Muitos podem imaginar que há 101 anos a capital potiguar era uma cidade cujo ritmo da vida era muito lento, calmo e sem maiores novidades. Isso tem muito de verdade e pode estar relacionado com o fato dessa velha urbe possuir nessa época cerca de 32.000 habitantes. Número menor que as 35.725 pessoas que em 2022 viviam no bairro de Lagoa Nova.
Mas se essa situação de calmaria e tranquilidade era normal, nas atividades artísticas do belo Theatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, a situação era bem diferente.
Inaugurado em 24 de março de 1904, após sete anos de construção, o Carlos Gomes se tornou o principal centro de apresentações culturais de Natal, com variados artistas subindo no seu palco e deleitando o público local. O interessante livro Teatro Carlos Gomes – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão, lista um grande número de recitais, conferências, concertos, apresentações diversas e até eventos políticos que ali se ocorreram durante a sua História.
O antigo Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Fundação José Augusto.
Para impulsionar o movimento musical em Natal, em 31 de março de 1908 o governador Alberto Maranhão assinou, o Decreto nº 176, criando a Eschola de Musica, que funcionaria anexa ao teatro. Quem ficou à frente desta instituição foi o maestro Luigi Maria Smido, que além dessa função acumulou a direção da banda de música do Batalhão de Segurança (Polícia Militar). Segundo o professor Claudio Galvão, o verdadeiro nome de Smido era Luigi Maria Schmidt und Insbruck e a maioria das fontes aponta que ele era italiano.
Mas em 6 de janeiro de 1914, sete dias após ser empossado pela segunda vez governador do Rio Grande do Norte, o recifense Joaquim Ferreira Chaves extinguiu a escola de música e alegou que fazia isso por falta de dinheiro. Somente dois anos depois foi criada uma nova escola no teatro e sob o comando do italiano Thomaz Babini.
Orquestra do Teatro Calos Gomes nas primeiras dércadas do século XX – Fonte – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.
Essas iniciativas educacionais na área musical deixaram muitos frutos, pois uma interessante plêiade de artistas passou a existir na cidade e estes tinham no Theatro Carlos Gomes o local ideal para desenvolver a sua arte. No livro do Professor Claudio Galvão existe muitas informações sobre essa evolução e o desenvolvimento musical em Natal nessa época.
Ele nos conta que com o passar dos anos o teatro passou por altos e baixos, com momentos em que sua orquestra ficou reduzida a um sexteto e quando o local precisou de uma reforma, a luta para conseguir a verba destinada para esse trabalho foi duríssima. Mas no ano de 1922, diante as comemorações do centenário da Independência em Natal, o governador Antônio de Souza caprichou nos festejos e apoiou no que foi necessário para que o Theatro Carlos Gomes pudesse receber apresentações dignas da casa e do público natalense.
Praça Augusto Severo e Estação da Great Western of Brazil Railway em 1906, na Ribeira, na mesma área onde se encontra o Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Fundação José Augusto.
Em meio a todos esses problemas e processos, cada vez mais crescia o número de músicos em Natal e a muitos deles mostravam extrema capacidade musical. Um desses músicos foi Alcides Cicco.
O Escriturário Que Era Barítono
Alcides Cicco nasceu em 1894 na cidade de São José de Mipibu, sendo filho de Vincenzo De Cicco, um italiano da comuna de Sapri, província de Salerno, região da Campânia, sudoeste da Itália. Vincenzo imigrou para o Brasil e casou em São José de Mipibu com Ana Albuquerque e Melo, com quem teve doze filhos. Depois ele se mudou com toda a família para Natal e se tornou comerciante.
Alcides Cicco – Fonte – – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.
Sobre os primeiros anos de Alcides eu não tenho muitas informações, mas sei que ele não seguiu seus irmãos Januário na medicina e nem Celso como padre. A música falou mais alto!
Segundo o Professor Claudio Galvão, o jovem Alcides fez parte da Eschola de Musica do Carlos Gomes em 1908 e desde cedo apresentou inclinação para o canto lírico, mas também tocava violino. Existem nos antigos jornais natalenses da década de 1920, várias citações da participação de Alcides em um grande número de eventos e sempre fazendo bom uso da sua privilegiada voz.
Uma das muitas referências da participação de Alcides em eventos musicais em Natal.
Foi quando se espalhou a notícia em Natal que o virtuoso Alcides estava de partida para centros maiores e mais desenvolvidos, em busca de aprimoramentos para a sua capacidade artística. E seria com tudo pago pelo erário público e com direito a Lei proferida pelos altos dirigentes do Estado. Enfim, não dava mesmo para um 4º Escriturário do Tesouro do Rio Grande do Norte bancar do próprio bolso dois anos de estudos musicais lá fora.
Diante da notícia, a classe musical local decidiu realizar um evento no Theatro Carlos Gomes. Ficou acertado que aquele acontecimento se chamaria pomposamente “Festival de Artes e Letras”, seria dedicado ao governador Antônio de Souza e teria a participação de Luigi Maria Smido, Thomaz Babini, o jovem músico Waldemar de Almeida e outros mais. Apesar do nome oficial, todo mundo em Natal sabia que a festa era o “bota-fora” de Alcides Cicco para o Rio de Janeiro…
Finalmente, às oito e meia da noite de sábado, 27 de janeiro de 1923, a festa começou!
A Festa de Alcides
O Theatro Carlos Gomes lotou, ficou até apertado, estava “à cunha” como expressou um jornalista na época. O governador e sua família estiveram presentes e mais um grande número de políticos que hoje são nomes de ruas e avenidas em Natal. Mas o que valeu mesmo foram as apresentações no palco.
Waldemar de Almeida na juventude – Fonte – – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.
Nos jornais antigos temos em detalhes a sequência das apresentações, com as obras que foram executadas e seus respectivos autores naquela. O nosso BLOG TOK DE HISTÓRIA, fazendo uso das atuais tecnologias existentes, traz para seus leitores a sequência exata de quase todas as obras que ali foram executadas. Essa é uma interessante oportunidade de compreender que tipo de música os natalenses apreciavam no seu principal teatro, em uma época onde o rádio ainda dava os primeiros passos (e demoraria quase vinte anos para chegar a Natal), a televisão estava engatinhando e a internet não era nem ficção cientifica.
O evento iniciou com a orquestra do teatro sendo conduzida pelo maestro Smido e tocando uma ouverture, ou abertura, intitulada Poète et Paysan, do austríaco Franz von Suppé (1819 – 1895). Essa peça estreou em Viena no ano de 1846, mas após a morte do autor foi transformada em uma opereta em três atos, sendo a sua abertura a mais difundida e tocada.
Após a execução da abertura de Suppé, houve uma “Ligeira sessão literária”. Mesmo sem maiores detalhamentos de como se desenrolou esse momento, sabemos que primeiramente subiu ao palco o Doutor Sebastião Fernandes de Oliveira, então juiz de direito de Ceará-Mirim e diretor do “Centro Polymathico”, que trouxe perante o público natalense os “belletristas” Luís da Câmara Cascudo, José Gabat (sic), Ezequiel Wanderley, Othoniel Menezes, F. Palma, Virgílio Trindade e Jayme Wanderley.
Na sequência houve a 2ª Parte, que começou com Thomaz Babini assumindo a orquestra e Alcides Cicco como barítono. Foi executada com maestria a terceira função da ópera Zazà, do italiano Rugero Leoncavallo (1857 – 1919). A estreia dessa ópera aconteceu no Teatro Lírico de Milão, Itália, em 10 de novembro de 1900 e essa terceira função se chamava Cascart, um cantor de sala de concertos.
A segunda obra da 2ª parte da apresentação foi a Polonais em dó sustenido menor, Opus 26, 1, composta pelo polonês Frédéric Chopin (1810 – 1849). Quem tocou essa obrafoi o jovem pianista Waldemar de Almeida, então com 19 anos e natural da cidade de Macau, Rio Grande do Norte.
Veio então a 3ª Parte, a mais longa, que começou com a peça Air de Ballet, do francês Jules Massenet (1842 – 1912), novamente com a participação da orquestra do teatro, com o maestro Babini na regência.
A segunda obra dessa parte do espetáculo foi Fantaisie-Impromptu, Op. 66, de Frédéric Chopin. Essa foi peça composta em 1834 e publicada postumamente em 1855, sendo uma das composições mais frequentemente executadas e populares de Chopin. Naquela noite de 1923 no nosso teatro, foi o jovem Waldemar de Almeida que a executou ao piano.
Bem, nessa altura das apresentações não dava para deixar de fora algum compositor brasileiro e a escolha foi pelo cearense Alberto Nepomuceno (1864 – 1920). Este foi um compositor, pianista, organista, regente e membro da Academia Brasileira de Música, sendo considerado o “pai” do nacionalismo na música erudita brasileira. Coube a Waldemar de Almeida tocar ao piano o Noctuno, Op. 33.
A última peça a ser tocada foi executada pela orquestra do teatro, sob a regência de Luigi Maria Smido e se chamava Romance em fá. Infelizmente o texto não comentou quem era o autor dessa obra. Talvez o próprio Smido. Nesse caso não encontrei nenhum material em áudio e vídeo que mostrasse a apresentação dessa peça.
Então o evento se encerrou e Alcides Cicco partiu para o Rio de Janeiro. Em poucos anos voltou para a sua terra e seu teatro.
Um Boêmio Bondoso e Tímido
Luís da Câmara Cascudo assim se expressou em uma Acta Diurna Sobre Alcides Cicco, publicada no jornal natalense A República, edição de 20 de junho de 1959. O Professor Claudio Galvão a transcreveu em parte no seu interessante livro Teatro Carlos Gomes – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura.
Cascudo o descreveu como modesto, tímido, raras vezes se apresentou em público. Quanto ao seu objetivo artístico, comentou: Preparou-se a vida inteira para ser o que não conseguiu realizar: um artista dramático, um tenor de óperas, de óperas especialmente italianas, Verdi, Puccini, Leoncavallo, Mascagni. Sobre seu trabalho como administrador do Theatro Carlos Gomes, evocava: […] prestou inolvidáveis serviços, batendo-se pela manutenção, trabalhando diretamente na sua conservação. Quantas vezes o vi, de pincel na mão, pintando paredes e gradis, com tinta paga do seu bolso.
Três anos antes de Alcides Cicco falecer, o escritor Gumercindo Saraiva escreveu uma interessante crônica sobre ele no jornal O Poti, edição de 13 de julho de 1956, que achei mais interessante transcrever na íntegra.
POR QUE ALCIDES NÃO SE CASOU?
Alcides Cicco, antigo diretor do Teatro Carlos Gomes, é figura excêntrica de boêmio da cidade. Vez por outra o encontro num dos bares da Ribeira tomando cerveja e cantando trechos de óperas, com toda força de seus pulmões.
Sempre achei que Alcides deve ser personagem de uma opereta, ou de um desgarrado na vida em um romance de Balzac. Seu tipo físico, bondade, boêmia, sua vida sem ambições e sem pessimismos, tudo nele é estranho e romanesco.
Creio que quase todo mundo sabe por que Alcides não seguiu a sua carreira de cantor lírico. Estudava no Rio e conseguiu uma bolsa de estudos na Itália. Veio a Natal se despedir dos seus parentes. Aqui, uns amigos convidaram-no a dar um passeio em Papari (atual cidade de Nísia Floresta) e comer uns camarões. Pois bem. Ele gostou tanto dos camarões que desistiu para sempre de sua viagem à Europa…
E não se diga que Alcides não tem habilidades que o destacam do comum dos homens. Uma das melhores macarronadas que já comi nesta cidade foi feita por Alcides Cicco em sua própria casa, faz alguns anos. Ele preparou os quitutes com verdadeiro gosto artístico.
Numa roda de amigos João Meira Lima divulgou o motivo por que ainda hoje Alcides Cicco persiste solteirão. Ouviu a história de sua própria boca, num momento de recordações e confidências…
Alcides era jovem e passava uma noite na antiga rua da Palha (atual rua Vigário Bartolomeu, no Centro). Casualmente, viu numa janela uns olhos cintilantes, quase de fogo. Achou-os maravilhosos e sentiu que estava loucamente apaixonado. Todas as noites, infalivelmente, Alcides desfilava pela rua de Palha para contemplar os mais belos olhos de sua vida. Tímido e romântico – foi sempre assim – não tinha coragem de abordar a criatura dos lindos olhos. Afinal, uma noite, tomou umas cervejas, encheu-se de coragem e resolveu enfrentar a dama dos seus sonhos. De longe viu os olhos brilhantes e aproximou-se, quase hipnotizado pelo fogo daquele olhar… Quando chegou em frente á janela – foi a maior decepção de sua vida – ouviu um miado longo e notou que a dona dos olhos de fogo era apenas uma velha gata de estimação… Desde esse dia não quis mais saber de casamento…
Alcides Cicco faleceu por volta das seis da manhã do dia 19 de junho de 1959, de complicações do diabetes. Expirou na antiga residência da família Cicco, no número 190 da Avenida Duque de Caxias, na Ribeira, e que por um verdadeiro milagre ainda se conserva preservada.
Alcides nunca casou, mas criou uma união permanente com a música e o velho teatro de Natal.
O que significa essa foto com essas pessoas em uma praia? Quando e onde ela foi feita? Quem são as pessoas que estão nessa foto?
Artigo originalmente pulicado na Revista Bzzz Número 110, nov. e dez. 2024, páginas 20 a 29.
Ela foi realizada em 10 de janeiro de 1931, na praia de Areia Preta, Natal, e entre os que foram fotografados estava a matriarca de uma das mais importantes famílias potiguares, Branca Pedroza, e seus três filhos, cujo um deles seria prefeito da capital potiguar e governador do Rio Grande do Norte, Sylvio Piza Pedroza. Já os homens clicados eram dois italianos, dos mais importantes aviadores do mundo naquela época e que lideraram uma esquadrilha de doze hidroaviões hidroavião Savoia-Marchetti S.55A que voaram desde a Itália até Natal, em um voo de grande destaque mundial. Além disso, eles trouxeram do seu país o presente mais importante que Natal já recebeu em sua História, a Coluna Capitolina. Esses homens também eram membros proeminentes de uma ditadura que propagava uma ideologia política nefasta, de caráter ultranacionalista, fortemente autoritário e altamente sanguinário. Era o fascismo implantado por Benito Mussolini na Itália. Ítalo Balbo era Ministro da Aviação desse governo, sendo um dos principais executores da política de aviação italiana no período fascista..
Balbo e sua equipe iniciaram no final da década de 1920 diversos estudos para a realização de grandes voos com várias aeronaves, algo até então nunca realizado e que repercutiria nas ações da Itália Fascista em todo o mundo. Um desses voos teve como destino o Brasil.
No dia de Natal de 1930, Balbo e seus comandados chegaram na Ilha de Bolama, no arquipélago dos Bijagós, na Guiné Portuguesa, atual Guiné Bissau. Ficaram alguns dias realizando testes de decolagem e, com o resultado dessas provas, na madrugada de 5 de janeiro de 1931, segunda-feira, decolaram para várias horas depois amerissarem no Rio Potengi, em Natal. No percurso, houve problemas sérios com perdas de aeronaves e a morte de cinco homens.
O hidroavião Savoia-Marchetti S.55A – Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Enquanto eles realizavam seu voo, em Natal, na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque, foram colocadas no alto da sua única torre duas grandes bandeiras do Brasil e da Itália. Escoteiros se posicionaram naquele local equipados com binóculos e lunetas. Tinham ordens expressas para quando avistassem as primeiras aeronaves informassem imediatamente o sineiro da velha igreja, que começaria a badalar os sinos pesados para que o povo fosse informado da chegada dos hidroaviões Savoia-Marchetti.
Pessoas se aglomeraram no cais do Porto de Natal, na Av. Tavares de Lira e nos prédios e casas às margens do Rio Potengi. Quem tinha alguma coisa que flutuasse estava dentro do rio, o que deu muito trabalho para o pessoal da Capitania dos Portos, pois o plácido Potengi tinha de ser liberado para a amerissagem das aeronaves.
O general italiano Aldo Pellegrini havia desembarcado em Natal no começo de dezembro para preparar a chegada de Balbo e dos seus aviadores. No dia 5 de janeiro esse militar ficou muito tempo em uma estação de rádio montada pelo Telégrafo Nacional no bairro do Alecrim, na Rua Coronel Estevão. Paulo Pinheiro de Viveiros nos conta em sua placa denominada “Presença de Roma em Natal” (1969), que essa estação possuía transmissores de ondas curtas de 250 e 500 watts e o responsável era Augusto Mena Barreto. Quando ficou certo que as aeronaves estavam chegando, o general Pellegrini foi para a Ribeira e por onde passou recebeu manifestações entusiásticas de carinho.
Os jornais comentaram que várias pessoas vieram de outros estados para acompanhar a chegada da esquadrilha italiana. Sei que por aqui se encontravam Antenor de França Navarro, então Interventor Federal da Paraíba, acompanhado de vários elementos do seu governo. Por volta das três horas o comércio e as repartições públicas fecharam suas portas e a massa de gente cresceu nas ruas. Finalmente, por volta das quatro horas os escoteiros na catedral viram surgir em direção ao norte os primeiros hidroaviões S.55A e logo os sinos começaram a badalar.
“Giovinezza” no Rio Potengi
Hidroavião italiano no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Às duas da tarde daquele 5 de janeiro inesquecível, a esquadrilha passou por Fernando de Noronha e pouco mais de duas horas depois, para delírio da multidão, as primeiras aeronaves sobrevoavam Natal. Balbo mencionou em seu livro “Stormi in volo sull’oceano” (pág. 206) que chegou à capital potiguar às quatro horas e trinta minutos da tarde e assim descreveu: “Neste momento todo o cansaço desaparece. Estamos em voo por cerca de 18 horas. Quando tocamos as águas de Natal, a cabeça fica um pouco confusa e nossos ouvidos estão zumbindo, mas nosso coração está leve e brincalhão”. Nas páginas seguintes o aviador deixou registrado que após desligarem os motores ouviram o badalar de vários sinos das igrejas de Natal e registrou: “São os bronzes de Natal, a própria cidade de sonho, com um nome curto e deslumbrante” (pág. 207).
Antes mesmo de colocarem os pés na terra, flutuando a bordo dos S.55A no Rio Potengi, Balbo e seus homens ouviram um outro som, esse mais familiar, que os deixaram maravilhados. Assim Balbo falou: “As alegres fanfarras de “Giovinezza” já tocam e saúdam nossa vitória”. A “Giovinezza” era o hino oficial do Partido Nacional Fascista Italiano e no cais da Tavares de Lira ela foi tocada pela Banda da Polícia Militar.
Desembarque de Ítalo Balbo em Natal. Fernando Pedroza é o segundo da direita para a esquerda– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Balbo e a maioria dos seus homens desembarcaram trajados à moda fascista – calças brancas, camisas negras, luvas e botas marrons. Os jornais apontaram que o ministro italiano foi apresentado com ar fatigado, olheiras, mas afável, sorridente e a todo momento externando agradecimentos. Em meio às autoridades brasileiras e italianas que receberam os aviadores, estava o industrial Fernando Gomes Pedroza, um apaixonado pela aviação.
A Esquadrilha Balbo no Rio Potengi– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
O comandante afirmou em seu livro que desembarcou muito cansado e sem demora foi logo de carro para a Vila Cincinato, residência oficial do governador do Rio Grande do Norte. Uma verdadeira carreata, na época chamada de “corso de carros”, seguiu atrás do veículo do comandante italiano. Após chegar à residência, Balbo se trancou e foi descansar, mas lá fora uma multidão se formou na calçada para tentar ver o líder fascista italiano. Já os oficiais ocuparam a antiga sede da Escola Doméstica, na Praça Augusto Severo, que estava toda ornamentada, iluminada, com várias bandeiras italianas e brasileiras e sem alunas, pois estavam de férias. Os sargentos foram alojados num prédio recém-construído pela administração do porto. Esses últimos almoçaram no Hotel Avenida, na Tavares de Lira, pertencente ao “majô” Theodorico Bezerra.
Camisas Negras no Palácio Potengi
No outro dia, Ítalo Balbo foi até a sede do Telégrafo Nacional, na Av. Tavares de Lira, 88. Ali foi atendido por Augusto Gonçalves Marques, chefe da estação, onde Balbo lhe agradeceu o apoio nas comunicações durante o voo e depois passou a enviar telegramas. Consta que o primeiro foi para Alberto Santos Dumont, na França, com os seguintes dizeres: “Tocando na sua bela terra depois de um voo transatlântico, eivo-vos, pioneiro das empresas aeronáuticas, a minha calorosa saudação”. O segundo telegrama foi para Mussolini, onde transmitiu as últimas notícias e informou que os membros da esquadrilha “voltavam o seu pensamento devotado ao Duce”. Finalmente escreveu para o ditador Getúlio Vargas uma mensagem de agradecimento, mas sem tantos salamaleques.
O contratorpedeiro Lanzerotto Malocello– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Natal estava em verdadeiro êxtase. Para aonde Balbo e seus homens seguiram eram acompanhados por muita gente. Na passagem dos aviadores o povo ecoava vários “Vivas” a Balbo, Mussolini e à Itália. O movimento das pessoas foi tão grande que até os soldados do 29º Batalhão de Caçadores do Exército fizeram a guarda e a contenção nos locais onde eles se hospedaram e circularam. Enfim, eram figuras de destaque em todos os jornais do mundo e com uma atração que hoje em dia, talvez, só se compare às astronautas. Uma noite os italianos participaram de um jantar de “50 talheres” na Escola Doméstica.
Atracado no Porto de Natal estava o contratorpedeiro Lanzerotto Malocello. Do seu porão foi discretamente retirado um grande e pesado engradado. Este foi levado para uma área próxima ao porto, onde trabalhadores locais construíram uma grande base de alvenaria com três metros de altura e um imenso círculo no centro.
No Palácio do Governo, os italianos foram recebidos pelo então interventor federal Irineu Joffily e o interventor da Paraíba, Antenor Navarro, que ergueram brindes de champanhe pelo sucesso da empreitada de Balbo e seus comandados. Nessa ocasião, Balbo, general Giuseppe Valle e o coronel Umberto Maddalena estavam vestidos com uniformes de gala, mas vários italianos envergavam as nefastas camisas negras fascistas.
Ítalo Balbo e seus comandados com os interventores Irineu Joffily e Antenor Navarro (de óculos)– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Na noite de 7 de janeiro, todos os aviadores foram para o salão nobre do Aeroclube de Natal, para um recital. Foram recebidos pelo casal Fernando e Branca Pedroza e se juntaram as autoridades, entre essas os interventores Joffily e Navarro. De início, Alberto Roseli, um rico comerciante de origem italiana que vivia em Natal há muitos anos, leu uma saudação a Balbo e aos aviadores. Após, um grupo de alunas do último ano da Escola Normal cantaram entusiasticamente a “Giovinezza”, para delírio e encanto dos militares italianos. Todos se colocaram de pé, cantando o hino com vigor e realizando a saudação fascista.
Depois, houve as apresentações musicais de alunos do Instituto de Música do Rio Grande do Norte, escola fundada pelo maestro Waldemar de Almeida. Entre os que se apresentaram estavam Dulce Cicco, Maria da Glória de Vasconcelos Sigaud, Odila Garcia, Anadyl Roseli, Eurídice Vilar Ribeiro Dantas, Dulce Wanderley, Ivone Barbalho. Waldemar de Almeida tocou ao piano a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, uma composição do pianista e compositor norte-americano Louis Moreau Gottschalk. Para orgulho de Fernando e Branca Pedroza, o jovem Fernando Pedroza Filho também se apresentou, tocando ao piano as obras “Gavota” opus 123, da compositora e pianista francesa Cécile Chaminade, e o Prelúdio nº 20, de Frédéric Chopin.
Balbo e seus comandados cantando a “Giovinezza”– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Outro que se apresentou foi um garoto de nove anos chamado Orianne Corrêa de Almeida, primo de Waldemar de Almeida, que tocou uma “Marcha Militar” de Franz Shubert. Tempos depois esse garoto seria conhecido apenas como Oriano de Almeida e se tornou um dos maiores pianistas da história da música brasileira. Segundo me informou o professor Claudio Galvão, autor do livro “O Céu Era O Limite: Uma Biografia De Oriano De Almeida” (2010), não dá para cravar que essa exibição no Aeroclube em 7 de janeiro de 1931 tenha sido a primeira de Orione, provavelmente ele já tinha feito outras em Natal, mas o garoto chamava atenção pela precocidade que, talvez, tenha visto Balbo e seus comandados.
A Coluna Romana
No dia 8 de janeiro de 1931, uma quinta-feira, foi seguramente o mais movimentado dos italianos em Natal. De manhã cedo ocorreu a missa campal presidida pelo Bispo Dom Marcolino Dantas, com saudação aos aviadores que chegaram a Natal, homenagem aos que morreram na travessia e também a memória do falecido aviador italiano Carlo Del Prete, que esteve em Natal em 1928 junto com o colega Arturo Ferrarin. Estavam presentes todos os tripulantes dos hidroaviões, os militares do Lanzerotto Malocello, autoridades potiguares e italianas, além de uma multidão de natalenses, principalmente os moradores da região da Ribeira e das Rocas. Durante a realização da missa, uma aeronave Breguet, da companhia de aviação francesa Latécoère, fez evoluções sobre a audiência e a multidão. Então, novamente a “Giovinezza” foi excetuada na capital potiguar e dessa vez pela banda do 29º Batalhão de Caçadores. Realmente esse hino, que não era o hino oficial do então Reino da Itália, estava fazendo um sucesso danado por aqui.
A Coluna Capitolina em Natal– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Em seguida, Dom Marcolino benzeu uma Coluna Romana de estilo coríntio, feita de mármore cinza, com cinco metros e oitenta centímetros de altura, uma base de três metros quadrados e confeccionada há mais de dois mil anos. Ela foi originária do Templo de Júpiter, na Colina do Capitólio, ou Monte Capitolino, uma das sete elevações sobre as quais foi fundada a cidade de Roma. Essa era uma das quatro colunas romanas existentes no Novo Mundo e foi um presente do regime de Benito Mussolini à cidade do Natal. Inclusive, a razão oficial para Natal receber um presente tão interessante e importante tinha relação com a passagem de Del Petre por aqui.
Após Ferrarin e Del Petre partirem de Natal em seu voo histórico de 1928, ocorreu um acidente aéreo no Rio de Janeiro e Carlo Del Petre faleceu, fato que gerou enorme repercussão mundial. No ano seguinte Arturo Ferrarin lançou um livro intitulado “Voli por Il Mondo”, onde conta detalhes do voo e descreveu de maneira muito positiva sobre como agiu o Governo do Brasil em relação a morte de Del Petre e como ele e seu amigo foram recebidos em Natal. A repercussão dessa obra então teria gerado no governo Mussolini, ao menos em parte, o desejo de realizar a doação da coluna romana para Natal. Evidentemente que razões estratégicas, ligadas à expansão da aviação comercial italiana no Brasil, também explicaram a doação desse importante monumento histórico.
Rota do voo da Esquadrilha Balbo – Fonte – Arquivo do autor..
Após a missa, Balbo e os militares italianos estiveram na Praça Augusto Severo, onde prestarem uma homenagem ao aviador potiguar, que morreu em seu balão “Pax”, na cidade de Paris em dia 12 de maio de 1902. Balbo solenemente colocou uma coroa de flores na base da estátua de bronze do antigo aviador, abraçou seu filho Sérgio Severo Maranhão e todos os italianos realizaram a saudação fascista.
A noite, novamente os italianos e a sociedade natalense estiveram no Aeroclube, onde os italianos foram apresentados a dança do Maxixe. Conhecido como “Tango Brasileiro”, o Maxixe era uma dança de salão onde um casal se apresentava com bastante sensualidade dos movimentos corporais, o que causou grande furor na arcaica sociedade brasileira. É bem verdade que no início de 1931 essa dança andava meio fora de moda nas grandes cidades brasileiras, mas naquela noite no Aeroclube ninguém se importou muito com isso. Bem, tudo indica que nessa noite, enquanto a maioria dos aviadores assistiam, ou se arriscavam, no Maxixe no Aeroclube, o comandante Ítalo Balbo e alguns poucos oficiais se dirigiram para a casa do rico industrial potiguar Fernando Pedroza.
Fonte – Arquivo do autor.
E o Banho na Praia de Areia Preta?
A mansão dos Pedroza se localizava onde atualmente existe o encontro das Avenidas Nilo Peçanha e Getúlio Vargas, bem próximo do Hospital Universitário Onofre Lopes. Então, para saber mais desse encontro e sobre os anfitriões, procurei o funcionário público Antônio Carlos Magalhães Alves, mais conhecido em Natal como Toninho Magalhães, filho de Elza Pedroza e neto de Fernado e Branca Pedroza. Toninho me narrou que seu avô Fernando Gomes Pedroza nasceu em 30 de março de 1886, no chamado Casarão dos Guarapes, na zona rural da cidade potiguar de Macaíba. A família Pedroza possuía muitos recursos, tendo Fernando ido estudar na Inglaterra e junto com ele seguiu o natalense Manoel Augusto Pereira de Vasconcelos. Um dia Fernando e Manoel viajaram para a Suíça, onde duas irmãs de Manoel estudavam em uma tradicional escola feminina daquele país. Nesse encontro, Fernando conheceu uma moça chamada Branca Fonseca Toledo Piza, natural de Sorocaba, São Paulo e amiga das irmãs de Manoel. Não demorou e o namoro começou entre Fernando e Branca, tendo logo resultado em casamento. Vieram viver em Natal e Fernando Pedroza cresceu na exportação de algodão, a principal fonte de riqueza do Rio Grande Norte durante décadas.
Poster do voo da Esquadrilha Balbo entre a Itália e o Brasil – Fonte – Wikipedia.
O casal frequentemente viajava para a Europa e acompanhou o desenvolvimento cada vez mais intenso da aviação nas primeiras décadas do século XX. Muito desse interesse vinha do fato de Fernando ser sobrinho de Augusto Severo. Não podemos esquecer que Fernando, Manoel Pereira de Vasconcelos e Juvenal Lamartine, então governador potiguar, foram alguns dos fundadores do Aeroclube de Natal. Em uma viagem a Inglaterra, Fernando adquiriu dois biplanos de treinamento Blackburn Bluebird para a escola de aviação do Aeroclube, que era tocada pelo oficial naval e hábil piloto Djalma Cordovil Petit. Com toda essa paixão pela aviação, não é surpresa e sua esposa tenham feito o convite a Ítalo Balbo e alguns oficiais para irem a sua casa..
Toninho Magalhães fala sobre a recepção pelos seus avós Branca e Fernando Pedroza – Foto – Rostand Medeiros
Certamente deve ter sido um encontro bem interessante e positivo. Tanto que no outro dia, 10 de janeiro, enquanto Balbo e seus oficiais aguardavam a chegada do último S.55A de Fernando de Noronha, ele e o coronel Umberto Maddalena foram aproveitar a praia de Areia Preta. Estavam acompanhados de Dona Branca Pedroza, seus filhos Fernando, Sylvio Piza Pedroza e a caçula Elza Piza Pedroza, e quem fez a foto foi Fernando Pedroza. Todos se mostram muito alegres e molhados, realizando aquilo que é muito normal e natural aos natalenses – Levar para as nossas belas e calientes praias, os visitantes que vem de perto e de longe. Ali já não estavam mais dois dos membros mais importantes do Partido Fascista Italiano e renomados aviadores do seu tempo. Eram apenas dois turistas italianos deslumbrados com nossas belezas naturais e recebendo atenções que tão bem sabemos ofertar a quem nos visita.
Ítalo Balbo em foto após o voo para o Brasil – Fonte – Arquivo do autor.
Já Ítalo Balbo, após completar com sucesso o voo para o Brasil, realizou entre julho e agosto de 1933 um voo com vinte e cinco hidroaviões S.55X, com destino final aos Estados Unidos, sendo essa uma empreitada de enorme repercussão internacional. Balbo levou adiante a construção de um culto político em torno da aviação, tendo alcançado enorme popularidade em todo o planeta, mas sendo considerado politicamente um forte rival de Mussolini. Então a situação de Balbo começou a declinar ante o Regime Fascista.
O final do voo da Esquadrilha Balbo foi no Rio de Janeiro– Fonte – Livro “Stormi in volo sull oceano”.
Ajudou nessa situação os inimigos poderosos que fez por ser pró-judeu e, com o passar do tempo, cada vez mais antialemão. Eventualmente, ele se convenceria de que uma aliança com a Alemanha de Adolf Hitler traria ruína ao estado italiano, argumentando que a Itália deveria, em vez disso, ficar do lado de sua antiga aliada, a Grã-Bretanha. Diante dessas situações, o regime fascista impôs a Balbo que ele assumisse o cargo de governador da Líbia, no Norte da África, então colônia italiana. Ali ele se encontrava quando, em setembro de 1939, estourou a Segunda Guerra Mundial, com a entrada da Itália no conflito em 10 de junho de 1940.
Balbo participou da invasão do Egito por forças italianas, mas dezoito dias depois, ele estava morto, abatido por fogo amigo enquanto tentava pousar seu trimotor S.79 em Tobruk, Líbia.
A Força Aérea Britânica, a famosa RAF, ao saber da morte de Balbo lançou uma mensagem de condolências em homenagem a “um aviador galante que o destino colocou do lado errado”. Teóricos da conspiração culparam Mussolini pela morte de Balbo, embora nenhuma evidência real de um plano de assassinato tenha sido descoberta. Em um epitáfio irônico de uma vida extraordinária, certamente teria divertido Italo Balbo que, durante a Batalha da Grã-Bretanha, os pilotos da RAF rotineiramente usassem seu nome para descrever qualquer grande formação de bombardeiros alemães.
Felipe Nery de Brito Guerra – Publicado originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 218 a 228.
* Informação do Blog Tok de História – Busquei atualizar alguma coisa da ortografia do texto do Desembargador Felipe Guerra, escrito em agosto de 1920, sem, contudo, alterá-lo. Devido a sua extensão, foi necessário dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.
Escrever a história militar do Rio Grande do Norte desde o início de sua colonização, principiada em fins do século XVI seria, pelo menos até princípios do século XVIII, escrever a história do Rio Grande do Norte, porquanto esse espaço de tempo, abrangendo um período de cerca de dois séculos, foi preenchido por sangrentas agitações, lutas e guerras.
A dominação francesa, exercida então por piratas, aventureiros, desclassificados, sem outros ideais a não ser o lucro mercantil, sempre receosos e a espera de ataques dos portugueses. O que é certo, porém, é que essa permanência constante e demorada dos franceses, embora sem estabelecimento conhecido, representava um perigo para as vizinhas e próximas capitanias, principalmente a Paraíba, de onde haviam sido repelidos.
“O mal vem do Rio Grande”, dizia-se em Pernambuco e na Paraíba. E assim, para acabar com esse mal, foi resolvida a conquista do Rio Grande, da qual foi incumbido Manoel Mascarenhas Homem, tendo Jerônimo de Albuquerque alcançado melhor êxito na empresa.
Piratas franceses no Brasil – Fonte – httpswww.goianarte.com
Não tinham então os franceses regulares instalações. Viviam, entretanto, em estreitas relações com os selvagens, habitando mesmo suas aldeias. É o que se depreende da célebre “História do Brasil” de Frei Vicente do Salvador, escrita em 1627, e onde se lê que logo ao chegar Manoel Mascarenhas Homem “ali desembarcaram e se entrincheiraram de varas de mangue para começarem a fazer o forte e se defenderem dos Potiguaras que não tardaram muitos dias. Vieram uma madrugada, infinitos, acompanhados de cinquenta franceses, que haviam ficado das naus no porto dos Búzios e outros que ali estavam casados com Potiguaras”.
E assim ofereceriam os selvagens, auxiliados por seus aliados franceses, tenaz resistência. O que não impediu, entretanto, a fundação do “Forte dos Reys”, permitindo a criação da povoação do Natal dois anos depois — 25 de dezembro de 1599. Foi celebrada a paz com os Potiguaras, conseguida por Jerônimo de Albuquerque com a mediação de um selvagem “principal e feiticeiro”, chamado ILHA GRANDE.
A conquista do litoral brasileiro havia sido começada do norte para o sul, sendo depois continuada do sul para o norte, tendo, principalmente esta última, contado com eficaz cooperação dos naturais da terra, já representados por brancos, filhos de portugueses, por mestiços e pelos selvagens que, subjugados e pacificados pelos portugueses, eram aproveitados como seus aliados.
Os selvagens constituíam sempre o grosso das forças conquistadoras, embora não fossem, em regra, os elementos mais resistentes nos combates. Eram, entretanto, os mais resistentes às longas marchas, aos transportes e aos mais serviços exigidos em campanhas rudes e aventurosas, em que não podia se contar com auxílios minguadíssimos e retardados, senão impossíveis.
Os Potiguares, que dominavam o litoral do Rio Grande do Norte, uma vez pacificados, foram valiosos e fortes elementos para a conquista do norte. Não existindo mais o “mal vindo do Rio Grande», que passara para o Ceará e para o Maranhão, foi resolvida a conquista desses pontos, onde os franceses procuravam se firmar. Ainda foram os Potiguares elementos preponderantes para a conquista do primeiro daqueles territórios.
Expulsos os franceses do litoral, de Paraíba ao Maranhão, as novas populações que procuravam se estabelecer não ficaram na tranquilidade da paz. Nem todas as tribos haviam feito amizade com os colonizadores; e mesmo no meio daquelas tidas como amigas, surgiam ataques e desconfianças que traziam para a região um verdadeiro estado de guerra, rompendo a duvidosa paz, sempre de curta duração..
Veio depois a guerra holandesa. O Rio Grande do Norte foi duramente sacrificado na luta. Tomada a Fortaleza dos Reis Magos (12 de dezembro de 1533) por uma força holandesa guiada por Calabar, sofreu o Rio Grande do Norte com o invasor até o final da guerra holandesa no Brasil. Esteve assim esta terra dezenove anos sob o domínio batavo.
Florin holandês de ouro. Essa foi a primeira moeda a conter o nome Brasil e foi produzida pelos holandeses durante a ocupação de Recife – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Dutch_guilder
Calabar conseguira angariar para os holandeses a amizade dos Índios Janduís, que unidos aqueles praticaram horríveis massacres. Fácil é de imaginar o que seria a guerra movida por selvagens açulados por aventureiros da pior espécie, como parece que eram os holandeses enviados para o Rio Grande do Norte. Chegaram a negociar prisioneiros como animais para o corte, destinado a pasto dos antropófagos Janduís.
Finda a guerra holandesa pela expulsão dos invasores, continuou a luta no Rio Grande contra os Índios, sempre dispostos a defender sua vida selvagem e sem peias. Houve mesmo uma rebelião generalizada dos nativos que durou longos anos, nada respeitando, nem a vida nem os habitantes do Rio Grande, que já contava elementos de prosperidade. Foi calculado que os índios mataram “perto do trinta mil cabeças de gado grosso e mais de mil cavalgaduras”. Essa rebelião durou de 1688 a 1720, quer dizer, 32 anos, talvez mais, porquanto não se acha bem estudado esse ponto da história. Foi um movimento sério e perigoso. Pedidos insistentes de socorro partiram para Pernambuco, para a Bahia, e até diretamente seguiu um emissário para Lisboa, levando uma representação do Senado da Câmara ao Rei, tais as delongas do auxílio reclamado.
“Cena da Expedição do Tenente-Coronel Affonso Botelho”, aquarela do artista Joaquim José de Miranda (1771) que retrata o confronto entre indígenas e bandeirantes. Provavelmente cenas como essa ocorreram no Rio Grande do Norte – Fonte – https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/guerras-barbaras/
Do litoral ao alto sertão era grande o perigo que ameaçava a própria Natal, sendo, o ponto culminante da rebelião a ribeira do Assú. Vieram em excursões guerreiras tropas da Paraíba, de Pernambuco e da Bahia. Vieram os ”terços paulistas” que haviam lutado em Palmares, vieram companhias do Batalhão de Henrique Dias. Essas forças, os melhores elementos de luta então disponíveis pelo Governo do Brasil, subiram até as cabeceiras do rio Assú, foram às ribeiras do Seridó, do Apodi até ao Jaguaribe, em perseguição dos índios que foram afinal pacificados, isto é, aniquilados, escorraçados, sendo tomada a providência de aldear os restantes. Ainda em tais aldeamentos apareciam insurreições dos índios motivadas por excessivos rigores e injustiças. Nenhuma condescendência havia para o infeliz selvagem, a quem de fato era negado qualquer direito.
Seguramente Miguel Joaquim de Almeida Castro, o Padre Miguelinho, foi o potiguar que mais expresivamente tomou parte na revolução de 1817 e acabou sendo fuzilado. Em junho de 1906, no 89º aniversário do fuzilamento, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, promoveu uma série de homenagens em Natal . Houve uma sessão solene no então Teatro Carlos Gomes, atualmente Teatro Alberto Maranhão, na noite de 12 de junho de 1906, onde um coro feminino cantou o “Hino de Miguelinho”, letra de Henrique Castriciano e música de Luigi Maria Smido, cuja a capa da partitura apresentamos acima – Fonte – https://gamfrente.blogspot.com/2017/03/padre-miguelinho-luz-do-rio-grande-do.html
Na revolução de 1817, não é ignorado o papel que representou o Rio Grande do Norte. Pode-se dizer que essa página luminosa da história nacional se caracteriza no seu conjunto mais pela pureza de seus chefes, pelo estoico heroísmo dos que nela figuram, pela elevação dos ideais, pelo pendor doutrinário, do que por feitos militares e ação guerreira. E foi essa seguramente uma das causas que apressaram o fracasso da revolução.
Em agitações partidárias passou a Província as fases da Independência Nacional. Tomou parte na revolução da “República do Equador”.
Os corajosos e mal organizados destroços das forças revolucionárias de 1824 seguiram por terra, em dificultosa marcha por ínvios sertões de Pernambuco ao Ceará, procurando junção com as forças que nessa Província apoiavam o movimento revolucionário. Foi uma verdadeira retirada de cerca de três mil pessoas, conduzindo duas peças de artilharia, arrastadas por caminhos impraticáveis e arrostando todas as dificuldades que podem acompanhar forças sem disciplina, sem organização militar, sem recursos e sem alentadoras esperanças.
Quadro “Estudo para Frei Caneca”, de Antônio Parreiras (1918), mostrando o padre revolucionário em seu julgamento – Fonte – https://en.wikipedia.org/
Atravessaram o sertão do Rio Grande do Norte entrando pelo Seridó, seguindo para Pau dos Ferros pelos limites entre Rio Grande do Norte e a Paraíba. No Seridó, onde o presidente provisório da Paraíba deixou sua família, que com ele vinha acompanhando a expedição, da qual também fazia parte o nobre, elevado e culto espírito que era Frei Caneca, não foram hostilizadas as forças. Em Caicó, demoraram-se oito dias, concertando as carretas das peças que eram puxadas por bois. Em Patu de Fora, começou a expedição a sofrer hostilidades e também a hostilizar. Foram incendiadas algumas casas e fazendas.
Em Torrões (ou Torões), Patu, houve forte tiroteio, morrendo mais de trinta pessoas de parte a parte. Parece que batalhões irregulares de Portalegre organizaram guerrilhas, unindo-se depois com as forças legalistas do Rio do Peixe (PB).
Foto – Rostand Medeiros.
Serenada a luta pela submissão dos rebeldes, seguiram-se o martírio e as exageradas punições de infelizes chefes rebeldes, sonhadores antecipados dos ideais republicanos, vítimas da crueldade das juntas militares, tão tristemente célebres na história pátria.
Os habitantes do Rio Grande do Norte conservaram sempre prontos para qualquer emergência, chegando a formar batalhões de tropas irregulares, contra os reacionários de 1832, apoiando a política do então ministro da justiça e depois Regente do Império, padre Diogo Antônio Feijó.
Iniciada no Ceará em dezembro de 1831, com a proclamação de Joaquim Pinto Madeira, essa revolta obedecia aos ideais do Partido Restaurador, ou Caramuru, apoiado pelos portugueses. Formou-se no sertão do Rio Grande do Norte batalhões de tropas irregulares que marcharam para o Crato contra os revolucionários. De Martins e Portalegre seguiu um batalhão sob o comando do coronel Agostinho Pinto de Queirós. Conta-se que na primeira noite de marcha dois soldados de família do Martins, os irmãos Patrícios, tentaram voltar para casa, sendo por isso, ao amanhecer, sumariamente fuzilados. O comandante da tropa foi processado por esse fato e depois, por prescrição, isento da pena.
Sob o comando do coronel José Teixeira se organizou um batalhão no Seridó, do qual faziam parte os homens válidos das principais famílias. Incorporada à força combatente e reunida em Caicó, o padre Francisco de Britto Guerra, então vigário da cidade e representante da Província na Câmara Temporária, onde entrara como suplente, intimamente relacionado com o padre Feijó, e talvez o principal fator do movimento, promoveu uma grande solenidade cívico-religiosa por ocasião da partida da força. Seguiram todos montados para Pombal onde se uniram as forças da Paraíba, principiaram a receber instrução militar ministrada pelo alferes Canuto, de tropa de linha do Ceará.
Nas várzeas do Rio do Peixe (PB), houve o primeiro encontro entre esse batalhão do Seridó e as forças de Pinto Madeira, tendo estas atacado de surpresa, procurando tomar o valioso comboio dos víveres e munições dos seridoenses. O resultado foi as forças de Madeira retirando-se do combate com a perda de doze homens.
Manuel de Assis Mascarenhas, presidente da Província do Rio Grande do Norte ente 1838 a 1841, em cujo governo concedeu a patente de Coronel Comandante ao seridoense Joãop Gomes da Silva, pela sua capacidade de luta nos combates contra as forças de Pinto Madeira em 1831 – https://pt.wikipedia.org
O batalhão do Seridó continuou em marcha afim de reunir-se com as forças legalistas que no Ceará procuravam abafar a revolta, havendo pelo caminho alguns encontros. Terminada a luta, voltou a tropa ao Caicó, onde foi recebida com festas, aclamações, Te Deum na igreja, etc. Por ocasião dessas festas da chegada, foi aclamado pelos soldados o comandante das forças o quartel mestre João Gomes da Silva, que se havia distinguido na expedição, aclamação que anos depois no governo de Manoel de Assis Mascarenhas (1838 – 1841) foi confirmada com a patente de Coronel Comandante.
Muito é de notar que em todas essas lutas político-partidárias, os sertanejos do Rio Grande do Norte, serenados os ânimos, evitavam ódios inúteis, crueldades, perseguições e delações contra os vencidos.
A tradição narra mesmo o fato de haver Simão Gomes de Britto, capitão de milícias em Campo Grande, recebido ordem superior para prender o Coronel Cavalcante, implicado na revolução de 1817. Mas este apresentou a ordem de prisão ao seu amigo e pediu para que tomasse suas precauções. Acrescentou: — “Dê no que der, não o prenderei, porque sei que não cometeu crime”. E efetivamente não tentou fazer a prisão. Entretanto, o Coronel Cavalcante, ou porque se julgasse inocente, ou por altivez de caráter, ou ainda para evitar a responsabilidade do amigo, foi se entregar, e sofreu os rigores daqueles horríveis cárceres, onde foram martirizados os patriotas de 1817.
Nas guerras contra as repúblicas do Rio da Prata numerosos filhos do Rio Grande do Norte acudiram em defesa da pátria.
Quatro meses depois de declarada a Guerra do Paraguai, embarcou em Macau um contingente de mais de sessenta voluntários, dos quais trinta e três eram do Assú, além de onze de Campo Grande, que haviam seguido diretamente para a Capital. É conhecido o fato de haver o Dr. Olinto José Meira de Vasconcelos, então Presidente da Província (1863 – 1866), dirigido a palavra na capital, a grupos que se achavam em manifestações em frente ao quartel, apelando para o patriotismo de todos e pedindo dar um passo à frente aqueles que quisessem seguir para a guerra. Mais de 400 voluntários moveram-se para a frente. De todos os pontos da Província seguiram Voluntários da Pátria, sendo também crescido o número de recrutados. E o papel que na guerra desempenharam os rio-grandenses-do-norte ajudou ao merecido renome adquirido pela infantaria do norte.
Na proclamação da República, na revolução federalista do sul, na revolta da armada, em Canudos, os filhos do Rio Grande do Norte cumpriram sempre seu dever.
Sob as ordens de Plácido de Castro, nas lutas acreanas, encontraram-se também inúmeros rio-grandenses-do-norte, destemidos e audazes pioneiros da colonização e conquista das mais recuadas fronteiras da Pátria, os quais tangidos do torrão natal por atormentadoras secas, forneceram, com seus irmãos de outros Estados, por igual vítimas da calamidade, os elementos vitais, talvez os únicos possíveis para o colossal empreendimento da colonização da Amazônia.
De fato, outras populações vivendo certamente sob um clima mais doce e uma natureza mais amena, não estariam, como os nossos sertanejos, tão habituados a receber e aguentar o choque e a destruição das mortíferas forças da natureza amazônica, com a mesma resignação, com o mesmo esforço e coragem com que encaram e recebem as furiosas cargas das nossas devastadoras secas.
Na execução da recente lei do serviço militar (1916) raro é o sorteado dessa terra que deixa de acudir ao chamado: talvez nenhum listado da União apresente menor número de insubmissos.
Eis aqui, a largos traços, a vida militar do Rio Grande do Norte: lutas constantes durante dois séculos, sempre aceso o sentimento de patriotismo, de abnegação, de sofrimento. E por isso mesmo, apesar de uma bissecular educação guerreira, os filhos do Rio Grande do Norte têm acentuadamente o caráter pacífico: o banditismo, o caudilhismo, e as lutas por fanatismo nunca encontraram apoio entre eles.
Para quem não conhece, o Pé Grande, Bigfoot em inglês, também comumente referido como Sasquatch, é uma pretensa criatura mítica grande e peluda, musculosa, bípede, semelhante a um macaco, coberta por pelos negros, castanhos escuros ou avermelhados, que alguns alegam habitar florestas na América do Norte, particularmente no noroeste dos Estados Unidos.
Essa criatura é frequentemente descrita como uma altura de aproximadamente 1,8 a 2,7 metros, com algumas descrições mostrando-os com altura de 3,0 a até 4,6 metros. O Pé Grande é destaque no folclore americano e canadense e tornou-se um ícone cultural, permeando a cultura popular e tornando-se objeto de sua própria subcultura distinta.
O interessante e curioso dessa história é que muitas das culturas indígenas em todo o continente norte-americano possuem contos envolvendo misteriosas criaturas cobertas de pelos que viviam nas florestas, e de acordo com o antropólogo David Daegling, essas lendas existiam muito antes dos relatos contemporâneos da criatura descrita como Pé Grande. Essas histórias diferiam em detalhes regionalmente, mas eram particularmente prevalentes no noroeste do Pacífico.
Na Reserva Indígena do rio Tule, no Condado de Talure, Califórnia, existe uma área com pinturas rupestres criadas por uma tribo chamada Yokuts, em um local conhecido como Painted Rock, que para muitos representa um grupo de Pés Grandes. A pintura é denominada “A Família”.
Acredita-se que essa pintura tenha mais de 1.000 anos e na cultura Yokut a maior figura da pintura representava o “Homem Peludo”, uma criatura que parecia um grande gigante com cabelos longos e desgrenhados, que o fazia parecer um grande animal. Para essa tribo eles eram considerados bons, pois comiam animais que poderiam prejudicar as pessoas. No passado os pais Yokut alertavam seus filhos para não se aventurarem perto do rio Tule à noite, ou eles poderiam encontrar a criatura.
Registro rupestre denominado “A Família”.
Exploradores espanhóis do século XVI e colonos mexicanos contaram histórias sobre os “Los Vigilantes Oscuros”, ou “Vigilantes das Trevas”, grandes criaturas que supostamente atacavam seus acampamentos à noite.
Em 1721, na região que hoje é o estado do Mississipi, um padre jesuíta morava com os índios Natchez e relatou histórias de criaturas peludas na floresta, conhecidas por gritarem alto e roubarem animais da tribo.
Em 1847, Paul Kane, um pintor de origem irlandesa e famoso por seus quadros que retrataram os nativos americanos, relatou histórias sobre os “Skoocooms”, uma raça de homens selvagens e canibais, que viviam no norte da Califórnia.
Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos entre 1901 e 1909, relatou em seu livro The Wilderness Hunter, de 1893, que conheceu um idoso montanhês chamado Bauman, que lhe contou uma história sobre uma criatura bípede e fedorenta, que saqueou seu local de captura de castores e que em uma ocasião quebrou fatalmente o pescoço de um companheiro de caçadas. Roosevelt observou que Bauman parecia temeroso ao lhe contar essa história.
Na década de 1920, o agente indígena e professor J.W. Burns, que viveu e trabalhou com a nação Sts’ailes, foi quem primeiro divulgou o termo “Sasquatch”, que se acredita ser a versão anglicizada de sasq’ets, ou sas-kets, tradução aproximada para “homem peludo” na língua Halq’emeylem. Burns publicou em uma revista uma coleção de histórias narradas pelos nativos que afirmaram haver tido contatos com os Pés Grandes. Uma delas comentava sobre o encontro de um membro da tribo teve com uma mulher selvagem e peluda. Os relatos que Burns coletou informavam que esses animais sempre viviam nas montanhas, habitando predominantemente em túneis e cavernas. Burns descreveu os Sasquatchs como “uma tribo de pessoas peludas”.
Ninguém sabe ao certo quando a lenda do Pé Grande do Noroeste realmente começou entre os indígenas, mas a plataforma de lançamento de maior sucesso para a obsessão do público é conhecida: uma batalha que supostamente ocorreu em 1924, na área de um desfiladeiro estreito chamado de Ape Canyon (Cânion do Macaco), que supostamente recebeu essa denominação depois do incidente que vamos descrever.
O Encontro com os “Homens-Macacos”
O Ape Canyon fica a cerca de três quilômetros a leste do majestoso Monte Santa Helena, um vulcão ativo localizado a leste do estado de Washington, e a cerca de doze quilômetros a oeste de um lago chamado “Espiritual” (Spiritual Lake), considerado assombrado pelos nativos americanos. Consta que supostamente eles não andavam muito nesse setor.
Quatro dos mineiros envolvidos no caso de 1924.
Foi nessa região que em julho de 1924 vamos encontrar um grupo de cinco mineiros trabalhando. Eles eram Fred Beck, o seu sogro Marion Smith, seu cunhado Roy (ou Leroy) Smith, além de Gilbert (ou Gabe) Lafever e John Peterson. Eles vinham da cidade de Kelso, no estado de Washington e localizada a cerca de 39 quilômetros de distância da região do Monte Santa Helena.
Já havia alguns anos que esses mineiros estabeleceram, inclusive registrando oficialmente, uma mina de ouro que eles chamaram de Vander White, onde só trabalhavam no local nos períodos em que a temperatura era suportável. Ali, eles tinham basicamente explodido a rocha com dinamite e criado um túnel. Procuravam prioritariamente ouro, mas até então não tinham encontrado nada do metal precioso. Entretanto conseguiram manter o negócio funcionando com a retirada de minério de ferro e outros minerais.
Segundo eles, a primeira coisa realmente estranha ocorreu no verão de 1922, quando encontraram algumas pegadas gigantescas na lama, perto de um riacho, afluente do Rio Lewis. As pegadas pareciam grandes impressões semelhantes às humanas e marcavam muito profundamente a lama. Os mineiros afirmaram que talvez aquilo fosse de algum nativo americano de grande estatura e que estava caçando ou pescando na área.
Tempos depois eles começaram a ouvir barulhos estranhos em torno da cabana. Eram sons altos e penetrantes de assobios, que emanavam dos topos das grandes elevações. Às vezes haviam vários assobios que pareciam responder um ao outro, depois começaram a ouvir durante o dia barulhos de batidas bem altos e eles não conseguiam descobrir o que eram essas coisas.
Foto de satélite da área hoje conhecida como Ape Canyon.
Para os pesquisadores que estudaram o caso esses sons poderiam ter se originado do interior do Monte Santa Helena, fruto de sua atividade vulcânica. Mas o Santa Helena estava inativo desde 1857 e só voltou a rugir, então de maneira espetacular e catastrófica, no dia 18 de maio de 1980, quando ali aconteceu aquela que é considerada a maior erupção vulcânica em tempos históricos nos Estados Unidos e resultou na morte de 57 pessoas.
De qualquer maneira os barulhos estranhos e as enormes pegadas chamaram a atenção daqueles rudes e esforçados mineradores. Logo eles souberam no comércio de Kelso e na vizinha comunidade de Longview, que estava acontecendo situações estranhas, ligadas a criaturas esquisitas na área do Monte Santa Helena. E não eram histórias muito antigas dos nativos americanos, mas vinda de mineiros e madeireiros que trabalhavam naquele setor. Falavam do avistamento de certos “Demônios da montanha”, ou coisas que pareciam com “Gorilas”, ou “Grandes macacos peludos”. Mas a verdade é que os cinco trabalhadores da mina de Vander White não deram muita importância a essas histórias. Talvez porque entre eles o que não faltavam eram rifles, espingardas, revólveres e muita munição.
Consta que em 1º de julho de 1924, quando Fred Beck estava junto com seu sogro Marion Smith em um local nas proximidades da mina para obter água, eles viram uma criatura espiando por trás de uma árvore. Fred a descreveu tendo cerca de dois metros de altura e estimou seu peso em torno de uns 350 quilos. Era coberta de pelos castanho escuro e com um tom acinzentado, além de um rosto parecido com um macaco. Foi quando Marion disparou três tiros na cabeça da coisa. Mas, para surpresa dos mineiros, o bicho começou a fugir e desapareceu na mata.
Rifle Winchester calibre 30-30.
O Ataque e a Investigação
Na sequência eles alegaram que estavam a 13 quilômetros de Spirit Lake, quando encontraram quatro daqueles estranhos e gigantes animais se movendo pela floresta com passos eretos, semelhantes aos humanos. “Eles são cobertos por longos cabelos pretos”, relatara ao jornal The Oregonian, informando as descrições oferecidas pelos homens. “Suas orelhas têm cerca de dez centímetros de comprimento e ficam retas. Eles têm quatro dedos, curtos e atarracados.”
Surpreso ao ver as enormes feras, Fred Beck disparou seu rifle Winchester calibre 30-30 contra uma das criaturas que foi atingido três vezes. O animal ferido caiu então em um penhasco (Beck teria afirmado anos depois que outro membro do grupo também abriu fogo).
Representação dos disparos contra o Pé Grande e sua queda.
O certo é que toda aquela violência provou ser um erro!
Naquela noite, disseram os homens, eles foram acordados quando pedras enormes começaram a bater na parte externa de sua cabana. Então ouviram — e sentiram — corpos gigantes batendo contra as paredes e a porta. Parecia que aqueles “homens-macacos” estavam em busca de vingança.
As feras eventualmente abriram um buraco no telhado, permitindo-lhes atingir Beck. “Muitas das pedras caíram por um buraco no telhado, e duas delas atingiram Beck, uma delas deixando-o inconsciente por quase duas horas”, relatou um dos mineiros ao The Oregonian.
Finalmente, disseram os garimpeiros, o sol começou a nascer, o que fez com que os animais interrompessem o ataque e fugissem. Os homens enfiaram a cabeça para fora da porta e, quando decidiram que o caminho estava livre, saíram correndo da floresta.
Representação do suposto ataque das feras.
Como comentamos anteriormente, lendas e histórias sobre “homens-macacos” gigantes não eram exatamente novos naquela região. Mas poucas pessoas se preocupavam seriamente com a possibilidade de criaturas enormes e desconhecidas estarem na floresta. Isso mudou quando os mineradores da mina Vander White regressaram à civilização naquele verão de 1924.
A dramática história da sua batalha contra grandes feras semelhantes a humanos era irresistível e, portanto, difícil de ser ignorada pelas pessoas. Disseram que aqueles garimpeiros saíram verdadeiramente cambaleando da floresta, tremendo e com os olhos vidrados, para contar sobre animais parecidos com macacos com mais de dois metros de altura que os atacavam com pedras.
Com as notícias causando sensação local, o Serviço Florestal dos Estados Unidos decidiu entrar no circuito. Os investigadores J.H. Huffman e William Welch voltaram ao local e caminharam pela floresta com Beck, que os levou até o penhasco onde, segundo ele, o “homem-macaco” caiu ferido. Um dos guardas florestais desceu o desfiladeiro, supostamente inacessível, e “não encontrou absolutamente nada”, escreveu o The Oregonian.
Beck e os guardas continuaram até a cabana dos garimpeiros e este Beck mostrou aos investigadores as grandes pedras que haviam sido usadas no ataque. Huffman e Welch não ficaram nem um pouco impressionados com o que viram e concluíram que os próprios garimpeiros colocaram as grandes pedras no telhado e criaram todo o cenário. Só que os dois investigadores não explicaram para que eles fizeram tudo isso!
Roy Smith e Fred Beck em foto de jornal com seus rifles.
Um repórter perguntou aos guardas-florestais quando eles retornaram a Kelso “– E as pegadas de 14 polegadas encontradas perto da cabana?”. Huffman então criou uma marca no chão usando os nós dos dedos e a palma da mão direita. “Eles foram feitos dessa maneira”, disse ele.
Apesar do desmascaramento da história pelos guardas, as pessoas ainda queriam acreditar naquele estranho episódio – e a história continuou a se espalhar. Mais tarde o The Oregonian publicou – “Amigos e conhecidos dos cinco homens que relataram suas experiências acreditam que eles realmente viram algo que não pôde ser explicado”.
O membro da tribo Cowlitz, Frank Wannassay, contou a um repórter sobre “criaturas peculiares” das quais os mais velhos da tribo sempre falavam. “O Senhor Wannassay os descreveu como tendo entre dois e três metros de altura, corpos cobertos por cabelos longos”, escreveu o The Oregonian. A reportagem continuou: “Eles nunca foram vistos durante o dia”. Wannassay insistiu que esses animais eram “inofensivos”.
Crescimento do Mito
Nos anos que se seguiram a história dos garimpeiros seria repetida inúmeras vezes, inspirando vários avistamentos, teorias sobre as feras e muitos relatos que só fizeram o mito crescer.
Um dos aspectos desse crescimento tem relação com o fato das mortes prematuras dos mineiros que sobreviveram ao incidente. Elas aconteceram poucos anos após o incidente e são tidas como misteriosas. Mas até onde eu pesquisei dois deles se afogaram em um passeio de barco e os outros aparentemente pereceram de mortes naturais. Nada de incrível quando sabemos a época e o local agreste onde eles viviam!
Um idoso Fred Beck segura o mesmo rifle Winchester 30-30 utilizado no caso de 1924 durante uma entrevista.
Ao longo dos anos, o único sobrevivente do caso, o mineiro Fred Beck, se tornou ministro evangélico e até escreveu um livro sobre o episódio ocorrido nas proximidades do Monte Santa Helena. Nesse livro ele realmente retrata os incidentes de forma bem diferente, afirmando que os tais “homens-macacos” não eram criaturas reais, de carne e osso, mas “espíritos ou demônios ou algum outro tipo de entidades sobrenaturais e é por isso que eles não poderiam ser baleados corretamente e mortos”. Beck também afirmou que “mantinha comunicações telepáticas com as criaturas e havia outros espíritos que apareciam para ele”.
Capa do livro de Fred Beck.
Houve até outro caso estranho na região. Em 1950, um esquiador chamado Jim Carter fazia parte de um grupo com cerca de 20 pessoas que subiram nas encostas do Monte Santa Helena para esquiar. Só que Carter decidiu que não iria seguir o resto do grupo e foi por outra parte das encostas para que ele pudesse realizar uma boa esquiada e bater algumas fotos. Essa foi a última vez que seus amigos viram Carter.
Considerada a melhor evidência dos Pés Grandes, a filmagem Patterson-Gimlinchama atenção a mais de meio século. A questão que perdura é se é um grande símio desconhecido da ciência, ou um homem fantasiado?
Conforme ele demorava a chegar em uma área anteriormente combinada o grupo foi em sua busca. Chegaram a encontrar suas marcas de esqui morro abaixo e parecia para eles que a trajetória de sua corrida fosse um tanto frenética, como se algo estivesse lhe perseguindo. Encontraram também um recipiente de filme fotográfico vazio e suas marcas de derrapagem desapareceram de repente na borda de um penhasco íngreme. Houve uma enorme operação de buscas por Jim Carter, mas ele desapareceu completamente e nada mais foi encontrado. Esse provável acidente só ajudou no crescimento da casuística do que aconteceu com os mineradores em 1924.
Outro aspecto ligado à história do Ape Canyon foi que em 2013 um investigador empreendedor chamado Mark Marcel, pretensamente encontrou o local onde a cabana estava localizada. Mark descobriu a localização através de uma pesquisa em diferentes artigos de jornais e outras pistas em documentos antigos. O local estava localizado ao lado de um desfiladeiro de parede muito íngreme, acima do desfiladeiro dos macacos. Quando ele desceu ao local encontrou restos da construção, velhas ferramentas, pregos enferrujados e outras pistas que corroboravam o fato da localização da cabana. Ao longo dos anos outros investigadores estiveram no local.
Fred Beck e seu rifle.
Atrações Turísticas
Entusiastas do Pé Grande, como aqueles da pseudociência da criptozoologia, ofereceram várias formas de evidências duvidosas para provar a existência desses animais, incluindo alegações de avistamentos, bem como supostas fotografias, gravações de vídeo e áudio, amostras de cabelo e moldes de grandes pegadas.
No entanto, o consenso científico é que o Pé Grande, e as supostas evidências, são, em vez de um animal vivo e desconhecido, uma combinação de folclore, erro de identificação e pura e simples farsa.
O ecologista Robert Pyle argumenta que a maioria das culturas tradicionais tem relatos de gigantes semelhantes aos humanos em sua história popular, expressando a necessidade de “alguma criatura maior que a vida”. Cada idioma tinha o nome da criatura apresentada na versão local de tais lendas. Muitos nomes significam algo como “homem selvagem” ou “homem peludo”, embora outros nomes descrevessem ações comuns que ele realizava, como comer mariscos ou sacudir árvores.
Representação do interior da casa dos mineiros, referente ao caso de 1924, existente em um museu.
O folclore europeu tradicionalmente tinha muitos exemplos do “homem selvagem da floresta”, ou “gente selvagem”, muitas vezes descrito como “uma criatura nua, coberta de pelos “. Esses povos selvagens europeus variavam de eremitas humanos a monstros semelhantes a humanos. Após a migração para a América do Norte, os mitos das “pessoas selvagens” persistiram.
Não podemos esquecer que os estadunidenses são especialistas em “turistificar” basicamente tudo envolve sua História e os aspectos de sua grande nação e, com isso, gerar bastante renda com a criação de atrações. Sendo assim, não é de estranhar que as áreas onde supostamente esses Pés Grandes deixaram suas marcas, sejam repletas de museus, lojas de suvenires e locais de visitação para levar os turistas aonde eles pretensamente apareceram.
AUTOR – Antônio Luís de Medeiros – São João do Sabugi – RN
Se os portugueses discriminavam os índios, muito mais faziam com a raça negra. Então este casamento de um português com uma sua escrava foi um fato raríssimo ocorrido no nosso Seridó há mais de dois séculos.
Nosso saudoso Olavo de Medeiros Filho comentava conosco esse ineditismo. Ele fazia a comparação com o romance Iracema, de José de Alencar, sendo este a miscigenação do português com o índio enquanto o consórcio matrimonial de José Antônio da Costa com Rita Maria, sua ex-escrava seria a união de sangue ibérico com sangue africano.
Ao primeiro dia do mês de julho de mil oitocentos e dezoito, pelas oito horas da noite, nessa Matriz do Seridó, em minha presença e das testemunhas o Reverendo Manoel Teixeira da Fonseca e o Capitão Tomaz de Araújo Pereira, casado, se receberam em matrimônio por palavras de presente José Antônio Costa, europeu, natural de Santarém e Rita Maria, parda, que havia sido sua escrava. Natural da Vila de Icó, Ceará, donde justificam o estado de livre e desimpedidos e igualmente da naturalidade do contraente confinada aos banhos por faculdade do Ilustríssimo Senhor Provedor e Governador do Bispado Manoel Vieira de Lemos aos vinte e seis de maio do corrente ano, como consta dos papéis que ficam emaçados, e declarava o contratante ser filho legitimo de Antônio Pereira de Amorim e de Teresa Maria Maciel, moradores na dita Freguesia de Santarém, de Nossa Senhora das Maravilhas, no Patriarcado de Lisboa, e logo lhe dei as bênçãos de que para tudo constar fia este assento que com as ditas testemunhas assino.
O Vigr° Francisco de Brito Guerra
Pe. Manoel Teixeira da Fonseca – Tomaz de Araújo Pereira
Fonte: 2º Livro de Casamento da Freguesia da Senhora Santana do Seridó, período de 1809/1821, fls. 124 / 125.
Documento de 1818.
Neste modesto trabalho, de poucas linhas, nossa intenção é comentar, superficialmente, a convivência harmoniosa de nossos antepassados com seus poucos escravos na região seridoense. Sendo a atividade pastoril a principal fonte de renda da população, poucas posses dos fazendeiros e dificuldade de sobrevivência era grande a desigualdade patrimonial entre a região litorânea e sertaneja nordestinas.
Com as agruras do meio enfrentadas tanto pelo senhor quanto pelos escravos formava-se um sentimento fraterno e mais humano entre ambos. Os escravos casavam religiosamente, moravam em suas casas, com suas esposas e os filhos, iguais aos “moradores livres”. Nunca encontramos resquícios de senzalas no Seridó. Só nos engenhos do brejo e outras regiões distantes. Nas grandes secas seus senhores passavam as mesmas privações que eles.
Casa Grande da Fazenda Dinamarca, Serra Negra do Norte – RN. Foto meramente iliustrativa – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.
João Paulino, da fazenda Pitombeira, em São João do Sabugi, parecia ter mais escravos que bois. Diziam que ele e seu irmão o Ten. Cel. José Evangelista, da fazenda Ipueira, nunca venderam um só escravo.
Coma libertação da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, os antigos escravos permaneceram morando na mesma casa, plantando o mesmo roçado de miunças (ovelhas e cabras), com terreiro de galinhas, porco no chiqueiro e um jumento cargueiro para as suas necessidades.
Contrastando com todas as dificuldades do meio e da época, encontramos a maior fortuna do Seridó do século XIX, em Serra Negra, no inventário de Maria Jesus José da Rocha, pernambucana de Pau D’alho, falecida em 1854, esposa de Manoel Pereira Monteiro (o 3º), pais de Antônio Pereira Monteiro – Cangalha. Só para citar alguns dados: 62 peças em ouro, 41 em prata, 52 escravos, 50 bois mansos, 1.338 vacas paridas, 55 touros, 1.200 bois criados, 136 cavalos, extensas fazendas nas Províncias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, 18 contos de réis em dinheiro e muitos outros bens.
Esperidião Medeiros com a família, cerca de 1918 a 1920 – Fonte – Antônio Luís de Medeiros.
Em antigas fotografias aparece sempre uma negra fazendo parte da família como mostra o registro acima de Esperidião Medeiros com a sua esposa e seus 12 filhos, possivelmente entre 1918 e 1920.
Quando faleceu a preta Irene, que havia sido sua ama na infância de Manoel Bandeira ele dedicou-lhe o poema, Irene no céu.
Irene Preta.
Irene boa.
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
– Licença meu branco!
E São Pedro bonachão:
– Entre, Irene. Você não precisa pedir licença.
Gentilmente após a publicação desse material, recebi no Facebook, de “Literatura do Seridó”, a informação que essa senhora da foto é Aureliana Aurélia de Albuquerque, ou, como era mais conhecida, “Dedé”.Agregada à família, cuja a criançada a consideravam como uma segunda mãe. Nasceu em Caicó no dia 16 de junho de 1876, e faleceu na mesma cidade, no dia 18 de janeiro de 1953, aos 77 anos de idade. E segundo o autor do texto a criança da foto é Aldo Medeiros, que foi casado com Dona Mili, filha do casal Dinarte de Medeiros Mariz e Dona Diva. Aldo e Dona Mili casaram no ano de 1940.
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Na primeira semana de abril de 2022 o Mundo tomou conhecimento que tropas russas perpetraram assassinatos de civis na região da cidade de Bucha, na periferia de Kiev, capital da Ucrânia, como parte do ataque “Especial” executado por forças russas do Ditador Vladimir Putin contra aquele país. Infelizmente essa história não é inédita. Em 1940 os russos, que na época eram conhecidos como soviéticos, fizeram algo muito pior!
Poucos dias antes do início da Segunda Guerra Mundial, em 23 de agosto de 1939, Joachim von Ribbentrop, Ministro das Relações Exteriores da Alemanha Nazista, veio a Moscou. Juntamente com Vyacheslav Molotov, Comissário do Povo para as Relações Exteriores da União Soviética, eles assinaram um pacto bilateral de não agressão.
Vyacheslav Molotov, Comissário do Povo para as Relações Exteriores da União Soviética, assina o pacto bilateral de não agressão entre a Alemanha Nazista e a União Sovietica. Logo atrás dele vemos, de paletó escuro, Joachim von Ribbentrop, ministro de Relações Exteriores da Alemanha Nazista entre 1938 e 1945, que tem ao seu lado esquerdo Josef Stalin, o todo poderoso Secretário Geral do Partido Comunista de 1922 a 1952 – Fonte – Wikipédia.
Até aí tudo bem. Uma situação normal entre países que mantem boas relações diplomáticas. O problema foi que um protocolo secreto foi anexado a este documento, onde se incluía um plano para a divisão da Polônia pela Alemanha Nazista e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS, atual Federação Russa.
Com isso, para os poloneses os piores temores se tornaram realidade – os vizinhos orientais e ocidentais da Polônia decidiram tirar a liberdade daquela nação. Pelo preço de benefícios territoriais aparentemente menores, Hitler recebeu a garantia da neutralidade de Moscou no próximo conflito militar com o Ocidente.
Tropas nazistas na invasão da Polônia, em setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.
Em 17 de setembro de 1939, apenas cerca de duas semanas após o Terceiro Reich atacar a Polônia, o Exército Vermelho, a força armada dos soviéticos, o famoso Exército Vermelho, atacou a Polônia pelo leste, implementando o pacto Ribbentrop-Molotov.
Em setembro de 1939 os soviéticos encontraram pouca resistência das unidades do Corpo de Proteção de Fronteiras e poucas unidades militares, ocupou cada vez mais cidades em ritmo acelerado.
Por causa da “punhalada pelas costas” com falta de apoio dos aliados, foi tomada a decisão de evacuar as mais altas autoridades da República da Polônia para o exterior. Ao mesmo tempo, o exército polaco participou de batalhas desiguais contra o agressor – mas dada a enorme desproporção, o desastre foi inevitável. O estado polonês independente havia sido eliminado.
O valente, mas limitado, exército polones não foi adversário para os nazistas – Fonte – Wikipédia.
No Cativeiro Soviético
Após a agressão à Polônia, os soviéticos capturaram ou prenderam de 240 a 250 mil poloneses, incluindo cerca de 10 mil oficiais do exército polonês. Ao contrário de todas as convenções internacionais, eles entregaram prisioneiros aos serviços de segurança da temida NKVD, sigla que em português significa Comissariado do Povo para Assuntos Internos.
Três campos especiais foram montados: em Starobielsk (na atual Ucrânia) e Kozielsk (no território da Federação Russa) e destinados a oficiais, altos funcionários do estado e militares. O último campo foi em Ostashkow (Federação Russa), para soldados do Corpo de Proteção de Fronteiras e oficiais da Polícia Estadual, inteligência e contrainteligência, Guarda Prisional e Guarda de fronteira.
No final de novembro de 1939, um total de mais de 14,5 mil prisioneiros de guerra poloneses estavam nesses campos.
Poloneses prisioneiros dos soviéticos em 1939 – Fonte – Wikipédia.
As condições eram difíceis – superlotação, falta de água e comida. Cada um dos prisioneiros foi questionado sobre suas opiniões políticas, posição profissional, ativos, até mesmo associações com países estrangeiros e habilidades em línguas estrangeiras. A rede de informantes forneceu informações sobre a vida no campo. Muitos meses de interrogatório e doutrinação dos prisioneiros trouxeram pouco efeito. Apenas alguns quebraram. A grande maioria não,
Nas últimas semanas de 1939, os oficiais do NKVD aceleraram a investigação. Seus arquivos foram encaminhados ao Conselho Especial, cuja tarefa era decidir sobre o destino daqueles prisioneiros de guerra.
Sentença de Morte
Lavrentiy Beria – Fonte – Wikipédia.
Josef Stalin decidiu pessoalmente assassinar prisioneiros de guerra poloneses, a pedido do Comissário Popular de Assuntos Internos da União Soviética e chefe da NKVD, Lavrentiy Beria.
Em extensa nota de 5 de março de 1940, Beria pediu que o caso fosse considerado “em um procedimento especial e dando-lhes a pena máxima – execução” (Interessante notar que em 2022 a Federação Russa utiliza o termo “Operação Especial” para a sangrenta invasão da Ucrânia).
Documento que autorizou o massacre de mais de 20.000 poloneses em Katyn – Fonte – Wikipédia.
Segundo o livro de Andrzej Krzysztof Kunert, Katyn, Ocalona Pamięć (em português “Katyn, Memória Salva, Varsóvia 2010, p. 130), Beria também solicitou que “os casos sejam tratados sem chamar os presos e sem apresentar acusações, decisão de encerrar a investigação e acusação”. O veredicto foi assinado por membros do Politburo do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, Kliment Voroshilov, Vyacheslav Molotov e Anastas Mikoyan. A aceitação de Mikhail Kalinin e Lazar Kaganovich também foi confirmada ao adicionar seus nomes à margem do documento. No mesmo dia, o Politburo aceitou formalmente a proposta de Beria.
Reuniões discutindo o assunto foram realizadas em Moscou nos dias seguintes e, em 14 de março de 1940, os chefes das direções regionais das regiões de Smolensk (Rússia), Kalinin (atual Tver, na Rússia) e Kharkiv (Ucrânia) e os comandantes militares das direções regionais do NKVD foram ordenados a assassinar prisioneiros de guerra poloneses.
Assistindo a um desfile comum da Wehrmacht e do Exército Vermelho no final da invasão da Polônia. Vemos ao centro o major-general Heinz Guderian e a sua esquerda o brigadeiro Semyon Krivoshein – Fonte – Arquivo:Bundesarchiv
Uma semana depois, Beria emitiu uma ordem “Sobre o descarregamento das prisões do NKVD ”, que realmente se traduziu em assassinar poloneses detidos em prisões do NKVD na área das províncias orientais da Polônia antes da guerra. Entre eles estavam oficiais aposentados, pessoas envolvidas no serviço estatal, funcionários do governo, funcionários do governo local, promotores, juízes, ativistas políticos, proprietários de terras e outros de posição semelhante.
Estratégia Assassina
A implementação do plano para assassinar prisioneiros de guerra poloneses foi realizada de acordo com instruções detalhadas do NKVD. Os soviéticos queriam que toda a ação fosse realizada de forma rápida e eficiente – para que o menor número possível de pessoas soubesse disso. A máquina de matar começou com ímpeto.
Em 16 de março de 1940, as unidades de investigação do NKVD começaram a preencher os documentos das futuras vítimas. Enquanto isso, com medo da rebelião dos prisioneiros, o aparato de segurança do campo se concentrava em enganá-los. Uma campanha de desinformação em massa e bem pensada teve o efeito esperado. Os prisioneiros não estavam cientes de seu destino até o último momento. Eles aprenderam a terrível verdade apenas na Floresta Katyn ou nas celas da prisão do NKVD.
Desfile soviético em uma cidade polonesa em setembro de 1939, após a rendição – Fonte – Wikipédia.
Um dos sobreviventes do campo de Starobielsk, Józef Czapski, lembrou: “Não havia como descobrir quais eram os critérios de seleção para os grupos dos prisioneiros enviados para fora do campo. Sua idade, anos de nascimento, posições, profissões, origens sociais, crenças políticas eram todos misturados. Cada lote subsequente era outra contradição às nossas suposições. Todos nós combinamos apenas em uma coisa: cada um de nós esperou febrilmente pela hora em que eles anunciaram uma nova lista dos que partiriam. Talvez desta vez fosse finalmente a nossa vez de estar na lista […]. De pé na grande escadaria da igreja, o comandante despediu-se dos grupos dos que partiam com um sorriso cheio de promessas. Você vai lá fora, ele disse a um de nós, onde eu adoraria ir. Cada lote subsequente era outra contradição às nossas suposições. Todos nós combinamos apenas em uma coisa: cada um de nós esperou febrilmente pela hora em que eles anunciaram uma nova lista dos que partiriam. Talvez desta vez fosse finalmente a nossa vez de estar na lista […]. De pé na grande escadaria da igreja, o comandante despediu-se dos grupos dos que partiam com um sorriso cheio de promessas. Você vai lá fora, ele disse a um de nós, onde eu adoraria ir. Cada lote subsequente era outra contradição às nossas suposições. Todos nós combinamos apenas em uma coisa: cada um de nós esperou febrilmente pela hora em que eles anunciaram uma nova lista dos que partiriam. Talvez desta vez fosse finalmente a nossa vez de estar na lista […]. De pé na grande escadaria da igreja, o comandante despediu-se dos grupos dos que partiam com um sorriso cheio de promessas. Você vai lá fora, ele disse a um de nós, onde eu adoraria ir (Józef Czapski,Wspomnienia starobielskie “Memórias de Starobielsk”, Roma 1945, p. 45).
Os prisioneiros foram transportados dos campos para os locais de execução – os prisioneiros de Kozielsk foram transportados por comboios para Smolensk, de Starobielsk para Kharkiv, de Ostashkow para Kalinin (agora Tver).
Soldado sovietico de guarda junto a um avião de treinamento polonês PWS-26, abatido na parte ocupada pelos soviética na Polônia, em 18 de setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.
Foi assim que Zdzisław Peszkowski, um sobrevivente de Starobielsk, que mais tarde se tornou capelão. Ele relembrou sua saída do campo: “Eles nos revistaram minuciosamente e tiraram de nós quaisquer ferramentas afiadas como facas, tesouras, lâminas de barbear que tínhamos. Nossas fotografias foram verificadas e fomos conduzidos para fora do portão do acampamento em grupos de dois. Fomos colocados nos vagões da prisão que já estavam esperando por nós. Eles empacotaram todos, oito homens em cada compartimento. Eles trancaram as portas trancadas do corredor com fechaduras especiais. Soldados do NKVD estavam guardando do corredor. Éramos como animais selvagens em jaulas…” (Sprawa Katynia “O Caso Katyn”, ed. Krzysztof Komorowski, Varsóvia 2010, p. 44).
Ao mesmo tempo, foi preparada a ação de “descarregar” as prisões da chamada Bielorrússia Ocidental e Ucrânia Ocidental. Os detidos foram transportados para prisões em Kiev, Kharkiv, Minsk e Kherson. O Conselho Especial do NKVD elaborou “listas de morte” – ordens de tiro, que foram então aprovadas pela chamada “tróica do NKVD”: Vsevolod Merkulov, Bogdan Kobulov e Leonid Bashtakov. Carrascos foram treinados para matar pessoas com um tiro na parte de trás da cabeça. Moscou também nomeou pessoas para supervisionar seu trabalho.
Tropas do Exército Vermelho, durante a invasão soviética da Polônia, 1939 – Fonte – Wikipédia.
O Massacre
As primeiras “cartas de morte” chegaram aos campos de Kozelsk, Starobielsk e Ostashkow no início de abril e às prisões de Minsk, Kiev, Kharkiv e Kherson por volta de 20 de abril de 1940. O mesmo procedimento ocorreu em casas de tortura em Kharkiv e Kalinin.
Oficiais do NKVD que participaram das execuções mencionaram seus detalhes nos depoimentos. As execuções eram realizadas apenas à noite, em estrito sigilo. Os prisioneiros foram levados para os porões, onde, em uma sala solitária e silenciosa, foram assassinados com um tiro na nuca. Os que resistiram foram amarrados. O revólver Nagant foi inicialmente usado para realizar as execuções. Mais tarde, os executores passaram a utilizar a pistola alemã Walther P38, devido à sua confiabilidade e alto desempenho. Os disparos mortais terminava ao amanhecer.
Pistola Walther P38, a preferida dos soviéticos para matar – Fonte – Wikipédia.
O chefe do Conselho Distrital do NKVD em Kalinin, O major Dmitry Stepanovich Tokarev, lembrou anos depois: “Já foi no primeiro dia. Então nós fomos. E então eu vi todo esse horror. Nós fomos lá. Depois de alguns minutos, Blokhin [um dos oficiais do NKVD que veio de Moscou] vestiu sua roupa especial: um gorro de couro marrom, um avental longo de couro marrom, luvas de couro marrom com punhos acima dos cotovelos. Isso me causou uma grande impressão – eu vi o carrasco! Depois de ser arrastada para a cela, a vítima foi imediatamente morta por um tiro na nuca” (Sprawa Katynia … , p. 50).
Pela manhã, os cadáveres dos assassinados foram transportados em caminhões para lugares solitários com covas já cavadas. Os coveiros foram substituídos por escavadeiras que nivelaram o terreno. Os locais de sepultamento das vítimas foram durante anos inacessíveis até mesmo para os moradores locais.
Vítimas de Katyn.
Sabemos muito menos sobre a execução em Katyn – neste caso, nosso conhecimento vem principalmente das exumações. Os estojos dos projetis utilizados nas sangre-as tarefas e encontradas acima das covas, indicam que as execuções ocorreram diretamente ali.
Sabe-se também que os prisioneiros que morreram em Katyn foram levados de suas prisões para o local da execução em veículos sem janelas. Os que resistiram estavam com as mãos amarradas. Alguns deles tinham casacos amarrados na cabeça com uma corda, cuja extremidade estava presa com um nó nas mãos.
Uma vítima – Aqui vemos o capitão Józef Baran-Bilewski, oficial de artilharia do Exército Polonês. Antes da guerra ele participou dos Jogos Olímpicos de Amsterdã e Los Angeles, competindo no lançamento de disco.
Vários documentos soviéticos dão números diferentes de pessoas mortas, embora as diferenças sejam pequenas. De acordo com a nota de 3 de março de 1959, emitida pelo chefe da KGB Alexander Shelepin para Nikita Khrushchev, um total de 21.857 prisioneiros de guerra e prisioneiros poloneses foram fuzilados, incluindo 7.305 pessoas detidas em prisões. Alguns pesquisadores acreditam que os números são subestimados. Apenas 395 prisioneiros escaparam do assassinato em massa – de três campos especiais eles foram levados para o campo de Yukhnov (Rússia).
O resultado do terror em Katyn.
Motivos do crime
A razão para assassinar bestialmente oficiais poloneses pode ter sido o desejo de se vingar da derrota que os soviéticos sofreram na guerra polaco-soviética de 1920.
Entretanto na atual Polônia acredita-se que o motivo mais provável foi a ideia de privar a nação atacada de seus líderes e elite intelectual. Na opinião das autoridades soviéticas, os prisioneiros de guerra poloneses, que manifestavam seu patriotismo, eram “inimigos irredimíveis das autoridades soviéticas e não devem melhorar”. Por esta razão, eles deveriam ser assassinados. As autoridades soviéticas decidiram que este movimento facilitaria o futuro governo da República Polaco-Soviética.
O carrasco – Duas fotos do major-general Piotr Soprunenko, Chefe do Departamento de Prisioneiros e Internos do NKVD. De acordo com as ordens de Beria e Merkulov, ele preparou um plano e controlou operacionalmente a execução de 15.000 prisioneiros poloneses.
Alguns pesquisadores acreditam que a decisão de “resolver finalmente” o caso dos prisioneiros de guerra poloneses foi tomado em nome da cooperação declarada dos serviços de segurança alemães e soviéticos na luta contra as aspirações de independência da Polônia. A coincidência temporal com a AB-Aktion (Operação Extraordinária de Pacificação) conduzida pelos nazistas e dirigida à intelectualidade polonesa não parece ser involuntária.
Não é à toa que no atual conflito da Ucrânia, uma das primeiras notícias vinculadas, vista com certo exagero por determinados meios, é que haveria uma “lista” de pessoas a serem executadas pelas forças russas de Putin na Ucrânia, para melhor dominação do país. Bem, se é verdade se haveria a tal lista, ou não, eu não sei. Mas a História de Katyn mostra bem o que os soviéticos fizeram em 1940.
As vítimas de Katyn em 1943.
Vítimas e Executores
Em 1940, entre os prisioneiros de guerra poloneses mantidos em campos especiais estavam oficiais profissionais do Exército e da Polícia do Estado poloneses, bem como reservistas. Em “transportes da morte” para Smolensk e Kharkiv estavam: 12 generais, 1 contra-almirante, 77 coronéis, 197 tenentes-coronéis, 541 majores, 1.441 capitães, 6.061 tenentes, segundos-tenentes, comandantes de cavalaria e subtenentes e 18 capelães e outros clérigos.
Segundo historiadores poloneses, metade do então corpo de oficiais do exército polonês foi morto. Nas prisões do NKVD da chamada Bielorrússia Ocidental e Ucrânia Ocidental, os soviéticos detiveram oficiais que não foram mobilizados em setembro de 1939, funcionários públicos e funcionários do governo local. Muitos dos assassinados eram especialistas de alto nível em vários campos, entre eles professores universitários, engenheiros, padres, médicos, advogados e outros.
Muitos funcionários do aparato central e diretorias regionais do NKVD, participaram do genocídio de Katyn. Os perpetradores eram os torturadores mais experientes da temida prisão moscovita de Lubyanka e das prisões locais do NKVD, treinados em matar com apenas um tiro.
Restos humanos em Katyn.
Alguns deles são conhecidos pelo nome. Um dos documentos que não foram destruídos foi a ordem de Lavrentiy Beria, divulgada em 26 de outubro de 1940, premiando 125 pessoas “pelo bom desempenho de tarefas especiais”. Essas pessoas incluíam todas as patentes, desde generais até os oficiais mais baixos do NKVD. Os torturadores permaneceram em silêncio por muitos anos, escondendo cuidadosamente o segredo. Alguns conseguiram fazer carreira, mas muitos começaram a beber e morreram, um a um, poucos anos depois do crime. Alguns deles cometeram suicídio.
Consciência pesa!
Uma coisa é matar um outro ser humano que está armado, no meio de um combate, com tiros sendo disparados. Mas tirar a vida de centenas de pessoas com um tiro na nuca, sendo que essas pessoas se encontravam totalmente subjugadas, seguramente amarradas, transidas de medo, tremendo, além de alguns certamente se encontrarem urinados, ou tendo defecado pelo medo, aí só com muita vodca para aliviar as memórias.
Restos humanos do Massacre de Katyn.
Descoberta de Sepulturas e Brincando com Katyn
No verão de 1941, Smolensk e seus arredores foram ocupados pelo exército alemão. A primeira informação sobre as valas comuns de oficiais poloneses na floresta de Katyn foi dada aos alemães logo depois, mas eles não fizeram nenhuma tentativa de verificá-la.
Em 1943 os nazistas fizeram um verdadeiro “Circo de mídia” em Katyn para mostrar o que os soviéticos fizeram aos militares poloneses em 1940. Cinicamente, nessa mesma épocaos campos de extermínio dos nazistas funcionavam a todo vapor.
Na primavera de 1942, trabalhadores forçados poloneses descobriram a execução de poloneses da população local. Em abril eles começaram a procurar na floresta por conta própria. Em um dos lugares sugeridos, eles descobriram um cadáver em uniformes do Exército polonês. Eles construíram uma cruz de bétula e notificaram as autoridades alemãs da descoberta, mas estas não mostraram nenhum interesse no caso.
Foi somente em fevereiro de 1943 que a polícia secreta alemã iniciou uma investigação eficiente. Em 18 de fevereiro, a área indicada pelos poloneses foi parcialmente desenterrada e várias valas comuns foram identificadas.
Cartaz nazista de propaganda contra os soviéticos, mostrando o Massacre de Katyn.
Os alemães revelaram o massacre de Katyn após a derrota em Stalingrado. Eles acreditavam que a descoberta desses túmulos seria uma excelente oportunidade para dividir os Aliados.
O anúncio da agência de notícias alemã sobre a descoberta das sepulturas deu origem a uma propaganda massiva. Com a ordem de Hitler, este caso ganhou publicidade internacional. Por toda a Europa, as estações de rádio controladas pelos alemães noticiaram a descoberta das sepulturas. A exumação contou com a presença de jornalistas, uma delegação da Cruz Vermelha polonesa e um comitê internacional de patologistas.
Como em 1943 os nazistas já haviam assassinado dezena de milhares de pessoas com tiros na nuca, ficou fácil reproduzir no papel o que os soviéticos fizeram com os militares polacos em Katyn.
Seis dias após o anúncio do Transocean News Service, Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich da Alemanha nazista observou: “Todo o problema de Katyn se tornou um grande assunto político que ainda pode ter uma ressonância significativa. É por isso que fazemos uso dele de acordo com o estado da arte. Uma vez que esses 10.000 a 12.000 oficiais poloneses já perderam suas vidas – talvez não por culpa própria, já que uma vez instigaram a guerra, seu destino deve agora servir às nações da Europa para abrir os olhos para o perigo do bolchevismo” (Eugeniusz Cezary Król,Polska i Polacy w propagandzie narodowego socjalizmu w Niemczech 1919-1945 “Polônia e os poloneses na propaganda do nacional-socialismo na Alemanha 1919-1945”], Varsóvia 2006, p. 430).
Logo após a descoberta das sepulturas em Katyn, o governo polonês pediu uma investigação. O desaparecimento de oficiais poloneses foi motivo de preocupação para as autoridades polonesas – elas também perguntaram repetidamente ao Kremlin sobre seu destino. A descoberta fez o governo polonês exigir que os soviéticos explicassem o que aconteceu durante o genocídio.
Em abril de 1943, os nazistas alemães iniciam a propaganda anti-soviética sobre o assassinato em massa na floresta de Katyn. Na foto membro do governo francês pró Alemanha Nazista visitam o local.
Tal como acontece em 2022, onde os russos juram de pés juntos que nada fizeram de errado e que os mortos da cidade de Bucha é uma “encenação dos ucranianos”, durante a Segunda Guerra os líderes em Moscou reagiram com uma falsa acusação de que os poloneses estavam encobrindo o crime alemão e cooperando com os nazistas.
Sob pressão de Stalin, o ministro das Relações Exteriores britânico exigiu a retirada imediata do apelo e o anúncio público de que o massacre de Katyn foi uma “invenção” alemã. A censura britânica parou os despachos de rádio poloneses e confiscou textos destinados à impressão. Os Aliados temiam que a posição da Polônia complicasse os contatos soviético-britânicos. Embora os poloneses tenham retirado seu apelo, os soviéticos romperam relações diplomáticas com o governo polonês no exílio.
Stalin triunfou – o caso Katyn prejudicou a posição da Polônia na arena internacional.
Falsificação da História
Após a divulgação da agência de notícias alemã, o rádio e a imprensa de Moscou estavam divulgando a posição do Kremlin, culpando os alemães pelo massacre de Katyn. Além disso, o jornal “Pravda” de Moscou concluiu o apelo do governo polonês à Cruz Vermelha Internacional para explicar a situação com um artigo acusatório “Os colaboradores poloneses de Hitler”.
Poloneses capturados em 1939.
Os soviéticos, tendo rompido relações diplomáticas com o governo polonês menos de uma semana depois, e após a ocupação de Smolensk pelo Exército Vermelho, os oficiais da NKVD foram imediatamente a Katyn para falsificar provas de um crime.
Em janeiro de 1944, uma comissão especial chefiada por Nikolay Burdenko que investigou o massacre de Katyn informou que os alemães eram responsáveis pelos crimes. Após a guerra, o caso de Katyn foi levado ao Tribunal de Nuremberg. No entanto, não foi a julgamento, pois a culpa dos alemães não pôde ser provada.
Nas décadas seguintes, os soviéticos tentaram apagar a memória do massacre de Katyn. Uma ferramenta usada na disseminação de desinformação foi a divulgação do crime alemão cometido contra os moradores da vila bielorrussa de Khatyn, localizada perto do local do massacre.
Exumações
As exumações em Katyn começaram no final de fevereiro de 1943 – então os alemães descobriram oito valas comuns. De sete deles, eles extraíram mais de 4.000 corpos, dos quais quase 2.800 foram identificados. Após a entrada do Exército Vermelho, a comissão soviética concluiu que os crimes foram cometidos pelos alemães no verão de 1941. O reconhecimento oficial da culpa da URSS por Mikhail Gorbachev em 1990 permitiu retomar a exploração. Como resultado, em 1991, foi possível localizar locais de sepultamento para prisioneiros: de Starobielsk em Piatichatki e de Ostashkow em Miednoje. As sepulturas restantes foram encontradas durante os estudos subsequentes em 1994 e 1995. Outras sepulturas polonesas foram descobertas em Bykivnia, nos subúrbios de Kiev. Durante os trabalhos de exumação realizados em 2011,
Monumento na região de Katyn – Fonte – Wikipédia.
As Investigações de Katyn
A investigação polonesa sob a supervisão do promotor Jerzy Sawicki começou na primavera de 1945 e foi interrompida em 1946. No mesmo ano, o procurador-geral soviético Rudenko apresentou uma acusação ao Tribunal de Nuremberg contra os alemães pelo assassinato de oficiais poloneses.
Em 1950, como resultado dos esforços do Congresso americano polonês, o massacre de Katyn foi tratado por um Comitê do Congresso dos Estados Unidos. Em seu relatório, recomendou que o caso fosse encaminhado à ONU e que a URSS fosse processada perante a Corte Internacional de Justiça em Haia.
Evidentemente, essa decisão desencadeou numerosos protestos das autoridades da URSS e da República Popular da Polónia. Em 1959, o caso Katyn foi retomado pelo então chefe da KGB. Em uma nota para Khrushchev, ele sugeriu destruir os arquivos pessoais das vítimas e preservar apenas os documentos principais. A partir de então, os arquivos-chave estavam disponíveis apenas para o Secretário-Geral do PCUS.
A revisão do caso Katyn só foi possível a partir de 1989. Em 1990, a Procuradoria-Geral da URSS abriu uma investigação conduzida até 2004, quando foi cancelada devido à morte dos culpados. A ordem de cancelamento e sua justificativa foram mantidas em segredo. Ao mesmo tempo, o Massacre de Katyn foi classificado como crime comum, sujeito a prescrição. No mesmo ano, o Instituto de Memória Nacional decidiu lançar uma investigação polonesa sobre o caso Katyn.
Cruz na floresta de Katyn – Fonte – Wikipédia.
Confissão
Na URSS, revelar a verdade sobre Katyn só foi possível pela Perestroika.
Em 1987, um comitê conjunto de historiadores foi formado para explicar os “pontos em branco” na história das relações mútuas. O avanço foi quando pesquisadores russos – Natalia Lebedeva, Vladimir Volkov, Yuri Zoria e Valentina Parsadanova, encontraram os documentos do NKVD e os compararam com listas de exumações alemãs. Jornalistas e ativistas do “Memorial”, uma ONG russa que defende os direitos humanos e documenta os crimes stalinistas, também defenderam a verdade.
Em 13 de abril de 1990, a agência russa TASS publicou um anúncio oficial afirmando que o NKVD, e Beria e Merkulov pessoalmente, são responsáveis pelo assassinato de poloneses. No mesmo dia, a Polônia recebeu várias centenas de cópias de documentos relativos aos prisioneiros de Kozelsk, Starobielsk e Ostashkow. Em 14 de outubro de 1992, um enviado especial do presidente Boris Yeltsin apresentou solenemente ao presidente Lech Wałęsa uma cópia do famoso Pacote nº 1, incluindo uma carta de Beria a Stalin e um extrato das atas do Politburo da URSS. Uma nova etapa na pesquisa sobre o Massacre de Katyn havia começado.
O Museu de Katyn, em Varsóvia.
Necrópoles de Katyn
No início da década de 1990, os poloneses fizeram esforços para construir um grande cemitério, túmulos em massa, ossuários ou necrópoles honorárias para as vítimas do Massacre de Katyn.
O primeiro cemitério polonês onde estão enterrados os restos mortais das vítimas do genocídio soviético foi inaugurado em junho de 2000 em Kharkiv-Piatichatki. Os restos mortais de soldados e civis poloneses, mas também de moradores de Kharkiv, vítimas do terror stalinista, foram enterrados no cemitério.
Nos meses seguintes, cerimônias semelhantes foram realizadas em Katyn e Miednoje. Esses cemitérios se tornaram o local de descanso final dos oficiais poloneses do campo de Kozelsk e Ostashkow. Em 2012, um cemitério de guerra polonês foi inaugurado em Kiev-Bykivnia, onde foram enterrados os restos mortais das vítimas da chamada lista Katyn ucraniana.
Em 29 de abril de 1991 Piotr Soprunenko deu um depoimento sobre Katyn. Ele nunca foi formalmente acusado de nenhum crime. De acordo com a posição oficial russa, os militares do Exército Vermelho nunca cometeram nenhum ato de genocídio, eles estavam apenas envolvidos em crimes regulares, que de acordo com as leis russas em 1991 não eram mais puníveis.
Muitas questões relacionadas ao Massacre de Katyn permanecem sem solução.
O que torna ainda mais difícil é que parte dos volumes dos arquivos da investigação conduzida pelos russos entre 1990 e 2004 não estão disponíveis. A Rússia se recusa a divulgá-los, justificando sua decisão com a cláusula de sigilo. Além disso, a Rússia não tomou uma decisão final sobre a classificação legal do crime. A Procuradoria da Rússia considerou o crime comum sem revelar os fundamentos legais. Os nomes das vítimas na chamada lista Katyn bielorrussa, ainda não encontrada, ainda são desconhecidos. Também não se sabe onde essas pessoas foram enterradas. No caso da chamada lista Katyn ucraniana, foi encontrado o local onde um pequeno número de vítimas está enterrado.
O objetivo da investigação polonesa conduzida pelo Instituto de Memória Nacional, que considera o assassinato de Katyn um crime de guerra e um crime contra a humanidade em sua forma mais grave – ou seja, genocídio – é explicar todas as circunstâncias desse crime atroz. O objetivo é descobrir os nomes de todas as vítimas do Massacre de Katyn, bem como os locais onde foram executadas e enterradas. Os investigadores do Instituto da Memória Nacional também procuram identificar os nomes de todos os autores do crime e determinar a responsabilidade de cada um deles.
Hipocrisia
Bucha, Ucrânia, abril de 2022.
A guerra é a bestialidade humana no mais alto grau. Ela não tem nada de bonita, de maravilhosa e de glamurosa. Não é ascética como em um jogo de videogame. É suja, cheira a podre e é doentia. O que está acontecendo na Ucrânia é prova disso!
Mas eu seria hipócrita se ficasse descrito nesse texto que só os soviéticos/russos tem “culpa no cartório”. Todos que participam desse tipo de situação, em maior ou menor grau, seja qual for a justificativa para os engajamentos, tem esqueletos guardados nos armários.
Um exemplo – Eximir os brasileiros dos muitos massacres praticados contra a população paraguaia na Guerra da Tríplice Aliança é ridículo. Mas “limpar a barra” para o que os paraguaios fizeram com a população do Mato Grosso em 1864 é no mínimo uma piada.
No resto do mundo não faltam exemplos e em muitos momentos da História!
My Lai, Vietnã, 16 de março de 1968. Esta foto tirada pelo soldado do Exército dos Estados Unidos e integrante da Companhia Charlie, Ronald Haeberle, após o massacre na aldeia de My Lai, mostrando principalmente mulheres e crianças mortas em uma estrada, foi divulgada na imprensa de todo mundo em 1969, causando comoção internacional. Entre 347 e 504 pessoas foram mortas pelo exército dos Estados Unidos – Fonte – Wikipédia.
Na Europa o holocausto perpetrado pela Alemanha Nazista na Segunda Guerra, com seus mais de 6 milhões de mortos, é bem conhecido. Na África do Norte são bem conhecidas as ações dos franceses na Guerra da Argélia (1954-1962), onde para os argelinos mais de um milhão e meio de seus compatriotas morreram, muitas delas torturadas. Os britânicos, durante seu colonialismo doentio, perpetraram toda sorte de crimes e massacres que marcam até hoje muitos dos povos por eles dominados. Já com os norte-americanos a história não perdoa casos como o Massacre de My Lai (16 de março de 1968), ocorrido durante a Guerra do Vietnã, até as mortes de prisioneiros em Dasht-e-Leili, na Guerra do Afeganistão (dezembro de 2001), ou os assassinatos de civis em Haditha, durante a Guerra do Iraque (19 de novembro de 2005).
Bucha, Ucrânia, abril de 2022.
Mas talvez a sutil diferença dessas situações e os casos de Katyn e Bucha, seja a forma como os discursos produzidos pelos soviéticos/russos para explicar os acontecimentos sejam carregados na desinformação, negacionismo e o uso sem limites da mais pura e deslavada mentira. Não que outras nações que perpetraram seus massacres não façam o mesmo, mas os que praticaram as mortes em Katyn e Bucha parecem exímios nesse mister.
Infelizmente a Guerra na Ucrânia continua e cada vez mais cruel. Mesmo desejando que isso não aconteça, acredito que os acontecimentos da cidade de Bucha poderão não ser únicos nesse conflito.
Mas a sombra de Katyn estará sempre pairando sobre os russos!