em relação aos Aliados.

No fim das contas Arthur Harris nunca fez nada além de cumprir os desejos do seu Primeiro Ministro. A sua contribuição foi a consistência assassina, a determinação férrea, a crueldade para com seus próprios homens e também para com as vítimas alemãs.

O primeiro-ministro britânico Winston Churchill. 

E o que Arthur Harris fez diante das repercussões negativas e das críticas?

Deu uma esticadinha até o Brasil!

No Grande País Tropical

A razão divulgada nos jornais brasileiros para o comandante inglês sair da distante e fria Inglaterra para o nosso caliente e varonil país, seria assistir no Rio de Janeiro ao desfile da chegada do 2º escalão da Força Expedicionária Brasileira. Ao menos isso foi o que publicou com destaque os jornais cariocas, mas Harris só chegou três dias depois que nossos pracinhas da FEB desfilaram pelas ruas do Rio e ninguém explicou a razão da sua não participação!

Independente disso, no dia 25 de julho de 1945, três quadrimotores Lancasters B.III partiram da base da RAF de St. Mawgan, na Cornualha, no extremo sudoeste da Inglaterra. Eram as aeronaves com os indicativos NX687, NX688 e NX689, todas do 156 Squadron.

Os Lancaster que trouxeram Arthur Harris aop Brasil., estavam pintados com o esquema da “Tiger Force”.

Após paradas para reabastecimento e descanso em Rabat, no Marrocos, e na cidade de Bathurst, então capital da colônia inglesa da Gâmbia e atualmente conhecida como Banjul, o primeiro dos três quadrimotores ingleses chegou ao Recife na tarde do dia 27 de agosto, faltando dez minutos para as quatro horas.

Foi o Lancaster NX687 que aterrissou no Campo do Ibura, ou Ibura Field para os americanos, onde um grande número de autoridades e populares aguardava o “Grande Herói Inglês”. Mesmo depois de nove horas de voo, Harris e seu séquito só desembarcaram depois que os funcionários do Serviço Nacional da Malária dedetizaram totalmente a aeronave.

Desembarque no Campo do Ibura, em Recife.

Ao finalmente desembarcar, Harris foi recebido por Etelvino Lins de Albuquerque, Interventor Federal em Pernambuco, e pelo brigadeiro Ajalmar Vieira Mascarenhas, comandante da 2ª Zona Aérea da FAB. Depois das solenidades de praxe, seguiram em cortejo pelas ruas da capital pernambucana até o Grande Hotel, onde atualmente funciona o Fórum Thomaz de Aquino Cyrillo Wanderley, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, na Avenida Martins de Barros, 593, bairro de Santo Antônio.

Às quatro e meia chegou o segundo Lancaster e devido a um problema mecânico o terceiro avião ficou de aterrissar em Recife só no outro dia. Um dado interessante é que na chegada da segunda aeronave desembarcou no Campo do Ibura um oficial inglês alto, de boa aparência, falando português fluentemente com os oficiais brasileiros e que trazia pela mão uma criança.

Harris discursando para as autoridades brasileiras, tendo a sua esquerda o capitão da RAF Walter Pretyman como seu tradutor. A direita de Herris está o brigadeiro Eduardo Gomes.

Esse oficial era o capitão Walter Frederick Pretyman, um londrino de família pertencente ao mais fino High Society britânico, antigo estudante da Universidade de Oxford, que havia desembarcado no Brasil em 1923 e se apaixonou pelo país. Aqui Walter Pretyman morou no Rio de Janeiro, se tornou um empresário de sucesso no ramo açucareiro na cidade carioca de Campos e foi um dos fundadores da poderosa Usina Santa Cruz. Também no Rio ele foi um dos fundadores e assíduo frequentador do Gávea Golf and Country Club e um dos pioneiros do jogo de polo em nosso país[2].

Pretyman era muito ativo na alta sociedade carioca, com amizades entre muitos oficiais das forças armadas brasileiras e membros do governo de Getúlio Vargas. Com a entrada da Inglaterra na guerra ele voltou para Londres em 1942 e se alistou na RAF. Quis o destino que se tornasse um dos membros do staff de Arthur Harris no Comando de Bombardeiros e foi Pretyman que articulou a vinda deste chefe britânico ao Brasil.

Arthur Harris obsevando de binoculos uma corrida de cavalos no Jockey Club no Rio de Janeiro, tendo ao seu lado Walter Pretyman e o Ministro da Aeronáutica Salgado Filho.

Seu entrosamento com o comandante dos bombardeiros era tanto, que Harris deixou que o capitão Pretyman trouxesse no Lancaster a sua filha Cristina, nascida no Brasil e com cinco anos de idade em 1945. Nessa época Pretyman era viúvo e poucos anos depois se casaria com a paranaense Vera Sá Souto Maior.

Visitando o Rio, Petrópolis, São Paulo e Porto Alegre

No dia 28 de agosto, com a esquadrilha britânica já completa, partiram do Recife às nove da manhã em direção ao Rio de Janeiro. Na chegada fizeram um sobrevoo sobre a Cidade Maravilhosa, chamando a atenção dos cariocas e depois pousaram no Aeroporto Santos Dumont.

Quem primeiro se entendeu com Arthur Harris na pista do aeroporto foi o gaúcho Joaquim Pedro Salgado Filho, Ministro da Aeronáutica. Pelos próximos doze dias o inglês iria conhecer muita coisa no Brasil e aproveitar a estadia.

Sentados da esquerda para direita estão Donald Saint Clair Gainer, Getúlio Vargas, Arthur Harris e Salgado Filho. O capitão da RAF Walter Pretyman está em pé e de costas, atuando como tradutor. Junto com ele nessa função está o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto, visível no reflexo do espelho e com uniforme claro.

Logo Harris teve um encontro protocolar com Getúlio Vargas e os tradutores foram o capitão Walter Pretyman e o brigadeiro da FAB Antônio Appel Neto.

Depois o comandante inglês e Sir Donald Saint Clair Gainer, Embaixador do Reino Unido no Brasil, ofereceram as autoridades brasileiras um concorrido jantar na Embaixada Britânica.

Arthur Harris apreciando um belo churrasco, junto com o brigadeiro Appel Neto.

Em outro momento Harris participou de um evento especial no grill-room do mundialmente famoso Casino da Urca. O “grill” era um grande salão com um bem estruturado palco para apresentações e recebia grandes atrações e shows. Harris não ficou só no Rio, visitou também a cidade de Petrópolis, onde se hospedou no Hotel Quitandinha, o maior cassino hotel da América do Sul. Depois seguiu de avião para São Paulo e na sequência para Porto Alegre, onde Salgado Filho o ciceroneou na capital dos gaúchos e visitaram a Base Aérea de Canoas.

Nessas visitas, para deleite dos brasileiros, Harris deixou de lado o tradicional chá inglês e publicamente se fartou de café brasileiro de primeira qualidade.

Em nome da RAF o inglês homenageou a figura de Santos Dumont, colocando uma coroa de flores no monumento existente em frente ao terminal de passageiros do aeroporto que homenageia o nosso Pai da Aviação.

Nesse dia os quadrimotores Lancaster foram abertos para a visitação pública e o comparecimento dos cariocas foi enorme.

Como não poderia deixar de ser em se tratando de uma personalidade estrangeira, mesmo sendo um controverso herói de guerra, o governo brasileiro outorgou a Harris a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria que o Brasil concede a cidadãos estrangeiros. Mesmo sem achar que Harris merecia receber uma medalha dessas, eu até entendo as razões diplomáticas para o governo lhe entregar esse belo regalo. Só não entendi mesmo foi porque os aviadores da RAF Alan John Laird Craig, Charles Cranston Calder e Robert Martin Brown Cains foram igualmente agraciados com essa comenda[3].

Finalmente em Parnamirim Field

Na manhã de 10 de agosto duas aeronaves Lancaster da RAF decolaram para Natal, onde chagaram na parte da tarde. Não encontrei nos jornais nenhuma informação sobre o destino do terceiro avião.

Após sobrevoarem a cidade do Natal, os Lancaster aterrissaram em Parnamirim e Harris foi recebido pelo Desembargador João Dionísio Filgueira (então Interventor Federal Interino do Governo do Rio Grande do Norte)[4], o coronel norte-americano William David (Subcomandante da Divisão do Comando de Transporte Aéreo para o Atlântico Sul)[5], o coronel John M. Price (Comandante da Base Americana em Natal)[6], Jaime Wanderley (Representante de José Augusto Varela, então Prefeito de Natal), o major Salvador Roses Lizarralde (Comandante da Base Aérea de Natal) e outras autoridades brasileiras e americanas.

Em síntese a visita de Arthur Harris a Parnamirim foi rápida e pouca coisa em termos de informações eu consegui sobre o que aconteceu. Sabemos que ele percorreu as dependências da grande base, que houve um jantar no casino dos oficiais, que ele e seu séquito não vieram para Natal (pernoitaram na base) e que no outro dia pela manhã partiu para os Estados Unidos.

Apesar de parecer uma visita rápida, protocolar e simplória, o que mais me chamou a atenção foi encontrar várias declarações que Arthur Harris fez aos jornalistas brasileiros sobre a importância de Natal e sua grande base aérea para o esforço de guerra. Trago aqui duas destas declarações que foram publicadas em jornais cariocas.

Tal como muitos militares de renome e prestígio que atuaram na Segunda Guerra Mundial e estiveram em Parnamirim Field, como os generais Dwight D. Eisenhower, Mark Clark, Willis Crittenberger e outros, o inglês Arthur Harris sabia o valor daquela base e desejou conhecer esse local que ajudou as forças aliadas a ganhar a guerra contra o nazi fascismo.

As suas impressões sobre esse local eu não consegui encontrar. Mas, quem sabe, como Harris era um estrategista de mão cheia, talvez ele tenha pensado que os americanos iriam continuar por aqui depois de construir aquela cara e enorme base aérea e não entregariam nada aos brasileiros. Então, em um possível e futuro conflito contra os soviéticos, estar presente em Parnamirim Field poderia ser interessante para a RAF!

Bem, se ele assim pensou isso logo se desvaneceu, pois Harris deixou à RAF em 15 de setembro de 1945. Isso aconteceu em meio a uma disputa com o novo primeiro-ministro inglês Clement Attlee. Amargurado, ele foi viver na África.

Criminoso de Guerra?

Após a sua temporada africana e logo depois que Winston Churchill retornou ao poder na Grã Bretanha em 1951, Arthur Harris voltou ao seu país de origem.

Foi quando recebeu a oferta de ser agraciado com um título de nobreza, situação que ele recusou. Mas em 1953 aceitou um título mais modesto de baronete. No final das contas Harris nunca foi homenageado no mesmo nível de outros heróis de guerra britânicos, como os generais de exército Bernard Law Montgomery e Harold Alexander, ou comandante de caças da RAF Hugh Dowding.

Arthur Harris então se estabeleceu definitivamente com a sua família em Oxfordshire, aproveitando uma aposentadoria tranquila, porém ativa. Mas na década de 1960 a opinião pública britânica se voltou fortemente contra Harris e ele passou a ser visto por muitos como um “criminoso de guerra“.

Enfim, Arthur Harris foi um criminoso de guerra?

Não há uma resposta simples para isso: de acordo com critérios objetivos, a destruição seletiva dos centros urbanos alemães não era justificada militarmente e, portanto, era uma violação grave das leis da guerra. Por outro lado, essa violação não relativizou a culpa exclusiva de Hitler pela Segunda Guerra Mundial, nem pelos crimes de guerra da Wehrmacht e das tropas SS, e muito menos pelos assassinatos de milhões de judeus, eslavos, deficientes, homossexuais, ciganos e outros grupos de seres humanos.

Harris trabalhando no Comando de Bombardeiros.

Apesar disso, no entanto, o horror em relação à figura de Arthur Harris permaneceu. E ele ajudou bastante em tudo isso!

O ex-comandante dos bombardeiros lançou um livro com as suas memórias da Segunda Guerra. Intitulado “Bomber Offensive”, veio com muitas justificativas para as suas ações e entre estas existe a seguinte passagem: “Apesar de tudo o que aconteceu em Hamburgo, o bombardeio era um método de guerra relativamente humano“.

Arthur Harris provavelmente nunca se considerou um humanitário, mas sim um comandante militar encarregado de matar alemães, fossem eles soldados ou civis.

Quando Arthur Harris faleceu, uma aeronave Lancaster sobrevivente realizou um sobrevoo sobre o cemitério onde acontecia o sepultamento.

Faleceu discretamente no dia 5 de abril de 1984, oito dias antes de completar 92 anos. Um preservado Lancaster sobrevoou o seu sepultamento e anunciou a homenagem final da RAF ao último de seus grandes comandantes da Segunda Guerra Mundial.

Quando foi decidido erigir uma estátua de Harris do lado de fora da igreja de St. Clement Danes, em Westminster, Londres, houve amplas objeções e severas críticas.

O homem se foi, mas a controvérsia que o cercava ainda persiste.

NOTAS ————————————————————————


[1] Essas pinturas brancas existentes nesses aviões Lancaster que vieram para o Brasil foram feitas para os Avro Lancaster do Comando de Bombardeiros Britânico que estavam destinados a atacar alvos no Japão. Essa foi uma oferta de Winston Churchill aos Estados Unidos para que 40 esquadrões de Lancaster fossem disponibilizados para uso na área do Oceano Pacífico e esse grande grupo de bombardeiros foi denominado “Tiger Force”. Durante a Segunda Guerra o esquema padrão do Comando de Bombardeiros Britânico em ação na Europa era a parte inferior preta e a parte superior com tons verde e marrom. Já nos Lancaster da “Tiger Force” a parte inferior preta foi mantida, mas a parte superior foi pintada de branco para refletir o calor. Com o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão e a rendição desse país, a ideia da “Tiger Force” foi colocada de lado.

[2] Em 1926 Walter Pretyman sagrou-se campeão com a sua equipe em um badalado torneio de polo no Rio e a taça de vencedor foi entregue pelo então Presidente da República Arthur Bernardes.

[3] E ainda sobre essa história da entrega dessa comenda existe uma situação interessante. Antes da chegada de Arthur Harris ao Brasil, esteve em nosso país o general norte-americano Mark Clark, que foi o comandante do 5º Exército dos Estados Unido, que atuou na Campanha da Itália e tinha sob seu comando a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Ocorre que Clark, que inclusive nessa ocasião veio ao Brasil para assistir a chegada do 1º escalão da FEB no Rio, não recebeu essa mesma honraria e desconheço a razão disso. Clark só veio a receber essa comenda em maio de 1975, das mãos do Presidente Ernesto Geisel.

[4] Dionísio Filgueira estava recepcionando o comandante Arthur Harris em razão da ausência de Natal do general Antônio Fernandes Dantas, o Interventor Federal do Rio Grande do Norte na época.

[5] O Comando de Transporte Aéreo (em inglês Air Transport Command – ATC) era o setor da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF) que durante a Segunda Guerra Mundial organizou e operou os transportes aéreos do exército americano em todo o mundo.

[6] Essa base aérea era a famosa Parnamirim Field, que se subdividia em uma base área da força aérea do exército americano e outra da marinha dos Estados Unidos, que trabalhavam em parceria com a base aérea brasileira, a chamada Base Aérea de Natal, todas na mesma região. O coronel Price havia assumido esse posto recentemente, substituindo o coronel Léo F. Post.  

JÂNIO QUADROS NA PRESIDÊNCIA DO BRASIL – DA ESPERANÇA EM UM SALVADOR DA PÁTRIA, ATÉ A RENÚNCIA NO DIA DO SOLDADO

Jânio da Silva Quadros nasceu no dia 25 de janeiro de 1917, na cidade de Campo Grande, no então estado de Mato Grosso e atual capital do Mato Grosso do Sul. Era filho de Gabriel Quadros e de Leonor da Silva Quadros e foi criado em Curitiba, no Paraná, onde estudou em colégios estaduais. Tempos depois sua família mudou para São Paulo, onde Jânio estudou no Colégio Marista Arquidiocesano e em 1935 ingressou na prestigiada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ou Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma academia que formou nada menos que treze presidentes da república brasileira.

Após a formatura Jânio Quadros montou um pequeno escritório de advocacia no centro da capital em 1943 e depois começou a lecionar em dois colégios. Foi também professor de direito processual penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Jânio da Silva Quadros.

Político de Ascenção Meteórica

Em 7 de maio de 1947, por determinação geral do então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra, ocorreu a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Por isso muitas cadeiras na Câmara Municipal de São Paulo ficaram vagas. Jânio então teria sido um dos suplentes chamados a preencher esses lugares em 1948. Essa versão é contestada por alguns, que afirmam ter sido Jânio Quadros um dos três vereadores efetivamente eleitos pelo PDC.

Independente dessa questão, o certo foi que a ação de Jânio como vereador foi decisivo para projetá-lo na vida política paulista. Ele ficou conhecido como o vereador de todas as casas legislativas do país no período a apresentar a maior quantidade de proposições e projetos de lei, além de discursos. Jânio foi igualmente considerado o vereador que assinou a grande maioria das propostas e projetos considerados favoráveis à classe trabalhadora.

Quadro de votação na época da campanha de Jânio Quadros para preidente.

Com esse currículo logo foi consagrado como o deputado estadual mais votado em São Paulo, com mandato a ser exercido entre 1951 e 1953. Jânio percorreu todo o interior do estado de São Paulo, sempre insistindo na bandeira da moralização do serviço público e pedindo sugestões ao povo para resolver os problemas de cada região.

No início de 1953 a capital paulista assistiu à primeira campanha eleitoral para a prefeitura em 23 anos, desde a Revolução de 1930. Jânio foi lançado candidato do PDC em coligação com o Partido Socialista Brasileiro – PSB, vencendo por larga margem as principais máquinas partidárias locais. Essa vitória foi tida como uma grande façanha, pois Jânio enfrentou bloco formado por oito partidos políticos e um adversário, o professor Francisco Antônio Cardoso, que tinha uma campanha milionária, com uma enxurrada de material de propaganda e com apoio ostensivo das máquinas municipal e estadual. 

Assumiu a prefeitura de São Paulo aos 36 anos e um dos seus primeiros atos foi promover demissões em massa de funcionários, iniciando uma cruzada moralizadora que marcou sua gestão.

De Governador a “Salvador da Pátria”

Ademar de Barros, de chapéu.

Em 1954 Jânio Quadros desincompatibilizou-se do cargo de prefeito para candidatar-se a governador do estado de São Paulo e filiou-se ao Partido Trabalhista Nacional – PTN. Ganhou por uma pequena margem de votos, de cerca de 1%, do grande rival Ademar Pereira de Barros, um político popularmente conhecido pelo bordão “Rouba, mas faz”.

Jânio foi empossado governador em 31 de janeiro de 1955 e durante o seu mandato procurou executar ações que transmitisse uma imagem de moralização da administração pública e de combate à corrupção, aliadas a um empreendedorismo que buscava destaque e projeção.

Uma prática comum do governador Jânio era a das visitas surpresa às repartições públicas, a fim de verificar a qualidade dos serviços oferecidos à população. Outra foi a criação de novos serviços e órgãos estaduais, ou a construção de grandes obras.

Desde o início do seu governo Jânio procurou ampliar seu espaço político no nível nacional, estabelecendo positivos contatos com o potiguar João Café Filho, então Presidente da República. A aproximação entre ambos criou condições mais propícias para o governo paulista realizar um trabalho de recuperação financeira do estado. Tudo isso angariou grande popularidade e consagrou Jânio como um líder entre os paulistas.

Com a chegada do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK,  a Presidência da República, houve um foco muito intenso na criação de uma política desenvolvimentista, que foi realizada através da aplicação do chamado “Plano de Metas” e provocou um grande crescimento em diversas áreas e setores no país. São Paulo foi um dos estados mais beneficiados com a implantação de novas indústrias e a concentração de crédito e essa expansão econômica se refletiu no aumento da receita tributária do estado e na criação de condições favoráveis à diminuição do déficit financeiro herdado dos governos anteriores. Apesar de todas as vantagens que São Paulo usufruiu no governo JK, matreiramente Jânio permaneceu alinhado com a oposição em relação a importantes aspectos da política econômica vigente. E isso foi muito útil ao governador paulista, pois apesar do impulso desenvolvimentista, o governo JK gerou um panorama de forte inflação e crise econômica.

Diante do difícil quadro nacional, o nome de Jânio Quadros começou a surgir como alguém que poderia solucionar os problemas e colocar o Brasil em um bom rumo. Um novo “Salvador da Pátria”.

Jânio em campanha.

No dia 20 de abril de 1959, um grupo reuniu-se na Associação Brasileira de Imprensa – ABI no Rio de Janeiro e fundou o Movimento Popular Jânio Quadros – MPJQ, lançando nessa ocasião a candidatura do ex-governador de São Paulo à presidência da República.

Nove Meses de Campanha: A Vassoura Janista na Caça ao Voto.

O homem do “tostão contra o milhão” chegava ao topo da escalada que o conduziria ao Palácio da Alvorada.

Não que fosse um caminho fácil. O líder que granjeara sua popularidade junto às massas operárias de São Paulo, que quando prefeito da capital paulista chegou mesmo a apoiar a greve de 1953 e, como governador, não adotou atitudes repressivas contra os trabalhadores, via-se agora na contingência de conquistar a simpatia de todos os brasileiros — ricos, pobres, remediados, urbanos, rurais, ignorantes ou letrados.

As vassouras de Jânio em suas campanhas.

O povo delirou quando Jânio deixou bem claro a todos os partidos que o apoiavam a sua posição extremamente personalista e autoritária, alheia as agremiações partidárias, as quais ele ignorava até o desprezo. Conter a inflação e governar acima dos partidos era seu propósito. Sobretudo porque, percebendo a fragilidade das plataformas partidárias do momento, ele podia agir dessa maneira.

O “justiceiro” prometeu um governo de austeridade, onde aglutinou setores militares e da classe média (com promessas de “limpeza” na administração e estabilização da economia), das elites empresariais (com afirmação de fé na livre iniciativa) e dos trabalhadores (com promessas de uma ordem social mais justa). Descontentes com a carestia, a maioria dos brasileiros preferiu ir beber nas águas populistas de Jânio Quadros. 

Em 30 de setembro de 1960 era encerrada a tumultuada campanha eleitoral de Jânio Quadros à presidência da República. Em meio a cartazes, animação de bandas de música, fogos de artifício, papéis picados, vassouras, além da marchinha antológica que tinha esses versos – “Varre, varre, varre, varre, vassourinha./ Varre, varre a bandalheira./ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira./ Jânio Quadros é a esperança deste povo abandonado”.

Marechal Teixeira Lott, derrotado por Jânio Quadros.

Nas eleições de 3 de outubro de 1960 quase seis milhões de eleitores fazem Jânio o 22º Presidente do Brasil, sendo até então a maior votação da história no país. O marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, o segundo colocado, foi vencido de forma arrasadora com mais de dois milhões de votos de vantagem.

Mas nem tudo foi positivo para Jânio. Como naquela época votava-se separadamente para presidente e vice, apesar de todo prestígio Jânio não conseguiu eleger Milton Soares Campos, o candidato a vice-presidente de sua chapa. O escolhido foi o gaúcho João Belchior Marques Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB.

Governo de Altos e Baixos

Após a vitória sem precedentes, o presidente eleito partiu para Europa, em uma viagem de “concentração e retiro”. Somente três meses após as eleições, em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros e João Goulart foram empossados. Contrariando a expectativa geral, o discurso de posse do presidente foi discreto e gentil, chegando a tecer elogios ao governo anterior. Porém, na noite desse mesmo dia, Jânio atacou violentamente o governo Juscelino Kubitschek em cadeia nacional de rádio, atribuindo ao ex-presidente a prática de nepotismo, ineficiência administrativa, responsabilidade pelos altos índices de inflação e pela dívida externa de dois bilhões de dólares.

Não demorou e o novo presidente decepcionou pela primeira vez seus correligionários, ao desfazer a expectativa dos que previam que ele realizasse um governo de composição ou união nacional, ou que tentasse obter, através da nomeação ministerial, a maioria parlamentar de que não dispunha.

Jânio compôs seu Ministério contemplando uma mistura de elementos da União Democrática Nacional – UDN e representantes de partidos menos expressivos. Surpreendeu a todos ao nomear cinco ministros do Norte e Nordeste e disse que isso foi feito para honrar compromissos de sua campanha. O Ministério da Fazenda foi confiado a Clemente Mariani Bittencourt, líder da UDN baiana, que fora presidente do Banco do Brasil em 1954 e 55. Afonso Arinos de Melo Franco, da UDN mineira ficou com a pasta das Relações Exteriores. O Ministério era formado ainda por Clóvis Pestana, do Rio de Janeiro (Viação e Obras Públicas), Oscar Pedroso d’Horta, do Ceará (Justiça e Negócios Interiores); Romero Cabral da Costa, de Pernambuco (Agricultura); Brígido Fernandes Tinoco, do Rio de Janeiro (Educação e Cultura); Francisco Carlos de Castro Neves, de São Paulo (Trabalho); Edward Cattete Pinheiro, do Pará (Saúde); João Agripino Vasconcelos Maia Filho, da Paraíba (Minas e Energia) e Artur da Silva Bernardes Filho, de Minas Gerais (Indústria e Comércio). Já os ministérios militares foram preenchidos pelo marechal Odílio Denys (Ministério da Guerra, que teria sua denominação alterada durante o governo do general Costa e Silva  para Ministério do Exército), o brigadeiro Gabriel Grüm Moss (Aeronáutica) e o vice-almirante Sílvio de Azevedo Heck (Marinha), os três do Rio de Janeiro.

Reunião ministerial do governo Jânio Quadros.

No início do seu governo Jânio tomou uma série de pequenas medidas que ficaram famosas, destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e saneamento moral. Também investiu fortemente contra alguns direitos e regalias do funcionalismo público. Reduziu as vantagens até então asseguradas ao pessoal militar ou do Ministério da Fazenda em missão no exterior e extinguiu os cargos de adidos aeronáuticos junto às representações diplomáticas brasileiras.

Tal como aconteceu quando era governador paulista, Jânio Quadros pretendia prescindir da maioria parlamentar, mas duas reações foram imediatas: a dos que o acusavam de veleidades ditatoriais e desprezo pelo Poder Legislativo, e a dos setores nacionalistas, que viam na composição do novo governo uma prova de submissão ao FMI – Fundo Monetário Internacional, pela nomeação do banqueiro Clemente Mariani para o Ministério da Fazenda.

Seguindo um amplo programa anti-inflacionário, em 13 de março de 1961 o Presidente Jânio decretou uma reforma cambial, cuja consequência imediata foi a desvalorização do cruzeiro (a moeda brasileira da época) em 100% e o corte dos subsídios na importação de trigo e gasolina. Disso decorreu um galopante aumento do custo de vida, coincidindo com o congelamento dos salários e restrição ao crédito, o que gerou imediatos protestos sindicais.

Embora contasse com o apoio tácito do Congresso Nacional para sua política de austeridade, Jânio encontrou sérias resistências, mesmo entre seus correligionários, em relação a outros projetos em andamento, como o da reforma da lei antitruste, o da remessa de lucros, o do imposto de renda e o da reforma bancária.

Segundo o seu ministro das Minas e Energia, o paraibano João Agripino, “Jânio atraía contra seu governo todos os grupos econômicos deste país e ao mesmo tempo impunha aos humildes sacrifícios quase insuportáveis”.

Na tentativa de agradar o FMI pela austeridade, a classe média pela sindicância moralizadora dos escândalos financeiros e as camadas populares pelas reformas, Jânio conseguiu, em poucos meses, multiplicar as oposições.

Os Famosos “Bilhetinhos”

Jânio Quadros na capa da revista americana Times.

Alpargatas, blusões folgados, os famosos slacks com jaquetas tipo safari (também conhecidos como pijânios) — era a imagem tropical de um novo estilo de presidente.

Parte dessa performance foram os não menos famosos “bilhetinhos” que Jânio enviava diariamente a funcionários dos mais diversos escalões, como parte de sua estratégia moralizadora da administração pública.

Esperados muitas vezes com humor pela imprensa, esses pequenos recados causavam frequentemente irritação e até desespero nos que os recebiam. Prova é que, dos 1.534 bilhetes ditados durante a presidência, apenas onze foram de elogios ou homenagens.

O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, por exemplo, foi vítima de cerca de 600 deles, o que contribuiu sensivelmente para o desgaste de suas relações com o presidente. Certa feita, o Ministério da Agricultura foi contemplado com um bilhetinho que dizia literalmente: “O objetivo da próxima safra de amendoim deve ser o do atendimento do mercado interno, com largas sobras para exportação, dobrando-se, pelo menos, essa cultura em relação à safra de 1959/60”.

Jânio Quadros e Carlos Lacerda.

Na prática, essas pequenas notas funcionavam, sobretudo como decretos oficiosos, transformando em “lei” várias das pequenas decisões quase legendárias de Jânio.

O funcionalismo público foi o alvo predileto dos “bilhetinhos”: sindicâncias, horário de dois turnos com aumento da jornada de trabalho, cortes de gastos de representação e até ordem para à devolução de carros luxuosos. Muitas vezes justos, a maioria desses bilhetes tratava de assuntos que, sem dúvida, não competiam ao presidente da República.

Jânio também proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, acabou com as corridas de cavalo em dias úteis, com as rinhas de galo, com o lança-perfume em bailes de carnaval e regulamentou o jogo de carteado. Por mais hilárias que possam ter parecido essas medidas na ocasião, 60 anos depois todas essas leis editadas por Jânio ainda continuam em vigor.

Política Externa Radical

Enquanto aplicava uma política interna de austeridade, submissa às orientações do Fundo Monetário Internacional, Jânio Quadros radicalizava progressivamente na chamada Política Externa Independente – PEI.

Essa diretriz introduziu grandes mudanças na política internacional do Brasil, transformando as bases da sua ação diplomática e representou um ponto de inflexão na história contemporânea da política internacional brasileira, que passou a procurar estabelecer relações comerciais e diplomáticas com todas as nações do mundo que manifestassem interesse num intercâmbio pacífico. Essa modalidade de fazer política externa foi firmemente conduzida pelo chanceler Afonso Arinos de Melo Franco.

Jânio levou adiante seu projeto de estabelecer relações com as recém-independentes nações africanas e do bloco socialista. Nomeou Raimundo Sousa Dantas embaixador do Brasil em Gana, sendo este o primeiro embaixador negro brasileiro. Por meio de um sem-número de bilhetes recomendava o reatamento diplomático com os países do Leste, alegando objetivos econômicos. Pronunciou-se contrário à tradição brasileira de apoio às potências colonialistas, sobretudo na África portuguesa, e favorável à admissão da China nas Nações Unidas. Em maio de 1961 recebeu no palácio do Planalto a primeira missão comercial da República Popular da China enviada ao Brasil.

O cosmonauta soviético Yuri Gagarin (a direita), o primeiro homem a ir ao espaço, recebe a Ordem do Mérito Aeronáutico de Jânio Quadros e do brigadeiro Gabriel Grüm Moss, Ministro da Aeronáutica. 

O mesmo fato se repetiu em julho com a missão soviética de boa vontade, que pretendia incrementar o intercâmbio comercial e cultural entre o Brasil e a União Soviética. As primeiras providências para o reatamento diplomático entre os dois países começaram a ser tomadas em 25 de julho, mas o processo só seria concluído durante o governo Goulart. Antes disso, em julho de 1961, Jânio Quadros condecorou com a Ordem do Mérito Aeronáutico o cosmonauta soviético Yuri Alexeievitch Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço e que visitava o Brasil. 

Essa radical mudança na política exterior do Brasil não foi bem vista pelos Estados Unidos, nem por vários grupos econômicos que se beneficiavam da política anterior e nem pela direita nacional, em especial por alguns políticos da UDN, que apoiaram Jânio Quadros na eleição.

Uma Medalha para o Che

Entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961 ocorreu em Punta del Este, Uruguai, a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social da Organização dos Estados Americanos – OEA. Nela estiveram reunidos ministros e dirigentes das economias dos países latino-americanos, incluindo Ernesto Rafael Guevara de la Serna, mais conhecido como Che Guevara, revolucionário marxista e então ministro da Economia de Cuba. A finalidade desta reunião foi discutir o então novo programa da política externa dos Estados Unidos para a América Latina, a Aliança para o Progresso, cujo intuito era desenvolver economicamente e socialmente os países latino-americanos.

Ernesto Che Guevara sendo condecorado por Jânio Quadros.

Ao fim da reunião Che Guevara viajou para a Argentina e na sequência para o Brasil. Jânio aproveitou a passagem de Guevara para pedir, com êxito, a libertação de 20 padres espanhóis presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Aproveitaram e discutiram as possibilidades de intercâmbio comercial por meio dos países do Leste europeu. Finalmente, em 18 de agosto o presidente condecorou o ministro cubano com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, o que provocou a indignação dos setores civis e militares mais conservadores.

As possíveis consequências desse ato foram mal calculadas por Jânio. Sua repercussão foi a pior possível e os problemas já começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda que, amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países e a revista dos militares. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrarem e participarem da cerimônia.

O Fim no Dia do Soldado

Uma verdadeira cruzada passou a ser desencadeada contra a Política Externa Independente de Jânio. Para seus críticos essa política nada mais era do que declarações e ações com fins publicitários e vista por muitos como uma tentativa de atenuar a tensão provocada pelas decepções com sua política interna. O certo é que a condecoração de Che Guevara foi o bastante para o jornalista Carlos Lacerda, então governador do Rio de Janeiro, da UDN, romper publicamente com Jânio Quadros. O presidente perdia assim a sua frágil base parlamentar no Congresso.

Em várias oportunidades, o ministro da Guerra, Odílio Denys, também chegou a adverti-lo sobre a insatisfação da alta hierarquia militar. No plano internacional, a situação não melhorou para o governo.

Jânio parecia ter conseguido com suas ações desagradar a gregos e troianos.

Fotograma da película que mostra a cerimônia do Dia do Soldado em 25 de agosto de 1961, o último ato que Jânio Quadros participou como presidente do Brasil.

Em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, o presidente Jânio Quadros apresentou à nação sua carta de renúncia. O seu último ato presidencial foi um terrível equívoco, uma tentativa de golpe mal arquitetada. O objetivo de Jânio Quadros era criar um clima de comoção nacional de tal modo que os ministros militares, o Congresso e a população pedissem para que ele ficasse. Seu objetivo era negociar sua permanência na presidência da República com poderes excepcionais.

O Congresso, segundo a Constituição, não tinha poderes para negociar uma renúncia, que era um ato unilateral do presidente. A única obrigação do Congresso era investir os poderes ao vice.

Jânio Quadros, ao receber a notícia de que sua renúncia foi acolhida, chorou copiosamente. Seu mandato presidencial de 206 dias (quase sete meses) foi um dos mais breves na história da presidência do país.

A população, frustrada com as medidas econômicas rígidas e com os decretos moralistas, não reagiu como o Presidente esperava. Os ministros militares se limitaram a publicar um manifesto atestando que o vice-presidente, João Goulart, que se encontrava em visita oficial à China comunista, não deveria assumir a Presidência da República por representar um perigo aos quadros democráticos e constitucionais, pois Jango seria apoiado por elementos do clandestino Partido Comunista.

O país estava à beira de uma grave crise por conta da obsessão anticomunista de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. O conflito, entretanto, foi evitado graças a uma solução política negociada: a criação da Emenda Parlamentarista.

O sistema parlamentarista era um paliativo, pois garantia a posse de Goulart, ao mesmo tempo em que retirava os poderes políticos do Executivo federal e o transmitia para o Congresso Nacional, que indicaria um Primeiro-Ministro. Desta forma, Goulart poderia voltar ao Brasil e tomar posse. Foi escolhido como Primeiro-Ministro o político mineiro Tancredo de Almeida Neves. Para Juscelino Kubitschek, que na época era senador, declarou que “a Emenda Parlamentarista foi aprovada por pressão militar”.

O sistema parlamentar, entretanto, teve vida curta. Em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito aprovou o retorno ao regime presidencial e, segundo os próprios militares, aquilo foi o início da contagem regressiva para o golpe contra Jango.

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