MONTE DAS TABOCAS – O COMEÇO DA DERROTA DOS HOLANDESES NO BRASIL

Autor – Hermes Leôneo Menna Barreto Laranja Gonçalves*

Fonte – Revista BELLUM

Resumo: Este artigo versa sobre a Batalha do Monte das Tabocas, travada entre milícias portuguesas, compostas por elementos nascidos nos domínios portugueses e locais, e tropas regulares holandesas, da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), em 3 de agosto de 1645, no interior de Pernambuco, no Brasil. O texto começa com um breve resumo da evolução do conflito, situado no Nordeste da então possessão portuguesa do Brasil, e destacando, inclusive, o caráter local, e peculiar, da resistência apresentada pelos portugueses, e nativos, aos agressores estrangeiros. Tais invasores, antigos parceiros comerciais dos portugueses, em face da absorção pela Espanha, seus inimigos, de Portugal, em 1580, decidiram pela ocupação das principais zonas produtoras de açúcar no Brasil, o que foi efetivado a partir de 1630. A seguir, já após a Restauração de Portugal, ocorrida 1640, a narrativa passa a tratar das providências portuguesas, mesmo que de forma clandestina, haja vista a paz aparente entre Portugal e Holanda, para recuperar os territórios ocupados pelos holandeses. Dentre elas, está o apoio velado, em homens e armas, à sublevação, sobretudo de Pernambuco, contra os invasores estrangeiros. A partir daí o texto discorre sobre os eventos ocorridos logo após a eclosão da revolta ostensiva contra os holandeses, em meados de junho de 1645, culminando com a batalha, vencida de forma inesperada, pelos patriotas apoiados nas alturas do chamado Monte das Tabocas. Longe de despreparados militarmente, as milícias de Tabocas, adestradas pelo militar português Antônio Dias Cardoso, haviam se preparados por meses para apresentar valor militar suficiente para enfrentar as bem adestradas tropas holandesas. Finalizando, o artigo passa então a tratar das consequências imediatas do combate nas Tabocas, destacando que foi o começo de uma longa série de vitórias das milícias locais, que, anos depois, já com apoio aberto da Coroa portuguesa, culminaram na rendição dos holandeses, na Campina do Taborda, então nos arredores do Recife, em Pernambuco.

De Formião, filósofo elegante, vereis como Anibal escarnecia, quando das artes bélicas, diante dele, com larga voz tratava e lia. A disciplina militar prestante não se aprende, Senhor, na fantasia, sonhando, imaginando ou estudando, senão vendo, tratando e pelejando (Os Lusíadas, Canto X, estrofe 153)

Conforme descrito na estrofe de Camões que abre este artigo, o ideal seria sempre buscar o conhecimento militar por meio da coleta oportuna de ensinamentos práticos no campo de batalha. Em tempo de paz, na (grata) impossibilidade de realizar essa tarefa com as duras experiências bélicas reais, entre outras possibilidades, os pesquisadores na área militar não devem esquecer-se de outro campo fecundo de ensinamentos doutrinários: a história militar.

Neste ponto, é sempre bom destacar que grandes chefes militares, como Napoleão Bonaparte, sempre instigavam seus principais oficiais a ler, e reler, os grandes clássicos militares em busca da exata noção dos princípios imutáveis da guerra.

Luís de Camões – Fonte – httpswww.cnc.pt450-anos-da-publicacao-de-os-lusiadas

Assim sendo, um dos conflitos militares de grande valor para o estudo da Arte da Guerra, em um ambiente operacional dentro do Brasil, vêm sendo as chamadas “Guerra Brasílicas”, ocorridas entre 1624 e 1654. Nesse longo conflito, dentre outras, as batalhas dos Guararapes (abril de 1648 e fevereiro de 1649) vêm sendo destacadas por historiadores militares, brasileiros e portugueses, por sua grande importância para a vitória da Restauração de Portugal (1640-1668), após a conturbada União Ibérica (1580-1640).

Contudo, tais vitórias não foram concretizadas nem rápida nem facilmente, tendo demandado uma longa preparação por parte dos patriotas portugueses empenhados, pelo menos, desde 1645, na libertação do Nordeste do Brasil do jugo holandês.

O longo conflito entre as Províncias Unidas dos Países Baixos (Holanda), representadas pela Companhia das Índias Ocidentais, e Portugal, em terras brasileiras, uma verdadeira “Guerra dos 30 anos no Brasil”, teve suas origens remotas quando os portugueses, após o desastre militar ocorrido em Alcácer-Quibir (1578), acabaram caindo sob o jugo espanhol. A Espanha, após a União Ibérica, e então sob a dinastia dos Habsburgos, tornou-se um verdadeiro império global, com inimigos diversos, dentre eles a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos (1581-1795), entidade política hoje conhecida como Países Baixos, ou, mais simplesmente, a Holanda.

Filipe II de Espanha, Filipe I de Portugal em 1570 – Fonte -Philip_II_by_Alonso_Sánchez_Coello

Esta, em face da sua antiga inimizade com a Espanha, acabou por iniciar hostilidades com Portugal, agora submetida à Coroa de Espanha. Nessa lógica, em termos práticos, os portugueses, e seus vastos territórios ultramarinos, em especial o Brasil, ficaram proibidos de comerciar com os holandeses, antigos aliados e parceiros comerciais de longa data, o que lhes acarretou enormes prejuízos.

Dentre o vasto leque de parcerias comerciais frustradas pela união das coroas espanhola e portuguesa, destacou-se a da comercialização do açúcar de cana produzido por engenhos por todo o Brasil, com destaque para os da sua região Nordeste. Estes, por terem sido originalmente financiados pelo capital holandês, foram um exemplo do arranjo econômico mutuamente satisfatório que havia entre Portugal e Holanda – até 1594, ano em que os holandeses começam a cobiçar abertamente as riquezas do Brasil – em especial o açúcar e o pau-brasil (Simonsen, 2005).

Mapa ilustrado das antigas refeituras holandesas de Pernambuco e Itamaracá, durante a ocupação holandesa do Nordeste do Brasil (1630-1654). Ano de 1662. Fonte: Atlas of Mutual Heritage.

Não obstante, os holandeses, ao se verem privados dos lucros que tradicionalmente obtinham com sua antiga parceria açucareira, e às turras com os novos senhores de Portugal, planejaram uma série de ações hostis contra a zona açucareira do Brasil: inicialmente, sem sucesso, na Bahia e, com algum lapso, invadindo um setor, até então, menos defendido, a Capitania de Pernambuco (Daróz, 2010). Cabe mencionar que as ações hostis levadas a cabo, foram realizadas por um braço comercial das Províncias Unidas, chamado Companhia das Índias Ocidentais (WIC), criada na esteira de um empreendimento similar (a Companhia das Índias Orientais), que foi usado, com sucesso por comerciantes holandeses para incursões militares contra territórios hispano-portugueses no Oriente (Ilhas Molucas, Java e outras antigas possessões ibéricas).

É interessante também notar que, desde a primeira incursão holandesa (1624-1625), o ataque à praça-forte de Salvador, já haviam ocorrido menções a uma forte resistência aos invasores por meio de uso de táticas de fustigação (ataques inesperados, desgastantes e mortíferos) pelos habitantes locais (Varnhagen, 1872). Tal estado de coisas privou aos invasores a possibilidade de firmarem o domínio sobre a Zona do Recôncavo, ou seja, as áreas de produção de alimentos para a subsistência no entorno da então cidade-fortaleza e capital do Brasil seiscentista.

Enfraquecidos pela resistência montada pelos habitantes locais, as forças holandesas mantiveram posição enquanto puderam ser reabastecidos por via marítima, o que permaneceu inalterado, até que uma forte armada de naus portuguesas, espanholas e napolitanas, a comando de D. Fadrique de Toledo, proveniente da Europa, nos primeiros meses de 1625, iniciou um bloqueio total a Salvador, forçando os holandeses à rendição (Ibid.).

Bandeira da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais ou Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais (em neerlandês: West-Indische Compagnie ou WIC)- Fonte – Wikipédia.

Apesar dessa derrota inicial, os holandeses não desistiram, e, financiados com recursos obtidos por meio de incursões corsárias contra os transportes de prata espanhóis na região do Caribe, logo voltaram a atacar. Em 1630, mais experimentada, e em maior número, a WIC tentou nova incursão, desta feita na já referida Capitania de Pernambuco. Para tal ofensiva, organizaram uma força militar com 54 navios de guerra, e entre 6.200 e 7.200 militares, com os quais desembarcaram, sem muita resistência inicial, na praia do Pau Amarelo (situada a cerca de 16 quilômetros ao norte de Olinda). Rapidamente, ocuparam Olinda e, posteriormente, o porto do Recife, mais ao sul (Freire, 1675 e Jesus, 1679).

Mais importante, sem perda de tempo, e, sem dúvida, tentando evitar o impasse surgido na ocupação de Salvador, as forças holandesas ampliaram a sua área de ocupação para o interior, buscando: dominar a região dos engenhos de açúcar (a chamada Zona da Mata) e garantir fontes de abastecimento alimentar para suas posições litorâneas.

Apesar do sucesso inicial avassalador, a resistência ibérica se fez notar por meio de diversas ações do mestre de campo general (tenente-general) de Pernambuco, Mathias de Albuquerque, com destaque para o incêndio dos depósitos de açúcar do Recife. Além disso, conseguiu manter vívida a reação local ao invasor, sobretudo por meio das chamadas “companhias de emboscada” ou “companhias de assalto” (Barroso, 2019, p. 16).

Olinda na época dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – John Ogilby’s atlas America Being the Latest, and Most Accurate Description of the New World, London, 1671, p. 504

Como visto acima, essas pequenas unidades de guerra irregular tiveram sua origem imediata na defesa popular apresentada anteriormente em Salvador, sendo novamente ativadas por Mathias de Albuquerque no famoso Arraial Velho do Bom Jesus – cujas fundações estão hoje situadas nos arredores do Recife – e que mantém em suspenso a vitória completa dos holandeses (Vianna, 1948).

Tais companhias de emboscadas, durante cerca de cinco anos, em que pese suas limitações de efetivos e de meios, conseguiram manter o invasor em constante sobressalto, impedindo seu livre trânsito pelas estradas, atacando patrulhas, destacamentos e comboios inimigos, impedindo assim a pacificação do território (Freire, 1675).

Esses grupamentos de milicianos locais e portugueses, reforçados por indígenas e negros escravos (libertos ou não), utilizaram ao máximo táticas de guerrilhas ancestrais do Velho Mundo, mescladas com táticas de uso corrente pelos indígenas brasileiros. Aliaram, ainda, um elevado conhecimento do terreno, e do clima tropical, para maximizar o efeito de suas ações de interdição e atrito contra o invasor.

Recife no tempo dos holandeses no Nordeste do Brasil – Fonte – Rerum in Brasilia et alibi gestarum by Caspar Barlaeus

Mesmo assim, sem apoio da metrópole, e sitiado por forças holandesas superiores, o Arraial Velho, cercado, rendeu-se em 1635, tendo Mathias de Albuquerque escapado com parte significativa dos habitantes originais de Pernambuco (cerca de 7.000 pessoas) para a Capitania Real da Bahia. No caminho, cercaram e ocuparam o forte de Porto Calvo, tendo então capturado, julgado e executado Domingos Fernandes Calabar, responsável pela traição que gerou a derrocada portuguesa naquele ano.

Deste momento em diante, até 1645, os holandeses conseguiram um arranjo político e militar que lhes permitiu obter vários anos de estabilidade na região (governo de Maurício de Nassau). Com isso, inclusive e gradualmente, ampliaram seu controle territorial sobre a região nordeste brasileira, culminando com uma nova incursão a Salvador (1638) e a breve ocupação do Maranhão (1641 a 1643).

No ano de 1645, contudo, já com o domínio holandês politicamente bastante desgastado, um grupo de patriotas nascidos dentro e fora do antigo Estado do Brasil, em plena Guerra de Restauração entre Portugal e Espanha (travada entre 1640 e 1668), decidiram reacender a luta contra os invasores holandeses no nordeste brasileiro. Essa luta, acesa desde 1624, pelo menos, haveria de se arrastar por quase mais uma década, tendo demonstrado o elevado valor militar dos combatentes portugueses, nascidos, ou não, em Portugal.

Antônio Dias Cardoso, Cavaleiro da Ordem de Cristo,foi um dos principais líderes contra os holandeses, em detalhe do quadro de Victor Meirelles – Fonte – Wikipédia.

Contudo, mesmo com a Restauração de Portugal, efetivada em 1640, o Reino liberto tentou aos poucos retomar a autonomia que perdera por 60 anos. Na realidade, de imediato, não teve condições políticas, nem, especialmente, financeiras, de lutar abertamente por suas territorialidades perdidas enquanto sob jugo espanhol.

Mesmo assim, de forma velada, as autoridades portuguesas em Salvador buscaram manter vivo o espírito de resistência pernambucano, o que fizeram por meio do envio clandestino de recursos, suprimentos e homens de armas, como, por exemplo, um destacado militar chamado Antônio Dias Cardoso.

Segundo assentamentos existentes, o mestre de campo Antônio Dias Cardoso, Cavaleiro da Ordem de Cristo, teria nascido no Porto, por volta da virada do século XVII, filho de pais com origem fora da nobreza, tendo vindo jovem para o Brasil para tentar a sorte nas lides castrenses (Bento, 2013). Por relato de cartas-patentes de 1648 e 1656, existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (situado em Lisboa), temos que esse renomado militar português teria servido no Brasil, de forma contínua e sempre de armas na mão desde 1624.

Carta-patente de promoção a mestre de campo concedida por El Rei de Portugal em 4 de maio de 1656. Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Ao longo desse longo período, foi sendo sucessivamente promovido a alferes, ajudante, capitão, sargento mor e, finalmente, mestre de campo, sempre por meritórios serviços na guerra contra os holandeses. Nesse documento, há referências a seus destacados serviços, provavelmente, sob o comando de Matias de Albuquerque, “em varios asaltos, emboscadas e recontros que se lhe ofereçerão junto da villa de Olimda nas fortificações do Reçife e outras estançias adonde proçedeo com vallor conhecido” (sic) (Lisboa, 1648), e depois, sob João Fernandes Vieira e Francisco Barreto, quando “procedendo nellas (pelejas e batalhas) cô valor conhecido signalandosse nas mais das ditas ocasioens recebendo nellas feridas de que sua vida correo grande perigo e na aclamação da liberdade daquelas Capitanias […] que demais trabalhou” (Lisboa, 1656).

Por essa destacada folha de serviços, ainda servindo no Brasil, em dezembro de 1644, ou começo de 1645, foi designado pelo Governador do Brasil, então sediado em Salvador, para se infiltrar na Capitania de Pernambuco, “acompanhado por 60 homens escolhidos”, a fim de prover apoio militar, ainda que de forma velada, aos patriotas que então começavam a querer se insurgir contra o domínio holandês (Netscher, 1942, p. 223).

A partir dessa histórica infiltração, Antônio Dias Cardoso e seus homens começaram a instruir, nas matas que cercavam alguns engenhos na Zona da Mata pernambucana, o que pode ser considerado como o núcleo militar dos patriotas em armas para a libertação de Pernambuco e das demais capitanias subjugadas pelo invasor estrangeiro. Em paralelo, em meados de 1645, a paz relativa nas áreas ocupadas pelos holandeses, rapidamente caminhou para o conflito militar aberto.

João Fernandes Vieira – Fonte – Wikipédia.

O ponto inicial dessa conflagração começou justamente quando as forças patriotas, comandadas por João Fernandes Vieira (natural da ilha da Madeira) e pelo já referido sargento mor Antônio Dias Cardoso, conseguiram atrair um considerável contingente holandês para um combate nos termos desejados pelas forças locais. Tal atração se deu justamente pela constatação dos holandeses acerca da presença de uma força insurgente significativa, nos arredores do Recife, o que levou a uma ofensiva militar.

Em 3 de agosto de 1645, uma força holandesa com cerca de 1.500 holandeses e indígenas tapuias, comandados pelo coronel Hendrik van Haus, avançou sobre posições dos chamados “rebeldes” na região hoje conhecida por Monte das Tabocas, sendo surpreendidos pelo terreno (que desconheciam) e pelo número, ímpeto e audácia das milícias patriotas que realizaram seguidas emboscadas desmoralizantes sobre suas tropas (Jesus, 1679).

Esquema gráfico mostrando movimentos militares holandeses e as posições portuguesas anteriores ao confronto de 3 de agosto de 1645. Fonte: Google Earth, com esquemas esboçados pelo autor.

Segundo o historiador brasileiro, coronel Claudio Rosty, em Tabocas, dos cerca de 1.200 patriotas em presença, somente cerca de 200 teriam armamento de fogo, estando os demais “armados” de forma improvisada (flechas, piques com pontas tostadas, terçados e mesmo pedras) (Rosty, 2002). Por outro lado, aparentemente, os cerca de 700 holandeses, e mais outros tantos indígenas aliados, estavam muito mais bem armados e equipados, do que os patriotas, muito embora Nestscher alegue que essa tropa era a última unidade móvel, fora das fortificações, e carecesse de pagamentos e o mínimo suprimento bélico (inclusive munições) (Netscher, 1942).

Conforme o frei Rafael de Jesus, na época da batalha o Monte das Tabocas, situado a cerca de 40 quilômetros do centro do Recife, tinha uma configuração vegetal que lhe deu o nome: cheio de tabocas, ou seja, renques de bambu grossos, em linhas sucessivas, com passagens limitadas para o prosseguimento rumo ao topo (Jesus, 1679). A primeira linha de tabocas então distaria cerca de 1.000 metros do curso do rio Tapacurá, após uma campina, e, segundo Santiago, acompanharia a trilha em aclive para o alto do monte (Santiago, 1984).

Vista recente do Rio Tapacurá, a montante do local de travessia holandês, onde hoje existe um pequeno açude. Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão.

Passado este primeiro tabocal, depois de um descampado de menor extensão, haveria um segundo renque que ascendia quase ao topo do monte. Por sinal, o cimo, à época estava com densa cobertura de árvores e, em sua orla, mais um renque dos já citados tabocais (Jesus, 1679).

No caminho para a presa, que julgavam certa, os holandeses avançaram meio que temerariamente, tendo, ao cruzar o rio caudaloso, provavelmente diminuído consideravelmente (por ação da umidade) sua pretensa superioridade de fogos. Além disso, com fardas e apetrechos molhados, o solo úmido e barrento (pesado), deve ter atritado bastante a necessária coesão das linhas batavas.

Tanto Santiago como Jesus apontaram que os patriotas fizeram uma emboscada inicial na transposição do curso d´água, o que só tornou mais instintiva a reação dos holandeses ao que se mostrou ser uma isca para as emboscadas principais que transcorreram mais adiante (Santiago, 1984).

Primeiras emboscadas da Batalha do Monte das Tabocas. Ilustração de Alcebíades Miranda Júnior.
Fonte: História do Exército Brasileiro, Estado-Maior do Exército Brasileiro, 1ª edição, 1972.

Com isso, após o rio, e depois de um provável dificultoso avanço pela campina barrenta, quase na primeira linha de tabocas, os atacantes foram acometidos por sucessivas emboscadas, de variados pontos (provavelmente por uma mescla de fogos, flechas e mesmo pedras). Tendo então reduzida a capacidade de fogos, após uma provável pausa para reajuste de seus dispositivos, os homens de Van Haus avançaram pelas poucas passagens disponíveis na primeira linha de tabocais, rumo ao segundo descampado, já diante de aclive considerável.

Esquema da Batalha do dia 3 de agosto de 1645, no Monte das Tabocas, onde se destaca: o avanço holandês (vermelho), as emboscadas portuguesas e o contra-ataque de João Fernades Vieira (azul). No canto superior direito, detalhe com a visão do monte a partir do leste.
Fonte: Google Earth, com esquemas esboçados pelo autor.

A partir daí, os holandeses sofreram novas emboscadas de desarticulação, persistindo na subida monte acima, com suas linhas bastante desarticuladas, quando então foram contra-atacados pelos defensores, provenientes do alto do monte. Estes se lançaram num decidido combate corpo-a-corpo com a tropa holandesa, já desequilibrada, que acabou por recuar.

É narrado que o destemido coronel Van Haus repetiu por mais três vezes o assalto inicial. Na quarta, e última, tentativa, já no lusco-fusco (e tendo sido o tempo inteiro fustigado por novas emboscadas), mesmo assim, quase tomou o cume. Contudo, nessa altura, a tropa estrangeira, com o moral abalado por insucessos contínuos ao longo da jornada, se desmoralizou, e começou a abandonar o campo de batalha, cruzando de volta o rio para longe dos resolutos defensores (Daróz, 2016).

Quando a noite caiu, os defensores mantiveram, e melhoraram, suas posições no campo de batalha, se preparando para os eventuais novos ataques que poderiam vir no dia seguinte. Nesse ponto, João Fernandes Vieira, mandou patrulhas percorrerem os arredores de onde transcorrera o centro da batalha, tendo os portugueses “achado 50 olandeses, que davão guarda a mais de quatrocentos feridos, que desmayados pella falta de sangue, & pello trabalho da marcha, não poderão passar avante na conserva dos seus” (Jesus, 1679, p. 305-306).

Com o raiar do dia e com a confirmação do abandono do campo pelos holandeses, ficou patente a vitória dos locais (Ibid.), com o que, com o sucesso confirmado, os patriotas, senhores do campo de batalha, capturaram grandes quantidades de mosquetes, arcabuzes, espadas, outros armamentos e, sobretudo, pólvoras e munições (Daróz, 2016).

A partir deste e de outros reveses inesperados (com destaque para o combate da Casa Forte de Rita Gomes), e até as batalhas dos Guararapes, os holandeses praticamente deixaram de atuar no interior do Nordeste brasileiro, tendo ficado restritos a algumas cidades e fortes litorâneos, com destaque para as localidades de Olinda, Recife e Itamaracá.

Após as batalhas dos Guararapes, entre 1649 e 1654, as forças patriotas sitiaram o centro de gravidade político holandês na região, ou seja, o binômio Olinda-Recife, sufocando essas de serem reabastecidas de víveres e outros insumos, salvo pelo mar.

Desse modo, surgiu um impasse, pois graças à hegemonia naval holandesa no mesmo período e sem artilharia de sítio (pesada), não havia como as forças patriotas, sem armamentos e equipamentos adequados, investirem essas cidades fortificadas. Segundo Castro (2022), isso perdurou até que uma frota portuguesa conseguiu cortar as comunicações holandesas, levando à rendição do esquema defensivo montado pela Companhia das Índias Ocidentais, na Campina do Taborda, em 1654.

Vista aérea recente, de norte para sul, do cume do Monte das Tabocas. Fonte: Imagem aérea de Djalma Andrade.

Voltando ao Monte das Tabocas, no que tange às inovações táticas apresentadas pelos patriotas no episódio, pode-se dizer que elas surgiram tanto das circunstâncias (exército de patriotas sem recursos) quanto da natureza do ambiente operacional (clima quente, úmido e coberto de florestas, campinas e zonas alagadiças) que os envolvia. Além disso, aquele núcleo inicial de combatentes aproveitou o melhor conhecimento geográfico e a maior resistência de seus integrantes a um clima tropical do que seu inimigo europeu, apesar do apoio prestado por índios tapuias e potiguaras ao holandês.

Vista aérea do Monte das Tabocas, com a seta indicando a direção do ataque principal holandês, sobre a várzea do Rio Tapacurá, em 3 de agosto de 1645. Fonte: Imagem aérea de Djalma Andrade.

Enquanto os holandeses, mais por hábito do que por adestramento, combatiam, quase que atavicamente emassados no seu típico batalhão seiscentista, os luso-brasileiros, até por conta da carência de armamentos de ponta, foram forçados a combater em ordem aberta. Era observação comum pelos holandeses que a tática patriota era romper os “quadrados” holandeses e, a partir daí, partir para a luta corpo-a-corpo na qual a tropa local tinha grande vantagem, até mesmo pelo pouco equipamento em face das agruras do clima (Rosty, 2002).

Outra observação holandesa reveladora é que a artilharia holandesa quase sempre era inútil nas refregas, em menor ou maior escala (tornado-se assim um estorvo), haja visto que as peças visavam molestar linhas de soldados em ordem cerrada, coisa que raramente viam os patriotas perfazer em campo aberto (Netscher, 1942).

Mais uma vez é razoável presumir que tal superioridade organizacional, em que pese a penúria dos patriotas, possa ter prestado um desserviço ao invasor, ao menos naquele momento. Senão vejamos: segundo Jesus (1679), o tempo na época da batalha estava muito instável e chuvoso, com o que o caudal do rio Tapacurá, normalmente vadeável, estava bastante forte e elevado. Segundo consta, a tropa holandesa provinha da vila de São Lourenço, distante pelo menos 20 quilômetros à nordeste do Monte das Tabocas, tendo avançado, decididamente, para esmagar os patriotas, cujas posições estimavam estar no chamado Engenho do Covas. Não os encontrando ali, foram atraídos para a nova posição, distante cerca de 15 km mais adiante (Jesus, 1679).

Vista recente da várzea entre o Rio Tapacurá e o sopé do Monte das Tabocas, palco principal dos combates de 03 de agosto de 1645. Fonte: Foto de Jones Pinheiro

Dos variados relatos dessa batalha, podemos destacar alguns princípios da guerra ali utilizados que, com ligeiras variações, também estarão presentes, igualmente, nas 1ª e 2ª batalhas dos Guararapes, como por exemplo: surpresa, ofensiva, segurança e unidade de comando. Além disso, os patriotas empregaram um judicioso uso do terreno (para forçar o combate), agressividade nas ações ofensivas, amplo emprego de operações de inteligência e psicológicas, exploração das agruras do clima local, sem esquecer a notável ação de comando e capacidade de liderança evidenciadas pelos comandantes, em todos os níveis (Rosty, 2002).

Em face do acima exposto, de forma bem resumida, cabendo até maiores aprofundamentos, é lícito dizer que foi no Monte das Tabocas o ponto de partida para o processo que culminou nas chamadas batalhas dos Guararapes (já no contexto do comando militar vitorioso de Francisco Barreto de Menezes, o Conde do Rio Grande).

É certo que a formação dessa força militar efetiva, cujo cerne surgiu no Monte das Tabocas, baseou-se em um longo processo de aclimatação local de uma estratégia tão antiga como a guerra: a aproximação indireta. Esta, como bem é sabido da história militar, quase sempre foi o padrão histórico de resposta a agressores externos com grande capacidade militar frente a defensores menos preparados.

Vista da capela de Nossa Senhora de Nazaré, erguida nos anos 1960, conforme desejo nunca realizado de João Fernandes Vieira, líder da Insurreição Pernambucana (1645-1654).
Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão.

Logo, nos Guararapes consolidou-se uma doutrina autóctone, que traduziu para a geografia o clima e a personalidade dos locais, os grandes avanços doutrinários da chamada Guerra dos 30 Anos, na Europa. Por outro lado, podemos dizer que nas Tabocas, por sua vez, é que teria surgido o primeiro esboço dessa futura reação militar.

É que, como vimos, foi lá que o grande artífice do chamado “Exército Libertador”, o mestre de campo Antônio Dias Cardoso, testemunhou suas tropas improvisadas aplicarem, vitoriosamente, as técnicas de emboscada, guerrilha e “de matar”, que treinaram por meses, sob toda a sorte de dificuldades, homiziados contra a repressão holandesa nas chamadas matas do “pau brasil” (Bento, 2018).

Nessas verdadeiras oficinas doutrinárias naturais, Dias Cardoso trouxe para o aprendizado inicial das táticas, técnicas e procedimentos necessários para a vitória: capatazes, ferreiros, mascates, comerciantes, escravos libertos, índios, além de um bom número de milicianos portugueses.

Tal núcleo de insurgentes, aliás, que foi fundamental para a vitória no Monte das Tabocas, é considerado, igualmente, hoje em dia, pelos historiadores militares brasileiros, como “a célula mater do Exército Brasileiro, no solo hoje defendido pelo moderno Comando Militar do Nordeste” (Bento, 2013).

Hoje, passados quase quatro séculos daquelas históricas jornadas militares, o Exército Brasileiro, além de outros vultos históricos daquele período, vem buscando homenagear o heroísmo, a coragem, a abnegação e o conhecimento profissional, demonstrados pelo mestre de campo Antônio Dias Cardoso. Isto vem sendo executado por modos diversos, mas inclusive pela atribuição do nome, e da memória, desse personagem histórico como patrono do 1º Batalhão de Forças Especiais – “Batalhão Antônio Dias Cardoso” –, atualmente sediado em Goiânia, capital do estado brasileiro de Goiás.

BIBLIOGRAFIA

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VARNHAGEN. Francisco Adolpho. Historia das lutas com os hollandezes no Brazil: desde 1624 a 1654. Lisboa: Typographia de Castro Irmão. 1872. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518737. Acesso em 06 jun. 2023.

VIANNA, Helio. Estudos de História Colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1948.

*Hermes Leôneo Menna Barreto Laranja Gonçalves é coronel de Engenharia do Exército Brasileiro. Formado na Academia Militar das Agulhas Negras, cursou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, onde concluiu o Curso de Comando e Estado-Maior, e, em paralelo, o Mestrado Acadêmico em Ciências Militares, este pelo Instituto Meira Mattos. Atuou como Oficial de Ligação para Assuntos Culturais e Doutrinários junto ao Exército Português entre julho de 2022 e junho de 2024. Atualmente exerce o cargo de chefe do Gabinete da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército.

HISTÓRIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE – PARTE 2 – OS COMBATENTES

Felipe Nery de Brito Guerra – Publicada originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 228 a 239.

* Informação do Blog Tok de História – Como comentado anteriormente, busquei atualizar o centenário texto do Desembargador Felipe Guerra, sem, contudo, alterá-lo. Foi necessário também dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.. 

Entre seus filhos que mais se distinguiram por feitos militares é preciso citar que nos dois primeiros séculos da conquista, os Potiguares ILHA GRANDE, JACAÚNA, e o maior de tolos eles, Dom Antônio Felipe Camarão, chefe dessa valorosa tribo que, já em 1603, havia fornecido 800 guerreiros para pacificar os Aimorés, que se revoltaram na Bahia, e para dar fim aos Quilombos, que infestavam a região do Itapecuru, na mesma Capitania.

Retrato anônimo de Felipe Camarão, do século XVII, no Museu do Estado de Pernambuco– Fonte – Wikipedia.

Inquestionavelmente na grande crise da luta holandesa, o mais sério e grave perigo que ameaçou a integridade do Brasil, na frase de Silvio Romero, foi Camarão um dos mais valorosos generais, e o completo conhecimento que tinha, do teatro da luta, pode-se bem avaliar quão decisivo foi o papel que desempenhou na campanha. Não é esta a ocasião de escrever a vida de Camarão, já proficientemente estudada pelo desembargador Luiz Fernandes.

Cabe, porém, citar ligeiramente alguns episódios.

Camarão recebera ordens para estabelecer guerrilhas contra os holandeses entre Goiana e Itamaracá. “O terror que incutia o seu nome era tal que o general holandês Arciszewski (Krzysztof Arciszewski) saiu de propósito do Recife com mil soldados para destruir esse punhado de valentes guerrilheiros e prender seu chefe”.

Krzysztof Arciszewski- Fonte – Wikipedia.

Sobre o resultado da empresa disse o próprio general holandês: “Há mais de quarenta anos que milito na Polônia, na Alemanha e em Flandres, ocupando sem interrupção postos honrosos; mas só o índio Camarão veio abater-me o orgulho”.

Logo depois, seguiu Camarão para Alagoas guiando, através de 70 léguas de território dominado pelo inimigo, milhares de pessoas até Porto Calvo, onde se achavam as forças do general em chefe de então. Sob o comando do conde da Torre, auxiliou eficazmente a defesa da Bahia, recebendo ordens dele para percorrer os sertões hostilizando os holandeses. Portou-se de tal forma nessa excursão que, referindo se a ele, o inimigo chamou-o Anjo do extermínio.

Juntou-se depois as forças de Luiz Barbalho, que haviam desembarcado em Touros, no Rio Grande do Norte, após a derrota sofrida pela esquadra do conde da Torre, guiando essas forças, com Vidal e Henrique Dias, por ínvios sertões em luta aberta contra os inimigos até a Bahia, onde chegaram “a tempo de poder livra-la de ser atacada e tomada pelas forças do almirante Lichthart (Jan Cornelisz Lichthart), já as suas portas“. Os holandeses haviam seguido de porto a coluna sem alcança-la, vingando-se cruelmente ao matar aqueles que, doentes ou estropiados, não podiam acompanhar a heroica retirada que assim caminhou cerca de quatrocentas léguas.

Quadro que mostra os fortes na foz do Rio Paraíba, capturados pelo almirante Lichthart em 1634 – Fonte – Wikipedia.

Regressando a Pernambuco ordenou Vital a Camarão que viesse prosseguir novas hostilidades no Rio Grande do Norte e vingar, nesta parte do Brasil, tantas crueldades não só dos selvagens, como dos próprios holandeses, que se bem que cristãos de nome, mais bárbaros se haviam mostrado que os índios.

Camarão cumpriu o seu mandato muito além do que se podia esperar; e conseguindo chamar a si um grande número de índios que estavam com o inimigo, chegou a dominar todo o sertão do norte até os confins do Ceará”. Assim se exprimiu o visconde de Porto Seguro, citado pelo desembargador Luiz Fernandes, que muito judiciosamente acrescenta: Acreditamos que esse fato reduzindo a força dos Tapuias, poderosos aliados dos holandeses, foi uma das causas determinantes do seu enfraquecimento e consequente perda das suas conquistas“.

Frota de guerra holandesa – Fonte – Wikipedia.

Esse homem superior ao cansaço, lutando da Bahia ao Ceará, esse general de gênio que soube aliar o esforço e a disciplina no cumprimento do dever à coragem do soldado, à estratégia do índio, gozando da férrea resistência do selvagem, pode ser colocado ao lado de Caxias, como um dos fatores da integridade nacional, sem desdouro para este general que ocupa o ponto culminante na história militar e política do Brasil.

Não houve uma só ação, diz Fernandes Pinheiro, em que se pleiteasse a causa da liberdade, em que os batavos não sentissem o peso do seu braço, empalidecendo ao ouvir seu nome aqueles mesmos que nas águas do Zuiderzee haviam submergido os brasões de Castela.

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

Hoje, para bem se poder aquilatar o valor da intervenção de Camarão na guerra holandesa é suficiente refletir que, em uma época de arraigados preconceitos de raça, de nobreza e de religião, ele representante de selvagens, sobre os quais a qualidade de “humanos” havia sido objeto de controvérsias, recebia excepcionais distinções não só da parte dos que se achavam à frente da luta como também da parte da Côrte da Metrópole.

Assim, por carta regia de 1633 foi-lhe conferido brasão d’armas, 40$ de soldo e patente de Capitão-mor de todos os Índios do Brasil. Depois o rei da Espanha também lhe conferiu o Hábito de Cristo e o tratamento de Dom, e mais tarde foi recompensado cora a comenda lucrativa, na Ordem de Cristo dos Moinhos da Vila de Soure, em Portugal, com que eram galardoados os heróis lusitanos que se distinguiam por serviços em guerras na África, havendo excepção para Camarão, conforme diz o visconde de Porto Seguro: “Por faltarem serviços em África, ocorreram dúvidas e foi necessário dispensa da Cúria, de modo que a comenda só chegou a realizar-se a 3 de maio de 1641”.

De volta de suas excursões guerreiras, a junção de Camarão aos chefes da guerra era recebida como um desafogo. A sentinela, diz o historiador Southey, que teve a fortuna de anunciar a vinda de sete índios do regimento de Camarão, que traziam aviso da próxima chegada do seu comandante, deu Vieira dois escravos de alvissaras..

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

O Brasil ainda está em dívida para com esse seu glorioso filho: falta-lhe um monumento digno, capaz de exteriorizar a gratidão nacional para com o mais genuíno representante da raça aborígene.

E Portugal? Os holandeses chegaram a dominar até Sergipe. A política portuguesa pensou seriamente — e manifestou em acordo — reconhecer o domínio holandês. Firmado essa dominação, teria a colonização portuguesa resistido a pressão holandesa do norte para o sul; a pressão espanhola ao sul; as ambições francesas?

E se a bela língua de Camões se estende hoje a uma região cem vezes maior que Portugal, e é falada por uma população cinco vezes maior do que a do seu país de origem, deve a expulsão dos holandeses do Brasil, para qual o gênio de Dom Antônio Felipe Camarão teve preponderante e decisivo valor. Portugal acha-se assim também em dívida para com o grande Poti.

Dona Clara Camarão era mulher do índio potiguara Antônio Felipe Camarão (na gravura da direita), herói decisivo na guerra dosbrasileiros e portugueses contra o invasor holandês. Fonte – https://auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_diversidade/clara-camarao

Dona Clara Camarão, legitima esposa de Felipe Camarão, tomou parte nas lutas e acompanhou seu marido nas horas de extremo perigo, batendo-se denodadamente ao seu lado. Da grande emigração de Mathias de Albuquerque, diz a história: “Nesta penosa emigração distinguiram-se pelos seus grandes feitos militares Felipe Camarão e sua mulher Clara Camarão”.

Na revolução do 1817, como já ficou dito, não foram os feitos guerreiros que imortalizaram a gloriosa tentativa. Assim diz o Capitão Alípio Bandeira no seu completo estudo histórico — O Brasil Heroico de 1817 — “o que constitui a gloria dos heróis de 1817 é o esforço valoroso com que trabalharam pela nossa autonomia política, são as reformas verdadeiramente liberais que eles tentaram implantar no governo que estabeleceram, são a lisura e o desprendimento, a lhaneza e a tolerância, em suma — a honesta fraternidade com que invariavelmente procederam”.

Depois de abafado o movimento, nenhuma revolução no Brasil fez tantos mártires quanto a de 1817. Segundo a citada obra do Capitão Alípio Bandeira, foram fuzilados quatro patriotas, enforcados nove, supliciados em horrorosas prisões por mais de três anos e meio cerca de trezentos, e por mais de um ano cerca de duzentos!

Do Rio Grande do Norte, além do nobre chefe André de Albuquerque, estúpida e barbaramente assassinado em Natal, além de Miguelinho, o puro e evangélico mártir, ambos riograndenses, fornece a história numerosa lista de patriotas martirizados nos cárceres, sendo talvez João Francisco Fernandes Pimenta, com o ardor de seus vinte anos, a encarnação mais forte e mais ativa do guerrilheiro e lutador que, nos sertões do Rio Grande do Norte, durante meses, zombou de forças legalistas que o perseguiam.

Bênção das bandeiras da Revolução de 1817, óleo sobre tela de Antônio Parreiras– Fonte – Wikipedia.

Estudando a história da revolução de 1817 no Rio Grande do Norte, fica-se certo de que se o governador de então, José Ignacio Borges, talvez inclinado aos ideais da revolução, tivesse os mesmos sentimentos ferozes e sanguinários daqueles que dirigiram a reação em Pernambuco e Bahia, muito mais elevado teria sido o número dos mártires riograndenses.

Considerando que grande número de pessoas de destaque daquele tempo, no sertão do Rio Grande do Norte, principalmente em Portalegre, Patu, Martins, Pau dos Ferros, Apodi e Campo Grande, estiveram implicados na revolução, em comunicação direta com os chefes do movimento em Recife, é de supor, com bons fundamentos, que duas causas concorreram para diminuir o número daqueles mártires riograndenses.

A primeira foi o espirito de benevolência, de camaradagem e amizade reinante entre os sertanejos do Rio Grande do Norte, naquela época principalmente, oriundos de pequeno número de famílias, já então ligados por entrelaçamentos e afinidades, formando quase que uma só família: não houve delações; o esforço de cada um e de todos foi salvar o amigo das garras tigrinas das Juntas Militares.

O Carmelita Miguel de Almeida e Castro, conhecido como Frei Miguelinho, era potiguar de Natal e teve participação ativa na revolta de 1817 em Pernambuco. O quadro mostra seu julgamento em Salvador, onde foi condenado a morte pelo fuzilamento e a pena cumprida no dia 12 de junho de 1817. É nome de cidade em Pernambuco e muito cultuado no Rio Grande do Norte– Fonte – Wikipedia.

A segunda causa deve ser procurada na coragem nobre e santa de Miguelinho, em seu elevado espirito.

Sabendo que no dia seguinte seria encarcerado, não se abateu, não se entregou a inúteis fraquezas; passou a noite queimando papeis e documentos capazes de comprometer a sorte de seus amigos. Ao entrar em casa disse Á sua irmã em lagrimas, as memoráveis palavras: “Mana, nada de choros; estás órfã. Tenho enchido os meus dias. Logo virão buscar me para a morte; entrego te à vontade de Deus, nele terás um pai que não morre mais aproveitemos a noite. Imita-me. Ajuda-me a salvar a vida de milhares de desgraçados”.

Miguelinho durante alguns anos fora professor no Seminário de Olinda. Muitos vigários do Rio Grande do Norte haviam sido seus discípulos e, naturalmente, continuavam amigos do mestre. O seminarista José Ferreira da Motta, de Portalegre, e que então cursava o seminário de Olinda, correspondeu-se diretamente com seu pai, capitão José Ferreira da Motta. Seguiu imediatamente, disfarçado em boiadeiro a entender-se com os chefes em Recife, o sargento Mór Manoel Fernandes Pimenta. Teve assim a revolução, que depois relacionou-se com os chefes do movimento em Natal, fortes ramificações pelo sertão. Não foram relativamente numerosos os sertanejos que padeceram nos cárceres. É de supor que a noite de vigília de Miguelinho, queimando papeis, o amargurado Horto da vítima votada ao sacrifício, tenha redimido muito sofrimento e evitado muita lagrima em seu torrão natal.

Quadro de um combate de forças de cavalaria, como os que ocorreram durante a Guerra do Paraguai – Fonte – Wikipedia.

Durante a guerra do Paraguai foram inúmeros os contingentes enviados do Rio Grande do Norte. Muitos de seus filhos lá cumpriram o seu dever, derramaram o sangue, perderam a vida. Entre os riograndenses, já mortos (em 1927), que ocuparam postos de destaque no Exército, acham-se:

– José Xavier Garcia de Almeida, engenheiro militar e brigadeiro José Correia Telles, natural do Assú, praça em 1856, fez toda a campanha do Paraguai a começar pela do Uruguai. Cavaleiro da Ordem de Aviz, recebeu a medalha argentina da comemoração da guerra. Fez parte da junta governativa de Alagoas em 1891, Coronel em 1894, foi reformado como general em 1897 e faleceu no mesmo ano.

Nota sobre José Pedro de Oliveira Galvão após a Guerra do Paraguai.

– José Pedro de Oliveira Galvão, praça em 1862. coronel efetivo em 1895. Fez a campanha do Paraguai. Senador pelo Rio Grande do Norte, por seis anos, faleceu em 1896.

Coronel Fonseca e Silva, anos após a Guerra do Paraguai– Fonte – Wikipedia.

– Francisco Victor da Fonseca e Silva, natural de São Gonçalo, praça em 1865, reformou-se com a graduação de general de divisão, vindo a falecer em 1905. Fez também a campanha do Paraguai. Como comandante da força policial da então Província do Rio de Janeiro foi um dos auxiliares da revolução de 15 de novembro de 1889. Foi deputado à Constituinte Republicana pelo Estado do Rio de Janeiro, e, ainda, deputado da primeira legislatura da Câmara Federal pelo mesmo Estado. Eleito, depois, deputado pelo Rio Grande do Norte, representou este Estado na quarta e quintas legislaturas.

– Antônio da Rocha Bezerra Cavalcante, fez com distinção, a campanha do Paraguai, falecendo no posto de general, reformado.

Foto de combatentes da Guerra do Paraguai. O terceiro sentado da esquerda para a direita, é o Coronel Joca Tavares e seus auxiliares imediatos, incluindo José Francisco Lacerda, mais conhecido como “Chico Diabo” (terceiro em pé, da esquerda para a direita), que matou o ditador paraguaio Solano Lopez. Imagem: Wikipedia, Domínio Público. In: Salles, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003. ISBN 85-333-0264-9 (p.180)

– Francisco de Paula Moreira. Fez a campanha do Paraguai. Tomou parte na organização republicana do Estado, como deputado à Constituinte. Faleceu no posto de Coronel, reformado.

Antônio Florêncio Pereira do Lago

– Antônio Florêncio Pereira do Lago. Foi um distintíssimo rio-grandense-do-norte que morreu no posto de coronel, reformado. Nascido em 1827, bacharelou se em ciências físicas e matemáticas e pertenceu ao corpo do Estado-Maior de primeira classe. Oficial da Ordem da Rosa, cavaleiro da Ordem de Cristo e da de São Bento de Aviz, foi condecorado, ainda, com a medalha da campanha do Uruguay em 1851 e com a da guerra do Paraguai. Exerceu com brilho comissões do Ministério da Guerra e do da Agricultura. Por ordem do Governo fundou a colônia do Alto Uruguai.

Escreveu várias obras e trabalhos oficiais, entre os quais “Relatório dos estudos da comissão exploradora dos rios Tocantins e Araguaia”. Ilustre e esquecido brasileiro que honra a sua pátria e é uma legitima glória de sua corporação. O visconde de Taunay traçou o retrato de sua personalidade: “Lago, isto é, a prudência, a força, a reflexão, o sentimento apurado de dever; Lago, a personificação do bom senso, mas, ao mesmo tempo, a tenacidade levada ao extremo da teima. Alto, gordo, então simples capitão, mas com proporções para ser general, tem ele fisionomia, franca e simpática. Possui inteligência, ilustração e, sobretudo, consciência. Reto e leal, é amigo as deveras, mas também inimigo decidido”.

No posto de capitão de engenheiros fez parte do Corpo de Exercito que seguiu para Mato Grosso, e que escreveu a heroica e dolorosa pagina que é a Retirada de Laguna. O visconde de Taunay escreveu que a expedição de Mato Grosso escapou de completo aniquilamento devido á energia e ao estoicismo de Pereira do Lago que, nos momentos mais cheios de angustia, perigo e desalento, conseguia com seu exemplo, sua calma e coragem, levantar o espirito de todos. “Oficial do maior valor moral, nunca foi apreciado na medida de seus méritos”, ainda repetia Taunay, em 1896, em seu livro “Viagens de Outrora”.

Pereira do Lago faleceu na idade de 65 anos, no posto de coronel, reformado, 1º de janeiro de 1892.

– Padre Amaro Theó Castor Brasil, que seguiu de Campo Grande (RN) com mais dois irmãos e dois parentes para o Paraguai, onde fizeram toda a campanha como Voluntários da Pátria, e voltaram como oficiais. Um deles, José Lucas Barbosa prestou depois valiosos serviços nas3 lutas e na organização do Acre, onde foi comandante da Guarda Nacional.

– Ulysses Olegário Lins Caldas e João Percival Luiz Caldas, eram irmãos, ambos do Assú, seguiram como Voluntários da Pátria para o Paraguai. O primeiro, ardente e destemido jovem de 18 anos, encetou seus passos na campanha como herói, e assim continuou até cair fulminado por uma bala no coração, nas avançadas de Curuzu, em novembro de 1866. Galgando trincheiras inimigas, arrebatando canhões, morreu pouco depois de completar vinte anos e alcançara o posto de tenente e por distinção o Hábito de Cavalleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. A ordem do dia do Exército em campanha, de 4 de setembro de 1866, referindo-se ao assalto de Curuzu, citando o nome de alguns oficiais, diz: “…que quais leões, se lançaram sobre as baterias inimigas, chegando ao ponto de subir sobre sua artilharia, como fez este último oficial, com uma intrepidez que a todos surpreendeu”. Este último oficial, que “a todos surpreendeu com sua intrepidez” era, na citação, Ulysses Caldas.

O Barão de Porto Alegre liderando as tropas em Curuzu, pintura de Victor Meirelles– Fonte – Wikipedia.

– Alexandre Baraúna Mossoró. Filho da cidade de Mossoró, humílimo e obscuro herói, soldado da quinta companhia do terceiro batalhão de infantaria, fez a campanha do Uruguai. Tomou parte no assalto de Paissandu. Ferido, continuou a bater-se encarniçadamente. Novo ferimento lhe vasou uma vista; mandam-no retirar-se do combate e ele continua a bater-se. Terceiro ferimento inutiliza-lhe o braço direito. Empunha então a arma com a mão esquerda, pois “com o canhoto ainda pôde dar uma lição aos gringos“, conforme grita ao comandante; escala a trincheira e cai lutando ainda, do lado oposto, em meio dos inimigos, sendo então morto! O seu comandante cerca de veneração o cadáver do herói. Ao espirar, vêm-lhe à lembrança sua mãe e seu torrão natal: “minha mãe… viva o Mossoró!…” Indômito filho do povo não menos herói, mais infeliz, porém, do que o corneta Jesus ainda não teve a consagração condigna, nem mesmo da poesia, a imortalizar lhe o nome!

– Ponciano Souto, natural do Assú, Voluntário da Pátria que fez toda a campanha do Paraguai, voltando como capitão, e faleceu em 1882, em Bananal, São Paulo, como tabelião vitalício.

João Mafaldo, do Martins, alferes, morto no assalto à cidadela de Canudos.

Nota sobre o batalhão de potiguares na Guerra de Canudos, no Jornal “A República”, 10 de dezembro de 1897.

José da Penha, de Angicos, sincero republicano, escritor, polemista e tribuno, absorvido e sacrificado, infelizmente, pela politicagem que o vitimou no posto de capitão, a 19 de fevereiro de 1914, em Iguatu (Ceará).

Theophilo Guerra, jornalista, e cronista das secas. Quando cadete em Minas Geraes, levantou uma “questão militar,’ não se sujeitando, em serviço local, ao cominando de oficial de polícia. Submetido, então, a conselho de guerra, foi absolvido. Faleceu no posto de alferes..

São esses os traços gerais da história militar do Rio Grande do Norte, que poderia comportar largo desenvolvimento, mas não é possível em ligeira “introdução” nomear todos aqueles, numerosos, que no cumprimento do dever, souberam honrar a Pátria.

As figuras culminantes desta história são — Camarão, Pereira do Lago e o obscuro soldado Baraúna Mossoró. Sofredores, incansáveis, superiores ao desalento e aos revezes, tenazes na luta, devotados, estoicos, são bem tipos representativos desta população martirizada pelas secas, oferecendo sempre sobre humana e tenaz resistência a desapiedados golpes da natureza, sem abandonar o ingrato e querido solo, que, afinal, será conquistado.

FELIPE GUERRA.

Agosto—1920. (Socio effectivo)

HISTÓRIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE – PARTE 1 – AS LUTAS

Felipe Nery de Brito Guerra – Publicado originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 218 a 228.

* Informação do Blog Tok de História – Busquei atualizar alguma coisa da ortografia do texto do Desembargador Felipe Guerra, escrito em agosto de 1920, sem, contudo, alterá-lo. Devido a sua extensão, foi necessário dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.

Escrever a história militar do Rio Grande do Norte desde o início de sua colonização, principiada em fins do século XVI seria, pelo menos até princípios do século XVIII, escrever a história do Rio Grande do Norte, porquanto esse espaço de tempo, abrangendo um período de cerca de dois séculos, foi preenchido por sangrentas agitações, lutas e guerras.

A dominação francesa, exercida então por piratas, aventureiros, desclassificados, sem outros ideais a não ser o lucro mercantil, sempre receosos e a espera de ataques dos portugueses. O que é certo, porém, é que essa permanência constante e demorada dos franceses, embora sem estabelecimento conhecido, representava um perigo para as vizinhas e próximas capitanias, principalmente a Paraíba, de onde haviam sido repelidos.

“O mal vem do Rio Grande”, dizia-se em Pernambuco e na Paraíba. E assim, para acabar com esse mal, foi resolvida a conquista do Rio Grande, da qual foi incumbido Manoel Mascarenhas Homem, tendo Jerônimo de Albuquerque alcançado melhor êxito na empresa.

Piratas franceses no Brasil – Fonte – httpswww.goianarte.com

Não tinham então os franceses regulares instalações. Viviam, entretanto, em estreitas relações com os selvagens, habitando mesmo suas aldeias. É o que se depreende da célebre “História do Brasil” de Frei Vicente do Salvador, escrita em 1627, e onde se lê que logo ao chegar Manoel Mascarenhas Homem “ali desembarcaram e se entrincheiraram de varas de mangue para começarem a fazer o forte e se defenderem dos Potiguaras que não tardaram muitos dias. Vieram uma madrugada, infinitos, acompanhados de cinquenta franceses, que haviam ficado das naus no porto dos Búzios e outros que ali estavam casados com Potiguaras”.

Manoel Mascarenhas Homem, que lutou no Rio Grande do Norte contra os franceses – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia

E assim ofereceriam os selvagens, auxiliados por seus aliados franceses, tenaz resistência. O que não impediu, entretanto, a fundação do “Forte dos Reys”, permitindo a criação da povoação do Natal dois anos depois — 25 de dezembro de 1599. Foi celebrada a paz com os Potiguaras, conseguida por Jerônimo de Albuquerque com a mediação de um selvagem “principal e feiticeiro”, chamado ILHA GRANDE.

A conquista do litoral brasileiro havia sido começada do norte para o sul, sendo depois continuada do sul para o norte, tendo, principalmente esta última, contado com eficaz cooperação dos naturais da terra, já representados por brancos, filhos de portugueses, por mestiços e pelos selvagens que, subjugados e pacificados pelos portugueses, eram aproveitados como seus aliados.

Os selvagens constituíam sempre o grosso das forças conquistadoras, embora não fossem, em regra, os elementos mais resistentes nos combates. Eram, entretanto, os mais resistentes às longas marchas, aos transportes e aos mais serviços exigidos em campanhas rudes e aventurosas, em que não podia se contar com auxílios minguadíssimos e retardados, senão impossíveis.

Forte dos Reis Magos, por Frans Post (1638)
– Fonte – http://noisnafolia.no.comunidades.net/pontos-turisticos

Os Potiguares, que dominavam o litoral do Rio Grande do Norte, uma vez pacificados, foram valiosos e fortes elementos para a conquista do norte. Não existindo mais o “mal vindo do Rio Grande», que passara para o Ceará e para o Maranhão, foi resolvida a conquista desses pontos, onde os franceses procuravam se firmar. Ainda foram os Potiguares elementos preponderantes para a conquista do primeiro daqueles territórios.

Expulsos os franceses do litoral, de Paraíba ao Maranhão, as novas populações que procuravam se estabelecer não ficaram na tranquilidade da paz. Nem todas as tribos haviam feito amizade com os colonizadores; e mesmo no meio daquelas tidas como amigas, surgiam ataques e desconfianças que traziam para a região um verdadeiro estado de guerra, rompendo a duvidosa paz, sempre de curta duração..

Veio depois a guerra holandesa. O Rio Grande do Norte foi duramente sacrificado na luta. Tomada a Fortaleza dos Reis Magos (12 de dezembro de 1533) por uma força holandesa guiada por Calabar, sofreu o Rio Grande do Norte com o invasor até o final da guerra holandesa no Brasil. Esteve assim esta terra dezenove anos sob o domínio batavo.

Florin holandês de ouro. Essa foi a primeira moeda a conter o nome Brasil e foi produzida pelos holandeses durante a ocupação de Recife – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Dutch_guilder

Calabar conseguira angariar para os holandeses a amizade dos Índios Janduís, que unidos aqueles praticaram horríveis massacres. Fácil é de imaginar o que seria a guerra movida por selvagens açulados por aventureiros da pior espécie, como parece que eram os holandeses enviados para o Rio Grande do Norte. Chegaram a negociar prisioneiros como animais para o corte, destinado a pasto dos antropófagos Janduís.

Finda a guerra holandesa pela expulsão dos invasores, continuou a luta no Rio Grande contra os Índios, sempre dispostos a defender sua vida selvagem e sem peias. Houve mesmo uma rebelião generalizada dos nativos que durou longos anos, nada respeitando, nem a vida nem os habitantes do Rio Grande, que já contava elementos de prosperidade. Foi calculado que os índios mataram “perto do trinta mil cabeças de gado grosso e mais de mil cavalgaduras”. Essa rebelião durou de 1688 a 1720, quer dizer, 32 anos, talvez mais, porquanto não se acha bem estudado esse ponto da história. Foi um movimento sério e perigoso. Pedidos insistentes de socorro partiram para Pernambuco, para a Bahia, e até diretamente seguiu um emissário para Lisboa, levando uma representação do Senado da Câmara ao Rei, tais as delongas do auxílio reclamado.

“Cena da Expedição do Tenente-Coronel Affonso Botelho”, aquarela do artista Joaquim José de Miranda (1771) que retrata o confronto entre indígenas e bandeirantes. Provavelmente cenas como essa ocorreram no Rio Grande do Norte – Fonte – https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revolta/guerras-barbaras/

Do litoral ao alto sertão era grande o perigo que ameaçava a própria Natal, sendo, o ponto culminante da rebelião a ribeira do Assú. Vieram em excursões guerreiras tropas da Paraíba, de Pernambuco e da Bahia. Vieram os ”terços paulistas” que haviam lutado em Palmares, vieram companhias do Batalhão de Henrique Dias. Essas forças, os melhores elementos de luta então disponíveis pelo Governo do Brasil, subiram até as cabeceiras do rio Assú, foram às ribeiras do Seridó, do Apodi até ao Jaguaribe, em perseguição dos índios que foram afinal pacificados, isto é, aniquilados, escorraçados, sendo tomada a providência de aldear os restantes. Ainda em tais aldeamentos apareciam insurreições dos índios motivadas por excessivos rigores e injustiças. Nenhuma condescendência havia para o infeliz selvagem, a quem de fato era negado qualquer direito.

Seguramente Miguel Joaquim de Almeida Castro, o Padre Miguelinho, foi o potiguar que mais expresivamente tomou parte na revolução de 1817 e acabou sendo fuzilado. Em junho de 1906, no 89º aniversário do fuzilamento, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, promoveu uma série de homenagens em Natal . Houve uma sessão solene no então Teatro Carlos Gomes, atualmente Teatro Alberto Maranhão, na noite de 12 de junho de 1906, onde um coro feminino cantou o “Hino de Miguelinho”, letra de Henrique Castriciano e música de Luigi Maria Smido, cuja a capa da partitura apresentamos acima – Fonte – https://gamfrente.blogspot.com/2017/03/padre-miguelinho-luz-do-rio-grande-do.html

Na revolução de 1817, não é ignorado o papel que representou o Rio Grande do Norte. Pode-se dizer que essa página luminosa da história nacional se caracteriza no seu conjunto mais pela pureza de seus chefes, pelo estoico heroísmo dos que nela figuram, pela elevação dos ideais, pelo pendor doutrinário, do que por feitos militares e ação guerreira. E foi essa seguramente uma das causas que apressaram o fracasso da revolução.

Em agitações partidárias passou a Província as fases da Independência Nacional. Tomou parte na revolução da “República do Equador”.

Os corajosos e mal organizados destroços das forças revolucionárias de 1824 seguiram por terra, em dificultosa marcha por ínvios sertões de Pernambuco ao Ceará, procurando junção com as forças que nessa Província apoiavam o movimento revolucionário. Foi uma verdadeira retirada de cerca de três mil pessoas, conduzindo duas peças de artilharia, arrastadas por caminhos impraticáveis e arrostando todas as dificuldades que podem acompanhar forças sem disciplina, sem organização militar, sem recursos e sem alentadoras esperanças.

Quadro “Estudo para Frei Caneca”, de Antônio Parreiras (1918), mostrando o padre revolucionário em seu julgamento – Fonte – https://en.wikipedia.org/

Atravessaram o sertão do Rio Grande do Norte entrando pelo Seridó, seguindo para Pau dos Ferros pelos limites entre Rio Grande do Norte e a Paraíba. No Seridó, onde o presidente provisório da Paraíba deixou sua família, que com ele vinha acompanhando a expedição, da qual também fazia parte o nobre, elevado e culto espírito que era Frei Caneca, não foram hostilizadas as forças. Em Caicó, demoraram-se oito dias, concertando as carretas das peças que eram puxadas por bois. Em Patu de Fora, começou a expedição a sofrer hostilidades e também a hostilizar. Foram incendiadas algumas casas e fazendas.

Em Torrões (ou Torões), Patu, houve forte tiroteio, morrendo mais de trinta pessoas de parte a parte. Parece que batalhões irregulares de Portalegre organizaram guerrilhas, unindo-se depois com as forças legalistas do Rio do Peixe (PB).

Foto – Rostand Medeiros.

Serenada a luta pela submissão dos rebeldes, seguiram-se o martírio e as exageradas punições de infelizes chefes rebeldes, sonhadores antecipados dos ideais republicanos, vítimas da crueldade das juntas militares, tão tristemente célebres na história pátria.

Os habitantes do Rio Grande do Norte conservaram sempre prontos para qualquer emergência, chegando a formar batalhões de tropas irregulares, contra os reacionários de 1832, apoiando a política do então ministro da justiça e depois Regente do Império, padre Diogo Antônio Feijó.

Iniciada no Ceará em dezembro de 1831, com a proclamação de Joaquim Pinto Madeira, essa revolta obedecia aos ideais do Partido Restaurador, ou Caramuru, apoiado pelos portugueses. Formou-se no sertão do Rio Grande do Norte batalhões de tropas irregulares que marcharam para o Crato contra os revolucionários. De Martins e Portalegre seguiu um batalhão sob o comando do coronel Agostinho Pinto de Queirós. Conta-se que na primeira noite de marcha dois soldados de família do Martins, os irmãos Patrícios, tentaram voltar para casa, sendo por isso, ao amanhecer, sumariamente fuzilados. O comandante da tropa foi processado por esse fato e depois, por prescrição, isento da pena.

Pintura em azulejo de Armando Lopes Rafael (2010), representando Joaquim Pinto Madeira – Fonte – https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/a-guerra-dos-cacetes-bentos/

Sob o comando do coronel José Teixeira se organizou um batalhão no Seridó, do qual faziam parte os homens válidos das principais famílias. Incorporada à força combatente e reunida em Caicó, o padre Francisco de Britto Guerra, então vigário da cidade e representante da Província na Câmara Temporária, onde entrara como suplente, intimamente relacionado com o padre Feijó, e talvez o principal fator do movimento, promoveu uma grande solenidade cívico-religiosa por ocasião da partida da força. Seguiram todos montados para Pombal onde se uniram as forças da Paraíba, principiaram a receber instrução militar ministrada pelo alferes Canuto, de tropa de linha do Ceará.

Nas várzeas do Rio do Peixe (PB), houve o primeiro encontro entre esse batalhão do Seridó e as forças de Pinto Madeira, tendo estas atacado de surpresa, procurando tomar o valioso comboio dos víveres e munições dos seridoenses. O resultado foi as forças de Madeira retirando-se do combate com a perda de doze homens.

Manuel de Assis Mascarenhas, presidente da Província do Rio Grande do Norte ente 1838 a 1841, em cujo governo concedeu a patente de Coronel Comandante ao seridoense Joãop Gomes da Silva, pela sua capacidade de luta nos combates contra as forças de Pinto Madeira em 1831 – https://pt.wikipedia.org

O batalhão do Seridó continuou em marcha afim de reunir-se com as forças legalistas que no Ceará procuravam abafar a revolta, havendo pelo caminho alguns encontros. Terminada a luta, voltou a tropa ao Caicó, onde foi recebida com festas, aclamações, Te Deum na igreja, etc. Por ocasião dessas festas da chegada, foi aclamado pelos soldados o comandante das forças o quartel mestre João Gomes da Silva, que se havia distinguido na expedição, aclamação que anos depois no governo de Manoel de Assis Mascarenhas (1838 – 1841) foi confirmada com a patente de Coronel Comandante.

Muito é de notar que em todas essas lutas político-partidárias, os sertanejos do Rio Grande do Norte, serenados os ânimos, evitavam ódios inúteis, crueldades, perseguições e delações contra os vencidos.

A tradição narra mesmo o fato de haver Simão Gomes de Britto, capitão de milícias em Campo Grande, recebido ordem superior para prender o Coronel Cavalcante, implicado na revolução de 1817. Mas este apresentou a ordem de prisão ao seu amigo e pediu para que tomasse suas precauções. Acrescentou: — “Dê no que der, não o prenderei, porque sei que não cometeu crime”. E efetivamente não tentou fazer a prisão. Entretanto, o Coronel Cavalcante, ou porque se julgasse inocente, ou por altivez de caráter, ou ainda para evitar a responsabilidade do amigo, foi se entregar, e sofreu os rigores daqueles horríveis cárceres, onde foram martirizados os patriotas de 1817.

Óleo sobre tela de Eduardo de Martino, que retrata a troca de tiros que culminaram na primeira passagem de navios brasileiros por Passo de Tonelero em 1851, onde os argentinos construíram fortificações que bloqueavam a navegação no Rio Paraná. Domínio público, Revista de História da Biblioteca Nacional – Fonte – https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/brasil-monarquico/8979-quest%C3%B5es-platinas-a%C3%A7%C3%B5es-militares-no-segundo-imp%C3%A9rio

Nas guerras contra as repúblicas do Rio da Prata numerosos filhos do Rio Grande do Norte acudiram em defesa da pátria.

Quatro meses depois de declarada a Guerra do Paraguai, embarcou em Macau um contingente de mais de sessenta voluntários, dos quais trinta e três eram do Assú, além de onze de Campo Grande, que haviam seguido diretamente para a Capital. É conhecido o fato de haver o Dr. Olinto José Meira de Vasconcelos, então Presidente da Província (1863 – 1866), dirigido a palavra na capital, a grupos que se achavam em manifestações em frente ao quartel, apelando para o patriotismo de todos e pedindo dar um passo à frente aqueles que quisessem seguir para a guerra. Mais de 400 voluntários moveram-se para a frente. De todos os pontos da Província seguiram Voluntários da Pátria, sendo também crescido o número de recrutados. E o papel que na guerra desempenharam os rio-grandenses-do-norte ajudou ao merecido renome adquirido pela infantaria do norte.

O brasileiro Symphonio dos Santos uniformizado para combater na Guerra do paraguai – Fonte – http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=92142

Na proclamação da República, na revolução federalista do sul, na revolta da armada, em Canudos, os filhos do Rio Grande do Norte cumpriram sempre seu dever.

Sob as ordens de Plácido de Castro, nas lutas acreanas, encontraram-se também inúmeros rio-grandenses-do-norte, destemidos e audazes pioneiros da colonização e conquista das mais recuadas fronteiras da Pátria, os quais tangidos do torrão natal por atormentadoras secas, forneceram, com seus irmãos de outros Estados, por igual vítimas da calamidade, os elementos vitais, talvez os únicos possíveis para o colossal empreendimento da colonização da Amazônia.

De fato, outras populações vivendo certamente sob um clima mais doce e uma natureza mais amena, não estariam, como os nossos sertanejos, tão habituados a receber e aguentar o choque e a destruição das mortíferas forças da natureza amazônica, com a mesma resignação, com o mesmo esforço e coragem com que encaram e recebem as furiosas cargas das nossas devastadoras secas.

Na execução da recente lei do serviço militar (1916) raro é o sorteado dessa terra que deixa de acudir ao chamado: talvez nenhum listado da União apresente menor número de insubmissos.

Eis aqui, a largos traços, a vida militar do Rio Grande do Norte: lutas constantes durante dois séculos, sempre aceso o sentimento de patriotismo, de abnegação, de sofrimento. E por isso mesmo, apesar de uma bissecular educação guerreira, os filhos do Rio Grande do Norte têm acentuadamente o caráter pacífico: o banditismo, o caudilhismo, e as lutas por fanatismo nunca encontraram apoio entre eles.

Para conhecerem a biografia de Felipe Guerra é só acessar esse link – https://fatosdefelipeguerra.blogspot.com/2019/10/felipe-guerra_31.html 

A EMA, SÍMBOLO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO NORTE COLONIAL

Olavo de Medeiros Filho – Historiador.

Revista O Potiguar, n° 07, agosto/setembro de 1998, página 11.

A ema povoa os campos e cerrados do Brasil. A referida ave apresenta o dorso de coloração bruno-cinzenta, mais clara na parte inferior, possuindo três dedos nos pés. Vivendo em bandos de cerca de 50 animais, a ema alimenta-se de frutas e grãos, além de devorar animais de pequeno porte. Cabe aos machos a tarefa de chocar os ovos. Chegando a atingir 1.30m de altura, a ema alcança alta velocidade, ao correr.

A ema que habita o nordeste brasileiro, pertence à espécie Rhea amencana (Linn)edelajá dava notícia o cientista alemão Jorge Marcgrave, em sua História Natural do Brasil, editada no ano de 1648. Os indígenas tupis davam à referida ave, a denomição de Nhanduguaçu.

Ainda, segundo Marcgrave, a ema “é encontrada em grande número nos campos da Capitania de Sergipe e Rio Grande, mas não em Pernambuco; sua carne é boa para se comer…”

No ano de 1638, encontrando-se o Nordeste sob o domínio holandês, o conde João Maurício de Nassau criou para cada província do Brasil holândes, o seu respectivo brasão. Segundo descrição feita por Gaspar Barléu (história dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil), a província do Rio Grande “tinha por armas um rio, em cujas margens pisava uma ema, por ser ali maior a abundância dessa ave”. Os referidos brasões foram gravados por escultores holandeses, em sinetes de prata.

Existe também uma outra descrição do brasão concedido ao Rio Grande: “Em campo azul com a ema ao natural, à margem de um rio de prata e a estrela mural. Mote: Velociter”.

Infelizmente, os bandos de ema, outrora tão encontrados na paisagem norte-rio-grandense, desapareceram deixando apenas a sua vivaz memória junto à tradição popular…

Quando será que tomaremos a encontrar a presença das Rhea Americanas, vagando pelos nossos sertões?….

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EXCLUSIVO – QUEM FOI O BRASILEIRO QUE MORREU NO “DIA D” PILOTANDO UM CAÇA MUSTANG?  

Filho de Pai Inglês e de Mãe Pernambucana – Nasceu e Viveu em Recife até o Começo da Segunda Guerra – De Sargento da RAF, ele Chegou a Oficial de Voo de Um P-51 Mustang – Participou do Dia D, Foi Abatido Por Fogo Amigo e Morreu na Praia de Sword – Anos Depois o seu Irmão era Oficial da FAB e Morreu no Acidente de uma B-17 em Recife.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Em Recife existe o tradicional bairro de Santo Amaro, um lugar com muita história. Na primeira metade do século XVII existiram salinas e uma casa grande que pertenceu ao major Luís do Rego Barros. Na época das invasões holandesas, esse setor foi um importante ponto estratégico para os estrangeiros e para a resistência dos pernambucanos, que fustigavam os invasores com ações de guerrilha.

Com a derrocada holandesa em 1654, essa parte do Recife, então um dos extremos da cidade, foi sendo ocupada lentamente. Era tão desabitado e longe de tudo, que em 1814 foi ali construído o Cemitério dos Ingleses. Nessa época a presença desses estrangeiros crescia bastante na capital pernambucana, devido principalmente ao desenvolvimento de empresas de capital inglês na região. Em meio a essa situação surgiu um problema. Em razão da maioria dos ingleses não serem protestantes e devido aos dogmas sociais da época , os que faleciam no Recife não podiam ser enterrados nos mesmos locais onde se sepultavam católicos. Aí o jeito foi pedir ao Presidente da Província um terreno exclusivo para isso. No governo de Francisco do Rego Barros, o Conde da Boa Vista, em 1851 foi inaugurado o Cemitério de Santo Amaro.

Igreja de Santo Amaro das Salina, de 1681, um dos marcos mais antigos do bairro de Santo Amaro, em Recife – Fonte – Google Street View.

Na década de 1910, na região de Santo Amaro, mais precisamente na Rua do Capitão Lima, ou Rua do Lima, número 244[1], vivia o comendador José Abílio de Barros. De família tradicional da cidade de Palmares, sul do estado. Abílio era filho de Manoel d’Albuquerque Barros Cavalcanti (que faleceu em 15-07-1888) e de Ursulina de Castro Barreto Barros (falecimento em 15-05-1903).

Abílio era um respeitado comerciante de açúcar em Recife, com ponto comercial na prestigiada Rua do Apolo, 69[2], mas faleceu aos 52 anos, no ano de 1902[3]. Sua esposa, Belmira Duarte Barros, também nascida na mesma região de Palmares, ficou cuidando cuidando de treze filhos, sendo sete mulheres[4].

Mulher de fibra e coragem, Dona Belmira organizou a vida de sua família, cuidou rigidamente da educação dos filhos, formou os estudiosos, botou para trabalhar os menos letrados e foi casando as filhas com “gente de posição”. Apesar de tudo nessa mulher apontar para uma pessoa rígida, típica de uma época de valores duros e bem definidos socialmente, Dona Belmira concedia a suas filhas uma certa liberdade para o desenvolvimento intelectual e cultural.

Cândida Duarte Barros foi uma das redatoras do jornal feminino O Lyrio, uma revista literária exclusivamente feminina, organizada em 1902, que defendia a educação das mulheres, a igualdade de direitos e circulou por três anos[5]. Sua irmã mais nova Corina Duarte Barros, também conhecida como Cora, possuía uma boa voz e participava de corais em Recife. Em 6 de setembro de 1912 ela fez parte de uma apresentação no respeitado Teatro Santa Isabel, na obra A Ressureição de Cristo. O espetáculo foi em comemoração da Independência do Brasil e contou com a presença do general Dantas Barreto, governador do estado[6].

Outra situação diferenciada em relação às filhas de Dona Belmira, foi que essa matrona não tinha problemas que elas casassem com estrangeiros, tendo três delas se unido a ingleses que moravam em Recife.

Maria Amélia Duarte Barros casou com Archibald Otto Charles Fell, engenheiro da empresa Western Telegraphic Company, falecido em 1911 no Rio[7]. Já a beletrista Cândida Duarte Barros foi casada com James Chalmers, engenheiro da Estrada de Ferro Leopoldina e falecido no Rio de Janeiro em novembro de 1943[8]. Finalmente havia a cantora Corina Duarte Barros, que se uniu a Harold Ernest Barnard.

Documentação de Harold Ernest Barnard.

Harold desembarcou em Recife no dia 18 de julho de 1913, para trabalhar como contador na agência recifense do Bank of London and South America Limited, um banco britânico que operou na América do Sul entre 1923 e 1971. Ele tinha nessa época 24 anos de idade, havia nascido em 18 de julho de 1889, na cidade de Leyton, a leste de Londres, sendo filho de Ebenezer Alfred Barnard e de Sarah Phoebe Fisher Barnard. Em setembro de 1916 encontramos a notícia de que Harold Barnard e Corina Duarte Barros haviam proclamado que em breve casariam[9].

Segundo os documentos que consegui sobre a família de Harold Barnard e Corina, temos a informação que ele foi transferido para a agência do Bank of London em Maceió, Alagoas, onde morou na Avenida Tomás Espínola, 128, no bairro do Farol, e continuou nesse cargo durante anos.

Documentação original de Harold Barnard, grande fonte de informações.

O casal teve quatro filhos – Stanley Harry Barnard (nascido em 1921, ou 1922), Percy Alan Barnard (10/09/1918), Gladys Mary Barnard (25/07/1923) e Iris May Barnard (15/11/1927). Não sei se Harold, sua esposa e filhos passaram a morar juntos em Maceió, mas tudo indica que pelo menos o primogênito Stanley continuou em Recife, com uma forte ligação com a Rua do Lima, o bairro de Santo Amaro e talvez morando com a sua avó, que faleceu em 1936 e cujo cortejo fúnebre saiu de sua casa[10]. Percebi na minha pesquisa que a relação desse jovem com a família materna era tão forte que na época de sua morte os jornais recifenses dão seu nome como sendo “Stanley Barros Barnard”[11].

Não encontrei indicações que o jovem Stanley tenha ido estudar, ou morou algum tempo na Inglaterra. É provável que com a presença do pai e de dois tios ingleses por perto, esse jovem teve uma relação muito forte com a cultura anglo-saxônica, enquanto convivia intensamente com a família de sua mãe e absolvia muito da cultura pernambucana.

Podemos dizer que o jovem Stanley Barnard era uma positiva mistura de gim tônica e bolo de rolo!

Lutando em um Mustang da RAF

Eu não descobri quando o recifense da Rua do Lima seguiu para a terra de Sua Majestade, mas temos a informação que entre a primavera e o verão de 1941, ele se alistou na Royal Air Force, a famosa RAF, ou Força Aérea Britânica. Tinha apenas 19 anos.[12]

Na foto vemos um posto de observação do Royal Observer Corps (ROC) durante a Batalha da Inglaterra, na Segunda Guerra Mundial. Na foto vemos a direita, usando um telefone de peito, P.C. “Lofty” Austin, um ex-representante comercial e ex-jogador de futebol do Tottenham Hotspur, que relata aos seus superiores as informações coletadas por seu colega C.E. “Smudge” Smith, que trabalha em um instrumento de plotagem em Kings Langley, Hertfordshire, Inglaterra – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Dowding_system#/media/File:The_Royal_Observer_Corps,_1939-1945._CH8215.jpg

É provável que a entrada de Stanley na arma aérea da Grã-Bretanha tenha muito haver com a enxurrada de notícias que foram veiculadas em todo mundo, igualmente nos principais jornais recifenses, sobre o desenrolar da mítica Batalha da Inglaterra.

Essa importante série de combates aéreos entre as forças aéreas da Grã-Bretanha e da Alemanha, pôs fim às retumbantes vitórias relâmpagos dos nazistas na Europa e marcou uma fase decisiva no curso da Segunda Guerra Mundial. A Luftwaffe, a força aérea alemã, apoiada pela arma aérea da Itália, realizou uma intensa campanha para destruir a RAF com muitos bombardeios para acabar com a produção de aeronaves britânicas, acabar com a infraestrutura dos aeroportos e ataques a várias cidades, entre elas Coventry e Londres, para assim permitir que o exército alemão invadisse a Grã-Bretanha. Outro objetivo desses ataques foi o de aterrorizar a população britânica e pressionar seu governo a fazer a paz com a Alemanha de Hitler. Mas os britânicos não se dobraram e a RAF foi a ponta de lança dessa resistência.

Barnard ascendeu ao posto de sargento, tinha o número 1387812 e continuava seu caminho dentro da RAF para tornar-se oficial de voo. Enquanto ele aprendia muitas tarefas para participar da guerra, no leste da Inglaterra, perto da cidade de Cambridge, na base da RAF de Snailwell, foi criado no dia 15 de junho de 1942 o Esquadrão 168, uma unidade de combate aéreo especializada em missões de reconhecimento e ações no território inimigo.

Símbolo do Esquadrão 168.

Não demorou e esse grupo estava realizando ataques contra navios e alvos costeiros, mas principalmente trabalhando em estreita cooperação com o Exército Britânico. Os pilotos dessa unidade vieram dos países da Comunidade Britânica, de países ocupados pelos nazistas e, porque não, um descendente de ingleses nascido no Nordeste do Brasil.

Mustang da RAF sobre a França ocupada.

Em 20 de fevereiro de 1943 o pernambucano Stanley Barnard foi promovido a oficial aviador, tendo sido designado para o Esquadrão 168, que nessa época atuava na base de Odiham, em Hampshire, sudeste da Inglaterra[13]. Ali a unidade utilizava aeronaves de caça Mustang Mk. Ia, uma variação do famoso avião de combate norte-americano P-51 Mustang, projetado pela North American Aviation. Várias dessas aeronaves foram entregues aos britânicos por um sistema de empréstimos financeiros. A base de Odiham também era a casa do Esquadrão 268, também de reconhecimento.

O Mustang Mk. Ia era uma aeronave excepcional[14]. Possuía um motor Allison V 1710-87, com 1.250 HP de potência, 12 cilindros em V, proporcionando um excelente desempenho que podia levar essa versátil aeronave a uma velocidade máxima de quase 600 quilômetros por hora. E a alta velocidade era importante para as missões de reconhecimento estratégico, principalmente no quesito de sobrevivência dos pilotos[15].

Câmeras oblíquas K24.

Os Mustangs de reconhecimento da RAF eram equipados com uma ou duas modernas câmeras oblíquas K24, montadas no encosto de cabeça do piloto e possuíam e uma ótima capacidade de fotografar alvos estratégicos. As missões de reconhecimento fotográfico de baixo nível e de curto alcance eram chamadas de “Popular”. Já as câmeras eram controladas pelo piloto e sua operação era automática.

Rasante de um Mustang de reconhecimento da RAF.

As aeronaves de reconhecimento da RAF voaram centenas de perigosas missões, muitas delas em nível ultra baixo de altitude, para garantir que as defesas inimigas não tivessem segredos. Qualquer coisa de importância que eles viam em suas missões eram fotografados e registrados em documentos escritos, como a localização e detalhes de tanques, artilharia, sítios antiaéreos, estacionamentos de veículos, concentração de tropas e quaisquer novas construções.

No destaque vemos dois, dos quatro, potentes canhões Hispano Suiza de 20 milímetros de um Mustang do Esquadrão 168 da RAF.

Além disso, essas aeronaves estavam equipadas com uma câmera acoplada às suas armas, no caso quatro potentes canhões Hispano Suiza de 20 milímetros, dois em cada asa. Após suas missões de reconhecimento fotográfico, os Mustangs da RAF podiam aproveitar e disparar contra alvos de oportunidade, tais como locomotivas, barcaças, veículos militares de transporte motorizado e aeronaves inimigas no solo. Em 1944 esses esquadrões se tornaram especialistas neste tipo de operações[16].

Missões Difíceis

Essas missões de reconhecimento eram extremamente perigosas e seus esquadrões possuíam um alto índice de baixas.

Mustang do Esquadrão 168 sobre o Canal da Mancha.

Sabemos que pouco menos de um mês antes da chegada de Stanley Barnard, o Esquadrão 168 sofreu duas baixas em um único dia. Às uma e cinco da tarde de 23 de janeiro de 1943, dois Mustangs decolaram de Odiham para sortidas na região de Pas de Calais, na França. As aeronaves eram pilotadas pelo australiano Bernard Wilson Kearny e o neozelandês Ian G. Grant e foram derrubados por artilharia antiaérea na área de St. Etienne-au-Mont, às margens do Canal da Mancha. Uma testemunha informou que no começo da tarde as duas aeronaves voavam a baixa altitude e foram atingidas e cairam, com o piloto australiano sendo mortalmente ferido e Grant sobrevivendo, mas foi pego pelos alemães e ficou até o final da guerra no campo de prisioneiros Stalag Luft III, na Polônia[17].

O Esquadrão 168 começou a fazer parte da 2ª Força Aérea Tática (2nd Tactical Air Force), Em julho de 1943, sendo essa força a contribuição da RAF para a frota aérea maciça que estava sendo preparada para os desembarques do Dia D[18].

As missões foram se sucedendo, bem como as perdas.

Imagem de um FW-190 do mesmo esquadrão que abateu o oficial Bainard em 25 de julho de 1943.

As cinco da tarde do dia 25 de julho de 1943 os oficiais A. J. F. Young e William A. Bainard decolaram com seus Mustangs para a região de Ouistreham, na Normandia. Quando começavam uma corrida para fotografar seus alvos surgiram dois caças alemães Focke-Wulf FW-190 A5, do III/JG 2 (III Staffeln / Jagdgeschwader 2), que atacaram os aviões da RAF. Estes buscaram fugir em direção ao Canal da Mancha, mas a 12 milhas a noroeste de La Havre e a cerca de 450 metros de altitude, o oberleutnant Jakob Schmidt acertou o motor do Mustang de Bainard. O caça inglês caiu no mar, mas o piloto sobreviveu e foi salvo por um hidroavião no outro dia. O oficial Young conseguiu retornar para a base do Esquadrão 168 na Inglaterra[19]

Mustang Mk I da RAF, com as listras utilizadas para visualização no Dia D.

Após o incidente envolvendo os oficiais Young e Bainard e durante praticamente todo um ano, as aeronaves de reconhecimento do Esquadrão 168 continuaram suas missões em preparação ao Dia D. Durante esse período oito aeronaves e sete pilotos do esquadrão foram perdidos em operações de combates. Outros mais morreriam no futuro.

Não sabemos maiores detalhes dessas missões, escalas de voos, ou possíveis combates que o pernambucano Stanley Henry Barnard tenha participado durante a sua permanência de um ano e quatro meses no Esquadrão 168. Mas sabemos que ele estava lá e era um piloto de combate!

Mustang do Esquadrão 168.

Os pilotos de reconhecimento da RAF não sabiam a data exata do Dia D, mas percebiam que o momento se aproximava conforme aumentavam exponencialmente o número de voos de reconhecimento, através dos pedidos feitos pelos comandantes do Exército e da Marinha.

Um outro indício que a hora estava chegando foi quando as asas dos Mustangs foram pintadas com largas listras preto e branco. Era uma tentativa para que os nervosos atiradores antiaéreos Aliados não os confundissem com aeronaves inimigas. A maioria dos aviões que participaram do Dia D receberam essas marcações. Logo o Esquadrão 168 foi transferido para a bade de Gatwick, no0s arredores de Londres.

Foto colorida de Mustangs da RAF.

O Dia D

Baseado em escritos deixados por outros aviadores dos esquadrões de reconhecimento da RAF, provavelmente no começo da noite de 5 de junho de 1944 todos os pilotos do Esquadrão 168 foram chamados para uma reunião, ou “briefing”, com a presença do S/L (Squadron Leader) Percy Walter Mason, então comandante geral do esquadrão[20].

S/L (Squadron Leader) Percy Walter Mason, comandante geral do Esquadrão 168.

Mason informou aos pilotos que a invasão começaria à meia-noite, com as primeiras ondas de forças aerotransportadas passando sobre suas cabeças e que a invasão marítima desembarcaria nas praias francesas nas primeiras luzes da manhã seguinte. Provavelmente Stanley Barnard e todo o pessoal ficou confinado na base, em meio a uma noite atípica, com o constante ronco dos motores dos aviões de transporte sobre suas cabeças, que seguiam a caminho da França e levavam milhares de paraquedistas.

Paraquedistas americanos prontos para combater no Dia D.

Talvez o pernambucano nem tenha pregado o olho em meio a tanta tensão da espera. E se dormiu foi por pouco tempo, pois o café da manhã começou a ser servido às três e meia. Depois foram detalhadas novas informações das missões e as áreas a serem fotografadas, ou onde as aeronaves deveriam se posicionar para apoiar os disparos dos grandes canhões navais. No Esquadrão 268 os pilotos decolaram de sua base em Gatwick antes das cinco da manhã. No Esquadrão 168 não deve ter sido muito diferente e uma das primeiras aeronaves a decolar foi o Mustang com o código AM225, pilotado por Stanley Barnard.

Não demorou muito para o pernambucano sobrevoar o Canal da Mancha naquele memorável 6 de junho de 1944, uma terça-feira. Ele visualizava um dos maiores eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, com milhares de barcos atravessando as águas frias do canal e outros milhares de aviões roncando em direção à França.

Desembarque em Sword Beach, fotografado por aviões de reconhecimento da RAF.

Inicialmente alguns Mustangs do Esquadrão 168[21] e de outros grupos foram encarregados de conduzir reconhecimento tático sobre a chamada Sword Beach, ou Praia da Espada, trazendo de volta algumas das primeiras e melhores imagens da invasão. Outras aeronaves de reconhecimento foram designadas para o apoio visual aos tiros navais realizados pela frota britânica, que bombardearam alvos alemães e facilitaram o trabalho das forças de desembarque.

Mapa com a disposição, direção de tiro, localização dos alvos e nome das naves britânicas que atacaram Sword Beach em 6 de junho de 1944.

Abaixo do Mustang de Stanley Bernard, flutuando nas águas frias do canal, estavam os navios britânicos da “Force S”. Pontualmente às cinco da manhã de 6 de junho, o veterano encouraçado Warspite, que participou da Primeira Guerra, foi o primeiro navio deste grupo a disparar seus poderosos canhões de 380 mm contra a costa francesa. O alvo foi a bateria alemã em Villerville, para apoiar os desembarques da 3ª Divisão britânica em Sword Beach. Outro veterano da Primeira Guerra que estava lá foi o encouraçado Ramillies, que mirou na bateria alemã em Benerville-sur-Mer[22]. Além desses faziam parte da “Force S” os cruzadores Mauritius, Arethusa, Frobisher, Dragon, Danae e Scylla, o monitor Roberts e o navio cargueiro Largs, que servia como comando daquela força naval. Além dessas naves, estavam nesse setor treze destróieres.

Veterano encouraçado Warspite, que combateu na Primeira Guerra, disparando seus poderosos canhões de 380 mm contra a bateria alemã de Villerville.

Certamente foi inigualável o “espetáculo” visto do alto por Stanley Barnard no cockpit do seu Mustang. Poderosos disparos dos navios de guerra contra a costa, o revide das baterias alemãs, o avanço das naves de desembarque e a chegada dos soldados nas praias. O problema foi que o local onde ele e seu avião se encontravam começou a se tornar perigoso.

Apesar das listras pretas e brancas pintadas nas aeronaves, existem relatos que a maioria dos pilotos dos Mustangs experimentou intenso, preciso e pesado disparos de artilharia antiaérea sobre a área de invasão, grande parte dela vinda dos navios britânicos abaixo deles. Logo começaram as perdas.

O oficial Eric Woodward, piloto do Mustang FD495, do Esquadrão 268, não retornou de uma missão de observação de tiros navais sobre a área de invasão e pode ter sido uma vítima do fogo antiaéreo naval dos Aliados.

Outro que infelizmente teve o mesmo destino foi Stanley Barnard.

Esquecimento em Lion-Sur-Mer

Em algum momento por volta das seis da manhã o seu Mustang AM225 foi atingido pelos nervosos artilheiros antiaéreos de algumas das naves inglesas. Consta que ele voava sobre a área de Ouistreharn, quase no final de Sword Beach.

Não existem detalhes de quem o atingiu e do que houve com o pernambucano Barnard. Mas existe a informação que sua aeronave se estatelou na área da comuna litorânea de Lion-Sur-Mer. Pode parecer estranho essa falta de informações, mas quando sabemos o que ocorreu naquele setor de Sword, é possível compreender a razão dessa carência de dados.

Vista atual de Lion-Sur-Mer.

Naquele 6 de junho, a comuna de Lion-Sur-Mer foi atacada por elementos do 41º Comando Real dos Fuzileiros Navais (No.41 Royal Marine Command), composto por 450 homens, liderados pelo tenente-coronel Thomas Malcolm Gray. Os Fuzileiros Navais sofreram pesadas baixas na praia, pois os soldados alemães do Widerstandnest 21, ou Ninho de Resistência 21, só entregaram sua posição depois de uma sangrenta luta. Consta que os britânicos perderam mais de 140 homens naquele dia.

Se no Dia D pouca gente se ligou com a destruição de um Mustang de reconhecimento que caiu na área de Lion-Sur-Mer, nos dias seguintes ao desembarque foi que ninguém se importou mesmo, pois logo o avanço britânico em Lion-sur-Mer foi bloqueado por elementos da 21ª Divisão Panzer, cujos efetivos chegaram à costa por volta das sete da noite. Na manhã seguinte, quarta-feira, 7 de junho, aviões alemães bombardearam o posto de comando do 41º Comando Real dos Fuzileiros Navais, ferindo o comandante Grey. No meio da tarde os Fuzileiros Navais finalmente alcançaram seu objetivo e se juntaram a outras forças britânicas[23].

Tropas britânicas em Sword Beach.

Para aumentar o esquecimento sobre o que aconteceu ao pernambucano e seu Mustang, a catorze quilômetros da praia de Sword fica a cidade francesa de Caen, que na época tinha uns 40.000 habitantes. O plano original era que os britânicos deveriam conquistar essa cidade no mesmo dia dos desembarques, mas só faltaram combinar isso com os alemães, pois estes resistiram assustadoramente e Caen só se rendeu um mês depois. A coisa toda foi tão complicada, que essa cidade foi praticamente destruída pelos bombardeios aéreos Aliados e sofreu danos igualmente extensos devido aos combates terrestres. Houve milhares de mortos entre a população civil francesa e após a batalha pouco restou da cidade original, tanto que a sua reconstrução só foi completada em 1962.

Os restos do pernambucano Stanley Harry Barnard e do seu Mustang ficaram enterrados nas areias de Lion-Sur-Mer e foram esquecidos. Certamente se esse avião e o que sobrou do seu piloto tivessem sido encontrados, os franceses daquela região há muito tempo teriam construído algum tipo de monumento em sua homenagem, pois esses marcos de memória relativos ao Dia D existem ali em grande quantidade[24].

Barnard é homenageado no painel número 204, no Runnymed Air Forces Memorial, em Englefield Green, perto de Egham, oeste de Londres. Ali estão os nomes de 20.456 membros das forças de aviação da Grã-Bretanha mortos na Segunda Guerra[25].

A notícia da morte de Stanley Barnard chegou aos seus familiares no Recife através do Foreign Office, ou Ministério das Relações Exteriores da Grã-Bretanha. Houve algumas publicações em jornais recifenses e cariocas sobre sua morte e só.

Mas logo outro membro do clã Barnard estava envergando o uniforme de uma outra força aérea.

Percy Barnard, Tenente da FAB

Não sabemos nem quando e como Percy Alan Barnard, irmão de Stanley, entrou na Força Aérea Brasileira, mas em setembro de 1945 ele possuía a patente de segundo tenente e foi classificado por necessidade do serviço para cursar a Escola de Especialistas da Aeronáutica, que nessa época funcionava no Galeão, Rio de Janeiro[26]. Três anos depois ele foi promovido a primeiro tenente[27] e a formatura da sua turma aconteceu em dezembro daquele mesmo ano[28].

O oficial da FAB Percy Alan Barnard.

Em 1951 encontrei a notícia que o primeiro tenente Percy Barnard estava lotado na Base Aérea de Fortaleza e havia sido transferido para o Centro de Treinamento de Quadrimotores, mais conhecido como CTQ, uma unidade criada pelo Ministro Armando Trompowsky em 24 de janeiro daquele ano, através da Portaria 39-G-2, destinada a treinar os membros da FAB para utilização dos famosos Boeing B-17 Flying Fortress, ou Fortaleza Voadora. Estas aeronaves ficaram lotadas no Recife, sede da 2ª Força Aérea, mais especificamente no Campo do Ibura, onde funcionou inicialmente o CTQ, que no futuro se transformaria no 6º Grupo de Aviação (6º GAV) [29].

SB-17G de busca e salvamento. Reparem que este avião transportava um pequeno barco que podia ser lançado ao mar no socorro aos náufragos.

Mas afinal, como o Brasil utilizava os míticos quadrimotores B-17 na década de 1950?

Com o final da Segunda Guerra a grande maioria dessas aeronaves foram desativadas e muitas se transformaram em sucatas. Outras foram convertidas para uso em reconhecimento aéreo, transporte de carga e busca e salvamento (SAR – Search and Rescue).

Segundo o site http://darozhistoriamilitar.blogspot.com.br/2009/11/missao-pernambuco-b-17-fortaleza.html , as B-17 destinadas a FAB foram utilizadas para o serviço de busca e salvamento, adaptadas a partir de aeronaves originalmente construídas do modelo G, com suas denominações alteradas nos Estados Unidos para SB-17G[30].

O primeiro tenente Percy Barnard seguia nas suas funções no CTQ, quando no dia 23 de julho de 1952, uma quarta-feira, ele se apresentou para um voo de treinamento a bordo do B-17 matrícula 5579. Um avião recém chegado dos Estados Unidos, que ainda possuía marcações da USAF (United States Air Force).

Pilotando a máquina estava o major Maurício José de Assis Jatahy, comandante do CTQ, tendo como seu copiloto o capitão Francisco Eduardo Muller Botelho. A bordo estavam os primeiros tenentes Santos Flávio de Sião, Gil Saint Yves Sérvola. Acompanhavam os oficiais o primeiro sargento Amadeu Luiz Avighi, os segundos sargentos Dilson Lopes Guimarães e Jair Coimbra, além do soldado Francisco Bezerra. Consta que o tenente Percy Barnard estava a bordo do quadrimotor para servir de tradutor junto ao capitão Robert Earl Metzer, da USAF, oficial aviador norte-americano que trabalhava no treinamento e adaptação dos brasileiros ao B-17.

O treinamento tinha como objetivo o lançamento de alguns tripulantes do quadrimotor de paraquedas, que flutuariam até o mar. Na sequência seria feito o lançamento do bote salva-vidas, que demonstraria de forma prática como aquela aeronave poderia realizar um salvamento marítimo. O exercício seria executado na área entre as praias do Pina e Boa Viagem, à vista de todos que estavam no litoral de Recife. Acompanhava a grande aeronave um monomotor North American T-6 com dois integrantes. O piloto era o primeiro tenente Ailton Lopes de Oliveira, tendo a companhia do terceiro sargento José Inácio dos Santos, que fotografava toda a operação. 

Pedaço da asa do B-17, ainda com marcação da USAF.

Entre dez e meia e onze da manhã as aeronaves se posicionaram. Primeiramente saltaram da B-17 o tenente Sérvola e o soldado Francisco Bezerra, que abriram seus paraquedas sem alterações e chegaram tranquilos na água. Na sequência o bote salva-vidas foi lançado, mas bateu na asa do T-6, que estava muito perto do quadrimotor. O pequeno avião perdeu a estabilidade e foi para cima do B-17. Com o choque o T-6 perdeu suas asas e foi direto para a água. Foi visto que um dos seus tripulantes se atirou no mar sem paraquedas, mas nenhum deles se salvou.

Já na B-17 o major Maurício José de Assis Jatahy tentou durante dois ou três minutos manter o controle do avião. Consta que ele sobrevoou um trecho da praia do Pina cheio de casebres e conhecido como “Areal”. Após passar rasante por esse local ele levou o B-17 por cerca de 400 metros mar adentro, quando perdeu o aileron e fez uma curva acentuada para a direita, chocando-se violentamente com a água e afundando. Logo vários pescadores partiram com suas jangadas para tentar ajudar. Foram resgatados com vida o capitão Francisco Eduardo Muller Botelho e o primeiro sargento Amadeu Luiz Avighi. Todos os outros morreram.

Um dos trens de aterrissagem do B-17 acidentado em Recife.

Quem testemunhou todo o drama do ar foi o piloto Rubens Solha, do quadro de instrutores do Aeroclube de Pernambuco, que sobrevoava a região em um monomotor “Fairchild” de treinamento avançado. Solha foi inclusive chamado para testemunhar no inquérito aberto pela FAB para investigar o acidente[31].

Segundo o livro Base Aérea do Recife – Primórdios e envolvimento na 2ª Guerra Mundial, do falecido escritor Fernando Hippólyto da Costa (INCAER, Rio de Janeiro, 1999), informa na página 375 que a causa do acidente foi uma imprudência do primeiro tenente Ailton Lopes de Oliveira, piloto do T-6, que não manteve a altitude e distância que lhe havia sido ordenado para o exercício.

Percy Barnard era casado com Lêda de Amorim Barnard e sua filha se chamava Lorna May Barnard.

Final

A partir desse ponto da história temos poucas informações sobre o que aconteceu com a família Barnard. Apenas que Harold Barnard faleceu em 1977, mas nessa época ele já era viúvo.

Do pouco que consegui sobre Stanley e Percy Barnard, só posso concluir que ambos adoravam o que faziam.

NOTAS


[1] Nesse endereço atualmente se encontra a sede da TV e Rádio Jornal do Comércio e do SBT em Recife.

[2] Ver Jornal de Recife, 23 de outubro de 1897, sábado, P. 2.

[3] Sobre o falecimento de José Abílio de Barros ver Diário de Pernambuco, Recife, 28 de novembro de 1902, sexta-feira, P. 2. Sobre um ano do falecimento ver Jornal de Recife, 27 de novembro de 1903, sexta-feira, P. 3.

[4] FILHOS DO CASAL JOSÉ ABÍLIO DE BARROS E BELMIRA DUARTE DE BARROS: 

F.1-         Júlia Duarte de Barros.

F.2-         Theodomiro Duarte de Barros – Industrial em São Paulo e, aparentemente em 1944 é chefe de uma firma chamada Cunha & Companhia, talvez em Recife. A notícia de jornal em 1944 o apresenta como Theodomiro Martins de Barros, mas deve ser um provável erro.

F.3-         Cândida Duarte de Barros – Nome de casada era Cândida Barros Chalmers, esposa do engenheiro James Chalmers, funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina.

F.4-         Afonso Duarte de Barros – Funcionário do Ministério da Justiça.

F.5-         Armando Duarte de Barros – Comerciante em Recife e em 1944 é apresentado como Gerente do Clube Náutico Capibaribe.

F.6-         Oscar Duarte de Barros – Agente Fiscal de Consumo em Recife.

F.7-         Maria Amélia Duarte de Barros – Casada com Archibald Otto Charles Fell, engenheiro em Recife e seu nome de casada era Maria Amélia de Barros Fell.

F.8-         Belmira Duarte de Barros.

F.9-         Adalgisa Duarte de Barros.

F.10-       Alice Duarte de Barros – Viúva em 1936 do Dr. Merval Gomes Veras, advogado em Teresina-PI. Seu nome de casada era Alice de Barros Veras.

F.11-       Josete Duarte de Barros.

F.12-       Corina Duarte de Barros – Comentada no texto.

F.13-       Eugenio Duarte de Barros.

F.14-    Clarice Duarte de Barros – Esposa do advogado Arnaldo Lopes, cujo nome de casada era Clarice de Barros Lopes.

[5] Além de Cândida, se destacaram em O Lyrio, Amélia de Freitas Bevilaqua, Ana Nogueira Batista e Maria Augusta Meira de Vasconcelos Freire. Ver SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, Pág. 54.

[6] Ver Jornal Pequeno, Recife, 6 de setembro de 1911, sexta-feira, P. 1.

[7] Sobre Archibald Fell ver Jornal Pequeno, Recife, 13 de novembro de 1911, segunda-feira, P. 2.

[8] Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1943, sábado, P. 7.

[9] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 28 de novembro de 1902, sexta-feira, P. 2.

[10] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 05 de março de 1936, quinta-feira, P. 4.

[11] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 13 de junho de 1944, terça-feira, P. 3.

[12] Sobre a entrada de Stanley H. Barnard na RAF ver http://www.rafcommands.com/forum/showthread.php?13124-F-O-Stanley-Harry-BARNARD-(144187)

[13] Sobre a história dessa base aérea ver https://www.airshowspresent.com/raf-odiham—from-biplanes-to-helicopters.html e https://www.valka.cz/168-perut-RAF-1942-1945-t189682

[14] Ver http://enfernormand.free.fr/mustangp51.htm

[15] Ver http://mustangp51.e-monsite.com/pages/en-operation-in-operation.html

[16] Ver https://erenow.net/ww/mustang-thoroughbred-stallion-of-the-air/8.php

[17] Sobre esse caso ver https://aviationmuseumwa.org.au/afcraaf-roll/kearney-bernard-joseph-405387/

[18] Nesse período a RAF utilizava cinco esquadrões de Mustang Mk 1/1A, três esquadrões de Supermarine Spitfire PR XI e um esquadrão de bimotores De Haviland Mosquito.

[19] Sobre esse combate aéreo ver – 2nd Tactical Air Force, Volume 1, Spartan to Normandy – June 1943 to June 1944. SHORES, C. & CHRIS, T. Ian Allan Printing Ltd, Hersham, Surrey, England, 2004, Pág. 24.

https://www.aircrewremembered.com/KrackerDatabase/?s=200&q=SCHMIDThttp://www.venturapublications.com/news/publish/iiijg2.shtmlhttps://www.wikiwand.com/en/Focke-Wulf_Fw_190_operational_history#Media/File:Fw190A-3_JG2_Gr.Ko.Hahn42_kl96.jpg  Aparentemente os oficiais Bainard e Young conseguiram reagir a Schmidt e seu colega, pois Schmidt foi ferido em um acidente nesse mesmo 25 de julho de 1943, quando capotou seu FW-190 durante uma tentativa de pouso forçado perto de Lisieux. Aparentemente esse Mustang foi o único avião que Schmidt abateu durante a guerra.

[20] Sobre o comandante Mason, ver https://www.iwm.org.uk/collections/item/object/205449398

[21] Após a invasão do Dia D e a morte de Stanley Barnard, o Esquadrão 168 se mudou para a França e realizou missões de reconhecimento tático avançando nesse país e depois na Holanda. Em outubro de 1944, os Mustangs foram substituídos por caças Typhoons e iniciaram missões de reconhecimento armadas sobre a própria Alemanha, além de fornecerem escolta aos bombardeios diurnos. O Esquadrão 168 voou em torno de 3.200 missões e até derrubaram quatro aeronaves da Luftwaffe. Mas o esquadrão perdeu dezenove pilotos em combate, dois em circunstâncias de não combate, e três que se tornaram prisioneiros de guerra. Por causa de suas altas perdas, o esquadrão foi dissolvido oficialmente em 26 de fevereiro de 1945, tornando-se a única unidade de caças Typhoon a ser desativada antes do final da guerra.

[22] Ainda naquele dia intenso, três perigosos e ágeis barcos torpedeiros alemães partiram de Le Havre para atacar os navios da “Force S”. Mesmo levando disparos dos navios ingleses, os barcos alemães conseguiram lançar quinze torpedos de longa distância e escapar. Dois torpedos passaram entre os encouraçados Warspite e o Ramillies e depois atingiram o destroier norueguês Svenner, que afundou.

[23] Sobre os combates em Lion-Sur-Mer ver https://www.normandie44lamemoire.com/2014/10/30/lion-sur-mer-2/ ,

[24] Sobre esses monumentos ver https://www.normandie44lamemoire.com/2014/10/30/lion-sur-mer-2/

[25] Sobre esse memorial ver https://www.cwgc.org/visit-us/find-cemeteries-memorials/cemetery-details/109600/runnymede-memorial/ e https://en.wikipedia.org/wiki/Air_Forces_Memorial

[26] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1945, sábado, P. 5.

[27] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1948, sábado, P. 6.

[28] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1949, quarta-feira, P. 9.

[29] Ver Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1951, sábado, P. 11.

[30] No início da década de 1950, a Força Aérea Brasileira precisava formar uma unidade de busca e salvamento marítimo e outras especialidades. Para isso foram adquiridas 13 desses modelos especiais de B-17 e utilizadas entre 1951 e 1968.

[31] Sobre essa tragédia de 1952 ver Diário de Pernambuco, Recife, 24 de julho de 1952, quinta-feira, Ps. 1 e 2.

LIVRO – A GUERRA TOTAL DE CANUDOS SOB UM OLHAR PERNAMBUCANO

O BLOG TOK DE HISTÓRIA RESGATA PARA SEUS LEITORES UMA INTERESSANTE REPORTAGEM DE 1997, ONDE O ESCRITOR FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO TROUXE MUITAS INFORMAÇÕES SOBRE A GUERRA DE CANUDOS, COM BASE EM EXTENSA UMA PESQUISA PARA UM LIVRO QUE FOI LANÇADO NAQUELE ANO.

Autor – Anco Márcio Tenório Vieira – Publicado orginalmente na Revista Suplemento Cultural, outubro/novembro de 1997, págs. 4 a 9.

Rostand Medeiros e Frederico Pernambucano de Mello.

Sendo reconhecidamente o maior especialista brasileiro em cangaço, com uma obra que se tornou leitura obrigatória para todos os que se dedicam ao tema, o historiador Frederico Pernambucano de Mello publica, aos 50 anos de idade, o seu sexto livro: Que foi a Guerra Total de Canudos (Editora Stahli). Se há surpresa para os que o tinham somente como um pesquisador do banditismo no Nordeste, maior ela será ao constatar que este livro de 317 páginas não é apenas mais um, entre centenas, a tratar de Canudos. Nele, vamos encontrar uma revisão crítica das muitas verdades difundidas e aceitas ainda hoje sobre o que foi a Guerra de Canudos, bem como dados até então inexplorados pelos especialistas da área. Um deles, a participação, em campo de batalha, dos soldados do Norte e do Nordeste, em particular, os de Pernambuco. 0 livro, que chegará às livrarias até meados de novembro, também reabilita alguns personagens e textos que estavam esquecidos pelos pesquisadores: a figura de Tereza Jardelina de Alencar (única mulher a compartilhar r do círculo íntimo do Conselheiro); o lado humano e romântico do general comandante da 4“ expedição, Artur Oscar; a obra do general e ex-governador de Pernambuco, Dantas Barreto; o livro de cabeceira do Conselheiro: A missão abreviada, do padre José Manuel Gonçalves Couto (obra muito aludida, mas até hoje pouco analisada); entre tantos outros detalhes esquecidos nas dezenas de relatos, documentos, atas e ofícios produzidos durante a Guerra. Apesar dos inúmeros convites que vem recebendo para participar de eventos alusivos ao centenário de Canudos, no Brasil e no exterior — artigos para jornais, palestras em universidades, conferências para os vários comandos militares do Exército, seminário em Colônia (Alemanha) — Frederico Pernambucano nos concedeu esta entrevista, realizada na sua sala de trabalho, no antigo sobrado que pertenceu a Delmiro Gouveia — localizado no tradicional bairro de Apipucos, no Recife — hoje, sede do Instituto de Documentação, da Fundação Joaquim Nabuco, onde exerce o cargo de Superintendente. Em sua sala, rodeado de retratos, quadros (entre eles, um Vicente do Rêgo Monteiro), peças e documentos que nos remetem ao ciclo do cangaço nordestino, ele discorreu sobre o que foi a Guerra Total de Canudos.

O livro Guerra Total de Canudos, de Frederico Pernambucano de Mello.

Suplemento Cultural — Poucos temas da nossa história republicana foram tão estudados como o da Guerra de Canudos. São centenas de ensaios, artigos e livros que tentam explicar o que de fato teria motivado a mais sangrenta guerra civil brasileira. Ante tudo o que já foi dito e publicado sobre o assunto, por que o senhor, que é um especialista em cangaço, decidiu escrever também sobre este tema?

Frederico Pernambucano de Mello — Em primeiro lugar, porque para ser, ou pretender ser, especialista em cangaço é preciso ter uma grande a finidade com o quadro geral da história regional do Nordeste. E aí entra, como ponto de prioridade, a história das vastidões rurais do Nordeste, sobretudo a história da região sertaneja. O conflito de Canudos, na minha visão, se coloca como o episódio máximo desse grande abismo gerador de exotismo em nossa história, que é o do desenvolvimento paralelo de culturas, de sociedades, e de homens litorâneo e sertanejo. A sociedade no litoral se desenvolvendo de maneira lenta (porém, constante), pelo aporte de inovações, de dados novos que chegavam pelos navios, vindas da Europa, e a partir de um determinado momento, pelos Estados Unidos, enquanto que o Sertão, desde a metade do século XVII, quando se inicia propriamente a sua colonização, com homens que estavam indo do litoral, mais propriamente do Recife, outros contingentes que vinham da Bahia, da Casa da Torre, muito rapidamente entraram em decadência. No caso do Recife, o exército de desempregados que resultou da vitória sobre os holandeses, em 1654. E como nós sabemos, esse exército de desempregados foi recompensado pela Coroa Portuguesa.

Tropas federais que participaram da Guerra de Canudos.

Não com dinheiro, que ela não tinha, mas com datações de sesmarias, no Agreste e no Sertão (na Mata os engenhos já tinham sua titulação de propriedade). Esses homens penetram o Sertão juntamente com baianos e com paulistas, da Vila de São Paulo (que era, na época, miserável, e não dava riqueza nenhuma, a não ser a preação de índios), e se fixam no Piauí e nas zonas mais a Oeste do Estado da Paraíba. Esses três contingentes, caracterizando uma forma de colonização dura, cruenta e que muito cedo, repito, entra em decadência, fazendo com que os valores sertanejos, que eram os valores do quinhentismo e do seiscentismo da cultura portuguesa, ficassem mumificados ali e jazessem intocáveis até eu diria, metade do século atual. Isso na língua, nos costumes, na moral — inclusive sexual — na condução patriarcal da família, na religiosidade, em todos os aspectos que caracterizam a cultura. Canudos é, portanto, o paroxismo dessas fricções que surgem entre duas culturas que não se encontravam, que não se reconheciam. O traço mais saliente disso nos é dado pelo tenente-coronel Dantas Barreto que, durante à noite, em Canudos, no meio da sua tropa, ele, na barraca, ficava ouvindo a conversa dos soldados — não por intuito negativo, mas para saber o que a sua tropa pensava — e ouvia estarrecido um soldado dizer para o outro: “quando eu voltar ao Brasil, vou fazer isso ou aquilo”.

Monumento de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos LUCIANO ANDRADE/

Tão estranhos eram a olhos litorâneos o homem do Sertão, com as suas barbas longas, sua roupa, hábitos e costumes originais, sua maneira de se conduzir. De passagem, lembro Kari Jaspers, no seu tratado de psiquiatria: “O estado de consciência do homem primitivo é alguma coisa inteiramente diversa da doença mental.” Nós não tínhamos, nos homens de Canudos, doença mental, mas um estado de consciência primitivo, mantido nas características primitivas da mumificação sertaneja. Fanatismo, banditismo, misticismo: todas essas peculiaridades do Nordeste que o fazem atraente para turistas, estudiosos, pesquisadores etc., e brotam dessa espécie de Fenda de Santo André, que é a dicotomia Litoral/Sertão.

Suplemento Cultural — Os Sertões, de Euclides da Cunha, tornou-se, ao longo dos últimos 95 anos, a obra de referência e a versão mais “balizada” sobre Canudos. A imagem que temos de Canudos é, de uma certa forma, a que foi fixada por Euclides da Cunha em sua obra. A nossa pergunta é: quais são, no seu entender, os principais equívocos cometidos por Euclides ao escrever sobre Canudos e que os seus contemporâneos (como Dantas Barreto, por exemplo) não cometeram, apesar de muitas dessas testemunhas oculares da Guerra terem tidos, nos últimos cem anos, suas obras relegadas?

Frederico Pernambucano de Mello — A impressão que eu sinto quando releio O5 Sertões (para minha felicidade eu tenho até uma primeira edição, de 1902, que Euclides não reconhecia muito como oficial, porque precisou corrigir lá uns advérbios, aperfeiçoamentos obsessivos de estilista que ele foi) é de quem, ao final, sai de uma peça de teatro, com muita grandeza, nobreza, profundidade, tragédia, que se assiste com a tentação de estar ajoelhado diante daquele drama.

Mas é evidente que as noções geográficas e físicas de Teodoro Sampaio, a ciência de Nina Rodrigues, os grandes inspiradores de Euclides no plano científico, especialmente os autores estrangeiros (que talvez ele não conhecesse tão bem para citá-los com a desenvoltura com que cita); toda essa ciência, realmente, está muito envelhecida. Ademais, Euclides ficou apenas cerca de dez dias no chamado teatro de operações. Ficou pouco tempo. Não se sentiu bem, não esteve à vontade, e a observação direta dele é pouca. Ele, então, teve que se valer de autores que já tinham produzido obra – especialmente Última expedição a Canudos, de Dantas Barreto – e comete erros, por conta disso, não só por não ter estado muito tempo no teatro de operações, mas por depender também de outros autores que estudaram o tema, e por ter fontes jornalísticas nem sempre confiáveis, vários deslizes ligados aos fatos da Guerra. Por conta dessas limitações na percepção — Afrânio Peixoto há muito já disse que Os Sertões não é o livro do que ficou nas vistas de Euclides, mas é o livro do impacto da Guerra na alma de Euclides, nas concepções que ele tinha — é um livro, de certo modo, personalíssimo, revelador do interior de Euclides. É o livro também da sua decepção com a República. Ele chega, no cenário dos combates, republicano, inflamado pela pregação jacobina, militarista, e sai de Canudos decepcionado com aquela perspectiva que se esboçava para uma nova ditadura militar no País. No entanto, o grande problema de Euclides foi a sua incapacidade de compreender a figura sertaneja do Conselheiro, de encadeá-lo num processo que vem desde quando começam as missões no Sertão, com capuchinhos, com oratorianos, com homens — no plano pessoal — de moral ilibada, que combatiam a igreja colonial brasileira (repleta de padres amancebados, funcionários públicos pagos pela Coroa, dentro da instituição do padroado real).

Antônio Conselheiro

E à margem dessa igreja colonial, que era o oficialismo do tempo, surgem vocações de missionários, como o capuchinho frei Vitale da Frecarolo, na passagem do século XVIII para o século XIX, que morre jovem, em 1820. O frei é uma figura mística que fascina o Sertão, pregando o maravilhoso, aquilo que fazia com que o sertanejo deixasse de ver tudo o que havia de limitado à sua volta — uma natureza maninha, uma dificuldade material imensa — para se empolgar com as realidades. as visões bíblicas, as passagens perenais que o misticismo podia proporcionar. Esse homem, como o quê, é seguido, a partir de 1853, por uma espécie de segundo segmento, representado pelo padre oratoriano José Antônio Pereira Ibiapina, que junta ao misticismo de frei Vitale o obreirismo. Porém, o obreirismo dele talvez fosse até maior. Há registros de repreensões dadas pelo padre Ibiapina aos seus beatos, porque eles estavam julgando que a sua missão estava feita apenas na oração. Ele dizia: “não”. Tem que ser na obra, na intervenção sobre a natureza, na caridade, na ajuda material ao próximo e nas obras pias, lembremo-nos que Antônio Conselheiro bebe dessas fontes. Não só o maravilhoso de frei Vitale como do obreirismo do padre Ibiapina, e junta a tudo isso um terceiro segmento estrangeiro – muito divulgado no Brasil, através de uma obra terrível, cheirando a enxofre, que era o livro Missão abreviada, do padre, também oratoriano de Goa, na índia, Manuel José Gonçalves Couto, que poderia ser resumida numa frase: “o mundo está podre, mas tão podre que já não há salvação”.

Ruínas em Canudos!

Euclides da Cunha não compreende Antônio Conselheiro; criado, moldado nesse ambiente secular, e parte para interpretá-lo de maneira fácil, a partir de questões psiquiátricas. De uma psiquiatria, ã época, muito presunçosa — lembremos que é desse período que data Lombroso, Erico Ferri e outros proponentes de esquemas simplórios, reducionistas de interpretação da conduta humana. E ele, então, com Riva, Maudsley pretende esclarecer tanto os casos individuais de patologia mental, quanto os casos coletivos. Nisso, de fato o seu livro hoje não tem mais o que nos dizer. Foi minha preocupação, nesse meu novo estudo, mostrar o Conselheiro, antes de tudo, como sertanejo e, como tal, um homem situado no seu chão, no seu tempo, e em volta dele, desse tempo, os homens que no plano místico, como frei Vitale, padre Ibiapina e Manuel Gonçalves Couto, lideram o misticismo maravilhoso, o ombreirismo impenitente e as escatologias de tragédias que são dadas pela Missão Abreviada.

Soldados do Exército Brasileiro ao final da Guerra.

Suplemento Cultural — Seguindo ainda essa trilha da religiosidade, gostaria que o senhor nos dissesse o que aqueles vinte e cinco m il sertanejos encontraram na figura do Conselheiro que os levaram a abandonar tudo e segui-lo, e também como se manifestava a autoridade religiosa do Conselheiro no dia-a-dia do Arraial?

Frederico Pernambucano de Mello — Antônio Conselheiro, cearense de Quixeramobim, pardo, bastardo, mas nascido numa família aguerrida, que era a família Maciel (em luta permanente contra a família Araújo), nasce com essas duas grandes desvantagens sociais. Ele é um homem que sai colecionando derrotas na sua vida, mas se recupera, para a produção de um conjunto de obras úteis para a sociedade em que vivia, através da pregação religiosa de frei Vitale, já morto, do testemunho vivo, ao seu tempo, do padre Ibiapina, parecendo até que o acesso a Missão abreviada só vem no momento seguinte — porque houve uma fase nele que era francamente de auxílio ao povo, à terra, sobretudo aos menos favorecidos. Curiosamente o Conselheiro nunca se disse um Deus. Pelo contrário, ele mandava que se levantasse da sua presença quem se ajoelhava e tentava beijar-lhe os pés ou as mãos, dizendo claramente: levante-se. Deus é outra pessoa. E quando perguntavam quem ele era, ele dizia: eu sou apenas um peregrino em busca dos mal-aventurados. Ele era um homem de definições absolutamente claras, ilibado nos seus costumes, pobre, que não amealhava valores, o que entrava por um bolso saía pelo outro para os pobres. Essa característica se choca, na visão do sertanejo, com o que era visto na igreja colonial brasileira: o padre com família constituída, às vezes morando na casa principal do vilarejo, apresentando publicamente a mulher, os filhos, entregues à simonia mais desenvolta, dominando o processo político (lembremos que, à época, as eleições eram feitas nas igrejas).

Canudos. Foto Flávio de Barros – http://www.passeiweb.com

Enfim, essa Igreja um tanto desmoralizada sofre um impacto com esses missionários que se apresentavam com a moral ilibada, desinteressados de valores e preocupados com o lado místico. É assim Conselheiro, e ninguém o incomoda enquanto assim foi; o peregrino que construía estradas — algumas das quais ainda existentes no Sertão -, capelas, igrejas, cemitérios, açudes, barreiros, inspirando a formação de ordens sacras. Só em 1892, quando ele se insurge, já no período republicano, contra a cobrança de impostos e, perseguido pela polícia e alvejado por alguns soldados da Bahia, foge com os seus seguidores para fundar o Arraial do Belo Monte de Canudos, que ficava arredado das zonas povoadas do Sertão, só então é que começa a se formar aceleradamente, alguém diria que até dentro de um processo de patologia social — não sei —, em quatro anos, o que viria a ser a segunda cidade da Bahia, a maior e a mais populosa depois de Salvador. Ela surge do nada, onde apenas existia um povoado de cinquenta choupanas em decadência, para a pujança de seis mil e quinhentos casebres, dos quais mil e seiscentas casas boas, com telhas e algumas até com piso de taco. Com uma economia pujante, feita à base de cultura de subsistência, onde estava presente o ofício da confecção do tecido, da rapadura, e da produção dos couros de bode e carneiro para exportação. Nesses quatro anos é que o Conselheiro se transforma num ímã social, porque ele cria um tipo de ajuntamento pio onde não era admitida a presença de delegado, promotor, juiz, prostitutas, bares abertos. alcoólatras.

Antônio Bruega, ex-combatente da Guerra de Canudos, clicado por Audálio Dantas em 1964.

Cria uma sociedade moralmente limpa, com um certo coletivismo dos meios de produção, afinado com o que ele tinha aprendido com a cultura indígena das tabas do Sertão. E mais: a capacidade que ele teve ao se tornar uma figura aguerrida em relação ao meio circundante, atraindo para si negros libertos de 1888, os decepcionados com a República, os caboclos do Sertão, os vários remanescentes de tribos indígenas – como os dos rodellas, kiriri, e várias outras que se associaram a ele no Arraial -, e ao manter o burgo de Canudos à margem da politicagem aldeã. Canudos é a soma desses fatores sociais e econômicos aos fatores físicos. Localizado num trecho do Vaza Barris, que era uma grande zona de drenagem das chuvas daquela zona sertaneja, com a possibilidade de se ter uma boa cultura de legumes, de cereais, Canudos era, como disseram várias testemunhas, uma vasta criação de boi, de bode, de cabra, etc. Todos esses fatores conspiraram para que o Conselheiro mostrasse o rumo de uma colonização diferente daquela que estava sendo levada a efeito pela Coroa, na fase Imperial, e pela República, nos anos mais recentes; um caminho novo de vida que, no entanto, paradoxalmente, era um caminho de passado, era um caminho de volta aos bons velhos tempos da vida arcaica, dos primórdios da colonização.

Canudos na década de 1940.

Suplemento Cultural — Há alguma relação entre a moral religiosa apregoada pelo Conselheiro, aceita sem nenhum questionamento pelos jagunços, e a forma como estes se comportavam frente ao inimigo? Lembro aqui, por exemplo, o fato (revelado em seu livro) dos jagunços só reagirem às investidas das tropas do Exército quando eram atacados.

Frederico Pernambucano de Mello — Canudos tem um período curto de vida. Evidente que nós estamos falando de um ajuntamento urbano que rapidamente cresce em complexidade. Muito cedo, uma liderança política baiana, sertaneja, como era o barão de Jeremoabo, começa a escrever artigos para a imprensa da Bahia, se queixar das lideranças políticas do Estado, de que não havia mais fazenda que pudesse ter a sua vida normal, uma vez que já não havia mais mão-de-obra, toda ela drenada pelo Conselheiro para o seu projeto de teocracia no Belo Monte. Era uma teocracia, efetivamente, o que havia no Belo Monte. Porém, nota-se claramente que o Conselheiro já não conseguia mais administrá-la. Primeiro, porque estava envelhecendo, achacado por doenças; segundo, porque já não era possível administrar sem delegar poderes, sem especializar tarefas e atribuí-las a pessoas de sua confiança. É quando se nota, que ele, fiel a uma velha tendência ainda dos tempos de peregrino (desde quando funda o Belo Monte que ele perde esse caráter de peregrino, ele fica sedentário, e ao optar por ser sedentário, assume uma postura de rei espanhol da antiguidade, aparecendo pouco ao seu povo, valorizando as suas aparições, que era sublinhada por foguetório imenso, emoções, desmaios, dobres de sinos etc.), se faz cercar das pessoas de sua confiança, os seus conterrâneos, os chamados cearenses.

Como se encontrava na década de 1940 o canhão inglês Withworth de 32 libras, a famosa “Matadeira”, utilizado pelo Exército em Canudos e destruído corajosamente pelos seguidores de Antônio Conselheiro.

Quando digo os chamados, é porque aí estavam os que nasceram no Ceará, como ele, mas também os tangidos, em geral, pela seca. Na época, para a imprensa do Centro-Sul, em particular a carioca, cearense era uma espécie de sinônimo de nordestino vítima da seca. Então ele cria, no seu projeto teocrático, uma estrutura de poder que repousava nos seus iguais, nos sofridos como ele, nos mal-aventurados como ele, e esses homens eram sempre os cearenses. Sempre ele tem um cearense como lugar-tenente. Cearense era a sua inspiração divina, o padre Ibiapina. Cearense foi a única mulher, Teresa Jardelina de Alencar, a mais bonita e a mais vaidosa do Arraial, conhecida como a “Pimpona” que – sustenta Dantas Barreto, tendo ouvido de jagunços lá em Canudos — privava não apenas do círculo íntimo do Conselheiro, mas também com quem o Conselheiro conversava, sofrendo dela alguma influência. E isso é estranho, principalmente quando sabemos que diante de qualquer mulher que aparecesse, a atitude do Conselheiro era sempre de permanecer de vistas baixas. Mas a autoridade do Conselheiro, em primeiro lugar, provinha da pureza da sua vida privada e da sua pregação, do desprendimento em face dos valores. Ele era um pregador insinuante, uma palavra persuasiva, um grande autor de catequese, um grande evangelizador, possuía todos os atributos que se espera de um místico para levar a sua pregação a um ponto de sucesso.

Oficiais do Exército Brasileiro e uma moradora de Canudos ferida em uma padiola.

A sua autoridade era uma autoridade indiscutível, teocrática, absoluta, lembrando a dos aiatolás mais recentes no Irã, cujas ordens ninguém discutia. E ele teve ocasião de manifestar essa sua autoridade de maneira drástica. Vou dar apenas aqui um registro. Quando ele chega a Canudos, encontra lá uma família grande de pequenos comerciantes: os Mota Coelho. Mas ele trazia consigo um cearense de sua confiança, uma grande vocação de comerciante, que era Antônio Vilanova. Por convite do Conselheiro, Vilanova começa a bancar o comércio no Arraial do Belo Monte. Muito cedo se choca com as pretensões mercantis dos Mota Coelho. Conselheiro, que sabia que o seu projeto de poder dependia da sua rede de cearenses, manda lentamente exterminar a família Mota Coelho. Só não morrem os que fogem, um dos quais assenta praça na polícia da Bahia, e dá entrevista para os jornais explicando toda essa tragédia que se abatera sobre sua família. Então, era uma autoridade incontrastável, que preenchia todos os vazios, mas era uma autoridade que começava a se esgotar diante do volume que o Arraial estava tomando. Então, grande parte do poder já tinha resvalado para o célebre João Abade, que era uma espécie de Ministro da Guerra; para o seu primeiro general, o pernambucano Pajeú, natural da Baixa Verde, que foi o seu grande cabo-de-guerra; e as funções de Casa da Moeda e Juiz de Paz atribuídas ao citado Antônio Vilanova.

Ruínas em Canudos.

Não obstante, o seu poder ainda era tão grande que, apesar de alguns dos seus guerreiros terem pretendido adotar uma estratégia ofensiva, quando viram que o Exército estava tropeçando nas próprias pernas, nada disso foi feito. Não porque faltasse ao sertanejo a intuição militar de fazê-lo. Pelo contrário. Essa intuição militar sobrava no sertanejo. O próprio exército admite isso. Acontece que o Conselheiro era radical na pregação de que o papel militar deles era de defender o Belo Monte. Não fazia parte da estratégia do Conselheiro derrotar o Exército. Fazia parte defender o mundo sertanejo que ele compreendia de uma concepção litorânea que lhe era completamente estranha. E em Canudos, o que há de mais dramático é que os litorâneos, em nenhum momento, compreenderam os sertanejos, e os sertanejos não tinham como compreender os litorâneos.

Foto de uma nota do jornal natalense A República de 1897, sobre o desenrolar da Guerra.

Suplemento Cultural — Como se dava a organização militar dos jagunços — suas táticas de guerra, seus armamentos etc. — para que eles pudessem enfrentar o Exército e saírem vitoriosos em três das batalhas? Ainda dentro da pergunta, quais foram as principais falhas táticas cometidas pelas expedições militares?

Frederico Pernambucano de Mello — O conhecimento militar dos jagunços claramente não eram alguma coisa que exultasse de uma verdade revelada. Quando acontece a 1ª Expedição Militar, do tenente Pires Ferreira, os jagunços, que se chocam com essa expedição no povoado baiano de Uauá, perdem uma quantidade enorme de adeptos. É verdade que conseguem colocar a tropa do Exército para correr, mas enquanto os militares perdem cerca de dez homens, os jagunços perdem cerca de cem ou mais. Eles ainda não conheciam bem o sistema de combate. A partir da 2ª Expedição, de Febrônio de Brito, eles começam a receber, de permeio com a população, cangaceiros famosos que vinham de Pernambuco, da Bahia, e começam também a aprender alguma coisa observando os próprios militares. O que é preciso lembrar, ao contrário do que dizia Euclides da Cunha, é que a 1ª Expedição Militar, a de 1896, já era equipada a fuzis Mannlicher, modelo 1888, e não a Comblain, que era um fuzil mais antiquado e não era uma arma de repetição. Os jagunços começam a aproveitar essas armas e aprendem a fazer uso delas maravilhosamente. É curioso assinalar que, apesar, de desde a 2ª Expedição, os jagunços disporem de fuzis do Exército, eles não abandonam os seus bacamartes.

Outro grupo de militares.

O bacamarte é uma arma que provocava um tiro fragmentário, com pregos, pelouros de chumbo, pequenas pedras de hematita, muito abundantes no local, enfim, que era usado muitas vezes para fazer uma varredura, ou manter uma posição. Os jagunços tinham uma consciência – que pode ser coisa arcaica, mas que na verdade é uma caraterística até de guerra moderna — de que o seu bacamarte tinha um uso militar. Eles combinam maravilhosamente o uso do bacamarte com o uso dos fuzis recolhidos do Exército. Atuavam numa ordem tática admirável. Com formação diluída, piquetes de 12 a 20 homens, manobrando em formação e desfazendo aquela formação rapidamente. Os que seriam comandantes de companhia, na linguagem militar, que eles chamavam de cabos de turma, usavam apitos para dar as vozes de comando. E nas distâncias maiores, em que o apito não era audível, eles usavam o bacamarte, com tiro de pólvora seca, para formar e desmanchar as linhas de atiradores, promover o ataque de flanco, promover a retaguarda, e fustigar, enfim, a tropa militar de todas as maneiras. Os remanescentes das 2ª e 3ª Expedições trouxeram para o litoral uma crônica sobre o modo de combater dos jagunços que era aterrorizadora, porque eles diziam o seguinte: nos comboios, os jagunços atiravam logo nos cavalos. Aí imobilizavam os comboios e, facilmente, não tinham mais pressa, a partir desse momento, de destruir os homens que seguiam juntos com aqueles comboios.

Jornal dos Estados Unidos comentando a vitória das forças legais em Canudos.

Chegavam ao requinte de retirar a farda dos soldados mortos, vestirem-se com essas fardas, penetrarem nas linhas do Exército, e disseminarem o pânico completo, atirando quase à queima roupa nos soldados que supunham estar sendo alvejados por seus próprios companheiros. Enfim, usavam de todas as velhacarias. Há um correspondente do Jornal do Brasil, na época, que diz: os jagunços se vestiam de folhas, traziam chocalhos ao pescoço, para mais insidiosamente penetrarem nas linhas dos soldados e poderem matá-los. E o que mais se vê da crônica militar é a consideração de que o jagunço era invisível. De fato, há aí um campo extraordinariamente rico. O jagunço, já em 1897 (sintonizado com uma virtude militar que só seria teorizada em termos finais, e colocada em prática, sistematicamente, em 1904, pelos japoneses, na Guerra Russo-Japonesa, mais especificamente na Campanha da Mandchuria), com a sua mescla azul desbotada e a sua túnica de algodãozinho, muitas vezes fiado nas rocas e nos fundos do próprio Arraial, ofereciam cores que, segundo os manuais militares, desaparecem da vista humana entre cento e cinquenta e duzentos e trinta metros. Enquanto isso, o nosso Exército, fazendo uso do azul ferrete, nas túnicas, e do vermelho escarlate, nas calças, se fazia visível ao jagunço em distâncias superiores aos setecentos e até compatíveis com os mil metros de afastamento do atirador.

Jornal “A Republica”, 10 de dezembro de 1897 – A tropa de potiguares do 34º Bataslhão que seguiu para Canudos retornou para Natal no vapor “Una”, o mesmo que os transportou oito meses antes. Às onze e meia da manhã, em torno de 4.000 pessoas aguardavam o desembarque, depois seguiram para a Matriz para uma missa, havendo uma quase interminável seção de discursos no quartel e finalmente os veteranos para as suas casas. Os jornais comentam, com uma sutileza típica da impressa na época, que muitos soldados voltaram “doentes e inutilizáveis”. No outro dia a tropa e a população da cidade inauguraram o monumento aos mortos da guerra no cemitério do Alecrim.

O Exército de homens do Norte e do Nordeste, e também de sulistas, era, basicamente, de litorâneos, salvo pelo Batalhão de Polícia da Bahia, composto por barranqueiros do São Francisco, homens que Euclides considerava ajagunçados. Esses eram diferentes, eram, inclusive, eficientes na guerra contra os homens de Conselheiro. Mas os litorâneos, ao chegarem ao Sertão, não viam como se apropriar das riquezas sertanejas, que não são à flor da pele. Quem chega na caatinga pensa que vai morrer de fome em pouco tempo, mas o catingueiro sabe que tem por si o mel de abelha, que lhe permite o suprimento calórico fabuloso, as várias formas alimentares, inclusive de fauna e de flora, que a olhos especializados se oferecem com facilidade. O Exército não enxergava nada disso, não conseguia tirar daquela terra as riquezas necessárias, e padece de fome grave. Houve um grande descuido, da parte dos comandantes militares, em todas as expedições, quanto ao aprovisionamento de munição, aquilo que hoje se chama de logística. No entanto, é imperdoável a ausência dessa logística, porque ela já era muito antiga, como imperativa a qualquer força expedicionária que vá combater território inóspito. Mas no Exército Brasileiro dessa época prevalecia a ideia de que toda força expedicionária teria que se valer dos recursos locais, e assim era, mesmo quando se tivesse a certeza de que esses recursos locais eram inexistentes.

Na edição de “A Republica” de 17 de julho, estão listados os nomes dos mortos, seus beneficiários e suas patentes. Ao ler a lista, salta aos olhos um fato interessante; dos 41 integrantes do 34º Batalhão de Infantaria listados pelo jornal como mortos no conflito, não há um único oficial. No total são 3 sargentos, 9 cabos, 3 anspeçadas (patente atualmente extinta), 3 músicos (corneteiros) e 23 soldados.

Outro problema do Exército era a excessiva liberdade que os chefes militares tinham de polemizar entre si. A Guerra de Canudos foi extremamente permeada por um número enorme de correspondentes de guerra dos jornais do Centro-Sul e da Bahia. Havia um deles, capitão honorário do Exército, José Benício, do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, que era com uma pena numa mão e, com a outra, um mosquetão. Como historiador, eu só encontro a Guerra do Vietnã, recentemente, para comparar com o que foi a presença íntima da imprensa nas linhas de fogo, mandando informes de Canudos a cada instante. Havia linha telegráfica de Monte Santo transmitindo esses artigos para Queimadas, de Queimadas para Salvador, e de Salvador para o Rio de Janeiro, e os chefes militares ficavam, através dos seus artigos, polemizando pela imprensa. Um caso dramático foi o do chefe supremo da 4ª Expedição, o general Artur Oscar, que manda dizer à imprensa do Rio que o inimigo era, no mínimo, de quatro mil combatentes, e o coronel Carlos Teles, comandante da 4ª Brigada de Infantaria, que escreve para o mesmo jornal, em desmentido, e afirma que os jagunços não passavam de seiscentos homens. Isso causa um impacto enorme na imprensa. Eram dois chefes militares, um subordinado ao outro, mas que abrem polêmica pela imprensa no momento mesmo em que os combates se feriam. A outro caso, o do tenente Marcos Pradel de Azambuja que responde ao tenente-coronel José de Siqueira Menezes, desmentindo, até de maneira dura, um artigo que tinha sido mandado por este. Era o tempo do chamado bacharel soldado. A Escola Militar tinha um curriculum enciclopédico, onde se discutiam os temas da Revolução Francesa, e ninguém discutia a matéria técnica conexa à arte militar. Então, essa ausência de ensinamento de técnicas militares vem também dificultar a aplicação das ordens de comando no campo de batalha.

Foi em Canudos que o gênio de Euclides da Cunha criou a frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. E é mesmo!

Suplemento Cultural — Existe um episódio em Canudos, praticamente desconhecido, que é o da participação dos soldados pernambucanos na Guerra de Canudos. Ressalta-se muito a participação dos gaúchos na 4’ Expedição, organizada pelo general Artur Oscar, mas se tem esquecido dos soldados nortistas e nordestinos. O senhor, de maneira pioneira, estuda essas participações. Comente um pouco a presença desses soldados no campo de batalha.

Frederico Pernambucano de Mello — Em cem anos de bibliografia sobre Canudos, o que se passou para o público foi a ideia de que, além de um conflito entre litoral e Sertão, teria havido, também, em Canudos, um conflito entre Norte e Sul. O Norte, termo genérico que englobava na época o Nordeste, representado pelos jagunços, e o Sul, representado pelo Exército. Então, eu pude verificar – e é um dos pontos de pioneirismo do estudo que estou apresentando – que as tropas que intervieram na fase mais penosa da Guerra, que é a fase inicial, a partir de 25 de junho, com os primeiros combates a 27 e 28 também de junho, são tropas do Norte e do Nordeste. Do Recife — que foi uma cidade particularmente lançada em todos os episódios da Guerra — parte, escolhido pelo presidente da República, o comandante supremo, o general Artur Oscar, para o teatro de operações, à frente de uma força expedicionária portentosa, tão logo corre a notícia, mais ou menos a 7 de março, da morte do coronel Moreira César (ele morrera a 3 de março, mas a notícia só chega à imprensa em tomo do dia 7).

Vista do mirante de Canudos, a estátua de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos, na Bahia LUCIANO ANDRADE/AE

O general era um carioca, agauchado pelo longo período de permanência na fronteira Sul do Brasil, e um herói de verdes anos da Guerra do Paraguai. Mas esse homem morava no Recife com a sua esposa, dona Maria Helena, figura marcante em todos os passos da sua vida. Artur Oscar parte do Recife com o 14º Batalhão de Infantaria, que era de Pernambuco, e o 27º Batalhão de Infantaria, da Paraíba. Poucos dias depois, recebe o aporte do 34° Batalhão, do Rio Grande do Norte; do 35º, do Piauí; do 2º, do Ceará; do 5°, do Maranhão; e do 40°, do Pará. Em seguida, o 26°, de Sergipe, e o 33°, de Alagoas. Ao lado de três batalhões gaúchos, é essa tropa, inicialmente, quase que esmagadoramente predominante de nordestinos e nortistas, que intervém na Guerra. Por Recife passam quantidades imensas de tropas. A cidade se alegra, se engalana, se prepara para receber maravilhosamente, ao longo dos meses de março e abril, essas tropas que passavam, e se converte no que, um pouco naquela ideia que foi desenvolvida com a Segunda Guerra Mundial, em relação a Natal, no Rio Grande do Norte, em uma espécie de trampolim da vitória da Guerra. No dia 15 de março sai daqui o comandante supremo, no mesmo navio, com tropas do Norte e do Nordeste. O engano de se supor que o exército era, todo ele, de sulistas, é que, na fase final da Guerra, muitos meses depois de iniciada a ação, as tropas vão sendo substituídas pelas tropas frescas vindas do Sul, e acontece que, em um determinado momento, já a seis dias do final da Guerra, esses sulistas estavam em bom contingente. Alguns, até chegados recentemente. E ao chegarem, com eles segue o fotógrafo Flávio de Barros, contratado pelo ministro da guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, para fazer a cobertura dos lances finais da Guerra. Assim, a iconografia da Guerra remete o historiador apressado à crença de que o Exército era todo aquele contingente de homens de bombachas, tomando chimarrão, com chinelas à beduíno, quando, na verdade, o grande suporte da Guerra é de nordestinos e de nortistas.

Suplemento Cultural — Estou lembrando que no livro No calor da hora; a Guerra de Canudos nos jornais, de Walnice Nogueira Galvão (1977), a pesquisa para nos jornais da Bahia. A autora deixa sem levantamento, assim, tudo o que também se publicara nos outros periódicos do Norte e Nordeste. Eu pergunto se há algo de exclusivo que os jornais pernambucanos registraram e que passou desapercebido pelos outros jornais da época.

Frederico Pernambucano de Mello – Há uma riqueza muito grande nos jornais pernambucanos por uma circunstância afortunada. É bem verdade que tanto os jornais do Sul quanto os de Pernambuco reproduzem bastante matérias transcritas dos jornais da* Bahia. Eram feridos que desciam para Salvador e eram ouvidos pelos repórteres, ou eram ouvidos em Queimadas, na ponta da linha do trem, ou até mesmo em Monte Santo. Mas no Recife aconteceu uma coisa curiosa. Dada a união romântica, muito bonita, do general Artur Oscar com a sua esposa, dona Maria Helena, ele se permitia mandar telegramas quase diários para ela, relatando cada passo dos combates. Consequentemente, muito cedo a imprensa de Pernambuco descobre que era na casa do general que estava uma das melhores fontes de notícias frescas sobre o teatro de operações. E aí há uma verdadeira orgia de informações patrocinadas pela esposa do general.

Ela recebia os telegramas, lia e passava para a imprensa, e essa imprensa muito frequentemente vinha a público agradecer a generosidade de dona Maria Helena, “sem cujo concurso a nossa redação estaria completamente à mingua de notícias”. Então, o diferencial positivo da imprensa do Recife é de natureza romântica e doméstica, porque passa pelo amor do general pela sua esposa, e pela generosidade dessa esposa em alimentar de informações a imprensa da cidade a que ela tanto amava. Eu tive o cuidado, no livro, de colocar uma grande quantidade desses telegramas, que começam sempre de maneira muito bonita: “Monte Santo, data tal, Maria Helena, saudades”, e aí segue seu relato. Essa fonte alternativa, romântica, muito simpática, e muito insuspeitada de informações, não há em nenhum outro ponto do Brasil, era privativa do Recife. Para esta cidade ele volta ao final da Guerra, desdenhando de ser recebido no Rio de Janeiro pelo presidente da República, o que causou um grande frisson. Ele vem de Salvador para o Recife, onde recebe as mais retumbantes homenagens que um chefe militar possa um dia sonhar em receber.

SC — Morre no Recife?

Frederico Pernambucano de Mello — Não, morre no Rio, mas já anos depois. Ele vai morrer em 1903, seis anos depois da Guerra, já reformado e morando no Rio de Janeiro.

SC — No apêndice do seu livro temos verbetes biográficos dos homens da Guerra. Traçando a trajetória de vida desses que foram os artífices da Guerra — militares e civis — o senhor encontrou algum dado revelador, até então desconhecido?

Ruínas da Guerra.

Frederico Pernambucano de Mello — O livro tem um apêndice com três contribuições que eu reputo de importância para a compreensão da Guerra. O primeiro é o memorial deixado pelo frei João Evangelista de Monte Marciano, um italiano chegado ao Brasil, em 1872, que esteve no Arraial, em 1895, tentando, através da pregação religiosa, dissolver o Arraial, que já era considerado pela Igreja Católica como uma força contrária ao ultramontanismo de Roma, porque se formava ali uma Igreja popular. Por exemplo, uma instituição de igreja popular era a “beija das imagens”. Isso vinha do padre Ibiapina. Terminada a solenidade, o Conselheiro ia beijando imagem por imagem. A Igreja Católica, na sua ortodoxia, não reconhecia esse ato como fazendo parte da liturgia. Também o papel da República se voltando contra aquele irredentismo de Canudos. Tudo isso está no relatório do frei Monte Marciano. Ao lado disso, eu tive o cuidado de, em mais de dois anos de investigação, purificar a informação sobre as armas empregadas na Guerra. Isso parece irrelevante, mas na verdade tem um grande papel, porque a bibliografia centenária da Guerra nos remete a uma grande confusão. Ainda recentemente, instituições sérias têm publicado verdadeiros disparates nesse campo, apontando armas que jamais foram utilizadas ali, ou enaltecendo o papel de canhões, como as baterias Canet, que morreram virgens, porque chegaram em Monte Santo e de Monte Santo não foram levadas para o teatro de operação, e, no entanto, são apontadas como sendo as grandes armas de importância em Canudos. Então houve essa preocupação de purificar a informação militar sobre os petrechos bélicos, e chegar a um grau de confiança que parece bastante aceitável. Por fim, uma biografia das figuras envolvidas na Guerra. E aí há revelações bem curiosas. Uma delas é a figura de Teresa Jardelina de Alencar de quem já falamos anteriormente. Foi possível também verificar, nesse cotejo das figuras da Guerra, que um nome avultava em meio a todos os demais: o do então tenente-coronel Dantas Barreto.

Antônio Conselheiro na Guerra de Canudos.

Pernambucano de Bom Conselho, herói da Guerra do Paraguai, para onde segue com 15 anos de idade, volta como alferes por bravura, e que na Guerra de Canudos, onde chega, a 25 de junho, comandando o 25° Batalhão de Infantaria, vindo do Rio Grande do Sul, em pouco tempo é elevado ao comando da 3° Brigada de Infantaria. É o idealizador do entrincheiramento mais importante, que teve o nome de Linha Negra, e fica por ser o expugnador da Igreja Nova, que era o baluarte máximo dos jagunços. Esse homem fica do primeiro ao último dia da Guerra, o que é uma raridade, em trincheiras insalubres, fétidas, atacadas pela varíola, infestadas de muquiranas e de piolhos, onde a desinteria grassava a cada instante e onde, muito frequentemente, os oficiais passavam apenas seis dias, porque caíam doentes. Dantas, por ser sertanejo e de origem humilde, fica do primeiro ao último dia da Guerra e pratica as façanhas mais importantes. No plano militar é, ao meu ver, o grande herói da Guerra. Também será esse homem que produzirá, entre os seus contemporâneos, a obra literária mais vasta sobre a Guerra de Canudos, embora inteiramente esquecida, apesar de a Última Expedição a Canudos, de 1898, ser o livro mais citado por Euclides da Cunha em Os Sertões. Mas o Dantas nos deixa também os livros Destruição de Canudos, de 1912, e Acidentes da Guerra, de 1914. Acidentes da Guerra é o primeiro romance histórico, escrito por militar, abordando aspectos da Guerra, inclusive o perfil mental do coronel Moreira César. É uma figura que compreendeu que o Conselheiro era um pregador persuasivo, era um homem, como ele dizia, de vistas superiores, um grande condutor da sua gente.

Imagem de Antônio Conselheiro em jornais da época – Fonte – http://culturapauferrense.blogspot.com.br

É a Dantas Barreto que nós devemos a convicção — e não a Euclides, jamais a Euclides — de que o Exército não se bateu em Canudos contra nenhum idiota, nem nenhum doente mental. Porque a ideia que se tem que Conselheiro seria um paranoico, um desequilibrado — como disse Euclides: um neurótico vulgar — é que o nosso Exército, que perde em Canudos cinco mil soldados, tinha tido um papel estranho de não conseguir vencer um homem com todas essas qualidades negativas. Na verdade, Dantas mostra claramente que o Conselheiro tinha virtudes de condottiere das massas.

SC — O seu livro também trata dos excessos da Guerra de Canudos. Quais foram esses excessos?

Frederico Pernambucano de Mello — Muito se fala sobre os excessos da Guerra de Canudos. De fato, é uma Guerra absolutamente sem quartel. Mas os excessos foram de parte a parte. Normalmente, nós vemos mais o excesso do Exército, ao não permitir prisioneiros masculinos, quase todos eles degolados ao final da Guerra; ao patrocinar uma diáspora de crianças, os chamados jaguncinhos, que eram doados pelo comandante supremo a quem os solicitasse. O próprio Euclides da Cunha levou um desses meninos, que viria a ser um professor primário em São Paulo. Outros deram a essas crianças destinos menos nobres. As mocinhas, às vezes de 12, 13 anos, eram estupradas impunemente pelos soldados. Formaram-se comitês de auxílio. Um deles, chefiado pelo jornalista Lelis Piedade, que encaminhou, em Salvador, algumas dessas crianças para um destino melhor, mas, no geral, órfãs, elas sofreram uma diáspora, foram espalhadas por todo o país.

Euclydes da Cunha – http://www.estadao.com.br

Os homens adultos, degolados, com as carótidas cortadas, ao estilo da fronteira, ao estilo uruguaio, da malagataria, e argentino, da província de Corriente, bebido no Rio Grande do Sul, desde o levante Federalista de 1893. Mas também do lado jagunço, o retalhamento a facão dos feridos da 1ª e 2ª Expedições, e da 3ª, do coronel Moreira César — o próprio Moreira César, juntamente com o capitão Salomão da Rocha e o coronel Tamarindo, foram retalhados a facão. Era uma guerra sem condescendência, de parte a parte. Com relação ao Exército, é interessante dizer, porque quase não há investigação nesse sentido, de que, já em 1900, o Exército assumia uma posição de censura aos excessos de conduta praticados por um de seus membros, o general Artur Oscar, na condução da Campanha de Canudos. Esse fato nos vem da seguinte revelação: nesse ano de 1900, o general Artur Oscar se dirige oficialmente ao Senado da República pedindo a instituição de uma comenda, com o que seriam galardoados os militares participantes da Campanha de Canudos. O Senado abre vistas do processo ao Exército, e o Exército envia o assunto ao Estado Maior. Presidia o Estado Maior o general João Tomás da Cantuária, considerado um militar brilhante na época. E o parecer do general é um primor de equilíbrio, ao dizer que o Exército Brasileiro, oficialmente declarado ao Senado da República, não era favorável a instituição de uma comenda, devido aos excessos praticados numa Guerra que, em final de contas, era um conflito de brasileiros contra brasileiros, realizado inteiramente no âmbito de um Estado da Federação.

Corpo de Antônio Conselheiro.

Então, o que se pode ver do episódio de Canudos é o Exército punindo e limitando o próprio Exército. E esse pequeno ponto de luz é sempre interessante que se tenha em vista, no momento em que, costumeiramente, o mais fácil, o mais sensacional, é apenas mostrar a sistematização da degola praticada pelos militares, em Canudos.

Suplemento Cultural – Euclides conclui Os Sertões dizendo que “ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas [do Conselheiro], as linhas essenciais do crime e da loucura…”. O senhor, de certa forma, conclui o seu livro discordando dessa assertiva, quando transcreve os resultados científicos que, em dezembro de 1897, o médico Nina Rodrigues revelou ao país. Para este, não havia “nenhum a anomalia que denunciasse traços de degenerescência” no Conselheiro. Porém, como fizera Euclides, antes, o senhor deixa o leitor mais uma vez curioso, pois fica sem saber qual foi a reação das autoridades e do povo brasileiros com o tão esperado laudo de Nina Rodrigues, depois de tudo, que se tinha dito e escrito na imprensa contra o Conselheiro.

Frederico Pernambucano de Mello — É verdade. Observe-se que Os Sertões é um livro que cria uma ideia de um Conselheiro monstruoso. E por conta talvez dessa crença que existia, e que Euclides captou e terminou por traduzir em seu livro, ao terminar a Guerra, no dia seguinte, 6 de outubro de 1897, foram feitas escavações numa área ao lado da Igreja Nova, e onde se sabia ter residido o Conselheiro até a sua morte. Rapidamente, foi encontrada uma área de areia fofa, onde se pôde exumar o cadáver de um homem de um metro e sessenta de altura, pardo, desprovido de dentes nas maxilas, vestido com uma batina de mescla azul, e envolto em lençóis brancos e esteiras de cera de carnaúba. Cabelos ainda fortemente escuros, negros, a barba apenas um pouco grisalha, o nariz já parcialmente comido pelos vermes, e que era Antônio Conselheiro.

Representação dos jornais brasileiros mostrando Antônio Conselheiro contra a República Brasileira.

Um médico da Expedição, chefe do corpo sanitário, que era lotado aqui, no Recife, e sai daqui junto com o general Artur Oscar, o major-médico José de Miranda Cúrio, que operava, fazia amputações, conversando o tempo todo com os amigos, contando piadas, e ali fazia 20, 30 amputações de pessoas que chegavam feridas ao Hospital de Sangue, entende de cortar a cabeça do Conselheiro. Remove a massa encefálica, coloca cal para conservação, encerra-a numa urna, e leva ele próprio para Salvador a cabeça do Conselheiro, para que ela fosse periciada pela grande sumidade da ciência nacional, Raimundo Nina Rodrigues. Este recebe o crânio e se permite trocar ideias com o maior psiquiatra brasileiro do seu tempo, Juliano Moreira. Eles analisam exaustivamente o crânio do Conselheiro do meado de outubro até o meado de novembro, quando, então, para surpresa geral, inicialmente deles próprios, depois da Nação, eles revelam que o crânio de Antônio Conselheiro não apresentava nenhuma anomalia que pudesse responder pela sua suposta criminalidade, pela sua violência, pela sua conduta irredenta. Ele tinha o crânio normal, tinha até traços superiores, porque era um dolicocéfalo, mesorrino. A partir dessa proclamação, que é feita com grande surpresa por Nina Rodrigues, inicia-se no país um grande complexo de culpa nacional, que só tem feito crescer, nesses cem anos passados, desde quando a Guerra terminou. Conselheiro não era um criminoso.

Cruzeiro de Canudos na década de 1940.

Conselheiro era apenas um homem diferente, o outro, uma concepção de vida sertaneja que estava inteiramente desconhecida e ignorada no litoral e que, graças a isso, a Guerra não teve por si nenhuma tentativa diplomática de acomodação, de diálogo, de entendimento, e foi até o fim, terminando apenas com o que Dantas Barreto chamou “superação absoluta de um contendor pelo outro”. Mas assim mesmo, o Exército que sai vitorioso da guerra, perde um 1/3 do seu efetivo no campo de batalha. O efetivo do Exército à época, nominal, por lei, era de vinte e dois mil homens, mas, na prática, esse efetivo nunca supera quinze mil. E mesmo esse contingente foi mesclado com forças policiais do Pará, do Amazonas, de São Paulo e da Bahia. Auxiliado também por tropas pernambucanas, que não combateram em Canudos, mas que receberam a missão de etiquetar toda margem esquerda do Rio São Francisco, para impedir um dos grandes perigos que o Exército considerava, que seria a adesão do outro grande arraial místico nordestino, que era Juazeiro do Norte, no Ceará, tendo à frente o padre Cícero, um homem tão poderoso que levantaria, estalando um dedo, oitocentos homens em armas, no momento em que desejasse. O Exército temia que esses jagunços do padre Cícero pudessem se deslocar para o Sul, atravessar o São Francisco e ganhar o Arraial do Belo Monte, se solidarizando com o Conselheiro. Coube ao Estado de Pernambuco criar, para isso, um corpo provisório de polícia, com cerca de trezentos homens, e tornar inviolável essa fronteira de Pernambuco para com a Bahia e Alagoas e impedir, portanto, a possibilidade de auxílio, em homens e em gêneros, para a luta que se feria no Belo Monte.

  • Anco Márcio Tenório Vieira é jornalista, em 1997 era doutorando em Literatura Brasileira na UFPB.

1967 – VERDADE E LENDA SE MISTURAM NA HISTÓRIA DE CANGUARETAMA

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Celebração em Canguaretama, Rio Grande do Norte, do Massacre dos Mártires de Cunhaú – Fonte – http://www.vntonline.com.br/2016/07/canguaretama-rn-celebra-371-anos-dos.html

Autoria original deste texto é do repórter Antônio Melo e as fotografias mais antigas foram feitas por Paulo Saulo, tendo o material sido publicado originalmente no Diário de Natal, nas edições de quarta feira, 5 de abril de 1967 (Pág. 4), e sábado, 8 de abril (Pág. 5).

TOK DE HISTÓRIA traz na íntegra a reprodução desta matéria jornalística que mostra como a tradição oral na cidade de Canguaretama informava sobre os ricos e interessantes episódios da rica história da região. Um exemplo é o Massacre da Igreja do Engenho Cunhaú, mesmo tendo passado 322 anos dos sangrentos episódios em 1967, eles eram narrados conforme haviam sido transmitidos pelos mais velhos da região.

Dedico o resgate e a democratização deste texto ao meu amigo Professor Francisco Galvão, um orgulhoso e dedicado filho de Canguaretama.

Boa leitura!

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A seis quilômetros da cidade de Canguaretama e a um quilometro da estrada pavimentada que liga Natal àquela cidade, em meio a uma mata cerrada e quase intransponível, existe uma caverna com sete entradas, que sempre esteve, para os habitantes da região, cercada de mistérios e de estórias sobre “almas penadas”. Três denominações ela possui – “Gruta do Bode”, “Caverna das Sete Bocas” e “As Sete Bocas do Inferno”.

Poucos foram os que se aventuraram a atravessar aquelas bocas escuras, e menos dentre os moradores, gente simples cheia de crendices, daquela região aonde o progresso não chegou. No que concerne ao que os olhos humanos podem ver, existem morcegos enormes, de tamanhos variados, voando através das sete bocas e fazendo dos confins da caverna o seu refúgio. Quanto as “almas do outro mundo”…

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Canguaretama na década de 1960, ou 1970 – Fonte – http://museudoagreste.blogspot.com.br/2011/09/fundacao-da-cidade-de-canguaretama.html

Histórias e Estórias

Os moradores de Canguaretama e pessoas que residem mais perto da “Caverna das Sete Bocas” contam que, sempre souberam que foram os holandeses que ergueram aquela construção hoje misteriosa. As ruínas de uma velha cadeia no vizinho município de Vila Flor, e de uma igreja de eu hoje restam apenas as paredes carcomidas pelo tempo, tem fatos históricos que comprovam terem sido aqueles lugares palcos de enredos do período de ocupação holandesa no Nordeste brasileiro.

Mas tudo está envolvido com lendas, para o povo simples da região, e o real mistura-se ao irreal, não se sabendo onde termina a história e começa o lendário. Há pessoas que afirmam, jurando pelos nomes sagrados, terem visto aparecer ali, em noites em que foram obrigados a cruzar por aqueles caminhos próximos à gruta, fantasmas de antigos escravos e velhos senhores “que foram ricos e maus e hoje penam pelo mundo, à custa dos seus pecados”.

Traição e Morte

João Glicério é funcionário do Ministério da Agricultura e trabalha em propriedades a alguns quilômetros de Canguaretama pertencentes ao governo federal. Serviu de cicerone a reportagem do Diário de Natal e contou estórias sobre “As Sete Bocas do Inferno”. Uma dessas estórias diz respeito ao morticínio verificado na Igreja localizada no Engenho Cunhaú, cujo proprietário é o Sr. Hugo de Araujo Lima.

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Capela dos Mártires de Cunhaú – Fonte – http://www.vntonline.com.br/2018/05/canguaretama-rn-segue-no-mapa-do.html

Conta Seu Glicério – “Por volta de 1637, quando os holandeses se encontravam no Nordeste, aconteceu que existia uma espécie de resistência contra os invasores, aqui pelo município. Essa revolta era comandada pelo Padre André de Several (SIC). Os holandeses tinham dificuldade de chegar ao Rio Grande do Norte, rico em minérios”.

“Certa noite veio ter com o Padre Several o comandante das forças invasoras sediadas em Paraíba, justamente em Baía da Traição. O comandante parece que se chamava Jacó Rabi e era tenente. Disse ao Padre que, à noite, viria trazer a população da cidade uma carta do governo do seu país, falando em termos de paz e anunciando vir tratar das condições para o estabelecimento definitivo no Brasil. O Padre reuniu toda gente daqui (71 pessoas ao todo, naquele tempo). Dessas 71, 69 foram para a Igreja e as duas restantes, um velho e uma senhora que havia dado à luz uma menina naquele dia, ficaram em casa”.

“À noite, o Padre fez uma preleção para os que estavam na Igreja, exaltando o sentimento patriótico de todos e a necessidade de cada um defender a terra contra o invasor. Mas pediu para tivesse um entendimento pacífico, sem derramamento de sangue. Após preleção a Igreja foi invadida por centenas de homens armados, do Exército holandês, que realizaram a matança, sem defesa, pois os moradores do lugar estavam sem armas, na ocasião. Morreram todos os 69, mais o Padre Several. Restaram o velho e a mulher que ficaram em casa. Esse morticínio ainda hoje (1967) rende muita estória na boca do povo de Canguaretama”.

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Casa de Câmara e Cadeia da cidade de Vila Flor, Rio Grande do Norte, em 1931

Prisão de Escravos

Em Vila Flor, a nove quilômetros da “Caverna das Sete Bocas”, existe bem no centro da cidadezinha, uma velha cadeia, com paredes que têm um metro de espessura e quase 18 metros de altura. As ruinas encerram dois corredores e um salão principal, tendo no centro um mourão, grosso toco de madeira cravado no chão, com dois metros de altura. Tudo é vestígio de uma prisão, onde os detidos também eram açoitados naquele mourão.

Restos de madeiras em vários lugares da construção e a grande altura fazem imaginar que o prédio formado por dois pavimentos e que um deles, em virtude do tempo, tenha caído. As grades da velha cadeia foram retiradas e levadas para não se sabe onde. Uns dizem que foram para uma cadeia da Paraíba. As grades, dizem que eram feitas de bronze. 

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O mesmo local nos dias atuais – Fonte – http://mapio.net/pic/p-28751279/

“Caverna das Sete Bocas” Encerra Estórias de Ouro

Após seguidas tentativas de chegar ao final do túnel das “As Sete Bocas do Inferno” (frustradas porque as “bocas” se encontram obstruídas pelos desmoronamentos contínuo das pedras), tomamos a única decisão cabível – a desistência. Voltamos ao centro da cidade de Canguaretama e tornamos as estórias das pessoas do lugar.

João Glicério, o nosso guia, ainda contava – “Os bandeirantes , quando da colonização do Brasil, retiraram ouro do País para levar para Portugal. Aqui em Canguaretama existia um homem que atendia pelo nome de Arcoverde, tinha muitos escravos (negros e índios) que alugava aos bandeirantes a troco de ouro. Ganhou muito ouro em troca de escravos”. E para onde foi esse ouro? Foi o que a reportagem quis saber de Seu Glicério.

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Instantâneo realizado pelo fotografo alemão Bruno Bourgard, onde vemos os participantes de um ágape oferecido pelo coronel Joaquim Manuel de Carvalho e Silva a seu irmão, o Padre Miguel de Carvalho, por ocasião desse realizar sua primeira missa, em 8 de dezembro 1902. Foto originária da Revista da Semana, do Rio de janeiro, edição de 29 de março de 1903, página 150 e disponível em http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx

O Ouro Enterrado

Seu Glicério contou sua estória, que não se sabe se tem base na verdade, ou cresceu em legenda na memória do povo.

“Soube Arcoverde que os holandeses, após a chacina do engenho Cunhaú, mostravam-se interessados no seu ouro. Vendo que não havia escapatória nem para si nem para o ouro, pegou um dos escravos, e mandou o homem enterrar sua fortuna. Foi o negro sozinho, pois os demais tinham caído em debandada, com medo dos holandeses”.  

“O negro trabalhou sozinho toda uma noite. Arcoverde foi avisado de que os holandeses estavam a menos de uma légua e como o trabalho demorava, o senhor de escravos ordenou que o restante do ouro, ainda por enterrar, fosse jogado dentro de um açude, perto da cidade. Concluído o trabalho, Arcoverde chamou seu escravo a tomar uma cachacinha como paga do serviço”.

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Foto antiga da Prefeitura Municipal de Canguaretama.

E continua Seu Glicério – “O preto estava muito cansado e estava enterrando as últimas cargas de ouro, quando seu dono pediu que apressasse o serviço, para ambos tomarem uma bebidinha. O negro animou-se e concluiu depressa a tarefa. Contente foi sentar para beber, não sabendo que havia veneno na bebida. Assim fizera Arcoverde, colocando também veneno no próprio copo. Ambos morreram, bebidos os primeiros goles. Senhor e escravo levaram o segredo do ouro, que os holandeses não levaram Dizem até que Arcoverde morreu sorrindo”.

As Moedas de Ouro

Habitantes de Canguaretama contam que, anos atrás, pessoas que realizavam reparos na Igreja de Cunhaú, encontraram ali algumas moedas de ouro. E afirma-se que elas faziam parte do tesouro enterrado de Arcoverde.

Um estudioso dinamarquês que reside em Natal e que pediu não disséssemos seu nome, compareceu, ontem, a redação do Diário de Natal, narrando o que disse ser resultados de seus estudos sobre a “Caverna das Sete Bocas” de Canguaretama.

Disse ele que a caverna é resultado de escavações realizadas pelos índios, à procura de pedra para seus machados, setas e outras armas de guerra e caça. Acredita o dinamarquês que as escavações datam muito antes da vinda dos holandeses para o Nordeste brasileiro, divergindo assim da memória oral do povo de Canguaretama.

Adiantou considerar “uma loucura” tentar penetrar naquela gruta pois ela poderia desabar e deve guardar animais venenosos eu seu interior, como serpentes.

A GUERRA MAIS LONGA DA HISTÓRIA DUROU 335 ANOS. SEM NENHUM TIRO

Entre 1651 e 1986, ocorreu a Guerra dos 335 anos. Que só durou tanto porque haviam esquecido dela

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Frota Holandesa (Willem van de Velde, o Jovem, 1658)

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Fonte – https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/guerra-mais-longa-da-historia-durou-335-anos.phtml

Em 17 de abril de 1986, chegou ao fim a Guerra dos 335 Anos, o conflito mais longo e também o mais pacífico da história – nunca foi registrado um tiro sequer. Iniciada em 1651, a guerra entre os Países Baixos e as Ilhas Scilly durou, de fato, cerca de dois meses, mas sem um acordo oficial de paz.

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AS bandeiras dos beligerantes – A esquerda a da Holanda e a direita das Ilhas Scilly .

A Guerra dos 335 Anos surgiu como um desdobramento da Segunda Guerra Civil Inglesa, entre os partidários do rei Carlos I da Inglaterra, e o Parlamento Inglês, liderado por Oliver Cromwell. Depois de serem praticamente derrotados, os realistas foram obrigados a fugir para as Ilhas Scilly, pequeno arquipélago de 16 mil quilômetros quadrados localizado no sudoeste do Reino Unido.

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Área do conflito.

Os Países Baixos, que tiveram ajuda do Reino Unido na independência contra a Espanha, se aliaram ao partido parlamentar. Sob o comando do almirante Maarten Harpertszoon Tromp, partiram em direção às Ilhas Scilly para lutar contra os realistas. A Marinha dos Países Baixos sofreu grandes perdas no conflito, e o almirante Tromp resolveu exigir uma indenização pelos danos causados aos navios.

Como não obteve a resposta que queria, em 30 de março de 1651 Tromp declarou guerra. Mas a maior parte do Reino Unido já estava sob comando dos parlamentaristas – então, a guerra foi declarada apenas às Ilhas Scilly.

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O almirante Maarten Harpertszoon Tromp.

Em junho de 1651, os realistas se renderam aos parlamentaristas. Não havia mais motivo para a guerra. Sem fazer um único disparo, os holandeses se retiraram. Logo, todos esqueceram o assunto. Como a guerra havia sido declarada a uma pequena parte do Reino Unido, e não à nação inteira, os holandeses não viram a necessidade de declarar paz oficialmente. Assim, Países Baixos e Ilhas Scilly permaneceram em estado de guerra.

Em 1985, o historiador Roy Duncan, Presidente do Conselho das Ilhas Scilly, escreveu à Embaixada dos Países Baixos em Londres para propor a resolução do conflito. Em 17 de abril de 1986, o embaixador holandês Rein Huydecoper visitou as Ilhas Scilly e assinou um tratado de paz, dando fim à guerra que durara 335 anos.

A GUERRA BRASÍLICA CONTRA OS HOLANDESES

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Frontispício de Nova Lusitania, historia da guerra Brasilica, 1675 – Detalhe – Fonte – https://humanidadesdigitais.files.wordpress.com/2011/09/screen-shot-2011-09-17-at-1-35-53.png

Um interessante texto produzido pela ECEME – Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro, sobre a guerra desenvolvida pelos lusos brasileiros contra a invasão holandesa ao Brasil. 

Antecedentes – A Europa e o Brasil nos séculos XVI E XVII.

As relações entre as grandes potências europeias no século XVI foram caracterizadas pela expansão comercial e marítima, sendo criados os primeiros impérios coloniais da Idade Moderna, abrindo um novo horizonte geográfico, político e econômico. Na sequência dessa expansão a Inglaterra, a França e posteriormente a Holanda entraram em disputas por produtos, rotas comerciais, portos, territórios (colônias) e mercados, gerando rivalidades que, não raro, resultaram em conflitos armados. Desse conjunto, Portugal era o reino mais frágil, embora fosse detentor de um vasto império colonial que se estendia pelas ilhas do Atlântico, costa ocidental e oriental africana, o Brasil e entrepostos na Ásia. O Brasil, colônia lusitana na América, se distinguia das colônias espanholas do continente americano como uma área de exploração agrícola (açúcar), diferentemente das hispânicas (ouro e prata). Para o estabelecimento do empreendimento açucareiro, notadamente no nordeste do Brasil, os portugueses se valeram do seu conhecimento a respeito de suas plantações de açúcar nas ilhas do Atlântico, como também da experiência dos comerciantes ligados aos investidores, notadamente holandeses no refino, comercialização e distribuição desse produto na Europa. Após a morte de D. Sebastião, rei de Portugal, na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, o trono português ficou vago, assumindo a Coroa lusitana Felipe II estabelecendo União Ibérica de 1580 a 1640.

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A Batalha de Alcácer Quibir, D. Sebastião surge à direita, elevando a espada – Fonte – http://estoriasdahistoria12.blogspot.com.br/2015/08/04-de-agosto-de-1578-d-sebastiao-o.html

Portugal havia adotado até então uma política internacional prudente, cioso de suas deficiências e vulnerabilidades, evitando atritos nesse campo. A situação foi alterada com a União Ibérica, tendo Felipe II como monarca das coroas hispano-lusitana, herdando Portugal de imediato todos os inimigos dos Habsburgos, ou seja, França, Inglaterra e Holanda. Os Países Baixos, possessão espanhola, se destacavam como polo comercial de vulto no contesto europeu, bem como pela qualidade de suas manufaturas têxteis de grande reputação na Europa e centro de distribuição de produtos coloniais, notadamente portugueses com uma burguesia próspera e atuante. A atuação de Felipe II em relação a essas possessões, pondo fim a uma tolerância religiosa e infligindo um bloqueio às atividades dos batavos, diminuiu a autonomia destes o que foi seguido de forte repressão por parte do duque de Elba e reação por parte dos neerlandeses, escalando o conflito com a Espanha então União Ibérica. Os mercadores flamengos eram os principais compradores e distribuidores dos produtos de Portugal o que foi agravando as medidas adotadas ao comércio batavo com os portos espanhóis e também lusitanos. A fim de enfrentar com maior liberdade de ação às restrições impostas ao seu comércio pelos espanhóis, os batavos encontraram uma solução com a criação da Companhia das Índias Orientais (1602) e a Companhia das Índias Ocidentais (1621) após a Trégua dos Doze Anos inserida na Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), entre a Espanha e a Holanda.

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Bandeira da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais ou WIC – Fonte – http://www.forum-numismatica.com/viewtopic.php?f=48&t=81940&mobile=on

A Companhia das Índias Ocidentais (WIC) tinha o monopólio do tráfico de escravos, da navegação e do comércio por 24 anos, na América e na África negócios aos quais os holandeses estavam ligados há bastante tempo. No contexto dos séculos XVI e XVII ocorreram na Europa guerras e tratados que, influenciaram sobremaneira a relação entre os Estados na Idade Moderna e Contemporânea. A Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), o Tratado de Vestefália (1648) e a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) contribuíram para transformar o cenário político, econômico e social europeu, bem como do mundo ocidental, tendo reflexos para as colônias europeias na América, Ásia e África. A Guerra Brasílica, levada a cabo pelos luso-brasileiros contra os holandeses, está inserida nesse contexto do mundo ocidental dos séculos XVI e XVII.

Por que o Brasil? Por que o Nordeste?

As motivações para as invasões e ocupação do nordeste brasileiro, na primeira metade do século XVII, tem ligação no que diz respeito à recuperação dos investimentos na empresa do açúcar e na busca do rompimento do bloqueio comercial imposto pelos espanhóis ao comércio neerlandês nos portos sob controle da União Ibérica. No caso, a América portuguesa, além de ser o polo produtor de açúcar se constituía no elo mais frágil na escala de prioridades de defesa de Madrid.

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Barco holandês.

Os núcleos populacionais lusitanos se concentravam ao longo do litoral brasileiro, ao alcance do poder naval batavo, diferentemente dos hispânicos, que se posicionavam nos altiplanos, de difícil acesso e ocupação. A costa brasileira também servia de excelente base de operações contra a navegação castelhana no Caribe e contra a navegação portuguesa vinda da costa da África (escravos) e do Oriente (especiarias), podendo ainda os holandeses se valer do estrangulamento do Atlântico favorecido pelo saliente nordestino, correntes marítimas e ventos predominantes.

A Invasão da Bahia (1624-1625).

A Bahia e Pernambuco foram assim desde o começo os alvos prioritários do ataque neerlandês ao Brasil. Em 1623 o Conselho dos Dezenove da direção da WIC, escolheu a Bahia para sua pilhagem e conquista. Valendo-se na oportunidade da descuidada defesa e de informações sobre a terra e as gentes passadas, na maioria dos casos, por segmentos de Cristãos Novos colaboracionistas preocupados com a assunção de D. Marcos Teixeira ao bispado de Salvador, antigo visitador do Santo Ofício. A 9 de maio de 1624 a frota comandada pelo almirante Jacob Willekens, o seu vice-almirante Pieter Heyn e o governador da ocupação João Van Dorth se apresentaram frente a Salvador. O governador-geral, Diogo de Mendonça Furtado foi advertido do intento holandês, porém a demora da invasão desacreditou as providências.

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Ataque de Salvador, tela do pintor flamengo Andries van Eertvelt, cerca de 1624, acervo do National Maritime Museum, Greenwich, Londres, Inglaterra. Retrata a batalha naval na Baía de Todos os Santos para a tomada da Cidade. O navio do holandês Piet Hein está embaixo, à direita. Fonte – http://www.historia-brasil.com/bahia/invasao-holandesa.htm

Na oportunidade as desavenças entre D. Marcos e o governador sobre as medidas de defesa eram grandes. Na sequência houve a tomada de Salvador com a prisão e remessa do governador preso para a Holanda, tendo a maior parte da população se refugiado no interior. A responsabilidade pela reação e assédio aos locais conquistados pelos holandeses recaiu sobre D. Marcos Teixeira. As primeiras táticas de emboscadas e guerrilhas foram levadas a efeito pela resistência baiana, ocasionando inclusive a morte de Van Dorth. Na oportunidade Madri e Lisboa envidaram esforços para a recuperação da capital da colônia, tendo em vista a importância das terras brasileiras para Portugal, enviando uma poderosa frota (Jornada dos Vassalos) para a restauração comandada por D. Fradique de Toledo Osório, importante personalidade do reino, forçando a rendição dos batavos em 1625.

A Invasão e Ocupação de Pernambuco (1630-1636).

A WIC preparou em 1629 uma poderosa expedição para a conquista do norte do Brasil, não sendo mais objetivo a pilhagem e sim o estabelecimento de uma colônia de rendimento. Aos diretores da WIC não interessavam mais a Bahia, fortificada e com permanente guarnição e sim Pernambuco, a donataria mais próspera da colônia lusitana não sendo também a capital do governo geral. Aliado a isso a situação militar da Espanha em relação ao conflito com os Países Baixos e no norte da Itália estava crítica, tendo em vista a falência da monarquia de Castela, não se esperando, notadamente por mar uma reação da União Ibérica. As notícias sobre o intento batavo já haviam chegado a Madri que, enviou Matias de Albuquerque, antigo capitão donatário e governador-geral interino, por ocasião da prisão de Mendonça Furtado em 1625.

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Olinda e ações navais holandesas

Matias de Albuquerque trabalhou no aprestamento da defesa, fazendo rodear o Recife de uma dupla linha de paliçadas, obstruindo o porto com embarcações afundadas e posicionando peças de artilharia ao longo da praia de Olinda, impedindo a entrada no porto do almirante Lonch, comandante da frota neerlandesa. A força holandesa bombardeou de fora os fortes do Recife, enquanto Waerdenburch desembarca ao norte de Olinda em Pau Amarelo, guiado na operação por um judeu que morara muito tempo em Pernambuco, vibrando um golpe na resistência portuguesa. Ao deslocarem-se para o sul as forças neerlandesas sofreram escaramuças ao longo da sua progressão e uma resistência maior no corte do rio Doce, que sendo superada atingiu as elevações de Olinda pelo norte, suplantando suas defesas, conquistando-a em seguida. Na sequência desses acontecimentos, Matias de Albuquerque, vendo-se incapaz de defender o Recife, incendeia a povoação, depósitos de açúcar e embarcações fundeadas no porto se internando para oeste.

O Impasse Militar (1630-1632)

Poder naval e defesa local deveriam ser a estratégia utilizada pela União das Coroas Ibéricas, para fazer frente às ações dos holandeses, porém tendo em vista ao declínio do poder naval espanhol e aos recursos da economia e a opulência das sociedades coloniais o ônus da resistência recaiu sobre a colônia. A guerra de guerrilhas era a opção mais razoável, tanto mais que a preocupação dos donatários de Pernambuco em temer, que uma vitória sobre os holandeses por intermédio da ação do poder naval, tivesse como consequência ao fim do sistema de capitanias hereditárias. A conquista do nordeste pelos holandeses durou sete anos de guerra contínua, podendo-se distinguir duas fases de 1630 a 1632 e de 1632 a 1637. Na primeira fase, os holandeses seguiram uma estratégia que visava tomar as praças fortes do litoral, não rompendo o impasse. No que toca aos luso-brasileiros, a escassez de recursos e as dificuldades enfrentadas pela monarquia espanhola reduziram o esforço militar a uma posição defensiva.

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Mapa de Recife na época dos holandeses

A Espanha não tinha, na oportunidade, condições de reeditar em Pernambuco, do ponto de vista do poder naval, a “Jornada dos Vassalos”, que possibilitou a retomada da Bahia em 1625. A única estratégia possível foi realização da “Guerra Lenta”, que com a perda do Recife e de Olinda, Matias de Albuquerque isolou os neerlandeses no litoral, impedindo-os de penetrarem na Várzea do Capibaribe, combinando forças convencionais concentradas no Arraial do Bom Jesus e contingentes “volantes”, que ocupavam a linha de estâncias sob a forma de meia-lua estendendo-se de Olinda ao Recife e nos espaços intermediários vagavam as companhias de guerrilha, que com emboscadas e assaltos repeliam as surtidas dos holandeses.

A Ruptura do Impasse (1632-1634) e Ofensiva Final (1635-1636)

O impasse dos dois primeiros anos foi rompido pelos holandeses a partir de 1632. Para tanto, eles dispunham da grande vantagem tática de sua superioridade naval, cuja variedade e mobilidade permitiam-lhes atacar os pontos mais distantes do litoral, dificultando a defesa em acorrer em tempo para fazer frente às ações batavas. As forças holandesas atuavam ao longo dos rios da zona da mata, saqueando e incendiando os engenhos de açúcar e amedrontando a população local, a fim de retirar à sustentação da resistência e com malogrados ataques ao Arraial do Bom Jesus. Por este tempo os holandeses receberam o substancial apoio de Domingos Fernandes Calabar, facilitando as ações de contraguerrilha pelo conhecimento do terreno e da situação. Os efeitos dessa contraguerrilha neerlandesa foram alcançados de certo modo, dificultando o apoio à sobrevivência do Arraial, rompendo o impasse.

Uma vez que a estratégia de contraguerrilha produziu os resultados almejados, havia chegado o momento de a WIC realizar com êxito o atingimento dos objetivos contra as praças fortes luso-brasileiras.

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Forte Ceulen no Rio Grande (Forte dos Reis Magos), por Frans Post (1638). – Fonte – http://noisnafolia.no.comunidades.net/pontos-turisticos

Com a conquista da fortaleza dos Três Reis Magos, no Rio Grande do Norte, onde os holandeses estabeleceram relações com os tapuias, a fim de criar uma aliança que pudesse ameaçar a resistência luso-brasileira vindo do interior. Conquistas na Paraíba e a ocupação do interior da capitania de Itamaracá assinalaram o declínio da resistência, reduzida agora às duas fortificações principais, o Arraial do Bom Jesus e o Cabo de Santo Agostinho. Debates entre os chefes militares a respeito de como conduzir a guerra contra os holandeses tergiversaram sobre a guerra convencional e a guerrilha pura e simples. O Arraial e o Cabo foram sitiados simultaneamente, capitulando em 1635, retirando-se os luso-brasileiros em marcha para o sul, rumo ao rio São Francisco nas Alagoas, onde Matias de Albuquerque planejava fortificar-se à espera de reforços militares enviadas da metrópole, sob o comando do general D. Luís Rojas y Borja. Na passagem por Porto Calvo, onde se encontrava Calabar, Matias de Albuquerque toma de assalto o lugar, fazendo Calabar prisioneiro e executando-o. Ao reconquistar Porto Calvo, Matias de Albuquerque, desimpediu o caminho terrestre para a Bahia para onde retraiu com grande número de luso-brasileiros, ficando o nordeste nas mãos dos holandeses na sua expansão máxima, passando o comando da resistência a Rojas y Borja se dirigindo à metrópole para ser julgado pela perda de Pernambuco.

Entradas e Excursões

O conde Bagnolo, oficial que chefiava o contingente napolitano do exército da resistência, substituiu Rojas y Borja, após sua morte, na derrota luso-brasileira de Mata Redonda (1636). Bagnolo transformou Porto Calvo no trampolim para ataques de campanhistas ao interior de Pernambuco, de Itamaracá e a Paraíba cujos canaviais e engenhos eram implacavelmente incendiados de maneira a impedir que a WIC tirasse proveito econômico do triunfo militar. Esta fase da guerra tornou o exército de resistência impopular junto à comunidade luso-brasileira que havia optado por permanecer no Brasil holandês.

Johan Maurits (1604-1679), Count of Nassau-Siegen, founder of th
Nassau (1604-1679) – Fonte – pt.wikipedia.org.

O Governo de Nassau no Brasil holandês (1637-1644)

João Maurício de Nassau-Siegen governou o Brasil holandês por sete anos (1637- 1644), se constituindo esse tempo em um período de relativa paz entre os dois períodos de guerra (1630-1636) e (1645-1654). A sua nomeação correspondeu mais aos interesses do Príncipe de Orange do que da WIC. A comitiva de Nassau se compunha dentre outros administradores; de pintores, paisagistas, urbanistas e cientistas, retratando o nordeste brasileiro da época. A relativa paz deste período se contrapunha as entradas e excursões encetadas pelos luso-brasileiros a partir de Porto Calvo, diminuindo-se o ímpeto dessas correrias após a perda de Porto Calvo para Nassau, em 1637. Por ação de Nassau, os luso-brasileiros foram rechaçados para além do rio São Francisco, estabelecendo neste o limite sul do Brasil holandês. De retorno ao Recife, Nassau realizou as duas grandes tarefas que lhe haviam sido confiadas: a organização administrativa do Brasil holandês e a reativação da economia açucareira depois de sete anos de guerra. Tratou Nassau de fixar as fronteiras norte com a conquista de Fortaleza (1637). Objetivou Nassau ainda, assegurar oferta de mão de obra escrava, degradada pelos anos de conflito por conta das fugas de escravos para os quilombos; sua partida para a Bahia na retirada de Matias de Albuquerque; sua incorporação tanto às tropas luso-brasileiras quanto às holandesas e os apresamentos como botins de guerra. Buscou também Nassau obter nas possessões africanas os escravos necessários ao bom andamento da empresa açucareira, ocupando praças portuguesas.

O Sítio da Bahia (1638)

Nassau reavaliou a situação em que apoiava os limites do Brasil holandês na margem esquerda do São Francisco, entendendo que a existência da sede do governo-geral do Brasil em Salvador, comprometia os interesses da WIC, pois eram fomentadas a partir daí as incursões de campanhistas luso-brasileiros, representando uma ameaça permanente, determinando, pois a conquista da Bahia em 1638.

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Durante cerca de um mês, Nassau sitiou Salvador, ao mesmo tempo em que punha a ferro e fogo o Recôncavo Baiano não conseguindo ocupar a sede do governo-geral. O poder naval da União Ibérica foi acionado para socorrer o Brasil com a constituição da Armada de Oquendo e do conde da Torre não obtendo sucesso. Em janeiro de 1640, a armada do conde da Torre apresentou-se novamente diante do Brasil holandês, desta vez em busca de uma cabeça de ponte onde desembarcariam seus efetivos, que operariam em sincronia com tropas enviadas de Salvador. Perseguida por uma esquadra holandesa e sem ajuda de ventos e correntes marítima favoráveis, ela derivou ao longo do litoral de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte, sustentando uma série de combates indecisos. A esquadra foi dar nas costas da baía de Touros com 1.200 soldados luso-brasileiros que, capitaneados por Luís Barbalho Bezerra, regressaram à Bahia pelo interior do nordeste com as demais unidades campanhistas, evitando os contingentes batavos que lhes saíam ao encalço e lhes causando baixas.

A Restauração Portuguesa (1640), o Fim do Governo de Nassau e a Conjura Lusa-Brasileira (1644)

Em dezembro de 1640 Portugal se livre do domínio da Espanha pondo fim a União Ibérica, assumindo o trono lusitano o duque de Bragança como D. João IV. Esse acontecimento trouxe uma relevância especial para o destino do Brasil holandês, comprometendo o equilíbrio estratégico no Brasil. Nassau comemorou o evento a fim de transformar Portugal em aliado dos Países Baixos na guerra contra a Espanha.

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Engenho de açúcar.

Em março de 1642, Nassau já se dera conta de que, em vez de consolidar o Brasil holandês a Restauração Portuguesa constituía uma ameaça a seu futuro que aliado ao fato do problema das dívidas de senhores de engenho que começaram a ser cobradas pelos credores da WIC, culminando com a sua saída da administração do governo do Brasil holandês em 1644. Com a partida de Nassau em maio de 1644, a conspiração luso-brasileira tomou vulto.

A junta que substituiu Nassau foi a primeira a reconhecer o estado de coisas que poderiam levar a uma conjuração com a possibilidade de um golpe de mão pelo qual as autoridades holandesas poderiam sofrer algum tipo de ação contra sua integridade.

A Insurreição Pernambucana (1645-1654).

João Fernandes Vieira pôs-se à frente da insurreição, pesava sobre ele o fato de que era um dos maiores devedores da WIC ante a possibilidade de devassa por parte da administração do Brasil holandês. A 13 de junho de 1645, Fernandes Vieira e seus soldados internaram-se pela ribeira do médio Capibaribe para evitar, em inferioridade de condições, o confronto com o inimigo. Com o intuito de mitigar o movimento, o governo da WIC providenciou dentre outras medidas a anistia a todos os devedores que participavam de insurreição, exceto os líderes. Os insurretos de Vieira perseguidos pela principal força da WIC derrotaram os holandeses em 3 de agosto no Monte das Tabocas.

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O Monte das Tabocas nos dias atuais – Fonte – http://www.prefeituradavitoria.pe.gov.br

Na sequência desembarcaram em Sirinhaém os regimentos de André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno, transportados por uma esquadra vinda de Salvador, ocupando a vila e marchando contra o Cabo de Santo Agostinho, cuja fortaleza capitulou a 13 de agosto mediante suborno aos neerlandeses. Essa capitulação dava aos insurretos uma base de operações navais com que poderiam se comunicar com a Bahia e Portugal, dando um duro golpe no moral dos holandeses. À junção da força de Vieira com as tropas de Henrique Dias e de Camarão segue-se a reunião com os terços de Negreiro e Martim Soares Moreno que na sequência das Tabocas rumaram contra a força holandesa surpreendendo-a no Engenho de Casa Forte. À vitória em Casa Forte, seguiram-se a rendição dos redutos de Porto Calvo e de Penedo e o êxito do levante da Paraíba, isolando inimigo em Cabedelo. Desta forma, a partir de 1645, os luso-brasileiros passaram a controlar praticamente o interior do nordeste, reduzindo a presença neerlandesa no Recife e nas guarnições litorâneas de Itamaracá, da Paraíba, de Fernando de Noronha e do Rio Grande do Norte.

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Detalhe de quadro de Frans Post, mostrando detalhes de um engenho – Fonte – http://www.scielo.br

Os massacres de Uruaçu e de Cunhaú deixaram um rastro de sangue no imaginário luso-brasileiro, do qual se aproveitaram os insurretos. Estabeleceu-se incontinente o cerco ao Recife nos moldes das linhas de estâncias em 1630 a 1632. Sem acesso à produção local de víveres, os holandeses encontravam-se inteiramente dependentes do aprovisionamento vindo de fora do continente. A chegada da ajuda militar ao Brasil holandês forçou o comando do movimento a retirar a população luso-brasileira desde o Rio Grande do Norte até Igaraçu, reduzindo o perímetro de defesa e concentrar efetivos no assédio ao Recife. O socorro chegado ao Recife em 1646 reforçou a posição dos que em Lisboa advogavam a escalada da intervenção portuguesa. O Conselho Ultramarino manifestou-se em prol do envio de auxílio militar por intermédio da Bahia, chamando a atenção d’El-Rei para as divergências entre os insurretos e com o risco de ser solicitada a interferência de um terceiro país ou até negociarem por conta própria um acordo com o Brasil holandês. Em 1646 e início de 1647, D. João IV decidiu sustentar o movimento de modo à utilizar como meio de pressão diplomática contra os Estados Gerais. Nomeou-se um mestre de campo general incumbido de submeter à condução da guerra ao controle da Coroa, Francisco Barreto de Menezes. No segundo semestre de 1646, graças ao reforço enviado das Províncias Unidas para salvar o Recife da rendição pela fome, o governo do Brasil holandês tratou de passar a ofensiva. Ocupou-se Itaparica à entrada do Recôncavo Baiano, obrigando o governo-geral realocar suas forças de Pernambuco para reforçar Salvador. Com a chegada de uma armada holandesa em fins de março e início de 1648, o governo do Recife voltou a debater alternativas estratégicas, sendo a vencedora aquela que deveria romper o assédio do Recife por meio de uma demonstração de força que obrigaria os luso-brasileiros a aceitar uma batalha em campo aberto onde a superioridade neerlandesa terminaria por se impor.

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Batalha dos Guararapes

Rumo aos Guararapes e a Campina do Taborda

Os luso-brasileiros por intermédio de ardis próprios da Guerra Brasílica aceitaram o desafio de uma batalha aos moldes da Guerra Holandesa, porém em local devidamente escolhido pelo Conselho de Guerra com o assessoramento de Antônio Dias Cardoso, atraindo os holandeses para um local de difícil desdobramento do seu dispositivo. As 1ª e 2ª Batalhas de Guararapes definiram o destino do Brasil holandês, confinando os batavos definitivamente no Recife e sua posterior capitulação na Campina do Taborda em 26 de janeiro de 1654 e confirmado pelo Tratado de Haia (1661) pelo qual a República Holandesa reconheceu a soberania portuguesa sobre o nordeste brasileiro. Nessa oportunidade a Primeira Guerra Anglo Holandesa (1652-1654) contribuiu para a mudança de prioridades na manutenção do Brasil holandês por parte dos neerlandeses, facilitando a vitória dos luso-brasileiros.

Conclusões

Domínio por parte dos holandeses de todas as etapas da produção açucareira já que dominavam sua distribuição e comercialização valendo-se da posterior produção Antilhana, contribuindo para o declínio da economia canavieira no nordeste brasileiro.

Controle do mercado fornecedor de mão de obra escrava africana pelos holandeses. Portugal cedeu aos Países Baixos o Ceilão e as ilhas Molucas, a título de compensação, além de pagar quantia indenizatória.

Manutenção da integridade do território brasileiro com o domínio do nordeste brasileiro, importante região estratégica debruçada sobre o estrangulamento do Atlântico.

Importância da Guerra Brasílica versus a Guerra Holandesa ou Europeia desenvolvendo a consciência da defesa do solo pátrio.

Desenvolvimento do ideário típico de Pernambuco observado na sua recalcitrante inserção na ordem imperial, depois do malogro das revoluções de 1817,1824 e 1848. Retomada das praças portuguesas na África, especialmente Angola, a fim de se restabelecer o fluxo de mão de obra escrava.

FONTE http://cp.eceme.ensino.eb.br/docs/HISTORIA_MILITAR_15.pdf

PARA SABER MAIS SOBRE ESSE TEMA NO BLOG TOK DE HISTÓRIA

HOLANDESES NO NORDESTE DO BRASIL

https://tokdehistoria.com.br/2015/02/02/holandeses-no-nordeste-do-brasil-sangue-e-destruicao/

ÍNDIOS PROTESTANTES NO BRASIL HOLANDÊS

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A ARTE DE FRANS POST

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1640-A MAIOR BATALHA NAVAL OCORRIDA NOS MARES BRASILEIROS

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HOLANDESES NO NORDESTE DO BRASIL

Extensão do domínio holandês no Nordeste do Brasil
Extensão do domínio holandês no Nordeste do Brasil

Os holandeses do norte vinham em rebelião aberta contra a Coroa espanhola desde 1568, mas foi em 1602 e 1621 que eles levaram a guerra ao campo do inimigo. E foram eles, também chamados neerlandeses ou batavos, os primeiros europeus a arrancarem do controle dos conquistadores ibéricos um grande naco de terra no que hoje chamamos de América do Sul. Isso ocorreu no Brasil.

Para realizar estas conquistas os holandeses utilizaram uma empresa. A organização da Companhia das Índias Ocidentais, o empreendimento comercial conquistador holandês, é muitas vezes atribuída por historiadores ibéricos às maquinações de capitalistas judeus que fugiram (ou foram expulsos) de Espanha e Portugal, mas essa visão é insustentável. O investimento judaico no início de ações da Companhia (nominalmente capitalizada em sete milhões de florins) foi relativamente insignificante. Mas o verdadeiro impulso veio de exilados calvinistas holandeses, sendo estes particularmente proeminentes na formação da Companhia e nas listas de seus acionistas. Para os calvinistas o sentimento contra os espanhóis e portugueses era muito forte, onde a luta era considerada uma verdadeira guerra santa contra os católicos.

Prédio em Amsterdã, Holanda, sede histórica da Companhia das Índias Ocidentais, ou West-Indische Compagnie  - WIC
Prédio em Amsterdã, Holanda, sede histórica da Companhia das Índias Ocidentais, ou West-Indische Compagnie – WIC

Ao longo de sua história os holandeses reclamam que os ingleses apenas seguiram o rastro de suas conquistas; e, embora esta alegação não possa ser sempre justificada, não há dúvida de que foram os holandeses que suportaram o peso esmagador do monopólio colonial católico ibérico, que parecia tão maciçamente intacto em 1600.

As duas coroas ibéricas estavam unidas desde 1580 (a chamada união dinástica) e as Américas se tornaram um grande alvo para os holandeses, que decidiram iniciar suas operações militares atacando o Brasil, ao invés de México ou Peru. Pensavam os estrategistas batavos que os portugueses seriam vítimas mais fáceis e o governo de Madrid não reagiria de forma tão violenta a perda de terras portuguesas.

Uma vez estabelecidos no Brasil, os holandeses teriam uma base americana para operações contra os tesouros das frotas espanholas que traziam incalculáveis tesouros do Novo Mundo. Além de administrarem o crescente comércio de açúcar na sua origem e, eventualmente no futuro, marcharem por terra para as minas de prata de Potosi (Bolívia), grande manancial de riqueza da Espanha no Novo Mundo.

O Primeiro ataque

O golpe inicial da Companhia das Índias Ocidentais foi um sucesso espetacular e São Salvador, Bahia, caiu em maio de 1624.

Barco holandês
Barco holandês

Foi alegado pelo célebre Lope de Vega, em seu “El Brasil Restituído”, que esta vitória holandesa ocorreu devido à traição dos judeus “cristão-novo”, ou cidadãos cripto judeu, que vislumbravam com os batavos a liberdade religiosa do culto judaico em terra de conquistadores católicos. A verdade foi que a derrota aconteceu pela covardia dos defensores de Salvador e a pela audácia do vice-almirante holandês Pieter Pietersen Heyn.

Mais ou menos ao mesmo tempo, na costa oposta da América do Sul, outra frota holandesa tentou dominar Callao, no Peru. Esta audaciosa tentativa falhou, mas os assentamentos espanhóis na costa do Pacífico foram jogados em um estado de tremenda confusão e alarme.

Contrariando as expectativas holandesas, a perda da Bahia despertou para uma ação decisiva o lento governo em Madri. Provavelmente porque eles reconheceram que o objetivo final holandesa não era o açúcar do Brasil, mas a prata andina.

Fonte - peregrinacultural.wordpress.com
Fonte – peregrinacultural.wordpress.com

Com uma velocidade e rigor excepcionais para o padrão administrativo ibérico, uma armada combinada portuguesa e espanhola foi mobilizada. Na verdade aquela era a maior frota que já tinha cruzado a linha do Equador em direção ao Brasil desde seu descobrimento em 1500. 52 navios, 14.000 homens e 1.185 armas de fogo surgiram fora de Salvador na véspera da Páscoa de 1625. Em 1 de maio a guarnição holandesa, que não era composta de idiotas, entregou-se a Dom Fadrique de Toledo Osorio, Capitão Geral da Armada. Logo uma frota chegou da Holanda e rapidinho se retirou, sem se aventurar a um contragolpe contra a grande esquadra combinada ibérica.

Enquanto os holandeses eram pela primeira expulsos do Brasil, os esforços deles para capturar um dos mercados de escravos portugueses na costa oeste da África também falhou desastrosamente e por negligência dos seus comandantes. Um cronista holandês escreveu que “no verdadeiro estilo militar, cada um jogou a culpa no outro”.

Se os protestantes holandeses venceram o primeiro round, os seus adversários católicos haviam decididamente vencido a segunda fase e a Companhia das Índias Ocidentais estava quase falida. Mas os calvinistas das Terras Baixas do Mar do Norte eram homens teimosos. Eles não desanimavam com golpes pesados e logo recomeçaram a afiar suas espadas.

Piet Hein - Fonte - en.wikipedia.org
Piet Hein – Fonte – en.wikipedia.org

Em pouco tempo o brilhante almirante Pieter Pietersen Heyn varreu os barcos de transporte ibéricos na costa brasileira entre 1626-1627. Em setembro de 1628 conquistou toda a frota de prata espanhola na Baía de Matanzas, Cuba, um feito sem paralelo.

Com o tesouro derivados destes e de outros ataques navais, a Companhia das Índias Ocidentais pagou todas as suas dívidas, declarou um dividendo de 50 por cento e em 1630 equipou outra expedição poderosa contra o Brasil (65 navios e 8.000 homens). Desta vez seu objetivo não era a Bahia, mas Olinda e Recife, na província de Pernambuco, a região produtora de açúcar mais rica do mundo e a parte mais próspera do Império Colonial Português.

O Doce Nordeste

O açúcar havia sido introduzido no Brasil a partir da Madeira e de São Tomé em 1530, mas foi no século XVII que se tornou “o século do açúcar”, devido ao grande aumento da procura por este produto na Europa, onde constantemente se tornou uma necessidade, em vez de um luxo.

A plantação de açúcar tipicamente brasileira era centrada no engenho, ou moinho para moer a cana-de-açúcar não refinado. Os principais centros de produção foram os distritos férteis conhecidos em torno de Olinda e Recife, em Pernambuco, e do Recôncavo, nos arredores de Salvador. Os plantadores de açúcar, ou senhores de engenho, geralmente viviam em suas propriedades e vinha para a cidade apenas para festas, ou para fiscalizar o transporte de suas colheitas. Com o aumento da produção cada vez mais os lusos importavam escravos negros africanos para o Brasil.

Engenho e tropas holandesas
Engenho e tropas holandesas

Isso deu a sociedade brasileira colonial um selo marcadamente rural, em contraste com a da América contemporânea espanhola, onde os líderes da sociedade preferiam morar nas cidades do vice-reino do México e de Lima (Peru), ou no grande centro de mineração de Potosí.

Frei Manoel Calado escreveu um relato da luta Luso-Holandesa pelo nordeste do Brasil. Comenta que por volta de 1630 a produção de açúcar em Pernambuco havia chegado a um ponto em que os pilotos e mestres das grandes frotas de naus mercantes, que diariamente entravam e saíam do porto de Recife, competiam entre si em entreter os plantadores locais, a fim de conseguirem obter o transporte do doce produto.

Os seletos vinhos e víveres europeus foram importados de Portugal e dos Açores, enquanto sedas asiáticas e têxteis de qualidade eram tão abundantes nas lojas de Olinda como nas de Lisboa. O padrão de vida era excessivamente alto e qualquer chefe de família cuja tabela de serviço não era tabelada em prata maciça era considerado como miseravelmente pobre.

Olinda e ações navais holandesas
Olinda e ações navais holandesas

Pyrard de Laval, um marinheiro francês muito viajado, que visitou a colônia portuguesa em 1610, observou que “em nenhum país que eu tenho visto a prata é tão comum como nesta terra do Brasil. Você nunca vê pouco dinheiro por aqui”.

Mesmo que Olinda não se comparasse em tamanho ou em riqueza com a Cidade do México, Lima, ou Potosí, a doce riqueza que vinha do interior da província tornou a região um prêmio que valia a pena conquistar. A descrição de Manoel Calado desta região como o “espelho de um paraíso terrestre” não era mera hipérbole.

Vitória e Dominação

As ordens para os comandantes da força expedicionária holandesa de 1630 previam não só a captura de Olinda, mas, posteriormente o Rio de Janeiro (ou, alternativamente Salvador) e até mesmo de Buenos Ayres. Este programa revelou-se demasiado ambicioso.

As tropas invasoras não eram apenas compostas de holandeses, havia muitos mercenários de outras localidades na Europa, com líderes militares como excelente polonês Crestofle d’Artischau Arciszewski e o alemão Sigismund von Schoppe. Combateram em solo pernambucano muitos alemães, franceses e escandinavos formando talvez os maiores contingentes no serviço militar da Companhia. Havia até mesmo um bom número de ingleses – tantos que um capelão inglês protestante chamado Samuel Batchelor ficou alguns anos em Recife.

Apesar de Olinda e Recife terem sido tomadas sem muitas dificuldades, a resistência portuguesa no interior foi forte e teimosa. Para acabar este problema foi trazido um grande combatente, que se mostrou igualmente um grande administrador.

Nassau - Fonte - pt.wikipedia.org
Nassau – Fonte – pt.wikipedia.org

A partir de janeiro 1637, até maio de 1644, a conquista holandesa no Brasil foi governada pelo príncipe Johan Maurits van Nassau-Siegen (ou simplesmente Mauricio de Nassau). Pouco depois de sua chegada, ele infligiu uma grave derrota ao napolitano Giovanni Vincenzo di San Felice, o Conde de Bagnolo, que comandou as forças portuguesas, espanholas em Porto Calvo (Alagoas) e as levou-o ao sul do Rio São Francisco.

Os defensores do Brasil foram desmoralizados por esta derrota, e Frei Manoel Calado, sem grande admiração pelos “senhores barrigudos”, como ele frequentemente chamava os líderes militares da resistência contra os batavos. O Frei maliciosamente relata como muitos deles fugiram para o sul.

Se Mauricio de Nassau seguisse o processo de avanço militar em direção sul, provavelmente ele teria tomado novamente Salvador para os holandeses. Mas o líder conquistador não percebeu toda a extensão de seu sucesso e quando um ano depois ele atacou a capital colonial, descobriu que aquele objetivo “não era o tipo de gato para ser tomada sem luvas”. Foi repelido com grandes perdas.

Este reverso foi mais do que compensado pela derrota, em janeiro de 1639, de uma grande armada português-espanhola que o governo Ibérico tinha finalmente conseguido mobilizar, após anos de esforços abortivos, para a recuperação de Pernambuco.

Com a captura de São Jorge da Mina, na Guiné (o mais antigo assentamento europeu na África Ocidental) e de Luanda, em Angola, os holandeses conseguiram o controle total do tráfico de escravos do Oeste Africano.

Engenho de açucar
Engenho de açucar

Até o final de 1641, Mauricio de Nassau governou uma área no Brasil cujo litoral possuía mais de mil quilômetros.

Um Príncipe que Amava o Brasil

Mauricio de Nassau não era apenas um general capaz, mas um administrador de primeira classe e um governante que estava, em muitos aspectos, muito à frente de seu tempo.

No dia em que ele desembarcou em Recife ele se apaixonou pelo Brasil e não poupou esforços, dinheiro e energia para melhorar a colônia. No momento da sua chegada Recife tinha uma população com cerca de três mil almas e a superlotação foi terrível. Casas custavam a partir de 5.000 a 14.000 florins, enquanto a remuneração mensal dos empregados comuns da Companhia era de cerca de 60 florins.

Mapa de Recife
Mapa de Recife

Ele melhorou e ampliou a cidade existente com novas (e pavimentadas) ruas, estradas e pontes. Ele construiu uma nova cidade chamada Mauritia (ou Mauritstadt) em uma ilha adjacente.

Nassau tinha trazido da Holanda uma comitiva cuidadosamente selecionada de quarenta e seis acadêmicos, artistas, cientistas, artesãos e naturalistas, os quais tiveram suas próprias funções e tarefas especiais.

Assim Pintores como Frans Post e Albert Eckhout (este último possivelmente um aluno de Rembrandt) pintaram vários aspectos da vida e da cultura local. Franciscus Plante estudou a antropologia social ameríndia, flora e fauna exóticas. O astrônomo saxão Georg Marcgraff fez observações celestes no Brasil e em Angola. Os trabalhos de cartografia de Cornelis Golijath, junto com Johannes Vingboons, contribuíram para consolidar o conhecimento das costas brasileiras naquela época. Já Caspar Barlaeus escreveu um relato da atuação de Mauricio de Nassau no Brasil, que foi denominado “História dos Feitos Recentemente Praticados Durante Oito Anos no Brasil e Noutras Partes sob o Governo de Wesel, Tenente-General de Cavalaria das Províncias-Unidas sob o Príncipe de Orange” e publicado em 1647. Este livro contém grande número de mapas e ilustrações da região.

Caspar Barlaeus - Fonte - www.snipview.com
Caspar Barlaeus – Fonte – http://www.snipview.com

Nenhuma equipe de trabalho científico e artística dirigida por homens brancos nos trópicos foi novamente vista com tamanha capacidade e magnitude até as grandes expedições do capitão inglês James Cook e seus sucessores.

Não era de admirar que seus compatriotas o apelidassem de “Maurits, de Braziliaan” (Mauricio, o brasileiro).

Idade do Ouro

Nassau entendeu perfeitamente a importância de conciliar os plantadores de cana com a dominação holandesa e seus esforços conseguiram um considerável grau de sucesso neste item. Mesmo sendo um protestante convicto, numa época em que os calvinistas e católicos consideravam-se uns aos outros como inevitavelmente condenados ao fogo do inferno, Nassau deliberadamente tolerou os clérigos católicos locais, apesar da oposição dos ministros calvinistas coloniais.

Em um esforço para evitar os males da monocultura do açúcar, ele promoveu o cultivo de outras culturas, além de reduzir a tributação. Ajudou os plantadores a reconstruírem seus engenhos arruinados pela guerra e a comprar escravos em Angola. Até 1641 nada menos do que 120, de 160 engenhos de açúcar destruídos voltaram a funcionar. A produção total de açúcar durante o seu mandato foi estimado em 218.220 caixas, no valor de 28 milhões de florins.

Nassau observou que o segredo de governar Pernambuco foi lembrar aos comerciantes holandeses a importância objetiva do seu dinheiro e dos seus bens para as suas vidas. Enquanto aos portugueses ele buscava tratá-los com cortesia e polidez excessiva e não com justiça rigorosa e imparcial.

Dança dos Tapuias, índios aliados dos holandeses. Quadro de Albert Eckhout
Dança dos Tapuias, índios aliados dos holandeses. Quadro de Albert Eckhout

Os fazendeiros portugueses, segundo ele, eram em sua maioria “muito pobres e muito orgulhosos”. Nassau substituiu os vereadores portugueses pelos magistrados e subdividiu as capitanias em distritos, locais onde as câmaras neerlandesas se fixariam posteriormente. Durante o governo de Nassau a paz entre luso-brasileiros e os neerlandeses se estabeleceu no Brasil e este período ficou conhecido como “Idade do Ouro”.

Mudanças Importantes

Nesse meio tempo, em dezembro de 1640, um complô aristocrático liquidou 60 anos de domínio espanhol sobre Portugal. A revolta bem sucedida foi rapidamente seguida pela adesão de todas as colónias portuguesas (com exceção solitária de Ceuta, até hoje uma das últimas possessões espanholas). Em Junho de 1641 Portugal e a Holanda celebram um tratado de trégua de dez anos quanto às respectivas colônias. No Brasil esta trégua foi vista de forma negativa por ambos os lados.

Dom João IV se tornou o primeiro monarca português da Casa de Bragança e isso apresentou os holandeses com um delicado problema diplomático. Por um lado saudaram o enfraquecimento de seu inimigo tradicional espanhol (com quem os batavos só fizeram a paz em 1648), mas por outro lado eles estavam relutantes em parar seus ataques rentáveis na desintegração do Império Colonial Português.

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Antes da trégua de dez anos entrar em vigor os neerlandeses tiveram o cuidado de dominar tanto território ultramarino Português quanto fosse possível. Maurício de Nassau por recomendação dos diretores da Companhia das Índias Ocidentais mandou ocupar Sergipe e o Maranhão.

Naturalmente esta atitude foi vista de forma muito amarga pelos portugueses, que ao se livrarem jugo espanhol esperavam poder até voltar a dominar parte do que eles tinham perdido no nordeste do Brasil, ou por negociação mediante compra, ou por troca.

Nisso outros problemas foram prejudicando os holandeses no Brasil.

Membro de um grupo de reencenação histórica, com uniforme típico holandês do século XVII.
Membro de um grupo de reencenação histórica, com uniforme típico holandês do século XVII.

Devido a fortes enchentes, a safra de açúcar entre 1641 e 1642 foi baixa. A escravaria foi atacada por uma praga de “bexigas” (varíola) vinda de Angola. A queda dos preços do açúcar refletiu-se no valor do preço dos imóveis em Recife, que se reduziu em 1/3. A receita fiscal da Companhia caiu na mesma proporção. Em quatro anos, o tráfego marítimo com a metrópole se reduziu de 56 para 14 embarcações anuais.

Após sete anos, mesmo tendo desenvolvido uma política conciliadora e tolerante, Nassau não conseguiu impedir contradições insolúveis. Divergências entre sua forma de governar e os lucros esperados pela Companhia levaram-no a deixar o cargo e retornar à Holanda e ele partiu em 23 de maio de 1644. A saída de nassau foi lamentada por toda a colônia e marcou o início do declínio da Holanda Brasil.

Logo os novos dirigentes holandeses que sucederam Nassau, sem considerar o testamento político realizado anteriormente pelo príncipe, passaram a cobrar a liquidação das dívidas aos produtores de cana inadimplentes. Senhores de engenho e lavradores de cana deviam à Companhia 5,7 milhões de florins e começou a existir a ideia que somente expulsando os batavos é que “se livrariam das dívidas”. Em meio à crise social e econômica, a animosidade mútua entre rígidos calvinistas e católicos fanáticos aumentou rapidamente.

A Rebelião

Consta que em 15 de maio de 1645 (para outros foi em 23 de maio) dezoito líderes insurretos, liderados por João Fernandes Vieira, se reuniram no Engenho de São João, onde assinaram um compromisso para lutar contra o domínio holandês. Afirma-se que neste documento foi escrito pela primeira vez o vocábulo pátria em terras brasileiras. 

Retrato anônimo de João Fernandes Vieira, século XVII, Museu do Estado de Pernambuco.
Retrato anônimo de João Fernandes Vieira, século XVII, Museu do Estado de Pernambuco.

O líder João Fernandes Vieira era ex-sócio dos holandeses no tempo de Nassau e o segundo maior devedor da Companhia quando assumiu a liderança dos insurretos. Uma das primeiras medidas de João Fernandes foi decretar nulas as dívidas que os rebeldes tinham com os holandeses. Houve grande adesão da “nobreza da terra”, entusiasmada com esta “proclamação heroica”.

A rebelião explodiu em 13 de junho de 1645, dia de Santo Antônio de Lisboa. Uma Guerra de Reconquista, ou Guerra de Restauração, que sangrou basicamente Pernambuco por nove anos.

Teoricamente as chances holandesas de eventualmente esmagar a rebelião continuavam excelentes. Estes possuíam o domínio indiscutível do mar, uma vez que os insurgentes não tinha um barco maior do que uma canoa à sua disposição. Mas embora os holandeses pudessem aliviar Recife, ou mesmo bloquear Salvador, eles não fizeram maiores esforços para afastar e dominar os insurgentes.

Embora os insurgentes pedissem auxílio ao rei D. João IV, o monarca português não podia dar ao luxo de antagonizar os holandeses, ajudando abertamente seus súditos no Brasil. Em público ele abandonou a colônia, enquanto secretamente enviava homens e suprimentos por meio da Bahia.

As mal armadas caravelas portuguesas, que levaram estes reforços periódicos, foram frequentemente interceptados pelos holandeses, cujos corsários também realizavam estragos contra os barcos que transportavam açúcar e se dirigiam para Portugal. 249 navios portugueses foram tomados entre 1647 e 1648. Se as perdas portuguesas continuassem neste ritmo a rebelião teria inevitavelmente em colapso, já que não havia uma indústria de armas no Brasil.

Vitória Luso-brasileira

O ponto decisivo da luta veio em abril de 1648, justamente quando as coisas pareciam ficar mais difíceis para os luso-brasileiros. Em março deste ano fortes reforços holandeses chegaram a Recife. Mas um grave problema existia no seio da tropa – os oficiais dos reforços recém-chegados tinham recebido um bônus considerável em dinheiro, ao passo que os soldados não tinham recebido nada e os salários estavam em grande parte atrasados. Muitos dos homens que compunham as tropas batavas se recusaram a lutar no dia da batalha, gritando “deixar que aqueles que foram pagos vão a luta; não vamos lutar sem remuneração”.

As Batalhas dos Guararapes, episódios decisivos na Insurreição Pernambucana, são consideradas a origem do Exército Brasileiro. Quadro de Domingos Meireles - Fonte - pt.wikipedia.org
As Batalhas dos Guararapes, episódios decisivos na Insurreição Pernambucana, são consideradas a origem do Exército Brasileiro. Quadro de Domingos Meireles – Fonte – pt.wikipedia.org

Foi quando em 19 de abril ocorreu a derrota holandesa nos Guararapes!

Os holandeses ainda nem tinham se recuperado deste revés quando veio a notícia da perda de Luanda, em Angola, recapturada em agosto por um esquadrão Português vindo do Rio de Janeiro.

O desastre de Guararapes se repetiu em fevereiro de 1649, em situações ainda pior, mostrando a disposição dos portugueses e dos brasileiros nativos em expulsar os hereges. A partir deste momento os holandeses ficaram praticamente confinados em Olinda e Recife.

Apesar destas derrotas em terra, o resultado da luta ainda estava em jogo. A força naval holandesa permaneceu esmagadoramente superior a de Portugal, mas a eclosão da guerra anglo-holandesa em 1652 (a chamada Primeira Guerra Anglo-Holandesa e travada inteiramente no mar) impediu um esforço realmente determinado de reconquistar Pernambuco. Esta guerra deu a D. João IV a chance de ajudar abertamente os combatentes luso-brasileiros em Pernambuco.

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Uma frota partiu de Lisboa para o Brasil em Outubro de 1653 e recebeu ordens de não apenas bloquear Recife a partir do mar, mas de “invadir o local”. Foi uma oportunidade fugaz, mas muito valiosa para Dom João IV. Quando em dezembro a frota chegou diante de Recife e desembarcou homens para reforçar os insurgentes em terra, a guarnição e burgueses holandeses praticamente perderam a vontade de lutar.

Em 26 de janeiro de 1654 os termos da capitulação foram assinados em Recife e todos os outros fortes e lugares ainda em mãos dos holandeses ao longo da costa do nordeste brasileiro se renderam, com todas as honras de guerra, a Francisco Barreto, o comandante de campo português.

Era o fim da ocupação holandesa no Brasil.

Conclusão

O tratado de paz que Portugal concluiu em 1661 com a Holanda (sob forte pressão inglesa), fez os holandeses reconhecerem formalmente a perda de sua colônia sul-americana. Mas o desastre de 1654 marcou duramente este povo em todo o mundo.

Quando prisioneiros holandeses encarcerados pelos portugueses em Goa, na Índia, foram informados da derrota no Brasil, eles se recusaram a acreditar. Comentavam desesperados que “um dia o português pode levar Amsterdam, mas Recife nunca!”. Mas levaram!

Houvessem os holandeses continuado e ampliado a politica administrativa desenvolvida por Mauricio de Nassau, talvez o nordeste brasileiro jamais tivesse voltado a ser português e toda a história holandesa poderia ter cambiado drasticamente.

Mais tarde, gerações de holandeses consideravam que a verdadeira negligência em na perda territorial do nordeste do Brasil foi o fim da idade de ouro da expansão colonial holandesa, que tinha começado com a fundação da Batávia por Jan Pieterszoon Coen, na atual Indonésia, em 1619.

MARACAJAÚ E RIO DO FOGO – ANTIGOS CEMITÉRIOS DE BARCOS DA COSTA POTIGUAR

Yet he held his hould

Ao longo da história de duas belas praias do litoral potiguar, ocorreram vários relatos de afundamentos até hoje praticamente desconhecidos

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Na história do Rio Grande do Norte sempre foi muito pouco relevante os fatos ligados às questões náuticas e a série de problemas que aqui existiam para quem navegava.

Era um período de navegações heroicas e arriscadas, onde os homens se aventuravam por costas ainda não totalmente mapeadas, ou passando por áreas sem os faróis para o auxílio à navegação. Coisas como as atuais maravilhas tecnológicas de navegabilidade sequer povoavam as mentes dos novelistas mais criativos. Conduzir um barco a vela, através dos oceanos era então uma tarefa que exigia muita atenção e a experiência de navegação dos seus comandantes era fundamental para uma boa viagem.

É bem verdade que já se utilizava bússolas, mapas de navegação conhecidos, sextantes, cronômetros marítimos e outras ferramentas que ajudavam na navegação. Mas nada era totalmente seguro.

A Complicada Costa Potiguar

Localizado no “cotovelo” da América do Sul, a posição geográfica do Rio Grande do Norte sempre se caracterizou para a navegação pela existência de ventos fortes em certas épocas do ano, correntes marítimas complicadas e algumas perigosas áreas com recifes de corais.

Antigos instrumentos de navegação - maxinecooper.wordpress.com
Antigos instrumentos de navegação – maxinecooper.wordpress.com

Apesar dos perigos isso não impediu que portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e marujos de outras nacionalidades navegassem no nosso litoral e muitos naufrágios marcam a nossa história.

O interessante site Naufrágios do Brasil (http://www.naufragiosdobrasil.com.br) possui uma página específica para os afundamentos em águas potiguares. A relação traz os nomes de mais de 100 barcos e alguns aviões que repousam no fundo do mar. O mais antigo registro existente neste site é de um barco, provavelmente uma caravela portuguesa, com o nome “São João e Almas”, que se perdeu na região do Cabo de São Roque no longínquo ano de 1677.

Ao longo dos séculos seguintes não era tão raro a notícia de algum afundamento em águas costeiras do Rio Grande do Norte, especialmente nas regiões onde se encontram recifes de corais, principalmente na área das conhecidas praias de Maracajaú e Rio do Fogo.

Área de recifes de corais, ou parrachos de Maracajaú e Rio do Fogo, costa do Rio Grande do Norte
Área de recifes de corais, ou parrachos de Maracajaú e Rio do Fogo, costa do Rio Grande do Norte.

Atualmente estas praias são locais de destinação turística e de veraneio, possuindo ambos os locais tradicionais comunidades de pescadores. Mas a maioria dos naufrágios ali ocorridos é desconhecida e envoltos em histórias onde o destino da carga era mais importante que a vida dos tripulantes.

Uma Região Perigosa Para um Velho Brigue Inglês

Há quase 174 anos o velho brigue inglês Orion, de 198 toneladas, bateu e afundou nos recifes de coral diante da praia potiguar de Rio do Fogo, onde nesta época já existia uma povoação de pescadores.

Construído em 1804, no estaleiro pertencente a John Holt Jr. e John Richardson, em Whitby, o terceiro maior centro de construção naval da Inglaterra, depois de Londres e Newcastle, o Orion serviu a Royal Navy (Marinha Real Britânica) como barco de transportes nos combates contra as forças de Napoleão. Este brigue, um barco que possuía normalmente dois mastros maiores, uma tripulação variável de oito a quinze homens, uma média de 40 a 90 metros de comprimento e uma tonelagem que variava de 160 a 1.150, foi depois vendido para uma empresa de transportes marítimos de Londres e já se encontrava a 36 anos navegando pelos sete mares quando encontrou seu fim no dia 30 de março de 1840, uma segunda feira.

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Na hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, encontramos nas páginas amareladas do velho jornal Publicador Natalense, edição de sábado, 2 de maio de 1840, as notícias do Expediente do Governo provincial potiguar, cuja a presidência era exercida por Manoel de Assis Mascarenhas. Nesta páginas, uma espécie de Diário Oficial da época, consta que o juiz de paz de Touros, na época um município emancipado desde 1833, trazia notícias sobre o acidente do Orion, dando conta que o mesmo vinha carregado de café do sul do Brasil.

Encontramos a informação que havia sido negado ao juiz de paz de Touros, cujo nome não foi divulgado, o seu pedido para que os jangadeiros de Rio do Fogo ficassem de posse da metade dos objetos e da carga do brigue acidentado. O pedido do juiz ia de encontro ao Artigo 18 do Tratado firmado entre os reinos do Brasil e da Inglaterra, sobre o destino das cargas de naves naufragadas.

O Presidente da Província Manoel de Assis Mascarenhas, que deixaria o cargo em julho de 1841, exigia que o juiz de Paz de Touros, que possuía jurisdição sobre Rio do Fogo, arrecadasse com os jangadeiros da localidade tudo que eles haviam salvado do Orion. Entretanto no mesmo despacho percebemos que o Presidente não parecia confiar no juiz de paz e nem estava brincando em relação a suas ordens, pois ordenava ao “Inspetor interino da Thesouraria da Fazenda” que enviasse um oficial e guardas da Alfandega para arrecadarem e inventariarem os objetos salvos. Para que a ordem ficasse mais bem transmitida, no mesmo despacho o Presidente abonava o soldo de cinco guardas do Corpo de Polícia para seguirem a Touros para participarem desta missão.

Típico brigue inglês
Típico brigue inglês

Neste caso do Orion não sabemos nada do que causou a destruição do brigue, o que houve com a tripulação e nem se os jangadeiros de Rio do Fogo, ao salvarem os objetos e a carga do barco sinistrado agiram na ânsia de conseguirem vender o que arrecadaram a revelia da tripulação e das autoridades, ou se eles foram incitados a salvarem este material pela tripulação inglesa, com a promessa de ficarem com a metade do que conseguiram tirar das águas e depois tiveram a sua parte no acordo retirado a força pelas autoridades comandadas pelo Presidente Manoel de Assis Mascarenhas.

A Barca Norte Americana Destruída em Maracajaú

Onze anos após o desastre do brigue Orion, uma barca, ou “bark” em inglês, uma nave com três ou mais mastros, com um comprimento que poderia variar de 35 a 60 metros, foi totalmente destruída nos belos recifes de coral de Maracajaú. Estes recifes de corais são conhecidos na região como parrachos.

A edição existente na internet do tradicional jornal The New York Times, de 30 de outubro de 1851, da conta que os seus jornalistas haviam recebido a notícia que a barca Ruth, que seguia do porto norte-americano de Baltimore para o Rio de Janeiro, havia se perdido em “Patagonia”, próximo “ao Cabo de São Roque”, mas a tripulação se encontrava a salvo. Parece que as informações geográficas dos jornais americanos desta época eram bem complicadas.

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No periódico O Argus Natalense, existente na hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, na sua edição de sábado, 11 de outubro de 1851, que encontramos uma notícia mais abalizada sobre o acidente da Ruth, com o destino da sua carga envolta em um rumoroso inquérito judicial.

Consta que a Ruth vinha dos Estados Unidos com 2.600 “barricas” contendo farinha de trigo, tendo se chocado com os parrachos de Maracajaú nos primeiros dias do mês de setembro de 1851. Este era um barco novo, tinha 337 toneladas e havia sido lançado ao mar em Baltimore no dia 27 de julho de 1847, sendo um dos 80 barcos construídos nos estaleiros daquele porto durante aquele ano.

Já no dia 15 daquele mês o “Inspector” da Alfandega da Cidade do Natal Manoel Pedro Alvares, informava que Antônio Francisco Nobre Câmara, o subdelegado de Maracajaú, havia firmado com John Llufrio, o capitão da barca, um norte americano de 43 anos de idade e natural de Rhode Island, um acordo onde os jangadeiros de Maracajaú e proximidades receberiam 50% da carga salva. Mas o inspetor Pedro Alvares acusava que o subdelegado Nobre Câmara participava e dava apoio ao extravio de mercadorias da barca naufragada, sem o conhecimento do capitão Llufrio.

Porto de Baltimore, quadro de Fitz Hugh Lane
Porto de Baltimore, quadro de Fitz Hugh Lane.

Como a farinha de trigo é um produto que se transforma no contato com a água, tudo indica que a Ruth bateu nos parrachos e ficou com parte do casco fora da linha d’água, deixando muito de sua carga intacta. O inspetor Pedro Alvares informou, entre outras coisas, que todos os dias “de 100 a 200 barricas” desembarcavam na praia de Maracajaú, que os sete soldados do Corpo de Polícia de Maracajaú participavam do “roubo” e revendiam as barricas de farinha de trigo. Outra acusação dava conta que uma barcaça (nome e origem não mencionados) havia seguido para “portos do norte” com 120 barricas e que apenas 200 das 2.600 barricas, menos de 10% da carga, estavam sob a guarda da autoridade alfandegaria.

O inspetor Pedro Alvares informou também que contratou jangadeiros para salvarem barricas da Ruth, pagando 1.600 réis por unidade salva, mas parece que os jangadeiros preferiam realizar o transporte das barricas para um destino mais rentável. Pois no mesmo relato o inspetor pedia a seu chefe em Natal, João Bernardino Nunes, que pelo menos 30 praças do Corpo de Polícia fossem enviados para Maracajaú para evitar o extravio da carga, pois a entrega indevida deste material já se estendia por “mais de uma légua” ao longo da costa.

Pelo que está transcrito em O Argus Natalense, aparentemente o inspetor Pedro Alvares desejava cumprir o seu papel de fiscal da fazenda pública e cobrar as taxas alfandegarias pelos salvados da Ruth, independente do acordo feito pelo subdelegado Nobre Câmara com o capitão John Llufrio. Mas parece que seus esforços foram em vão.

Outros Acidentes

Quase dez anos depois do sinistro da Ruth, entre dezembro de 1860 e janeiro do ano seguinte uma pequena escuna norte americana chamada Madshler, de 350 toneladas, cujo comandante era o capitão Henshel, naufragou em Maracajaú com sua carga de ossos de animais, uma mercadoria que na época era destinada a ser reciclada como ração animal. Estas são praticamente as únicas indicações deste sinistro, que está registrado no periódico carioca Diário do Rio de Janeiro, edição de quarta feira, 30 de janeiro de 1861 e preservado na hemeroteca da Biblioteca Nacional.

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No mesmo jornal, na edição de 25 de maio de 1869, uma terça feira, na segunda página, na seção destinada às notícias vindas de Pernambuco, dá conta que no dia 10 de abril daquele ano um barco brasileiro chamado Santa Cruz, do tipo iate, ou “hiate” na grafia da época, registrado em Recife, havia partido da capital pernambucana com uma carga de fazendas e outros gêneros, a maioria desta pertencente ao rico comerciante Pedro José Gonçalves da Silva, para a cidade cearense de Aracati.

Dois dias depois, as oito da manhã de uma segunda feira, em meio a uma tempestade, o Santa Cruz encalha defronte ao povoado de Maracajaú. Ao bater nos parrachos foi aberto um rombo no casco de madeira, o barco encalhou e passou quatro horas enchendo de água e perdendo grande parte de sua carga. Contam que pouco foi salvo e que não se perdeu foi vendido em Natal “por conta do seguro”.

Talvez por ser um barco de pequeno porte, ou pela natureza de sua carga, ou quem sabe por ser o mesmo oriundo de um porto nordestino, as notícias sobre o sinistro desta embarcação são limitadas. Não sabemos quem era seu capitão, ou “Mestre”, nem o número de tripulantes. Desta vez nada temos sobre a participação da comunidade local no salvamento da carga e não existem problemas envolvendo agentes públicos e a carga sinistrada.

Entretanto sabemos que o frete entre Recife e Aracati foi de parcos 600 mil réis e que a avaliação do sinistro ficou na casa dos 120 contos. Consta na nota deste jornal uma forte crítica pelo uso de barcos limitados como o Santa Cruz, em detrimento da utilização de vapores no transporte de cargas.

Parrachos de Maracajaú, um afamado destino turístico
Parrachos de Maracajaú, um afamado destino turístico.

Oito meses depois do sinistro do Santa Cruz, o próximo barco a sofrer danos nos parrachos de Maracajaú é a barca inglesa Gabalva. Era o dia 11 de janeiro de 1870, uma terça feira, a barca Gabalva tinha 479 toneladas, era comandada pelo capitão W. Hyde, transportava uma carga de vinhos, móveis, fazendas e outras mercadorias. A nave era registrada em Londres, seguia de Boston (outras fontes apontam Baltimore), nos Estados Unidos, em direção à cidade australiana de Melbourne. Este acidente, tudo indica, ocorreu a noite, em meio a uma tempestade.

Apesar da carga valiosa e útil, nada foi comentado sobre problemas envolvendo o recolhimento indevido da carga deste barco.

Afundamentos Desconhecidos e Cargas Típicas de Uma Época

A barca americana chamada T. Jeffie Southard, de 830 toneladas, comandada pelo capitão G. R. Handy, que seguia de Nova York a São Francisco através do Cabo Horn, sul da Argentina, foi destruída por choque com os parrachos de Maracajaú no dia 18 de março de 1882. Logo foi despachado para a região o pessoal do serviço alfandegário de Natal e membros da Força Pública para evitar o desvio da carga. O registro deste afundamento se encontra no periódico cearense Gazeta do Norte, de 15 de abril de 1882, existente na hemeroteca da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro.

Típico padrão de uma barca americana
Típico padrão de uma barca americana.

Pouco mais de um ano após este sinistro, na metade de junho de 1883, outro barco se tornou uma nova vítima dos parrachos de Rio do Fogo. Mas a nacionalidade, nome, tonelagem, nome do capitão, quantidade de carga e destino dos tripulantes ficaram totalmente desconhecidos. Mas o jornal carioca Gazeta de Notícias, edição de sábado, 30 de junho de 1883, aponta que novamente as autoridades locais se apresavam em garantir os salvados deste barco misterioso.

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Quase no final do século XIX é a vez do patacho holandês Catherine Klesin  ir de encontro aos parrachos de Maracajaú. Os patachos eram barcos de dois mastros e tonelagem variando de 40 a 100. No caso da Catherine Klesin ela era comandada pelo capitão J. Douwes, junto com uma tripulação de quatro marinheiros (todos se salvaram) e bateu nos parrachos às três da manhã. O patacho Catherine Klesin ficou totalmente destruído, mas parte do carregamento foi salvo. Ainda sobre o que a Catherine Klesin temos a informação que o material que ela transportava era uma miscelânea de produtos que tinham sua importância no final do século XIX; carvão de pedra, malte, garrafas vazias, coque, ferro em barras, vergalhões, sal, ácido sulfúrico, tintas, cortiça e sabão de potassa.

O acidente se deu em 5 de março de 1898 e ficou registrado nas páginas do jornal natalense A República, edição do dia 8 de março.

Conclusão

Os relatos dos afundamentos em Maracajaú e Rio do Fogo ao longo do século XIX, pelas características dos barcos e de suas cargas, pouco tem do charme envolvendo as histórias dos galeões espanhóis que afundaram no Caribe abarrotados de ouro e prata. Mas o conhecimento destes sinistros mostram características praticamente desconhecidas dos problemas marítimos na costa potiguar, a relação das autoridades com estes fatos e como as comunidades tradicionais de pescadores interagiam com estes acidentes.

Relato do afundamento da barca americana T. Jeffie Southard
Relato do afundamento da barca americana T. Jeffie Southard.

Através dos relatos existentes nestes jornais antigos conseguimos informações sobre oito naufrágios ocorridos entre 1840 e 1898, de diferentes nacionalidades, transportando mercadorias variadas, provavelmente ainda latente na mente e na tradição oral dos pescadores de Maracajaú e Rio do Fogo, o que pode revelar muito mais sobre estes sinistros, se bem trabalhadas e com uma pesquisa histórica mais profunda.

E não podemos esquecer que as áreas de navegação de Maracajaú e Rio do Fogo, mesmo com todo avanço tecnológico, ainda provocam acidentes. – Ver – http://portalnoar.com/policia-divulga-video-do-resgate-a-naufragos-no-litoral-norte-do-rn/

VER NO TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/06/15/o-naufragio-do-sao-luiz/

Fontes – http://freespace.virgin.net/suesteph.baines/williamholt1752.html

http://www.bbc.co.uk/northyorkshire/content/articles/2005/04/04/coast05walks_stage1.shtml

http://fultonhistory.com/Newspapers%206/New%20York%20NY%20Tribune/New%20York%20NY%20Tribune%201851%20Nov%20-%20Jan%201852%20Grayscale/New%20York%20NY%20Tribune%201851%20Nov%20-%20Jan%

http://postingsfromthepast.blogspot.com.br/2006/08/baltimore-daily-news-november-19-1978.html

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OS JAPONESES E A EXPLORAÇÃO SEXUAL FORÇADA DURANTE A SEGUNDA GURRA MUNDIAL

Mulheres coreanas, obrigadas a se prostituirem para os militares japoneses, junto a um soldado Aliado após a libertação em 1945.
Mulheres coreanas obrigadas a se prostituirem para os militares japoneses, junto a um soldado Aliado após a libertação em 1945.

A VERGONHOSA AÇÃO DE OBRIGAR MILHARES DE MULHERES DE REGIÕES OCUPADAS A ATENDER SEXUALMENTE OS MILITARES JAPONESES 

Um dos pontos altos da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial ocorreu quando os soldados da nossa FEB cercaram e aprisionaram a 148º Divisão de Infantaria Alemã, inclusive o seu comandante, o general Otto Freter Pico e todo o seu oficialato.. Além de remanescentes da Divisão Bersalhieri Italiana e o seu comandante, o general Mario Carloni.

Passado um tempo depois da captura dos militares das forças nazifascistas, em meio ao fim das hostilidades, dizem que rolou uma peladinha entre brasileiros e alemães.

Militar alemão detido por brasileiros da FEB em 1945.
Militar alemão detido por brasileiros da FEB em 1945.

Não sei quem ganhou, ou quem perdeu, se o fato se deu com a anuência dos oficiais e nem mesmo possuo confirmação que isso tenha realmente ocorrido. Mas não duvido que a pelota rolou. Enfim somos loucos por bola, muito pouco belicistas e no final das contas a maioria dos brasileiros são avessos a guerras.

Mas a vida dos prisioneiros de guerra não era nada fácil para aqueles que caiam nas mãos das forças do Eixo, ou de militares de regimes totalitários (como os da extinta União Soviética).

Em relação a este tema, o que venho lendo sobre o maior conflito da história da humanidade me aponta que talvez os mais terríveis captores tenham sido os japoneses. É incrível a quantidade de horrores que os filhos do Império do Sol Nascente praticaram contra seus prisioneiros e isso marcou para sempre a história japonesa.

Soldado japonês praticando exercício de ataque com baioneta em um corpo de um chines.
Soldado japonês praticando exercício de ataque com baioneta em um corpo de um chines.

Me chama atenção estes fatos, quando lembro que este é o mesmo povo pelo qual a maioria dos brasileiros possui um enorme respeito. Admiramos a sua devoção pela honra, seu fervor pelas tradições e a capacidade que eles possuem para desenvolver a sua nação. Não podemos esquecer que uma parcela considerável de nossos compatriotas é descendente de pessoas que vieram deste milenar império.

SADISMO 

Recentemente li o livro “Invencível – Uma História Real de Coragem, Sobrevivência e Redenção”, de autoria da jornalista americana Laura Hillenbrand, que narra a vida de Louis Zamperini.

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Este era um filho de imigrantes italianos, nascido no estado de Nova York, que depois de uma infância irrequieta vai em 1936 integrar a equipe dos Estados Unidos que participou da Olimpíada de Berlim. Zamperini dá um show na disputa dos 5.000 metros, que lhe vale um chamado para receber os cumprimentos de Hitler. Durante a Segunda Guerra Mundial, sua última missão acaba em tragédia. O seu avião bombardeiro B-24 sofre uma pane e cai no mar, matando quase toda a tripulação. Louie e mais dois colegas sobrevivem. Sem água ou comida, ficam por quase um mês à deriva no oceano à beira da morte por inanição, até que são encontrados pelos japoneses e viram prisioneiros.

A partir deste ponto cada dia é de tortura, humilhação e sofrimento, fato este comum e normal para todos os prisioneiros Aliados nas mãos dos nipônicos. Mas o ex-corredor chega vivo ao final da guerra; a libertação só vem depois dos lançamentos das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.

Soldados japoneses atirando em prisioneiros indiano da etnia Sikh, que estão sentados com os olhos vendados em um semi-círculo a cerca de 20 metros de distância. Fotografia encontrada entre os registros japoneses quando as tropas britânicas reocuparam Cingapura.
Soldados japoneses atirando em prisioneiros indianos da etnia Sikh, que estão sentados com os olhos vendados em um semi-círculo a cerca de 20 metros de distância. Fotografia realizada em 1942 e encontrada entre os registros japoneses quando as tropas britânicas reocuparam Cingapura em 1945.

Pois bem, em grande parte desta obra a autora trata de Zamperini como um cativo dos japoneses. Em meio ao relato do sofrimento do ex-atleta, ela trás muitas informações sobre o sistema de encarceramento militar japonês na época. Entre os dados aponta que do total de prisioneiros americanos capturados pelos alemães, apenas 1% morreram. Mas este número salta para 15% de mortos no caso dos americanos aprisionados pelos japoneses. E vale ressaltar que o número de prisioneiros americanos junto aos japoneses foi bem menor que o número de americanos capturados pelos alemães.

O livro de Laura Hillenbrand trás uma grande quantidade de detalhes sobre as surras, humilhações, a dor e as consequências destes episódios que Louis Zamperini passou.

Aitape, Nova Guiné. 24 de outubro de 1943. Fotografia encontrada no corpo de um soldado japonês mostrando o sargento Leonard G. Siffleet prestes a ser decapitado com uma espada por Yasuno Chikao. Chikao morreu antes do fim da guerra.
Aitape, Nova Guiné, 24 de outubro de 1943. Fotografia encontrada no corpo de um soldado japonês mostrando o sargento Leonard G. Siffleet prestes a ser decapitado por Yasuno Chikao. Chikao morreu antes do fim da guerra.

Com o fim da guerra uma grande quantidade de guardas e comandantes de campos de prisioneiros foi detida, muitos destes foram condenados a morte pelos seus abusos e alguns executados.

Mas logo as situações geopolíticas mudaram. A União Soviética e a China Comunista eram os grandes inimigos do Mundo Livre e capitalista. Na Coréia ocorria uma guerra fratricida e a posição geográfica do Japão, sua força de trabalho e a capacidade do seu povo, mostravam que o antigo inimigo era agora um aliado de primeira linha.

Logo as penas de morte foram alteradas para prisão perpetua e depois de um tempo estes sádicos eram soltos. Os ex-prisioneiros americanos, ingleses, holandeses, australianos e de outros países Aliados estavam longe, ninguém no Japão queria saber de suas dores e o mundo tinha mudado.

Prisioneiros australianos e holandeses extremamente desnutrido em Tarsau na Tailândia, 1943.
Prisioneiros australianos e holandeses extremamente desnutridos em Tarsau, Tailândia, 1943.

Mas incrível mesmo é que no livro de Laura Hillenbrand existe a informação que passado algum tempo, os japoneses começaram a erguer monumentos em honra dos antigos comandantes e guardas de campos de prisioneiros que foram executados. Muitos deles eram homenageados como “Heróis da pátria”, uma situação que na então Alemanha Ocidental seria impensável.

Mas em minha opinião, a pior situação perpetrada pelos japoneses foi a vergonhosa, triste e terrível prática de forçarem milhares de mulheres a se prostituirem a força e assim satisfazerem sexualmente seus militares durante a Segunda Guerra Mundial. 

COVARDIA 

Elas eram chamadas “mulheres de conforto”, “escravas militares do sexo”, “mulheres de conforto militar” e, em japonês, “jugun ianfu”.

Mulheres levadas na carroceria de um caminhão para um bordel oficial.
Mulheres levadas na carroceria de um caminhão para um bordel oficial.

Os puteiros oficiais em que elas eram estupradas, eram chamados eufemisticamente de “casas de conforto” e os primeiros foram criados em 1932, durante a batalha de Xangai. Após a Segunda Guerra Sino-Japonesa de 1937, estas casas foram instaladas geralmente em terras ocupadas. Estima-se que antes e durante a Segunda Guerra Mundial, entre 100.000 a 200.000 mulheres foram forçadas a oferecer serviços sexuais aos soldados japoneses e havia cerca de 2.000 destes locais verdadeiramente demoníacos.

Este programa foi aprovado pela Conferência Imperial, que era composta pelo imperador, representantes das Forças Armadas e os principais ministros. A conferência foi formada depois que o Japão invadiu a Manchúria em 1937.

Aproximadamente 80 a 90% das “mulheres de conforto” eram oriundas da China e da Coréia, mas também havia mulheres das Filipinas, da Indonésia e até mesmo holandeses oriundas de países que o Japão tinha invadido.

Em fevereiro de 1944 dez mulheres holandesas foram levadas à força de campos de prisioneiros em Java para se tornarem escravas sexuais. Eles foram sistematicamente espancadas e estupradas dia e noite.

Jan Ruff-O'Herne na época da guerra.
Jan Ruff-O’Herne na época da guerra.

Em 1990, Jan Ruff-O’Herne testemunhou na condição de vítima a um comitê de Representantes da Câmara dos Estados Unidos – “Muitas histórias foram contadas sobre os horrores, brutalidades, o sofrimento e a fome das mulheres holandesas em campos de prisioneiros japoneses. Mas uma história nunca foi contada, a história mais vergonhosa das piores violações dos direitos humanos cometidas pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial: A história das “mulheres de conforto” e como essas mulheres foram forçadas a prestar serviços sexuais para o Exército Imperial Japonês. No chamado “fraldário” eu era sistematicamente espancada e estuprada dia e noite. Mesmo o médico japonês me estuprava cada vez que visitava o bordel para examinar-nos no combate a doenças venéreas”.

Jan Ruff-O'Herne  na atualidade, junto a outras mulheres que sofreram, nas mãos dos japoneses, denunciando os crimes de guerra.
Jan Ruff-O’Herne na atualidade, junto a outras mulheres que sofreram nas mãos dos japoneses, denunciando os crimes de guerra.

Em sua primeira manhã no bordel, fotografias de Jan Ruff-O’Herne e de outras mulheres foram levadas e colocadas na varanda, utilizada como uma área de recepção para os japoneses escolherem com calma as suas escravas sexuais. Quem ficava grávida era forçada a abortar. Após algum tempo as meninas foram transferidas para um acampamento em Bogor, Java Ocidental, onde foram reunidas as suas famílias. Os militares japoneses alertaram as detidas que se alguém comentasse o que havia acontecido, elas e seus familiares seriam mortos. Vários meses depois, os O’Hernes foram transferidos para um acampamento na Batavia, que foi libertado em 15 de agosto de 1945.

Aproximadamente três quartos das mulheres de conforto morreram e a maioria das sobreviventes ficou com terríveis traumas sexuais ou permanentes marcas de doenças sexualmente transmissíveis.

Uma das mulheres utilizadas pelos japoneses junto a um oficial Aliado.
Uma das mulheres utilizadas pelos japoneses junto a um oficial Aliado.

Depois da guerra haviam rumores sobre esta forma de escravatura, mas somente em 1991 a situação veio a tona. Foi quando uma mulher sul-coreana chamada Kim Hak tornou-se a primeira pessoa a falar publicamente sobre a existência da prostituição forçada nas áreas ocupadas pelo Japão. Desde então o assunto tornou-se de conhecimento público, com outras sobreviventes relatando os fatos e exigindo justiça.

Muitas mulheres de conforto morreram sem ouvir um pedido de desculpas oficial do Governo do Japão, ou receber uma compensação por seu sofrimento.

CANALHICE 

Apesar das evidências irrefutáveis ​​de que o Japão desencadeou uma guerra agressiva através da Ásia e da região do Pacífico Ocidental entre 1937 e 1945, esta nunca foi francamente reconhecida pelo dominante Partido Liberal Democrático do Japão (LDP), que governou o país por quase 50 anos.

Chineses prestes a serem enterrados vivos por soldados japoneses.
Chineses prestes a serem enterrados vivos por soldados japoneses.

Após o fim da ocupação aliada, em 1952, os tradicionalistas japoneses reafirmaram seu controle sobre a educação. Em 1956 o Partido Democrático Liberal denunciou escolas que transmitiam a seus alunos a verdade sobre a guerra e os crimes praticados pelos japoneses. Pouco tempo depois as novas Forças de Defesa do Japão publicaram uma versão da história da Guerra do Pacífico, que exonerava totalmente o Japão militar imperial de qualquer culpa por eventuais crimes de guerra. Logo livros de história para crianças em idade escolar eram censurados para evitar que estas aprendessem a verdade sobre a agressão militar do Japão.

Às vezes, as falsificações e distorções da história em livros escolares japoneses tornaram-se suficientemente chocantes para produzir uma onda de protestos internacionais. Em 1985, por ocasião do quadragésimo aniversário da rendição do Japão em 1945, um novo livro de história foi lançado para as escolas, onde estava escrito que os exércitos do Japão entraram na China, Filipinas, Indochina Francesa, Península Malaia e Índias Orientais Holandesas, não como invasores, mas para “libertar” seus irmãos asiáticos da opressão colonial ocidental.

Sem comentários!
Sem comentários!

O debate sobre o conteúdo dos livros de história das escolas continua e os políticos japoneses só parecem recuar quando o nível de protesto dos vizinhos asiáticos e de liberais japoneses causa constrangimento para o país internacionalmente.

A SITUAÇÃO CONTINUA

Recentemente o atual prefeito da cidade japonesa de Osaka causou polêmica ao afirmar publicamente que o sistema que forçou milhares de mulheres de outros países a se prostituirem durante a Segunda Guerra Mundial foi “necessário”.

Hashimoto disse que escravas sexuais durante a Segunda Guerra foram necessárias (Foto: AFP)
Hashimoto disse que escravas sexuais durante
a Segunda Guerra foram necessárias (Foto: AFP)

Toru Hashimoto disse que as “mulheres de conforto” deram aos soldados japoneses uma “chance para relaxar”. O prefeito disse que naquelas circunstâncias “Em que balas voavam como chuva e vento e os soldados corriam o risco de perder suas vidas, para que eles descansassem, um esquema de mulheres de conforto era necessário. Qualquer um pode entender isso!”.

Os militares japoneses podiam entender, mas as mulheres que eram estupradas certamente que não!

Hashimoto é um dos fundadores do partido nacionalista japonês denominado “Restauração”, que tem poucos assentos no parlamento japonês e não faz parte do governo. Ele foi o governador mais jovem da história do Japão antes de se tornar prefeito de Osaka. No ano passado, ele já havia causado polêmica quando disse que o Japão precisava de uma “ditadura”

"Mulheres de Conforto"
“Mulheres de Conforto”

Hashimoto reconheceu que as mulheres eram forçadas a serem escravas sexuais contra sua vontade. Mas ele lembrou que o Japão não foi o único país a usar o sistema, apesar de ser “responsável por suas ações”. 

TENSÃO REGIONAL

A forma como o governo do Japão interpreta a participação do país na Segunda Guerra sempre foi fonte de tensão com os vizinhos e, após o pronunciamento de Hashimoto, uma autoridade sul-coreana expressou sua “profunda decepção”.

“Há um reconhecimento internacional de que a questão das mulheres de conforto remonta a casos de estupro cometidos pelo Japão durante seu passado imperial, em uma série de violações de direitos humanos”, disse um porta-voz do ministério das Relações Exteriores da Coréia do Sul à agência de notícias AFP.

O Exército Imperial Japonês na época de suas vitórias.
O Exército Imperial Japonês na época de suas vitórias.

Depois de muita pressão, em 1993 o Japão emitiu um pedido de desculpas pela “dor imensurável e o sofrimento causado às mulheres de conforto”. Dois anos depois o país também se desculpou por suas agressões durante a guerra.

Mas apesar destas iniciativas positivas, as cicatrizes ainda eram muito evidentes.

Em 2012 o governo coreano voltou a exigir que o Japão assuma plenamente sua responsabilidade na exploração das mulheres sul-coreanas durante a Segunda Guerra Mundial.

Na Coréia do Sul, no dia 15 de agosto de 2012 é celebrado o “Dia da Libertação”, que lembra o fim da colonização japonesa (1910-1945) e coincide com a derrota do Japão. Durante uma cerimônia em memória do fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente sul-coreano Lee Myung-bak declarou que “A questão da mobilização das mulheres de conforto pelo exército imperial japonês vai além das simples relações entre a Coréia do Sul e o Japão. Trata-se de uma violação dos direitos das mulheres cometidos em tempos de guerra e incentivo o governo japonês a agir com responsabilidade neste tema”.

Exército japonês sendo derrotado.
Exército japonês sendo derrotado.

Ele continuou acrescentando que “O Japão é um vizinho próximo, um amigo com o qual compartilhamos valores fundamentais e um sócio importante com o qual devemos trabalhar pelo futuro. Mas temos que deixar claro que os obstáculos na história das relações entre Coréia do Sul e Japão dificultam a marcha comum em direção a um futuro melhor no nordeste da Ásia e os intercâmbios bilaterais”.

Em Taiwan, que também foi ocupado pelo Japão, ocorreram manifestações nas quais foram exigidas desculpas de Tóquio pela exploração sexual de mulheres durante a guerra.

Ainda em 2012 o primeiro-ministro nipônico Shinzo Abe fez uma nova declaração sobre a Segunda Guerra Mundial, onde anunciou que concorda com os seus antecessores e reafirma que o Japão “causou grandes danos e sofrimentos a muitos países”.

A prontidão como a Alemanha Ocidental do pós-guerra expressou seu remorso e tomou medidas para tentar resolver os erros dos nazistas, tem sido uma parte vital da evolução de uma Alemanha unida, democrática, confiável e respeitada em todo o mundo.

Rendição formal das forças japonesas no encouraçado USS Missouri.
Rendição formal das forças japonesas no encouraçado USS Missouri.

Até hoje a relutância do Japão de pós-guerra em fazer a mesma coisa resultou em uma situação exatamente oposta, manchado sua reputação na comunidade internacional.

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O RIO GRANDE DO NORTE HÁ DUZENTOS ANOS

UM MAPA DE 1811 MOSTRA INTERESSANTES ASPECTOS DA TERRA POTIGUAR

Rostand Medeiros – IHGRN

Através do amigo José Cardoso de Paula Morais, que da sua bela Cidade Maravilhosa, me manda dos arquivos da fantástica Biblioteca Nacional, um interessante mapa digitalizado do nosso Rio Grande do Norte, do qual tenho enorme orgulho de ser filho desta terra.

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A foto do mapa, conforme recebi no original. Fonte – Biblioteca Nacional, através de José Cardoso de Paula Morais 

ATENÇÃO – NO LINK QUE SEGUE É POSSÍVEL VISUALIZAR O MAPA EM ARQUIVO HTM, COM ÓTIMAS POSSIBILIDADES DE AMPLIAÇÃO. 

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart542340.htm

Intitulado “Mappa Topographico da Capitania do Rio Grande do Norte”, é datado de 1811 e a sua execução e foi realizado sob as ordens do então governador das terras potiguares, José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, um homem aparentemente bastante interessado em saber o que havia na área sob a sua administração, conforme veremos mais adiante.

Aparentemente o autor específico da carta topográfica é um sábio de nome “Montenegro”, conforme está mostrado no canto esquerdo inferior deste material. Se não estou errado, vemos escrito “Montenegro desenhou” e acompanha um indicativo do local e do ano onde o “Mappa Topographico da Capitania do Rio Grande do Norte” foi finalizado – “Recife:1811”.

Um ponto de interesse são as desembocaduras dos rios, os cursos destes para o interior, o quanto estes eram caudalosos etc. Como na carta não aparece o mínimo rasgo de uma simples estradinha, estes rios eram os verdadeiros caminhos potiguares da época. Vemos os Rios Piranhas, “Apody”, o Maxaranguape, entre outros.

Já a nossa capital é denominada “Cidade do Natal” e está junto a “Barra do Rio Grande”.

Destaque também para as pequenas áreas habitacionais, muitas destas nada mais que simples arruados, marcados com uma uma cruz. Esta era uma marcação muito comum em mapas desta época, que servia também para mostrar a um crente seguidor da igreja que naqueles ermos havia uma casa do senhor, onde ele poderia fazer suas orações.

Como era uma época sem estradas de qualidade, sem placas indicativas (a maioria do povo era analfabeta) e muito menos GPS, o mapa mostra as muitas serras do nosso sertão, servindo como pontos de referência para possíveis viajantes que seguissem a conhecer a região.  Vemos a Serra de Martins, a de Luís Gomes, de “Sta. Anna” e a grande Serra do Camará, hoje mais conhecida como Serra de São Miguel.

O mapa se encontra bastante amarelado, mas ainda bem visível no original. Não tenho ideia de suas dimensões reais. Mesmo com todas as dificuldades da baixa resolução, vemos que o autor olhou o nosso estado como um observador posicionado ao norte, parecendo a olhos atuais que a carta está de cabeça para baixo.

Mas na perspectiva de quem o concebeu, importava mostrar principalmente a localização dos pontos de atracação ao longo do nosso litoral (marcado com pequenas âncoras), uma ação muito importante para o uso do principal meio de transporte e de escoamento de mercadorias da época – o marítimo.

Tanto assim que na base do mapa encontramos 34 indicações dos pontos do nosso litoral, com informações para os navegantes e marcações de áreas ao longo de nossas praias. Tudo de suma importância para os navegadores daquela época.

Muitas das denominações litorâneas foram esquecidas, ou alteradas. É o caso da de número 1, com a denominação “Mossoró”, onde vemos a nossa primeira praia a partir do Ceará e acompanhado do indicativo “Banco de Areia”, provavelmente a região da praia de Areias Alvas.

Já outras marcações permanecem, como as de números 2 e 3, onde aparece a denominação ainda corrente da bela praia de Redonda. Interessante é que neste ponto do mapa já aparece o nome “Ponta do Mel”, mas a localidade não foi contemplada com uma numeração e nem algum indicativo sobre a área.

O mapa com alterações do programa PICASA

Já na de número 9 aparece o nome “Guamaré” e não mais “Água-Maré”, como era denominado em tempos anteriores a feitura desta carta.

A marcação 10 é apresentada como “Gallos” (ainda existente, próximo ao município de Galinhos) e seguem inúmeras outras como o Cabo de São Roque e Maxaranguape (25), Ponta Negra (28), Pirangí (29), Tabatinga (31) e Baía Formosa como a nossa última praia antes da mal traçada fronteira com a Paraíba.

O mapa chega a mostrar locais que sumiram da face da terra, como no caso da Ilha de Manuel Gonçalves.

Neste local consta que existiu uma pequena fortaleza, construída pelo mesmo governador que mandou fazer o mapa aqui mostrado. Ali teve início uma povoação que hoje é a cidade de Macau. Ocorre que devido a ações da natureza, esta ilha desapareceu, tornando-se uma verdadeira “Atlântida Potiguar”. Com ela sumiu o fortim, as primeiras casas de Macau e grande parte de sua história. Os Macauenses mudaram suas casas para outro local e lá a cidade permanece até hoje.

Detalhe do mapa de 1811, mostrando a região de Macau

Mas o mapa mostra que a “Manoel Gonçalves”, com o número 7, estava lá em 1811.

A partir do local onde está a desembocadura do Rio Piranhas, seguindo os contornos do rio um pouco mais acima, vamos encontrar o local “Oficinas”. Esta era uma antiga povoação que aproveitava a grande quantidade de sal existente na região, junto com a carne de gado dos rebanhos que ali eram criados e produzia charque em suas denominadas oficinas. Um pouco mais acima de “Oficinas” encontramos a “Villa da Princeza”, o atual município de Assú. E por aí vai o que se pode aproveitar desta interessante carta.

Sobre o homem que mandou confeccioná-lo, consta que José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque foi um militar de artilharia e funcionário público da coroa portuguesa com muitos serviços prestados.

Mas nem tanto assim.

Segundo os “Annais de Pernambuco”, em 21 de Maio de 1801, um delator informou às autoridades da Capitania de Pernambuco os planos de um grupo de conjurados, que desejavam deflagrar um movimento separatista, o que conduziu à detenção de diversos implicados. Vejamos o que foi publicado sobre o fato.

O Forte dos Reis Magos, na Barra do Rio Grande, na época dos holandeses. Fonte – Foto do autor, feita no Instituto Ricardo Brennand, em Recife, Pernambuco

“Em 10 de junho do mesmo ano é preso o comandante militar da freguesia do Cabo de Santo Agostinho, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, ilustre e alentado fidalgo, senhor do engenho Suassuna em Jaboatão, como chefe de uma conspiração política, que tinha por objeto formar de Pernambuco uma república independente sob o protetorado de Napoleão Bonaparte, o grande líder francês.

Um dos seus irmãos, o terceiro, José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, então em Lisboa, figurava na conjuração como agente no Reino, e escapou de ser preso, fugindo para a Inglaterra.

O público jamais penetrou os esconderijos deste mistério, porque molas reais e secretas fizeram correr sobre ele cortinas impenetráveis; foi certo, contudo, que rios de dinheiro correram pelas religiosas mãos de Frei José Laboreiro, respeitável pelo seu saber e virtudes, lente de teologia dogmática do Seminário Episcopal de Olinda, e de grande prestígio na corte, de onde recentemente chegara, tirando por fruto serem os acusados restituídos à liberdade, à posse dos seus bens sequestrados, e à estima e prêmios do soberano”.

José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque soube dar a volta por cima nesta situação e em 23 de março de 1806 é designado para governar a capitania do Rio Grande do Norte.

Câmara Cascudo (In “História do Rio Grande do Norte”, MEC, 1955, páginas 130 e 131) comenta que Cavalcanti foi um dos melhores governadores que o estado já teve e exerceu seu mandato até maio de 1811.

Além de erguer pequenos fortes de pedra e cal ao longo do litoral potiguar, entre outras ações Cavalcanti fundou um asilo para as viúvas dos soldados.  O governador mandou proceder em 1805 a um censo demográfico, que apontou existirem 49.181 potiguares, sendo 24.834 homens e 24.347 mulheres, entre brancos, pardos, negros e índios.

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Escreveu Cascudo que este governante se preocupava desde abrir estradas, a comida dos presos e teria sido o primeiro a promover, em 1809, a vacinação de potiguares contra doenças, tendo sido utilizada a vacina jenneriana. (1)

Cavalcanti estava no poder quando o viajante inglês Henry Koster passou por Natal a cavalo, vindo de Recife e seguindo em direção ao Ceará. Cascudo informa que Koster, apesar da miudeza do lugar, elogiou alguns aspectos gerais da capital da pequena província. (2)

Este governador reformou até mesmo os costumes sociais em Natal, onde introduziu o uso de tecidos ingleses e promoveu o costume das reuniões sociais. Será então que os natalenses cobriam suas “vergonhas” com simples panos de chita e mal colocavam a cabeça para fora de seus alpendres de tão matutos que eram?

Não sei se José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque esteve envolvido na Revolução de 1817. Creio que não, pois em fevereiro de 1817 ele assumiu o posto de governador de Moçambique, na África. Consta que lá restaurou a Fortaleza de Mossuril e faleceu em setembro do ano seguinte.

Notas

Nota 1 – Descoberta pelo criador da vacinação, o médico inglês Edward Jenner (1749 a 1823), a forma como esta vacina chegou ao Brasil é uma verdadeira história do terror, do que era a escravidão e de como seus senhores utilizavam suas “peças”.

Em 1804 comerciantes baianos, sob o patrocínio de Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta, o poderoso Marquês de Barbacena, bancaram a viagem de alguns escravos à Europa para serem inoculados com o chamado “pus vacínico” e trazerem a vacina jenneriana para o Brasil. Já no ano seguinte, os capitães-mores de algumas províncias tornavam a vacinação obrigatória, entre estes estava o atuante Cavalcanti.

Para entender melhor o porquê de enviar escravos nesta viagem nada turística, a vacina descoberta por Jenner no final do século XVIII a partir de observações sobre a relação entre a varíola e a imunidade provocada no homem quando em contato com o “cow-pox”, ou pústula da vaca, doença similar à varíola desenvolvida pelos bovinos. O produto extraído do “cow-pox” foi denominado “vacina” e ao ser inoculado no homem causava erupções semelhantes às da varíola. A vacina jenneriana consistia na inoculação da “linfa” ou “pus variólico” produzido por estas erupções da pele humana provocadas pelo “cow-pox”. Por este motivo, também era chamada vacinação “braço a braço” devido ao método. Este tipo de vacina, porém, começou a ser questionado quando se percebeu que, além de perder o efeito após algum tempo, ele poderia estar associado à transmissão de outras doenças, em particular da sífilis.

Ver – http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/P/verbetes/instvacimp.htm

Nota 2 – Filho do comerciante inglês de Liverpool, John Theodore Koster, Henry Koster nasceu em Lisboa, Portugal. Não se sabe ao certo a data do seu nascimento, mas ao chegar no Recife, no dia 7 de setembro de 1809, consta que tivesse 25 anos de idade. Considerado um dos mais importantes cronistas sobre o Nordeste brasileiro, Koster viajou para o Brasil em busca de um clima tropical para curar uma tuberculose.

Teve um papel importante na vida social, artística e até política do Recife na época. Fez muitas amizades, conheceu governadores, senhores-de-engenho, comerciantes, coronéis.

Falava o português com fluência, o que fazia com que algumas pessoas duvidassem da sua nacionalidade, tratando-o brasileiramente por Henrique da Costa.

Em 1810, sentindo-se bem melhor da doença que o acometia, resolveu viajar a cavalo para a Paraíba e de lá foi até Fortaleza, no Ceará. Voltou ao Recife no início de fevereiro de 1811 e já no final do mês viajou novamente, desta vez por mar, para o Maranhão, de onde regressou para a Inglaterra.

Em 27 de dezembro do mesmo ano, voltou ao Recife e fez uma viagem ao sertão de Pernambuco. Quando retornou, arrendou o engenho Jaguaribe, na ilha de Itamaracá, tornando-se agricultor e senhor-de-engenho.

Como bom observador anotava, com detalhes, tudo o que via em suas viagens e no seu dia-a-dia. Tomava parte da vida brasileira, conhecendo seu povo, seus usos e costumes, convivendo nas ruas com as mais diferentes camadas da população e frequentando festas da sociedade local.

Retornando à Inglaterra, em 1815, resolveu escrever um livro sobre o Brasil. Publicou-o em Londres, sob o título “Travels in Brazi”l, em 1816. A obra obteve uma grande repercussão na Europa, com várias edições publicadas em diversas línguas. A primeira edição brasileira do livro, com tradução de Luís da Câmara Cascudo foi publicada em 1942, com o título Viagens ao Nordeste do Brasil.

Koster não pretendia voltar ao Brasil, mas ao concluir o livro e sentindo o recrudescimento da tuberculose, retornou a Pernambuco em 1817.

Transferiu-se depois para a Goiana, ao norte de Pernambuco, à procura de um clima melhor para sua saúde. Segundo informações de um outro viajante inglês, seu contemporâneo James Henderson, Henry Koster teria retornado ao Recife em fins de 1819, onde faleceu no início de 1820, sendo enterrado no Cemitério dos Ingleses, em local não identificado.

Ver http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=291&Itemid=187

 P.S. – Antes que alguém reclame da resolução do mapa, eu recebi o material com 406 KB e, mesmo não sendo nenhum expert, tentei dar uma melhorada através do programa PICASA. Mas o resultado não ficou 100%. De forma alguma reclamo o regalo recebido, antes disso. Mas é o que tenho para mostrar.

Um forte abraço ao amigão José Cardoso de Paula Morais, a Laura, a Paulinha e estou na luta para ir para o Rio no fim do ano e visitar estes maravilhosos arquivos.

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