PAULO – O ÚLTIMO ESCRAVO AFRICANO EM NATAL

Aparentemente Desembarcou no Brasil em 1855, no Último Carregamento de Escravos Vindo da África – Marcou Época em Natal Por Tocar Zambê e Ser “Feiticeiro” – Foi Batizado como Paulo José de Oliveira e Morreu em 1905

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Nos primórdios do Brasil existiu por aqui uma curiosa sociedade, que foi resumida dessa maneira – “Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição”. Uma sociedade que marcou fortemente a formação do povo brasileiro e que foi tão brilhantemente descrita na obra “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.[1]

Quem detinha o poder nessa sociedade era riquíssimo e vivia na opulência. Habitavam em belas casas grandes construídas de pedra, barro e cal. Eram cobertas de palha ou telhas, com varandas nas laterais, telhados inclinados para dar proteção contra chuvas tropicais e o calor do sol, sendo esses lugares ao mesmo tempo “fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos”.[2]

Quadro do holandês Frans Post intitulado “Engenho de Pernambuco”.

Os homens e mulheres que criaram este primeiro grande boom do açúcar no mundo viveram muito bem. Muitas histórias são contadas sobre a opulência dos fazendeiros daquele Brasil antigo.

Suas mesas eram carregadas de prata e porcelana fina comprada de capitães de barcos a vela em seu caminho de volta do Oriente. Diziam que as portas de suas casas tinham “fechaduras de ouro”[3], que suas mulheres usavam enormes pedras preciosas em prendedores de cabelos, que músicos animaram os banquetes, que suas camas eram cobertas de tecido de damasco produzidos na Itália e um exército de serviçais negros estavam sempre pairando ao redor para satisfazer todos os seus desejos.

E esses lacaios satisfaziam de verdade essa gente em tudo e por tudo que desejassem. Pois se assim não fizessem iam para o chicote, para o açoite no tronco, presos a dolorosos grilhões e padecendo de uma morte sofrida e aterradora.

Engenho de Itamaracá, de Frans Post para mapa de Gaspar Barlaeus, 1647 – Fonte – https://ensinarhistoria.com.br/para_colorir_engenho_frans_post/ – Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues

A fortuna aproveitada pelos donos dos engenhos de cana repousava sobre o açúcar e o açúcar sobre a escravidão africana. Onde seus “donos” massacraram esses cativos, usando e abusando do seu suor, do seu sangue e de suas vidas, na mais nefasta página da História do Brasil. Os africanos que vieram para essa parte do mundo eram tratados como meros animais de carga, bichos brutos e, situação pior, as mulheres serviam para todos os tipos de taras dos seus senhores.

E tudo indica que no ano de 1905 faleceu em Natal um homem que viveu todas as agruras desse flagelo, que aqui ficou conhecido como Paulo Africano e que, segundo Câmara Cascudo seria o “último africano legítimo”, o último cativo vindo da África a falecer na capital do Rio Grande do Norte.

Essa é a sua história!

Poucos Escravos

Em 1937 Luís da Câmara Cascudo já era considerado o intelectual maior da terra potiguar e o que ele escrevia, apesar do seu provincianismo militante, já repercutia no Rio de Janeiro, onde se concentrava o poder do país e os principais jornais e rádios da nação.

Família brasileira na época da colônia e império.

No dia 12 de junho daquele ano, o jornal carioca Diário de Notícias publicou o texto intitulado “O povo do Rio Grande do Norte” (pág. 28), de autoria de Cascudo, onde ele comenta sobre a formação do povo potiguar. Para o autor o escravo negro já estava no Rio Grande do Norte desde 9 de janeiro de 1600, onde trabalhavam em benfeitorias e vinham da Guiné. Comentou também que o número de escravos “nunca foi avultado, nem mesmo na sua relação da pequena população branca”. Tanto que em “1808 eram 1.127 pretos, para 1.956 brancos em Natal”. Para Cascudo o 13 de maio de 1888 “não encontrou senão uns trezentos e poucos”.

O texto informava que os escravos que viviam em terras potiguares eram procedentes do “Sudão, angolas, congos, banguelas (SIC), trazidos de Pernambuco que os importava”. Para Cascudo o Rio Grande do Norte era uma “terra de parcos capitaes, não teve negreiros e nem commercio. Era apenas um mercado, um pequeno mercado consumidor”.

O jornal carioca Diário de Notícias, 12 de junho de 1937.

Cascudo então comenta, através de informações transmitidas por Francisco Artemio Coelho, que faleceu em 1945, que “O último africano puro que morreu em Natal, Paulo Africano, morador da rua do Camboim, mestre de zambê e feiticeiro, fallecido a 24 de abril de 1905”. Tempos depois o Mestre Cascudo vai descobrir que essa data estava errada.

Coelho informou também que Paulo Africano “dizia ter desembarcado numa praia e levado para Sirinhaém”, atualmente um município autônomo próximo ao litoral de Pernambuco, ao sul de Recife.

E é nesse ponto de sua afirmação, que Câmara Cascudo nos aponta uma possível ligação do momento da chegada de Paulo Africano ao Brasil.

O Terrível Tráfico

A justificativa das potências marítimas europeias para trazer africanos negros à força para trabalhar como animais, foi motivada pela necessidade econômica, pois nos séculos XVI e XVII as suas possessões no Novo Mundo eram os locais mais importantes para a criação de divisas e riquezas.

Comércio de escravos no Cais do Valongo, porto do Rio de Janeiro.

No século XVI os africanos eram comprados na região subsaariana e enviados em barcos de propriedade de europeus, mas estes não estavam diretamente envolvidos na captura dos escravos, ou no comércio interafricano de cativos. Para os brancos europeus bastava suprir a crescente demanda de escravos para as plantações nas colônias no Novo Mundo.

Aqueles que capturavam os escravos eram em sua maioria africanos negros, que conseguiam as suas “peças” em conflitos étnicos e tribais, ou mesmo em guerras de maior escala. Não era incomum trocar cativos com outras tribos. Daí não houve maiores dificuldades em vendê-los para os brancos no litoral.

Por volta de 1550, os portugueses começaram a enviar vários povos africanos como os bantos de Angola, Moçambique e Congo; Yorubá, Ewe, Mandinga do Sudão e da África Ocidental. Ao longo dos próximos 300 anos, mais de quatro milhões de africanos seguiram de maneira forçada para o Brasil. Esse tipo de negócio foi considerado um dos mais lucrativos do reino português.

Como os cativos seguiam a bordo de barco negreiro.

As condições a bordo dos navios de transporte de escravos, ou navios negreiros, como ficaram conhecidas as naves que transportaram esse verdadeiro “gado humano”, eram terríveis. Acorrentados e deitados juntos, os escravos tiveram que dormir sobre suas próprias fezes durante toda a travessia, que podia demorar semanas. A mortalidade a bordo era muito alta, mas as perdas resultantes pareciam aos traficantes de escravos menores do que os custos que teriam acarretado condições de transporte menos desumanas. 

70% dos escravos no Novo Mundo estavam empregados no cultivo de cana-de-açúcar e, ao longo do tempo, outros tiveram que trabalhar nas colheitas de café, algodão, tabaco e na atividade de mineração. Os produtos obtidos do trabalho servil eram então enviados para a Europa e os barcos retornavam com produtos processados das metrópoles, ou novas levas de escravos da África.

Representação do desembarque de escravos.

Naqueles primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil, a região que mais lucrou com a plantação de cana-de-açúcar e a que foi a principal “anfitriã” de milhares e milhares de escravos africanos foi o que hoje é o nosso ensolarado Nordeste. E por aqui as duas capitanias, hoje estados, que mais receberam cativos foram a Bahia e Pernambuco.

Joseph Cliffe descreveu que quando os escravos chegavam ao Rio, ou à Bahia, se encontravam tão fracos que mal conseguiam andar e tinham de ser retirados dos barcos. Depois eles eram mantidos em barracões e ali alimentados, engordados e bem tratados antes da venda. Às vezes eles eram mantidos até seis meses nesses acampamentos antes de serem vendidos[4].

Quadro de Rugendas mostrando habitação de escravos – Fonte – http://www.joseferreira.com.br/

Pode parecer até uma redundância, ou ironia, mas também ocorreram nesses barcos vários massacres e crimes em massa contra os escravos, como o chamado “Massacre do barco Zong”. Em 1781 este transporte negreiro britânico teve dificuldades na navegação e acabou desviando do curso na região do Caribe. Como foram ficando sem mantimentos e água, a tripulação simplesmente jogou no mar cerca de 130 a 150 africanos. Inicialmente os fatos ocorridos no Zong não tiveram o mínimo eco no público britânico. Mas no médio prazo o caso começou a ser debatido e amplamente comentado, desenvolvendo um papel interessante na ascensão do abolicionismo naquele país. O caso do Zong então se tornou um símbolo da crueldade da escravidão. 59 anos depois da tragédia, William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura, retratou o incidente em seu quadro The Slave Ship, que se tornou um símbolo da causa abolicionista.

Quadro de The Slave Ship, do inglês William Turner, um dos percursores do modernismo na pintura e se tornou um símbolo da causa abolicionista. Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/The_Slave_Ship.

Abolicionismo e Pressão Britânica

Os opositores do tráfico de escravos se reuniram na Inglaterra desde 1787, onde fundaram uma sociedade para abolir a escravidão e foram chamados de abolicionistas. O movimento foi politicamente apoiado por William Wilberforce, que repetidamente levou a abolição do tráfico de escravos à votação na Câmara dos Comuns. Wilberforce foi o pivô do que ficou conhecido como a “Seita Clapham”, um grupo de membros politicamente influentes da Igreja da Inglaterra, fundado pelo ex-capitão de navio negreiro e mais tarde ministro John Newton. Os chamados “Santos de Clapham” tornaram sua principal tarefa abolir todas as formas de escravidão e seu comércio.[5]

A Revolução Francesa de 1789 ajudou a difundir ideias sobre direitos humanos e liberdades civis. As Guerras Revolucionárias Francesas (1792–1797), as Guerras Napoleônicas (até 1815) e a ocupação de algumas áreas pelas tropas francesas, difundiram essas ideias para partes da Europa e além.

Símbolo da British Anti-Slavery Society (1795)

Depois que os britânicos encerraram seu próprio comércio de escravos com o “Slave Trade Act” de 24 de fevereiro de 1807, eles tiveram de obrigar outros povos a fazerem o mesmo, caso contrário as colônias britânicas teriam uma desvantagem competitiva em comparação com as de outras nações. Por exemplo, sob pressão britânica no Congresso de Viena em 1814 e 15, a escravidão foi proibida no artigo 118 da Lei do Congresso. Os Estados Unidos proibiram o comércio ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha, assim como a Dinamarca.[6] Outros países como a Suécia aboliram a escravidão logo em seguida, assim como os Países Baixos, que nessa época era a terceira maior potência colonial, atrás apenas da Grã-Bretanha e da França.

Para a França, derrotada pelos britânicos nas guerras napoleônicas, não apenas foi exigido a proibição do comércio de escravos, mas também o policiamento dessa proibição. A Marinha Real Britânica, a Royal Navy, passou a inspecionar e apreender todos os navios suspeitos que transportavam escravos, ou eram equipados para tais fins, até que em 1815 a França concordou formalmente em proibir o comércio de escravos. Mas vale frisar que, mesmo com essas ações de repressão, esse nefasto comércio só parou completamente na França em 1848.

A busca de escravos fugitivos foi um grande negócio para os rastejadores no período da escravatura no Brasil.

Portugal e Espanha, antigas aliadas em dívida com a Grã-Bretanha após as Guerras Napoleônicas, só gradualmente concordaram em acabar com o comércio de escravos e após grandes pagamentos. Em 1853, o governo britânico pagou a Portugal mais de 3 milhões de libras e à Espanha mais de 1 milhão de libras para acabar com esse nefasto comércio.

E no Brasil, como foi?

Encarando o Império Britânico

O Brasil, independente de Portugal em 1822, não concordou em parar o tráfico de escravos. Além de lucrativo, ao longo de décadas a escravidão criou um fator que ampliou essa “desobediência” brasileira aos britânicos – a dependência dos escravos para quase tudo que significava trabalho.

Em 1850 a maioria dos brasileiros que tinham posses possuíam cativos. Fossem eles grandes latifundiários no campo, ou pequenos comerciantes das cidades, funcionários públicos de alto ou baixo escalão, indo até artífices, o elemento negro predominava nos afazeres diários dessa gente. Igualmente seus ancestrais utilizaram escravos ao longo de trezentos anos. Então, não é nenhuma surpresa que esse pessoal observasse a instituição da escravidão como algo normal, como parte da ordem natural das coisas e sua dependência em relação aos cativos era enorme.

Gilberto Freyre mostra claramente em “Casa Grande e Senzala” um exemplo do que essa dependência criou no Brasil – “a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas molequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele”[7].

Escravos sendo surrados no Brasil, em pintura de Debret.

E quanto poderia ser lucrativo participar do tráfico de escravos?

Segundo o autor Hugh Thomas, entre outubro de 1846 e setembro 1848, o iate Andorinha, de oitenta toneladas, pertencente a Joaquim Pereira Marinho, fez uma série de oito viagens, trazendo quase 4.000 escravos e ganhando cerca de £40.000 (quarenta mil libras esterlinas), o que tornou seu proprietário milionário. Para se ter uma ideia do que naquele tempo poderia significar essa dinheirama, o Reino da Dinamarca vendeu aos britânicos cinco assentamentos territoriais, com seus postos de comércio e fortes, todos localizados na Costa do Ouro, atual região de Gana, África. Em 31 de dezembro de 1849, foi assinado um tratado entregando a área e suas benfeitorias por “apenas” £10.000 (dez mil libras esterlinas). A venda também incluiu os canhões dos fortes.[8]

Diante da “desobediência”, a Grã-Bretanha partiu então para um endurecimento diplomático contra o Brasil.

Fragata britânica.

Em 9 de agosto de 1845 foi criada a Lei Aberdeen, proposta pelo secretário de relações exteriores britânico Lord Aberdeen, que deu à Royal Navy autoridade para parar e revistar em alto mar qualquer navio brasileiro suspeito de ser um transportador negreiro e prender os traficantes de escravos. A Lei Aberdeen também estipulava que os comerciantes brasileiros presos poderiam ser julgados em tribunais britânicos. A lei foi projetada para suprimir o tráfico de escravos no Brasil, para tornar efetivas as leis brasileiras e a implementação do Tratado Britânico-Brasileiro de 1826, que tinha como objetivo acabar com o tráfico de escravos no Oceano Atlântico. O Império do Brasil havia assinado e ratificado esse acordo, mas não cumpriu.

Essa ação repressora provocou indignação entre os brasileiros, onde foi vista como uma violação do livre mercado, da liberdade de navegação, como uma afronta à soberania e integridade territorial do país, além de uma tentativa de impedir a ascensão do Brasil como potência mundial.

Escravos brasileiros chamavam muito a atenção dos estrangeiros que visitavam o país e era comum serem reproduzidos em pinturas.

Os membros do Parlamento no Rio de Janeiro debateram o assunto e praticamente todos foram contra a forma arrogante com que a Grã-Bretanha havia imposto suas leis ao Brasil e abominavam a ideia de ação britânica perto do nosso litoral. Até Joaquim Nabuco, que estava se tornando líder do movimento antiescravista brasileiro, descreveu o novo projeto de Lei Aberdeen como “um insulto à nossa dignidade como pessoas.” [9]

Independente dessas questões, a Royal Navy começou a interceptar traficantes de escravos brasileiros em alto mar e eles foram processados ​​nos tribunais do almirantado britânico, principalmente na Ilha de Santa Helena, uma pequena massa de terra vulcânica no meio do Atlântico. Apesar da aplicação agressiva dessa lei, o volume do tráfico brasileiro de escravos aumentou no final da década de 1840 e as tensões continuaram crescendo constantemente.

Foto de uma corveta britânica, semelhante a HMS Cormorant, que trocou tiros de canhão com a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, em Paranaguá, Paraná, em 1850.

Um punhado de navios de guerra britânicos começou a entrar em águas territoriais brasileiras para atacar barcos negreiros, até mesmo em nossos portos. Em junho de 1850 a nave de guerra britânica HMS Cormorant, após apreender três embarcações brasileiras na Baía de Paranaguá, no Paraná, trocou tiros de canhão com os artilheiros da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres e o barco inglês foi atingido. Houve um morto e dois feridos entre os estrangeiros e duas das naves apreendidas foram destruídas.[10]

Diante dessas tensões, o Brasil sabia que não podia se dar ao luxo de entrar em guerra aberta e total contra a Grã-Bretanha. Além disso, crescia o sentimento popular contra o tráfico de escravos no Brasil. Diante da situação, o governo imperial brasileiro decidiu então acabar com esse negócio. 

Um projeto de lei sobre o tema foi aprovado na Câmara de Deputados, no Rio de Janeiro, em 17 de julho de 1850. Foi aceito pelo Senado e Dom Pedro II assinou. Consta que o rei deu a canetada com grande satisfação e em 4 de setembro o projeto se tornou lei.[11] Doravante, os navios negreiros brasileiros estavam sujeitos a apreensão, a importação de escravos para o Brasil foi declarada pirataria, todas as embarcações capturadas deveriam ser vendidas, e os rendimentos deveriam ser divididos entre os captores e informantes. Pela primeira vez essa nova legislação levou a uma verdadeira transformação.

E é nesse ponto da história que provavelmente Paulo Africano veio parar no Brasil.

O Navio Negreiro das Crianças

Apesar do aperto contra os traficantes de carne humana, eles continuaram a operar clandestinamente pelos lucros envolvidos. Entretanto, ninguém ficaria indiferente à possibilidade de prisão e, mais importante, aos cerca de 40 canhões que naquela época normalmente equipavam uma fragata britânica.

Escravos conduzindo Carro de Boi em Sirinhaém. Pernambuco, pintura de Frans Post, 1638.

O negócio então era utilizar de mil e um artifícios para enganar a Royal Navy ao chegar ao Brasil, sobre onde a sua carga seria desembarcada, fazendo uso inclusive de pequenos barcos que poderiam levar os escravos e entregá-los ao longo da costa brasileira.

Não sei com detalhes quantos transportes negreiros conseguiram passar pelas naves de guerra da Royal Navy e nem quantos foram apreendidos. Mas sei quando aconteceu o último desembarque de africanos cativos no Brasil, onde um dos que estavam a bordo poderia ser Paulo Africano.

Na noite de 11 de outubro de 1855, um homem desconhecido apareceu no Engenho Trapiche, região de Sirinhaém. Ele se apresentou como Augusto Cezar de Mesquita, informou que era o capitão de um pequeno barco a vela do tipo Palhabote e que havia chegado no dia anterior de Angola. Sua nave estava ancorada na ilha de Santo Aleixo, defronte a barra do rio Sirinhaém, a cerca de seis quilômetros de distância do engenho. Mesquita explicou que trazia uma carga de africanos, cerca de 200 a 250 seres humanos, sendo umas 30 mulheres e o resto jovens e crianças…

O Engenho Trapiche pertencia ao Coronel Gaspar Menezes de Vasconcellos Drummond, rico proprietário, figura muito poderosa na política pernambucana da época e que depois afirmou que até estava doente no momento do encontro com o tal Mesquita.

Consta que Drummond recusou a carga de cativos, mas alegou que não tinha gente armada para prender a tripulação. Enquanto esperava ajuda, a tripulação fugiu e dezenas de africanos foram levados pelos contratantes do barco, o coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins e José Francisco de Accioli Lins, conhecido por “Cazumba”, proprietário de um engenho na região. O Coronel Drummond apreendeu os 165 africanos que ainda estavam na praia, onde o barco estava fundeado. Logo as autoridades começaram a chegar.

O caso gerou problemas para o Brasil junto aos britânicos, foi debatido no parlamento brasileiro, gerou polêmicas em Pernambuco e foi parar na justiça. Inclusive o próprio Coronel Drummond escreveu um opúsculo sobre o caso, denominado “Breve exposição acerca dos factos occorridos antes e depois da apprehensão dos africanos, effectuadas na barra de Serinhãem em Outubro de 1855”.

Palhabote dos pilotos da Barra do Tejo com Farol do Bugio, pintura de V. Armand, 1908 – Fonte – https://pt.wikipedia.org/

Sabemos que alguns dos participantes dessa situação em Sirinhaém foram julgados e condenados, inclusive os de sobrenome nobre. Mas estes apelaram à justiça pernambucana da época e, tal como acontece agora, rapidamente todos foram absolvidos pela nobreza togada. A alegação foi falta de provas. Outro detalhe – O Dr. Manoel de Barros Wanderley Lins, Suplente de Juiz municipal dos termos de Sirinhaém e Rio Formoso, era irmão do coronel João Manoel de Barros Wanderley Lins.[12]

No final das contas a confusão toda só começou porque Mesquita foi mal orientado, aportou no lugar errado e foi atrás de quem não devia. Se o capitão tivesse sido bem orientado, acertado o local do desembarque e encontrado os destinatários corretamente, jamais saberíamos sobre esse desembarque.

Aparentemente o tal barco do tipo Palhabote que chegou à praia perto do Engenho Trapiche era algo tão medíocre, que nem sei se tinha um nome, pois nada ficou registrado. Sabemos que esse tipo de embarcação era um veleiro de dois, ou no máximo três mastros, tinham dimensões que iam de 30 a 80 metros de comprimento e uns 8 a 10 metros de largura. Eram normalmente estreitos na parte traseira (popa) e largos na frente (proa), sendo muito rápidos e associados a uma grande manobrabilidade. Eram conhecidos entre os britânicos como “Pilot boat” (barco do piloto) e eram utilizados principalmente na navegação de cabotagem.

Entretanto, não podemos deixar de perceber uma terrível particularidade em relação a esse caso, que me incomodou de verdade ao ler esses relatos – o tal Mesquita e seus asseclas verdadeiramente “socaram” entre 200 a 250 pessoas naquela pequena embarcação. Por essa razão não é de se estranhar que ele trouxe da África basicamente jovens e crianças, pois assim cabiam mais “peças” para serem vendidas em Pernambuco.

Mas enfim, Paulo Africano estava a bordo desse Palhabote de Sirinhaém?

Escravo africano no Brasil na década de 1890.

Sem maiores dados fica difícil corroborar essa questão. Mas se é verdadeira a informação que ele transmitiu aos seus contemporâneos em relação a sua chegada ao Brasil, que foi depois retransmitida a Câmara Cascudo, então na data do seu falecimento fazia quase 50 anos que havia acontecido o desembarque em Sirinhaém.

Vamos apenas imaginar que muitos daqueles jovens e crianças que desembarcaram do Palhabote tivessem uma média de oito a dezessete anos de idade, então é inteiramente plausível que Paulo Africano estivesse a bordo e, mesmo com todas as agruras da escravidão, tenha falecido em Natal 60 anos depois.

O problema sobre isso é que, conforme o leitor poderá ler mais adiante, ele não tinha a menor ideia da data do seu nascimento.

A vida de Paulo Africano, ou Paulo José de Oliveira, em Natal

Nada sabemos sobre o andamento de sua vida até o fim da escravidão. Tampouco temos dados de como e porque ele veio parar na capital potiguar. Mas uma coisa é certa – a sua passagem por aqui não ficou sem registros.

A informação mais antiga que encontrei sobre Paulo Africano também foi escrita por Luís da Câmara Cascudo. É um texto existente no extinto Diário de Natal, sobre a vida de um francês chamado Vitor Lafosse, que viveu na capital potiguar entre o final do século XIX e início do XX e morou na Rua Camboim, atual Rua Professor Fontes Galvão, a mesma que se inicia defronte ao portão principal do Colégio Marista, no bairro do Tirol.

Atual Rua Professor Fontes Galvão, antiga Rua Camboim – Fonte – Google Street View.

Foi através das informações de Francisco Artêmio Coelho, que Cascudo soube que o francês morava nessa rua em 1882 e que teria sido o primeiro habitante do logradouro. Mas o próprio Cascudo contesta a informação de Coelho e afirma que “Antes disso, porém, lá residia Paulo Africano”.[13] Cascudo não aponta a fonte dessa informação e nem uma data de quando Paulo passou a morar nesse setor de Natal.

Existem outras informações sobre Paulo Africano e elas são notícias relacionadas ao Coco de Zambê, a prática de rituais religiosos de matriz africana e a atenção que a polícia de Natal tinha com Paulo Africano e suas atividades.

Ele foi preso por um dos subdelegados da cidade em dezembro de 1897, por “ofensas à moral pública”. No mesmo dia foi posto em liberdade junto com um cidadão de nome Luiz Cândido de Mello, este detido por embriaguez. A notícia de sua prisão não explica o que foram essas ofensas, mas na foto abaixo é possível ler e compreender o que para a justiça potiguar daquela época significava essas “ofensas à moral pública”.[14]

Em abril de 1902 Paulo Africano volta a se encontrar com a polícia e a justiça. Ele foi preso pelo subdelegado da Cidade Alta por “embriaguez e distúrbios”, junto com outros sete homens. Tal como na prisão anterior, a nota do jornal nada explica sobre a detenção e todos foram soltos no dia seguinte à prisão.

No ano seguinte uma nova detenção, dessa vez com muito mais detalhes.

O jornal A República da época, órgão oficial do governo estadual, que neste período estava nas mãos de Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, informou que na área da Praça Pedro Velho, então muito maior e mais aberta do que conhecemos atualmente, aconteceu um “samba”. Na edição de 8 de julho de 1903 deste jornal, uma quarta feira, sabemos que o evento ocorreu em um “casebre em ruínas”, que era “uma ameaça à segurança e higiene públicas” e que o evento ocorreu “sábado, até a manhã do dia 3 de julho”, quando uma “súcia de vadios”, promoveram um “samba” com “gritos infernais”. Afirma a nota que o problema não era novo e o local era utilizado para “Práticas imorais”.

Uma coisa é certa, o termo “Samba” utilizado pelo jornal, não tinha nenhuma relação direta com o ritmo musical que tanto sucesso faz no carnaval do Rio de Janeiro. Nessa época esse termo era muito comum nas páginas deste periódico. Era como normalmente a elite natalense designava um lugar onde pessoas pobres e negras se divertiam na provinciana Natal do início do século XX. O tal “Samba” seria um baile de gente simples, equivalente a uma função, um pagode, um arrasta-pé, ou um forrobodó.

A próxima notícia, infelizmente, foi a morte de Paulo Africano. Entretanto a nota do seu falecimento é o texto mais completa sobre a vida desse antigo escravo e conta interessantes detalhes. Trago a transcrição na íntegra, conforme foi noticiado no jornal A República, edição de 15 de abril de 1905, página dois.

PAULO AFRICANO – Todos os habitantes desta capital, mesmo os mais velhos, conhecem por lhes haver feito as delícias do tempo de infancia, em que a meninada costumava andar à solta, o célebre Zambê, ou Puita dos campos do Camboim, que, um pouco decadente mas sempre feroz, veiu atravessando as edades até a epoca actual, apezar das advertencias da policia e dos protestos da visinhança que não apreciava aquellas matraqueações.

Como quer que seja, o Zambê de Mestre Paulo era uma das notas curiosas desta capital, Não só pela gravidade com que rangia a puita e o ardor do sapateado, como pela figura interessante do Mestre Paulo, africano, cuja edade nem elle sabia. Tinha por profissão pescador, respeitado e cortez, porém valente como as próprias armas.

Mestre Paulo era um bom chefe de família e identificou-se tanto com seu Zambê, a ponto de fazer delle uma espécie de religião. Não compreendia a vida sem o Zambê. E de seu natural valente, nada subserviente, tinha posturas humilhantes, a sua voz subia toda sua gamma de supplica, quando o ameaçavam de impedir seu divertimento.

Ao tocar puita, e a sapatear no solo zambêou a vida – durante 60, 70, 80, 90 annos, um seculo quem sabe? – até que no dia 12 do corrente, sereno e calmo como um justo, passou desta à melhor vida, vencido e derrotado no seu unico e terrivel combate com a morte.

Escravos brasileiros tocando tambores.

É muito interessante ler no mesmo jornal oficialista, que várias vezes noticiou Paulo Africano como um “perturbador da ordem pública”, uma interessante coluna à guisa de seu necrológico. Isso em um tempo onde nesse jornal era muito raro se escrever algo mais substancioso sobre um homem pobre e negro, que “Não compreendia a vida sem o Zambê”.

Luís da Câmara Cascudo em seu livro “Meleagro – Pesquisa do Catimbó e notas da magia branca no Brasil” (2ª Edição, Editora Agir, Rio de Janeiro, 1978, pág. 91 e 92), complementou esse texto informando que as danças promovidas por Paulo Africano quase sempre ocorriam no sábado, onde o Mestre “roncava a puíta a noite inteira”. A puíta é um instrumento musical de origem africana, feito de um tronco ou cilindro oco, tapado por uma pele num dos lados.

Marcas de açoites em escravo.

Nessas mesmas páginas, Cascudo também registrou sobre as danças promovidas por Paulo Africano – “Mas dançava quem queria dançar, ricos e pobres, gente do comércio, estudantes, soldados, empregados públicos, brancos, pretos e cinzentos. Ninguém esqueceu, quarenta anos depois, o zambê de Mestre Paulo”.[15] 

Já no livro “O Ritual Umbandista”, de autoria de Renato Sérgio Santiago de Melo e publicado em 1973, encontramos uma interessante informação. Segundo o autor, através de informações conseguidas com a neta de Paulo Africano, Alzira de Oliveira, encontrada pelo pesquisador no início da década de 1970 e vivendo no Bairro de Lagoa Seca, seu avô tinha uma casa onde se dançava o mais puro Coco de Zambê. O seu nome cristão era Paulo José de Oliveira, sendo considerado “bem quisto” e “bom pai de família”. O livro afirma que Paulo Africano havia se identificado tanto com o Coco de Zambê, a ponto de fazer desta manifestação cultural “uma espécie de religião”.

Sérgio Santiago informa que seu próprio sogro, Lupicínio Ramos, morador do Bairro da Ribeira, fazia questão de ir com alguns amigos, sempre aos sábados, para assistir o Zambê que acontecia na casa de Mestre Paulo.

Apesar do Coco de Zambê apresentado na casa de Paulo Africano ser tido pela sociedade local como uma festa, para esse autor ele era na verdade uma manifestação do sincretismo afro-brasileiro, distorcida pela ação policial que existia. Para o autor de “O Ritual Umbandista”, o Coco de Zambê era uma dança africana de significação religiosa. Esta tese foi originalmente proposta pelo médico alagoano e antropólogo Arthur Ramos de Araújo Pereira.

NOTAS


[1] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 55.

[2] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 33.

[3] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Pág. 315. 

[4] Depoimento de Joseph Cliffe. In CONRAD, Robert. Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton, Princeton University Press, 1983, p. 34.

[5] Como é de conhecimento geral, na Grã-Bretanha existe a Câmara dos Comuns, como eles chamam a câmara baixa do parlamento, que, se não me engano, equivale no Brasil a nossa Câmara dos Deputados. Essa instituição parlamentar possui um site muito interessante, onde estão digitalizadas e transcritas milhares de páginas da atuação dos seus membros, dos debates e ação das comissões ali criadas, entre os anos de 1803 até 2005 (https://api.parliament.uk/historic-hansard/index.html). Esse material mostra através dos muitos debates sobre a questão da escravidão, do tráfico de escravos e da atuação da Royal Navy na repressão ao comércio humano entre a África e o Brasil, detalhes interessantíssimos sobre esse tema.

[6] Um naufrágio encontrado no início de 2019 no Rio Mobile, Alabama, Estados Unidos, mostrou que era a escuna Clotilda, que afundou em 1860. Naquela época, 110 mulheres, homens e crianças foram trazidos ilegalmente para Mobile em um veleiro desde Benin, na África Ocidental. Para encobrir o crime, o navio foi incendiado e, assim, afundado. A descoberta prova que o comércio de escravos continuou nos Estados Unidos após a proibição e fez surgir um extenso mercado negro de escravos que durou anos. 

[7] FREYRE, Gilberto Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição, São Paulo: Global Editora, 2003. Págs. 469 e 470. 

[8] Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 796, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997. Sobre os assentamentos dinamarqueses na Costa do Ouro ver https://da.wikipedia.org/wiki/Den_danske_Guldkyst

[9] Ver Ver THOMAS, Hugh The Slave trade:the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pág. 790, Simon & Schuster Paperbacks, New York, USA, 1997.

[10] Sobre esse caso ver – https://tokdehistoria.com.br/2015/02/22/1850-o-combate-do-hms-cormorant-contra-o-forte-de-paranagua/

[11] Decreto nº 731, de 14 de Novembro de 1850, que regulou a execução da Lei N.º 581, que estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império do Brasil. Ver em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-731-14-novembro-1850-560145-publicacaooriginal-82762-pe.html

[12] Sobre o desembarque de Sirinhaém ver CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de; CADENA, Paulo Henrique Fontes. A política como “arte de matar a vergonha”: o desembarque de Sirinhaém em 1855 e os últimos anos do tráfico para o Brasil. Topoi. Rio de Janeiro, v. 20, n. 42, p. 651-677, set/dez. 2019 Disponível no site: http://www.scielo.br/pdf/topoi/v20n42/2237-101X-topoi-20-42-651.pdf.

[13] Ver Diário do Natal, ed. 25/06/1962, segunda-feira, pág. 3.

[14]  Ver Collecção de Leis Provinceais do Rio Grande do Norte – Anno de 1884, pág. 42.

[15] Câmara Cascudo comentou “quarenta anos depois”, porque a 1ª edição do livro Meleagro foi lançado em 1951. 

RACISMO À BRASILEIRA – SEMPRE CÍNICO E VENENOSO!

Rostand Medeiros

Acho sempre muito engraçado quando encontro pessoas que dizem, muitas vezes alterando o tom da voz e com ar de extrema sapiência, que “no Brasil não existe racismo”.

Quem dera fosse assim!

O racismo no Brasil existe e possui na sua gênese um cinismo miserável, que espalha um veneno terrível, além de ser algo muito antigo, conforme podemos ver na foto que abre esse texto.

É uma foto publicada em uma revista “Fon Fon” de 1908, um dos mais respeitáveis informativos brasileiros do início do século XX.

Nela vemos uma mulher muito bem trajada, com um vestido típico da alta sociedade da sua época, com o colarinho fechado, bordados, chapéu com ramos e flores, além de luvas. Ela traz uma sobrinha clara para lhe proteger do sol.

Pelos desenhos existentes na pedraria da calçada ela está em um boulevard muito bem organizado. Ao fundo vemos mesas e cadeiras, com uma cobertura para proteger do sol, apontando que no local existe um café, ou um restaurante, certamente um interessante ponto de encontro. Na rua estão estacionadas carruagens, talvez do tipo cabriolet, ou caleche. Em suma, era um local “chic”, onde provavelmente se reunia a alta sociedade do Rio de Janeiro.

A foto não é muito nítida, mas percebemos que essa mulher não parece ser tão nova em sua idade e ela tem a mão uma criança, um menino, que veste uma roupa do tipo “calça curta”, com uma pequena gravatinha contendo detalhes geométricos interessantes, que se repetem no colarinho. Nos pés o menino parece calçar botinas. Em tudo são roupas caras, típicas de uma criança da alta sociedade dessa época.

Mas a mulher olha diretamente para a câmera. Um olhar firme, sem sorriso no rosto, um olhar de quem não gosta do que está acontecendo.

Conforme podemos ver acima, a foto foi publicada com a seguinte frase: “Mme. Cecília Carvalho e seu interessante filhinho”. O “Mme.” é diminutivo de mademoiselle e essa mulher, conforme pude ver nos jornais da época, era uma pessoa cujo nome era constantemente repetido como participante de inúmeros eventos sociais. Indicando ser uma mulher da alta sociedade carioca, da elite.

A publicação foto em si não teria nada demais e certamente seria motivo para deixar Mademoiselle Cecília Carvalho feliz. Mas a criança que aparece no “instantâneo” é negra.

Diante da expressão do rosto de Mademoiselle Cecília, acredito que a frase que acompanha a foto na “Fon Fon” é uma ironia ridícula, que reserva uma espécie de reprimenda, certamente pelo fato dela estar acompanhada de uma criança negra nesse tipo de ambiente.  

Evidentemente que sem maiores dados fica difícil de compreender o que se esconde por trás da foto e da publicação da frase.

Não sei se essa criança era realmente filho de Mademoiselle Cecília. Acho que não. Talvez um filho de criação, ou de alguma empregada. Mas seja lá quem fosse a criança, aparentemente para aquela mulher não havia nenhum problema em sair na rua com ele. Não havia problema que ele fosse bem vestido, assim como ela. Mas parece que para o fotógrafo, e por extensão toda a sociedade da época, havia algo errado naquele conjunto. Tanto que valeu o click e a frase…

E assim vamos vivendo nesse país negro, repleto de ironias e hipocrisias em relação ao seu racismo antigo e ainda muito presente.

PINHEIRO MACHADO: O CHEFÃO SECRETO DA REPÚBLICA VELHA


José Gomes Pinheiro Machado

Eminência parda, mandarim e implacável, o senador, assassinado em 1915, mantém o título de homem mais poderoso da República.

Autora- Claudia Giudice

Fonte – https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/pinheiro-machado-historia.phtml?utm_source=facebook.com&utm_medium=facebook&utm_campaign=facebook&fbclid=IwAR1LJyh78P4OpXYgld65ZhH6-ruVIQVdzJSQn3gJvES0nAUGKRf2nWwfQP4

Francisco Manço de Paiva, 33 anos,entrou desapercebido pela porta da frente do Hotel dos Estrangeiros, localizadona Praça José de Alencar, Lapa, no Rio de Janeiro. Inaugurado em 1849, o hotel era considerado o melhor da cidade, logo, do Brasil. Foi um dos primeiros a ter banheiros com ducha, lavanderia, restaurante e telefone com linha exclusiva para os hóspedes ilustres. Rapidamente, se tornou ponto de encontro de empresários e políticos da capital federal. Por esse motivo, inclusive, Paiva estava lá, esperando. Escondido.

Naquela manhã de 8 de setembro, Pinheiro Machado não teve um dia bom. Estava frustrado porque não conseguiu quórum na sessão que confirmaria o ex-presidente Hermes da Fonseca, seu candidato, como senador pelo Rio Grande do Sul. Depois do almoço, deixou o Palácio do Conde dos Arcos, sede do Senado Federal, no Campo de Santana, para se reunir com o adversário político e ex-presidente paulista Albuquerque Lins. Às 16 horas e 30 minutos, conforme o combinado, chegou ao saguão do Hotel dos Estrangeiros fazendo barulho. Estava em casa. Lá era seu endereço preferido para encontros de política. Segurava o senador Rubião Júnior, do PRP (Partido Republicano Paulista) de São Paulo, pelo braço e era seguido de perto pelos deputados paulistas, Cardoso de Almeida e Bueno de Andrade. O vai e vem dos hóspedes parou quando ouviu-se o grito: “Ah, canalha. Fui apunhalado pelas costas”.

Outra imagem de Pinheiro Machado – Fonte –  Wikimedia Commons

A frase era literal. Aos 63 anos,conhecido por ser a eminência parda da República Velha e um dos mais poderosos políticos do país, o senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado foi ferido de morte pelo jovem Paiva, um padeiro desempregado, desertor do Exército e ex-cabo da polícia, natural do Rio Grande do Sul.

O assassino confesso não fugiu nem tentou se livrar da culpa. Entregou a faca suja de sangue nas mãos de Cardoso de Almeida e esperou a polícia. Foi condenado a 30 anos de prisão e indultado pelo presidente Getúlio Vargas em 1935. Até a morte, na década de 1960, declarou ter agido por conta própria, e não a mando de alguém.

O assassino justificou o crime como a“salvação do Brasil” e se disse inspirado pela leitura de um artigo publicado naquele dia no jornal Gazeta de Notícias. Nele, Pinheiro Machado era acusado deter “braço longo” e de querer mandar em todos os assuntos da República. O padeiro afirmou também que pretendia se vingar do fato de o senador ter sido responsável pela morte de um estudante em Porto Alegre que protestara contra a decisão dele, Machado, de eleger Hermes da Fonseca para o Senado.

Força de Pinheiro Machado – Constituição Brasileira de 1891, onde vemos na página da assinatura do documento a firma de José Gomes Pinheiro Machado (sexta assinatura). Acervo Arquivo Nacional.

Faz 103 anos que essa cena aconteceu. Faz 103 anos, também, que o advogado, general e senador previu a própria morte. Escreveu uma carta-testamento, entregue à sobrinha e afilhada Maria José Azambuja, na qual previa um fim trágico para si. Meses depois, declarou ao jornalista João do Rio, um dos mais influentes de sua época, a seguinte frase: “Morro na luta. Matam-me pelas costas, são uns pernas finas. Pena que não seja no Senado, como César”. Sim, ele era odiado por que tinha poder demais. Era famoso por fazer presidentes, realizar acordos de bastidores impublicáveis e por ser implacável com seus desafetos.

Desde a proclamação da República, nenhum outro senador ou deputado teve, por tanto tempo, igual domínio sobre a política brasileira. O ex-senador gaúcho e fundador do PMDB Pedro Simon, autor da coletânea Discursos de Pinheiro Machado, de 2005, da Editora do Senado, registra: “José Gomes Pinheiro Machado era um político afastado dos holofotes, mais voltado para a atividade de gabinete e totalmente interessado nas manobras de bastidores e na costura dos grandes acordos políticos. Era uma eminência parda. Ruy Barbosa foi o nosso grande patrono no Senado, mas como político foi um homem de derrotas. Perdeu duas vezes a eleição para presidente da República e não tinha influência no governo. Quem mandava e elegia presidentes era o Machado, um dos mais influentes políticos da República, de quem hoje ninguém fala.”


Manço, assassino de Pinheiro Machado – Fonte – Wikimedia Commons

Antes do crime que lhe tirou a vida, Machado foi alvo de protestos populares praticamente diários. O panelaço acontecia na frente do Palácio do Conde dos Arcos, prédio onde hoje funciona a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele era o tirano-mor da República, acusado de abuso de poder, de desvio de remessas do Exército para tropas sob seu comando, contrabando, fraudes e de até manipular o câmbio. Em um dia muito turbulento, seus assessores aconselharam-no a sair pela porta dos fundos. Fez o contrário. Desceu de cabeça erguida pela escadaria da frente e ordenou ao chofer do seu coche o seguinte: “Siga em uma velocidade nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça medo”.

Espada em punho

Pinheiro Machado era filho de um fazendeiro e deputado federal de Cruz Alta, RS. Truculento, cultivou desafetos vida afora e tinha orgulho dessa coleção. O perfil de homem sem limites, sem escrúpulos e de gigantesca força começou a ser desenhado na juventude.


Pinheiro Machado aos 15 anos, no Corpo de Voluntários da Pátria, como soldado do 4º Corpo de Caçadores a Cavalo, na luta às hordas paraguaias que haviam invadido o solo brasileiro.

O historiador Cyro Silva, autor da primeira biografia sobre o político, o descreve de modo quase mítico:“Desde a adolescência, deu inequívocas provas de seu mais puro amor à pátria. Aos 15 anos incompletos, aluno da Escola Preparatória, anexa à Escola Militar da Corte, abandonava seus estudos, sem consentimento das autoridades superiores e, com o desconhecimento dos seus pais, alistava-se no legendário Corpo de Voluntários da Pátria, como soldado do 4º Corpo de Caçadores a Cavalo, na luta às hordas paraguaias que haviam invadido o solo brasileiro. Durante quase três anos suportou as dificuldades de uma luta feroz, em clima insalubre,somente dela se retirando quando o seu organismo em formação não pôde resistir por mais tempo aos miasmas pestíferos dos pântanos paraguaios”.

Foi resgatado do pântano pelo pai. Depois de tratado, mudou-se para São Paulo para estudar direito no Largo de São Francisco. Lá, sucumbiu ao vírus da política, herança de família. Tornou-se fanático defensor do estabelecimento da República no país. Conquistou seu diploma em 1878 e casou-se com a paulista Benedita Brazilina da Silva Moniz, que seria sua companheira pela vida toda. Nos primeiros anos de casados, viveram no Rio Grande, onde Pinheiro Machado advogou e articulou sua futura carreira política ao lado de outros republicanos, como Venâncio Aires e Júlio Prates de Castilhos, este seu grande amigo.

O fim do Império coincidiu com sua primeira eleição para o Senado, em 1890. Nascia ali um articulador das oligarquias regionais com casaco de general. A República Velha, vale lembrar, é o período que começa com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, e termina com a Revolução de 1930. Ela teve 13 presidentes e é dividida pelos historiadores em dois períodos: República da Espada, dominado pelos setores mobilizados do Exército apoiados pelos republicanos, e República Oligárquica, quando o poder passou às mãos das elites regionais do Sul e Sudeste.


Hotel dos Estrangeiros, onde Pinheiro Machado foi morto – Fonte – Wikimedia Commons

Machado foi senador por 25 anos, com uma breve interrupção. Em 1893, deixou a cadeira para tomar a frente do comando da Divisão Norte e combater, em seu estado, a Revolução Federalista (1893-1895). De espada em punho, lutou pela recém-nascida República e derrotou os revolucionários monarquistas e separatistas comandados por Gumercindo Saraiva, na Batalha de Passo Fundo. Mereceu pela bravura a fama de degolador e a patente de general de brigada honorário, que lhe rendeu o título de condestável da República. Ele era da turma da espada. Tanto que em 1897 foi acusado de ordenar o atentado contra o então presidente Prudente de Morais, o primeiro civil eleito para governar o país. Ficou preso alguns dias,mas, por falta de provas, foi liberado. Nunca perdeu os modos de general de fronteira. Nas brigas com seus desafetos, era comum atiçá-los a resolver o assunto na mão, na espada ou na bala. Num desses duelos, feriu com um tiro o diretor do jornal Correio da Manhã, Edmundo Bittencourt .

O jornalista e historiador gaúcho Luiz Antônio Farias Duarte corrobora a visão do político todo-poderoso.Em sua tese de mestrado Imprensa e Poder no Brasil –1901-1915 – Estudo da Construção da Personagem Pinheiro Machado pelos Jornais Correio da Manhã (RJ) e A Federação (RS)analisa como o político foi protagonista na mídia durante os primeiros 15 anos do século passado. Por ter debutado jovem, em 1890, tem o crédito e a fama de ser um dos pais da República. A sua primeira articulação famosa foi com o presidente Deodoro da Fonseca.

A pedido de Júlio de Castilhos, Machado procurou o marechal para convencê-lo a moderar o relacionamento com os políticos, apelando em nome do Rio Grande para que não fechasse o Congresso Nacional. O diálogo não logrou sucesso, mas impressionou o então presidente. “Esse fato significou a sua emergência na vida nacional. Ele que havia lutado como voluntário da pátria aos 14 anos e quando estudante de direito fora um dos fundadores do Clube 20 de Setembro, inspirado nos ideais republicanos dos revolucionários farroupilhas de 1835-1845, iniciava no Rio de Janeiro uma influência política que se prolongaria por mais de duas décadas e meia”, descreve Farias Duarte. 

Ao se tornar vice-presidente do Senado em 1902, Pinheiro Machado descobriu sua vocação para eminência parda da República. Ele controlava a Comissão de Verificação de Poderes. A sua função era decidir quais candidatos eleitos pelo povo poderiam ou não tomar posse. Como um Nero, levantava ou abaixava o polegar para matar no berço novos mandatos parlamentares. Cultivou ódio e abusou do poder que possuía.


Marechal Deodoro da Fonseca – Fonte – Wikimedia Commons

No período da República oligárquica (1894-1930), o senador atingiu o ápice de seu poder. Ultra-articulado e visionário,em 1910 criou o Partido Republicano Conservador (PRC), que se destacou diante do Partido Republicano Paulista, o primeiro do Brasil, e do Partido Republicano Rio-Grandense, também fundado por ele, ambos com viés regionalista. Manobrava com maestria as leis, as verbas e os subsídios para acumular poder para si e enfraquecer as poderosas bancadas de São Paulo e Minas. Na época, as oligarquias dominantes eram desses dois estados, compondo a famosa política do café com leite, por causa da importância da produção de café paulista e do leite mineiro para a combalida economia agrícola e industrial da época.

Dos pampas ao Cariri

Esse poderio foi construído sempre do Senado. Pinheiro Machado investiu na constituição de uma bancada periférica que, sob sua permanente liderança, passou a ser crucial nas votações. Deu tão certo que ele estendeu a iniciativa à Câmara, o que lhe garantiu uma expressão política e um poder incomparáveis.

Outro exemplo emblemático da sua força política conecta o senador gaúcho ao Cariri de Padre Cícero Romão Batista. Líder inconteste da sua região, prefeito de Juazeiro e suspenso das ordens sacerdotais, Cícero foi aclamado pela convenção do PRC (Partido Republicano Conservador) como candidato à terceira vice-presidência do Ceará, cargo que aceitou de bom grado. As eleições aconteceriam em abril de 1912. No meio do caminho, o presidente do Ceará, seu padrinho político, Nogueira Accioly, também conhecido como Coronel Babaquara por sua fama de apalermado e roceiro, foi obrigado a renunciar por causa de um massacre de sua polícia contra uma passeata de mulheres e crianças. Parecia o fim. Não foi.

O escritor Lira Neto destaca o episódio na biografia Padre Cícero, Poder, Fé e Guerra no Sertão: “Por uma dessas circunstâncias que somente a política é capaz de explicar, um acordo de bastidores terminou por garantir a manutenção do nome de Cícero na terceira vice-presidência estadual. Foi um acerto de cúpula, firmado no Rio de Janeiro, com a bênção do chefe nacional do PRC, o senador Pinheiro Machado, considerado à época o homem mais poderoso da República e candidato declarado à sucessão de Hermes da Fonseca. Machado, que mantinha sua influência nacional à custa do apoio das oligarquias estaduais,providenciou em seu laboratório político o antídoto contra a derrocada de Accioly”. Na marra, Cícero ocupou uma das três vagas de vice-presidente doestado.

Pinheiro Machado X Ruy Barbosa

Sua influência no executivo cresceu em 1909, quando o vice Nilo Peçanha assumiu a presidência após a morte de Afonso Pena. Foi um período de conflitos e disputas. Ambos, no entanto, apoiaram a candidatura do marechal Hermes da Fonseca à Presidência da República contra o baiano Ruy Barbosa, em 1910.


Ruy Barbosa  – Fonte – Wikimedia Commons

Foi uma disputa desigual, que revelou a força do filho de Cruz Alta. Conhecido como o “Águia de Haia”, Ruy Barbosa era uma figura notável. Diplomata, jurista, jornalista, escritor, tradutor e espetacular orador, tinha tudo para ser eleito presidente não houvesse um Pinheiro Machado em seu caminho. Hermes recebeu 403 mil votos, enquanto Ruy mereceu 222 mil. Na época, essa diferença não era normal.

Quem estava na oposição recebia, no máximo, 20 mil votos. Na tribuna do Senado, as rusgas entre o Águia de Haia e o “quero-quero dos pampas”, apelido de Pinheiro Machado, eram exóticas e divertidas. Brigavam por causa do estouro do tempo das falas,trocavam ofensas infantis e se enfrentavam por causa até de conjugação verbal.Sempre que Machado atropelava o português em suas falas – como quando disse “Eu me defenderei enquanto vossa excelência se manter na tribuna” – Barbosa retrucava, professoral: “Perdão, enquanto eu me mantiver é o que o nobre senador quer dizer”.

Machado e Ruy Barbosa foram adversários notórios e permanentes. Tipo gato e cachorro, embora sempre unidos pela causa republicana. A briga, a propósito, é anterior à disputa eleitoral. Começou quando Barbosa, então ministro da Fazenda, exagerou na política de crédito em favor das elites regionais. A medida pressionou a dívida pública e gerou uma crise inflacionária. O presidente Campos Salles, quando assumiu, pediu ajuda de Machado para acalmar os descontentes com a nova política econômica de rédeas curtas.


Charge publicada pela revista O Gato Reprodução

Por essas e outras, o primeiro mandarim da república tornou-se uma figura legendária, influente e ao mesmo tempo alvo de todos os ódios e críticas. Ao assumir, o marechal Hermes da Fonseca achou que poderia livrar-se do padrinho político ao criar a política salvacionista, na qual por meio de intervenções militares cassava os governadores para nomear pessoas da sua confiança. Não deu certo. Recuou. A fraqueza do marechal, vale dizer, tinha também razões pessoais.

Em novembro de 1912, com a morte da primeira-dama, Orsina da Fonseca, Hermes passou a se mostrar alheio a questões políticas e administrativas. Apaixonado pela cantora e artista Nair de Tefé, com quem viria a se casar em 1913, encaminhou as atribuições do cargo a auxiliares diretos. O expediente burocrático ficou a cargo do mordomo oficial, Oscar Pires. Já o político caiu nas mãos de Machado. Um ano antes de passar a faixa presidencial para o mineiro Venceslau Brás, uma piada publicada pela revista O Gato resumiu e fez justiça ao poder do senador gaúcho. Na charge, Hermes da Fonseca diz ao sucessor: “Olha, Venceslau, o Pinheiro é tão bom amigo que chega a governar pela gente”.

A REVOLTA DA CHIBATA

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Por Fernando Granato – Revista Aventuras na História

A baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, estava repleta de navios estrangeiros na manhã de 16 de novembro de 1910. As embarcações haviam aportado com autoridades para a posse do marechal Hermes da Fonseca na Presidência da República. No encouraçado Minas Gerais — o maior navio de guerra brasileiro, atracado a poucos metros do cais do porto — o clima não era nada festivo. Ao raiar do dia, toda a tripulação fora chamada ao convés para assistir aos castigos corporais a que seria submetido o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes.

Ele tinha ferido a navalhadas o cabo Valdemar Rodrigues de Souza, que o havia denunciado por tentar introduzir no navio duas garrafas de cachaça. Sua pena: 250 chibatadas. Esse seria o estopim para a eclosão da chamada Revolta da Chibata, movimento deflagrado pelos marinheiros contra os maus-tratos, que paralisaria a coração do Brasil por quatro dias e custaria a vida de dezenas de pessoas, entre civis e militares. Quase 94 anos depois, os primeiros documentos reservados sobre o conflito vêm à tona e serão revelados nesta reportagem.

João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata
João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata

Naquela manhã, depois de ser examinado pelo médico de bordo e considerado em perfeitas condições físicas, o marinheiro Marcelino Menezes, conhecido como “Baiano”, foi amarrado pelas mãos e pés e submetido ao castigo. Primeiro soaram os tambores. Em seguida, o comandante do navio, Batista das Neves, ordenou a entrada dos carrascos, que apanharam uma corda de linho e amarraram nas pontas pequenas e resistentes agulhas de aço. A guarda entrou em formação. Tiraram as algemas das mãos do marujo e o suspenderam, nu da cintura para cima, no “pé de carneiro”, uma espécie de ferro que se prendia num corrimão. Os oficiais assistiram à cerimônia em uniforme de gala, com luvas brancas e armados de suas espadas. Alguns viraram o rosto para o lado, para não ver a tortura.

Educar na Marra

A punição pela chibata foi um hábito herdado pelo Brasil da Marinha portuguesa. Os castigos tinham a função de educar na marra os supostos maus elementos que compunham os quadros inferiores. Como diziam os oficiais, as chicotadas e lambadas tinham o objetivo de “quebrar os maus gênios e fazer os marinheiros compreenderem o que é ser cidadão brasileiro”.

Chibata (8)

Na noite seguinte aos castigos sofridos por Marcelino, os demais marinheiros do Minas Gerais, recolhidos em seus beliches, decidiram que a situação não podia continuar daquela forma. “Isso vai acabar”, disse o marujo João Cândido, um negro alto, de 30 anos, que despontava como o líder absoluto da revolta que se aproximava.

Depois de muita conversa, decidiram tomar o poder dos navios à força, na noite de 22 de novembro. Na data estabelecida, tudo aconteceu dentro da estratégia programada. O sinal combinado entre os marujos para dar início ao movimento foi a chamada das 10 horas. Naquela noite, o toque do clarim não pediu silêncio e sim combate.

Cada um assumiu o seu posto e a maioria dos oficiais já estava em seus camarotes. Não houve afobação. Cada canhão foi guarnecido por cinco marujos, com ordem de atirar para matar contra quem tentasse impedir o levante.

Cabo Gregório do Nascimento, que assumiu o comando do encouraçado Minas Gerais, um dos mais modernos e poderosos navios de guerra do mundo em 1910
Cabo Gregório do Nascimento, que assumiu o comando do encouraçado Minas Gerais, um dos mais modernos e poderosos navios de guerra do mundo em 1910

Logo depois do toque da corneta, o comandante Batista das Neves — que estivera num jantar a bordo do cruzador francês DuaguayTrouin — voltou ao seu navio em companhia do ajudante de ordens. Conversou rapidamente com o segundo-tenente Álvaro da Mota Silva – que assistia à faxina no convés – e recolheu-se aos seus aposentos.

No momento em que descia as escadas inferiores do navio e se despedia do comandante, Mota Silva recebeu uma forte pancada no peito, um golpe de baioneta desferido em cheio por um marinheiro que estava de tocaia. O segundo-tenente tropeçou, mas ainda conseguiu apoiar-se com a mão esquerda na arma do marujo e com a direita sacou sua espada. Com a força que ainda lhe restava, atravessou o estômago do marinheiro que, aos gritos, deu alguns passos e caiu.

Oficial comandante Baptista das Neves, morto pelos marinheiros rebeledados
Oficial comandante Baptista das Neves, morto pelos marinheiros rebeledados

Atraídos pelo ruído, muitos marujos foram ao convés, para onde subiram também outros oficiais procurando conter os revoltosos. A tribulação, bradando vivas e aclamando “liberdade” e “abaixo a chibata”, avançou contra o pequeno grupo de superiores para massacrá-lo. O comandante Batista das Neves ainda tentou acalmar os ânimos e manter a disciplina. Atacado, reagiu e lutou de espada em punho cerca de 10 minutos, até ser atingido na cabeça, por golpes de machadinha.

Primeiro Disparo

O marujo Aristides Pereira, conhecido como “Chaminé”, chegou perto do corpo estendido do comandante, certificou-se de que ele estava morto e urinou sobre seu cadáver. O corpo permaneceu horas no convés e alguns marinheiros ainda fizeram graça com o comandante morto, imitando movimentos de ginástica à sua volta. A ironia referia-se ao fato de que Batista das Neves obrigava os marujos a fazer ginástica pesada todas as manhãs, para compensar a relativa imobilidade física da vida de bordo nos navios.

Chibata (6)

Cinquenta minutos depois, quando cessou a luta no convés, João Cândido mandou disparar um tiro de canhão, sinal para dar o alerta aos outros navios aliados: o São Paulo, o Bahia e o Deodoro. O estrondo do primeiro tiro de canhão, vindo da direção do mar, fez tremer a cidade do Rio de Janeiro. Nem cinco minutos depois, novo tiro. Dessa vez, janelas e vidraças foram quebradas em casas do centro da cidade.

Chibata 1

O líder do movimento ordenou que todos os holofotes iluminassem o Arsenal da Marinha, as praias e as fortalezas. Expediu também uma mensagem por rádio para o Palácio do Catete, sede do governo federal, informando que a esquadra estava rebelada para acabar com os castigos corporais.

O presidente recém-empossado, marechal Hermes da Fonseca, e todo seu ministério assistiam, no Clube da Tijuca, à apresentação da ópera Tanhauser, de Wagner, numa inesquecível recepção que ainda fazia parte dos festejos pela vitória eleitoral. Depois do primeiro tiro de canhão, ele voltou imediatamente para o Catete.

Chibata (13)

Em seu gabinete, Hermes da Fonseca foi avisado de que a Marinha estava revoltada e que a estação de rádio do morro da Babilônia captara a primeira mensagem dos rebeldes: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos cidade e navios que não se revoltarem. Assinado: guarnições Minas, São Paulo e Bahia”.

Almirante Negro

De início, o governo resolveu endurecer. Avisou que mandaria torpedear as embarcações caso não houvesse rendição. A repercussão da notícia, no entanto, gerou pânico na cidade. O presidente preferiu então abrandar a reação. Ele dispunha de 2 630 homens para enfrentar os 2 379 rebeldes. O poder de fogo dos amotinados — instalados naqueles que eram alguns dos mais sofisticados navios de guerra do mundo-entretanto, era muito maior. Diante da impossibilidade de combate e com o perigo iminente de um bombardeio, Hermes da Fonseca convenceu-se de que era muito mais prudente negociar com os marinheiros revoltosos.

Chibata (14)

Enquanto o governo se debatia atrás de uma solução, a esquadra rebelada permanecia atenta, com a rotina de navios em guerra. Cada soldado tinha uma função predeterminada. Foram designados turnos de trabalho para que nunca um serviço ficasse desguarnecido.

Chibata (18)

Astuto e desconfiado, o Almirante Negro — como passou a ser chamado João Cândido pela imprensa — determinou que uma barca abastecesse os navios de água. Antes que o líquido fosse descarregado, no entanto, ele ordenou que o condutor da embarcação provasse para ver se não havia veneno. Com seu uniforme branco, já bem velho e desgastado, um pé calçado num chinelo e outro numa botina, a única marca que diferenciava o líder dos demais marujos era um lenço vermelho que levava amarrado ao pescoço. Aquele era o seu distintivo.

Caricatura da revista "O Malho" de novembro de 1910, mostrando a anistia para os marinheiros rebelados.
Caricatura da revista “O Malho” de novembro de 1910, mostrando a anistia para os marinheiros rebelados.

Em tempo recorde, a anistia foi aprovada a toque de caixa pelo Congresso Nacional e, na manhã de 26 de novembro, com o sol brilhando sobre a Guanabara, os navios iniciaram a aproximação para a rendição. Os morros, o cais e as praias estavam lotados de curiosos, alguns com binóculos, para assistir à chegada dos marinheiros. A bordo o clima era de festa e euforia.

Motim da Ilha das Cobras

Mas a anistia não durou dois dias. Em 28 de novembro, os marinheiros foram surpreendidos pela publicação do decreto número 8.400, que autorizava demissões, por exclusão, dos praças do Corpo de Marinheiros Nacionais “cuja permanência se torne inconveniente à disciplina”. O decreto abriu uma brecha para que a Marinha excluísse de seus quadros quem bem entendesse, sem maiores formalidades. As demissões foram muitas. Vários navios ficaram sem pessoal suficiente para os serviços essenciais.

Chibata (11)

Instaurou-se um novo clima de tensão nas Forças Armadas – pela publicação do decreto – e as autoridades encontraram justificativa para pensar na convocação de um regime de exceção, com poderes amplos e irrestritos para o presidente da República.

Circulavam boatos de que na ilha das Cobras — sede dos Fuzileiros Navais, localizada em frente ao cais do porto e ao lado da ilha Fiscal – o batalhão de terra organizava outro motim. Os boatos partiram das próprias autoridades, interessadas em incitar uma segunda rebelião para decretar o estado de sítio. Os oficiais esperavam apenas o primeiro tiro para entrarem em ação e deflagrarem o conflito armado.]

Chibata (1)

No dia 9 de dezembro, houve a rebelião esperada na ilha das Cobras. Às 9 horas e 30 minutos, foi dado o toque de recolher e, em vez de se dirigirem para suas camas, parte dos fuzileiros permaneceu no pátio, em grande algazarra, dando vivas à liberdade. Um primeiro tiro foi disparado, não se sabe vindo de onde. As luzes da ilha foram apagadas e os marinheiros começaram a caçar os oficiais. No escuro, disparando tiros de fuzis, eles gritavam: “Viva a liberdade. Morram os oficiais”.

A luta durou toda a madrugada, a manhã do dia seguinte e só parou ao entardecer, com a morte da maioria dos amotinados. Por todos os lados, junto aos canhões e metralhadoras destruídas, havia corpos de marinheiros. As forças fiéis aos oficiais estavam preparadas e esmagaram os rebeldes.

Presos e Mortos

O governo federal decretou o estado de sítio, tendo como justificativa a revolta dos fuzileiros navais na ilha das Cobras. As autoridades determinaram o desembarque imediato da tripulação dos navios Minas Gerais e São Paulo, que haviam tomado parte no primeiro levante. João Cândido foi preso assim que colocou os pés em solo e levado ao quartel-general do Exército. No dia 24 de dezembro, o Almirante Negro e mais 17 companheiros foram transferidos para a ilha das Cobras e colocados numa prisão sem iluminação e com ventilação imprópria, localizada no subterrâneo do Hospital Militar.

Chibata (3)

Na madrugada de 25 de dezembro, dia de Natal, o guarda da prisão notou movimento estranho na cela e ouviu gritos. O fato foi comunicado ao oficial de serviço e, em seguida, o recado chegou ao comandante Marques da Rocha, responsável pela ilha das Cobras. Nenhuma providência foi tomada.

Chibata (2)

Na manhã seguinte, o comandante Marques da Rocha, que havia levado as chaves, abriu a prisão. A cena chocaria até mesmo o mais insensível dos militares: jogados num extremo estavam 16 corpos de marujos mortos por asfixia. Num outro canto, em estado de choque, os dois únicos sobreviventes  – João Cândido e o soldado naval João Avelino. Acabava assim uma das mais violentas rebeliões militares no Brasil.

VER IGUALMENTE – https://tokdehistoria.com.br/2011/07/23/o-fuzileiro-de-taipu-que-morreu-em-nova-york/

1918 – QUANDO A GRIPE ESPANHOLA ATACOU NATAL

O PIOR É QuE 102 ANOS DEPOIS O DRAMA PODE SE REPETIR COM O NOVO CORONAVÍRUS VINDO DA CHINA

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

– Texto originalmente publicado originalmente no jornal Tribuna do Norte em 14 de fevereiro de 2008, publicado pela primeira vez no TOK DE HISTÓRIA em 19/03/2011 e revisado em 19/02/2020.

Em 1918, a pequena Natal seguia sua vida tranquila, em meio a um mundo que há quatro anos se esmagava em uma guerra com um nível de crueldade até então nunca testemunhado.

Tribuna do Norte, edição de 14 de fevereiro de 2008.

Os natalenses acompanhavam a Primeira Guerra Mundial através dos jornais locais, que traziam cotidianamente notícias dos combates, histórias pitorescas de soldados e da incrível ação das novas armas como os aviões e os submarinos. Apesar do natalense ler sobre o conflito, este se mantinha distante, sem alterar o dia a dia da cidade.

Esta sensação foi alterada quando navios brasileiros foram torpedeados por submarinos alemães e o país declarou guerra a este país em 26 de outubro de 1917.

Em todo país cresce o ufanismo e o orgulho de participar da “Grande Guerra”. O presidente Wenceslau Brás decide compor uma frota de navios da marinha de guerra, para ajudar no esforço dos aliados.

Somente sete meses depois, em maio de 1918, parte do Rio de Janeiro a pomposa frota naval, batizada de DNOG (Divisão Naval de Operações de Guerra). Em julho, esta frota composta de oito navios aporta no rio Potengi e a cidade se encanta com o aparato militar. Teve recepção, missa campal e até hino de Palmyra Wanderley para os combatentes que iam para além mar, foi declamado.

Após a partida da DNOG em direção à África, os quase 29.000 habitantes da capital voltaram ao seu ritmo tradicional e tranquilo.

Aparentemente pouca gente em Natal prestou a mínima atenção quando o jornal A República publicou na sua edição de terça-feira, 24 de setembro de 1918, uma pequena nota intitulada “Influenza”. Esta dava conta que o ministro do exterior, Nilo Peçanha, havia recebido a notícia que vários marinheiros da DNOG morreram em consequência da “influenza” ou “gripe espanhola”.

A Primeira Morte

Após a primeira notícia, começam a chegar novas informações que deixavam claro que uma epidemia estava crescendo pelo mundo afora, tornando-se o que a ciência classifica de pandemia, uma doença em escala global.

No Rio de Janeiro, ainda na segunda quinzena de setembro de 1918, após a chegada de navios de carreira, com passageiros infectados, começam a ocorrer às primeiras mortes no país.

Foto de um hospital de emergência durante a epidemia de gripe de 1918, em Camp Funston, Kansas, Estados Unidos. 

Logo depois, em 30 de setembro, A República informa que havia diversos casos da “influenza” em Recife, então a doença começa a ser mais destacada nos jornais da nossa capital. Estes reproduziam não medidas profiláticas, ou algum tipo de preparação para enfrentar a doença, mas informes de autoridades médicas, que buscavam amenizar os efeitos da gripe, classificando-a de uma “gripe comum”.

De forma geral a imprensa local não anunciava com mais ênfase o alastramento da gripe espanhola, noticiava-se com mais destaque o início do primeiro campeonato potiguar de “Foot boll”.

Mas gradativamente a situação vai mudando.

Quem lê os jornais do período, percebe como aos poucos a gripe espanhola entra no cotidiano da população de Natal. Praticamente de uma hora para outra surgem nas páginas de anúncios dos jornais inúmeras propagandas de remédios, tais como a “Kolyohimbina”, “Puritol”, ou o “Balsamo Philantropico”, que prometiam a “cura milagrosa contra o mal espanhol”.

Se tornaram frequentes em Natal a reprodução no jornal A República de notícias sobre a Gripe Espanhola em outros estados brasileiros.

Aparentemente, a primeira morte em decorrência da gripe espanhola ocorrida em Natal foi a do comerciante cearense Mozart Barroso, a bordo do navio “Pará”, que estava ancorado no porto da cidade. Em A República, na edição de 15 de outubro, informa que o falecimento ocorreu devido a uma “moléstia” contraída em Recife, vindo a falecer o comerciante em decorrência da viagem.

Se Mozart Barroso morreu ou não da gripe espanhola, os jornais não esclarecem. Entretanto, quatro dias depois, o respeitado médico Januário Cicco escreve em “A Republica”, uma coluna visando “auxiliar na defesa da saúde publica contra a epidemia de gripe ou influenza espanhola, que celeremente se disseminou por toda parte”.

Jornal A República de 1 de outubro de 1918, descrevendo a chegada da Gripe Espanhola em Recife e o que se sabia dos meios de prevenção.

O Dr. Januário recomendava então o uso da “quinina”, informando ter distribuído pelas farmácias da cidade, comprimidos deste produto. Este médico solicitava que “os poderes competentes”, ordenassem aos funcionários da Inspetoria de Higiene que fossem visitar as “choupanas dos mais pobres, distribuindo quinina, aconselhando a melhorar os aspectos de higiene, escolher uma alimentação sadia, beber água de procedência e evitar aglomerações”.

Enquanto isso chegava notícias que no Rio de Janeiro, a 19 de outubro, fora decretado um feriado de cinco dias de duração, na tentativa de se evitar aglomerações e o pânico. Em 21 de outubro morreria o primeiro doente na cidade de São Paulo. Até dezembro de 1918, entre 12.000 a 17.000 pessoas, morreriam na então capital federal e entre 5.400 e 12.300 sucumbiriam em São Paulo.

Nem é preciso dizer que o primeiro campeonato de futebol do estado do Rio Grande do Norte foi adiado.

O Medo se Propaga

Engana-se quem pensa que a Gripe Espanhola atacou basicamente Natal. Conforme podemos ver na capa da edição do dia 7 de dezembro de 1918 do jornal O Município, de Jardim do Seridó, a peste também o interior potiguar.

Em meio à apreensão causada pelo alastramento da gripe, o comércio se adequava como podia a triste novidade. A farmácia Torres anunciava que por 1$800 (um mil e oitocentos réis) era vendido um preservativo que poderia ser utilizado no ato sexual, mesmo em meio ao surto de gripe, “prevenindo pessoas que dele fazem uso com vantagem”. Para outras atividades a situação era mais complicada; a fábrica de gelo da Força e Luz, a única da cidade, parou suas atividades durante a ocorrência do surto.

Surgem boatos que os soldados do 40º Batalhão de Caçadores, a unidade do Exército Brasileiro existente em Natal na época, teriam contraído a doença em larga escala, mas estes boatos não tinham fundamento.

Percebe-se pelos jornais que setores da sociedade passam a cobrar dos órgãos governamentais uma maior atenção com as questões de higiene pública, onde surgem cobranças para a extinção de lamaçais existentes nas ruas da cidade, ou contra o abate de animais em residências, além da providência de se enterrar com urgência as carcaças. A 23 de outubro, a diretoria do Colégio da Conceição decidiu encerrar o ano letivo, “sem entrega de diplomas e sem festas”, devido à “epidemia”.

Conforme o medo do alastramento da doença crescia, medidas profiláticas eram recomendadas, com algumas ações que pareciam saídas de algum tratado de bruxaria; lavagens intestinais com água morna, chá de pimenta d’água com duas gotas de glicerina, ou tomar um vidro de magnésia fluida, com vinte gotas de “briônia” e dez gotas de “tintura de beladona”.

O interior não se mostrava imune aos efeitos da pandemia, de Areia Branca vinha à notícia que a gripe havia atacado a cidade. De Nova Cruz, Mario Manso, o Presidente da Intendência (cargo que atualmente equivale ao de prefeito), informava que se recuperava da gripe. Já o Intendente de Mossoró, Jerônimo Rosado, informava que 38 pessoas morreram na cidade.

As Ações do Governo

O governo estadual não se pronunciava sobre a crise. Apenas em 1º de novembro, o então governador potiguar, Ferreira Chaves, anuncia através do jornal “A Republica”, que estava “agindo para acudir a pobreza desta cidade”, organizando na Escola Frei Miguelinho uma comissão de apoio, que visava fornecer alimentação aos necessitados no bairro.

Este trabalho estava sob a direção do diretor da Inspetoria de Higiene, o Doutor Calistrato Carrilho, com a participação do professor Luís Soares, então diretor da escola “Frei Miguelinho”, do Padre Fernando Nolte, do Dr. Antônio Soares, do Tenente João Bandeira e do Senhor Laurentino de Moraes, contando com o apoio dos escoteiros. Desta comissão o governo criou então um Posto de Assistência do Alecrim, onde trabalhavam os médicos Varela Santiago e Marcio Lyra. A missão do Posto era fornecer remédios, alimentos e até mesmo querosene para iluminação.

Em meio aos carcomidos exemplares que restam dos antigos jornais natalenses na atualidade, chama a atenção um aviso publicado, pela Inspetoria de Higiene, no início de dezembro de 1918, intitulado “A Influenza Espanhola, Conselhos ao povo”, onde entre outras coisas, solicitava “evitar aglomerações, não fazer visitas, evitar toda fadiga e excesso físico”.

Um indício de como estava à situação no bairro do Alecrim é apontada pela própria comissão, que em média atendia a um número superior de 350 pessoas por dia. Escoteiros percorreram diversas ruas do bairro, para entregar alimentos e remédios nas casas dos que não tinham sequer condições de se deslocarem para o colégio “Frei Miguelinho”.

As ações então cresciam; no bairro das Rocas, as “Damas de Caridade”, grupo ligado a Igreja Católica, atuavam neste bairro no apoio principalmente às famílias dos pescadores. De barco seguiu para as Praia de Muriú, Praia de Maracajaú, Farmacêutico Floriano Pimentel, com vários medicamentos. Os cinemas Royal e Polytheama, que estavam sem exibições cinematográficas desde outubro, foram rigorosamente desinfetados.

Outra notícia, sem detalhes estatísticos ou maiores referências, da conta que o governador Ferreira Chaves buscava atender, com as mirradas condições do tesouro estadual, os inúmeros pedidos das cidades e vilas do interior para o combate a pandemia.

As Mortes

Apesar da assistência oferecida, o número de mortos crescia na cidade. Discretamente, nas notas diárias dos jornais, surgem diversas notas de falecimentos, atribuindo abertamente a gripe espanhola à causa da morte de diversas pessoas, envolvendo principalmente representantes das classes menos abastardas da cidade.

São inúmeros os informes, tais como o do funcionário da Estrada de Ferro Central, José Calazans Carneiro, que perdeu dois filhos menores de idade. Já o capitão da polícia, Abdon Trigueiro, Sargento da polícia Othoniel Trigueiro. Ou o falecimento de Alfredo Costa, serralheiro da Ferrovia Great Western, que deixou numerosa família e a comerciário da empresa A. dos Reis & Cia., Miguel Medeiros, que morreu nas dependências do Hospital Juvino Barreto e foi enterrado no cemitério do Alecrim.

Sem maiores dados é temerário afirmar se a classe mais abastarda da cidade na época, foi ou não atingida diretamente pela pandemia de gripe espanhola. Entretanto, entre os inúmeros necrológicos publicados no período temos os casos de falecimento do desembargador Vicente Lemos, ou do Comerciante Alexandre de Vasconcelos, Professor Tertuliano da Costa Pinheiro. Contudo, nos necrológicos das pessoas mais bem posicionadas socialmente, não consta à mínima referência que a causa de alguma destas mortes tenha sido atribuída à gripe espanhola.

É na tradicional mensagem ao Congresso Legislativo do estado, lida no dia 1 de novembro de 1919, que o governador Ferreira Chaves deixa transparecer que a gripe espanhola deixou marcas em todas as camadas sociais de Natal. Ele afirma que a pandemia, “mesmo não sendo tão mortífera como em outros lugares, roubou-nos muitas vidas preciosas e pesou cruelmente sobre todas as classes da sociedade”.

O Fim do Pesadelo. Ou Não?

No mês de dezembro de 1918, da mesma forma abrupta que este pesadelo chegou a Natal, ele estava deixando a nossa terra.

No dia 11 de dezembro, a Inspetoria de Higiene considerava praticamente extinta o surto de gripe espanhola em Natal.

Do interior do Rio Grande do Norte chegam notícias do declínio dos surtos de gripe espanhola em Natal. De Lajes, o Intendente Felix Teixeira informava o recuo da doença e agradecia o apoio do governador Ferreira Chaves.

Inaugurado em 9 de setembro de 1909 pelo então governador Alberto Maranhão, o Hospital de Caridade Juvino Barreto, atual Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), era a unidade de referência para atendimento hospitalar em Natal no ano de 1918.

No dia 15 de dezembro o governo decidiu encerrar as atividades do Posto de Assistência do Alecrim, o principal da cidade. Ao final houve homenagens, festas e comemorações para a Inspetoria de Higiene, aos que trabalharam e mantiveram ativo o Posto de Assistência do Alecrim e aos escoteiros, sendo todos recebidos com honras pelo mandatário estadual no palácio do governo.

Segundo informou o professor Luís Soares, em trinta dias de atividades, o Posto atendeu nada menos que 10.814 pessoas. Os escoteiros visitaram neste período 169 casas, atendendo 135 doentes que não puderam nem mesmo se deslocar para o local de assistência.

Soldados da Força Expedicionária Americana vítimas da gripe espanhola no US Army Camp Hospital no. 45 em Aox-les-Bains, França. Calcula-se que só no Brasil morreram 300.000 pessoas devido a Gripe Espanhola, ou cerca de 10% de nossa população na época. Hoje seriam algo em torno de 20 milhões de vítimas fatais.

Infelizmente os jornais da época não explicam com maiores detalhes estes dados estatísticos. Não sabemos se destas 10.814 pessoas, todas estavam doentes, ou o grau de virulência a que foram submetidos e, principalmente, em nenhuma linha é divulgado quantos morreram neste período. Em Natal se repetiu o mesmo que ocorreu em outras partes do país; as autoridades deliberadamente escamotearam os dados sobre a doença.

Para uma cidade onde a população girava em torno de 29.000 pessoas, um surto epidêmico que leva ao atendimento de 10.814, mostra a dimensão do problema que foi a gripe espanhola. Para efeito de comparação, segundo o Censo 2007, o número de habitantes de Natal neste período, equivale atualmente à cidade de João Câmara.

Se, aparentemente, o número de mortos desta pandemia em Natal e no Rio Grande do Norte não foi tão grande, qual fator teria ajudado aos potiguares em relação a outras áreas do Mundo? Seriam os ventos que sopram no litoral, ou o clima seco do sertão?

O certo é que tivemos muita sorte, pois a gripe espanhola ceifou mais de 50 milhões de pessoas em todo planeta. Proporcionalmente na história da humanidade, nada foi mais terrível que esta pandemia. Este número é superior a soma de todos os soldados mortos em combate durante a Primeira e Segunda Guerra Mundial, Guerra da Coréia e Guerra do Vietnã.

Foto da atual problemática envolvendo o novo surto de o Coronavírus originário da China e denominado oficialmente pela Organização Mundial de Saúde como COVID-19 – Fonte – https://exame.abril.com.br/mundo/coronavirus-supera-sars-na-china-e-se-aproxima-do-brasil/

O interessante desse texto é que na sua primeira publicação, nas páginas da Tribuna do Norte, ele não foi criado porque havia na época algum grande surto viral e nem imaginava que algo pudesse acontecer pelos anos seguintes. Mas em 2011, quando um vírus chamado H1N1, ou gripe A, se propagou desde o México e assustou o planeta, decidi publicar esse texto pela primeira vez no nosso TOK DE HISTÓRIA. Logo esse surto desapareceu e ouve alívio geral. Quando publiquei esse texto em 2011 eu encerrava com um questionamento “Assim percebemos que a questão não é saber se vai haver ou não outra pandemia, mas quando?”.

Passados nove anos dessa publicação, eu sei a resposta!

Estamos novamente a volta de uma nova pandemia com o Coronavírus originário da China e denominado oficialmente pela Organização Mundial de Saúde como COVID-19 . Apesar do número de mortos ser pequeno o COVID-19 é extremamente virulento e está deixando o mundo em um intenso estado de alerta. Afetando primeiramente a China.

Parece que vamos conviver com esses surtos com maior frequência que imaginei !

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1933 – UMA ENTREVISTA DO HOMEM QUE “PROMOVEU” LAMPIÃO

A história da famosa promoção a capitão do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, ocorrida em Juazeiro, no ano de 1926, é de conhecimento de todos e um tema já bastante divulgado. Sobre o homem que realizou este procedimento, o pernambucano Pedro de Albuquerque Uchôa, muito já foi igualmente comentado.

Quem primeiro trouxe a história da patente e a figura de Uchôa ao conhecimento geral foi o cearense Leonardo Mota (1891-1947), no seu livro “No tempo de Lampião”. Lançado em 1930, a entrevista transcrita de Uchôa colocou este funcionário público no centro das atenções.

Três anos após o lançamento do livro de Mota e sete anos depois deste acontecimento “burocrático-cangaceirístico”, Uchôa teceu mais alguns interessantes comentários relativos a este pitoresco episódio da trajetória do Rei do Cangaço.

Matéria com Uchôa.

Através da reprodução das páginas de um vespertino carioca, apresentadas na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, de sexta-feira, 29 de setembro de 1933, vamos encontrar o funcionário público Uchôa, aparentemente vivendo na antiga Capital Federal. Pela descrição no jornal, tudo indica que ele não era mais um membro dos quadros do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Era apresentado pelo jornal como funcionário da “Secretaria do Tribunal”, sem especificar se era um tribunal ligado a justiça Estadual ou Federal.

O jornalista que realizou a entrevista informa que se espantou ao descobrir que estava diante do homem que forçadamente provocou uma interessante querela burocrática e o mesmo, em nenhum momento da entrevista, negou o seu ”feito”.

“- Fui eu mesmo, quando estava no Juazeiro, Ceará”. Afirmou Uchôa.

Pedro de Albuquerque Uchôa. Fonte-2ºSgt Narciso.

Mas como tudo ocorreu.

Para reavivar a memória de todos, recorro ao excelente livro “Padre Cícero-Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de autoria do jornalista e escritor cearense Lira Neto, que no capítulo 11, páginas 463 a 482, traça detalhadamente os episódios que culminaram na criação da patente de capitão para Lampião.

No ano de 1925, o então presidente da República Arthur Bernardes idealizou um plano para derrotar os componentes de uma coluna de oficiais rebelados do Exército Brasileiro, que percorriam os sertões na esperança de insuflar a massa com o seu exemplo de luta, derrubar o presidente e alterar a ordem vigente na nação. Comandados por Luís Carlos Prestes, Isidoro dias Lopes, Siqueira Campos, eram conhecidos na época como Revoltosos.

Floro Bartolomeu

Eles estavam no início de 1926 adentrando o Ceará, vindos do Piauí. O presidente da República convoca Floro Bartolomeu da Costa para organizar a resistência aos rebelados no Ceará. Floro era um médico baiano, que vivia em Juazeiro, era deputado federal, muito ligado ao Padre Cícero Romão Batista e que em 1914 havia organizado um movimento sedicioso que culminou com a derrubada do então governador cearense, Franco Rabelo. Parecia o homem certo para a função.

Floro Bartolomeu e Padre Cícero.

Floro procura o Padre Cícero, carismático prefeito e religioso de Juazeiro, e, com uma dinheirama vinda do Rio de janeiro, organizam os chamados Batalhões Patrióticos. Eram mais de mil homens com uniformes de brim azul-celeste e munidos de modernos fuzis privativos das forças armadas. Foram passados em revista pelo Padre Cícero em 9 de janeiro de 1926 e saíram ao encalço dos revoltosos.

Mas a caçada não deu certo. Afeitos as táticas de guerrilhas e ao constante movimento da tropa pelo sertão, os revoltosos conseguiram driblar os membros dos Batalhões Patrióticos e seguiram atravessando o Ceará.

Batalhão Patriótico em Juazeiro.

Desesperado, o Floro pede mais dinheiro ao governo e amplia a já amalucada ideia de Arthur Bernardes. Ele envia um portador com uma carta do padre destinada a ninguém menos que Virgulino Ferreira da Silva, o famigerado Lampião. Ele estava sendo convocado para uma “Guerra Santa”.

No início desconfiado, Lampião acabou aceitando o convite do seu “Padim Ciço”, o homem a quem ele devotava confiança cega e que aparentemente,  protegia os seus familiares há algum tempo de vinganças.

Virgulino partiu para o Juazeiro.

Lira Neto foi muito feliz ao colocar uma frase que exemplifica esta parte desta história; “Deus e o Diabo iriam se encontrar na Terra do Sol”.

Mudanças no Meio do caminho

Enquanto Lampião seguia para a “Meca do sertão”, os Revoltosos driblavam os Batalhões Patrióticos e seguiam seu caminho de lutas sem nem chegar perto de Fortaleza, ou de Juazeiro, grande temor do Padre Cícero. Neste meio tempo Floro Bartolomeu adoeceu fortemente de sintomas ligados a sífilis e deixou a “frente de combate”.

Coluna Prestes.

Logo a coluna de Revoltosos, que entraria para a história do Brasil como Coluna Prestes, passou pelo Rio Grande do Norte (Cidades de São Miguel e Luís Gomes) e seguiu para a Paraíba. Floro Bartolomeu por sua vez rumou para Fortaleza e depois foi de navio para o Rio de janeiro, onde morreria em pouco tempo.

Tudo parecia indicar que a tempestade havia passado, mas uma nuvem negra, em formato de um chapéu de couro com a testeira quebrada, se aproximava de Juazeiro.

O perigo dos Revoltosos poderia ter até passado, mas Lampião vinha cobrar a sua conta para poder “cumprir seu dever cívico”.

Juazeiro na época do Padre Cícero. Fonte – http://www.skyscrapercity.com

A princípio o chefe da guarnição policial de Juazeiro pensou em oferecer resistência, mas Padre Cícero não podia aceitar esta situação. Afinal o homem era um convidado e deveria ser bem recebido. Durantes três dias de um final de semana memorável para a cidade de Juazeiro, Lampião e seus homens aproveitaram ao máximo da principal urbe do interior do Ceará.

Na noite de 4 de março de 1926, ocorreu o famoso encontro de duas das mais míticas figuras já produzidas no Nordeste do Brasil.

É nessa hora que entra em cena Pedro de Albuquerque Uchôa.

Encontro Memorável

Voltando a reportagem reproduzida sete anos após os fatos, Uchôa comenta que ainda na época em que vivia em Juazeiro, era “muito amigo” do líder político e religioso da cidade. Afirmou que mantinha uma boa relação com o religioso, a ponto de todo dia o Padre Cícero ir tirar um cochilo na sua casa ao meio dia. Nestas horas a casa de Uchôa ficava cheia de romeiros que vinham pedir a benção ao velho padre.

Lampião e seu irmão Antônio Ferreira.

Sobre os acontecimentos de 4 de março de 1926, Uchôa não narra o que aconteceu antes da chegada de Lampião, mas informa que nesta noite foi acordado por dois “jagunços”, em um sobradinho onde morava com seu contraparente, o cantador João Mendes de Oliveira.

Os homens intimaram o funcionário público, afirmando autoritariamente que “-Meu padrinho está chamando o Senhor com urgência”. Uchôa não perdeu tempo e foi logo a casa do Padre Cícero.

Segundo sua narrativa, estes dois homens portavam fuzis a tiracolo, estavam encourados e cheios de “medalhas”. As medalhas no caso, certamente seriam imagens de santos penduradas no peito. Ao escritor Leonardo Mota, Uchôa afirmou que estes homens eram Sabino Gomes e o irmão de Lampião, Antônio Ferreira.

Ao chegar a residência do líder de Juazeiro, o Padre Cícero lhe apresentou Lampião e disse, conforme está reproduzido no velho jornal sergipano de 1933.

“- Aqui está o capitão Virgulino Ferreira. Ele não é mais bandido. Veio com cinquenta e dois homens para combater os revoltosos e vai ser promovido a capitão. Olhe, o senhor vai fazer a patente de capitão do Sr. Virgulino Ferreira e a de tenente do seu irmão”.

Evidentemente que Uchôa ficou pasmo, “perplexo” em suas palavras.

Fiquei imaginando a cara do pobre coitado do funcionário do Ministério da Agricultura, acordado no meio da noite com esta bomba na mão. Ele ainda tentou argumentar que não podia, mas um dos irmãos de Lampião ponderou na hora.

“- Não, se meu padrinho está mandando o senhor pode”.

O Padre Cícero lhe colocou na condição de “mais alta autoridade federal de Juazeiro” e aí não teve jeito. Com o carismático prefeito ditando os documentos, foram “lavradas” as designações de patente.

Padre Cícero em sua mesa de trabalho.

Segundo Uchôa comentou ao repórter, parte dos termos do documento referente a patente de Lampião foram; “Pelo Governo Federal era concedido a Virgulino Ferreira a patente de capitão do Exército, por serviços prestados a República”.

Depois o Padre Cícero foi categórico e ordenou a Uchôa um curto “assine”. Ele colocou a sua firma no controverso documento.

Interessante é que em nenhum momento na reportagem, Uchôa pronuncia que concedeu uma patente a um dos mais cruéis e sanguinolentos bandidos de Lampião, o famigerado Sabino.

Após os “trâmites burocráticos”, Uchôa afirma que presenciou o temível Lampião, todo equipado, se ajoelhar reverentemente e beijar emocionado a batina do Padre Cícero. Lampião informou ao Padre que se comprometia a “proceder bem”…..

Uchoa informou ainda que após o encontro destas duas figuras, Lampião e seus homens receberam suas armas, munições e partiram no meio da noite.

Se assim foi, este foi o último ato da visita de Lampião e seu bando a Juazeiro.

Um Simples “ajudante de inspetor agrícola”?

A Leonardo Mota, o funcionário público Uchôa afirmou que ao retornar para a sua casa, por volta das onze da noite, tentou argumentar com Sabino e Antônio Ferreira que aquele documento não valia nada e que ele “não passava de um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”. Ao que o irmão do cangaceiro-mor do Brasil respondeu secamente que “-Se o padre dissera que era ele que devia assinar a patente, era porque era ele mesmo”. Uchôa se calou.

O escritor Leonardo Mota.

Ao ler em Mota, que Uchôa se considerava “um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”, percebi que na reportagem de 1933, Uchôa informou que na época era um “simples ajudante de inspetor agrícola”.

Ele então se encontrava em um dos postos mais baixo na hierarquia dos quadros funcionais do Ministério da Agricultura daquela época? Seria obrigatório que um “ajudante de inspetor agrícola”, fosse uma pessoa com formação superior?

A resposta é não necessariamente.

Mesmo com o termo “ajudante”, aparentemente esta extinta função do Ministério da Agricultura, conforme se lê em vários exemplares do Diário Oficial da União (D.O.U.) desta época, poderia, ou não, ser exercida por uma pessoa com o título de agrônomo. Encontrei várias transferências publicadas no D.O.U., do início da década de 1930, onde vemos inúmeros “ajudantes de inspetor agrícola” sendo remanejados. Alguns aparecem com o título de “agrônomo” adiante do cargo, em outros não.

O interessante é que na entrevista concedida no Rio, sete anos depois do episódio em Juazeiro e reproduzida na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, em nenhum momento Uchôa comenta sua formação superior. Isso em uma época onde o Brasil era tão carente de educação, que quem era “Dotô” fazia questão de dizer a todos sobre a sua superioridade acadêmica e ainda mostrar o seu anel de formatura.

Das duas uma; ou Uchôa era um homem muito humilde, ou o repórter do tal vespertino carioca era muito fraco…

Consequências

Certamente o Padre Cícero, em muito pouco tempo, deve ter se arrependido de dar continuidade à ideia de Floro de trazer Lampião a Juazeiro.

Logo Lampião percebeu que seus “colegas de farda” não viriam até ele com salamaleques típicos de militares e nem com continências do estilo. Deles o cangaceiro Lampião só iria receber bala!

Sobre a sua luta contra os Revoltosos da famosa Coluna Prestes, existem indicações que Lampião e seu bando travaram um pequeno combate em Pernambuco, sem maiores consequências. Depois o cangaceiro decidiu continuar seu caminho de depredações, saques e violências, do qual era um especialista, deixando de lado a promessa feita ao Padre Cícero.

Mas quem não deixou passar em branco a situação foram os jornais da época, que se mostraram extremamente impiedosos nas críticas ao líder de Juazeiro.

As manchetes do jornal recifense “A Noite”, de 10 de agosto de 1926, aqui apresentadas, dão uma ideia do que o Padre Cícero sofreu. O texto então é pior ainda. Nele encontramos; “E ainda agora, para coroar toda esta obra de misérias que o Padre Cícero vem desenvolvendo ao longo de anos, Lampião passeia a sua impunidade nas ruas de Juazeiro, garantido e hospedado pelo padre satânico”.

Em minha opinião o Padre Cícero não percebeu a extensão do estrago que ocorreria quando decidiu dar prosseguimento ao plano desorientado de Floro Bartolomeu.

Alguém se esqueceu de lembra ao padre que seria muito difícil fazer com que certos componentes de volantes que combatiam os cangaceiros, teriam agora de parar a sua luta figadal contra o facínora e seus homens, e ainda mais, teriam de prestar continência ao capitão Virgulino. Isso tudo apenas por uma ordem emanada de Padre Cícero e sacramentada pela “mais alta autoridade federal de Juazeiro”, um ajudante de inspetor agrícola.

Para a imprensa do país e certos setores da elite que governavam a nação, a ação do Padre Cícero foi considerada, no mínimo, “desastrada” e só serviu para manchar a sua biografia.

Sobrou até para o pobre do Uchôa. Segundo a reportagem de 1933, ele teve de prestar contas do ocorrido a ninguém menos que o próprio Ministro da Agricultura.

Uchôa não informa se foi ao titular da pasta durante a gestão Arthur Bernardes, o baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida, que ele teve de narrar os fatos. Ou se prestou contas ao sucessor deste, o paraense Geminiano Lira Castro. Ou se este encontro ocorreu com o paulista Paulo de Morais Barros, que assumiu o ministério depois da Revolução de 1930, na mesma época que ocorreu o lançamento do livro de Leonardo Mota, que tornou o “simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”, em alguém que mereceu um encontro com o titular do ministério.

Com qual ministro se Uchôa encontrou, não importa. O que importa foi que neste encontro ele falou a autoridade o mesmo que havia dito a Leonardo Mota; “Naquele momento eu lavraria até a demissão do presidente da República.”

Não sei se esta verdadeira “epopeia burocrática” trouxe a Uchôa algo mais do que constar nos livros de história do cangaço.

O maior beneficiado com a visita a Juazeiro foi Lampião.

Sem dúvida alguma, apenas uma pessoa saiu ganhando deste episódio e ele foi Lampião. Além de receber novos fuzis e munições, vaidoso como era, deve ter adorado a sua “patente”. Pois assim passou a assinar seus bilhetes e seus cartões que continham sua fotografia. A partir do dia que Uchôa assinou aquele papel, todos os nordestinos que ficaram diante de Lampião, desde um rico coronel na sua casa-grande, ao simples lavrador na sua tapera, passaram a tratá-lo como capitão.

Uma situação chama atenção.

Lampião sabia que não lutaria mais com a Coluna Prestes?

A Coluna Prestes cruzou o Rio Grande do Norte em 4 de fevereiro de 1926, depois foi para a Paraíba e Pernambuco. Lampião só chegou a Juazeiro em 4 de março. É possível que ele soubesse por onde andava a Coluna? Certamente! Os jornais Pernambucanos da época, que estão no Arquivo Público de Pernambuco, dão notícia praticamente dia a dia dos Revoltosos. Se os jornais em Recife sabiam, imaginem Lampião.

Esperto e bem informado, certamente Lampião deveria saber de tudo isto. Mas como diz Lira Neto, foi a Juazeiro cobrar o que lhe foi prometido.

Lampião era tão sem vergonha, pilantra, que não ficou satisfeito só com as armas e munições (que já era um grande presente), quis a patente, quis sair de Juazeiro como “oficial” e “oficializado” e aí ocorre o caso do Uchôa.

Me chama a atenção que, com o poder que o Padre Cícero tinha em Juazeiro, ele poderia ter mobilizado até as “corujas da torre da igreja” para lutar contra Lampião e este jamais teria pisado em Juazeiro e sei lá o que teria acontecido. Mas ele não o fez. Por que?

Creio que o Padre tinha receio de um retorno dos Revoltosos a sua região. Pode ter pensado que podia precisar dos serviços do “capitão”. Não podemos esquecer que nesta época os membros da Coluna já tinham entrado em Piancó, na Paraíba, e degolado o líder político local, o Padre Aristides, depois de um forte combate pouco conhecido.

Defesas em Favor do Padre Cícero

Chama atenção neste episódio a forma como ao longo dos anos os defensores de Padre Cícero buscaram, de todas as maneiras, alterar as características deste encontro com Lampião. Dos cantadores de feira, passando pelo sanfoneiro Luís Gonzaga e até na internet dos nossos dias, muita gente buscou dar uma nova versão aos fatos.

Durante anos existiram folhetos de cordel, livros, revistas que defendiam a existência histórica do encontro e surgiam os defensores da tese que nada foi daquela forma.

Capa do disco com o show de 1972, com Luiz Gonzaga ao vivo.

Em 1972 o admirador inconteste de Padre Cícero e de Lampião, o sanfoneiro Luiz Gonzaga, de Exu, em Pernambuco, ao realizar um antológico show no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro, defendeu abertamente o Padre Cícero em relação ao seu encontro com Lampião. Nesta época, devido a Bossa Nova, Jovem Guarda e outros movimentos musicais, Luiz Gonzaga andava meio esquecido do grande público. Este show foi seu grande retorno, sendo um dos poucos registros de como era Gonzagão no palco.

Quando cantou a música “Olha a Pisada”, de sua autoria em parceria com o médico Zé Dantas, fez um “break” e narrou uma história sobre o episódio. Começava com Lampião e a “cangaceirada” entrando de fuzil na igreja “com a boca do cano para baixo” em sinal de respeito. Gonzaga afirmou que o Padre Cícero não queria que Lampião chegasse muito perto dele e, quando este pediu uma benção, o padre de Juazeiro não lhe benzeu e ainda aplicou com seu cajado uma grande surra em Lampião.

Evidentemente que nada disto aconteceu. Era uma criação fantasiosa do insuperável sanfoneiro, na defesa do Padre Cícero.

Atualmente, chama atenção a defesa do Padre Cícero que ocorre no site Wikepedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Floro_Bartolomeu).

Nesta grande enciclopédia da internet, no tópico destinado a narrar a vida do médico baiano Floro Bartolomeu da Costa, encontramos um texto repleto de meias verdades, que em nada ajuda a estudantes que por ventura utilizarem este serviço para uma pesquisa sobre este assunto.

O texto comenta que no ano de 1925, Floro havia recebido uma ordem do então presidente da República Artur Bernardes para defender o Ceará da Coluna Prestes. Foram então organizados os chamados Batalhões Patrióticos (verdade).

Consta que Floro, teria então usado o nome do Padre Cícero sem que o sacerdote soubesse dos fatos (situação essa muito difícil de ocorrer devido ao prestígio do Padre Cícero).

Juazeiro. Fonte – http://www.skyscrapercity.com

Este então convidou Lampião a fazer parte do Batalhão Patriótico. Lampião, grande devoto do padre, aceitou o convite e partiu para Juazeiro, mas não encontrou Floro, que havia viajado para o Rio de Janeiro por motivos de saúde (verdade).

Comenta-se que Padre Cícero ficou perplexo quando soube que Lampião estava em Juazeiro para servi-lo (O Padre Cícero sabia que eles vinham).

Ao encontrar Lampião e seu bando, Padre Cícero os aconselhou a abandonar o cangaço e lhes deu rosários de presente, com a condição de que só usassem depois de abandonar a vida bandida (o Padre Cícero pode até ter dado conselhos, rosários e escapulários, mas as armas e munições foram entregues).

Os cangaceiros deixaram então Juazeiro, mas antes Lampião recebeu a patente de capitão do Batalhão Patriótico das mãos de Pedro de Albuquerque Uchôa, funcionário público e integrante do batalhão (Uchôa não afirmou isso nem em Leonardo Mota e muito menos na reportagem de 1933).

O Padre Cícero Romão Batista era um homem do seu tempo, com virtudes e defeitos. Possui uma biografia feita de altos e baixos momentos, coisa normal que qualquer ser humano passa em sua vida. Para mim, o encontro com Lampião foi um momento de baixa na história do padre.

Mas em minha opinião, ele fez sim um grande milagre (e não tem nada ligado com a história da Beata Mocinha).

O maior milagre do padre Cícero, mesmo tendo sido realizado em meio a religiosidade popular e mística, lances de violência e muita politicagem, foi a transformação de um simples povoado em uma das mais pulsantes e progressistas cidades do interior do Nordeste.

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