1945 – ALGUNS ASPECTOS DA GRANDE PONTE AÉREA CRIADA PARA TRAZER OS SOLDADOS AMERICANOS DA EUROPA ATRAVÉS DE NATAL

Uma Ideia Desse Retorno e Os Momentos Desses Militares em Parnamirim Field

Autor – ELTON C. FAY – Redator da equipe da Associated Press.

Publicado Originalmente no THE BINGHAMTON PRESS, de Binghamton, New York, EUA, edição de sábado, 25 de agosto de 1945

CADERNO DE CORRESPONDENTES: SOLDADOS RETORNANDO AOS ESTADOS UNIDOS POR VIA AÉREA A UMA TAXA DE 700 HOMENS POR DIA.

Natal, Brasil – Mais de 32.000 soldados vindos da Europa para casa, passam por esta Base Aérea dos Estados Unidos na região oriental da América do Sul. Eles passam em um fluxo constante. Mais de 700 homens por dia vem em aviões de Casablanca, Norte da África, em voos de até 17 horas. Apenas alguns dias a mais e eles estarão em casa.

Esses jovens tiveram sorte. Eles são prioridade máxima. Em geral, eles são homens destinados a baixa do serviço ativo. Separados de suas antigas organizações militares e movendo-se como indivíduos eles não teriam prioridade de viagem, que foi definida originalmente quando era urgente a redistribuição de soldados para os campos de batalha do Pacífico. Sob circunstâncias normais eles seriam os últimos a sair Europa por navios oceânicos, demorando alguns meses para isso.

Parnamirim Field – FOTO GETTY – IVAN DIMITROV

Mas a maior companhia aérea do mundo – A Força Aérea do Exército dos Estados Unidos e o seu Comando de Transporte, no entanto, tinha aviões – centenas deles a mão.

Este é um exemplo aonde o caminho mais curto para casa pode ser através do trecho mais longo. De navio eles teriam de percorrer cerca de 3.000 milhas, e de avião mais do que o dobro dessa distância. Seguindo uma rota descendo para Casablanca, Marrocos, cruzando a linha do equador e atravessando o Oceano Atlântico até Natal. Depois voando através do Caribe até os Estados Unidos. Em navios de transporte de tropas os soldados levariam em média 10 ou 12 dias através do Atlântico Norte. Já fazendo a viagem aérea pelo Sul, eles alcançam os Estados Unidos em cerca de três dias.

O acampamento militar de Parnamirim Field – FOTO GETTY – IVAN DIMITROV

O Campo de Parnamirim e seu imenso acampamento militar é o ponto de transferência do soldado-viajante. Ele pousa aqui no meio do caminho para casa, geralmente em um avião de transporte quadrimotor Douglas C-54. Muitos talvez estejam cansados de ficar ouvindo o barulho dos motores por 17 horas e até um pouco mais. Fartos das rações K – mas com os Estados Unidos a apenas dois dias de viagem.

Desembarque de um militar americano de uma aeronave C-87, enquanto um técnico brasileiro prepara-se para colocdação de inseticida na aeronave contra a malária – FOTO GETTY – IVAN DIMITROV

O grande avião taxia até a linha principal, representantes do Exército Americano sobem a bordo, incluindo médicos que fazem a colocação de pesadas doses de spray inseticida que enche o avião. A ideia é evitar que os insetos que transmitem a malária desembarquem impunimente por aqui, ou sigam mais adiante.

Alguns Estão Assustados.

Douglas C-54 – Foto – US Army.

Um ou dois deles dormiram no caminho em seus assentos, ou enrolados em um cobertor no chão. Muitos dos homens, muitas vezes a maioria, nunca voaram antes.

Eles estão cansados. De vez em quando eles ficam com medo das sacolejadas no voo. A terra parece boa para eles. Eles contam e repetem o pior de seus medos que passaram na viagem – o salto sobre a água, sobre o Atlântico (sem perceberem que logo mais adiante estariam voando centenas de quilômetros sobre a selva amazônica).

So9ldados americanos em trânsito por Parnamirim Field Fonte – FOTO GETTY – IVAN DIMITROV

Houve alguns casos tremendos em que os soldados recusaram a seguir de avião pelo medo. Nesse caso estes eram despachados para Recife afim de embarcarem para casa no próximo navio a vapor. O Exército não pode obrigar seus homens a voar.

Seria possível em menos de duas horas transferir esses soldados dos grandes aviões transoceânicos para os transportes bimotores menores com destino ao Estados Unidos, mas os homens são mantidos aqui (Parnamirim Field) para dormir em beliches e ter refeições regulares.

A média de permanência deles é de 24 horas. O mau tempo daqui até Miami, Flórida, às vezes reduz o número de operações de voo diárias e exige uma estadia um pouco mais longa.

Não Consigo Sair Do PX

O objetivo é tornar a vida tão mais agradável possível. (Nenhum lugar é melhor que casa para um soldado indo nessa direção.) Natal, por uma aberração do clima, é um local fresco, varrido pela brisa constante, mesmo localizado em uma região seca.

Trabalho normal e diário em Parnamirim Field – FOTO GETTY IVAN DIMITROV

Para seguir os regulamentos de saúde do governo brasileiro o soldado em trânsito não pode sair desse posto, até mesmo para a cidade próxima de Natal. Mas ele encontra aqui um entretenimento melhor que a configuração média e uma chance de se exercitar, comer e dormir.

Esses soldados vão encontrar, no entanto, alguns aborrecimentos antes que ele tenha aquele pedaço de papel que vai libertá-los das regras, regulamentos e do exército. O oficial de instrução que conheci a bordo do avião me disse, com um sorriso irônico: “– Você vai descobrir que quanto mais perto chegar de casa, mais difícil será a guerra. Mantenha a camisa abotoada e as calças arregaçadas”.

Para um soldado que deseje realizar uma viagem de compras, este é o lugar. Possui um dos maiores posto de trocas (PX) do exército. Mensalmente, as vendas aumentam como US$ 500.000 (quinhentos mil dólares). O produto que está no topo da lista dos soldados para compras é a “bota mosqueteira”, uma meia bota de couro fabricada em toda a América do Sul. Bolsas de couro de jacaré vem em segundo lugar.

1945 – ALGUNS ASPECTOS DA GRANDE PONTE AÉREA CRIADA PARA TRAZER OS SOLDADOS AMERICANOS DA EUROPA ATRAVÉS DE NATAL - Um Pequeno Vislumbre Desse Retorno e Os Momentos Desses Militares em Parnamirim Field
Outro aspecto do C-54 – Foto – US Army

Alguns homens, cerca de meia dúzia por dia, descobrem que pequenas doenças interrompem a viagem para casa. Se eles mostram temperaturas alteradas, ou outras evidências de doenças, elas permanecem em Parnamirim até o problema desaparecer e assim evitar que alguma doença contagiosa se instale.

ELTON C. FAY foi um repórter da Associated Press que atuou nos conflitos que envolveram os Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial até a Guerra do Vietnã. Ele foi um dos poucos repórteres informados antes dos bombardeios do general Jimmy Doolittle contra no Japão em abril de 1942 e durante o resto do conflito escreveu sobre os principais eventos da guerra. Esteve em duas ocasiões em Natal e Parnamirim Field. Fay ingressou no serviço de notícias em Albany, New York, e mudou-se para Washington em 1932, cobrindo o antigo Departamento da Marinha e depois junto ao Pentágono. Faleceu aos 81 anos, em 1º de setembro de 1982.

BBC NEWS – SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: QUANDO 600 AVIÕES DOS ESTADOS UNIDOS CAÍRAM NO HIMALAIA

(DETALHE – MUITOS DESSES AVIÕES ACIDENTADOS ESTIVERAM EM NATAL)

Autor – Soutik Biswas – Correspondente da Índia*

Fonte – https://www.bbc.com/news/world-asia-india-67633928

Um Museu Recém-inaugurado na Índia Abriga os Restos de Aviões Americanos Que Caíram no Himalaia Durante a Segunda Guerra Mundial. Soutik Biswas, da BBC, Relata Uma Operação Aérea Audaciosamente Arriscada Que Ocorreu Quando a Guerra Global Chegou à Índia.

Metralhadoras, pedaços de destroços de aeronaves, uma câmera: alguns dos artefatos recuperados no museu recém-inaugurado – Fonte – BBC NEWS.

Desde 2009, equipes indianas e norte-americanas vasculham as montanhas do estado de Arunachal Pradesh, no nordeste da Índia, em busca de destroços e restos mortais de tripulações perdidas de centenas de aviões que caíram aqui há mais de 80 anos.

Estima-se que cerca de 600 aviões de transporte americanos tenham se perdido na região remota, matando pelo menos 1.500 aviadores e passageiros durante uma notável e muitas vezes esquecida operação militar da Segunda Guerra Mundial na Índia, que durou 42 meses. Entre as vítimas estavam pilotos, operadores de rádio e soldados americanos e chineses.

Destroços de muitos aviões foram encontrados nas montanhas nos últimos anos – Fonte – BBC NEWS.

A operação sustentou uma rota de transporte aéreo vital dos estados indianos de Assam e Bengala, para apoiar as forças chinesas em Kunming e Chunking (agora chamada Chongqing).

A guerra entre as potências do Eixo (Alemanha, Itália, Japão) e os Aliados (França, Grã-Bretanha, Estados Unidos, União Soviética, China, Brasil e outros) atingiu a parte nordeste da Índia governada pelos britânicos. O corredor aéreo tornou-se uma tábua de salvação após o avanço japonês para as fronteiras da Índia, que efetivamente fechou a rota terrestre para a China através do norte de Mianmar (então conhecida como Birmânia).

Um típico aeroporto na rota dos aviões americanos – Fonte – Tok de História.

A operação militar dos Estados Unidos, iniciada em abril de 1942, transportou com sucesso 650.000 toneladas de suprimentos de guerra através da rota – um feito que reforçou significativamente a vitória dos Aliados.

Os pilotos apelidaram a perigosa rota de voo de The Hump (O Salto), uma homenagem às alturas traiçoeiras do leste do Himalaia, principalmente na atual Arunachal Pradesh, que eles tiveram que navegar.

Um bimotor de trnsporte Douglas CD-47 voa próximo a montanhas – Fonte – Tok de História.

Ao longo dos últimos quatorze anos, equipes indo-americanas compostas por montanhistas, estudantes, médicos, arqueólogos forenses e especialistas em resgate percorreram densas selvas tropicais e escalaram altitudes que atingiram 15.000 pés (4.572 m) em Arunachal Pradesh, na fronteira com Myanmar e China. Eles incluíram membros da Agência de Contabilidade de Defesa POW / MIA (POW – Prisioners Of War – Prisioneiros De Guerra / MIS – Missing In Action – Desaparecido Em Ação) dos Estados Unidos, cuja sigla é DPAA, a agência dos Estados Unidos que lida com soldados desaparecidos em combate.

Avião de transporte C-87 Liberator Express no aeroporto de Parnamirim, Natal, Brasil, como parte da rota em direção a África, Oriente Médio, India e China – Fonte – Foto de Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images.

Com a ajuda de tribos locais, as suas expedições de um mês chegaram aos locais dos acidentes, localizando pelo menos vinte aviões e os restos mortais de vários aviadores desaparecidos em combate.

É um trabalho desafiador – uma caminhada de seis dias, precedida por uma viagem rodoviária de dois dias, levou à descoberta de um único local de acidente. Uma missão ficou presa nas montanhas por três semanas depois de ser atingida por uma terrível tempestade de neve.

Um bimotor de trnsporte Curttis C-46 Commando sobre o belo Taj Mahal, India – Fonte – Tok de História.

“Das planícies aluviais às montanhas, é um terreno desafiador. O clima pode ser um problema e normalmente só temos o final do outono e o início do inverno para trabalhar”, diz William Belcher, antropólogo forense envolvido nas expedições.

Abundam as descobertas: tanques de oxigênio, metralhadoras, seções de fuselagem. Crânios, ossos, sapatos e relógios foram encontrados nos escombros e amostras de DNA coletadas para identificar os mortos. A pulseira com a rubrica de um aviador desaparecido, uma relíquia comovente, trocou de mãos com um aldeão que a recuperou nos destroços. Alguns locais de acidentes foram vasculhados pelos moradores locais ao longo dos anos e o alumínio permanece vendido como sucata.

Fotografia de militar norte-americano que utiliza no ombro o símbolo do CBI – China Burma India Theatre, a designação militar dos Estados Unidos para as áreas de operações aéreas na China, Sudeste Asiático ou o setor entre a índia e a Birmânia (atual Myanmar), durante a Segunda Guerra Mundial.

Estes e outros artefatos e narrativas relacionadas com estes aviões condenados têm agora um lugar no recém-inaugurado The Hump Museum em Pasighat, uma pitoresca cidade em Arunachal Pradesh, situada no sopé do Himalaia.

O Embaixador dos Estados Unidos na Índia, Eric Garcetti, inaugurou a coleção em 29 de novembro, dizendo: “Este não é apenas um presente para Arunachal Pradesh ou para as famílias afetadas, mas um presente para a Índia e o mundo.” Oken Tayeng, diretor do museu, acrescentou: “Este é também um reconhecimento de todos os habitantes de Arunachal Pradesh que foram e ainda são parte integrante desta missão de respeitar a memória dos outros”.

Douglas C-47 acidentado em área de selva – Fonte – Tok de História.

O museu destaca claramente os perigos de voar nesta rota. Nas suas vívidas memórias da operação, o major-general William Turner, piloto da Força Aérea dos Estados Unidos, lembra-se de ter navegado com o seu avião de carga C-46 sobre aldeias em encostas íngremes, vales amplos, desfiladeiros profundos, riachos estreitos e rios castanhos escuros.

Os voos, muitas vezes realizados por pilotos jovens e recém-treinados, eram turbulentos. O clima em The Hump, de acordo com Turner, mudava “de minuto a minuto, de quilômetro a quilômetro”: uma das extremidades ficava nas selvas baixas e úmidas da Índia; o outro no planalto de quilômetros de altura do oeste da China.

C-46 sobre o Himalaia – Fonte – Tok de História.

Aviões de transporte fortemente carregados, apanhados por uma corrente descendente, podem descer rapidamente 5.000 pés e depois subir rapidamente a uma velocidade semelhante. Turner escreve sobre um avião que virou de costas depois de encontrar uma corrente descendente a 25.000 pés.

Tempestades de primavera, com ventos uivantes, granizo e granizo, representavam o maior desafio para controlar aviões com ferramentas de navegação rudimentares. Theodore White, jornalista da revista Life que voou a rota cinco vezes para uma reportagem, escreveu que o piloto de um avião que transportava soldados chineses sem paraquedas decidiu fazer uma aterragem forçada depois do seu avião ter congelado.

Um Consolidated B-24 Liberator – Fonte – Tok de História.

O copiloto e o operador de rádio conseguiram saltar e pousar em uma “grande árvore tropical e vagaram por 15 dias antes que nativos amigáveis ​​os encontrassem”. As comunidades locais em aldeias remotas muitas vezes resgataram e cuidaram dos sobreviventes feridos dos acidentes, recuperando-os. (Mais tarde soube-se que o avião pousou em segurança e nenhuma vida foi perdida.)

Não é de surpreender que o rádio estivesse cheio de pedidos de socorro. Os aviões foram lançados tão fora do curso que colidiram com montanhas que os pilotos nem sabiam que estavam a 80 quilômetros, lembrou Turner. Só uma tempestade derrubou nove aviões, matando 27 tripulantes e passageiros. “Nestas nuvens, ao longo de todo o percurso, a turbulência aumentaria com uma severidade maior do que alguma vez vi em qualquer parte do mundo, antes ou depois”, escreveu ele.

Tripulantes de um C-47 – Fonte – Tok de História.

Os pais dos aviadores desaparecidos tinham esperança de que os seus filhos ainda estivessem vivos. “Onde está meu filho? Eu adoraria que o mundo soubesse / Sua missão foi cumprida e deixou a terra abaixo? / Ele está lá em cima naquela bela terra, bebendo nas fontes, ou ele ainda é um andarilho nas selvas da Índia e montanhas?” perguntou Pearl Dunaway, mãe de um aviador desaparecido, Joseph Dunaway, em um poema de 1945.

Os aviadores desaparecidos agora são lendas. “Esses homens Hump lutam contra os japoneses, a selva, as montanhas e as monções o dia todo e a noite toda, todos os dias e todas as noites durante todo o ano. O único mundo que eles conhecem são os aviões. Eles nunca param de ouvi-los, pilotá-los, remendá-los, amaldiçoando-os. No entanto, eles nunca se cansam de ver os aviões partindo para a China”, contou White.

Um restaurante na Índia – Fonte – Tok de História.

A operação foi de fato um feito ousado de logística aérea após a guerra global que chegou à porta da Índia. “As colinas e o povo de Arunachal Pradesh foram atraídos para o drama, o heroísmo e as tragédias da Segunda Guerra Mundial pela operação Hump”, diz Tayeng. É uma história que poucos conhecem.

*Soutik é correspondente na Índia. Ele cobriu eleições no Afeganistão e no Sri Lanka, o tsunami na Índia e no Sri Lanka em 2005 e a militância na região indiana da Caxemira. Antes de ingressar na BBC, trabalhou em jornais e revistas indianos. Soutik também foi Reuters Fellow na Universidade de Oxford. Ele adora filmes, blues e jazz e acredita que Derek Trucks é o melhor e mais inovador guitarrista vivo.

2016 – EXPEDIÇÃO ANGICO – QUANDO UM GRUPO DE PESQUISADORES BUSCOU COMPREENDER COMO FORAM MORTOS O CANGACEIRO LAMPIÃO, MARIA BONITA E SEUS COMPANHEIROS NA GROTA DO ANGICO

Em 2016 Um Grupo de Pesquisadores Nordestinos Pernoitou na Área da Grota do Angico, Onde Buscaram Compreender Como Aconteceu o Ataque da Polícia Contra o Último Esconderijo de Lampião.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

As questões que envolvem a morte de Lampião, Maria Bonita e outros cangaceiros na famosa Grota do Angico, em 1938, sempre foi algo muito espinhoso entre os que estudam o tema Cangaço.

Para muitos o chefe cangaceiro Lampião foi pego de surpresa, com a guarda baixa e pagou com a vida. Para outros essa surpresa existiu porque ele e demais membros do bando foram envenenados.

Logo após as mortes em Angico começaram a surgir uma série de conjecturas, dúvidas e debates sobre como se desenrolaram os acontecimentos relativos àquele combate, as razões das mortes dos cangaceiros e muitas outras questões.

Para ter uma ideia, apresento-lhes uma das muitas narrativas existentes na Internet sobre o fim de Lampião.

Lampião, o Rei do Cangaço, em seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução – Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwJ3ojyvXP

“No dia 27 de julho de 1938, o bando acampou na fazenda Angicos, situada no sertão de Sergipe, esconderijo tido por Lampião como o de maior segurança. Era noite, chovia muito e todos dormiam em suas barracas. A volante chegou tão de mansinho que nem os cães pressentiram. Por volta das 5:15 do dia 28 de julho, os cangaceiros levantaram para rezar o ofício e se preparavam para tomar café; quando um cangaceiro deu o alarme, já era tarde demais.

Não se sabe ao certo quem os traiu. Entretanto, naquele lugar mais seguro, o bando foi pego totalmente desprevenido. Quando os policiais do Tenente João Bezerra e do Sargento Aniceto Rodrigues da Silva abriram fogo com metralhadoras portáteis, os cangaceiros não puderam empreender qualquer tentativa viável de defesa.

O ataque durou uns vinte minutos e poucos conseguiram escapar ao cerco e à morte. Dos trinta e quatro cangaceiros presentes, onze morreram ali mesmo. Lampião foi um dos primeiros a morrer. Logo em seguida, Maria Bonita ficou gravemente ferida. Alguns cangaceiros, transtornados pela morte inesperada do seu líder, conseguiram escapar. Bastante eufóricos com a vitória, os policiais apreenderam os bens e mutilaram os mortos. Aprenderam todo o dinheiro, o ouro e as joias.

A força volante, de maneira bastante desumana para os dias de hoje, mas seguindo o costume da época, decepou a cabeça de Lampião. Maria Bonita ainda estava viva, apesar de bastante ferida, quando foi degolada. O mesmo ocorreu com Quinta-Feira, Mergulhão (os dois também tiveram suas cabeças arrancadas em vida), Luís Pedro, Elétrico, Enedina, Moeda, Alecrim, Colchete (2) e Macela. Um dos policiais, demonstrando ódio a Lampião, desfere um golpe de coronha de fuzil na sua cabeça, deformando-a; este detalhe contribuiu para difundir a lenda de que Lampião não havia sido morto, e escapara da emboscada, tal foi a modificação causada na fisionomia do cangaceiro.”

Sobre este texto ver – http://www.meionorte.com/blogs/josefortes/a-morte-de-lampiao-e-seu-bando-174209

Lampião, o Rei do Cangaço.

O Valor de Uma Pesquisa de Campo

Como em muitas áreas de pesquisa, as pessoas que se debruçam sobre o tema do Cangaço se dividem em dois grupos majoritários – Os que pesquisam basicamente em documentos, livros, jornais, bibliotecas e outros locais que lhes tragam informações e pouco vão a campo. Além destes temos os que buscam seguir com maior ênfase “comendo poeira” nas estradas do sertão em busca da tradição oral e dos registros existentes nas memórias coletivas das comunidades distantes do Nordeste e utilizando em menor proporção material documental.

E, como é normal neste ramo de atividade, as duas vertentes possuem bons e maus trabalhos resultantes destas pesquisas e sempre novas produções estão sendo publicadas.

Lampião, Maria Bonita e seus cangaceiros.

Mas uma nova tendência parece haver surgido nas pesquisas do Cangaço – A dos pesquisadores que se unem para passar algum tempo em locais onde os fatos mais intensos relativos a este tema aconteceram – Os locais de combate.

E o local onde, aparentemente, isso ocorreu pela primeira vez foi na controversa Grota do Angico. Um grupo de pesquisadores nordestinos realizou uma interessante empreitada de permanência neste local.

Sempre fui uma pessoa que admiro as iniciativas de pesquisadores que buscam conhecer mais a fundo aquilo que estudam e acreditam. E confesso que fico mais entusiasmado com pessoas que desenvolvem novas e interessantes iniciativas em prol do conhecimento.

Um dia após o combate na Grota do Angico, policiais e curiosos contemplam o cadáver decapitado de Maria Bonita.

Recebi informações que essa ideia surgiu por dois caminhos distintos, mas com os mesmos objetivos.

Em maio de 2016, na companhia do artista plástico Sérgio Azol, eu estive na cidade pernambucana de Floresta, onde conhecemos e fomos recepcionados pelos escritores e pesquisadores Marcos Antônio de Sá, conhecido como “Marcos De Carmelita” e Cristiano Luiz Feitosa Ferraz, que recentemente lançaram o interessante livro “As cruzes do Cangaço – Os fatos e personagens de Floresta – PE”. Durante nossa visita, Marcos me comentou que em diálogo com os irmãos Francisco e Washington Rodrigues Correa, proprietários do Restaurante Angico, às margens do Rio São Francisco, surgiu a ideia de pernoitar na Grota e ele recebeu apoio desses irmãos.

O autor desse texto em uma trilha na área da Grota do Angico.

Tanto Marcos como Cristiano são agentes da Polícia Civil do Estado de Pernambuco e atuam na área de caatinga, mostrando que pernoitar naquele local não seria algo problemático e sim muito positivo, pois existiam mais perguntas do que respostas aos chamados “Mistérios de Angico”. Marcos desejava com esta permanência contrapor informações e realizar uma pesquisa que poderia ampliar as discussões envolvendo os fatos que se deram na Grota do Angico.

Infelizmente naquela época, por problemas de saúde, não houve condições da participação de Marcos de Carmelita na empreitada.

Outro que teve o mesmo pensamento e igualmente desejou realizar uma ação nos mesmos moldes foi Sebastião Giovane Gomes de Sá, também da cidade pernambucana de Floresta.

Segundo Giovane essa ideia havia surgido anos antes, quando ele entrevistou o Senhor Manoel Cavalcanti de Souza, um antigo membro das forças volantes que perseguiram os cangaceiros e ficou conhecido como “Neco de Pautilia”.

Na época da entrevista Giovane Gomes de Sá era aluno do Curso de Licenciatura em História na Universidade Regional do Cariri, na cidade do Crato, Ceará, quando por iniciativa própria começou a entrevistar vários outros antigos perseguidores e descendentes de inimigos dos cangaceiros, principalmente daqueles que odiavam com fervor a Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, conhecido como “O Rei do Cangaço”.

Foto da ocasião em que o autor deste texto esteve na Grota do Angico e fotografou o local com as antigas cruzes.

Entre os entrevistados estavam Ângelo Gomes de Sá, conhecido como Ângelo Macário, cuja família foi vítima de Lampião e dos seus cangaceiros. Depois ouviu os irmãos gêmeos João Florentino de Carvalho e Antonio Florentino de Carvalho , cuja família se envolveu em lutas contra a família Pereira e que em 1923 participaram de um dos primeiros tiroteios entre Lampião e a família Carvalho, na Fazenda Entreserras. Giovane também entrevistou o historiador e genealogista Nivaldo Carvalho, além de João Gomes de Lira, que fez parte da lendária volante dos Nazarenos e se tornou oficial da Polícia Militar do Estado de Pernambuco.

Na época da entrevista com “Neco de Pautilia”, ele estava com 97 anos e mesmo cego ainda possuía uma memória muito ativa. O local da entrevista foi na Fazenda Passagem das Pedras, no Riacho São Domingos, zona rural do município de Serra Talhada, Pernambuco, local onde nasceu Lampião.

Durante o diálogo “Neco de Pautilia” estava bastante animado e pediu a Giovane que no futuro visitasse dois locais importantes na História do Cangaço.

O primeiro era a Fazenda Maranduba, em Poço Redondo, Sergipe, onde ele participou do combate conhecido como “Fogo da Maranduba”. Ocorrido no dia 9 de janeiro de 1932, esse foi um dos maiores tiroteios entre as volantes policias e os cangaceiros. “Neco de Pautilia” comentou a Giovane que nesse combate perdeu o tio João Cavalcanti de Albuquerque, além dos parentes e conterrâneos como Hercílio de Souza Nogueira, Adalgiso de Souza Nogueira, Antônio da Silva e outros.  

O segundo local era na Grota do Angico, onde no dia 28 de julho de 1938 tombou sem vida Lampião, Maria Bonita e nove outros cangaceiros, além do soldado Adrião Pedro de Souza, o único militar morto naquele combate.

Giovane lhe prometeu que um dia visitaria a região de Maranduba e que buscaria dormir uma noite na área da Grota do Angico, com o objetivo de ter uma ideia bem real de como se desenrolou os episódios envolvendo a morte do maior chefe cangaceiro e sair de lá com muitas respostas. Ou com muito mais perguntas!

“Neco de Pautilia” faleceu em 29 de maio de 2014, aos 101 anos de idade.

O Grupo

Entre preparativos e inúmeros contatos via Internet, nomes foram sendo incluídos e depois retirados por razões diversas. Mas ficou definido que o grupo seguiria para a Grota do Angico no dia 27 de julho de 2016, pernoitando no local e só deixando a área no dia seguinte.

Vista da Grota do Angico. Foto realizada pelo autor deste texto, em uma recente visita junto com o artista plástico Sérgio Azol.

Salvo alguma informação em contrário e que desconheço, os integrantes desse grupo teriam a honra de serem os primeiros a pernoitar na área com o objetivo de pesquisa, estando no local do combate no dia em que o episódio completava 78 anos de sua ocorrência.

Este grupo foi formado por Sálvio Siqueira (de São José do Egito, Pernambuco), Cristiano Luiz Feitosa Ferraz e Giovane Macário (ambos de Floresta, Pernambuco), José Lopes Tavares (de Verdejantes, Pernambuco, mas residente na cidade do Recife), Romilson Santos (de Aracaju, Sergipe), Vaneildo Bispo (de Canindé do São Francisco, Sergipe), Maria Oliveira (de Poço Redondo, Sergipe e a única mulher do grupo) e Richard Torres Pereira (de Serra Talhada, Pernambuco).

Da esquerda para a direita: Giovane Macário, José Lopes Tavares, Cristiano Ferraz, Richard Torres Pereira, Sálvio Siqueira, Maria Oliveira, Romilson Santos e Vaneildo Bispo.

Eles se deslocaram ao local via Poço Redondo, até a sede administrativa do Monumento Natural Grota do Angico. Esta é uma unidade de conservação criada pelo governo do Estado de Sergipe, através do Decreto número 24.992, de 21 de dezembro de 2007. Está situada no Alto Sertão Sergipano, a cerca de 200 km de Aracaju, entre os municípios de Poço Redondo e Canindé de São Francisco, às margens do conhecido “Velho Chico”. A área de preservação possui um total de 2.183 hectares, em uma região que abriga remanescentes florestais da Caatinga hiperxerófila densa e foi criado com objetivo de preservar o sítio natural da Grota do Angico e elementos culturais associados, mantendo a integridade dos ecossistemas naturais da Caatinga, para o desenvolvimento de pesquisa científica, educação ambiental, ecoturismo e visitação pública. Desde a sua criação, a unidade é administrada pela SEMARH, recebe visitantes de várias partes do Brasil e do exterior, sendo na época a única unidade de conservação estadual de Sergipe inserida do bioma caatinga.

Neste belo local, o grupo de pesquisadores deixou a sede administrativa por volta das quatro da tarde, percorrendo a trilha em cerca de quarenta minutos, sendo acompanhados pelo então guia do parque James Cardozo.

O acampamento em Angico.

Ao chegarem à Grota do Angico o grupo encontrou Cícero Rodrigues (de Maceió, Alagoas), que havia feito o roteiro através de deslocamento de barco via Entremontes (um distrito de Piranhas).

Chegada ao Local

Cristiano Ferraz assim expôs suas impressões sobre a chegada do grupo a Grota do Angico e a montagem do acampamento.

A última semana (especificamente os dias 27 a 30 de julho de 2016) foi de grande atividade para todos nós. Era chegada a hora de nos deslocar a Piranhas. Alguns dos participantes do evento planejaram pernoitar no conhecido “Coito do Angico” no município de Poço Redondo, no Estado de Sergipe. Dois grupos foram formados. Um deles se deslocaria durante o dia, via Poço Redondo e outro seguiria durante a noite, de barco, via Piranhas, Alagoas (Este segundo grupo chegou à Grota do Angico por volta das duas horas da madrugada).

Este grupo chegou à grota do Angico por volta das quatro e trinta da tarde onde encontrou o companheiro Cícero Rodrigues. Depois passamos a organizar o local do pernoite, armando as barracas e redes (cobertas com lonas) para prevenir das chuvas finas que têm caído no local este ano. Estes preparativos terminaram no início da noite quando, após comer algo (café, biscoitos, pão, etc.), decidimos descer para o local das Cruzes onde acendemos velas pelos mortos e passamos a estudar o local.

À noite, no escuro, o local dá a impressão de ser totalmente diferente do que vemos durante o dia….

Questionamentos

Por sua vez Sálvio Siqueira produziu um interessante texto onde ele faz várias análises do que viu naquela madrugada. Ele também trouxe no seu texto vários questionamentos sobre o fim do “Rei do Cangaço” em 1938.

“No dia 27 de julho de 1938, uma quarta-feira, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, está acoitado no leito do riacho Tamanduá, na fazenda Angico, fincado no município de Poço Redondo, Sergipe.
Ao romper da aurora do dia vindouro, segundo historiadores, do dia 28 de julho, ou seja, na quinta-feira, uma tropa militar, comandada pelo então tenente João Bezerra, é dividida em quatro, ou cinco frentes e ataca os cangaceiros no coito.

Após o ataque, sabe-se da morte de onze cangaceiros, dentre eles o “Rei dos Cangaceiros”, sua companheira a “Rainha dos cangaceiros”, Maria Gomes de Oliveira, conhecida como Maria Bonita, e uma baixa militar, o soldado Adrião Pedro de Sousa.

No momento do ataque, uma das colunas, a do Sargento Aniceto, perde-se, não encontrando o local previamente combinado. Com isso, abre uma rota de fuga para aqueles que estavam encurralados sob forte fogo dos soldados.

Pois bem, há duas versões, uma já nem tanto citada sobre o ocorrido, que seria a que ocorreu, com o auxílio de um coiteiro o envenenamento do grupo. A outra versão é que simplesmente a tropa chegou e mandou bala matando os cangaceiros.

Sobre o envenenamento, não há sustentáculo, pois o veneno teria atingido, se não mortalmente, parcialmente o restante do grupo. Parte de nossos estudos, na ocasião, era conhecer o local na escuridão noturna, procurar saber as dificuldades que enfrentou a tropa para se aproximarem, como conseguiram tamanha façanha sem chamarem a atenção dos cangaceiros, e qual hora, aproximadamente, conseguia-se vislumbrar a silhueta de um corpo humano dando condições de ser alvejado.

O tempo, na noite do dia 27 de julho de 2016 para o clarear do dia 28, se comparado as condições climáticas, segundo o que relatam os historiadores, estava diferente da noite do dia 27 de julho de 1938. Não choveu. Fiz uma análise de como a tropa chegaria sem ser notada até ter visão e posição para atirarem. Usamos o mesmo dia da data do embate, só diferenciando na fase do quarto da lua, da época com a atual, um foi no minguante e a outra na fase crescente. O calendário lunar nos diz que na noite do dia 27 de julho de 1938, a fase da Lua estava em Crescente. Já na noite do dia 27 de julho de 2016, a fase da Lua estava em Quarto Minguante.
(Fonte: http://www.vercalendario.info/…/portugal-mes-julho-2016.html)

O grupo durante a noite na Grota do Angico.

Essa fase da Lua ocorre quando o ângulo Terra-Lua-Sol é aproximadamente reto, de modo que vemos apenas cerca da metade do disco lunar, no período em que a parte iluminada está diminuindo progressivamente. Já a fase da Lua no Quarto Crescente ocorre quando o Sol e a Lua estão em signos que se encontram a 90° de distância entre si, formando uma quadratura. Fizemos essa pesquisa para vermos a qualidade de visão noturna, a olho nu, que tiveram mais ou menos os soldados, quando da sua aproximação ao acampamento alvo.

As cruzes dos cangaceiros durante a noite.

A coisa não foi moleza não. Hoje, com as degradações causadas pelo tempo e homem, notamos a dificuldade de locomoção. Além disso, temos as trilhas, coisa que não acreditamos que tinha naquele tempo.

Após esses fatos pesquisados, esperamos o romper do dia. Lento e preguiçoso, ele começa a clarear vagarosamente… 

Em direção ao Rio São Francisco, nós começamos a notar uma grande sombra, como se fosse um monstro deitado, dormindo. É à sombra de uma serra. Do lado contrário, ou seja, lado que se encontrava o bando acoitado, ainda não dava para divisar nada. Com o passar do tempo, começamos a vislumbrar imagens, vultos, sem termos a certeza do que seria… Mais um pouco de tempo e, aí sim, já se consegue ver bem uma pessoa. Quando registramos essas imagens, estávamos do lado, mais ou menos em que estavam os soldados que fizeram parte da coluna do tenente Bezerra.

Visão, só com a clarear do dia, pois o mato e localidade em que se encontravam aqueles que estavam dentro da grota, no leiro do riacho, ainda estavam protegidos pelas ultimas sombras da noite. E mesmo pela mata e profundidade, impedindo um clarear definido.

Quanto à linha propícia de fogo, ou para fogo, posição de tiro, que foi de cima para baixo, só se consegue ter essa posição estando bem em cima, no topo da barreira. Com 30 metros de distância da beira da barranca não se consegue ver o fundo da grota. Nem com 20 metros, nem 15 metros, nem com 10 metros. Em fim, só há essa possibilidade, posição de tiro, estando com 5 metros ou menos em cima da barreira.

78 anos depois do ataque, sem claridade ainda, tentamos nos aproximar sem fazermos barulho. Qualquer som, no silêncio da madrugada é escutado ao longe. Claro que a mata está diferente, mais para devastada, ou seja, na época do ataque, a mata era mais fechada causando mais dificuldades para se locomover dentro dela sem fazer barulho, principalmente se a pessoa estiver com bornais, facas, facões e fuzis nas mãos, aumentando o volume, é lógico que se necessita de mais espaço para se mover. Lembremos que a tropa contava com 50 praças, dividida e quatro ou cinco colunas.

1938 – Curiosos diante dos corpos dos cangaceiros.

A quantidade de cangaceiros é incerta. Não se sabe com exatidão o número dos que estavam ali acoitados.
Para saber-se da margem direita e esquerda de um rio, ou riacho, posicione-se no centro do leito e procure ficar de frente para onde as águas seguem, nessa posição, saberá a margem direita e a esquerda do rio, ou riacho, mesmo este sendo temporário.

Em nossa pesquisa, lá, no local, notamos que parte do grupo, o chefiado por Zé Sereno, ficou na margem esquerda do riacho. Fora do leito do riacho. Junto ao chefe mor só o seu Estado Maior. Dentro da grota.
A volante era composta por homens acostumados no mato, no entanto, os grupos de cangaceiros também eram formados por homens que conviviam desde que nasceram dentro do mato. Homens que tinham os sentidos muito bem aguçados, pois, dependiam deles para sobreviverem.

Caso imprevisto por nós, mas, que serviu muito bem como pesquisa, foi a chegada de seis outros pesquisadores entre 01:00 e 02:00 horas da manhã, da madrugada já do dia 28. Nosso amigo, pesquisador Richard Pereira, escutou ruídos, sons que “informavam” a aproximação de pessoas. E eles estavam longe, muito distantes do acampamento, do outro lado do riacho ainda, por onde seguiu a coluna com o tenente Bezerra. E nós não estávamos com nossos sentidos alertas, com cuidado e medo de sermos atacados por volantes.

1938 – A barraca de Lampião

Bem, mesmo não sabendo a quantidade exata dos cangaceiros, mas, que se eleva ao número de trinta pessoas, sabemos ser ilógico que todos, exatamente todos eles, tenham se embriagado, coletivamente. E a ponto de não notarem algo suspeito? Lembremos, também, que eram pessoas foragidas, o que as deixava mais cuidadosas ainda. Com seus sentidos em alerta o tempo todo, mesmo inconscientes desse sentido, sentido causado pelo medo, medo de morrer. Mesmo assim, ninguém se deu conta de nada?

Ainda tem a declaração de remanescentes que citaram que foram rezar o ofício e retornaram para as toldas. Mais uma linha de que já estavam acordados.

Bem, meus amigos, eu acredito que alguém, algum conhecido, bem chegado ao “Rei dos Cangaceiros”, tenha feito algum trato para se aproximar, e, com isso, a guarda fora totalmente baixada para que se desse a aproximação. Além de ter alguém, do próprio grupo de Lampião, tê-lo traído internamente.

Lampião

Zé Sereno, seus homens e outros estavam na parte de cima, em cima da barreira, um pouco mais recuados, em relação à posição de Lampião, com maiores possibilidades de escutarem, notarem, a aproximação da coluna que tomava chegada com o tenente Bezerra. Se acharmos que a cavidade em que se encontravam Lampião e outros cangaceiros, dificultada a propagação do som.

No entanto, partiram em oposição, e isso é mais uma prova do lugar em que estavam, em que se encontravam, contrária à correnteza e ao avanço da coluna que chegava no sentido noroeste do acampamento. E, por incrível que pareça o grupo parte em sentido sudoeste, e, é mesmo nesse sentido que o sargento Aniceto se perde com a sua coluna, deixando uma via de fuga.

Ao romper do dia, um dos pesquisadores do grupo, disparou vários tiros. Esses disparos faziam parte da pesquisa. Não se sabe de onde o tiro parte exatamente, pois, lá, naquele emaranhado de elevações e extensão do terreno, forma-se um eco constante. Não deixando ter-se, exatamente, a noção da posição exata do disparo. Lembremos que os pesquisadores que chegaram mais tarde, ao desembarcarem na margem direita do ri São Francisco, dispararam uma arma. Porém, só viemos saber quando eles chegaram e nos disseram. Mesmo no silêncio da madrugada, o tiro disparado as margens do “Velho Chico”, mesmo as águas e os contrafortes das serras produzirem um eco, o som não chegou ao acampamento onde estávamos.

Esse foi o destino da maioria dos cangceiros.

Como, então, parte do grupo tomou o rumo certo? 

O sentido exato da brecha deixada por um sargento que se perdera com seus homens?

Não falo de ouvi dizer, mais, de estar lá, naquele local, amanhecendo o dia, e escutando o eco de vários disparos as margens do riacho. A guarda do capitão foi baixada, isso é correto afirmar.

Mas, por quê?

Como cito acima, acredito que tenha vindo um pedido de aproximação, não de uma tropa militar, é claro, mas, de uma pessoa, coiteira, que o fez ficar, ou continuar, à vontade.”

No Exterior Esse Tipo de Ação é Normal

Como tudo que envolve o Cangaço e Lampião sempre existem controvérsias, eu não duvido que muitos dos que venham a ler este texto talvez torçam o nariz diante desta empreitada.

A pessoa com uniforme militar, apresentando um fuzil semiautomático Garand M1, na verdade é membro de um grupo de pesquisa e preservação histórica dos combatentes estadunidenses, das tropas pára-quedistas daquele país que participaram do famoso Dia D.

Talvez vejam como uma grande perda de tempo e de esforço madrugar no meio do mato, onde foram mortos vários bandidos. Isso tudo em um país onde na sua contemporaneidade a violência é algo associado a uma verdadeira praga.

Mas é fato que o episódio da Grota do Angico é antes de tudo História.

Nos Estados Unidos e na Europa, regiões com histórias de confrontos bélicos extremamente amplas e com inúmeros locais onde se desenrolaram terríveis combates, a presença de pesquisadores em áreas históricas é algo bem comum e aceito, inclusive pelas universidades.

Membros de um grupo de pesquisa da Guerra Civil Americana apresenta as armas utilizadas pelos exércitos do sul.

Diversos grupos ampliam suas pesquisas a ponto de existirem interessantes reencenações de episódios históricos e bélicos, com forte afluência de público desejosa de conhecer mais sobre estes conflitos.

Esses grupos, para realizar seu trabalho pesquisa e debate exaustivamente como deve desenrolar uma reencenação, ampliando muitas vezes a informação histórica.

Detalhe da reconstituição de um acampamento das tropas sulistas da Guerra Civil Americana, sendo apresentado no Texas.

Nos Estados Unidos predominam grupos que pesquisam e realizam reencenações sobre episódios da Guerra da Independência de 1812, Guerra Civil Americana e Segunda Guerra Mundial. Na Europa, principalmente na Inglaterra, Alemanha, Itália e Suécia, estes grupos episódios que abrangem historicamente fatos ligados aos conflitos entre as Legiões Romanas e os Bárbaros, até a Segunda Guerra Mundial.

Nós brasileiros somos tidos como um povo que não se importa muito com a sua História. Então só tenho a louvar a empreitada deste grupo de nordestinos.

FONTES

http://joaodesousalima.blogspot.com.br/2016/07/cariri-cangaco-de-piranhas-nos-78-anos.html

http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2016/07/78-aniversario-da-morte-de-lampiao-e-tema-de-celebracao.html

http://www.semarh.se.gov.br/biodiversidade/modules/tinyd0/index.php?id=11

http://www.utpa.edu/news/2015/03/making-history-utpa-launches-rio-grande-valley-civil-war-trail.htm

http://www.semarh.se.gov.br/biodiversidade/modules/tinyd0/index.php?id=11

http://www.gettyimages.com/event/preparation-ahead-of-the-70th-anniversary-of-d-day-495638437#historical-dday-reenactment-enthusiast-dressed-as-an-american-soldier-picture-id495520963

MULHER DE CORAGEM – A HISTÓRIA DA ÚNICA ENFERMEIRA MILITAR AMERICANA CAPTURADA PELOS ALEMÃES

As Mulheres na Segunda Guerra – O Duro e Perigoso Ofício das Enfermeiras de voo – Ferida em um Avião Derrubado na Alemanha Nazista – A Surpresa dos Soldados de Hitler em Capturar uma Mulher Vestida Com o Uniforme de Oficial do Exército Inimigo – Repatriada Através da Suíça Pela Cruz Vermelha – Volta aos Estados Unidos e Casamento – As Injustiças e a Sua Dura Batalha Contra a Burocracia Militar Para Conseguir Seus Direitos

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Durante a Segunda Guerra Mundial normalmente os exércitos aliados não permitiam que mulheres que usavam uniformes atuassem na linha de fogo. A maior exceção foi no Exército Soviético, onde as mulheres atuaram com galhardia em várias ações de combate direto aos inimigos. Já nas forças armadas da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos e de outras nações Aliadas, a maioria das mulheres atuou principalmente nos setores da administração militar, para assim liberar mais homens para o combate nas linhas de frente. No geral, poucas foram as mulheres que serviram nesses exércitos que chegaram perto de áreas de combate e a maioria nunca levou ou recebeu tiros dos inimigos.

Mas ocorreram exceções.

Uma das aviadoras americanas do Women Airforce Service Pilots (WASP)- Fonte – NARA.

Entre elas estava a importante tarefa de pilotar aviões saídos de fábrica para serem entregues aos esquadrões da linha de frente. Um trabalho que poderia se tornar perigoso muito mais por problemas mecânicos, ou alterações do tempo, do que serem abatidas por alguma aeronave hostil, fato que nunca ocorreu. Essas mulheres faziam parte do Women Airforce Service Pilots (WASP) e será que alguma delas passou por Natal e pousou em Parnamirim Field?

Outra exceção aconteceu na Grã-Bretanha, onde os bombardeios da Luftwaffe, a força aérea nazista, cobraram um alto preço as cidades e as suas populações. Nessas ocasiões várias britânicas atuaram de forma mais direta em combates, ao operarem poderosas baterias de canhões antiaéreos que buscavam derrubar as aeronaves inimigas. Mas elas disparavam em alvos a centenas de metros de altura e não chegavam a ver “a cor dos olhos dos oponentes”, como acontecia nas pelejas corpo a corpo dos soldados da infantaria.

Mulheres artilheiras antiaéreas da Grã-Bretanha – Fonte – TR 453 Part of MINISTRY OF INFORMATION SECOND WORLD WAR COLOUR TRANSPARENCY COLLECTION Malindine E G (Lt) Tanner (Lt) War Office official photographer.

Algumas poucas mulheres atuaram no escritório de serviços estratégicos dos americanos e no serviço de operações especiais dos britânicos, chegaram a saltar de paraquedas atrás das linhas inimigas para ajudar a resistência francesa e houveram alguns raros casos de combates.

Mas foi a enfermagem a atividade que mais levou mulheres militares dos exércitos Aliados na frente oeste da Europa a ficarem próximas de áreas de combate.

Fosse no atendimento de militares feridos, ou, como aconteceu em algumas ocasiões, estando em locais de atendimento clínico que foram atacados por disparos de artilharia e por atiradores de infantaria inimigos, muitas dessas mulheres testemunharam as terríveis crueldades da guerra. Inclusive o Brasil, um dos países Aliados, enviou para a Itália entre 1944 e 45 um grupo de 73 enfermeiras que se juntaram às tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e da Força Aérea Brasileira (FAB), para realizar seu trabalho de forma digna e honrada.

Enfermeiras brasileiras desfilando no Rio de Janeiro no período da Segunda Guerra.

Enfermeira de voo

Mas durante a guerra, o comando militar dos Aliados achou por bem desenvolver as enfermeiras um trabalho específico, onde elas realizavam sua nobre atividade em meio a perigos reais. Foi criada então a função de “Enfermeira de voo”.

As mulheres que desejassem seguir por esse caminho teriam de se voluntariar e a rotina de treinamento desenvolvida era dura e pesada. De saída elas deveriam fazer um forte treinamento militar durante seis a nove semanas, que incluíam a utilização de mapas em áreas de combate, camuflagem de sobrevivência, habilidades no transporte de feridos em aeronaves, preparação para pousos forçados, uso de paraquedas, muita ênfase para o condicionamento físico, uso de diversas armas militares e até a participação em treinamentos que simulavam ataques inimigos em aeródromos.

Treinamento de Enfermeira de voo– Fonte – NARA.

Essas enfermeiras voaram com muito mais frequência do que outras mulheres da sua profissão e precisavam aprender a cuidar delas mesmas. O treinamento foi projetado para tornar as enfermeiras amplamente autossuficientes durante o voo. Elas foram treinadas para tratar dor, sangramento e choque, atendendo os pacientes na ausência de um médico.

A Força Aérea do Exército dos Estados Unidos criou o primeiro programa de treinamento no outono de 1942. As primeiras 39 Enfermeiras de voo foram formadas em fevereiro de 1943 e muitas mais passaram pela nova escola de evacuação aérea em Randall Field, no estado do Texas. Na Grã-Bretanha, um programa semelhante foi estabelecido com voluntárias da Força Aérea Auxiliar Feminina e a Marinha dos Estados Unidos também criou uma escola semelhante na Estação Aeronaval de Alameda, no estado da Califórnia.

Esquadrões de evacuação aero médica dos Estados Unidos foram criados e divididos em equipes compostas de um cirurgião de voo, que comandavam outras seis equipes compostas de Enfermeiras de voo e vários técnicos cirúrgicos.

As Enfermeiras de voo americanas foram autorizadas a usar em seus uniformes as asas de voo, com um “N” na cor marrom, para “Nurse”, enfermeira em inglês. Mas ao contrário das forças armadas britânicas, todas essas enfermeiras do exército americano foram comissionadas como oficiais, para, no caso de serem capturadas, serem melhor tratadas pelos inimigos.

Curtiss C-46 Commando.

Como o trabalho dessas mulheres era prioritariamente ligado à evacuação de pacientes, elas utilizavam basicamente aeronaves bimotores de transporte Douglas C-47 Dakota e Curtiss C-46 Commando, modificadas internamente para acomodar várias macas. Esses aviões eram pilotados por aviadores especialmente treinados, enquanto as Enfermeiras de voo eram as principais operadoras das atividades de saúde a bordo. Elas comandavam um ou dois técnicos cirúrgicos, onde a equipe tinha de lidar com o uso de oxigênio e qualquer emergência médica que ocorresse durante o voo, incluindo pacientes em situação de choque, hemorragias, sedação e o que houvesse mais necessidade.

Enfermeiras de voo em Guam aparecem diante de um avião quadrimotor R5D (Douglas Skymaster) em abril de 1945. (Arquivos BUMED)

Voar era em si perigoso e muitas enfermeiras de voo salvaram suas vidas e de muitos pacientes durante terríveis emergências, enquanto suas aeronaves desciam no mar ou em terra. Existem casos em que elas retiraram com sucesso pacientes para botes salva-vidas em alto mar, ou de aeronaves em chamas após um pouso forçado no norte da África. Teve o caso de um avião que recebeu disparos de artilharia antiaérea japonesa na Birmânia e uma enfermeira de voo saltou de paraquedas com sucesso.

A tenente Pauline Curry e o técnico médico sargento Lewis Marker cuidam do conforto de um paciente durante um voo de evacuação nos céus da Índia. Aproximadamente 500 enfermeiros serviram em 31 esquadrões de evacuação aérea médica durante a Segunda Guerra Mundial – Fonte – NARA.

Houve o caso de um avião que se perdeu durante um voo e acabou fazendo um pouso forçado na Albânia, atrás das linhas alemãs, sendo os tripulantes contactados e protegidos por guerrilheiros desse país. Na sequência, unidades especiais aliadas saltaram de paraquedas para ajudar esse grupo. Mesmo com as patrulhas alemãs caçando-os por dois meses em áreas montanhosas durante o inverno, todos foram salvos.

A enfermeira do Exército, segundo tenente Katherine Friedrich, atende a um paciente ferido a bordo de um avião de transporte Douglas C-47 com destino à Grã-Bretanha. O avião de evacuação decolou de Toul, na França, onde os soldados aliados feridos em combate ou doentes foram preparados para o voo– Fonte – NARA.

Apesar das histórias de heroísmo e dedicação, dezesseis Enfermeiras de voo americanas foram mortas durante a Segunda Guerra Mundial.

Atribui-se que grande parte dessas ocorrências aconteceu porque a maioria das aeronaves britânicas e americanas envolvidas em voos de evacuação médica não eram marcadas com cruzes vermelhas, sinalização internacionalmente conhecida para o trabalho e transporte de feridos. Isso aconteceu para que essas aeronaves também pudessem ser utilizadas para transportar armas, suprimentos, munições, etc. Mas é claro que isso significava que a aeronave era legalmente um alvo para os hábeis aviadores de caça, ou os precisos membros das armas de artilharia antiaérea inimigas.

Em julho de 1943, a tenente Katye Swope, enfermeira do 802º Esquadrão de Transporte de Evacuação Aéreo Médica, prepara pacientes para um voo de Agrigento, Sicília, Itália, para a Grã-Bretanha onde foram submetidos a tratamento médico adicional. As operações de evacuação aérea dos Aliados começaram durante a campanha no norte da África em fevereiro de 1943 e continuaram durante a Segunda Guerra Mundial em todos os teatros– Fonte – NARA.

Um incidente pouco conhecido foi a história da única mulher do serviço militar aliado que foi feita prisioneira pelos alemães na frente oeste.

Queda do C-47 na Alemanha Nazista

A Enfermeira de voo Reba Zitella Whittle, fotografada logo após sua libertação de um campo de prisioneiros alemão.- Fonte – NARA.

Reba Zitella Whittle nasceu em Rock Springs, Condado de Edwards, estado de Texas, e estudou no North Texas State College, antes de frequentar a escola de enfermagem do Medical and Surgical Memorial Hospital, da cidade de San Antonio. Depois de se formar, Whittle se alistou no Forte Sam Houston, no Corpo de Enfermeiras do Exército em 10 de junho de 1941. Com o posto de segundo-tenente, foi designada para o hospital da Base Aérea do Exército de Albuquerque, estado do Novo México, onde atuou como enfermeira de serviço geral, sendo posteriormente transferida para Mather Field, Sacramento, estado da Califórnia.

Em 6 de agosto de 1943, Whittle foi aceita pela Escola de Evacuação Aérea da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos, para se tornar Enfermeira de voo. Em setembro chegou à escola em Bowman Field, no estado de Kentucky.

Whittle se formou com notas excelentes e em janeiro de 1944 partiu para a Inglaterra a bordo do navio RMS Queen Mary, com outras 25 enfermeiras de voo do 813º Esquadrão de Transporte de Evacuação Aero Médica, cuja sigla em inglês era 813º MAETS. Essa unidade ficou baseada na Royal Air Force Station Grove, ou RAF Grove, uma antiga estação da Força Aérea Britânica perto da vila de Grove, Oxfordshire, Inglaterra.

Douglas C-47 Dakota.

Entre janeiro e setembro de 1944 a enfermeira Reba Whittle realizou mais de 40 missões em aviões C-47, com 500 horas no ar, incluindo 80 em momentos de combate.

Na quarta-feira, 27 de setembro de 1944, ela embarcou em um voo ligando a Inglaterra até um campo de pouso na cidade belga de Saint-Trond. Mais uma missão de rotina. Três meses antes os Aliados haviam desembarcado na Normandia e desde então ocorriam intensos combates, com um elevado número de mortos e feridos.

Além da tripulação de voo, da enfermeira Reba e de um técnico cirúrgico, o avião carregava toneladas de suprimentos e retornaria com feridos em suas macas.

A enfermeira Reba Whittle está na porta de um avião de transporte C-47 antes da partida.

Em algum momento durante o voo foi cometido um erro de navegação que colocou o C-47 cerca de 70 quilômetros fora de sua rota, quando foi atingido pela precisa artilharia antiaérea alemã.

Reba Whittle estava dormindo na parte de trás do avião, mas repentinamente foi acordada por uma detonação incrivelmente alta dos projéteis alemães explodindo ao redor do C-47. Lá fora um dos motores estava pegando fogo, enquanto o avião descia rapidamente para um difícil pouso forçado em um campo nevado. O C-47 pousou a cerca de quatro quilômetros da cidade de Aachen, a maior área urbana mais ocidental da Alemanha, junto à fronteira com a Bélgica e a Holanda, e era um lugar fortemente defendido.

O seu técnico cirúrgico, o sargento Hill, tinha ferimentos por estilhaços em um dos braços e uma das pernas. Um dos pilotos morreu, o outro ficou gravemente ferido com lesões múltiplas e a própria enfermeira Whittle sofreu uma concussão e lacerações no rosto e nas costas.

Ainda no período de treinamento vemos a Enfermeira de voo Reba Whittler na extrema esquerda da foto, com uma submetralhadora Thompson, calibre 45, em treinamento de tiro.

O C-47 estava queimando e os sobreviventes rastejam para fora dos destroços, quando viram que vários soldados se aproximavam. Inicialmente eles pensaram que eram britânicos, mas logo descobriram que eram alemães e estes ficaram vividamente surpresos ao encontrarem uma mulher com uniforme militar e a patente de oficial.

Prisioneira de Guerra

Passada a surpresa, um deles enrolou um curativo em volta da cabeça da enfermeira Whittle, que sangrava profundamente. Na sequência os feridos foram colocados em um caminhão alemão e conduzidos para a aldeia mais próxima para um tratamento médico mais adequado.

Notícia nos Estados Unidos da captura de Reba Whittle.

Depois houve então uma longa viagem a bordo de um outro frio e sujo caminhão do exército alemão, com passagens frequentes em aldeias e cidades para refeições, ou discussões sobre o que fazer com aquela prisioneira. Os alemães não tinham certeza de como tratar uma prisioneira aliada, que além de tudo era enfermeira e oficial do exército. Todo o sistema alemão de prisioneiros de guerra havia sido projetado para cativos do sexo masculino e as únicas mulheres aliadas prisioneiras eram cidadãs civis de nações inimigas, detidas em campos de internamento especiais, sendo a maioria localizados em castelos antigos.

Reba e o resto da tripulação foram enviados para Auswertestelle West (Escritório de Avaliação Oeste), o principal centro de interrogatório da Luftwaffe em Oberursel, ao norte de Frankfurt, onde todas as tripulações inimigas capturadas eram interrogadas antes de seguirem para um campo de prisioneiros.

Aviadores aliados e soldados nazistas no centro de interrogatório da Luftwaffe em Oberursel, ao norte de Frankfurt.

Após um interrogatório educado, os alemães separam Reba Whittle do resto de sua tripulação e ela ficou alojada no Hohemark Hospital, que era parte de Auswertestelle West e projetado para fornecer ajuda imediata a prisioneiros feridos.

Consta que após algum debate os alemães decidiram que a enfermeira americana poderia ser usada para ajudar os soldados aliados. Então Reba foi transferida para um hospital militar para prisioneiros de guerra, administrado por uma equipe médica britânica, sendo parte do campo de prisioneiros Stalag IX-C, perto de Bad Sulza, um lugar entre as cidades de Erfurt e Leipzig, na região da Turíngia, centro da Alemanha. Em 19 de outubro, ela foi transferida para outro hospital de prisioneiros de guerra, nas proximidades da cidade de Meiningen, onde trabalhou com pacientes queimados e no centro de reabilitação para amputados.

Trabalho de enfermeira americana na Segunda Guerra – Fonte – Wikimeda Commons.

A captura de uma mulher oficial do Exército dos Estados Unidos chamou a atenção dos representantes suíços do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que regularmente inspecionavam os campos de prisioneiros alemães. Reba deu detalhes de sua situação e de sua patente a esse pessoal.

Os membros da Cruz Vermelha por sua vez notificaram o Departamento de Estado, como é conhecido o Ministério das Relações Exteriores dos Estados Unidos, que começou a negociar sua libertação através da troca de prisioneiros.

Para alguns pode parecer esquisito, mas durante a Segunda Guerra ocorreu regularmente entre os Aliados e os alemães a repatriação de vários prisioneiros considerados muito doentes, ou psicologicamente incapazes de serem ainda úteis para o esforço de guerra. Evidentemente que a enfermeira americana não se enquadra nesta situação, pois estava totalmente sã e lúcida, podendo retomar ao seu trabalho para o esforço de guerra dos inimigos dos alemães.

Foto de jornal mostrando a enfermeira Reba Whittle no seu retorno aos Estados Unidos.

Mas todos que se debruçaram sobre o tema são unânimes em afirmar que os alemães se sentiram muito incomodados com a presença daquela oficial e, para surpresa de muitos, preferiram mandá-la de volta.

O retorno ocorreu em 25 de janeiro de 1945, quando Reba Whittle foi transportada em um trem com um grupo de repatriados para a Suíça e de lá ela foi capaz de embarcar em um avião para a Inglaterra e depois para os Estados Unidos.

Injustiça

A Enfermeira de voo Reba Zitella Whittle recebeu várias condecorações por sua provação como prisioneira, pelas feridas recebidas no acidente, por suas 41 missões em aviões C-47 evacuando os feridos e também foi promovida ao posto de primeiro-tenente. A enfermeira recebeu um telegrama do presidente Franklin Delano Roosevelt, agradecendo a ela por seu serviço e reconhecendo sua provação como uma prisioneira de guerra dos alemães por quatro meses.

Mas a concussão que ela sofreu no acidente a deixou com problemas duradouros, principalmente fortes dores de cabeça. Mesmo assim ela retornou ao serviço ativo na Estação Número 2 de Redistribuição da Força Aérea do Exército, em Miami Beach, Flórida. Depois foi transferida para trabalhar como enfermeira em um hospital do exército na Califórnia até o final da guerra.

Em 3 de agosto de 1945 ela se casou com o tenente-coronel Stanley W. Tobiason e em seguida solicitou dispensa do serviço ativo. Ela foi dispensada com todas as honras em 13 de janeiro de 1946.

Sua vida pós-exército foi marcada por vários problemas físicos e psiquiátricos. Ela buscou uma indenização da Administração dos Veteranos e iniciou uma série de apelos para a aposentadoria médica militar. Apesar dos diagnósticos de encefalopatia pós-traumática, reação crônica de ansiedade grave e artrite lombossacral precoce, seus apelos foram negados.

Finalmente, em janeiro de 1954, o Conselho de Apelação de Deficiência Física do Exército concordou que ela foi dispensada do serviço ativo por motivo de deficiência física e, portanto, elegível para benefícios de aposentadoria. Mesmo com sua deficiência sendo classificada como “ocorrida em combate”, ela foi retroativa apenas ao momento de sua inscrição, abril de 1952, e não ao período da guerra, o que lhe gerou um grande prejuízo financeiro e emocional. Reba realizou vários apelos, mas seu processo não foi reconhecido e acabou indeferido. Alguns dos seus biógrafos acreditam que sua condição de mulher pesou nessa equivocada e injusta decisão.

Ela e o Coronel Tobiason tiveram dois filhos, um dos quais se tornou Aviador Naval e serviu na Guerra do Vietnã.

Reba Whittle Tobiason morreu de câncer em 26 de janeiro de 1981, aos 62 anos.

Em abril de 1983, o Coronel Tobiason escreveu ao Exército, afirmando que o Departamento de Defesa e a Administração dos Veteranos não conheciam nenhuma outra militar americana que tenha sido feita prisioneira pelos alemães durante a Segunda Guerra na Europa.

Em 2 de setembro de 1983, Reba Zitella Whittle finalmente recebeu o status oficial de prisioneira dos alemães, mas somente em 1997 ela foi agraciada postumamente com a Medalha dos Prisioneiros de Guerra.

FONTES

https://www.tshaonline.org/handbook/entries/tobiason-reba-zitella-whittle

https://blog.theveteranssite.greatergood.com/reba-whittle/

https://www.memorialflightclub.com/blog/c-47-dakota-za947-75th-birthday

O TERRÍVEL JUIZ A SERVIÇO DA DITADURA

Careca, Olhar Igual Ao De Um Louco Assassino, Voz Alta e Esganiçada, Além de Uma Implacável Devoção ao Seu Ditador e a Sua Temida Ditadura, Foram Algumas das Marcas Deixadas Pelo Juiz Roland Freisler, o Mais Implacável Magistrado da Alemanha Nazista.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

20 de julho de 1944, apenas algumas horas após oficiais militares alemães tentarem assassinar Adolf Hitler em Wolfsschanze, a “Toca do Lobo”, seu quartel-general em Rastenburg, na Prússia Oriental, o Führer manteve seus compromissos, incluindo uma reunião com Benito Mussolini, o líder fascista italiano.

A trama, comandada por Claus von Stauffenberg, foi o culminar dos esforços de vários grupos da resistência alemã, que esperavam que a morte violenta de Hitler sinalizasse uma revolta antinazista e derrubasse o governo alemão. O Führer, no entanto, sobreviveu à explosão e a tentativa de golpe falhou.

Hitler após o atentado de 20 de julho de 1944 – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Nos dias que se seguiram, Adolf Hitler ordenou uma caça massiva aos conspiradores, que continuou por meses.

Muitos dos oposicionistas compareceram perante aos notórios Tribunais Populares para julgamentos que condenaram milhares de alemães à morte, muitas vezes com base em evidências mínimas. Seu presidente era um fanático juiz nazista chamado Roland Freisler.

Um Comunista?

Freisler nasceu em 30 de outubro de 1893 em Celle, na Baixa Saxônia, então parte do Império Alemão, filho do engenheiro e professor Julius Freisler e de sua esposa Charlotte. Consta que o futuro juiz e seus dois irmãos foram batizados como protestantes.

Quando a Primeira Guerra Mundial começou em 28 de julho de 1914, Freisler estudava Direito na Universidade de Jena, na região alemã da Turíngia, e interrompeu os estudos para seguir a frente de combate. Ele alistou-se como oficial cadete do exército imperial alemão, sendo em 1915 condecorado com a Cruz de Ferro de 2ª Classe por bravura em ação, quando estava no posto de tenente.

Em outubro do mesmo ano, na Frente Oriental, Freisler foi feito prisioneiro de guerra pelos russos e internado em um campo de oficiais perto de Moscou. Embora os prisioneiros alemães tenham sido libertados em 1918, Freisler permaneceu na Rússia soviética até 1919, onde aprendeu a falar fluentemente o idioma local. Na época acreditou-se que ele se tornou um firme defensor do bolchevismo.

Em 1919, Freisler retornou à Alemanha para completar seus estudos de direito na Universidade de Jena, o que realizou em 1922. Dois anos depois ingressou no Partido Nazista e imediatamente ganhou autoridade dentro da organização ao utilizar seus conhecimentos jurídicos para defender os membros que enfrentavam processos por atos de violência política.

Tropas alemãs durante a Primeira Guerra Mundial – Fonte – https://blogdoenem.com.br/primeira-guerra-mundial-historia-enem-2/

De 1924 a 1935, Freisler viajou frequentemente para a cidade de Leipzig, onde trabalhou como um advogado perante o Tribunal de Honra. Consta que em quase todos os julgamentos que atuou ele insultou e ameaçou colegas, bem como vítimas e até mesmo juízes. Mesmo assim a sua licença para exercer a advocacia nunca foi revogada.

Karl Weinrich, um nazista membro do parlamento prussiano, se tornou amigo de Freisler em 1927 e comentou sobre sua reputação no movimento nazista nesse período: “Retoricamente, Freisler é igual aos nossos melhores oradores, se não superior. Ele tem influência sobre as massas, mas a maioria das pessoas pensantes o rejeita. O camarada de partido Freisler só pode ser usado como orador e é inadequado para qualquer posição de autoridade por causa de sua falta de confiabilidade e mau humor”.

Em 24 de março de 1928, Freisler casou-se com Marion Russegger, onde tiveram dois filhos.

Ascenção no Nazismo  

Em janeiro de 1933, depois que Adolf Hitler e o partido nazista chegaram ao poder, Freisler tornou-se membro do Reichstag – o Parlamento alemão. Ele também foi nomeado para altos cargos no Ministério da Justiça da Prússia e do Reich. Com a fundação da Academia de Direito Alemã por Hans Frank, que mais tarde se tornou chefe do Governo Geral na Polônia ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, Freisler tornou-se membro e presidente do Comitê de Direito Penal.

Roland Freisler como membro do Partido Nazista – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Essa Academia foi encarregada de promover a reforma da vida jurídica alemã, trabalhando em ligação com órgãos legislativos para implementar o programa nacional-socialista nas áreas de direito e economia. Tempos depois o partido indicou Freisler como juiz.

O seu domínio sobre textos legais, agilidade mental, força verbal, além de intensa atuação dramática no tribunal, em combinação com sua conversão zelosa à ideologia nazista, fizeram dele o juiz mais temido da Alemanha e a personificação do nazismo na lei doméstica.

No entanto, apesar de seus talentos e lealdade, Adolf Hitler nunca o indicou para nenhum cargo além do sistema legal. Uma das razões foi a atuação política do seu irmão Oswald Freisler.

Várias vezes Oswald atuou como advogado de defesa de opositores do regime em julgamentos politicamente significativos, que os nazistas procuravam usar para fins de propaganda. O irmão do juiz Freisler tinha o hábito de usar seu distintivo de membro do Partido Nazista no tribunal, ao mesmo tempo que defendia intensamente opositores, o que gerou confusão.

O ministro da Propaganda Joseph Goebbels censurou Oswald Freisler e relatou suas ações a Adolf Hitler que, em resposta, ordenou a sua expulsão do Partido. Misteriosamente Oswald cometeu suicídio em Berlim em 1939, depois de ter sido acusado de irregularidades na condução de uma defesa.

O juiz Freisler era um ideólogo nazista comprometido e usou suas habilidades legais para adaptar suas teorias à legislação e ao judiciário práticos. Ele publicou um artigo intitulado A tarefa racial-biológica envolvida na reforma da lei criminal juvenil, no qual argumentava que “juvenis racialmente estrangeiros, racialmente degenerados, racialmente incuráveis ou com deficiências graves” deveriam ser enviados para centros juvenis, ou centros de educação correcional e segregados daqueles que são “alemães e racialmente valiosos”. Ele também defendeu fortemente a criação de leis para punir a chamada “contaminação racial” que era o termo nazista para relações sexuais entre “arianos” e aqueles considerados como de “raças inferiores”. Em 1933 ele até publicou um panfleto pedindo a proibição legal de relações sexuais de “sangue misto”.

Nazistas realizando um boicote às lojas judaicas – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Em 15 de setembro de 1935, o regime nazista anunciou duas novas leis: A Lei de Cidadania do Reich, que definia um cidadão pleno como uma pessoa “de sangue alemão”, o que significava que os judeus, definidos como uma raça separada, não podiam ser cidadãos da Alemanha e não tinham direitos políticos.

A outra foi a Lei para a Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã, que proibia futuros casamentos mistos e relações sexuais entre judeus e pessoas de “Sangue alemão”. Os nazistas acreditavam que tais relações eram perigosas porque geravam filhos “mestiços”. Segundo os nazistas, essas crianças e seus descendentes minavam a “pureza da raça alemã”.

Ajuda de Freisler ao Holocausto

A Segunda Guerra Mundial começou em 1º de setembro de 1939, quando a Alemanha invadiu a Polônia. No mês seguinte Freisler introduziu o conceito de “criminoso juvenil precoce” no Decreto de criminosos juvenis. Este decreto forneceu a base legal para impor a pena de morte e penas penitenciárias a menores pela primeira vez na história jurídica alemã. Pelo menos 72 menores de 18 anos foram condenados à morte pelos tribunais nazistas.

Dois anos depois o ministro Goebbels sugeriu nomear Roland Freisler para substituir Franz Gürtner, o ministro da Justiça do Reich, que havia falecido. Mas a resposta de Hitler, referindo-se ao suposto passado “vermelho” de Freisler, foi: “Aquele velho bolchevique? Não!”.

Edifício n.º 56–58 Am Großen Wannsee, onde a Conferência de Wannsee teve lugar; atualmente um memorial e um museu – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Confer%C3%AAncia_de_Wannsee

Em 20 de janeiro de 1942, quinze altos funcionários do Partido Nazista e do governo alemão se reuniram em uma vila no subúrbio de Wannsee, em Berlim, para discutir e coordenar a implementação do que chamaram de “Solução Final da Questão Judaica”. A “Solução Final” era o codinome para a aniquilação sistemática, deliberada e física dos judeus europeus. Os participantes da conferência incluíram representantes de vários ministérios do governo, incluindo secretários de Estado do Ministério das Relações Exteriores, da Justiça, do Interior e dos ministérios de Estado.

Os homens sentados à mesa faziam parte da elite do Reich. Mais da metade deles possuía doutorado em universidades alemãs. Eles estavam bem informados sobre a política em relação aos judeus. Cada um entendeu que a cooperação de sua agência era vital para que uma política tão ambiciosa e sem precedentes fosse bem-sucedida. Aqueles homens não deliberaram se tal plano deveria ser realizado, mas sim discutiram a implementação de uma decisão política que já havia sido tomada no mais alto escalão do regime nazista.

Reinhard Heydrich – Fonte – https://br.pinterest.com/pin/780319072907723525/

Na época da Conferência de Wannsee, a maioria dos participantes já sabia que o regime nazista havia se envolvido em assassinatos em massa de judeus e outros civis nas áreas ocupadas pelos alemães na União Soviética e na Sérvia.

Nenhum dos funcionários presentes na reunião, incluindo Roland Freisler, que fornecia consultoria jurídica especializada para o plano, se opôs à política de “Solução Final”.

Entre os que participaram desse encontro estava o temido Reinhard Tristan Eugen Heydrich, um oficial superior das terríveis tropas SS e um dos principais arquitetos da matança do que hoje conhecemos simplesmente como Holocausto. Heydrich indicou que aproximadamente onze milhões de judeus na Europa cairiam sob as garras da terrível “Solução Final”.

A Conferência de Wannsee durou apenas uns noventa minutos. A enorme importância que foi atribuída à conferência pelos escritores do pós-guerra não era evidente para a maioria de seus participantes na época. 

Um Hitler sorridente passa em revista suas tropas ao final da guerra, formada basicamente de adolescentes – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Em algum momento ainda indeterminado em 1941, Adolf Hitler autorizou esse esquema de assassinato em massa em toda a Europa. Mas é verdadeiro que não há nenhum documento que indique especificamente por quem, a que horas e de que maneira foi decidido embarcar no extermínio total dos judeus. Muitos estudiosos acreditam que tal ordem nunca foi emitida por escrito: em vez disso, foi dada oralmente, por Hitler, ou com seu conhecimento.

Também como resultado da reunião, foi estabelecida uma rede de campos de extermínio, na qual 1,7 milhão de judeus foram assassinados em 1942-1943.

Juiz Sanguinário

Em 20 de agosto de 1942, Hitler nomeou Freisler presidente do Tribunal Popular. Ele presidiu essa corte vestindo um vistoso manto judicial, em uma sala de audiência enfeitada com estandartes cobertos com suásticas escarlates e um grande busto da cabeça de Adolf Hitler esculpida em negro, montada em um alto pedestal atrás de sua cadeira. Ele abria cada sessão de audiência com a saudação nazista e atuou como promotor, juiz e júri juntos.

nomeou Freisler presidente do Tribunal Popular Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Sob a batuta de Freisler a frequência de sentenças de morte aumentou acentuadamente. Aproximadamente 90% de todos os casos que vieram parar em suas mãos terminaram com veredictos de culpado e mais de 5.500 sentenças de morte foram por ele decretadas, o que lhe valeu a reputação de “juiz sanguinário”.

A situação foi tão radical, que entre os anos de 1942 e 1945 Freisler foi responsável por mais sentenças de mortes do que todos os outros juízes desta mesma corte entre os anos de 1934 e 1945.  

Em todos os processos do Tribunal Popular, Freisler mostrou um viés pronunciado em favor do estado nazista e sua ideologia. Sua condução dos casos foi muito além das regras de procedimento e do código de conduta dos juízes e, portanto, representou uma forma grave de perverter a lei. Como nacional-socialista fanático, ele disse que queria julgar “como o próprio Führer julgaria o caso”.

Freisler ouve os acusados – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Para Freisler, o Tribunal Popular era expressamente um “tribunal político”. Nos julgamentos ele humilhava os acusados, mal os ouvia e os interrompia constantemente. Ele também gritava estridentemente com eles e conduzia o processo de maneira particularmente pouco objetiva. Os gritos altos de Freisler tornaram difícil para os acusados suportarem psicologicamente as seções.

Essas humilhações deliberadas e direcionadas aos acusados aconteceram tanto verbalmente, quanto de maneira não verbal. Por exemplo; os nazistas deram aos réus roupas velhas, grandes demais e sem cintos, forçando-os a ficarem na frente do tribunal segurando constantemente suas calças.

Terrível Contra os Opositores do Regime

Em 18 de fevereiro de 1943, os irmãos Hans e Sophie Scholl, além do estudante Cristopher Probst, distribuíram panfletos contra o regime de Hitler na Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, e foram rapidamente denunciados a Gestapo – à polícia secreta oficial da Alemanha nazista – e todos foram presos.

Por meio de questionamentos, ficou claro que os dois irmãos e o amigo faziam parte de um grupo de resistência chamado Rosa Branca que escrevia os panfletos, cada um sendo mais crítico em relação a Hitler e ao povo alemão do que o anterior. Eles encorajavam os cidadãos a resistirem ao regime nazista, denunciavam o assassinato de centenas de milhares de poloneses e exigiram o fim da guerra.

Os irmãos Hans e Sophie Scholl Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Sob interrogatório, foi oferecida a Sophie uma sentença reduzida se ela admitisse que seu irmão a havia desencaminhado. Mas ela recusou, dizendo: “Não vou trair meu irmão ou meus princípios e não farei barganha com os nazistas”. Em 22 de fevereiro de 1943, Freisler voou para Munique com o único propósito de presidir esse julgamento.

Aparecendo no tribunal, Sophie Scholl chocou a todos quando comentou com Freisler “Alguém, afinal, tinha que começar. O que escrevemos e dissemos também é acreditado por muitos outros. Mas eles simplesmente não ousam se expressar como nós”. Ela também interrompeu Freisler com uma declaração: “Você sabe que a guerra está perdida. Por que você não tem coragem de enfrentar?”. Depois de meio dia de julgamento, o veredicto foi o esperado: culpado.

Freisler os condenou à morte por enforcamento, mas com medo de serem elevados ao status de martírio se fossem mortos publicamente, decidiu-se matá-los na guilhotina. Em menos de vinte e quatro horas depois de condenados, a sentença contra os dois irmãos e o amigo Probst foi executada.

Em 19 de abril de 1943, Freisler foi trazido a Munique para ser o juiz do segundo julgamento dos membros da Rosa Branca. Logo no início Freisler gritou com um dos acusados: “O nacional-socialismo não precisa de um código penal contra tais “traidores” como vocês. Vou encurtar esse processo”. Quando um assessor lhe entregou um volumoso exemplar do código penal, sem dizer uma palavra, Freisler imediatamente o jogou na direção do acusado, que teve que se abaixar para evitar ser atingido na cabeça. Dos treze réus desse caso três foram condenados à morte, nove foram condenados à prisão e um foi absolvido inesperadamente.

Outra vítima de Freisler foi Elfriede Scholz, irmã do romancista alemão Erich Maria Remarque.

Em 10 de maio de 1933, por iniciativa do ministro Joseph Goebbels, a escrita de Remarque foi declarada publicamente como “antipatriótica” e proibida na Alemanha. Como resultado, as cópias foram removidas de todas as bibliotecas e proibidas de serem vendidas ou publicadas em qualquer lugar do país.

Enquanto Erich deixou a Alemanha, sua irmã Elfriede não. Ela, uma simples costureira, ficou na Alemanha com o marido e dois filhos e foi presa pela Gestapo depois que afirmou a uma conhecida cliente e ao seu senhorio que “Não acreditava na propaganda de uma vitória final alemã e os soldados na frente de batalha não passavam de ovelhas para o abate”. Ela também comentou que “mataria Adolf Hitler se pudesse” e que “a guerra conduzida pelos nazistas estava perdida”.

As acusações contra Elfriede Scholz a levaram a ser classificada como uma perigosa ativista, que “estava minando o esforço de guerra da Alemanha”. Durante o julgamento, Freisler disse a Elfriede “Seu irmão está fora de nosso alcance, mas você não escapará de nós!”. Elfriede Scholz foi decapitada na guilhotina em 16 de dezembro de 1943.

Contra os Participantes da Operação Valquíria

Conforme comentamos anteriormente, em 20 de julho de 1944, Claus von Stauffenberg e outros conspiradores tentaram assassinar Adolf Hitler dentro de seu quartel-general.

Stauffenberg (à esquerda) em Rastenburg em 15 de julho de 1944. No centro Adolf Hitler. Stauffenberg já levava as bombas consigo. Mas decidiu não detoná-las naquele momento. Fonte – Wikipédia

Os conspiradores se concentraram em um plano de contingência existente com o codinome Operação Valquíria. Esta ação foi originalmente projetada para combater militarmente uma potencial agitação civil na Alemanha. Já os conspiradores modificaram o plano para seus próprios objetivos, com a intenção de assumir o controle das cidades alemãs, desarmar as tropas SS e prender os principais líderes nazistas após a conspiração.

As motivações variaram amplamente e não devem ser vistas apenas no contexto do Holocausto, já que vários dos próprios conspiradores estavam implicados em crimes de guerra e no Holocausto. Para muitos dos participantes a tentativa de assassinato tinha um objetivo mais pragmático: resgatar a Alemanha da derrota catastrófica provocada pela administração cada vez mais irracional de Hitler.

Tribunal do Povo julgando os envolvidos na conspiração para matar Hitler em 1944 – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Nos dias que se seguiram ao atentado fracassado, Hitler ordenou uma caça massiva aos conspiradores, que continuou por meses. Em agosto de 1944, alguns dos perpetradores presos da tentativa de assassinato foram levados a Freisler para punição.

Hitler ordenou que os culpados fossem “enforcados como gado” e que os procedimentos fossem filmados para serem exibidos ao público alemão em cinejornais e retratar como Freisler dirigia implacavelmente o seu tribunal.

O terrível juiz costumava alternar entre questionar os réus de maneira analítica e, de repente, lançar-se sobre a vítima com um furioso discurso verbal, chegando a gritar insultos ao acusado no tribunal. A mudança do interrogatório frio e clínico para acessos de raiva gritante, foi projetada para desarmar psicologicamente os acusados, ao mesmo tempo que desencorajava qualquer tentativa de defender ou justificar suas ações.

A certa altura, Freisler gritou com o marechal de campo Erwin von Witzleben, que tentava segurar as calças depois de receber de propósito roupas velhas, grandes demais e sem cinto: “Seu velho sujo, por que fica mexendo nas calças?” No entanto, os réus nunca perderam sua dignidade.

As palavras finais que Erwin von Witzleben dirigiu a Freisler teriam sido: “Você pode nos entregar ao carrasco. Em três meses, as pessoas indignadas e atormentadas irão responsabilizá-lo e arrastá-lo vivo pela lama das ruas.”

César von Hofacker, figura principal da resistência na França, interrompeu Freisler depois de tê-lo interrompido várias vezes dizendo: “Você está calado agora, Herr Freisler! Porque hoje é sobre a minha cabeça. Em um ano, é tudo sobre a sua!”

Tribunal lotado para assistir a condenação dos conspiradores – – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Quando Freisler imaginou sarcasticamente a morte iminente do general Erich Fellgiebel, Fellgiebel disse a Freisler: “Então, apresse-se, senhor juiz, senão você é que cairá antes de nós.”

Quando o conde Ulrich-Wilhelm Schwerin von Schwanenfeld, devastado pelas condições de sua detenção, foi levado ao tribunal sem cinto e gravata, ele também tentou preservar sua dignidade e afirmou que sua oposição a Hitler se devia aos “muitos assassinatos na Alemanha e no exterior”. Ele era constantemente interrompido por um Freisler furioso, que finalmente gritou com ele de raiva e disse-lhe: “Você realmente é um lixo nojento!”.

No final, mais de 7.000 pessoas foram presas. 4.980 deles, incluindo von Witzleben, von Hofacker, o conde Schwerin von Schwanenfeld e o general Fellgiebel, foram executados nas prisões nazistas, muitas vezes com base em evidências mínimas. Algumas das execuções foram realizadas duas horas após a entrega do veredicto.

Freisler e sua verborragia – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

Justiça Divina

Se você acredita na Justiça Divina, podemos dizer que ela finalmente alcançou Freisler em 3 de fevereiro de 1945. E existem dois relatos contraditórios sobre as circunstâncias de sua morte.

Na manhã daquele dia, Freisler conduzia uma sessão de sábado do Tribunal Popular, quando bombardeiros da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos atacaram Berlim. Prédios do governo foram atingidos, incluindo a Chancelaria do Reich, o quartel-general da Gestapo, a Chancelaria do Partido Nazista e o Tribunal Popular.

Ao ouvir as sirenes antiaéreas, Freisler encerrou apressadamente o tribunal e ordenou que os prisioneiros diante dele fossem levados para um abrigo subterrâneo, mas ele próprio ficou para trás para reunir os arquivos antes de partir. Uma bomba então atingiu o prédio do tribunal, causando um colapso interno e uma coluna de alvenaria se soltou enquanto Freisler se distraía com seus documentos.

Freisler presidindo uma seção – Fonte – https://www.bundesarchiv.de/DE/Navigation/Home/home.html

A coluna desabou sobre o terrível juiz, fazendo com que ele fosse esmagado e morto instantaneamente. Devido ao colapso da coluna, uma grande parte do tribunal também pousou sobre o cadáver de Freisler. Os seus restos esmagados e achatados foram encontrados sob os escombros, ainda segurando os arquivos que ele havia deixado para reunir.

Mas um relato diferente afirmou que Freisler, então com 51 anos, foi morto por um estilhaço de bomba enquanto tentava escapar de seu tribunal para o abrigo antiaéreo. Ele então sangrou até a morte na calçada em frente ao Tribunal do Povo em Berlim. Luise von Benda, esposa do general Alfred Jodl, contou 25 anos depois que trabalhava no Hospital Lützow quando o corpo de Freisler chegou para atendimento, mas não havia nada mais a fazer.

Ao ver o corpo de Freisler, um funcionário do hospital comentou: “É o veredicto de Deus”. Nenhuma pessoa disse uma palavra em resposta. O corpo de Freisler foi enterrado no túmulo da família de sua esposa em Berlim. Seu nome não ficou registrado na lápide e não houve lágrimas derramadas por Roland Freisler.

A terrível atuação desse homem foi tão forte na história jurídica alemã, que, mesmo sem confirmação, eu soube que na moderna Alemanha quando um juiz começa a extrapolar das suas funções, ou sua atuação jurídica começa a ultrapassar os limites do bom senso, ou este começa a “ter certeza que é Deus”, dizem que ele está “agindo tal qual Freisler”.

E no Brasil, existe algo parecido?

PARA SABER MAIS SOBRE O ATENTADO CONTRA HITLER EM 1944, CLIQUE NO LINK ABAIXO.

O MARCO TOPOGRÁFICO DE RIACHUELO – UMA RELÍQUIA DA SEGUNDA GUERRA NO AGRESTE POTIGUAR

Próximo à Cidade de Riachuelo, no Alto da Serra Azul, Existe um Antigo Marco Topográfico, Aparentemente o Último do Seu Tipo Ainda Existente no seu Ponto Original, Que Foi Colocado Pelo Exército Brasileiro Durante a Segunda Guerra Mundial e Foi Utilizado Como Instrumento Para a Defesa do Nosso Litoral.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Nos últimos meses de 2018, através das indicações existentes em um livro sobre a vida e a obra do escritor e pesquisador potiguar Oswaldo Lamartine, junto com os dados encontrados em um documento originalmente produzido em 1944 pela US Navy (Marinha dos Estados Unidos), me desloquei ao município de Riachuelo, no Agreste Potiguar, para pesquisar sobre um acidente com uma aeronave de combate.

Rostand Medeiros, José Lourenço e Aírton Freitas, Secretário de Administração de Riachuelo e grande batalhador pela história de sua comunidade. Foto realizada em 2018 quando realizamos a pesquisa do desastre do Catalina em 1944 – Foto: José Correia Torres Neto.

Nesta cidade, distante 80 quilômetros de Natal, encontrei uma interessante história sobre a queda de um hidroavião bimotor Consolidated PBY-5A Catalina no dia 10 de maio de 1944. Encontrei também testemunhas extremamente interessadas em ajudar, tendo conseguido acumular muitas informações e elementos ligados a esse episódio.

Livro Sobrevoo: Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte.

Os resultados da nossa pesquisa foram extremamente promissores, gerando inclusive um dos capítulos do meu livro Sobrevoo: Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte (2019), além de um interessante contato com a Embaixada dos Estados Unidos, conforme os leitores podem saber mais acessando os links abaixo… 

https://br.usembassy.gov/pt/relembrando-riachuelo/

Durante esses trabalhos conheci o professor Airton Freitas de Macedo, que na época era Secretário de Administração da Prefeitura Municipal de Riachuelo e muito ajudou em nossas pesquisas e nos desdobramentos que ocorreram junto ao pessoal da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e do consulado desse país sediado em Recife.

Registro quando ocorreu a visita dos membros do Consulado dos Estados Unidos de Recife a cidade de Riachuelo em maio de 2019. Da esquerda para a direita vemos os Srs. Stuart Alan Beechler e Daniel A. Stewart , do Consulado Geral dos Estados Unidos em Recife, seguido de Rostand Medeiros , escrito e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e o Capitão de Mar e Guerra Fuzileiro Naval (R.R.) Edison Nonato de Faria. Foto: Charles Franklin de Freitas Gois. 

Em nossas visitas e entrevistas, Ailton me falou sobre a existência de uma espécie de “marco” que havia sido colocado próximo a Riachuelo, no alto de uma elevação chamada Serra Azul, às margens da BR-304, a mesma estrada que liga Natal a Mossoró. Ailton me informou que a colocação desse marco ocorreu na época da Segunda Guerra e foram militares do Exército Brasileiro os responsáveis pela colocação. Apesar de ter sido convidado por Airton para visitar esse marco, essa visita não pôde ser concretizada naquela época. 

Na hora que eu soube dessa informação, acreditei que essa verdadeira relíquia tinha ligação com um marco topográfico colocado pelo Exército no alto do Morro do Navio, ou Morro Vermelho, perto da localidade de Pium, município de Nísia Floresta, próximo ao litoral potiguar e a cerca de 25 quilômetros de distância do centro de Natal.

O autor desse texto e o falecido jornalista Luiz Gonzaga Cortez, realizando medições no marco do Morro do Navio em 2013.

Eu estive neste local em 2013 e vi esse marco de concreto junto com o falecido jornalista Luiz Gonzaga Cortez. Na sequência escrevi em nosso blog TOK DE HISTÓRIA um texto sobre essa visita e sobre o vandalismo que esse objeto sofria na época [1].

Esse marco no Morro do Navio possuía um orifício na ponta, tinha em torno de 1,50 m, sendo 40 centímetros só na base. Em uma de suas laterais encontramos as inscrições “1942”, “S.G.H.E.” e “45”. Na época eu acreditei que esse marco estava relacionado a alguma missão militar realizada na década de 1940, provavelmente destinado a utilização na área de levantamento cartográfico do Serviço Geográfico do Exército (SGEx).

O marco do Morro do Navio totalmente desenterrado.

Em 2013 eu busquei ajuda com um amigo historiador sobre a possível origem desse marco do Morro do Navio e, segundo ele, a hipótese mais correta era que este material estava ligado a missão de um grupo de cartógrafos/topógrafos militares, que realizaram o levantamento do litoral nordestino, mediante a necessidade de operações de guerra que iriam se desenvolver em nossa região. Para cumprir tal missão foi organizado o Destacamento Especial do Nordeste (DEN), chefiado pelo então Tenente-coronel Djalma Poly Coelho, contando com um número superior a trinta oficiais engenheiros e sargentos topógrafos.

Apesar do desejo em ajudar, essas eram as informações básicas que esse amigo historiador me passou sobre esse marco. 

PARA DETALHES SOBRE A HISTÓRIA DO MARCO DO MORRO DO NAVIO, EM PIUM, MUNICÍPIO DE NÍSIA FLORESTA, CLIQUE NO LINK ABAIXO. 

Surpresa 

Em setembro de 2022 eu recebi um e-mail do Capitão Othon Amorim Barbosa, então Chefe da Seção de Comunicação Social do 3º Centro de Geoinformação (3º CGEO), também conhecido como “Centro de Geoinformação General Poly Coelho”, sediado em Olinda, Pernambuco.   

Serra Azul, no município de Riachuelo.

Logo mantivemos um proveitoso contato telefônico, onde o Capitão Othon me relatou ter encontrado na internet o nosso texto sobre o marco do Morro do Navio. Ele então me transmitiu alguns detalhes interessantes sobre a história do 3° CGEO e do trabalho do Tenente-coronel Djalma Poly Coelho no início da década de 1940 no Nordeste brasileiro. Em meio ao nosso interessante diálogo, lhe relatei sobre a existência de um marco no município de Riachuelo, que poderia ter relação com a história do trabalho do Serviço Geográfico do Exército em nossa região.

Detalhe da Serra Azul.

A nossa conversa então tomou outro rumo, onde o Capitão Othon se mostrou interessado em enviar um militar do 3° CGEO até a região para visitar a Serra Azul e fotografar o marco ali existente.

Logo entrei em contato com o amigo Ailton Freitas em Riachuelo, que se colocou à inteira disposição para a realização dessa visita e prometeu ajudar no que fosse possível.

Passando na sede da propriedade a caminho do alto da serra.

Em um sábado, 8 de outubro de 2022, eu segui para Riachuelo com o Subtenente Severino Alves Neto, um profissional de alto gabarito, pessoa de primeiríssima qualidade, que me transmitiu muitas e interessantes informações sobre o trabalho da atual Diretoria de Serviço Geográfico do Exército (DSG), sucessora do Serviço Geográfico do Exército. De forma muito tranquila o Subtenente Alves Neto delineou a atuação das unidades militares vinculadas a essa diretoria e a atuação desse ramo do Exército Brasileiro em todo território nacional.

Trilha para o alto da serra no meio da mata.

Confesso que nada sabia da atuação da DSG, da importância prática do seu atual trabalho para os diversos níveis da máquina estatal, do nível de desenvolvimento das atividades cartográficas do Exército Brasileiro e outros temas. A troca de informações proporcionada pelo Subtenente Alves Neto foi tão interessante, que o tempo para percorrer os 80 quilômetros de trajeto entre Natal e Riachuelo me pareceu ter passado muito rápido.

O Professor Airton fotografando um abrigo soba rocha existente na Serra Azul.

Nessa cidade que sempre me traz boas energias, estivemos na casa do amigo Ailton, que nos apresentou os irmãos Ariel e Urias Teixeira da Silva, que nos ajudaram na empreitada e nos conduziram através das trilhas da Serra Azul. Após um cafezinho, seguimos todos para esse local, distante cerca de dois quilômetros de Riachuelo. 

Trecho após o abrigo natural.

Uma Relíquia da Segunda Guerra no Agreste Potiguar 

O acesso a Serra Azul é feito por uma propriedade às margens da BR-304, onde fomos muito bem recebidos pelas pessoas que moram por lá. Depois iniciamos a trilha, que logo chegou ao setor mais próximo da elevação propriamente dita. Então iniciamos o caminho por uma área com boa preservação natural e a trilha seguia para o alto, onde teríamos que chegar ao topo desta serra com cerca de 300 metros de altitude.

Da esquerda para direita Urias, Rostand, Ariel e Alves Neto.

Apesar de em alguns trechos a mata ser relativamente densa, ela pode ser realizada de maneira tranquila, sem maiores percalços. No caminho os guias Ariel e Urias não deixavam escapar nenhum detalhe sobre a trilha e a natureza ao redor. Realmente eles são dois guias natos, muito bem preparados e extremamente dispostos a ajudar.

No meio do caminho tivemos de contornar um grande bloco esférico de granito, que de tão grande forma na sua base um interessante abrigo natural, que percebemos serem utilizados por pequenos animais.

Visual na subida da serra.
Belezas da Serra Azul.

Em alguns momentos a trilha é feita basicamente sobre o granito, onde a vegetação é naturalmente ausente, mas o visual da região se torna então muito interessante. Na verdade, essa trilha bem poderia ser utilizada como um atrativo turístico da cidade de Riachuelo e da Região do Agreste Potiguar.

No final da trilha chegamos ao alto da serra e encontramos o marco.

Grupo reunido junto ao marco topográfico.

Ele se encontra rachado e, segundo fomos informados, por pessoas que acreditavam que no seu interior haveria algum tipo de “tesouro”, o que nunca existiu.

Nesse marco encontramos uma marca triangular, que apontava em direção leste, a mesma de Natal e do litoral do Rio Grande do Norte. Essa marca é um ponto trigonométrico.

Marca triangular onde provavelmente havia uma placa de bronze com marcações topográficas.

Segundo o Subtenente Alves Neto esse triângulo no marco da Serra Azul poderia conter uma placa de bronze, com várias marcações para serem utilizadas naquela época pelos topógrafos do Serviço Geográfico do Exército.

O interessante, conforme é possível ver na imagem abaixo, esse triângulo é reproduzido dentro de uma marcação semicircular que significa uma elevação, com o número “254” ao lado, indicativo de sua referência de nível. Esse sinal é reproduzido no mapa em escala de 1:100.000, Folha SB25–V–C–IVMI–977, confeccionado pela DSG em 1983. Infelizmente essa possível placa de bronze foi perdida.

No detalhe a localização da Serra Azul no mapa em escala de 1:100.000 que mostra uma parte do município de Riachuelo.

Na lateral, tal como no marco do Morro do Navio de Pium, encontramos a sigla “S.G.H.E.” e o número “40.

Segundo o amigo Ariel Teixeira da Silva, na época da colocação desse objeto no alto da Serra Azul, ficou na memória dos moradores da pequena Riachuelo, então um arruado com poucas casas, que os homens que implantaram esse marco seriam “alemães”, por muitos deles serem brancos, altos e loiros. Mas a maioria dos membros do Exército que realizaram essa atividade no Nordeste eram oriundos do Rio Grande do Sul e muitos eram descendentes de italianos e alemães.

As letras “S.G.H.E.” e o número “40”.

Concluímos então a visita realizando inúmeras fotos desse marco histórico. 

ATENÇÃO – Para quem desejar percorrer a trilha que leva ao marco histórico do Exército Brasileiro no alto da Serra Azul, em Riachuelo, liguem para o amigo Urias Teixeira da Silva, no telefone celular e WhatsApp número – 84 99612 3048. 

Reconhecimento 

Nos dias posteriores a nossa visita, fiquei sabendo que os resultados obtidos em campo foram positivamente apreciados pelo Tenente-coronel Rodrigo Wanderley de Cerqueira, comandante do 3° CGEO, bem como pelo General de Brigada Marcis Gualberto Mendonça Junior, Diretor do Serviço Geográfico do Exército (DSG), cuja sede fica em Brasília.

Entrada do 3° CGHEO, em Olinda, Pernambuco.

Então todos os civis que participaram dessa atividade na zona rural de Riachuelo foram convidados para se fazerem presentes na sede do 3° CGEO em Olinda, no dia 17 de outubro de 2022, para comemorar o Dia do Topógrafo e recebemos diplomas e uma lembrança dessa atividade junto a essa unidade militar.

Nesse dia, uma segunda-feira, me fiz presente e representei meus amigos de Riachuelo. Na ocasião visitei o Centro de Memória do 3° CGEO e participei da cerimônia militar alusiva ao Dia do Topógrafo.

O autor deste texto ao lado do Tenente-coronel Rodrigo Cerqueira, comandante do 3° CGEO.

O Tenente-coronel Rodrigo Cerqueira, o Major Daniel da Costa e Silva, subcomandante da unidade, além dos oficiais e subalternos foram extremamente atenciosos e me receberam de maneira muito digna nessa unidade militar.

Formatura pela cerimônia do Dia do Topógrafo.

Durante a cerimônia recebi das mãos do comandante do 3° CGEO meu diploma e uma lembrança contendo o brasão da unidade e a esfinge do General de Brigada Djalma Poly Coelho. Na ocasião me foram entregues os diplomas dos amigos Airton Freitas de Macedo, Ariel e Urias Teixeira da Silva.

Materiais que foram entregues pelos militares do 3° CGEO aos civis que participaram da visita ao marco topográfico da Serra Azul.

Foi um momento muito positivo, onde conheci muitos topógrafos dessa unidade que atualmente se encontram na reserva e com eles soube das difíceis missões topográficas realizadas em tempos passados pelo interior do Nordeste.

Me vi entre militares que têm uma formação técnica extremamente apurada, um senso de satisfação na realização de suas missões que muito me impressionou, um enorme respeito pelos membros veteranos da unidade e acima de tudo percebi que esses homens e mulheres do 3° CGEO possuem a certeza que todo o trabalho que realizam tem uma enorme utilidade para a sociedade brasileira. Embora essa mesma sociedade desconheça os resultados dos seus relevantes trabalhos.

Entrega dos diplomas.

Essas pessoas trazem no desenvolvimento de suas atividades uma tradição que começou no final do século XIX, onde a missão principal dos militares que iniciaram os trabalhos cartográficos no Exército Brasileiro era criar mapas para uma imensa nação que quase não tinha mapas.

O Exército e a Cartografia

Em 2 de junho de 1890 saiu na primeira página do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, a notícia que três dias antes havia sido criado pelo Exército Brasileiro um “serviço geographico”. Essa atividade seria exercida por militares com especialização em engenharia, oriundos da tradicional Escola Polythecnica do Rio [2]. Já os membros que fariam parte desse serviço e não tinham essa formação, realizaram cursos junto aos cientistas do Observatório Nacional, também no Rio, com foco em atividades de levantamento geográfico [3].

Texto de criação do “serviço geographico” no Exército em 1890.

As razões para a criação desse tipo de atividade no Exército Brasileiro, seis meses após a Proclamação da República, passava por uma ideia de modernização da força terrestre brasileira e encerrar uma situação onde o conhecimento geográfico do território nacional era muito limitado. Havia muitos erros nos mapas disponíveis, que geravam incertezas sobre as localizações de limites de fronteiras com outros países e nos próprios estados brasileiros, além do traçado dos rios e até a localização de capitais e cidades [4]. 

Naquele período entre a década de 1890 e a virada do novo século, ocorreram no Brasil várias crises internas, onde algumas delas se tornaram lutas sangrentas, que atrasaram o desenvolvimento do país. Na arma terrestre não foi diferente, tendo o seu “serviço geographico” só começado a desenvolver projetos de maior vulto nos primeiros anos do século XX [5].

Mapa da Baía da Guanabara, Rio de Janeiro.

Em 1903 foi elaborado pelo Estado-Maior do Exército o “Projeto Carta Geral do Brasil”, através de uma comissão específica, que tinha então o objetivo de elaborar o maior mapeamento possível do país. Contudo, lendo um amplo texto existente em um relatório com as atividades do Ministério da Guerra de 1908, esse trabalho basicamente se concentrou na implantação da rede geodésica e no mapeamento do estado do Rio Grande do Sul, principalmente a região de fronteira com o Uruguai e a Argentina [6].

As razões para esse incremento na elaboração de mapas nesse setor do país, era tanto a demarcação definitiva da fronteira com essas duas nações, como elaborar estratégias militares visando a nossa defesa para o caso de algum ataque vindo principalmente da Argentina, que dentro dos processos estratégicos brasileiros da época era considerado o nosso potencial e principal inimigo.

Autoridades civis e militares na Fortaleza do Morro da Conceição.

A partir da metade do ano de 1917 essa área especializada do Exército Brasileiro passou a ser denominado Serviço Geográfico Militar, tendo sua sede na antiga fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, um bastião defensivo construído pelos portugueses em 1718 no Morro da Conceição, Rio de Janeiro [7]. Segundo notícia de um periódico carioca, em 3 de agosto de 1917 o General Bento Manuel Ribeiro Carneiro Monteiro, então Chefe do Estado Maior do Exército, reuniu um grupo de deputados e jornalistas para visitar as dependências daquela instituição na fortaleza [8].

General Bento Ribeiro apresenta o serviço Geográfico a políticos e a imprensa carioca.

Em 14 de outubro de 1920 desembarcou no Rio de Janeiro a hoje quase desconhecida Missão Cartográfica Imperial Militar Austríaca, tendo à frente o General e Barão Arthur Herr Von Hübl, do Imperial Instituto Geográfico Militar de Viena. Os austríacos introduziram no país o levantamento topográfico à prancheta, os métodos estereofotogramétricos de emprego de fotografias terrestres e aéreas e a impressão offset, além de ajudarem na criação da Escola de Engenheiros Geográficos Militares [9].

Em 1923, percebendo que as dependências da Fortaleza do Morro da Conceição não comportavam a apliação do Serviço Geográfico Militar, o Exército adquiriu o Palácio da Conceição (foto abaixo), que fica nos fundos da antiga fortaleza. Esse local serviu de sede do bispado até 1915, quando este foi transferido para o Palácio Arquiepiscopal São Joaquim, no bairro da Glória [10].

Antigo Palácio da Conceição.

O Serviço Geográfico Militar e a Comissão da Carta Geral continuaram ao longo dos anos atuando de forma independente, com o primeiro executando mapeamentos em áreas no Rio de Janeiro e o segundo continuando a realização de levantamentos no Rio Grande do Sul. A partir de 1932 o Serviço passa a denominar-se Serviço Geográfico do Exército (SGE), e a então Comissão da Carta Geral dá origem à Primeira Divisão de Levantamento, tendo sua sede em Porto Alegre e sua criação se deu através do decreto nº 21.883, de 29 de setembro de 1932 [11].

Símbolo do serviço Geográfico.

O Serviço Evolui

No ano seguinte foram designados para a Divisão de Levantamento dois aviões Bellanca CH-300 Special Pacemaker (Foto abaixo).

A antiga Aviação Militar do Exército Brasileiro havia adquirido treze exemplares dessa aeronave, que eram construídos nos Estados Unidos, sendo monoplanos utilitários típicos da década de 1930. Possuíam asa alta, trem de pouso fixo, capacidade para seis pessoas, sendo movidos por um motor Wright J-6s de 300 H.P. e foi uma aeronave que se tornou conhecida por sua resistência e grande autonomia de voo, que superava as cinco horas [12].

Avião utilizado pelo Serviço Geográfico.

Em 27 de setembro de 1933 os Bellanca decolaram do Rio para Porto Alegre pilotados pelo Capitão Clóvis Travassos e o Tenente Burgmann [13]. Com a ideia de apoiar as atividades dessas aeronaves em terras gaúchas, o então governador Flores da Cunha mandou construir um hangar na cidade de Cruz Alta, liberando para os militares 400 caixas de gasolina, 48 de óleo e até dinheiro para diárias de manutenção das equipes, sendo o fato noticiado em todo país [14].

Devido a importância e especialidade de suas missões, o Serviço Geográfico do Exército conseguia até mesmo superar certas diferenças internas no Exército, criadas em decorrência das lutas políticas ocorridas no Brasil na década de 1930. Um exemplo disso ocorreu com o Tenente-coronel Jaguaribe Gomes de Mattos, que se encontrava exilado na Europa por ter participado da Revolução Constitucionalista de 1932 ao lado dos paulistas. Mesmo assim esse oficial recebeu permissão do Ministério da Guerra para a atuar pelo Exército, com os seus devidos vencimentos, acompanhando a impressão dos mapas da região do Mato Grosso junto ao Exército Francês a [15].

Informativo sobre o serviço Geográfico.

Em 1937 o Serviço Geográfico do Exército se viu diante da missão de encerrar as várias pendências em relação à demarcação das fronteiras estaduais. A situação chegou a tal ponto que a Constituição Brasileira outorgada pelo presidente Getúlio Vargas em 10 de novembro daquele ano tinha um artigo específico para tratar do assunto, com a designação do Serviço Geográfico do Exército nessa função, conforme podemos ler abaixo [16]. 

Art. 184 – Os Estados continuarão na posse dos territórios em que atualmente exercem a sua jurisdição, vedadas entre eles quaisquer reivindicações territoriais.

§ 1º – Ficam extintas, ainda que em andamento ou pendentes de sentença no Supremo Tribunal Federal ou em Juízo Arbitral, as questões de limites entre Estados.

§ 2º – O Serviço Geográfico do Exército procederá às diligências de reconhecimento e descrição dos limites até aqui sujeitos a dúvida ou litígios, e fará as necessárias demarcações [17]

Para se ter uma ideia da quantidade de pendências dos limites estaduais no Brasil até o final da década de 1930, veja abaixo esse resumo publicado na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (páginas 33 e 34, edição de 1937).

Pela relação é possível compreender como a questão dos limites estaduais no Brasil foi complicada no passado.

Pelo final da década de 1930, ou início da de 1940, o Exército mudou a denominação do Serviço Geográfico do Exército, pra “Serviço Geográfico e Histórico do Exército”, daí surge a sigla “S.G.H.E.” que vi nos marcos do Morro do Navio e da Serra Azul. Agora a razão dessa alteração, a portaria informando a mudança e quando deixou de existir eu realmente não descobri.

Logo surgiram no horizonte nuvens negras vindas da Europa, onde começaram a se acumular notícias que mostravam que uma nova conflagração mundial era somente uma questão de tempo.

Topografando no Nordeste

Cerimônia na sede do Serviço Geográfico do Exército.

O Exército Brasileiro então começou a se preocupar com a defesa do chamado “Saliente Nordestino”, a parte da América do Sul mais próxima da África, com uma distância de 2.900 quilômetros entre os dois continentes, cujos pontos estratégicos em cada lado eram Natal, no Rio Grande do Norte, e Dakar, na antiga África Ocidental Francesa e atualmente capital do Senegal [18].

Um problema para a defesa do litoral dessa região era a quase total inexistência de mapas que ajudassem os comandantes a realizar suas ações militares no caso de uma invasão estrangeira. Foi então criado o Destacamento Especial do Nordeste do Serviço Geográfico do Exército e a chefia ficou a cargo do então Tenente-coronel Djalma Poly Coelho, que assumiu o posto em maio de 1941 [19].

Poly Coelho assumindo o comando do destacamento Especial do Nordeste.

Nascido em Curitiba, Paraná, em 17 de outubro de 1892, era filho do primeiro sargento José Manuel da Silva Coelho, lotado no 17º Batalhão de Infantaria, e da dona de casa Amália Poly Coelho. O jovem estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro na primeira década do século XX, ingressando depois na antiga Escola de Guerra do Realengo [20]. Em 1914 alcançou a patente de Aspirante, formou-se engenheiro geógrafo militar e encerrou sua carreira em 1952, no posto de General de Divisão [21].

Pelos jornais antigos existentes na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, descobri que em agosto de 1941 houve uma grande quantidade de publicações relativas a transferências de militares para Recife. Eram homens de diversas patentes, de várias partes do Brasil, alguns deles com ordens para servir no Destacamento Especial do Nordeste.

Pessoal do Destacamento Especial do Nordeste, tendo à esquerda o Tenente-coronel Poly Coelho – Fonte – 3° CGEO.

A missão era o levantamento aerofotogramétrico das regiões próximas à costa dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco e ao longo de três anos e meio esse Destacamento Especial trabalhou bastante.

Sabemos também que foram realizados levantamentos topográficos no Arquipélago de Fernando de Noronha e nas regiões salineiras do Rio Grande do Norte e do Ceará. Já em 1942 oficiais do Exército Brasileiro começaram a utilizar os primeiros mapas que o Destacamento Especial do Nordeste havia concluído.

Descobri que em janeiro de 1942 a área onde se aquartelou o pessoal do Serviço Geográfico do Exército em Recife, sofreu uma aparente ação de sabotagem.

Notícia da possível sabotagem em jornal do Rio de Janeiro.

A área onde os militares ficaram era no chamado Campo do Jiquiá, onde o Serviço Geográfico tinha uma grande instalação com pessoal, veículos e material de trabalho. O Jiquiá se tornou famoso por receber 65 vezes o pouso do grande dirigível Graf Zeppelin, da empresa alemã Luftschiffbau Zeppelinm G.M.B.H. Ocorre que na manhã de 12 de janeiro o capinzal existente na área pegou fogo repentinamente e houve preocupação com o avanço das chamas, mas os bombeiros recifenses apareceram no local e controlaram o fogo. O problema era que vizinho as instalações do Serviço Geográfico estava o depósito da companhia de navegação alemã Hermann Stoltz & Cia, uma empresa envolvida até o pescoço com espionagem nazista em vários locais do Nordeste e no sul do país. Seus gestores tinham acesso a informações privilegiadas sobre a navegação na costa brasileira e foram acusados de repassar essas informações para Berlin, além de financiar uma grande rede de espionagem mantida por alemães e que utilizava brasileiros aliciados. Se o incêndio foi realmente uma sabotagem isso não ficou provado, mas as suspeitas das autoridades brasileiras em relação a Hermann Stoltz eram muito fortes, sendo episódio noticiado em todo país [22].

Mara que mostra as áreas topografadas pelo Destacamento Especial do Nordeste.

Naqueles anos o trabalho do Destacamento Especial do Nordeste contou com o apoio da recém criada Força Aérea Brasileira (FAB), que forneceu aeronaves que realizarem milhares de fotografias aéreas. Estas eram produzidas com as aeronaves percorrendo faixas específicas do terreno, na altitude de 3.500 metros, com um recobrimento longitudinal respectivamente de 66 e 30 por cento e cobrindo uma área de 40.000 quilômetros quadrados [23].

Poly Coelho e o Presidente Getúlio Vargas.

Em relação a presença de membros do Destacamento Especial do Nordeste o Rio Grande do Norte, apenas descobri que no final de março de 1942 chegou no município de Goianinha o Capitão João de Mello Moraes e sua equipe, sendo esse militar apontado como o responsável pelo levantamento geográfico no Rio Grande do Norte [24].

Mesmo sabendo a importância do trabalho do Destacamento Especial, para mim não foi nenhuma surpresa o fato de encontrar poucas referências sobre as atividades desse grupo de militares pelo Nordeste do Brasil. Enfim, o país estava em guerra e nesses momentos de extrema tensão o foco principal dos órgãos de imprensa se voltaram para as unidades de combate e seus feitos, sobrando muito pouco espaço para comentar algo sobre a realização das unidades técnicas e de apoio. Talvez por isso não encontrei referências sobre a colocação do marco da Serra Azul e da atuação do Destacamento Especial do Nordeste na região de Riachuelo.

Depois da Guerra

O General Poly Coelho apresentando trabalhos do Serviço Geográfico do Exército ao Presidente Gaspar Dutra.

Com o fim da guerra o agora General Poly Coelho passou a dirigir o Serviço Geográfico do Exército, onde ficou no cargo de 1946 até 1951.

Durante sua gestão, mais precisamente em 1947, foi criada uma comissão de estudos para determinar a melhor localização de uma nova capital brasileira a ser implantada no interior do país. A ideia do Rio de Janeiro deixar de ser a Capital Federal visou promover de maneira clara a ocupação de uma vasta região despovoada e praticamente sem desenvolvimento no Brasil e evitar possíveis ações futuras de nações estrangeiras pelo nosso rico território.

Apresentação dos trabalhos em 1953.

Essa comissão foi presidida por Poly Coelho e ao final do seu trabalho esse grupo ratificou as análises e o relatório final da pesquisa liderada pelo belga Louis Ferdinand Cruls, que em 1892 comandou duas expedições exploradoras no Planalto Central do Brasil, cujo objetivo foi descobrir um local adequado para abrigar uma nova capital do país, sendo esse trabalho o marco gerador da definitiva questão da mudança da capital.

Resultados apresentados as autoridades.

A frente do Serviço Geográfico do Exército o General Poly Coelho criou o Quadro de Topógrafos do Serviço Geográfico do Exército e o Curso de Topografia para Oficiais das Armas na Escola Técnica do Exército, hoje Instituto Militar de Engenharia – IME. 

O General Djalma Poly Coelho faleceu no Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1954.

O General Poly Coelho hasteando o pavilhão nacional na Fortaleza da Conceição.

NOTAS…………………………………………………………………………………………….


[1] O escritor e jornalista potiguar Luiz Gonzaga Cortez Gomes de Melo, morreu aos 70 anos, na madrugada de segunda-feira, 19/08/2019, em Natal. Trabalhou no Diário de Natal e na Tribuna do Norte, onde foi editor de Polícia na década de 1980. Atuou também como diretor de redação do semanário “Dois Pontos” e venceu dois prêmios em 1988, ao escrever sobre o Integralismo no Rio Grande do Norte e o Movimento Estudantil no Estado.

[2] A antiga Escola Polythecnica é a atual Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fundada em 1792, é a sétima escola de engenharia mais antiga do mundo e a mais antiga das Américas, assim sendo, a primeira instituição de ensino superior do Brasil.

[3] O Observatório Nacional é uma instituição científica localizada na cidade do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro, no Brasil. O Observatório foi criado em 1827, sendo uma das instituições científicas mais antigas do país. A sua finalidade inicial foi a de orientar os estudos geográficos do território brasileiro e o ensino da navegação, por isso sua relação estreita com o exército na criação do “serviço geographico”.

[4] Ver Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, segunda-feira, 2 de junho de 1890, p. 1.

[5] Ver Diário da Tarde, Curitiba, sábado, 31 de maio de 1980, p. 4.

[6] Ver Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, Ministro de Estado da Guerra, em junho de 1908, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, págs. 34 a 45, 1908.

[7] A fortaleza de Nossa Senhora da Conceição foi erguida sobre os alicerces da antiga Bateria do Morro da Conceição, construída em 1711 pelo corsário francês René Duguay-Troin. Sobre a história dessa fortaleza, ver https://www.ipatrimonio.org/rio-de-janeiro-fortaleza-da-conceicao/#!/map=38329&loc=-22.899628000000018,-43.182856,17

[8] Ver Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, sexta-feira, 2 de agosto de 1917, p. 3.

[9] Sobre essa missão militar austríaca no Brasil ver SILVA, Eliane Alves da. 90 Anos da Missão Cartográfica Imperial Militar Austríaca no Exército Brasileiro – Relato Histórico da Fotogrametria (1920-2010). 1º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica. Parati, 10 a 13 de maio de 2011. Ver também O Jornal, Rio de Janeiro, sexta-feira, 25 de fevereiro de 1944, pág. 4.

[10] Ver Última Hora, Rio de Janeiro, terça-feira, 9 de dezembro de 1958, pág. 14. Sobre o Palácio da Conceição vale comentar que o primeiro prelado que nele residiu foi o terceiro bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de São Jerônimo, que chegou ao Rio de Janeiro no ano de 1702. Quando de sua morte, em 1721, com fama de Santo, teve o seu corpo sepultado no interior da Capela do Palácio. Mais sobre o local ver https://www.ipatrimonio.org/rio-de-janeiro-palacio-episcopal/#!/map=38329&loc=-22.89964011290089,-43.18269073963165,17 

[11] Ver A Noite, Rio de Janeiro, quarta-feira, 6 de setembro de 1933, pág. 3.

[12] Sobre essa aeronave ver C. Pereira Netto, Francisco. Aviação Militar Brasileira 1916-1984. Editora Revista de Aeronáutica, 1984, pág. 126.

[13] Ver A Nação, Rio de Janeiro, quarta-feira, 27 de setembro de 1933, pág. 3.

[14] Ver Diário de Pernambuco, Recife, quinta-feira, 9 de novembro de 1933, pág. 1.

[15] Ver O Paiz, Rio de Janeiro, quinta-feira, 26 de julho de 1934, p. 4.

[16] A Constituição de 1937 é a quarta do Brasil e a terceira da república, de conteúdo pretensamente democrático, foi implantada no mesmo dia em que foi decretado o período ditatorial no Brasil, que ficou conhecido como Estado Novo. Era uma carta política eminentemente outorgada, mantenedora das condições de poder do presidente Getúlio Vargas. A Constituição de 1937, que recebeu o apelido de “Polaca” por ter sido inspirada no modelo semifascista polonês, era extremamente centralizadora e concedia ao governo poderes praticamente ilimitados.

[17] Para conhecer o texto desta Constituição ver https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm

[18] Sobre o “Saliente Nordestino” ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Saliente_nordestino

[19] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, sexta-feira, 23 de março de 1945, págs. 1 e 2.

[20] Ver Diário da Tarde, Curitiba, sábado, 12 de fevereiro de 1944, p. 1.

[21] Sobre uma biografia mais elaborada do General Poly Coelho ver https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/galeria-de-presidentes/20959-djalma-polli-coelho.html Ver também o jornal Diário da Tarde, Curitiba, sábado, 12 de fevereiro de 1944, págs. 1 e 2.

[22] Ver os jornais O Radical, Rio de Janeiro, quarta-feira, 14 de janeiro de 19425, pág. 6 e O Estado, Florianópolis, quinta-feira, 22 de janeiro de 1942, pág. 3.

[23] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, sexta-feira, 23 de março de 1945, págs. 1 e 2.

[24] Ver A Noite, Rio de Janeiro, terça-feira, 31 de março de 1942, pág. 5.

EXCLUSIVO – QUEM FOI O BRASILEIRO QUE MORREU NO “DIA D” PILOTANDO UM CAÇA MUSTANG?  

Filho de Pai Inglês e de Mãe Pernambucana – Nasceu e Viveu em Recife até o Começo da Segunda Guerra – De Sargento da RAF, ele Chegou a Oficial de Voo de Um P-51 Mustang – Participou do Dia D, Foi Abatido Por Fogo Amigo e Morreu na Praia de Sword – Anos Depois o seu Irmão era Oficial da FAB e Morreu no Acidente de uma B-17 em Recife.

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Em Recife existe o tradicional bairro de Santo Amaro, um lugar com muita história, onde na primeira metade do século XVII existiram salinas e uma casa grande que pertenceu ao major Luís do Rego Barros. Na época das invasões holandesas esse setor foi um importante ponto estratégico para os estrangeiros e para a resistência dos pernambucanos, que fustigavam os invasores com ações de guerrilha.

Com a derrocada holandesa em 1654 essa parte do Recife, então um dos extremos da cidade, foi sendo ocupada lenta e gradativamente. Era tão desabitado e longe que em 1814 foi ali construído o Cemitério dos Ingleses. Como a presença desses estrangeiros cresciam em número na capital pernambucana, mas quando faleciam não podiam ser enterrados no interior das igrejas por não serem católicos, o jeito foi pedir ao Presidente da Província um terreno exclusivo para isso. Seguindo essa tendência, no governo de Francisco do Rego Barros, o Conde da Boa Vista, foi inaugurado em 1851 o Cemitério de Santo Amaro.

Igreja de Santo Amaro das Salina, de 1681, um dos marcos mais antigos do bairro de Santo Amaro, em Recife – Fonte – Google Street View.

A região crescia com seus cemitérios, muitas áreas abertas e casas de famílias tradicionais. Na década de 1910 morava na Rua do Capitão Lima, ou Rua do Lima, número 244[1], o comendador José Abílio de Barros. De família tradicional da região de Palmares, sul do estado. Abílio era filho de Manoel d’Albuquerque Barros Cavalcanti (que faleceu em 15-07-1888) e de Ursulina de Castro Barreto Barros (falecimento em 15-05-1903).

Abílio era um respeitado comerciante de açúcar em Recife, com ponto comercial na prestigiada Rua do Apolo, 69[2], mas faleceu aos 52 anos, no ano de 1902[3]. Sua esposa, Belmira Duarte Barros, era nascida na mesma região de Palmares e com a viuvez ficou cuidando de treze filhos, sendo sete mulheres[4].

Mulher de fibra e coragem, Dona Belmira organizou a vida de sua família, cuidou rigidamente da educação dos filhos, formou os estudiosos, botou para trabalhar os menos letrados e foi casando as filhas com “gente de posição”. Apesar de tudo nessa mulher apontar para uma pessoa rígida, típica de uma época de valores duros e bem definidos socialmente, Dona Belmira concedia a suas filhas uma certa liberdade para o desenvolvimento intelectual e cultural.

Cândida Duarte Barros foi uma das redatoras do jornal feminino O Lyrio, uma revista literária exclusivamente feminina, organizada em 1902, que defendia a educação das mulheres, a igualdade de direitos e circulou por três anos[5]. Sua irmã mais nova Corina Duarte Barros, também conhecida como Cora, possuía uma boa voz e participava de corais em Recife. Em 6 de setembro de 1912 ela fez parte de uma apresentação no respeitado Teatro Santa Isabel, na obra A Ressureição de Cristo. O espetáculo foi em honra da Independência do Brasil e contou com a presença do general Dantas Barreto, governador do estado[6].

Outra situação diferenciada em relação às filhas de Dona Belmira, foi que essa matrona não tinha problemas em que elas casassem com estrangeiros, tendo três delas se unido a ingleses que moravam em Recife.

Maria Amélia Duarte Barros casou com Archibald Otto Charles Fell, engenheiro da empresa Western Telegraphic Company, falecido em 1911 no Rio[7]. Já a beletrista Cândida Duarte Barros foi casada com James Chalmers, engenheiro da Estrada de Ferro Leopoldina e falecido no Rio de Janeiro em novembro de 1943[8]. Finalmente havia a cantora Corina Duarte Barros, que se uniu a Harold Ernest Barnard.

Documentação de Harold Ernest Barnard.

Harold desembarcou em Recife no dia 18 de julho de 1913, para trabalhar como contador na agência recifense do Bank of London and South America Limited, um banco britânico que operou na América do Sul entre 1923 e 1971. Ele tinha nessa época 24 anos de idade, havia nascido em 18 de julho de 1889, na cidade de Leyton, a leste de Londres, sendo filho de Ebenezer Alfred Barnard e de Sarah Phoebe Fisher Barnard. Em setembro de 1916 encontramos a notícia de que Harold Barnard e Corina Duarte Barros haviam proclamado que em breve casariam[9].

Segundo os documentos que consegui sobre a família de Harold Barnard e Corina, temos a informação que ele foi transferido para a agência do Bank of London em Maceió, Alagoas, onde morou na Avenida Tomás Espínola, 128, no bairro do Farol, e continuou nesse cargo durante anos.

Documentação original de Harold Barnard, grande fonte de informações.

O casal teve quatro filhos – Stanley Harry Barnard (nascido em 1921, ou 1922), Percy Alan Barnard (10/09/1918), Gladys Mary Barnard (25/07/1923) e Iris May Barnard (15/11/1927). Não sei se Harold, sua esposa e filhos passaram a morar juntos em Maceió, mas tudo indica que pelo menos o primogênito Stanley continuou em Recife, com uma forte ligação com a Rua do Lima, o bairro de Santo Amaro e talvez morando com a sua avó, que faleceu em 1936 e cujo cortejo fúnebre saiu de sua casa[10]. Percebi na minha pesquisa que a relação desse jovem com a família materna era tão forte que na época de sua morte os jornais recifenses dão seu nome como sendo “Stanley Barros Barnard”[11].

Não encontrei indicações que o jovem Stanley tenha ido estudar, ou morou algum tempo na Inglaterra. É provável que com a presença do pai e de dois tios ingleses por perto, esse jovem teve uma relação muito forte com a cultura anglo-saxônica, enquanto convivia intensamente com a família de sua mãe e absolvia muito da cultura pernambucana.

Podemos dizer que o jovem Stanley Barnard era uma positiva mistura de gim tônica e bolo de rolo!

Lutando em um Mustang da RAF

Eu não descobri quando o recifense da Rua do Lima seguiu para a terra de Sua Majestade, mas temos a informação que entre a primavera e o verão de 1941, ele se alistou na Royal Air Force, a famosa RAF, ou Força Aérea Britânica. Tinha apenas 19 anos.[12]

Na foto vemos um posto de observação do Royal Observer Corps (ROC) durante a Batalha da Inglaterra, na Segunda Guerra Mundial. Na foto vemos a direita, usando um telefone de peito, P.C. “Lofty” Austin, um ex-representante comercial e ex-jogador de futebol do Tottenham Hotspur, que relata aos seus superiores as informações coletadas por seu colega C.E. “Smudge” Smith, que trabalha em um instrumento de plotagem em Kings Langley, Hertfordshire, Inglaterra – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Dowding_system#/media/File:The_Royal_Observer_Corps,_1939-1945._CH8215.jpg

É provável que a entrada de Stanley na arma aérea da Grã-Bretanha tenha muito haver com a enxurrada de notícias que foram veiculadas em todo mundo, igualmente nos principais jornais recifenses, sobre o desenrolar da mítica Batalha da Inglaterra.

Essa importante série de combates aéreos entre as forças aéreas da Grã-Bretanha e da Alemanha, pôs fim às retumbantes vitórias relâmpagos dos nazistas na Europa e marcou uma fase decisiva no curso da Segunda Guerra Mundial. A Luftwaffe, a força aérea alemã, apoiada pela arma aérea da Itália, realizou uma intensa campanha para destruir a RAF com muitos bombardeios para acabar com a produção de aeronaves britânicas, acabar com a infraestrutura dos aeroportos e ataques a várias cidades, entre elas Coventry e Londres, para assim permitir que o exército alemão invadisse a Grã-Bretanha. Outro objetivo desses ataques foi o de aterrorizar a população britânica e pressionar seu governo a fazer a paz com a Alemanha de Hitler. Mas os britânicos não se dobraram e a RAF foi a ponta de lança dessa resistência.

Barnard ascendeu ao posto de sargento, tinha o número 1387812 e continuava seu caminho dentro da RAF para tornar-se oficial de voo. Enquanto ele aprendia muitas tarefas para participar da guerra, na base da RAF de Snailwell, perto da cidade de Cambridge, leste da Inglaterra, no dia 15 de junho de 1942 foi criado o Esquadrão 168, uma unidade aérea que se tornou operacional para missões de reconhecimento e ações de combate no território inimigo.

Símbolo do Esquadrão 168.

Não demorou e esse grupo estava realizando ataques contra navios e alvos costeiros, mas principalmente trabalhando em estreita cooperação com o Exército Britânico. Os pilotos desta unidade vieram dos países da Comunidade Britânica, de países ocupados pelos nazistas e, porque não, um descendente de ingleses nascido no Nordeste do Brasil.

Mustang da RAF sobre a França ocupada.

Em 20 de fevereiro de 1943 o pernambucano Stanley Barnard foi promovido a oficial aviador, tendo sido designado para o Esquadrão 168, que nessa época atuava na base de Odiham, em Hampshire, sudeste da Inglaterra[13]. Ali a unidade utilizou aeronaves de caça Mustang Mk. Ia, uma variação do famoso avião de combate americano P-51 Mustang, projetado pela North American Aviation e vários foram entregues aos britânicos por um sistema de empréstimos financeiros. A base de Odiham era dividida com o Esquadrão 268, também de reconhecimento.

O Mustang Mk. Ia era uma aeronave excepcional[14]. Possuía um motor Allison V 1710-87, com 1.250 HP de potência, com 12 cilindros em V, proporcionando um excelente desempenho que podia levar essa versátil aeronave a uma velocidade máxima de quase 600 quilômetros por hora. E a alta velocidade era importante para as missões de reconhecimento estratégico, principalmente no quesito de sobrevivência dos pilotos[15].

Câmeras oblíquas K24.

Os Mustangs de reconhecimento da RAF eram equipados com uma ou duas modernas câmeras oblíquas K24, montadas no encosto de cabeça do piloto e que tinha uma ótima capacidade de fotografar alvos estratégicos. As missões de reconhecimento fotográfico de baixo nível e de curto alcance eram chamadas de “Popular”. Já as câmeras eram controladas pelo piloto e sua operação era automática.

Rasante de um Mustang de reconhecimento da RAF.

As aeronaves de reconhecimento da RAF voaram centenas de perigosas missões, muitas delas em nível ultra baixo, para garantir que as defesas alemãs e o interior da Normandia não tivessem segredos. Qualquer coisa de importância que eles viram em suas missões, como a localização e detalhes de tanques, artilharia, sítios antiaéreos, estacionamentos de veículos, concentração de tropas e quaisquer novas construções eram fotografados e registrados em documentos escritos.

No destaque vemos dois, dos quatro potentes canhões Hispano Suiza de 20 milímetros de um Mustang do Esquadrão 168 da RAF.

Além disso, essas aeronaves estavam equipadas com uma câmera acoplada às suas armas, no caso quatro potentes canhões Hispano Suiza de 20 milímetros, dois em cada asa. Após suas missões de reconhecimento fotográfico, os Mustangs da RAF podiam aproveitar e disparar contra alvos de oportunidade, tais como locomotivas, barcaças, veículos militares de transporte motorizado e aeronaves inimigas no solo. Em 1944 esses esquadrões se tornaram especialistas neste tipo de operações[16].

Missões Difíceis

Essas missões de reconhecimento eram extremamente perigosas e seus esquadrões possuíam um alto índice de baixas.

Mustang do Esquadrão 168 sobre o Canal da Mancha.

Sabemos que pouco menos de um mês antes da chegada de Stanley Barnard, o Esquadrão 168 sofreu duas baixas em um único dia. Às uma e cinco da tarde de 23 de janeiro de 1943 dois Mustangs decolaram de Odiham para sortidas na região de Pas de Calais, na França. As aeronaves eram pilotadas pelo australiano Bernard Wilson Kearny e o neozelandês Ian G. Grant e foram derrubados por artilharia antiaérea na área de St. Etienne-au-Mont, às margens do Canal da Mancha. Uma testemunha informou que no começo da tarde as duas aeronaves voavam a baixa altitude e foram derrubadas, com o piloto australiano sendo mortalmente ferido e Grant sobrevivendo, mas sendo aprisionado e mantido até o final da guerra no campo Stalag Luft III, na Polônia[17].

Em julho de 1943 o Esquadrão 168 começou a fazer parte da 2ª Força Aérea Tática (2nd Tactical Air Force), a contribuição da RAF para a frota aérea maciça que estava sendo preparada para os desembarques do Dia D[18].

As missões foram se sucedendo, bem como as perdas.

Imagem de um FW-190 do mesmo esquadrão que abateu o oficial Bainard em 25 de julho de 1943.

As cinco da tarde do dia 25 de julho de 1943 os oficiais A. J. F. Young e William A. Bainard decolaram com seus Mustangs para a região de Ouistreham, na Normandia. Quando começavam uma corrida para fotografar seus alvos, surgiram dois caças alemães Focke-Wulf FW-190 A5, do III/JG 2 (III Staffeln / Jagdgeschwader 2), que atacaram os Mustangs. Estes buscaram fugir em direção ao Canal da Mancha, mas a 12 milhas a noroeste de La Havre e a cerca de 450 metros de altitude, o oberleutnant Jakob Schmidt acertou o motor do Mustang de Brenard. O caça inglês caiu no mar, mas o piloto sobreviveu e foi salvo por um hidroavião no outro dia. O oficial Young conseguiu retornar para a base do Esquadrão 168 na Inglaterra[19]

Mustang Mk I da RAF, com as listras utilizadas para visualização no Dia D.

Após o incidente envolvendo os oficiais Young e Bainard e durante praticamente todo um ano, as aeronaves de reconhecimento Mustang do Esquadrão 168 continuaram suas missões em preparação ao Dia D. Durante esse período, oito aeronaves e sete pilotos do esquadrão foram perdidos em operações de combates. Outros mais morreriam no futuro.

Não sabemos maiores detalhes das missões, escala de voos, ou possíveis combates que o pernambucano Stanley Henry Barnard tenha participado durante sua permanência de um ano e quatro meses no Esquadrão 168. Mas sabemos que ele estava lá e era um piloto de combate!

Mustang do Esquadrão 168.

Os pilotos de reconhecimento da RAF não sabiam a data exata do Dia D, mas percebiam que se aproximava o momento conforme aumentavam exponencialmente o número de voos de reconhecimento, através dos pedidos feitos pelos comandantes do Exército e da Marinha.

Um outro indício que a hora estava chegando foi quando as asas dos Mustangs foram pintadas com largas listras preto e branco. Era uma tentativa para que os nervosos atiradores antiaéreos Aliados não os confundissem com aeronaves inimigas. A maioria dos aviões que participaram do Dia D receberam essas marcações.

Foto colorida de Mustangs da RAF.

O Dia D

Baseado em escritos deixados por outros aviadores dos esquadrões de reconhecimento da RAF, provavelmente no começo da noite de 5 de junho de 1944 todos os pilotos do Esquadrão 168 foram chamados para uma reunião, ou “briefing”, com a presença do S/L (Squadron Leader) Percy Walter Mason, então comandante geral do esquadrão[20].

S/L (Squadron Leader) Percy Walter Mason, comandante geral do Esquadrão 168.

Mason informou aos pilotos que a invasão começaria à meia-noite, com as primeiras ondas de forças aerotransportadas passando sobre suas cabeças e que a invasão marítima desembarcaria nas praias francesas nas primeiras luzes da manhã seguinte. Provavelmente Stanley Barnard e todo o pessoal ficou confinado na base, em meio a uma noite atípica, com o constante ronco dos motores dos aviões de transporte sobre suas cabeças, que levavam milhares de paraquedistas e seguiam a caminho da França.

Paraquedistas americanos prontos para combater no Dia D.

Talvez o pernambucano nem tenha pregado o olho em meio a tanta tensão da espera. E se dormiu foi por pouco tempo, pois o café da manhã começou a ser servido às três e meia, onde depois foram detalhadas novas informações das missões e as áreas a serem fotografadas, ou onde as aeronaves deveriam se posicionar para apoiar os disparos dos grandes canhões navais. No Esquadrão 268 os pilotos decolaram de sua base em Gatwick antes das cinco da manhã. No Esquadrão 168 não deve ter sido muito diferente e uma das primeiras aeronaves a decolar foi o Mustang com o código AM225, pilotado por Stanley Barnard.

Não demorou muito para o pernambucano sobrevoar o Canal da Mancha naquele memorável 6 de junho de 1944, uma terça-feira. Ele visualizava um dos maiores eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, com milhares de barcos atravessando as águas frias do canal e outros milhares de aviões roncando em direção à França.

Desembarque em Sword Beach, fotografado por aviões de reconhecimento da RAF.

Inicialmente alguns Mustangs do Esquadrão 168[21] e de outros grupos foram encarregados de conduzir reconhecimento tático sobre a chamada Sword Beach, ou Praia da Espada, trazendo de volta algumas das primeiras e melhores imagens da invasão. Outras aeronaves de reconhecimento foram designadas para o apoio visual aos tiros navais realizados pela frota britânica, que bombardearam alvos alemães e facilitaram o trabalho das forças de desembarque.

Mapa com a disposição, direção de tiro, localização dos alvos e nome das naves britânicas que atacaram Sword Beach em 6 de junho de 1944.

Abaixo do Mustang de Stanley Bernard, flutuando nas águas frias do canal, estavam os navios britânicos da “Force S”. Pontualmente às cinco da manhã de 6 de junho, o veterano encouraçado Warspite, que participou da Primeira Guerra, foi o primeiro navio deste grupo a disparar seus poderosos canhões de 380 mm contra a costa francesa. O alvo foi a bateria alemã em Villerville, para apoiar os desembarques da 3ª Divisão britânica em Sword Beach. Outro veterano da Primeira Guerra que estava lá foi o encouraçado Ramillies, que mirou na bateria alemã em Benerville-sur-Mer[22]. Além desses faziam parte da “Force S” os cruzadores Mauritius, Arethusa, Frobisher, Dragon, Danae e Scylla, o monitor Roberts e o navio cargueiro Largs, que servia como comando daquela força naval. Além dessas naves, estavam nesse setor treze destróieres.

Veterano encouraçado Warspite, que combateu na Primeira Guerra, disparando seus poderosos canhões de 380 mm contra a bateria alemã de Villerville.

Certamente foi inigualável o “espetáculo” visto do alto por Stanley Barnard no cockpit do seu Mustang. Poderosos disparos dos navios de guerra contra a costa, o revide das baterias alemãs, o avanço das naves de desembarque e a chegada dos soldados nas praias. O problema foi que o local onde ele e seu avião se encontravam começou a se tornar perigoso.

Apesar das listras pretas e brancas pintadas nas aeronaves, existem relatos que a maioria dos pilotos dos Mustangs experimentou intenso, preciso e pesado disparos de artilharia antiaérea sobre a área de invasão, grande parte dela vinda dos navios britânicos abaixo deles. Logo começaram as perdas.

O oficial Eric Woodward, piloto do Mustang FD495, do Esquadrão 268, não retornou de uma missão de observação de tiros navais sobre a área de invasão e pode ter sido uma vítima do fogo antiaéreo naval dos Aliados.

Outro que infelizmente teve o mesmo destino foi Stanley Barnard.

Esquecimento em Lion-Sur-Mer

Em algum momento por volta das seis da manhã o seu Mustang AM225 foi atingido pelos nervosos artilheiros antiaéreos de algumas das naves inglesas. Consta que ele voava sobre a área de Ouistreharn, quase no final de Sword Beach.

Não existem detalhes de quem o atingiu e do que houve com o pernambucano Barnard. Mas existe a informação que sua aeronave se estatelou na área da comuna litorânea de Lion-Sur-Mer. Pode parecer estranho essa falta de informações, mas quando sabemos o que ocorreu naquele setor de Sword, é possível compreender a razão dessa carência de dados.

Vista atual de Lion-Sur-Mer.

Naquele 6 de junho, a comuna de Lion-Sur-Mer foi atacada por elementos do 41º Comando Real dos Fuzileiros Navais (No.41 Royal Marine Command), composto por 450 homens, liderados pelo tenente-coronel Thomas Malcolm Gray. Os Fuzileiros Navais sofreram pesadas baixas na praia, pois os soldados alemães do Widerstandnest 21, ou Ninho de Resistência 21, só entregaram sua posição depois de uma sangrenta luta. Consta que os britânicos perderam mais de 140 homens naquele dia.

Se no Dia D pouca gente se ligou com a destruição de um Mustang de reconhecimento que caiu na área de Lion-Sur-Mer, nos dias seguintes ao desembarque foi que ninguém se importou mesmo, pois logo o avanço britânico em Lion-sur-Mer foi bloqueado por elementos da 21ª Divisão Panzer, cujos efetivos chegaram à costa por volta das sete da noite. Na manhã seguinte, quarta-feira, 7 de junho, aviões alemães bombardearam o posto de comando do 41º Comando Real dos Fuzileiros Navais, ferindo o comandante Grey. No meio da tarde os Fuzileiros Navais finalmente alcançaram seu objetivo e se juntaram a outras forças britânicas[23].

Tropas britânicas em Sword Beach.

Para aumentar o esquecimento sobre o que aconteceu ao pernambucano e seu Mustang, a catorze quilômetros da praia de Sword fica a cidade francesa de Caen, que na época tinha uns 40.000 habitantes. O plano original era que os britânicos deveriam conquistar essa cidade no mesmo dia dos desembarques, mas só faltaram combinar isso com os alemães, pois estes resistiram assustadoramente e Caen só se rendeu um mês depois. A coisa toda foi tão complicada, que essa cidade foi praticamente destruída pelos bombardeios aéreos Aliados e sofreu danos igualmente extensos devido aos combates terrestres. Houve milhares de mortos entre a população civil francesa e após a batalha pouco restou da cidade original, tanto que a sua reconstrução só foi completada em 1962.

Os restos do pernambucano Stanley Harry Barnard e do seu Mustang ficaram enterrados nas areias de Lion-Sur-Mer e foram esquecidos. Certamente se esse avião e o que sobrou do seu piloto tivessem sido encontrados, os franceses daquela região há muito tempo teriam construído algum tipo de monumento em sua homenagem, pois esses marcos de memória relativos ao Dia D existem ali em grande quantidade[24].

Barnard é homenageado no painel número 204, no Runnymed Air Forces Memorial, em Englefield Green, perto de Egham, oeste de Londres. Ali estão os nomes de 20.456 membros das forças de aviação da Grã-Bretanha mortos na Segunda Guerra[25].

A notícia da morte de Stanley Barnard chegou aos seus familiares no Recife através do Foreign Office, ou Ministério das Relações Exteriores da Grã-Bretanha. Houve algumas publicações em jornais recifenses e cariocas sobre sua morte e só.

Mas logo outro membro do clã Barnard estava envergando o uniforme de uma outra força aérea.

Percy Barnard, Tenente da FAB

Não sabemos nem quando e como Percy Alan Barnard, irmão de Stanley, entrou na Força Aérea Brasileira, mas em setembro de 1945 ele possuía a patente de segundo tenente e foi classificado por necessidade do serviço para cursar a Escola de Especialistas da Aeronáutica, que nessa época funcionava no Galeão, Rio de Janeiro[26]. Três anos depois ele foi promovido a primeiro tenente[27] e a formatura da sua turma aconteceu em dezembro daquele mesmo ano[28].

O oficial da FAB Percy Alan Barnard.

Em 1951 encontrei a notícia que o primeiro tenente Percy Barnard estava lotado na Base Aérea de Fortaleza e havia sido transferido para o Centro de Treinamento de Quadrimotores, mais conhecido como CTQ, uma unidade criada pelo Ministro Armando Trompowsky em 24 de janeiro daquele ano, através da Portaria 39-G-2, destinada a treinar os membros da FAB para utilização dos famosos Boeing B-17 Flying Fortress, ou Fortaleza Voadora. Estas aeronaves ficaram lotadas no Recife, sede da 2ª Força Aérea, mais especificamente no Campo do Ibura, onde funcionou inicialmente o CTQ, que no futuro se transformaria no 6º Grupo de Aviação (6º GAV) [29].

SB-17G de busca e salvamento. Reparem que este avião transportava um pequeno barco que podia ser lançado ao mar no socorro aos náufragos.

Mas afinal, como o Brasil utilizava os míticos quadrimotores B-17 na década de 1950?

Com o final da Segunda Guerra a grande maioria dessas aeronaves foram desativadas e muitas se transformaram em sucatas. Outras foram convertidas para uso em reconhecimento aéreo, transporte de carga e busca e salvamento (SAR – Search and Rescue).

Segundo o site http://darozhistoriamilitar.blogspot.com.br/2009/11/missao-pernambuco-b-17-fortaleza.html , as B-17 destinadas a FAB foram utilizadas para o serviço de busca e salvamento, adaptadas a partir de aeronaves originalmente construídas do modelo G, com suas denominações alteradas nos Estados Unidos para SB-17G[30].

O primeiro tenente Percy Barnard seguia nas suas funções no CTQ, quando no dia 23 de julho de 1952, uma quarta-feira, ele se apresentou para um voo de treinamento a bordo do B-17 matrícula 5579. Um avião recém chegado dos Estados Unidos, que ainda possuía marcações da USAF (United States Air Force).

Pilotando a máquina estava o major Maurício José de Assis Jatahy, comandante do CTQ, tendo como seu copiloto o capitão Francisco Eduardo Muller Botelho. A bordo estavam os primeiros tenentes Santos Flávio de Sião, Gil Saint Yves e Sérvola. Acompanhavam os oficiais o primeiro sargento Amadeu Luiz Avighi, os segundos sargentos Dilson Lopes Guimarães e Jair Coimbra, além do soldado Francisco Bezerra. Consta que o tenente Percy Barnard estava a bordo do quadrimotor para servir de tradutor junto ao capitão Robert Earl Metzer, da USAF, oficial aviador norte-americano que trabalhava no treinamento e adaptação dos brasileiros ao B-17.

O treinamento tinha como objetivo o lançamento de alguns tripulantes do quadrimotor de paraquedas, que flutuariam até o mar. Na sequência seria feito o lançamento do bote salva-vidas, que demonstraria de forma prática como aquela aeronave poderia realizar um salvamento marítimo. O exercício seria executado na área entre as praias do Pina e Boa Viagem, à vista de todos que estavam no litoral de Recife. Acompanhava a grande aeronave um monomotor North American T-6 com dois integrantes. O piloto era o primeiro tenente Ailton Lopes de Oliveira, tendo a companhia do terceiro sargento José Inácio dos Santos, que fotografava toda a operação. 

Pedaço da asa do B-17, ainda com marcação da USAF.

Entre dez e meia e onze da manhã as aeronaves se posicionaram. Primeiramente saltaram da B-17 o tenente Sérvola e o soldado Francisco Bezerra, que abriram seus paraquedas sem alterações e chegaram tranquilos na água. Na sequência o bote salva-vidas foi lançado, mas bateu na asa do T-6, que estava muito perto do quadrimotor. O pequeno avião perdeu a estabilidade e foi para cima do B-17. Com o choque o T-6 perdeu suas asas e foi direto para a água. Foi visto que um dos seus tripulantes se atirou no mar sem paraquedas, mas nenhum deles se salvou.

Já na B-17 o major Maurício José de Assis Jatahy tentou durante dois ou três minutos manter o controle do avião. Consta que ele sobrevoou um trecho da praia do Pina cheio de casebres e conhecido como “Areal”. Após passar rasante por esse local ele levou o B-17 por cerca de 400 metros mar adentro, quando perdeu o aileron e fez uma curva acentuada para a direita, chocando-se violentamente com a água e afundando. Logo vários pescadores partiram com suas jangadas para tentar ajudar. Foram resgatados com vida o capitão Francisco Eduardo Muller Botelho e o primeiro sargento Amadeu Luiz Avighi. Todos os outros morreram.

Um dos trens de aterrissagem do B-17 acidentado em Recife.

Quem testemunhou todo o drama do ar foi o piloto Rubens Solha, do quadro de instrutores do Aeroclube de Pernambuco, que sobrevoava a região em um monomotor “Fairchild” de treinamento avançado. Solha foi inclusive chamado para testemunhar no inquérito aberto pela FAB para investigar o acidente[31].

Segundo o livro Base Aérea do Recife – Primórdios e envolvimento na 2ª Guerra Mundial, do falecido escritor Fernando Hippólyto da Costa (INCAER, Rio de Janeiro, 1999), informa na página 375 que a causa do acidente foi uma imprudência do primeiro tenente Ailton Lopes de Oliveira, piloto do T-6, que não manteve a altitude e distância que lhe havia sido ordenado para o exercício.

Percy Barnard era casado com Lêda de Amorim Barnard e sua filha se chamava Lorna May Barnard.

Final

A partir desse ponto da história temos poucas informações sobre o que aconteceu com a família Barnard. Apenas que Harold Barnard faleceu em 1977, mas nessa época ele já era viúvo.

Do pouco que consegui sobre Stanley e Percy Barnard, só posso concluir que ambos adoravam o que faziam.

NOTAS


[1] Nesse endereço atualmente se encontra a sede da TV e Rádio Jornal do Comércio e do SBT em Recife.

[2] Ver Jornal de Recife, 23 de outubro de 1897, sábado, P. 2.

[3] Sobre o falecimento de José Abílio de Barros ver Diário de Pernambuco, Recife, 28 de novembro de 1902, sexta-feira, P. 2. Sobre um ano do falecimento ver Jornal de Recife, 27 de novembro de 1903, sexta-feira, P. 3.

[4] FILHOS DO CASAL JOSÉ ABÍLIO DE BARROS E BELMIRA DUARTE DE BARROS: 

F.1-         Júlia Duarte de Barros.

F.2-         Theodomiro Duarte de Barros – Industrial em São Paulo e, aparentemente em 1944 é chefe de uma firma chamada Cunha & Companhia, talvez em Recife. A notícia de jornal em 1944 o apresenta como Theodomiro Martins de Barros, mas deve ser um provável erro.

F.3-         Cândida Duarte de Barros – Nome de casada era Cândida Barros Chalmers, esposa do engenheiro James Chalmers, funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina.

F.4-         Afonso Duarte de Barros – Funcionário do Ministério da Justiça.

F.5-         Armando Duarte de Barros – Comerciante em Recife e em 1944 é apresentado como Gerente do Clube Náutico Capibaribe.

F.6-         Oscar Duarte de Barros – Agente Fiscal de Consumo em Recife.

F.7-         Maria Amélia Duarte de Barros – Casada com Archibald Otto Charles Fell, engenheiro em Recife e seu nome de casada era Maria Amélia de Barros Fell.

F.8-         Belmira Duarte de Barros.

F.9-         Adalgisa Duarte de Barros.

F.10-       Alice Duarte de Barros – Viúva em 1936 do Dr. Merval Gomes Veras, advogado em Teresina-PI. Seu nome de casada era Alice de Barros Veras.

F.11-       Josete Duarte de Barros.

F.12-       Corina Duarte de Barros – Comentada no texto.

F.13-       Eugenio Duarte de Barros.

F.14-    Clarice Duarte de Barros – Esposa do advogado Arnaldo Lopes, cujo nome de casada era Clarice de Barros Lopes.

[5] Além de Cândida, se destacaram em O Lyrio, Amélia de Freitas Bevilaqua, Ana Nogueira Batista e Maria Augusta Meira de Vasconcelos Freire. Ver SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, Pág. 54.

[6] Ver Jornal Pequeno, Recife, 6 de setembro de 1911, sexta-feira, P. 1.

[7] Sobre Archibald Fell ver Jornal Pequeno, Recife, 13 de novembro de 1911, segunda-feira, P. 2.

[8] Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1943, sábado, P. 7.

[9] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 28 de novembro de 1902, sexta-feira, P. 2.

[10] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 05 de março de 1936, quinta-feira, P. 4.

[11] Ver Diário de Pernambuco, Recife, 13 de junho de 1944, terça-feira, P. 3.

[12] Sobre a entrada de Stanley H. Barnard na RAF ver http://www.rafcommands.com/forum/showthread.php?13124-F-O-Stanley-Harry-BARNARD-(144187)

[13] Sobre a história dessa base aérea ver https://www.airshowspresent.com/raf-odiham—from-biplanes-to-helicopters.html e https://www.valka.cz/168-perut-RAF-1942-1945-t189682

[14] Ver http://enfernormand.free.fr/mustangp51.htm

[15] Ver http://mustangp51.e-monsite.com/pages/en-operation-in-operation.html

[16] Ver https://erenow.net/ww/mustang-thoroughbred-stallion-of-the-air/8.php

[17] Sobre esse caso ver https://aviationmuseumwa.org.au/afcraaf-roll/kearney-bernard-joseph-405387/

[18] Nesse período a RAF utilizava cinco esquadrões de Mustang Mk 1/1A, três esquadrões de Supermarine Spitfire PR XI e um esquadrão de bimotores De Haviland Mosquito.

[19] Sobre esse combate aéreo ver – 2nd Tactical Air Force, Volume 1, Spartan to Normandy – June 1943 to June 1944. SHORES, C. & CHRIS, T. Ian Allan Printing Ltd, Hersham, Surrey, England, 2004, Pág. 24.

https://www.aircrewremembered.com/KrackerDatabase/?s=200&q=SCHMIDThttp://www.venturapublications.com/news/publish/iiijg2.shtmlhttps://www.wikiwand.com/en/Focke-Wulf_Fw_190_operational_history#Media/File:Fw190A-3_JG2_Gr.Ko.Hahn42_kl96.jpg  Aparentemente os oficiais Brenard e Young conseguiram reagir a Schmidt e seu colega, pois Schmidt foi ferido em um acidente nesse mesmo 25 de julho de 1943, quando capotou seu FW-190 durante uma tentativa de pouso forçado perto de Lisieux. Aparentemente esse Mustang foi o único avião que Schmidt abateu durante a guerra.

[20] Sobre o comandante Mason, ver https://www.iwm.org.uk/collections/item/object/205449398

[21] Após a invasão do Dia D e a morte de Stanley Barnard, o Esquadrão 168 se mudou para a França e realizou missões de reconhecimento tático avançando nesse país e depois na Holanda. Em outubro de 1944, os Mustangs foram substituídos por caças Typhoons e iniciou missões de reconhecimento armadas sobre a própria Alemanha, além de fornecerem escolta aos bombardeios diurnos. O Esquadrão 168 voou em torno de 3.200 missões e até derrubaram quatro aeronaves da Luftwaffe. Mas o esquadrão perdeu dezenove pilotos em combate, dois em circunstâncias de não combate, e três se tornaram prisioneiros ou guerras. Por causa de suas altas perdas, o esquadrão foi dissolvido oficialmente em 26 de fevereiro de 1945, tornando-se a única unidade de caças Typhoon a ser desativada antes do final da guerra.

[22] Ainda naquele dia intenso, três perigosos e ágeis barcos torpedeiros alemães partiram de Le Havre para atacar os navios da “Force S”. Mesmo levando disparos dos navios ingleses, os barcos alemães conseguiram lançar quinze torpedos de longa distância e escapar. Dois torpedos passaram entre os encouraçados Warspite e o Ramillies e depois atingiram o destroier norueguês Svenner, que afundou.

[23] Sobre os combates em Lion-Sur-Mer ver https://www.normandie44lamemoire.com/2014/10/30/lion-sur-mer-2/ ,

[24] Sobre esses monumentos ver https://www.normandie44lamemoire.com/2014/10/30/lion-sur-mer-2/

[25] Sobre esse memorial ver https://www.cwgc.org/visit-us/find-cemeteries-memorials/cemetery-details/109600/runnymede-memorial/ e https://en.wikipedia.org/wiki/Air_Forces_Memorial

[26] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1945, sábado, P. 5.

[27] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1948, sábado, P. 6.

[28] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1949, quarta-feira, P. 9.

[29] Ver Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1951, sábado, P. 11.

[30] No início da década de 1950, a Força Aérea Brasileira precisava formar uma unidade de busca e salvamento marítimo e outras especialidades. Para isso foram adquiridas 13 desses modelos especiais de B-17 e utilizadas entre 1951 e 1968.

[31] Sobre essa tragédia de 1952 ver Diário de Pernambuco, Recife, 24 de julho de 1952, quinta-feira, Ps. 1 e 2.

1944 – A TRAGÉDIA DA B-24 EM FORTALEZA-CE

ACONTECIMENTOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NA CAPITAL CEARENSE

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros 

Ninguém discute a importância de Natal no contexto da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. A existência do intenso tráfego aéreo de aviões de transporte e de bombardeiros aliados, entre a capital potiguar e as bases aéreas na ilha de Ascensão, no meio do Oceano Atlântico, e principalmente nas cidades de Dacar e Acra, na África, foi um fator de grande importância para a vitória aliada neste conflito. Não se pode esquecer que de Natal partiam aeronaves que patrulhavam a costa brasileira e que foram destruídos alguns submarinos.

 Mas não foi apenas Natal que participou desse esforço. Várias outras capitais e cidades brasileiras, mesmo limitadamente, também possuíam bases aéreas e “entraram na guerra”. Fortaleza, capital do estado do Ceará, foi uma delas.

A cidade de Fortaleza em 1937.

As Primeiras Bases Aéreas

Nesta cidade o primeiro campo de pouso foi o do Alto da Balança, que se transformou em um ponto de apoio dos aviões do mítico Correio Aéreo Nacional (CAN). O local era mantido por uma unidade do Exército Brasileiro desde 21 de setembro de 1936 e servia igualmente de apoio às empresas aéreas estrangeiras e brasileiras. Na história do Campo do Alto da Balança, assim como no Campo de Parnamirim em Natal, foi ponto de parada de vários aviadores estrangeiros que realizaram os chamados “raids” aéreos. Um deles foi a famosa aviadora estadunidense Amelia Mary Earhart, que pousou na capital alencarina no dia 4 de junho de 1937.

E os Americanos Chegaram

Segundo Augusto Oliveira e Ivonildo Lavor, autores do livro “A história da aviação no Ceará”, quando os norte-americanos estavam implantando suas bases no Nordeste do Brasil, antes mesmo da declaração de guerra brasileira contra a Alemanha e a Itália, estes decidiram que em Fortaleza a base aérea local seria construída no antigo “Sítio Pecy”, que passou a ser conhecido como Pici Field (Campo do Pici) e sua construção teve início ainda em julho de 1941.

Quando a pista ainda estava em sua fase final de construção, ela foi prematuramente inaugurada quando um bombardeiro B-17 pousou por se encontrar perdida em relação a sua rota original. Segundo os dois autores de “A história da aviação no Ceará”, o sobrevoo deste grande quadrimotor causou certo pânico em Fortaleza.

Ainda segundo Augusto Oliveira e Ivonildo Lavor, com o crescimento do tráfego aéreo para Natal, além do fato da pista do Pici ter sido concluída com um tamanho limitado, fez com que o comando da USAAF na região resolvesse construir uma segunda pista em Fortaleza. O Campo do Pici ficou então sob a responsabilidade da U.S. Navy (Marinha dos Estados Unidos) e ao novo local foi dada a denominação de Adjacent Field (Campo Adjacente), por está próximo ao Campo do Pici.

Armamento sendo transportado para aviões Lockheed PV-1 Ventura da U. S. Navy, em Pici Field.

Com uma denominação esdrúxula como essa, aparentemente pautada na falta de criatividade, os cearenses da capital passaram logo a chamar o lugar de “Base do Cocorote”.

Inaugurado em 10 de dezembro de 1943, Adjacent Field serviu a praticamente um grande propósito; durante cinco meses, até 14 de maio de 1944, com o intuito de desafogar o tráfego aéreo em Parnamirim Field, o local foi o ponto de partida de grandes quadrimotores, a maioria deles pertencentes à 15ª Força Aérea da USAFF, que tinham bases no sul da Itália e seguiam sem escalas diretamente para Dacar.

O destacamento americano que operava a base era conhecido como 1155th AAFBU Army Air Force Base Unit – Fortaleza, que era parte do South Atlantic Division (Divisão do Atlântico Sul), todos subordinados ao ATC – Air Transport Command (Comando de Transporte Aéreo).

Fortaleza antes da Segunda Guerra Mundial. Fonte – Livro “Ah Fortaleza!”, Gilmar Chaves, Patrícia Veloso, Peregrina Capelo, organizadores. Fortaleza: Terra da luz Editora, 2006, pág. 49.

Durante este período a utilização de Adjacent Field foi muito intensa, onde foram realizadas 1.778 travessias. A partir de 15 de maio de 1944 esta base deixou de realizar este tipo de operação, passando a receber apenas aviões de linha ou alguma aeronave que apresentava alguma emergência.

Aproveitando a Terra do Sol

Mas apesar desta aparente utilização limitada, entre 1942 e 1945, sempre havia militares norte-americanos na cidade de Fortaleza. Existia até mesmo uma sede local da USO.

A sede da USO em Fortaleza, o conhecido “Estoril” da Praia de Iracema. Fonte – Livro “Ah Fortaleza!”, Gilmar Chaves, Patrícia Veloso, Peregrina Capelo, organizadores. Fortaleza: Terra da luz Editora, 2006, pág. 62.

A USO (United States Organization) foi fundada em 1941, sendo uma organização privada, criada em resposta a um pedido direto do então presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt. Ele desejava que pessoas e organizações diversas se unissem sob uma única sigla para fornecer serviços recreativos que ajudassem na elevação do moral das tropas americanas nas áreas de conflito durante a Segunda Guerra Mundial. A USO teve uma atuação muito intensa neste período e com enorme sucesso.

Na capital alencarina a sua sede era em uma suntuosa residência à beira-mar da Praia de Iracema. A antiga Praia dos Peixes era então um local ainda pouco utilizado pela população local, onde existiam apenas algumas casas de veraneio. A residência utilizada pelos americanos, um verdadeiro palacete, havia sido construída em 1920 pelo rico coronel pernambucano José Magalhães Porto, que morava na cidade e a denominou inicialmente de “Vila Morena”.

Amigos que tenho em Fortaleza me comentaram que as informações dos seus avós e pais, que viveram aqueles dias da presença norte americana na cidade, era que estes militares estrangeiros achavam a sede da USO um lugar agradável, com uma brisa convidativa, onde dava para tomar um ótimo banho de mar, em uma água deliciosamente quente, sob um sol escaldante. Para depois apreciar uma deliciosa e diferente água de coco.

Militares americanos em momento de descontração.

Além de aproveitarem a natureza praiana, os militares dos Estados Unidos aproveitavam outras coisas boas do Ceará. Eles mantinham relações cordiais com as moças da cidade. Estas eram de famílias tradicionais, normalmente muito bonitas, elegantes, educadas e que não estavam nem aí para as críticas da sociedade local. Logo estas jovens foram apelidadas pejorativamente de “Coca-Cola”. Comenta-se que a denominação depreciativa surgiu por elas terem o privilégio de tomar o famoso refrigerante americano que, na ocasião, somente era visto nas telas do cinema. Provavelmente elas beberam Coca-Cola da fábrica da “The Coca-Cola Company” em Natal.

Um dos vários B-24 que passaram por Fortaleza. Esta é a B24H, nº 41-28750, batizada como “The Thunder Mug”, pertencente a Esquadrilha 789, do 467 Grupo de Bombardeiro, comandada pelo Tenente Charles Kagy, em rota transatlântica pela América do Sul. Ao fundo a torre de controle da base de Adjacento Field Fonte – http://moraisvinna.blogspot.com

Não podemos esquecer que em Natal havia situação semelhante. Os norte-americanos promoviam festas na base de Parnamirim Field, as famosas festas “For All” (Para todos) e faziam questão de ter, com toda fidalguia e respeito, a presença das moças potiguares nos eventos. Devido a distância da base e o centro de Natal, elegantemente os promotores das festas disponibilizam gratuitamente um ônibus para buscar as jovens na cidade. De maneira pra lá de depreciativa, os marmanjos locais passaram a denominar este ônibus como “marmita”, pois transportava “a comida dos americanos”.

Memórias

Apesar deste clima positivo, a passagem de aviões pela região Nordeste do Brasil em direção a África, não era isenta de problemas. Não se pode esquecer que atravessar o Oceano Atlântico era bem mais arriscado do que agora, a aviação ainda não tinha os modernos recursos e se vivia uma guerra.

Em arquivos localizados nos Estados Unidos estão guardados microfilmes com inúmeros relatórios da antiga Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF).

Entre estes documentos estão os denominados MACR, que é uma sigla para Missing Air Crew Report (Informe de Tripulação Aérea Desaparecida), onde era detalhado os acidentes de aeronaves norte-americanas em todas as partes do mundo durante este conflito. Abrangiam casos que iam desde a derrubada de uma aeronave em território inimigo, ou como era mais comum no caso das aeronaves que passavam pelo Brasil, o desaparecimento na selva, ou no mar. Eram preenchidos dois dias depois que uma aeronave não retornava de uma missão.

A mítica B-24.

Existem três informes inéditos de acidentes com aviões B-24, que tem Fortaleza como ponto de partida ou de chegada.

Fabricado pela empresa Consolidated Aircraft, a mítica B-24, conhecida como “Liberator”, era um bombardeiro estratégico, quadrimotor, armado com dez metralhadoras de defesa calibre 12,7 mm, modelo Browning M2. Tinha peso total de 29.500 kg, podia levar quase seis toneladas de bombas de alto poder explosivo, a uma velocidade máxima de 470 km/h, a uma altitude máxima de 8.500 metros, com um alcance de 6.000 quilômetros. Para levar este monstro alado para a luta sua tripulação normalmente era composta de 10 militares. Este foi o modelo de avião mais visto em Fortaleza durante o pico do movimento de aeronaves em direção à África.

Grupo de bombardeiros B-24 antes da decolagem no Pacífico.

Os Problemas Com as B-24 

O primeiro deles ocorreu no dia 22 de janeiro de 1944, quando o B-24 foi registrado com o numeral 42-100307, comandado pelo segundo tenente Henry A. Daum, por volta de uma hora da tarde, em meio a muita chuva, se chocou com uma montanha a “25 miles” (25 milhas) a sudoeste de Fortaleza. Todos os seis ocupantes da aeronave faleceram.

Detalhe do documento informativo da queda B-24 nº 42-100307, comandado pelo segundo tenente Henry A. Daum em choque contra uma montanha no Ceará – Fonte – National Archivies, Washington, D. C. Estados Unidos.

Limitado de informações e pouco detalhista, o relatório da destruição da B-24 do segundo tenente Henry mostra que provavelmente o sinistro ocorreu nas serras existentes entre as cidades de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, facilmente visíveis para quem se desloca de carro pela BR-222, em direção a bela cidade de Sobral.

O segundo sinistro ocorreu na madrugada de 8 de fevereiro de 1944, quando o B-24H, de numeral 41-29293, pertencente à Esquadrilha 758, do 459 Grupo de Bombardeiros, sob o comando do segundo tenente Daniel B. MacMillin, natural da cidade de Stephenville, no estado do Texas, partiu em direção a Dacar, capital do atual Senegal.

Detalhe do relatório sobre o desaparecimento da B-24H, nº 41-29293 – Fonte – National Archivies, Washington, D. C. Estados Unidos.

Naquela época, segundo a documentação, cada avião que decolava de Fortaleza era obrigado a enviar uma mensagem em código, em períodos pré-determinados, para que soubessem que estavam voando e qual era a sua posição. Nas três primeiras horas a mensagem chegou, depois nada mais. O B-24 e seus dez tripulantes desapareceram. Os documentos apontam que durante dez dias foram realizadas missões de busca visual, mas nunca se soube o que ocorreu com esta aeronave, com o tenente Daum e sua tripulação.

Grupo de B-24 sobre o mar. Fonte Arquivo Revisa Life.

Mas o caso melhor documentado foi a queda de um bombardeiro B-24 em Fortaleza.

A Tragédia da B-24 do Tenente Brock 

Por volta da meia noite e cinquenta do dia 28 de fevereiro de 1944, a B-24H, numeral 42-52645, comandado pelo segundo tenente William M. Brock Jr., decolou em direção a Dacar, mas devido a problemas em um dos motores, fez uma volta para aterrissar e caiu.

Parte do relatório do major Ernest E. Dryer, classificado como “SECRETO” – Fonte – National Archivies, Washington, D. C. Estados Unidos.

O oficial de operações de Adjacent Field, major Ernest E. Dryer elaborou um relato sucinto sobre o trágico fato. O major foi chamado pouco depois da uma da manhã, onde foi informado pelo oficial de dia da 1155th AAFBU que havia um incêndio de grandes proporções a sudoeste do Campo Adjacento e que um “native” tinha dito que um avião havia caído.

Para o major o fogo parecia estar muito grande para ser apenas em uma habitação de algum morador local, e que um dos aviões da base (provavelmente um modelo menor) decolou para sobrevoar o local. Mas o incêndio atingiu uma área tão grande, que o oficial de operações e um grupo de homens nem esperaram o retorno deste avião e saíram em viaturas para investigar.

Bombardeiros B-24 da 15th Air Force, atacando a refinaria de Ploesti, na Romênia. O B-24 comandado pelo segundo tenente William M. Brock Jr. não chegou a combater.

Ao chegar ao local do incêndio, o major Dryer verificou que realmente era um avião, modelo B-24, com a numeração 42-52645. No local já se encontravam viaturas e membros do departamento de bombeiros da cidade de Fortaleza para manter o fogo sob controle.

O oficial de operações assumiu o comando e enviou um mensageiro de volta à base para informar ao oficial médico que enviasse ambulâncias, a polícia militar e que fosse iniciado o trabalho de relatar os detalhes do acidente imediatamente. Logo descobriram que todos os dez tripulantes pereceram.

Peças de avião, corpos despedaçados e pertences pessoais foram espalhados por uma distância de 1000 pés (300 metros). O corpo de um dos membros da tripulação estava pendurado em uma árvore. Guardas norte americanos foram colocados guarnecendo os destroços e aguardando até que o oficial médico da base assumisse o trabalho de perícia.

Verificado o número do avião com o registro de partida, foi descoberto que aquele B-24 foi o último a sair da base naquela noite e caiu três minutos após a decolagem.

B-24 em chamas.

O avião estava tão danificado que uma verificação dos controles não foi possível.

Notou-se que a asa direita tinha batido em uma árvore e quebrou. Por esta razão o caminho que o avião fazia rente ao solo tinha mudado aproximadamente 90 graus para a direita. Em seguida bateu no chão, foi se arrastando em linha reta por cerca de 1000 pés e se desintegrou ao longo do caminho.

Finalmente o B-24 atingiu uma árvore, parou em uma vala e explodiu, jogando detritos em uma larga área. Na queda a aeronave destruiu um barraco vazio e um tanque de óleo foi jogado através do telhado de outro casebre, mas ninguém na terra morreu.

Destaque do depoimento da brasileira Laura sobre a queda da B-24.

A documentação traz destacadamente, como principal testemunha, a brasileira Laura Ramos Barreto. Esta é apontada pelos americanos como “Native woman” (Mulher nativa) e informa que morava a cerca de um quilômetro e meio da base, no que hoje é o bairro de Montese.

No seu relato prestado nas dependências da 1155th AAFBU, Laura afirmou que sempre à noite escutava os aviões decolando de Adjacent Field e que nesta ocasião ouviu uma aeronave cujos motores pararam repentinamente sobre sua residência. Ela estranhou e, ao procurar olhar o avião da janela de sua casa, Laura presenciou três explosões no solo, seguidas do forte incêndio.

Um acidente inusitado de uma B-24.

Para o major Ernest E. Dryer, o exame das hélices mostrou que pelo menos três dos motores tinham capacidade operativa, mas que não pôde ser dada uma opinião conclusiva em relação ao quarto, devido à extensão dos danos.

As investigações apontaram que a causa do acidente foi uma falha em um dos motores, certamente o que estava mais destruído, imediatamente após a decolagem. Provavelmente o piloto retraiu os flaps em uma altitude muito baixa, fazendo assim com que o B-24 voasse muito próximo ao solo, batendo em uma árvore, rasgando a asa direita do avião e provocando a explosão.

Os corpos foram enterrados em Fortaleza e transladados pra os Estados Unidos ao final do conflito.

Faziam parte da tripulação da B-24H, numeral 42-52645 os seguintes militares;

Segundo tenente William M. Brock Jr., piloto

Segundo tenente Robert D. Wear, co-piloto

Segundo tenente James H. Beatty, navegador

Segundo tenente William D. Davies, bombardeiro

Sargento Kelley L. Epley, engenheiro de voo

Sargento Homer E. Hill, operador de rádio

Sargento William C. Ship, atirador de metralhadora

Sargento Thomas M. Bassett, atirador de metralhadora

Sargento Leo P. Desjardins, atirador de metralhadora

Sargento Jack Z. Roby, atirador de metralhadora

Segundo tenente Robert D. Wear, co-piloto
Sargento Jack Z. Roby, atirador de metralhadora.

Como a participação das bases aéreas em território brasileiro não se restringiu apenas a Natal, estes relatos mostram que certamente existem muitas histórias para serem contadas.

P.S. – GOSTARIA DE AGRADECER A COLABORAÇÃO DO PESQUISADOR CEARENSE ÂNGELO OSMIRO PELO APOIO NESTE TRABALHO.

UM HERÓI POTIGUAR DA FEB – A HISTÓRIA DO SARGENTO RODOVAL CABRAL DA TRINDADE E O COMBATE DE SAN QUIRICO

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Agradecimento especial ao escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira pela ajuda com informações adicionais para esse texto.

Sabemos que seis potiguares morreram na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, integrando a Força Expedicionária Brasileira, a famosa FEB. Eles eram os soldados Belarmino Ferreira da Silva, José Varela, Manoel Lino de Paiva, Cosme Fontes Lira e os sargentos Wilson Viana Barbosa e Rodoval Cabral da Trindade.

Mas quando buscamos maiores informações sobre cada um desses participantes do conflito, os resultados são bem limitados, com lacunas bastante amplas para compreender suas histórias. Um exemplo é o caso do sargento Rodoval Cabral da Trindade.

Rodoval Cabral da Trindade.

Basicamente temos as informações que ele era um sargento do Exército Brasileiro, que havia nascido na cidade de Ceará-Mirim e que morreu de um acidente de jipe no dia 6 de junho de 1945, após o final da Guerra na Europa.

Mesmo com dificuldades, conseguimos mais detalhes sobre a vida desse homem e a sua participação nesse conflito. Elas mostram interessantes informações do envolvimento de um potiguar na Segunda Guerra e aprofunda o entendimento sobre aqueles que partiram para lutar na Europa.

Tiro de Guerra 18

Rodoval era filho do funcionário público João Cândido da Trindade, casado com Emília Cabral da Trindade. Tudo indica que o casal era natural da cidade de Ceará-Mirim, onde seu filho Rodoval nasceu em 1909. Ele era um dos nove filhos do casal, sendo seis homens e três mulheres. Não sabemos a data, mas, provavelmente, em algum ano da década de 1920 a família Cabral da Trindade se mudou de Ceará-Mirim para Natal, onde moravam na Rua Laranjeira, número 26, na Cidade Alta, perto da Igreja do Galo.[1]  

A antiga e simples residência da família Cabral da Trindade em Natal.

Tudo aponta que essa família era muito católica, pois todos os anos, sempre no mês de abril, Seu João Cândido participava da tradicional e secular Procissão do Encontro. Essa tendência foi seguida pelo seu filho Rodoval, que participou da Congregação Mariana de Moços, tradicional organização católica da cidade. E Seu João tinha de ter mesmo muita fé, pois para sustentar a esposa e nove filhos só possuía os minguados salários do cargo de porteiro do Serviço de Estatística do Estado do Rio Grande do Norte.[2]

Mesmo com as limitações, sabemos também que o jovem Rodoval foi membro do tradicional Centro Náutico e remava com seus amigos no tranquilo e, na época, limpo rio Potengi, certamente competindo com os adversários do Sport Club de Remo.

Outra atividade desse jovem em Natal, que certamente marcou sua vida, foi participar do Tiro de Guerra 18, ou T. G. 18.

Rodoval Cabral da Trindade – Foto gentilmente cedida pelo escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira.

Essa era uma pequena unidade do Exército Brasileiro mantida em parceria com o município de Natal e responsável pela formação de reservistas de segunda categoria do serviço militar. Fundado em 1908, tinha sede no bairro do Alecrim, sendo normalmente comandada por um sargento, ou um tenente, com turmas que variavam anualmente de 35 a 45 rapazes. Esse pessoal fazia muita ordem unida, longas marchas, treinos de tiro ao alvo e desfilava garbosamente na Avenida Deodoro durante as comemorações do 7 de setembro. Entre os participantes ilustres do Tiro de Guerra 18 consta o maestro Waldemar de Almeida [3], que lá esteve na segunda metade da década de 1920. Outro que recebeu a sua carteira de reservista de segunda categoria foi o advogado, professor e político mossoroense Otto de Brito Guerra. Esse último foi contemporâneo do jovem Rodoval Cabral da Trindade quando esteve nessa instituição em 1928. Consta que Otto Guerra participou da marcha de 24 quilômetros, com fuzil no ombro e tudo mais.  

O Tiro de Guerra 18 era um lugar onde o esporte era intensamente praticado e incentivado.[4] Um dos feitos esportivos mais marcantes foi ter participado e vencido a primeira competição pública de basquete realizada no Rio Grande do Norte.

Arquibancada coberta do “Stadium” Juvenal Lamartine, onde aconteceu a primeira disputa pública de basquete no Rio Grande do Norte em 1931 e o Tito de Guerra 18, onde Rodoval Cabral serviu ganhou a disputa com o 29º Batalhão de Caçadores.

O fato ocorreu em 1931, em pleno estádio de futebol Juvenal Lamartine, onde improvisaram uma quadra de basquete não sei de que jeito e o Tiro de Guerra 18 venceu a poderosa equipe do 29º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro. Digo poderosa porque o pessoal do 29º treinava muito e tinha até mesmo à disposição uma quadra de basquete. Mesmo sendo de barro batido essa quadra possuía dimensões oficiais e ficava onde atualmente se encontra o SESC da Cidade Alta. A equipe do 18 era formada, entre titulares e reservas, por Humberto Nesi, Luiz Tavares de Souza, Alberto Gentile, Zacarias Cunha, José Maia Mousinho e Miguel Ferreira da Silva. Esse pessoal era treinado pelo tenente Francisco Antônio do Nascimento, o conhecido “Chicó”, por anos comandante do Tiro de Guerra, e pelo soldado Severino Estevam dos Santos, o “Jaú”. Todo esse pessoal foi contemporâneo de Rodoval.[5]

Caminho da Guerra

Após deixar o Tiro de Guerra 18 temos a informação que Rodoval Cabral da Trindade passou a ser aluno da Escola Técnica de Comércio do professor Ulisses de Góis, que na década de 1930 ficava na Rua João Pessoa, no Centro de Natal [6]. Rodoval se preparava para exercer a função de guarda-livros, ou seja, escriturar e manter em boa ordem os livros mercantis das empresas comerciais. O que hoje chamamos de contadores.

Bairro da Ribeira, na bucólica Natal das primeiras décadas do século XX. : Fonte – https://www.brechando.com/2017/09/esta-praca-parece-do-interior-do-estado-mas-fica-em-natal/

Naquela época esse era o típico trabalho desejado pelas famílias de classe média baixa de Natal. A maior parte delas formada por funcionários públicos de baixo escalão, que recebiam minguados rendimentos e que através de favores políticos entravam aos montes no serviço público estadual.

Certamente pelo tempo e pelas experiências vividas no Tiro de Guerra 18, o jovem Rodoval largou a Escola de Comércio no último ano e se alistou voluntariamente no Exército Brasileiro como soldado. Provavelmente essa sua deliberação não deve ter sido tomada sem rupturas na sua família, pois Rodoval acabava de tomar a decisão de descer voluntariamente os poucos degraus que a sua condição social lhe proporcionava naquela provinciana Natal de pouco menos de 40.000 habitantes e uma elite extremamente preconceituosa e abertamente racista.

Foto de um soldado da Forças Pública, nesse caso de Pernambuco. Nas décadas de 1920 e 1930 os uniformes militares dessas instituições militares estaduais pouco diferiam, sendo sempre na predominante cor cáqui. na imagem vemos o Soldado Heleno Tavares de Freitas – Fonte – Valdir José Nogueira de Moura.

Naqueles dias para ter prestígio como membro das Forças Armadas só sendo oficial, algo para poucos. Já ser um soldado no Exército Brasileiro não era uma situação considerada “desrespeitosa” pela sociedade, mas era o tipo de profissão que, no entendimento geral, só entrava quem não tinha maiores perspectivas, ou por pura vocação. Mas estava um patamar acima da pessoa que era soldado na Força Pública, atual Polícia Militar.

No caso de Rodoval eu acho que foi vocação mesmo, pois ser um guarda-livros em Natal, mesmo com perspectivas salariais baixas, poderia ser um caminho para conseguir através de apadrinhamento político uma sinecura em alguma repartição pública e ter a tão sonhada estabilidade.

1939 – 6º Regimento de Infantaria de Caçapava. Foto: Iris, Créditos: Nelson de Luccas – Fonte – Caçapava/SP História, Fotos e Caçapavenses

A próxima notícia que temos sobre esse potiguar é que ele foi servir bem longe do Rio Grande do Norte. Seguiu para São Paulo, onde esteve aquartelado em unidades militares existentes nas cidades de Jundiaí, Taubaté e Caçapava. Nessa parte do Brasil ele se casou com a jovem Araci Marques da Trindade, mas não tiveram filhos.[7]

Em 1941 encontramos Rodoval servindo no 6º Regimento de Infantaria de Caçapava, com a extinta patente de “primeiro cabo”, sendo promovido em 25 de julho daquele ano ao posto de terceiro sargento, conforme está descrito na notificação existente no Boletim Interno número 171 do Exército Brasileiro.[8]

Nesse meio tempo nuvens negras surgiram no horizonte do Brasil, com o intenso rufar dos tambores de guerra ecoando na Europa e na Ásia. Em 22 de agosto de 1942, após a declaração de guerra do Brasil à Alemanha Nazista e à Itália Fascista, o país entra em mobilização total.

Militares norte-americanos em Parnamirim Field – Fonte – Getty Images

Não sei se através de jornais, ou por contatos com a sua família, Rodoval soube que na cidade onde seus parentes viviam e onde passou grande parte de sua juventude, estava ocorrendo uma intensa mudança. Milhares de militares dos Estados Unidos e do sul do Brasil ocupavam a capital potiguar. Nos céus aeronaves de vários tipos partiam e chegavam diariamente, aproveitando a privilegiada posição estratégica do Rio Grande do Norte em relação ao Atlântico Sul e a costa ocidental africana.

Através de outras pesquisas realizadas pelo autor, descobri que não era raro a transferência para Natal de militares nascidos no Rio Grande do Norte e que se encontravam servindo em outras regiões do país. Isso certamente se destinava a facilitar o entrosamento dos muitos militares brasileiros que desembarcavam em Natal para reforçar as defesas na região. Mas essa situação não aconteceu com o sargento Rodoval.

No começo de 1943 ele recebeu ordens de se apresentar no Quartel General do Exército no Rio de Janeiro, para participar do C. R A. S, sigla do Curso Regional de Aperfeiçoamento de Sargentos.[9] Dois meses depois, Rodoval foi promovido a segundo sargento, junto com outros 21 colegas do 6º Regimento de Infantaria.[10] Em agosto ele concluiu o C. R. A. S. e aguardou novas ordens.[11]

Símbolo da FEB.

Certamente o sargento Rodoval e seus companheiros sentiam que se aproximava a hora de pegar em armas e partir para o front de combate, onde comandariam grupos de soldados destinados a matar o maior número de inimigos, pois era para nisso que treinavam arduamente. Logo o governo brasileiro publicou a Portaria Ministerial nº 4.744, que criava a Força Expedicionária Brasileira, que se tornaria a primeira e única força militar formada na América Latina a lutar na Europa. Rodoval recebeu o número 2-G-87320 para sua identidade militar.

No General Mann

Quase um ano depois, em uma quinta-feira, 29 de junho de 1944, o sargento Rodoval e centenas de companheiros partiram da Vila Militar, na zona oeste do Rio, em um trem da Estrada de Ferro Central do Brasil até o cais da Praça Mauá. Ali começou o embarque dos soldados da FEB no grande navio USS General William Abram Mann (AP-112), ou simplesmente General Mann, como ficou mais conhecido entre nossos soldados.

Força Expedicionária Brasileira embarcando no Rio de Janeiro. Destino – A frente italiana.

Aquela grande nave da Marinha dos Estados Unidos (US Navy) estava atracada no Píer 10 e era enorme. Pesava mais de 17.000 toneladas, tinha quase 200 metros de comprimento, navegava com a velocidade máxima de 19 nós (35 km/h) e podia transportar 5.000 homens destinados ao combate em qualquer parte do Globo. A grande nave era comandada pelo capitão Paul Sylvester Maguire.

Ao redor do porto havia muita segurança e isolamento. Gente de toda parte do país, com seus sotaques, cores, trejeitos e maneiras próprias entraram na grande nave carregando sacos de lona. O general Mascarenhas de Moraes, o comandante da FEB, embarcou para o exterior junto com 5.074 homens que formavam o 1º Escalão de combatentes.

Navio transporte de tropas USS General W. A. Mann. Em 1944 ele levou os primeiros combatentes da FEB para a Itália.

Mascarenhas de Morais listou as primeiras unidades da FEB transportadas no General Mann – Escalão Avançado do Quartel General da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE), Estado Maior da Infantaria Divisionária da 1ª DIE, 6º Regimento de Infantaria, 4ª Companhia e 1º Pelotão de Metralhadoras do 11º Regimento de Infantaria, II Grupo do 1º Regimento de Obuses Auto Rebocados, 1ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia, uma parte da Seção de Suprimento e Manutenção do 9º Batalhão de Engenharia, 1º Pelotão do Esquadrão de Reconhecimento, Seção de Exploração e elementos da Seção de Comando da 1ª Companhia de Transmissões, 1ª Companhia de Evacuação, o Pelotão de Tratamento e elementos da Seção de Comando, todos do 1º Batalhão de Saúde, Companhia de Manutenção, Pelotão de Polícia Militar, um pelotão de viaturas, uma Seção do Pelotão de Serviços e elementos da Seção de Comando da 1ª Companhia de Intendência, o Correio Regulador, o Depósito de Intendência, a Pagadoria Fixa, os jornalistas que iriam trabalhar como correspondentes de guerra, elementos do Hospital Primário, Serviço de Justiça e o pessoal do Banco do Brasil.[12]

Militar brasileiro de patente elevada passando em ordem a guarda de Fuzileiros navais (Marines) a bordo do General Mann. Eram estes fuzileiros que mantinha a ordem a bordo.

Não sabemos quantos, mas temos a certeza que o sargento Rodoval Cabral da Trindade não era o único potiguar a bordo do General Mann. Outro Norte-rio-grandense era o soldado João Alves Coelho, nascido em 1923 e que em 1940 havia seguido para o Rio de Janeiro com o intuito de aprender uma profissão para melhorar a sua vida e a de sua família. Ele estudou mecânica na então Capital Federal, quando foi convocado para a guerra como integrante da FEB. Foi incorporado na Companhia de Manutenção, onde praticou extensamente a profissão que aprendeu no Rio. Não sabemos se o sargento Rodoval e o soldado Coelho se conheceram.[13]

No domingo, 2 de julho, às cinco e quarenta e três da manhã, o General Mann desatracou e partiu. Nos próximos quatorze dias a nave seguiria pelo Oceano Atlântico e pelo Mar Mediterrâneo a velocidade média de 17 nós e sempre ziguezagueando para evitar ataques de submarinos. Inicialmente essa nave americana foi escoltada pelos destroieres brasileiros Marcílio Dias, Greenhalgh e Mariz e Barros.[14]

A chegada no Porto de Nápoles, sul da Itália, ocorreu no dia 16 de julho, às 12:20 horas, também num domingo. No cais havia um destacamento norte-americano de quarenta e cinco homens e uma banda para as honras militares.

A guerra para a FEB estava começando!

Um Líder Controverso

Desembarque da FEB em Nápoles em 1944.

Após o desembarque em Nápoles, a FEB ficou acampada no subúrbio da cidade, na região de Agnaro/Bagnoli, perto do mar. O interessante foi que eles acamparam dentro da cratera do extinto vulcão Astroni, cujas bordas possuem 70 metros de altura e atualmente é uma área de preservação. Nessa cratera a temperatura variou bastante, com picos de elevação durante o dia de 30 graus à sombra e a noite descendo para terríveis 10 graus. O contingente brasileiro logo se mudou desse local complicado e ficou aguardando receber seus equipamentos de combate e suas viaturas. 

Veículos da FEB prontos para serem entregues em 1944.

Um dia, em 19 de agosto, enquanto recebeiam seus apetrechos e mais de 220 veículos de todos os tipos, quem deu uma passadinha para dar um alô a brasileirada foi ninguém menos que Sir Winston Churchill, primeiro ministro do Reino Unido e um dos principais líderes Aliados. A ilustre figura estava inspecionando as tropas do 5º Exército dos Estados Unidos (US Army), sob o comando do tenente-general Mark Clark. O contingente da FEB fazia parte do 5º Exército e o general Mascarenhas de Morais respondia a Clark, um militar tido como controverso, planejador débil, líder fraco, além de ser considerado um “caçador de publicidade” e com extrema aversão aos seus aliados ingleses.

Mas o fato que pesou mais negativamente na biografia de Mark Clark durante a Segunda Guerra ocorreu em junho de 1944, durante a chamada Operação Diadem (Diadema).

O mais alto na foto é Mark Clark e o mais baixo Mascarenhas de Moraes.

Comandada pelo general inglês Sir Harold Alexander, líder do 8º Exército Britânico, essa operação consistia em um cerco aos alemães, com o objetivo de fazer com que as forças inimigas ficassem amarradas na Itália e não pudessem ser redistribuídas para a França. O problema foi que para muitos Clark não comandou corretamente o seu 5º Exército, o que permitiu que o 10º Exército Alemão escapasse do cerco. Para piorar a situação pesa sobre Mark Clark a acusação de que ele priorizou tomar Roma (o que realizou com relativa facilidade) em uma tentativa de ganhar a glória marcial imortal. Consta que ele desejava ser o primeiro general a “tomar Roma pelo sul em 1.500 anos”. Se assim foi, Clark recebeu apenas um dia de publicidade por dominar a “Cidade Eterna”, pois após a sua conquista ocorreu o grande desembarque Aliado na França, o famoso “Dia D”, e sua glória foi totalmente ofuscada.[15]

Para os soldados da FEB essas tricas e futricas de altos comandantes pouco importava. Importava mesmo era quando entrariam em combate e, principalmente, fazer tudo para voltarem vivos para o Brasil.

Encarando a Linha Gótica

Na noite de 15 para 16 de setembro o contingente do 6º Regimento de Infantaria, comandado pelo coronel João de Segadas Viana substituiu na frente de combate o 434th Antiaircraft Artillery Automatic Weapons Battalion (434th AAA-AW Bn), ou 434º Batalhão de Armas Automáticas de Artilharia Antiaérea, que foi convertido em batalhão de infantaria. Ficou sob a responsabilidade dos brasileiros uma frente de combate de uns 4.500 a 4.800 metros.

Símbolo da 232a Infantariedivision der Wehrmacht, ou 232º Divisão de Infantaria do exército nazista.

Os pessoal da FEB naquele setor eram inferiores a 900 homens e seus comandantes sabiam que a sua frente estavam elementos da 232a Infantariedivision der Wehrmacht, ou a 232º Divisão de Infantaria do exército nazista. Unidade comandada pelo generalleutnant (tenente-general) Eccard Freiherr von Gablenz, um veterano das campanhas da Polônia, França e da invasão da União Soviética, onde combateu nesta última área de 1941 a 43 e ele escapou por pouco do cerco realizado pelos soviéticos na Batalha de Stalingrado. Von Gablenz estava comandando a 232 na Itália desde o primeiro semestre de 1944 e junto a essa divisão estavam unidades militares formada por italianos favoráveis aos alemães.

O círculo negro mostra a área de atuação da FEB nos primeiros meses de combate na Itália.

A partir desse ponto o avanço brasileiro colidiu com um setor da chamada Linha Gótica, a última linha de defesa inimiga na Itália.[16]

Em agosto de 1944 as forças alemãs estavam há mais de dois anos travando uma guerra defensiva e se retirando para o norte da Itália. Foi quando decidiram criar a linha defensiva chamada Gótica, que atravessava o país de um lado ao outro, desde o mar da Ligúria até o mar Adriático, aproveitando o terreno montanhoso e assim deter seus inimigos. Os alemães esperavam que a defesa da cordilheira dos Apeninos negasse aos Aliados a vantagem tática que significaria a conquista do Vale do Pó, pois ali ficavam as cidades de Bolonha, Modena e Milão, além das ricas terras agrícolas que forneciam grande parte dos alimentos. Para reforçar a Linha Gótica os alemães construíram muitos baluartes de defesa.

Foto ilustrativa que mostra o terreno de luta da FEB, nesse caso na região de Montese.

Os brasileiros do 6º Regimento de Infantaria atuavam intensamente a linha de frente, onde seus homens foram gradativamente ganhando experiência. Sofriam e infligiam baixas, mas a FEB ganhava terreno. Em 16 de setembro os brasileiros conquistaram as localidades de Massarosa e no dia seguinte Camaiori.

No início de outubro, com o frio aumentando pela iminente chegada do inverno, o 6º de Infantaria foi deslocado para o vale do rio Serchio, ao norte da cidade de Lucca. Nessa área as operações começaram no dia 6 e aos soldados da FEB foi ordenado lutar e ocupar pequenas comunidades e elevações, que eram chamadas “Cotas” e recebiam um número. O 6º Regimento de Infantaria atacou um setor defendido pelos italianos da 4ª Divisione Alpina Monterosa, formada pelos batalhões Bergamo, Aosta e Bréscia e comandadas pelo general Mario Caloni, que seis meses depois se renderia aos brasileiros da FEB.[17]

Símbolo da Divisão Monterosa.

Os combatentes sul-americanos avançaram para o norte por treze quilômetros, onde atravessaram o riacho Lima em Bagni di Lucca, cerca de vinte quilômetros ao norte da cidade de Lucca. Já os italianos, mostrando pouca ânsia de se levantar e lutar, recuaram lentamente para a solidez das altas montanhas que conheciam tão bem. No dia 11 de outubro a FEB capturou as cidades de Barga e Gallicano.

Ao completar um mês da entrada do 6º Regimento na área de combate, a imprensa nacional divulgou que os soldados brasileiros haviam avançado 28 quilômetros para o norte, conquistando do inimigo uma área de 273 Km², onde viviam mais de 100.000 pessoas, em sete cidades e vinte e três vilas. Não sabemos o grau de envolvimento do sargento Rodoval nessa fase da luta, mas o seu regimento participou ativamente desses combates, como ponta de lança da FEB.[18]

A aldeia medieval de San Quirico, município de Pescia, província de Pistoia, região da Toscana. Itália.

Daí então, entre os dias 12 e 30 de outubro, os brasileiros conquistaram várias outras vilas e pequenas aglomerações urbanas italianas, entre elas um lugar chamado San Quirico, que caiu no dia 30 de outubro de 1944, no começo da tarde. O lugarejo era defendido pelos italianos do batalhão Aosta, da divisão Monterosa, mas não ofereceram muita resistência.[19]  

O Massacre na Aldeia Medieval

O sargento Rodoval Cabral da Trindade estava entre os brasileiros que ocuparam San Quirico. O correspondente de guerra Sílvio Fonseca, enviado da Agência Nacional junto a FEB, comentou que em 31 de outubro de 1944 os militares do 6º Regimento de Infantaria conquistaram “La Rochette, Lama di Soto e Pradoscello”, entre outras localidades que se localizavam nas proximidades do rio Serchio. Informou também que outros soldados “mais a oeste, apoderaram-se de San Quirico”. Era a tropa que o potiguar Rodoval fazia parte.[20]

Soldados brasileiros encarando o frio italiano com a ajuda de um aquecedor à lenha.

Ao chegar em San Quirico estava frio e chovia, com a temperatura caindo para uns 10 ou 12 graus com a chegada da noite. A tropa brasileira estava cansada após vários dias de lutas e avanços pelas elevações daquela região da Toscana. É provável que a antiga igreja e o fato da maioria das casas estarem queimadas, tenha chamado a atenção de Rodoval e seus colegas. Mas o que importava naquele momento era consolidar a conquista do lugar, comer algo, descansar e seguir adiante.

Acredito que eles então se dirigiram para uma das poucas casas que não estavam queimadas e se acomodaram. Também é provável que sobre aquela pequena comunidade e seu montanhoso entorno, o potiguar só soubesse informações militares. Enfim, a vila e a região eram muito parecidas com outras tantas vilas e montanhas que ele vinha combatendo e ocupando no último mês junto com seus companheiros. Mas talvez Rodoval se espantasse ao saber o quanto aquele lugarejo era antigo.

A igreja de San Quirico, com seus mais de 10 séculos de construida.

Quando a primeira notícia oficial e conhecida sobre San Quirico foi publicada, um pequeno texto sobre os bens da “Ecclesia S.Quirici de Arriano“, somente 520 anos depois o navegador luso Pedro Álvares Cabral colocaria seus pés nas belas praias de Porto Seguro.[21]

Atualmente San Quirico pertence ao município de Pescia, na província de Pistoia, região da Toscana. Está fincada no alto de um monte com quase 550 metros de altitude e foi um lugar que presenciou guerras, passagem de exércitos em luta, pestes, terremotos, secas, enchentes e muito mais. É um lugar conhecido por ali ter vivido famílias que se especializaram na fabricação de sinos, sendo respeitados em toda a península italiana. Sua arte remonta à Idade Média, onde em algumas casas do lugarejo ainda é possível ver lagartos esculpidos em pedra, símbolo desta arte na Itália. É um testemunho da presença de tais mestres, sendo os mais conhecidos pertencentes às famílias Angeli, Fontana e Magni.[22]

Rua em San Quirico.

Durante a Segunda Guerra Mundial, dois meses antes da FEB chegar a essa vila medieval e do potiguar Rodoval ter combatido nas suas ruas, San Quirico viveu uma tragédia, quando foi palco de um dos muitos massacres perpetrados pelos alemães contra os civis italianos.

A coisa toda começou assim – Na noite de 7 de agosto de 1944, dois oficiais alemães foram convidados para jantar em uma casa da aldeia e tudo parecia estar indo bem. Por volta das 11 da noite, quando retornavam ao seu acampamento, eles foram mortos. Para alguns foi obra de guerrilheiros italianos que lutavam contra a ocupação alemã, os chamados “Partigiani”, mas outras fontes apontam que os atiradores seriam seis soldados alemães desertores e um deles, chamado Franz, foi quem matou os oficiais. Independentemente disso, a resposta alemã não se fez esperar! 

Outra vista da vila.

Naquela época os nazistas deixaram claro que para cada alemão morto, dez italianos pagariam com a vida. Na manhã do dia 19, muitos soldados da 65º Divisão de Infantaria da Wehrmacht chegaram a San Quirico e cercaram a aldeia[23]. Aos gritos, empurrões e muita violência mandaram todos sair das casas somente com a roupa do corpo e começaram a saquear e queimar praticamente todo o pequeno burgo, deixando de incinerar umas poucas casas e a igreja milenar. Roubaram gado, objetos de valor, os melhores móveis, roupas de cama e provisões. As antigas casas da vila de ruas apertadas arderam fortemente. Às quatro da tarde os nazistas separaram da população detida um grupo de velhos, doentes e mulheres, que imaginaram o pior para eles, pois todos foram obrigados a abrir uma grande cova coletiva no cemitério local.

San Quirico e as montanhas do seu entorno.

Mas o comandante alemão informou ao pároco Dom Vicenzo del Chiaro que seriam fuzilados vinte homens detidos pela manhã, na estrada que ligava a localidade de Pietrabuona até a cidade de Pescia. Eram pessoas de várias vilas da Toscana que, depois de serem obrigadas a trabalhar para os alemães no reforço de fortificações da Linha Gótica, foram libertadas e voltavam para suas casas, quando foram novamente detidas. Esse grupo foi conduzido para perto do cemitério de San Quirico em um caminhão. No local da execução um dos presos tentou escapar, mas foi perseguido e morto. Os dezenove restantes foram divididos em três grupos e sumariamente fuzilados. Hoje um desses infelizes ainda repousa neste campo santo e, para se ter uma ideia do nível de destruição em San Quirico, provocado pelos nazistas naquele 19 de agosto de 1944, ainda na década de 1970 cerca de 50% das casas do lugar estavam destruídas e enegrecidas.[24]

Monumento existente em San Quirico para homenagear os vinte fuzilados de 19 de agosto de 1944.

Enquanto os cansados oficiais e praças brasileiros do 16º Regimento de Infantaria encontraram abrigo do frio da noite nas casas de San Quirico, na madrugada os alemães e italianos contra-atacaram os brasileiros sem dó e nem piedade!

O Duro Combate de San Quirico

Em 2012, quando se comemorou os 70 anos da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o jornalista Marcelo Godoy participou de uma série de reportagens do jornal paulista Estadão sobre a participação brasileira nesse conflito. Ele escreveu um interessante material sobre o combate de San Quirico – “Os brasileiros dormiam, quando começaram a ouvir vozes na madrugada fria. Eram do inimigo. De repente, um tiro de carabina. A bala tombou um alemão que descia a colina em direção à ravina atrás da casa dos brasileiros. Atratino Côrtes Coutinho, comandante da 1.ª Companhia de Petrechos Pesados (CPPI), foi o autor do disparo que instalou o inferno na paisagem. A resposta veio das metralhadoras alemãs. Tiros encurralaram o capitão e sua tropa. Havia uma única saída: fugir pela janela dos fundos. Todos passaram. Chegou a vez do tenente José Maria Pinto Duarte. Ao pular, balas lhe alcançaram o corpo. Uma rajada apanhou o tenente no ar. Os tiros do inimigo não permitiram que o corpo do oficial fosse resgatado e enterrado. “O Atratino tentava arrastar, mas ele (Duarte) era muito alto, pesado, era difícil… Lembro quando (Duarte) falou: “Cuidem bem da minha filha’, como uma súplica”, diz João Gonzales, de 92 anos (em 2012), na época da guerra um terceiro sargento. Atratino não se conformava. Montou duas patrulhas para encontrar o corpo. Sem sucesso. Cansado, escreveu: “O moral da tropa foi abalado pelos insucessos causados pelo contra-ataque inimigo”. A ideia de que era preciso enterrar Duarte atormentaria o capitão até o fim da guerra”.[25]

Soldados da FEB em posição de combate.

Outro oficial da FEB presente ao confronto de San Quirico foi o então capitão Moziul Moreira Lima, que deixou o seguinte registro – “O Destacamento da FEB conquistou Barga e tentou conquistar as alturas dos Montes Quíricos (SIC) e infelizmente essa tentativa terminou em revés sério e serviu-nos como um grande ensinamento. Casualmente eu estava lá, junto do comandante do 1º Batalhão do 6º RI (Regimento de Infantaria), Major João Carlos Gross, meu grande amigo. A ordem fora conquistar aquelas alturas. Era uma conquista difícil, um terreno escarpado e o Comandante do Batalhão foi comigo ao Quartel-General pedir que ficasse à disposição da Unidade, uma Companhia de muares, porque ele achava difícil levar munição e alimento quando estivéssemos lá na crista do monte.

Poder de fogo de um militar da FEB com uma submetralahdora M3  “Grease Gun” e fitas de munição. Foi apontado para o autor desse texto que o militar da foto seria o sargento Rodoval Cabral da Trindade, mas sem confirmação.

Foi prometida essa Companhia de muares, mas a mesma não nos foi fornecida e com muito sacrifício o Batalhão conquistou aquela posição. Pela experiência que tínhamos das nossas guerras, quando escurecia as operações paravam e, conquistada a posição, o pessoal se preparava apenas para passar a noite. Pois nessa noite o alemão desencadeou um contra-ataque com uma Unidade de Choque, especializada em ataques noturnos. Essa Unidade veio em cima do flanco esquerdo do nosso dispositivo e fomos tomados de surpresa, inesperadamente e sem a munição necessária. Foi uma surpresa total, o Batalhão começou a recuar pelo flanco esquerdo e foi nessa ocasião que morreu o tenente Pinto Duarte. Dois oficiais se atiraram por uma janela para não caírem prisioneiros, ele e o capitão Atratino, que era o Comandante da Companhia. O tenente foi ferido numa perna e na barriga e não conseguia se locomover, o Atratino procurou carregá-lo, mas não conseguiu e o corpo teve que ficar insepulto naquele local. Com esse revés ficou evidente que deveríamos nos reajustar muito rapidamente ao modo de combater de elementos que já tinham no mínimo cinco anos de experiência de guerra, enquanto estávamos começando a adquirir a nossa naqueles combates” [26].

Tropa do 2º Pelotão, da 8º Companhia, do 6º Regimento de Infantaria da FEB. É provável que alguns dos fotografados estiveram no combate de San Quirico – Foto devidamente cedida pelo Museu da Imagem e do Som da Associação Nacional da FEB.

O então capitão Hélio Portocarrero de Castro foi outro oficial da FEB que lutou em San Quirico naquela madrugada e deixou o seguinte registro – “Cheguei no 2º Escalão e, logo em seguida, fui designado para assumir o Comando da 7ª Companhia, 3º Batalhão do referido 6º Regimento de Infantaria. Não tive nenhuma adaptação. Segui direto, assumi o comando num ataque ao Morro de San Quirico. Foi um batismo de fogo sui-generis. Ataquei e fui contra-atacado violentamente pelos alemães. Eles avançavam gritando Heil Hitler! Portavam suas “lurdinhas” (apelido), excelentes metralhadoras de mão, com uma violenta cadência de tiro. Suas rajadas se assemelhavam a uma gargalhada. Algum soldado brasileiro colocou esse apelido nessa arma e pegou. Toda a FEB a designava pelo nome de “lurdinha”. [27]

Soldados da FEB.

O soldado José Otaviano Soares, que morava na rua Dr. Betim, 315, Vila Marieta, em Campinas, São Paulo, tempos depois comentou ao correspondente de guerra americano Henry Bagley, da Associated Press, que naquela madrugada estava com outros dezesseis companheiros da 8º Companhia, do 16º Regimento de Infantaria, quando “capturaram uma casa na aldeia de San Quirico, ao norte de Barga, no vale do rio Serchio, mas os alemães contra-atacaram pela madrugada de 31 de outubro. O inimigo concentrou um fogo de morteiro e metralhadoras contra a casa, matando um e ferindo oito, inclusive José Soares, que foi ferido por estilhaço de morteiro desde o pé ao ombro esquerdo, bem como dois fragmentos maiores na perna direita”. José Soares foi capturado bastante ferido, mas se recuperou em um campo de prisioneiros na Itália, de onde foi libertado ao final do conflito. Ao retornar ao encontro da sua tropa, concedeu essa entrevista a Henry Bagley[28].

Foto ilustrativa de soldados da FEB em uma cidade italiana e sobre um veículo de combate.

O que sabemos da participação do sargento Rodoval são informações muito limitadas, mas é certo que durante o tiroteio o seu pelotão recuou de sua posição original, talvez a mesma casa onde estava o capitão Atratino, ou alguma outra que foi “requisitada” para descanso. É provável que Rodoval tenha continuado na casa para cobrir a retirada dos seus companheiros. A vivenda foi então cercada pelos alemães. Tudo indica que o potiguar, mesmo com sua munição escasseando, ficou na casa até o último disparo. Os registros existentes não explicam como, mas Rodoval manteve a calma e de alguma forma conseguiu romper o cerco para retornar as linhas brasileiras. Sabemos que na madrugada de 31 de outubro de 1944 predominava a lua cheia no norte da Itália, o que possibilitou aos participantes daquele combate vantagens e desvantagens. Talvez o sargento potiguar tenha utilizado o luar para sair vivo daquela complicada situação. Ao sobreviver a esse combate Rodoval foi agraciado com a medalha da Cruz de Combate de 2ª Classe, destinada a participantes de feitos excepcionais praticados em conjunto por vários militares.[29]

Para Sílvio Fonseca a localidade de San Quirico era “uma importante posição dominante que os alemães tentaram inutilmente conservar em seu poder”. Tanto era importante que os nazistas e fascistas executaram o contra-ataque. O jornalista informou que os brasileiros resistiram a três investidas dos inimigos, mas na quarta recuaram.[30]

O complicado terreno de luta da FEB na Itália.

Segundo a falecida historiadora paranaense Carmen Lúcia Rigoni, na página 122 de sua interessante tese de mestrado intitulada La forza di spedizione brasiliana” (FEB) – Memória e história: Marcos na monumentalistica italiana, defendida 2003 na Universidade Federal do Paraná, informou que no momento da ocupação de San Quirico pelos membros da FEB o ambiente entre eles era de “otimismo”. Contudo a autora aponta, através de relatos de participantes, que “ninguém no comando se apercebia de que os combatentes estavam no limite e o cansaço era extremo”. A autora também conseguiu a informação que o “otimismo exacerbado e a subestimação do inimigo” estavam na ordem do dia dos brasileiros. E continua Carmen Lúcia Rigoni – “Segundo as narrativas de diversos veteranos, a frente de combate era muito extensa e o terreno criava todo o tipo de dificuldades, em razão da topografia ser acidentada, e era de difícil acesso. O transporte de víveres e munição para a tropa, debaixo de chuva, comprometia as reservas, entre outras questões afeitas ao comando” (Pág. 122).

Soldados da FEB.

Em outra parte do seu trabalho Carmen Lúcia Rigoni comentou o final da luta – “Diante das intempéries climáticas daquela jornada e da falta de munição e mais a desorganização do comando, a FEB se retira, deixando sobre o terreno mortos, feridos e muitos prisioneiros. As brigadas italianas sofreram também pesadas baixas. Os mortos e prisioneiros do efetivo de 200 homens da Companhia Aosta somaram-se mais de 80 homens” (pág. 126).  

Como um jornal dos Estados Unidos comentou as vitórias da FEB em outubro de 1944.

A Morte em Voghera

A partir desse momento da história da FEB na Itália não consegui encontrar mais nenhuma referência sobre o sargento Rodoval Cabral da Trindade.

Soldados da FEB em uma aparente comemoração, com instrumentos musicais em um caminhão de transporte. Talvez algo alusivo ao final da guerra.

Finalmente a Guerra na Europa se encerra em 8 de maio de 1945 e a Força Expedicionária Brasileira se preparava para retornar ao Brasil. É quando o sargento Rodoval morre em um acidente de jeep em Voghera, uma cidade ao norte de Gênova, no dia 6 de junho de 1945. Das causas e razões do acidente automobilístico não consegui nenhuma informação. 

Apenas descobri que Rodoval não foi o primeiro membro da FEB a morrer nessa estrada. No dia 8 de maio de 1945, no Dia da Vitória, e praticamente um mês antes da morte de Rodoval, o segundo sargento Fábio Pavani, de Capivari, São Paulo, faleceu ao cair da viatura em que estava se deslocando na mesma estrada de Voghera. Segundo a listagem de mortos da FEB, encontrada no texto intitulado Lista detalhada e ilustrada dos mortos da Força Expedicionária Brasileira na Campanha da Itália, constam os nomes de 34 militares que morreram em acidentes de veículos [31].

Para o pesquisador Durval Lourenço Pereira, essa situação ocorreu por várias razões. Desde a imperícia pura e simples dos motoristas da FEB, a complicada situação das estradas italianas, nevoeiro, fadiga, lama, neve, stress por dirigir em zona de guerra e outras mais.

Notícia da morte do sargento Rodoval em jornal de Natal.

Em Natal a notícia foi divulgada com bom espaço nos três principais jornais da cidade – A República, A Ordem e O Diário.  A única rádio da cidade, a REN – Rádio Educadora de Natal, noticiou extensivamente o falecimento do sargento Rodoval. Vários membros da comunidade foram pessoalmente até a casa da família externar os pêsames pelo ocorrido. Já o tenente coronel Edgar Alves Maia e o Dr. Jacob Wolfson, oftalmologista de renome e um dos líderes da comunidade judaica natalense, foram até a casa da família Cabral da Trindade levar o apoio da Comissão de Homenagem, Assistência e Recepção à FEB.[32]

Cemitério de Pistoia e o enterro de um combatente da FEB.

O corpo do sargento Rodoval Cabral da Trindade foi primeiramente sepultado no Cemitério Militar Brasileiro de Pistoia, na quadra D, fileira nº 1, sepultura nº 5. Depois seus restos foram transladado para o Rio de Janeiro, onde repousam no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo. No Rio Grande do Norte ele é lembrado com seu nome em uma rua em Ceará-Mirim e outra em Natal. Na capital essa artéria fica na Cidade Alta, vizinho a Igreja do Galo e perto de onde ele viveu.

Pessoalmente a história do sargento Rodoval me traz maravilhosas lembranças do meu tio-avô Luís de França Moraes, o nosso poeta e um devotado funcionário dos Correios e Telégrafos. 

Ainda garoto, foi dele que ouvi pela primeira vez os fatos ligados ao sargento Rodoval, até porque tio Luís moravam na Rua Laranjeira, número 18, a poucos metros da casa de Seu João Cândido da Trindade. Ele conheceu Rodoval, foi um dos que foram à casa de seu pai dar os pêsames pelo seu falecimento na Itália, esteve no enterro de Seu João em 1957 e chegou a trabalhar nos Correios e Telégrafos com José Augusto, Clotilde e Margarida, todos irmãos de Rodoval. Eu era muito jovem quando ouvi seu relato, mas jamais esqueci quando ele me narrou do orgulho que ele e todo o pessoal da Rua Laranjeira ficou ao saber que Rodoval tinha ido para a Guerra e da enorme tristeza que se abateu com a notícia da sua morte.

NOTAS

——————————————————————————————————————–

[1] Ver O Poti, Natal-RN, ed. 06/07/1957, sábado, pág. 3.

[2] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 14/03/1940, quinta-feira, pág. 2. Não encontramos nenhuma outra indicação de fonte de renda desse funcionário público para sustentar sua família.

[3] Ver Galvão, Claudio. O nosso maestro: biografia de Waldemar de Almeida – Natal, EDUFRN, 2019, pág. 97.

[4] O antigo Tiro de Guerra 18 não existe mais, contudo esse tipo de organização é bastante presente em outros estados brasileiros e no Rio Grande do Norte ainda existe um em Mossoró, com mais de 120 anos de atuação.

[5] Ver O Poti, Natal-RN, ed. 09/08/1981, domingo, pág. 14.

[6] A Escola Técnica de Comércio foi fundada em 1919 pelo professor Ulysses de Góis. Em dezembro de 1950 essa escola se mudou da Rua João Pessoa para a Avenida Junqueira Aires, 390, na Ribeira e serviu de embrião para a criação da Faculdade de Ciências Contábeis e Atuariais de Natal em 1957.

[7] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 17/07/1945, quarta-feira, pág. 4.

[8] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 26/07/1941, sábado, pág. 10.

[9] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 17/01/1943, domingo, pág. 14. A ordem veio através do Boletim Interno nº 13, de 16/01/1943.

[10] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 16/03/1943, terça-feira, pág. 6. A ordem veio através do Boletim Interno nº 62, de 15/03/1943.

[11] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 14/08/1943, sábado, pág. 8.

[12] Enciclopédia da II Guerra Mundial, Editora Globo, Livro VI, páginas 285 e 286, 2ª edição, 1956.

[13] Informações transmitidas oralmente por José Renato Coelho ao autor. Renato é filho do soldado Coelho, já falecido.

[14] Diário de bordo do USS General A. W. Mann, 2 de julho de 1944, pág. 2.

[15] Sobre essa questão ver https://www.vqronline.org/essay/question-leadership-5th-army-italy (em inglês).

[16] Mais detalhes sobre a 232º Divisão, ver https://www.axishistory.com/

 [17] A divisão Monterosa nasceu em 1 de janeiro de 1944 em Pavia, mas foi mobilizada apenas em 15 de fevereiro do mesmo ano. Em 16 de julho Benito Mussolini entregou a bandeira aos regimentos em Münsingen, Alemanha, no final do período de treinamento realizado com padrões germânicos. Era composta por cerca de 20.000 homens, dos quais 20% provenientes do Exército Real Italiano, que se rendeu aos Aliados em 1943. Foi criado pelos líderes fascistas da chamada República Social para combater nas montanhas ao lado do exército alemão e suas armas vieram dos armazéns da Wehrmacht. A divisão voltou à Itália em julho de 1944 e ficou na área da Ligúria, para neutralizar um possível desembarque das forças aliadas. Posteriormente foi transferido para a Garfagnana entre o rio Serchio e os Alpes Apuanos, combatendo as unidades brasileiras da FEB e outras forças do 5º Exército.

[18] Ver A Noite, Rio de Janeiro, ed. 27/04/1946, sábado, pág. 8.

[19] Segundo o ótimo material produzido pelo escritor e pesquisador Durval Lourenço Pereira, que apresenta um interessante e didático roteiro do avanço da FEB, os locais e as datas das conquistas da foram as seguintes – 11/10/1944 – Ocupação de Barga e Gallicano; 24.10.1944 – Ocupação de Sommocolonia; 25.10.1944 – Ocupação de Trassilico e Verni; 28.10.1944 – Captura de Monte Facto; 29.10.1944 – Ocupação de Colomini; 30.10.1944 – Conquista de San Quirico, Lama di Sotto, Lama di Sopra, Pradoscello e Pian de Los Rios. Ver https://memorialdafeb.com/2012/05/15/roteiro-da-feb-na-italia-o-destacamento-feb2/

[20] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 02/11/1944, quinta-feira, pág. 1

[21] No entorno de San Quirico já foram encontrados marcos do Império Romano e até ferramentas do neolítico, que apontam uma antiguidade muito mais ampla.

[22] Sobre San Quirico e sua história ver https://digilander.libero.it/sanquiricovalleriana/lastoria.htm  https://www.ilturista.info/guide.php?cat1=4&cat2=8&cat3=5&cat4=142&lan=ita

[23] Na área de operações da 65ª Divisão foram identificados 26 atos separados de violência onde civis italianos foram sumariamente mortos. Em junho de 1944 aconteceram cinco massacres (18 vítimas), três em julho (22 vítimas), nove em agosto (42 vítimas, entre estas as de San Quirico), oito em setembro (125 vítimas, o pior mês) e um em outubro de 1944 (2 vítimas). Entre 28 e 30 de setembro, em Ronchidoso, na região da Emilia-Romagna, foram executados 66 civis pelos homens da 65º Divisão, que nesse caso atuaram juntos com membros da 42ª Divisão Jäger. Várias dessas execuções foram represálias precipitadas pela morte de soldados alemães por guerrilheiros do movimento de resistência italiano, que surgiu no norte da Itália para se opor ao estado fantoche fascista. Mas os revisores dessas histórias, muitos deles neonazistas disfarçados de pesquisadores, comentam que muitos dos relatórios carecem de evidências dos perpetradores específicos. Minimizam que esses relatórios apenas apontam que os assassinatos ocorreram na área de operações da 65ª Divisão. Pode até ser que esses argumentos sejam verdadeiros, mas fica difícil justificar que ao longo de cinco meses, na área de atuação dessa divisão, ocorreram 26 massacres de gente detida e desarmada, com um total de 205 vítimas. Ver – https://en.wikipedia.org/wiki/65th_Infantry_Division_(Wehrmacht)#Partisan_warfare_and_alleged_war_crimes

[24] A memória da tragédia continua presente naquela gente até hoje, onde todos os dias 19 de agosto existe uma comemoração em Pescia rememorando o que ocorreu em San Quirino e em outras comunidades da região. Ainda sobre o massacre de San Quirico ver o documento existe neste sítio da internet – http://www.straginazifasciste.it/wp-content/uploads/schede/SAN%20QUIRICO%20IN%20VALLERIANA%20PESCIA%2019.08.1944.pdf

[25] Ver https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,na-linha-de-frente-a-historia-da-primeira-tropa-a-lutar-na-italia,921569

[26] História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial / Coordenação geral de Aricildes de Moraes Motta. – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. T. 3. Págs. 56 e 57. O capitão Moziul Moreira Lima era gaúcho de Cruz Alta e alcançaria o posto de general de brigada do Exército Brasileiro.

[27] História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial / Coordenação geral de Aricildes de Moraes Motta. – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. T. 4. Págs. 70 e 71. O capitão Hélio Portocarrero de Castro era natural da cidade do Rio de Janeiro e alcançaria o posto de divisão do Exército Brasileiro.

[28] Ver O Jornal, Rio de Janeiro, ed. 30/05/1945, quarta-feira, pág. 8.

[29] Sobre a atribuição dessa medalha e sobre os 68 sargentos do Exército Brasileiro mortos na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, ver o interessante trabalho Os 68 sargentos mortos em operações de guerra, do coronel Cláudio Moreira Bento, em http://www.ahimtb.org.br

[30] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ed. 02/11/1944, quinta-feira, pág. 1

[31] Ver https://xdocs.com.br/doc/lista-detalhada-e-ilustrada-dos-mortos-da-fora-expedicionaria-brasileira-na-campanha-da-italia-4ol2mkp55ynm Infelizmente não descobri o autor desse trabalho.

[32] Ver A Ordem, Natal-RN, ed. 04/08/1945, sábado, pág. 2.

MARYSE BASTIÉ – A PIONEIRA DA AVIAÇÃO QUE PASSOU POR NATAL

MARYSE BASTIÉ – A PIONEIRA DA AVIAÇÃO QUE PASSOU POR NATAL Como uma Antiga Operária de uma Fábrica de Sapatos se Tornou a Mais Importante Aviadora da História da França – Voos Entre Glórias e Tristezas – Como Ela Conquistou o Atlântico Sul em Um Pequeno Avião – Quando Esteve em Natal? – Em Paris Junto ao Deputado Dioclécio Duarte e as Memórias de Natal – Nome de Rua na Capital Potiguar

Como uma Antiga Operária de uma Fábrica de Sapatos se Tornou a Mais Importante Aviadora da História da França – Voos Entre Glórias e Tristezas – Como Ela Conquistou o Atlântico Sul em Um Pequeno Avião – Quando Esteve em Natal? – Em Paris Junto ao Deputado Dioclécio Duarte e as Memórias de Natal – Nome de Rua na Capital Potiguar

Rostand Medeiros – Escritor e Pesquisador.

Na noite de segunda-feira, 23 de dezembro de 1935, rugiu sobre Natal e amerissou no Rio Potengi um grande hidroavião de desenho incomum. Tinha quatro motores colocados em uma asa que era sustentada por uma grossa estrutura onde ficava a cabine de comando, com três motores voltados para a dianteira da aeronave e um para a parte traseira. Aquele estranho pássaro metálico tinha sido construído pela empresa francesa Bleriot para transportar correio aéreo até a América do Sul e era batizado como Santos Dumont. A tripulação conseguiu atravessar o Atlântico Sul sem problemas, depois de partirem pela manhã da cidade de Dakar, a antiga capital da África Ocidental Francesa e hoje capital do Senegal.

A primeira vez que Maryse Bastié veio a Natal foi no Hidroavião Bleriot 5190 Santos Dumont.

Naquela semana de comemorações natalinas, a passagem dessas aeronaves já não era nenhuma novidade no Rio Grande do Norte, que desde 1927 recebia com crescente frequência variados tipos de aviões e hidroaviões. No começo a maioria delas se destinava a bater recordes, superar limites aéreos e transformar seus pilotos em figuras de destaque na mídia internacional, mas nos últimos anos Natal vinha assistindo um intenso tráfego de aeronaves que transportavam passageiros e, principalmente, o rentável transporte de cartas e encomendas. Na época esse era o principal negócio do avião comercial, pois vivia-se em um mundo que nem sequer imaginava algo como a internet e os e-mails.

Quem pilotava o Santos Dumont era o francês Jean Mermoz, um homem de 34 anos, alto, forte, com pinta de ator de cinema e que em 1935 era muito famoso pelos seus feitos no meio aéreo. Seguramente sua maior realização foi a primeira travessia comercial do Atlântico Sul, fato ocorrido entre os dias 12 e 13 de maio de 1930, quando Mermoz, acompanhado do copiloto Jean Dabry e do navegador Léopold Gimié, voaram os 3.200 km de distância entre Saint-Louis-du-Senegal e Natal, com 130 quilos de correspondência, em 21 horas e 30 minutos. Realizaram a proeza em um hidroavião monomotor Latécoère 28-3, pintado de vermelho, com a matrícula F-AJNQ.

Mesmo com todo esse movimento aéreo sobre os céus de Natal, que naquela época repercutia em todo o meio aeronáutico mundial, a verdade é que a chegada do hidroavião Santos Dumont, mesmo com seu piloto famoso, pouco chamou a atenção dos natalenses. A razão foi uma convulsão política que se iniciou na capital potiguar e mexeu com todo o Brasil.

Quartel da Força Policial, conhecido como “Quartel de Salgadeira”, em Natal, após ser metralhado durante a Intentona Comunista – Foto – toxina1.blogspot.com

Deflagrada exatamente um mês do Santos Dumont chegar a Natal, a chamada Intentona Comunista foi iniciada por militares do 21º Batalhão de Caçadores e deixou a comunidade local extremamente chocada com os saques, ataques, tiroteios e mortes. Depois de iniciada em Natal, os comunistas deflagraram outras ações no Recife e no Rio de Janeiro, mas todas foram controladas por forças federais legalistas em pouco tempo. Apesar da derrota dos comunistas, um mês depois as movimentações em decorrência dessa crise ainda ocorriam na cidade. No sábado e no domingo antes da chegada do hidroavião Santos Dumont, respectivamente deixaram Natal os militares do 20º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro e os membros do Regimento Policial da Paraíba (A República, Natal, 22/12/1935).

Apesar de toda essa situação, uma das pessoas transportadas pelo Santos Dumont chamou atenção da imprensa natalense e nacional quando desembarcou. Era uma mulher de baixa estatura, com 37 anos de idade, esbelta, de olhos vívidos e claros, com um sorriso franco e aberto. Era a aviadora francesa Maryse Bastié, que tal como Mermoz já era famosa no final de 1935 pelos seus inúmeros feitos aeronáuticos.

Notícia da primeira chegada de Maryse Bastié a Natal.

Mas o que Mademoiselle Bastié veio ver na pequena Natal, então com cerca de 40.000 habitantes, viajando com um dos pilotos mais famosos do mundo, através de uma rota longa e perigosa?

E o mais importante, quem era Maryse Bastié?

Outra nota da primeira chegada de Maryse Bastié a Natal.

A Operária Que se Tornou Aviadora

Atualmente Maryse Bastié é seguramente a mulher mais importante e famosa na história aeronáutica francesa, sendo muito lembrada como uma das mulheres mais arrojadas e destemidas pioneiras na área da aviação. Mas o início de sua vida não foi nada fácil e sua chegada ao comando de um avião foi uma luta constante e dura, principalmente quando compreendemos a situação das mulheres nas primeiras décadas do século XX.

Nascida Marie-Louise Bombec, no dia 27 de fevereiro de 1898, na cidade de Limoges, no centro-oeste da França, a jovem era oriunda de uma família muito humilde, mas que conseguiam sobreviver com algum conforto, pois seu pai, Joseph Bombec, era um operário especializado com a função de ferreiro (outros apontam que ele seria um moleiro). Já sua mãe, Céline Filholaud, era uma mulher amorosa, dona de casa e mãe de oito filhos.

Limoges cidade natal de Maryse Bastié no início do Século XX.

Infelizmente Marie-Louise ficou órfã de seu pai em 1908, que faleceu de tuberculose, sendo sua família obrigada a deixar casa paterna para viver em um pequeno ambiente na periferia de Limoges. A menina deixou a escola e começou a trabalhar aos 13 anos como uma modesta costureira de couro, em uma fábrica de calçados.

Ela detestava o trabalho repetitivo e realizado em condições complicadas. Buscou então refúgio nos livros, lendo tudo que aparecia na sua frente, principalmente clássicos e romances. Existe a informação que em 1914 Marie-Louise passou a trabalhar como costureira em uma fábrica de roupas militares. Ainda durante a Primeira Guerra houve outra perda para a jovem operária – em 1916 seu irmão Pierre Bombec é morto nas trincheiras.

Operárias francesas no início do Século XX.

Talvez em meio a todos esses momentos extremos foi que Marie-Louise, com apenas 16 ou 17 anos, mesmo contra os conselhos de sua mãe, casou-se com o pintor de porcelanas Jean Baptiste Gourinchas, de 18 anos. Dessa união nasce um filho chamado Germain. Em meio a muitas crises, em pouco tempo ela pediu o divórcio de Gourinchas.

A partir de 1919 Marie-Louise Gourinchas trabalhou como datilografa na Companhia de Eletricidade de Limoges. É provável que nesse ponto de sua vida, aquela jovem mãe divorciada poderia ter continuado sua existência marcada unicamente pela dura luta pela sobrevivência, em meio a fortes preconceitos pela sua situação, em uma França que se recuperava dos flagelos da Primeira Guerra Mundial. Mas a mudança em sua vida ocorreu quando Marie-Louise se uniu ao ex-piloto militar Louis Bastié, um amigo que ela conseguiu através de troca de correspondências no final da Primeira Guerra Mundial.

Foi ao lado desse veterano que ela descobriu a paixão pela aviação. Mas antes de alçar voo, Marie-Louise administrou uma loja de sapatos na cidade de Cognac, certamente utilizando a experiência adquirida na fábrica de sapatos. Mais tarde, seu marido retornou ao exército francês na função de instrutor de voo em Bordeaux-Mérignac, um dos mais antigos aeroportos em atividade na França. A convivência com Louis e o meio aéreo proporcionaram à jovem Marie-Louise Bastié vários voos como passageira em pequenos biplanos de instrução.

O ambiente de hangar, com aeronaves, mecânicos e pilotos, se tornou normal para Maryse Bastié na década de 1920.

O movimento aéreo de Bordeaux-Mérignac encantou Marie-Louise e a área se torna o seu “playground”, onde passeia entre os hangares, aviões em manutenção e motores sendo consertados pelos mecânicos. Não demorou e aprendeu a voar com o instrutor Guy Bart, amigo do seu marido, obtendo sua licença de voo em 29 de setembro de 1925.

Apenas uma semana depois de conseguir esse documento, ela elabora um plano para realizar sua primeira proeza aérea e assim mostrar suas habilidades, atrair a atenção de um possível empregador nessa área e também da mídia. Nos comandos de um frágil biplano Caudron G3, Marie-Louise conseguiu passar com essa aeronave abaixo dos cabos que ligavam as duas enormes pilastras de ferro de uma ponte inacabada em Bordeaux e chamada Pont Transbordeur de Bordeaux. A jovem aviadora realizou esse voo diante de uma multidão de curiosos, sobre o Rio Garonne.

O frágil biplano Caudron G3, Marie-Louise abaixo dos cabos que ligavam as duas enormes pilastras de ferro sobre o Rio Garonne.

Bem, quem olhar a foto acima pode até pensar que esse voo não foi lá essas proezas todas em termos de dificuldades. Mas não podemos esquecer que no comando da pequena aeronave estava uma mulher, que então vivia na moderna e tão decantada França, um país onde em 1925 as mulheres nem sequer votavam e só podiam abrir um negócio com o consentimento do marido. Logo, no dia 13 de novembro, essa mesma mulher voou de Bordeaux a Paris em seis etapas. Essa foi sua primeira viagem aérea.

No ano seguinte uma nova e trágica reviravolta ocorre na vida de Marie-Louise, pois seu companheiro Louis morreu diante de seus olhos no dia 15 de outubro de 1926, durante um voo de teste.

Longe de desanimar e para ganhar dinheiro ela realizou vários voos de publicidade, participou de um rally aéreo e realizou ousadas acrobacias diante de multidões em variados eventos. É nessa época, talvez motivada por questões comerciais, que ela deixou de lado seu nome de batismo e passou a assinar Maryse Bastié.

Voos Entre Glórias e Tristezas

Com o dinheiro arrecadado em seus trabalhos aéreos, mesmo em meio a muitos sacrifícios, Maryse conseguiu adquirir em 1929, por empréstimo, um Caudron C.109 de dois lugares. Era um avião utilitário leve, com pequeno motor Salmson de 40 hp, que ela batizou de “Trotinette” (Patinete).

O Caudron C.109 que Maryse Basté batizou de “Trotinette” (Patinete).

Apesar desse avião não ser mais que um simples “teco-teco”, Maryse conseguiu realizar um recorde de voo de larga duração para mulheres em 27 de julho de 1929. Em parceria e com o apoio financeiro fornecido pelo piloto Maurice Drouhin, ela decolou de Paris e chegou até a cidade alemã de Treptow-sur-Rega, na região da Pomerânia Ocidental, cobrindo a distância de 1.058 km em 26 horas e 47 minutos. Por esta conquista, Maryse e Drouhin receberam um total de 25.000 francos. Drouhin e um mecânico morreram pouco depois, em agosto de 1928, durante um voo de teste com um avião Couzinet 27, em Paris-Le Bourget.

Ainda em 1929, Maryse Bastié realizou um voo onde circulou o Aeroporto Le Bourget de Paris por longas 26 horas e 48 minutos, quebrando o recorde de duração de voo solo para mulheres.

Pouco tempo depois Lena Bernstein, uma descendente de russos nascida em Leipzig, Alemanha, e morando na França, ficou mais tempo voando em circuito fechado que Maryse. Em 30 de setembro de 1930 a francesa deu o troco, quando voou o seu avião leve Klemm L 25, de fabricação alemã, por 37 horas e 55 minutos, estabelecendo um novo recorde de duração de voo solo feminino. Ela lutou contra o frio, a falta de sono, fumaça do escapamento do motor e quase caiu exausta. Consta que nesse voo, para ficar desperta após mais de 24 horas no ar, ela borrifou água de colônia nos olhos, que arderam enormemente, mas o sono passou na hora. Uma multidão de parisienses lhe acolheu após o pouso.

Logo Maryse retorna as primeiras páginas dos jornais em todo mundo com um voo sensacional de longa distância, estabelecendo um novo recorde internacional de voo em linha reta para aviões monopostos, pilotado de forma solitária e por uma mulher. Entre os dias 28 e 29 de junho de 1931 Maryse decolou de Paris e seguiu até o centro da antiga União Soviética, mais precisamente na localidade de Yurino, perto da cidade de Nizhny Novgorod, onde percorreu 2.976 km, em mais de 30 horas de voo, a uma velocidade média de 97 km/h.

Por esse feito Maryse Bastié recebeu do governo francês a Cruz de Cavaleiro da Legião de Honra, foi agraciada pela International League of Airmen com o International Harmon Trophy como “a melhor aviadora do mundo” (atribuído pela primeira vez a uma francesa) e foi condecorada pelo governo soviético com a Ordem da Estrela Vermelha. 

Nada mal para uma mulher nascida em um lar humilde, que foi uma operária em uma fábrica de calçados, com várias perdas pessoais ao longo de sua vida, sem títulos acadêmicos, mas com muita coragem e determinação para seguir adiante.

A partir de então, ela conseguiu viver da renda que ganhava pilotando seu próprio avião e da publicidade.

Em 1934, seu compromisso tomou um rumo mais político e militante: Maryse uniu forças com as aviadoras Hélène Boucher e Adrienne Bolland e apoiaram a associação “La femme nouvelle” (A nova mulher). Fundada em 1934 pela política, feminista, escritora e jornalista Louise Weiss, essa entidade visava o sufrágio feminino e o fortalecimento do papel da mulher na vida pública francesa. Vale lembrar que a França foi um dos primeiros países no mundo a instaurar o sufrágio universal masculino, mas um dos últimos da Europa onde as mulheres puderam escolher livremente seus representantes políticos, fato que só aconteceu em outubro de 1945, após o fim da ocupação alemã.

O ano de 1935 para Maryse Bastié se iniciou promissor e com muitos planos. Ela e o amigo piloto Guy Bart fundaram uma escola de voo na área do Aeroporto de Orly, ao sul de Paris. É quando um duro golpe do destino lhe atingiu novamente – Em 6 de junho de 1935 faleceu no hospital de Bizerte, Tunísia, seu filho Germain, que estava a serviço da marinha francesa. Tinha apenas 20 anos de idade e morreu de febre tifóide. 

Provavelmente devido a toda essa situação, o desenvolvimento da escola durou pouco. Mas foi nessa ocasião, talvez buscando dar uma nova guinada em sua vida e fugir das tristezas, que Maryse Bastié começou a planejar seu voo que a traria a Natal e ao Brasil, superando para isso o temido Atlântico Sul.

Atravessando o Vasto Oceano

Outra imagem do hidroavião Santos Dumont.

Com a ajuda do amigo Jean Mermoz, a aviadora conseguiu em 23 de dezembro de 1935 uma vaga a bordo do hidroavião Bleriot 5190 Santos Dumont, onde realizou o voo completo e aprendeu todos os detalhes existentes sobre a rota do Atlântico Sul. Mermoz já havia realizado dezenas de vezes esse mesmo trajeto e disse a Maryse que naquela viagem ela era “o terceiro piloto” da aeronave. A aviadora permaneceu em Natal até os primeiros dias de 1936 e retornou a Paris pela Air France.

O interessante sobre esse voo preliminar de Maryse Bastié a Natal é que entre os vários aviadores famosos que utilizaram a capital potiguar durante o período clássico da aviação mundial, homens e mulheres de quase duas dezenas de nações, Bastié é um dos poucos aviadores que realizou um voo preliminar atravessando o Atlântico Sul, para só então realizar seu trajeto com maior segurança.

Avião Caudron Simoun, nesse caso um modelo C630, preservado na França.

Durante o ano de 1936 Maryse Bastié vai preparando detalhadamente o seu voo que a traria novamente a Natal. O avião escolhido foi o Caudron Simoun C635, uma aeronave monomotor para quatro passageiros, trem de pouso fixo, sendo o primeiro avião de sua categoria a voar a mais de 300 km/h. Foi um sucesso instantâneo de vendas e só a Força Aérea Francesa encomendou 490 aeronaves.

Foi o Governo da França, através do Ministério do Ar, cujo titular era Pierre Cot, quem lhe cedeu a aeronave, em meio a muita papelada e burocracia. No entanto, o ministro Cot nem sempre apreciou os serviços de Maryse Bastié. Quando essa aviadora, no auge de sua fama, pediu um emprego na aviação civil, Cot lhe disse que era muito cedo para “ver em larga escala conquistas iguais na aviação para homens e mulheres!”.

O avião Caudron Simoun C635 tinha basicamente 8,70 metros de comprimento, 10,40 m. de envergadura e 2,25 m. de altura. Em termos de extensão, era mais ou menos do tamanho de um micro-ônibus comum. Possuía um motor Renault Bengali 6Q de seis cilindros em linha, refrigerado a ar, com cerca de 160 kW (220 hp) de potência contínua. Maryse ainda realizou alguns voos de testes e tudo funcionou normalmente.

A aeronave não recebeu maiores alterações para o voo sobre o Atlântico Sul. A mais significativa foi buscar internamente mais espaço para acomodar um tanque de gasolina de 890 litros e ampliar a autonomia de voo. Aí foram retirados dois assentos cobertos de couro vermelho, dos quatro normalmente existentes. 

Quando os preparativos para o seu voo estavam na reta final, Maryse Bastié e a França foram atingidos por uma nova tragédia – Jean Mermoz desapareceu no Atlântico Sul.

Hidroavião quadrimotor Latécoère 300 que desapareceu com Jean Mermoz e toda tripulação em dezembro de 1936.

Em 7 de dezembro de 1936 Mermoz partiu de Dakar para Natal com outros quatro tripulantes em um hidroavião quadrimotor Latécoère 300, que possuía o registro F-AKGF, era batizado como Croix-du-Sud (Cruzeiro do Sul) e realizava seu 25º voo cruzando o Atlântico. Sabe-se que menos de uma hora depois de sair de Dakar, a tripulação confirmou por rádio que estavam enfrentando um problema técnico com o motor traseiro direito e que retornavam, onde amerissaram sem alterações. Vários controles foram feitos nesse motor, sendo detectado um vazamento de óleo e se concluiu que aquela máquina deveria ser trocada. Como não havia um motor sobressalente disponível, a tripulação fez uma limpeza completa e decolou novamente de Dakar.

Outra imagem do Latécoère 300 que desapareceu com Jean Mermoz.

Quatro horas depois a estação de rádio recebeu uma mensagem curta em código Morse, onde foi informado que Mermoz teve de cortar a energia do motor traseiro esquerdo da aeronave. A mensagem foi interrompida abruptamente e nada mais foi recebido. Apesar das buscas realizadas, o hidroavião e os tripulantes desapareceram e nenhum vestígio foi encontrado!

O desaparecimento de Jean Mermoz é vivido na França como um desastre nacional. Certamente chocada com toda situação, Maryse decidiu batizar de Jean Mermoz seu pequeno Caudron Simoun, como uma homenagem ao seu amigo e grande aviador. Um jornal carioca informou que ela só batizou a aeronave após pedir permissão à mãe de Mermoz e a pintura com o nome do finado aviador teria ocorrido em Natal (Correio da Manhã, Rio, 13/01/1937, P. 3).

Pintura do nome de Jean Mermoz no avião de Maryse Bastié, que teria sido feito em Natal.

Apesar de toda expectativa, Maryse avança no seu intento. Em 19 de dezembro de 1936 ela chegou a Dakar e começou a preparar sua travessia.

Existe uma informação, proveniente de um documentário francês sobre Maryse Bastié, afirmando que quando estava tudo pronto para o voo, a aviadora ficou aguardando em Dakar a chegada de um hidroavião da Air France proveniente de Natal, cuja tripulação lhe transmitiu informações de última hora sobre as condições do tempo ao longo do grande trajeto. Qual foi esse hidroavião e quem eram seus tripulantes?

Bem, olhando os jornais da época, sabemos que naquela última semana de 1936 estiveram entre Natal e Dakar duas aeronaves. Uma foi o avião Farman F 2200, matrícula francesa F-AOXE, batizado como Ville de Montevideo e pilotado por Henri Guillaumet, sendo ele o único tripulante informado pelos jornais. Guillaumet foi um grande amigo de Jean Mermoz e com esse mesmo avião realizou várias buscas quando o famoso piloto sumiu no Atlântico Sul (Jornal Pequeno, Recife, 22/12/1936, P. 2). A segunda aeronave foi outro Farman F 2200, com a matrícula francesa F-AOXF, batizado como Ville de Mendoza, sendo pilotado por Fernand Rouchon, tendo como copiloto Henri Delaunay, navegador Léopold Gimié, radiotelegrafista Paul Comet e o mecânico Pichard (A Ordem, Natal, 23/12/1936, P. 3).

Não sabemos qual desses aviões chegou a Dakar, mas certamente os tripulantes transmitiram à aviadora francesa que o Atlântico Sul estava tranquilo, calmo e que ela iria ter uma travessia exitosa. Pois foi exatamente isso que aconteceu!

O Caudron Simoun C635, a simples e prática aeronave utilizada pela aviadora Maryse Bastié no seu trajeto entre Dakar a Natal.

Voo Tranquilo, Onde Comeu Alguns Damascos

Na manhã de 31 de dezembro de 1936 ela decolou o Caudron Simoun C635 prateado e com detalhes em vermelho. Afora a partida de Dakar, quando voou através de neblina e nuvens de tempestade, e na chegada ao Brasil, quando ventos fortes provocaram uma pequena alteração de rumo, o voo foi uma tranquilidade só.

Mesmo com esse desvio no final, Maryse completou o trajeto através do Atlântico Sul em doze horas e cinco minutos, tendo percorrido 3.173 quilômetros, a uma velocidade média de 264 quilômetros por hora. Para navegar no seu minúsculo avião Maryse Bastié contava apenas com uma bússola e ela foi uma hora mais rápida que o voo da bela aviadora Jean Batten, da Nova Zelândia, recordista anterior nessa travessia.

O avião original de Maryse Bastié.

Eram depois das quatro da tarde quando o Caudron Simoun C635 chegou em Natal, vindo do litoral norte e não da direção leste, do meio do Atlântico.

Ao sobrevoar a capital dos potiguares Maryse realizou algumas evoluções durante vários minutos (Correio da Manhã. Rio, 31/12/1936, P1). Mas ela não estava interessada em proporcionar aos natalenses um pequeno espetáculo das capacidades de sua aeronave. Provavelmente Maryse se apresentava para seus amigos da Air France, que tinham escritório no Bairro da Ribeira, na Avenida Tavares de Lira, número 32, mostrando que a travessia havia sido um sucesso.

Propaganda com o endereço da Air France em Natal.

Outra possibilidade para essas evoluções seria a busca visual da linha ferroviária da Great Western, que seguia em direção sul. Aquela referência era crucial para a localização do Campo dos Franceses, também conhecido como Campo de Parnamirim, e local do pouso. Vale lembrar que na primeira ocasião que Maryse veio a Natal ela desembarcou em um hidroavião no Rio Potengi e não em Parnamirim.

Situação similar já havia acontecido em 5 de julho de 1928, quando os italianos Arturo Ferrarin e Carlo Del Prete pretendiam realizar um voo direto de Roma até o Rio de Janeiro, mas só deu para chegar ao Rio Grande do Norte. Ao sobrevoarem Natal, os dois italianos viram as pessoas acenando nas ruas, mas devido ao tempo nublado eles não conseguiram localizar a linha do trem para o sul. Com o combustível acabando e o céu fechado, a dupla decidiu procurar um local para aterrissar seu belo avião Savoia-Marchetti S-64. Só encontraram um ponto adequado perto da então vila de pescadores de Touros, a 70 km ao norte de Natal, bem onde o litoral do Brasil faz uma curva de quase 90º.

Mas provavelmente para Maryse Bastié os círculos realizados com sua aeronave sobre Natal deram certo, pois ela viu o que precisava ver e desapareceu rumo ao sul.

Segundo um jornal recifense (Jornal Pequeno, 05/01/1937, P. 1), que tinha na pista do Campo de Parnamirim um correspondente chamado Dória Correia, a primeira coisa que Marysé Bastié fez após pousar foi perguntar se teria “batido o recorde de Jean Batten? “. Ao ser informada que sim, as pessoas presentes gritaram “vivas” a ela e a França. Ela estava eufórica e comentaram o extremo carinho que Maryse demonstrava pela sua aeronave. Pouco tempo depois, ainda no campo de pouso, foi aberta uma champagne para comemorar seu voo, o novo recorde e antecipar a festa de comemoração da passagem de ano. Lhe perguntaram se durante o grande trajeto ela se alimentou e a sua resposta foi “Seulement Quelques abricots” (Apenas alguns damascos).

Ao correspondente Dória ela afirmou que durante a finalização do voo, devido aos fortes ventos, ela desviou a rota entre 96 a 100 milhas para o norte, visualizando o primeiro ponto do litoral potiguar na altura do Cabo de São Roque, atualmente parte do município de Maxaranguape, 40 km ao norte de Natal. Essa situação causada pelo vento deve ter relação com as chuvas que caiam nos estados nordestinos naquele fim de 1936, pronunciando que o novo ano seria de boas chuvas. Por essa razão ela chegou à cidade vindo do litoral norte.

Maryse Bastié então passou onze dias na capital potiguar, aguardando novas ordens do Ministério do Ar da França e saber os desdobramentos sobre a sua viagem. Nessa espera, sabemos, mesmo sem maiores detalhes, que Maryse Bastié foi extremamente bem recebida e chegou a ir até as praias da cidade, onde se encantou com os coqueirais que existiam.  

Outra notícia que foi divulgada enquanto a aviadora se encontrava em terras potiguares foi que ela teria recebido ordens de “retornar a França” e que um “alto commerciante” de Natal compraria o avião.

Mas quem seria esse abonado natalense?

Bem, Manoel Machado e Fernando Pedroza (um grande amante da aviação), já tinham falecido anos antes e foram os homens daquele tempo que tinham muito dinheiro no Rio Grande do Norte. Não foi esclarecido pelos jornais quem poderia ser o nababo que pretensamente iria adquirir o Caudron Simoun C635. Pessoalmente acredito que no final das contas essa notícia era falsa. Nota especulativa para vender jornal. Um “fake”, como se diz hoje em dia.

Uma outra notícia, veiculada em um jornal carioca, mostra algo curioso e um tanto inusitado durante o período que Maryse Bastié ficou em Natal.

Quando alguns dias depois que ela desembarcou no Rio, os jornalistas notaram que seu capacete branco, no tradicional estilo colonial francês e muito utilizado naquela época pelos gauleses na África e na Ásia, se encontrava faltando um botão de metal grosso e estava cheio de buracos de balas de pequeno calibre, acompanhados de assinaturas e setas desenhadas marcando esses buracos. Evidentemente que essa situação chamou a atenção dos jornalistas cariocas, que lhe cobriram de perguntas. A resposta da aviadora foi que um dia os seus amigos da Air France em Natal resolveram utilizar seu capacete como alvo para “tiros de carabina”. Quem abria um buraco no chapéu fazia uma seta e assinava o nome, mostrando quem realizou o disparo. Como o chefe da Air France não acertou o alvo, arrancou o grosso botão que ficava no alto do capacete.

Apesar da ida às praias, da falsa notícia da venda do avião e do “tiro ao alvo no capacete”, olhando os jornais natalenses não encontramos maiores informações sobre a presença de Maryse Bastié na cidade. Isso pode caracterizar um extremo isolamento quando ela aqui esteve, talvez preocupada em se expor enquanto o governo de sua nação decidia o que fazer com ela e com o avião, em meio a um Brasil cheio de problemas políticos.

Não podemos esquecer que em 21 de março de 1936 o Presidente Getúlio Vargas havia assinado o Decreto nº 702, que colocou todo o país em “Estado de Guerra”, que conferia ao chefe de Estado poderes extraordinários, só concedidos em tempo de guerra, e que normalmente seriam prerrogativas do Legislativo. Inicialmente essa situação tinha vigência inicial de 90 dias, mas se estendeu até meados de junho de 1937.   

Autorização para o voo de Maryse Bastié, mas sem máquina fotográfica.

Certamente após acertos entre os diplomatas do seu país e o governo brasileiro, Maryse Bastié foi autorizada a seguir viagem. O governo tupiniquim liberou para que a aviadora francesa pudesse voar sobre nosso litoral, entre Natal e o Rio de Janeiro, realizando uma parada para reabastecimento e descanso em Caravelas, na Bahia, mas exigiu que ela não levasse nenhum “apparelho photographico”. E essa ordem veio diretamente do poderoso Ministério da Guerra, cujo ministro era o general Eurico Gaspar Dutra, futuro Presidente do Brasil.

Maryse Bastié no Rio.

Maryse Bastié deixou Natal em direção ao Rio no dia 11 de janeiro de 1937, decolando por volta das cinco e meia da manhã. As oito e quinze estava sobrevoando Recife e as onze e meia se encontrava sobre a cidade baiana de Caravelas, onde aterrissou e pernoitou. No dia 12, pelas seis da manhã ela decolou e seguiu direto para o Rio de Janeiro, pousando no mítico Campo dos Afonsos às nove e meia, onde foi festivamente recebida e passou vários dias na então Capital Federal.

O voo de Maryse Bastié no pequeno Caudron Simoun C635 foi um sucesso!

Maryse no Rio.

Memórias de Natal Junto Com o Deputado Dioclécio Duarte

Maryse Bastié retornou à França a bordo de uma aeronave da Air France, sendo triunfantemente recebida em casa. Ainda em 1937 ela recebeu do governo do seu país o grau de “Oficial da Legião de Honra”. Pelo governo brasileiro a aviadora recebeu a Ordem do Cruzeiro do Sul, a maior honraria concedida pelo nosso país. Maryse recebeu a medalha brasileira na antiga sede da Embaixada do Brasil na França, na Avenue Montaigne, 45, das mãos do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas. O mesmo Souza Dantas que se notabilizaria tempos depois, durante a Segunda Guerra, por ter concedido centenas de vistos diplomáticos que salvaram a vida de inúmeros fugitivos dos nazistas, principalmente judeus, mesmo contrariando ordens do Governo Brasileiro.   

O colar que Maryse Bastie utiliza, com uma grande estrela, é a Ordem do Cruzeiro do Sul, que essa aviadora fazia questão de utilizar.

Mas voltando a Maryse Bastié, a simpática piloto não se acomodou no seu retorno à França. Logo conseguiu do governo do seu país o apoio para realizar, entre novembro de 1937 até março de 1938, uma turnê de palestras em vários países da América do Sul, utilizando um avião como meio de transporte.

Existe a informação que ela quis realizar esses voos com o mesmo avião com que conseguiu atravessar o Atlântico Sul, mas apuramos que esse valente aviãozinho deixou Natal em uma data indeterminada e seguiu provavelmente para o Rio de Janeiro, onde ficava a sede da Air France no Brasil e a Embaixada da França. De lá, por razões desconhecidas, seguiu para Montevidéu, capital do Uruguai. Consta que Maryse Bastié foi atrás da aeronave em um aeroporto uruguaio, mas o encontrou bastante deteriorado, sem condições de utilização e daí fez uso de outro avião. 

Após o seu retorno à França, as nuvens negras da Segunda Guerra Mundial surgiram no horizonte e em 1 de setembro de 1939 o conflito teve início.

Nazistas em Paris.

Maryse e outras três mulheres pilotos foram voluntárias da Força Aérea Francesa, realizando voos para levar aviões para a frente de combate, mas sem reconhecimento oficial. Somente oito meses depois, em 27 de maio de 1940, foi quando surgiu um decreto que autorizou a criação de um corpo feminino de pilotos auxiliares e Maryse recebeu a patente de segundo tenente. Mas a sua designação hierárquica na força aérea do seu país teve vida muito efêmera, pois menos de um mês depois, em 22 de junho, a França se rendeu oficialmente a Alemanha Nazista.

Na sequência Maryse ofereceu seus serviços à Cruz Vermelha, em particular aos prisioneiros franceses agrupados no Campo de Deportação de Drancy, um infame campo de concentração temporário a poucos quilômetros ao norte de Paris. Junto com suas atividades na Cruz Vermelha, ela coletava informações das atividades dos inimigos para a Resistência Francesa que lutava contra a ocupação nazista. Ainda em Drancy, em uma ocasião que um trem partiu para a Alemanha, ela é brutalmente empurrada por uma sentinela inimiga e fratura o cotovelo direito, que lhe deixou com uma deficiência permanente e Maryse não conseguiu mais pilotar.

Libertação de Paris pelas forças Aliadas.

Após a libertação de Paris em 1944, ela se juntou ao Corpo Auxiliar Feminino da Força Aérea e voltou a ocupar o posto de tenente. Em 1947 tornou-se a primeira mulher a receber o posto de Comandante da Legião de Honra e a partir de 1951, ela trabalhou para o departamento de relações públicas de um centro de voo de testes.

No sábado, 28 de junho de 1952, Maryse Bastié se reencontrou com o Brasil e, através da presença de um natalense ilustre, certamente com as memórias da sua visita a Natal e ao Rio Grande do Norte.

Nessa data, segundo uma reportagem publicada na revista O Cruzeiro (edição 09/08/1954, P. 61 a 63) ocorreram em Paris vários eventos que celebravam a figura do brasileiro Alberto Santos Dumont. Entre os eventos houve um jantar no restaurante La Coupole, no bairro de Montparnasse, um local fundado em 1927, muito popular na capital francesa e até hoje em funcionamento. O jantar foi organizado pelo governo francês e contou com a ilustre presença de Vicent Auriol, então Presidente da França, além de vários ministros, muitas autoridades e celebridades, entre elas a aviadora Maryse Bastié.

Da parte do Brasil muitas autoridades estavam presentes, entre eles o brigadeiro Nero Moura, então Ministro da Aeronáutica. Outro que estava lá era o deputado federal pelo Rio Grande do Norte Dioclécio Dantas Duarte, do Partido Social Democrático (PSD), que inclusive foi condecorado pelo Presidente Vicent Auriol com a Ordem Nacional da Legião de Honra da França.

Então, entre as fotos publicadas pela revista O Cruzeiro, vemos Maryse Bastié em um animado papo com o deputado Dioclécio Duarte, que era fluente em francês (além de inglês, alemão e italiano). A aviadora trazia ao pescoço a sua Medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul.

Sobre o que falaram? Não sei! Mas provavelmente lembraram a passagem de Maryse por Natal entre o final de 1936 e o início de 1937, quando aqui ficou onze dias. Talvez o deputado tenha comentado como Natal havia mudado depois da presença das tropas americanas durante a Segunda Guerra, ou outros temas quaisquer. Talvez tenha sido uma noite com ótimos e interessantes momentos de memórias e recordações!

Apenas oito dias depois desse encontro, Maryse Bastié morreu carbonizada em um trágico acidente aéreo.

Ela que já havia voado milhares de quilômetros sem acidentes graves, perdeu a vida em 6 de julho de 1952, aos 54 anos, em voo no aeroporto de Lyon-Bron. Ela morreu após a queda de uma aeronave de transporte de dois motores Nord 2501 Noratlas, da Força Aérea Francesa. O avião caiu de uma altura de cerca de 200 metros e toda a tripulação de cinco pessoas também pereceu.

A famosa aviadora foi enterrada em Paris, no Cemitério de Montparnasse, onde seu túmulo permanece até hoje. Na França, muitas escolas – por exemplo, em sua cidade natal Limoges, levam o nome de Maryse Bastié. Em 1955 ela foi homenageada com seu retrato em um selo postal francês.

Natal não esqueceu de Maryse Bastié. Em janeiro de 1972 o engenheiro Ubiratan Pereira Galvão, então Prefeito de Natal, acatando um pedido do vereador Antônio Félix, que na época era o Presidente da Câmara de Vereadores de Natal, solicitou que uma rua ainda pouco habitada do bairro de Lagoa Nova se chamasse Maryse Bastié. E assim foi feito. Atualmente essa é uma das principais artérias desse bairro, um dos mais valorizados da capital potiguar.

A ESPIONAGEM EM NATAL E PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL – O CASO DO ENGENHEIRO PERNAMBUCANO QUE TRABALHOU PARA OS NAZISTAS

Rostand Medeiros – Escritor e membro do IHGRN

Muitos hoje desconhecem a importância estratégica do Brasil durante o maior conflito bélico da humanidade. Além de grande fornecedor de matérias primas e materiais de alto valor estratégico o Brasil possuía alguns locais de extrema importância geográfica para uso da aviação e das forças navais, caso principalmente de Natal e Recife. 

Não é surpresa que antes mesmo da entrada do Brasil na conflagração, os nazistas já tinham olhos postos e muito atentos sobre o território nacional. Foi o Abwehr, uma organização de inteligência militar alemã que existiu entre 1920 a 1945, que cumpriu esta missão. O objetivo inicial da Abwehr era a defesa contra a espionagem estrangeira – um papel organizacional que mais tarde evoluiu consideravelmente, principalmente após a ascensão dos nazistas ao poder em 1933. Esta organização sempre esteve muito próxima ao Comando Supremo das Forças Armadas (Oberkommando der Wehrmacht – OKW) e do próprio Adolf Hitler, com seu quartel general em Berlim, adjacente aos escritórios do OKW.

Vice-almirante Wilhem Canaris, chefe do Abwehr.

Quem comandou por nove anos a Abwehr foi o vice-almirante Wilhem Franz Canaris. Considerado até os dias atuais como uma verdadeira lenda e um dos indivíduos mais interessantes e misteriosos da história da Segunda Guerra Mundial. Canaris nasceu em 1 de janeiro de 1887 em Aplerbek, Alemanha.

Jovem ainda começou a carreira naval e tornou-se oficial da Marinha. Era considerado como um homem inteligente, dinâmico, que havia viajado muito e conhecia seis línguas, inclusive o português. Foi comandante de submarinos na Primeira Guerra Mundial e, apesar da rivalidade entre as duas nações, tinha grande respeito pela Marinha Real da Grã-Bretanha, a Royal Navy.

Sob a direção de Canaris a Abwehr se tornou uma vasta organização de informações que incluía uma grande rede de espionagem em numerosos países estrangeiros, utilizando extensamente as missões diplomáticas alemãs. Essa rede foi primeiramente organizada em países que eram considerados os prováveis adversários da Alemanha do novo conflito que surgia no horizonte, principalmente a Grã-Bretanha. Depois a rede foi implantada em locais de forte significação estratégica no Hemisfério Ocidental.

A grande base de Parnamirim Field durante a Segunda Guerra Mundial.

Apesar do maior país da América do Sul ser considerado pela Alemanha nazista um país amigo do ponto de vista político, logo que a Guerra iniciou em 1939 o Abwehr  agiu para organizar um amplo serviço de informações em nosso país[1].

Suástica Sobre o Brasil

A espionagem alemã no Brasil esteve principalmente sob o comando de Albrecht Gustav Engels, um engenheiro que vivia no Brasil desde 1923, fugindo da crise que se abateu no seu país após a Primeira Guerra Mundial. Aqui Engels trabalhou na empresa Siemens, na Companhia Siderúrgica Brasileira e depois foi gerente da Companhia Sul-americana de Eletricidade em Belo Horizonte, sucursal da empresa alemã Allgemeine-Elektrizitäts Gesellschaft (AEG), onde alcançaria cargo de direção na América do Sul. Casou com a alemã Klara Pickardt em 1927, onde nasceu seu único filho e três anos depois se mudou para o Rio de Janeiro, a então Capital Federal.

Antes do início da guerra Engels foi com a família para três meses de férias a Alemanha e outros países europeus. Nesta viagem reencontrou em Gênova, cidade portuária italiana, um velho amigo chamado Jobst Raven, então capitão da Wehrmacht, o exército alemão, e que trabalhava na seção econômica do Abwehr. Deste contato Engels se tornou espião e passou a enviar inúmeros relatórios sobre a situação econômica, industrial e militar dos países sul-americanos e Estados Unidos. Com o início da Guerra este trabalho se ampliou bastante.

Engels (cujo codinome era “Alfredo”), com a colaboração de importantes membros da colônia alemã, que tinham cargos chaves em fortes empresas comerciais no país, começou a recrutar alemães natos, ou nascidos no Brasil, e estabeleceu se grupo de espionagem.

A organização de Engels não foi a única que operava no país, mas foi a maior e mais bem organizada. Esta rede de espionagem buscava informações variadas sobre o país, incluindo aspectos da política interna, sobre pontos estratégicos, a geografia litorânea e sobre a movimentação dos transportes. Para enviar suas informações a Abwehr sem serem descobertos os espiões germânicos em terras tupiniquins empregavam diversos recursos, tais como tinta invisível, pseudônimos, símbolos nos passaportes, códigos telegráficos, correspondência para endereços disfarçados, microfotografias e mensagens enviadas de estações de rádios clandestinas[2].

A movimentação nos portos brasileiros, como o de Santos (foto), eram alvos prioritários dos espiões nazistas no Brasil – Fonte – http://www.navioseportos.com.br/site/index.php/historia/historia-da-mm/195-a-expansao-1941-a-1989

Os melhores relatórios dos espiões de Engels tinham foco em inteligência naval e questões relativas ao tráfego marítimo. As informações vinham de tripulantes e funcionários que trabalhavam em navios e escritórios de terra das companhias marítimas nos principais portos brasileiros e incluíam vitais informações estratégicas. Graças a estes relatórios, a Kriegsmarine, a Marinha alemã, pode planejar interceptações de uma enorme quantidade de navios mercantes aliados que partiam da América do Sul.

É verdade que uma parte do serviço de espionagem de Engels era formada por espiões que estavam ligados a uma organização com algum nível de estrutura e financiadas pelo Abwehr, mas também havia muitas pessoas comuns, que atuavam de forma amadora e independente, querendo de alguma maneira ajudar a pátria distante.

Foto de várias pessoas acusadas de espionagem nazista no Brasil e publicadas no jornal Diário Carioca, de 2 de março de 1943. Entre eles temos brasileiros natos e naturalizados e cidadãos alemães. Tipos comuns, distante da ideia dos espiões criada pelo cinema.

Apesar de problemas que existiram devido ao amadorismo de vários espiões e informantes, é fato que graças às comunicações das redes de Engels, os relatórios obtidos pelos agentes nazistas na Argentina, Estados Unidos, México, Equador e Chile foram enviados para a Alemanha através de estações de rádios clandestinas brasileiras. Esta extensa rede conseguiu durante algum tempo enganar muito bem os serviços de contraespionagem britânica e norte-americana. 

O Nordeste Como Alvo 

Entre os homens que Engels conhecia com perfil para trabalharem como espiões estava Herbert Friedrich Julius von Heyer, ou Herbert von Heyer. Este era um filho de alemães nascido no Brasil em 1901, na cidade paulista de Santos, que aos quatro anos von Heyer seguiu com a família para Alemanha e chegou a lutar na Frente Russa durante a Primeira Guerra Mundial. Deu baixa do serviço militar como sargento em 1919, retornando ao Brasil quatro anos depois e desde 1938 trabalhava na sede carioca da empresa de navegação Theodor Wille & Cia.

Herbert Friedrich Julius von Heyer, ou Herbert von Heyer. Fonte – Livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, pág. 37.

Quando von Heyer esteve na Alemanha no outono de 1941, Engels avisou ao capitão Jobst Raven para encontrar, contatar e cooptar o antigo sargento para a causa. O que aconteceu sem maiores problemas e von Heyer passou a utilizar o codinome “Humberto Heyer”.

Engels e o novo colaborador começaram a trabalhar juntos no Rio, em dois escritórios conjugados de um edifício localizado na Rua Buenos Aires, 140, no Centro. Em julho daquele ano Engels informou a Berlim que von Heyer se deslocaria a Recife para recrutar possíveis colaboradores na capital pernambucana e saber das atividades dos norte-americanos na região.

Ele chegou à cidade faltando dez minutos para as cinco da tarde do dia 4 de julho de 1941, uma sexta-feira. Desembarcou do hidroavião “Caiçara”, da empresa Syndicato Condor no chamado “Aeroporto de Santa Rita”, onde então amerissavam os hidroaviões de passageiro na Bacia do Pina-Santa Rita[3].

Hidroavião em Recife – Fonte – http://www.fotolog.comtc211078575

Apesar de não possuir dados comprobatórios sobre isso, provavelmente quando o “Caiçara” sobrevoou a região do Porto de Recife, o espião Humberto deve ter visto atracados quatro belonaves de guerra da marinha dos Estados Unidos, a US Navy. Eram os cruzadores Memphis (CL 13), Cincinnati (CL 6) e os destroieres Davis (DD 395) e Warrington (DD 383) e certamente Von Heyer se questionou o que aquelas naves de guerra faziam ali. Mas aquela não seria sua única e desagradável surpresa no Nordeste do Brasil[4].

Logo o espião hospedou-se no tradicional Grande Hotel e manteve um primeiro contato com Hans Heinrich Sievert.

O Grande Hotel de Recife – Fonte – http://www.fernandomachado.blog.br/novo/?p=88384

Von Heyer passou oito dias em Recife e através do apoio de Sievert realizou várias reuniões na tentativa de angariar novos adeptos para a causa. Algumas foram produtivas e outras nem tanto. Entre estes manteve contato com o engenheiro elétrico alemão Walter Grapentin para a instalação de uma estação de rádio de ondas curtas, mas este recusou o trabalho[5].

Certamente o melhor elemento contatado por von Heyer foi Hans Sievert. Este era um alemão naturalizado brasileiro, tinha 37 anos, havia chegado ao Brasil em 1924, era casado com a alemã Wilma Korr, sendo membro destacado da tradicional comunidade germânica na capital pernambucana, além de gerente e sócio da antiga e conceituada firma Herm Stoltz & Cia. Sievert onde teve uma ascensão muito positiva na Herm Stoltz, saindo do posto de simples empregado, passando a ser gerente e finalmente sócio. Estava tão bem financeiramente que em 1932 retornou da Alemanha para o Recife no dirigível Graf Zeppelin[6].

A Herm Stoltz & Cia. era muito conceituada em todo país e muito conhecida particularmente em Pernambuco, onde eram os agentes da empresa aérea teuto-brasileira Syndicato Condor.

O Serviço em Natal

Segundo o brasilianista Stanley E. Hilton, em seu livro ““Suástica sobre o Brasil : a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944”, nesta viagem a Recife o espião von Heyer já estava sendo vigiado pelo pessoal do Federal Bureau of Investigation – FBI, a mítica unidade de polícia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Consta que o homem a serviço do Abwehr teria deixado Recife para uma rápida viagem a Natal, provavelmente em algum avião de carreira do Syndicato Condor[7].

Natal, metade da década de 1930.

Na capital potiguar ele teria se encontrado com os alemães Ernest Walter Luck, seu cunhado Hans Werbling e Richard Burgers. É provável que este encontro tenha ocorrido na casa de Luck, que servia de cônsul alemão na cidade, na Rua Trairi, 368, no bairro de Petrópolis. Todos esses alemães já eram radicados há vários anos na capital potiguar, partidários e propagandistas de primeira linha da causa nazista. Mas certamente o que deve ter impressionado o espião von Heyer em Natal foi o acentuado movimento de aviões norte-americanos, a presença de tropas brasileiras nas ruas e o imenso volume das obras desenvolvidas na construção da base aérea em Parnamirim e das bases de hidroaviões e de navios de guerra nas margens do Rio Potengi.

Aquilo era muito grave e von Heyer nem esperou seu retorno para o Rio. Antes de seguir para Fortaleza e Belém, destino final de sua viagem, ele enviou uma carta, certamente feita à base de tinta invisível, contando as preocupantes novidades ao seu chefe Engels.

Abastecimento de um C-87 em Parnamirim Field – Livro-Trampolim para a vitória, pág 129, de Clyde Smith Junior, 1993.

O que estava acontecendo em Recife e Natal, em uma das áreas mais estratégicas de todo Oceano Atlântico, certamente tinha de ser mais bem avaliado para ser informado ao Abwehr. Mas como isso poderia ser feito sem chamar atenção dos americanos?

A solução veio através de Hans Sievert, que conhecia um pernambucano com sólida formação como engenheiro, oriundo de família tradicional, com muitos contatos proveitosos e que poderia ampliar as informações do que acontecia na capital potiguar.

O escolhido foi Luiz Eugênio Lacerda de Almeida. Era filho do desembargador Luiz Cavalcanti Lacerda de Almeida e de Dona Maria Elisa. Tinha 46 anos, havia estudado no tradicional Ginásio Porto Carreiro, casou em 1922 com Maria Cândida Pereira Carneiro, tinha três filhos e residia na Avenida Beira Mar, número 3.000, em Recife. Na época ele trabalhava na Destilaria Central Presidente Vargas, pertencente ao Instituto do Açúcar e do Álcool e localizada no município do Cabo, atual Cabo de Santo Agostinho.

O engenheiro e sua esposa eram muito bem situados na sociedade pernambucana, possuindo parentesco com as tradicionais famílias Brennand e Burle, além do conde Ernesto Pereira Carneiro, empresário, político, jornalista e proprietário do respeitado Jornal do Brasil, com sede no Rio de Janeiro.

Jornais de várias partes do país também enalteceram a ligação do engenheiro pernambucano com o Integralismo, como o Diário da Tarde, de Curitiba-PR, na sua edição de terça feira, 30 de junho de 1942, pág. 1.

Segundo o jornal O Radical, do Rio, Eugênio Lacerda de Almeida havia sido Integralista e ideologicamente tinha um posicionamento favorável em relação ao Terceiro Reich de Adolf Hitler. Provavelmente isso explica a sua amizade com Hans Sievert[8].

Não existe uma comprovação da data que Eugênio Lacerda de Almeida chegou a Natal, mas se sabe que desembarcou em um voo da Panair do Brasil, pago pela Herm Stoltz & Cia. O fato deste engenheiro pernambucano haver chegado a Natal através de um voo desta empresa aérea pode explicar muito sobre sua infiltração nas obras de Parnamirim.

Ceremônia em Parnamirim Field – https://catracalivre.com.br

Em 1941 o Brasil ainda era um país neutro na Segunda Guerra e não queria de modo algum comprometer sua neutralidade. Oscilando ora para o lado do Eixo, ora com acenos aos Aliados, o regime ditatorial de Getúlio Vargas tolerou tanto as atividades dos nazistas no Brasil, quanto à construção de vários aeroportos pelos americanos. Estes aeroportos, cujos principais eram os de Belém e Natal, jamais poderiam ser construídos por militares estadunidenses. A solução encontrada pelo governo americano foi colocar em campo a Panair do Brasil, que nada mais era do que uma subsidiária da empresa aérea americana Pan American Airways, com recursos para tocar as obras vindas do ADP (Airport Development Program – Programa de Desenvolvimento de Aeroportos). Então teve início a construção das instalações destinadas a servirem como principais bases de transporte e transbordo ao longo da rota do Atlântico Sul.

Na foto vemos um Douglas C-47 Dakota em Parnamirim Field.

Evidentemente que muito dinheiro forte estava circulando em Natal, fato este que tanto atraía prostitutas, malandros e ladrões, quanto pedreiros, mestres de obras e engenheiros. Pernambuco já possuía há décadas uma escola de engenharia e alguns engenheiros ali formados convergiram para a capital potiguar atrás de dólares. Certamente a chegada de Eugênio Lacerda de Almeida a Parnamirim, vindo em um avião da Panair do Brasil, possivelmente bem trajado e distribuindo simpatia, não deve ter alertado as autoridades.

Trabalhos de construção em Parnamirim Field – Hart Preston-Time & Imagens de Vida / Getty Images.

Aliado a isso temos que pensar que ele talvez conhecesse alguém na área das obras para apresentar o trabalho que ali era realizado. Esse pretenso contato, de forma inadvertida, ou em estreita cooperação, lhe apresentou o engenheiro encarregado das obras, que lhe trouxe então as plantas da construção das pistas de aterrissagem e dos muitos locais administrativos que seriam utilizados por americanos e brasileiros. Ardilosamente Eugênio Lacerda de Almeida guardou na memória o que viu nas plantas da grande base e depois, reservadamente, desenhou um croqui com detalhes do projeto.

Foto atual da Base Naval de Natal, que teria sido espionada pelo engenheiro Eugênio – Fonte – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/portoes-abertos-base-naval-de-natal-realiza-exposicao/205460

Existe a informação que além de “visitar” as obras da base de Parnamirim, o engenheiro teria igualmente visto as obras da futura Base Naval de Natal[9]. À noite, hospedado em um hotel, ao entabular conversas com pessoas que trabalhavam nas obras em Natal, soube de detalhes dos projetos de ampliação do porto da cidade. No outro dia ele voltou a Recife a bordo do navio Cantuária[10].

Na capital pernambucana, ao se encontrar com Hans Sievert, o engenheiro Eugênio Lacerda de Almeida quis lhe reportar o que viu, mas o alemão exigiu um relatório por escrito, mas afirmou que depois o destruiria. 

Capturando Os Vermes!

Em muito pouco tempo a situação virou completamente.

Os afundamentos e os chocantes relatos dos sobreviventes levaram a um clima de intensa animosidade com a Alemanha, com manifestações em todo o país, algumas violentas, com a depredação de bens ligados a alemães, e onde se exigia que o Brasil declarasse guerra ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão), o que foi feito pelo presidente Vargas em agosto de 1942.

O afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães alterou a participação do Brasil no conflito. Foto meramente ilustrativa – Fonte – http://www.navioseportos.com.br/site/index.php/historia/historia-da-mm/195-a-expansao-1941-a-1989

Mesmo tendo vários navios afundados por submarinos alemães e com muitos de seus cidadãos mortos, O Brasil era um país que teimava em ficar em cima do muro, sem se comprometer demasiadamente na Guerra e tentava tirar vantagens dos dois lados da contenda. Mas conforme cresciam os ataques dos submarinos alemães aos navios de carga brasileiros, a revolta da população aflorou intensamente e a boa vida dos espiões alemães acabou completamente em terras tupiniquins[11].

O desmantelamento das redes de espionagem deu um enorme trabalho para o governo Vargas, que levou algum tempo para conseguir este objetivo. Mas em 25 de fevereiro de 1942 os alemães Hans Sievert e Walter Grapentin prestaram depoimentos ao então Secretário de Segurança de Pernambuco, o Dr. Etelvino Lins de Albuquerque, e ao delegado Fabio Correia de Oliveira Andrade, nas dependências da Delegacia de Ordem Política e Social, o DOPS, em Recife e eles entregaram tudo mundo[12].

Logo, para surpresa geral na capital pernambucana, um dos chamados a depor foi Luiz Eugênio Lacerda de Almeida.

Sievert confirmou que o engenheiro foi a Natal por conta da empresa Herm Stoltz & Cia, que o enviou para conhecer a obra para a empresa alemã melhor se preparar para “candidatar-se as concorrências que existiam em Parnamirim”. Uma situação completamente ilógica e ridícula diante do estado de extrema desconfiança e quase beligerância entre alemães e americanos na época.

Já Eugênio Lacerda de Almeida informou que passou apenas um dia em Natal e negou a autoria do croqui produzido sobre a base de Parnamirim. Entretanto, talvez por receio de uma acareação, se retraiu ao ser confrontado com o material e confirmou que foi ele que produziu os desenhos. Afirmou que primeiramente negou o fato por medo de se prejudicar, pois havia recebido de Hans Sievert a garantia que o material havia sido destruído. Eugênio Lacerda de Almeida comentou também que na época da feitura dos desenhos, quando o Brasil ainda se encontrava neutro, ele havia se tornado “admirador das vitórias alemãs” e na sua concepção ele não estava prejudicando o Brasil.

As estratégicas bases aéreas em Natal e Belém foram importantes na engrenagem de guerra doa Aliados no Brasil. Na foto vemos um Douglas C-47 e um Consolidated B-24 Liberator.

A situação do engenheiro foi cada vez mais se complicando, principalmente quando ele teve de explicar a origem de 50 contos de réis (50.000$000) que recebeu de Hans Sievert. Até então a ida de Eugênio Lacerda de Almeida a Natal teria sido, por assim dizer, voluntária. Mas surgiu um depósito em sua conta corrente do Banco do Povo neste valor, creditado no dia 23 de dezembro de 1941. Aparentemente um gordo presente de natal!

Espiões Nazistas que agiam em Santos, São Paulo – Fonte – http://atdigital.com.br/historiasdesantos/?p=94

Mas o dinheiro ficou depositado por seis meses, em uma espécie de conta de renda fixa que existia na época. Sievert afirmou em depoimento que entregou aquele dinheiro ao engenheiro pernambucano em confiança, sem documento comprobatório, para atender as necessidades de sua família no caso de surgirem “imprevistos contra a sua pessoa”[13].

O engenheiro Eugênio Lacerda de Almeida foi identificado, sujou os dedos quando fez sua ficha datiloscópica, fez retratos de frente e de perfil e depois saiu andando tranquilamente pela porta da rua!

Lei Frouxa! 

Ficou a cargo do Dr. José Maria Mac Dowell da Costa, Procurador do Tribunal de Segurança Nacional (TSN), analisar as provas contidas nos autos contra as pessoas acusadas de espionagem, ou de facilitação desta atividade, os chamados “Agentes do Eixo”[14].

Dr. José Maria Mac Dowell da Costa, Procurador do Tribunal de Segurança Nacional (TSN)

O Dr. Mac Dowell da Costa prometia através da imprensa que “seria inflexível no cumprimento do dever” e se algum daqueles 128 homens e mulheres pronunciados estivesse seriamente implicado nos artigos no Decreto Lei Nº 4.766, de 1º de outubro de 1942, que definia os crimes militares e contra a segurança do Estado, ele não hesitaria em aplicar a pena máxima existente – A pena de morte![15]

O nobre engenheiro Luiz Eugênio Lacerda de Almeida sofreu por parte da imprensa carioca, especialmente dos jornais Diário Carioca e O Radical, uma intensa pressão para que fosse condenado e recebesse uma punição exemplar[16]. Eugênio Lacerda de Almeida compareceu ao TSN no Rio e foi indiciado com base no Decreto Lei 431, de 18 de maio de 1938, Artigo 3º, no seu 16º inciso.

Houve forte indignação com a liberdade do engenheiro pernambucano. Manchete do jornal O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, pág. 1.

Notem os leitores que de saída o engenheiro pernambucano não foi indiciado na chamada “Lei de Guerra”, que era o Decreto Nº 4.766, de 1º de outubro de 1942, uma lei bem mais dura, mas no Decreto Lei 431, de 1938. Este na sua parte inicial era definido como “Crimes contra a personalidade internacional, a Estrutura e a segurança do Estado e contra a ordem social”. E trazia no texto do seu inciso 16º o seguinte teor “Incitar ou preparar atentado contra pessoa, ou bens, por motivos doutrinários, políticos ou religiosos; Pena – 2 a 5 anos de prisão; se o atentado se verificar, a pena do crime incitado, ou preparado”[17]. Além disso, trazendo como verdadeiro “abre alas” de sua defesa, havia dezenas de cartas de autoridades e pessoas gradas, atestando a sua conduta e de como ele era uma pessoa ilibada[18].

Quase no fim do ano de 1943, sob a presidência do ministro Frederico de Barros Barreto, natural de Recife, o TSN promulgou várias sentenças contra os acusados de espionagem e vários deles foram condenados a pena de morte, entre eles Albrecht Gustav Engels.

Aparelho achado no Rio servia para mandar informações a nazistas.

Mas para desgosto de muita gente, sedenta de sangue para vingar os mais de 1.081 mortos, em mais de 34 navios brasileiros afundados por submarinos do Eixo, nenhum dos acusados de espionagem foi parar diante de algum pelotão de fuzilamento. O Dr. Mac Dowell da Costa afirmou a um periódico mineiro que os casos que estavam chegando ao TSN eram anteriores ao reconhecimento da declaração de guerra, sendo impossível aplicar a pena de morte[19].

Esses condenados a morte tiveram a pena alteradas para 30 anos de prisão, mas muitos não cumpriram sequer dez anos pelos seus atos. O grande chefe Engels logo saiu da cadeia e foi ser funcionário, logicamente, de uma empresa alemã. No caso a Telefunken do Brasil, aonde chegou a presidência da mesma[20]. Hans Heirich Sievert e Herbert von Heyer foram condenados a 25 anos de prisão cada um. Sievert logo deixou a cadeia e aparentemente foi morar em Petrópolis, Rio de Janeiro, onde faleceu em 17 de novembro de 1979[21].

Já von Heyer penou um pouco mais. Em 1952 vamos encontrá-lo encarcerado no mítico e tenebroso presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde era considerado um preso de bom comportamento e dava aulas de inglês para o comandante da instituição prisional[22].

Não consegui apurar, mas acredito que o engenheiro Luiz Eugênio Lacerda de Almeida não passou um dia sequer na cadeia. Ele faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 1975[23].

Final Infeliz

Não causa nenhuma surpresa que a maioria dos espiões nazistas que operaram no Brasil não quis retornar para sua tão amada nação de origem após o fim da guerra. Simplesmente após o fim do conflito ninguém no Brasil se importou muito com essa gente e represálias, até onde sei, nunca aconteceram. O tempo apagou quase tudo sobre esses casos!

Já nos Estados Unidos, por exemplo, a coisa foi bem diferente. Começa que o Presidente Franklin D. Roosevelt, temeroso que um tribunal civil fosse demasiado indulgente com espiões nazistas, criou um tribunal militar especial para esse tipo de caso. Isso levou a execução na cadeira elétrica de seis espiões nazistas[24].

Já na Inglaterra foi criada a “Lei da Traição”, que após passar pelo parlamento e receber o assentimento real, tinha apenas uma sentença prioritária: a morte. Lá, Entre 1940 e 1946, dezenove espiões e sabotadores foram processados sob a Lei da Traição e executados. Um vigésimo espião – um jovem diplomata português – foi condenado à morte, mas a sua pena foi comutada para prisão perpétua após a intervenção do governo português[25].

Texto publicado originalmente no blog Papo de Cultura, do jornalista Sérgio Vilar – http://papocultura.com.br/nazista-em-natal/


NOTAS

[1] Ver os livros Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 17 a 19 e O Brasil na mira de Hitler, Roberto SANDER. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, págs. 23 a 33.

[2] Ver os livros Hitler’s Spy Chief: The Wilhelm Canaris Mystery. New York, NY, EUA: Pegasus Books, 212, págs, 23 a 45. Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 20 a 24.

[3] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de sábado, 5 de julho de 1941, pág. 2. O interessante foi que von Heyer desembarcou utilizando seu nome verdadeiro e este antigo ponto de embarque e desembarque de hidroaviões em Recife ficava localizado onde atualmente existem duas grandes torres de apartamentos, construídas pela empresa Moura Dubeux, as margens do Rio Capibaribe. Estas torres são dois edifícios de luxo de 42 andares, construídos no Cais de Santa Rita, no bairro de São José e conhecidas popularmente como as “Torres Gêmeas”. A construção das torres começou em 2005 e foi concluída em 2009, após batalha judicial com o Ministério Público Federal, que apontava irregularidades na obra. Com sua excessiva proximidade com o mar e grande altura, os prédios diferem radicalmente do entorno do bairro histórico. Sobre esse assunto ver – https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/01/obra-em-bairro-historico-inflama-debate-sobre-verticalizacao-do-recife.htm

[4] Aquelas naves em Recife estavam sob o comando do vice-almirante Jonas H. Ingran, como parte da Task Force 3, que futuramente, com a ampliação das ações de combate da US Navy no Atlântico Sul, seria designada como Fourth Fleet (Quarta Frota).

[5] Sobre o encontro entre Grapentin e von Heyer ver as declarações do primeiro para a polícia pernambucana, reproduzidas no Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de domingo, 29 de março de 1942, pág. 4 e no livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, pág. 40.

[6] A Herm Stoltz & Cia. foi uma empresa fundada em 1863, muito conceituada em todo país no transporte marítimo, com matriz no Rio e filial até na Alemanha. Era muito conhecida particularmente em Pernambuco, onde eram os agentes da empresa aérea teuto-brasileira Syndicato Condor. Já sobre as declarações de Hans Sievert para a polícia pernambucana, reproduzidas no Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de domingo, 29 de março de 1942, pág. 4. Já sobre a viagem no dirigível Graf Zeppelin, ver o Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de quinta feira, 13 de outubro de 1932, pág. 1.

[7] Segundo Stanley E. Hilton a informação da presença do espião von Heyer em Natal está inserida no relatório do FBI intitulado “Totalitarian activities – Brazil Today”, produzido em dezembro de 1942, mas sem referência de páginas. Afora isso não existe nenhum documento comprovatório da passagem deste espião por Natal. Entretanto é bastante crível sua presença na capital potiguar diante do que os americanos desenvolviam aqui em julho de 1941 . Ver o livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 40 e 41.

[8] Sobre os vários detalhes da vida de Luiz Eugênio Lacerda de Almeida ver o Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de segunda feira, 20 de fevereiro de 1922, pág. 1 e O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4.

[9] Ver Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 29 de maio de 1942, páginas 1 e 5.

[10] Eugênio Lacerda de Almeida não informou em qual hotel ficou em Natal e nem se manteve contato com os alemães residentes na cidade. Ver seu depoimento reproduzido no jornal O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4 e no Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 29 de maio de 1942, páginas 1 e 5.

[11] Sobre a derrocada dos espiões nazistas no Brasil, ver o livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 235 a 296.

[12] Etelvino Lins de Albuquerque foi Governador de Pernambuco entre 1952 e 1955, senador constituinte, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) e deputado federal em duas legislaturas.

[13] Ver O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4.

[14] O Tribunal de Segurança Nacional (TSN) foi uma corte de exceção, instituída em setembro de 1936, primeiramente subordinada à Justiça Militar e criada diante dos traumas provocados no poder pela Intentona Comunista de novembro de 1935. Era composto por juízes civis e militares escolhidos diretamente pelo presidente da República e deveria ser ativado sempre que o país estivesse sob o estado de guerra. Com a implantação da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937, o TSN passou a desfrutar de uma jurisdição especial autônoma e tornou-se um órgão permanente. Nesse período passou a julgar não só comunistas e militantes de esquerda, mas também integralistas e políticos liberais que se opunham ao governo. Entre setembro de 1936 e dezembro de 1937, 1.420 pessoas foram por ele sentenciadas. O TSN foi extinto após a queda do Estado Novo, em outubro de 1945.

[15] Dos 128 implicados 77 eram estrangeiros, 40 brasileiros natos e 11 brasileiros naturalizados. Já os processos eram originários do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo. Ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 2 de outubro de 1943, pág. 5. Sobre o Decreto Lei 4.766, de 1 de outubro de 1942, ver http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4766-1-outubro-1942-414873-publicacaooriginal-1-pe.html

[16] Ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edições de domingo, 30 de junho e 17 de julho de 1942, respectivamente nas páginas 1 e 3.

[17] Sobre o Decreto Lei 431, de 18 de maio de 1938, ver http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-431-18-maio-1938-350768-publicacaooriginal-1-pe.html

[18] Sobre esta questão ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edições de domingo, 8 de junho de 1943, nas páginas 1 e 2.

[19] Sobre as declarações do Dr. Mac Dowell da Costa ver o Correio de Uberlândia, Minas Gerais-MG, edição de quinta feira, 25 de fevereiro de 1943, pág. 1.

[20] Ver o livro O Brasil na mira de Hitler, Roberto SANDER. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, págs. 106 e 119.

[21] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro-RJ, edição de domingo, 17 de novembro de 1979, pág. 38, 1º Caderno.

[22] Ver Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, edição de segunda feira, 4 de fevereiro de 1952, pág. 7.

[23] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro-RJ, edição de quarta feita, 3 de dezembro de 1975, pág. 24, 1º Caderno.

[24] Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Operation_Pastorius

[25] Ver https://www.theguardian.com/world/2016/aug/28/britain-nazi-spies-mi5-second-world-war-german-executed

UM POUCO DA HISTÓRIA DO BRASIL NAS COPAS DO MUNDO

Ruas enfeitadas, festas por todos os lados, emoção à flor da pele, demonstrações de “patriotismo”: no Brasil e em muitos países, a cada quatro anos, vemos repetir-se a força de mobilização de uma Copa do Mundo de Futebol, cujas finais, que atualmente contam com 32 seleções nacionais, envolvem mais público, movimentam mais recursos e angariam mais prestígio do que os Jogos Olímpicos, outro grande evento esportivo que reúne mais de 20 modalidades.

As primeiras ideias de organizar uma competição mundial de futebol surgiram em 1905, em um cenário em que havia muitas iniciativas de criação de movimentos internacionais (escotismo, esperanto, Cruz Vermelha, jogos olímpicos, entre outros). As iniciativas, todavia, não chegaram a se concretizar por questões operacionais ou políticas, como a Primeira Guerra Mundial.

O 4º gol da seleção Uruguai x Argentina marcado por Héctor Castro – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/1930_fifa_world_cup_final#/media/file:uruguay_goal_v_argentina_1930.jpg

Somente a partir da década de 1920, quando a FIFA (Federação Internacional de Futebol Association, órgão máximo da modalidade, criada em 1904) era dirigida por Jules Rimet, houve esforços mais sistemáticos no sentido de operacionalizar a proposta, que culminaram com a organização da primeira Copa do Mundo, em 1930, no Uruguai, graças em grande parte ao desempenho da diplomacia do país-sede.

Ao contrário dos Jogos Olímpicos, organizados por cidades, as Copas do Mundo sempre foram promovidas por países. Do primeiro torneio, apenas 14 equipes nacionais participaram, sendo nove do continente americano e cinco do europeu.

Naquela ocasião, provavelmente não se imaginava que a competição iria crescer de tal forma que envolveria praticamente todos os países do mundo. Vale citar que a FIFA possui mais associados do que a Organização das Nações Unidas (ONU). Também no Brasil, essa primeira edição não teve grande impacto, inclusive pelo fato de a equipe representativa ser fruto de uma cisão entre paulistas e cariocas.

A seleção brasileira obteve um modesto sexto lugar. O Uruguai foi o campeão, o que não surpreendeu por sua condição de bicampeão olímpico (1924 e 1928) e país-sede. 

Jogadores da Alemanha Nazista realizando a sua saudação tradicional na Copa do Mundo de 1938 – Fonte – https://www.history.com/news/world-cup-nazi-germany-forced-austrian-players-lost

A segunda edição do evento foi realizada em 1934, na Itália. A competição começava a tornar-se mais popular, tendo sido inscritas 32 seleções para 16 vagas, tornando necessária a organização de eliminatórias. Tal Copa coincide com o avanço do fascismo na Itália, bem como de regimes autoritários na Alemanha, na Espanha e Portugal.  Foi concebida por Mussolini como uma forma de provar ossupostos avanços possibilitados pelo novo regime. Até mesmo facilitou-se a naturalização de estrangeiros, a fim de fortalecer a seleção italiana. Curiosamente, um brasileiro, Anfilogino Guarisi, foi campeão jogando pela equipe da casa.

Os torcedores brasileiros somente se empolgaram com a Copa do Mundo a partir de 1938, realizada na França. Com os problemas de organização no futebol nacional bastante amenizados, em função da intervenção governamental (já em pleno Estado Novo), enviou-se uma equipe forte, que contou com grande apoio popular. O Brasil conquistou o terceiro lugar, tendo uma participação bastante destacada: perdeu a semifinal para a Itália, um jogo bastante controverso por problemas de arbitragem. Leônidas da Silva foi o artilheiro da competição.

Selo comemorativo da Copa do Mundo de 1950 no BHr5asil – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/1950_FIFA_World_Cup

Deve-se ter em conta que, no cenário brasileiro, o futebol começava a ser mais comumente mobilizado como elemento discursivo na construção de uma identidade nacional, inclusive por uma reabilitação dos fenômenos culturais considerados mestiços, momento que tem como uma importante marca a difusão das ideias de Gilberto Freyre.

Algo que contribuiu e foi mesmo fundamental para o crescimento da popularidade do futebol e das Copas foi a atuação dos meios de comunicação. No Brasil, se em 1930 os torcedores tinham de esperar pelas notícias nas redações dos jornais, em 1938 já era possível acompanhar os jogos pelo rádio e também se podia assistir posteriormente às partidas nos cinemas.

Waldir Pereira, o Didi, bicampeão mundial de futebol em 1958 e 1962, apertando a mão do Presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1958, os jogos já podiam ser acompanhados pela televisão, sempre alguns dias depois de sua realização. Ao vivo, isso somente se tornou possível a partir da Copa de 1970. Nessa ocasião, fora introduzido o recurso do replay e, no decorrer do tempo, cada vez mais inovações tecnológicas marcariam as coberturas esportivas. A transmissão dos jogos tornou-se um verdadeiro espetáculo, transmitido por muitas emissoras de todo o mundo, que pagam direitos caríssimos e buscam a todo custo conquistar o público.

A Copa do Mundo é o evento líder mundial de audiência televisiva. Na última edição do evento, realizada no Brasil, em 2014, estima-se que houve cerca de 4,5 milhões de espectadores por partida, média superior à obtida na África do Sul.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, conversando com Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha – Fonte – Arquivo Nacional.

Vários recordes mundiais foram também quebrados nos outros meios de comunicação, inclusive na internet.

Aproximadamente 1 bilhão de torcedores acompanharam on-line os jogos pelo site da FIFA No Brasil, se em 1938 o interesse foi grande, a Copa do Mundo tornou-se mesmo uma febre quando o país organizou a edição de 1950, construindo para tal o que na época seria o maior estádio do mundo e que ainda hoje, já bastante modificado por reformas recentes é uma das grandes referências do futebol mundial: o Maracanã.

O Preseidente da República João Melchior Marques Goulart abraçando o goleiro bicampeão mundial Gilmar dos Santos Neves – Fonte – Arquivo Nacional.

Depois de duas goleadas na fase final, ninguém esperava que o Uruguai fosse sair vitorioso na partida decisiva contra a seleção brasileira. A derrota por 2 × 1 foi uma das maiores tristezas do esporte brasileiro, para alguns foi mesmo encarada como uma marca das debilidades da nação.

Na ocasião, a competição era retomada depois do fim da Segunda Grande Guerra, e o Brasil, com a organização do evento, vislumbrava demonstrar seu protagonismo no novo tabuleiro internacional. Essa postura tornou-se comum no decorrer do século, inclusive em função da Guerra Fria: os blocos socialista e capitalista transferiram parte de seus conflitos e enfrentamentos para as instalações e competições esportivas.

O general Castelo Branco apertando a mão de Garrincha. Ao lado do militar vemos o então presidente da Confederação Brasilira de Desportos, CBD, Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange – Fonte – Arquivo Nacional.

Depois do fracasso na Copa de 1950, repetido na edição de 1954, realizada na Suíça, o país finalmente sagrou-se campeão em 1958, na Suécia, em um torneio que ficou marcado pela aparição internacional de uma das maiores estrelas da história do futebol e do esporte do século: Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, na época com 17 anos.

A seleção brasileira voltaria a se sagrar campeã em 1962, na Copa do Chile, onde o grande destaque foi Garrincha, não se saindo bem em 1966, na Inglaterra, uma edição marcada pela violência e pela benevolência dos árbitros com a equipe da casa, que se sagrou vitoriosa em uma final extremamente polêmica com o time nacional da Alemanha.

Pelé – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1970, no México, a equipe nacional tornou-se a primeira tricampeã da competição, após uma fase da preparação marcada por conflitos internos, com o técnico João Saldanha sendo substituído por Zagalo, mas também por grandes investimentos no treinamento. Nunca antes uma seleção brasileira fora tão bem preparada, com tanta antecedência.

Muitos autores sugerem que esses investimentos estariam ligados à vontade dos militares, que comandavam o regime de exceção em vigor no país, de provarem o quanto eram adequadas suas propostas para o país. Além disso, estariam relacionados com uma estratégia de dispersão e distração da população brasileira. Tais hipóteses têm sido muito contestadas. Independentemente das polêmicas, não se pode negar a ampliação da atenção ao esporte a partir de então, bem como o forte clima de patriotismo que cercou a participação da seleção brasileira no México.

A Seleção Brasileira de Futebol que participou da Copa do Mundo de 1974, na Alemanha Ocidental. Ao centro da foto, de paletó preto, está o general Ernesto Geisel, tendo ao seu lado esquerdo o potiguar Francisco das Chagas Marinho, o Marinhgo Chagas – Fonte – Arquivo Nacional.

As Copas de 1974 (Alemanha), 1978 (Argentina, uma edição muito polêmica em função de o país-sede viver um período ditatorial, liderado por militares, que cometiam constantes desrespeitos aos direitos humanos), e 1982 (ao contrário da anterior, marcada pelo processo de redemocratização da Espanha) foram marcadas por muitas mudanças, uma tentativa de a FIFA se sintonizar com o novo cenário internacional, algo que imediatamente repercutiu no aumento do número de participantes nas finais do evento e numa maior atenção para as equipes asiáticas e africanas.

Além disso, melhor se estruturavam as estratégias de negócios ao redor do futebol. Em 1982, pela primeira vez foi introduzido o conceito de “patrocinador oficial”. Se as primeiras propagandas apareceram de forma muito embrionária já na Copa de 1934, a partir da Espanha essa relação comercial tornou-se cada vez mais intensa. Basta lembrar que, no Brasil, o personagem “Pacheco”, parte da propaganda de uma empresa de lâmina de barbear, tornou-se um dos mais populares até hoje.

Arthur Antunes Coimbra, o Zico- Fonte – Arquivo Nacional.

Por trás dessas mudanças, deve-se citar o nome de João Havelange, que desde 1974 assumira a FIFA e veio a tornando uma das mais poderosas instituições do mundo. O dirigente tornou o futebol em um grande negócio global. As Copas do Mundo passaram a ser um dos principais palcos de lançamento de novidades, de estratégias comerciais e de badalação, a faceta mais conhecida de um dos esportes mais influentes e populares.

Se essas mudanças definitivamente projetaram o futebol, também trouxeram muitos problemas. Muitas têm sido as denúncias de que o aspecto esportivo está sendo abandonado em função dos lucros e do benefício dos investidores, para além de problemas de falcatruas financeiras diversas.

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, o Dr. Sócrates – Arquivo Nacional.

A Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil, foi o momento auge desses problemas, uma expressão das ambiguidades que cercam o evento. Se de um lado alcançou popularidade e impacto jamais visto, foi marcada também por manifestações e insatisfação da população com os gastos públicos excessivos e com a interferência da FIFA na governança nacional. Se de um lado, observou-se um dos melhores resultados técnicos, foram também descobertas ilegalidades nos negócios que cercam a competição.

Somente no futuro será possível melhor precisar o impacto dessas ocorrências, mas provavelmente durante muitos anos ainda persistirá a articulação entre governos instituídos e mercado na promoção das Copas do Mundo. As próximas edições já têm sido marcadas por polêmicas em função das características autoritárias do governo de Putin, cuja Copa de 2018 ocorreu na Rússia e da compra de votos na escolha da sede de 2022 (Qatar), denúncia ainda não confirmada, que está sendo apreciada pela FIFA, que
também tem sido compelida a adotar posturas mais transparentes em função de escândalos financeiros que cercam o mundo futebolístico.

Neymar da Silva Santos Júnior, considerado por muitos o maior craque da atual Seleção Brasileira de Futebol- Fonte – https://esportes.r7.com/prisma/copa-2018/cosme-rimoli/o-mal-que-neymar-faz-para-a-selecao-brasileira-10072018 – REUTERS/DAVID GRAY – 02.JUL.2018

Fonte

Livro – Enciclopédia de guerras e revolução, Volume 1, 1901 a 1919, páginas 338 a 342. Organizadores – FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA, SABRINA EVANGELISTA MEDEIROS e ALEXANDER MARTINS VIANNA.

Referências

HELAL, Ronaldo, CABO, Álvaro do. Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol. Rio de Janeiro: EdUerj, 2014.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MELO, Victor Andrade de (orgs.). O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

MASCARENHAS, Gilmar, BIENENSTEIN, Glauco, SANCHEZ, Fernanda (orgs.). O jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Rio de Janeiro: EdUerj, 2011.

PRIORE, Mary Del; MELO, Victor Andrade de (orgs.). História do Esporte no Brasil: da colônia aos dias atuais. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

O VOO DO “PLUS ULTRA” E A ATRIBULADA VIDA DO PILOTO RAMON FRANCO

O Dornier Do J Wal “Plus Ultra” em Buenos Aires, no fim da longa viagem

Autor – Rostand Medeiros – IHGRN

A Espanha havia sido um grande império colonial, entretanto, no fim do século XIX, o império espanhol acumulava derrotas, humilhações e um quadro social dos mais terríveis.

A partir de 1902, com o reinado personalista de Afonso XIII, a própria monarquia encontrava-se em uma posição muito delicada. Ocorrem conspirações, forte crise econômica, social e intenso fortalecimento do regionalismo Catalão e Basco, que sonhavam com suas respectivas autonomias. Ocorrem igualmente fortes distúrbios sociais, fortalecidos pelo crescimento dos movimentos socialistas e anarquistas, principalmente na Catalunha. Devido a toda esta crise, desencadeia-se uma forte imigração espanhola para outros países. Entre os anos de 1904 e 1913, por exemplo, serão 224.672 espanhóis que emigram para o Brasil.

Ramon Franco – Fonte – http://en.wikipedia.org/

Diante desta situação tumultuada e visando manter sua sobrevivência política, o Rei Afonso XIII encoraja o golpe militar do general Miguel Primo de Rivera y Orbajena, que no dia 13 de setembro de 1923, dissolve as Cortes (Parlamento) e estabelece a ditadura. Com o apoio de uma junta militar, implanta a censura e uma forte perseguição política.

Em meio a estes acontecimentos um grupo de jovens oficiais das Forças Armadas Espanholas, entusiastas da aviação, decidem organizar um voo transoceânico, ligando a Espanha e a Argentina, passando pelo Brasil. À frente deste planejamento, estava o comandante de infantaria do exército espanhol Ramón Franco y Bahamonde Salgado Pardo de Andrade, natural de El Ferrol, na província de La Corunã. 

Dornier Do J Wal   

Ramon Franco utilizou os seguintes argumentos como justificativa para este voo – Mostrar em meio a um tumultuado momento o valor da aviação espanhola, buscar propaganda positiva no exterior para o país, utilizar este projeto para conhecer as características de um voo de longo alcance com uma aeronave melhor equipado e preparado, visando à abertura de futuras linhas aéreas e utilizar a repercussão do voo para estreitar os laços diplomáticos com os países da América do Sul, principalmente os de língua espanhola. Além de mostrar para os espanhóis emigrados que um novo e moderno país se fazia presente no cenário mundial.

Ramon Franco entrega então um plano detalhado ao diretor da aeronáutica militar, que vislumbra uma ótima oportunidade de promoção do regime e aprova o vôo em 1925. Neste momento é convocada a tripulação. Como copiloto seguirá o capitão de artilharia do exército Julio Ruiz de Alda Miqueléiz, de Estella (Navarra), como terceiro piloto e navegador, o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles, professor da Escola Naval de Barcelona, natural de Jerez de la Frontera (Cadíz) e como mecânico, o soldado Pablo Rada Ustarroz, de Caparroso (Navarra).

Tripulação principal do “Plus Ultra” – No alto, a esquerda está Ramon Franco, a direita vemos Julio Ruiz de Alda Miqueléiz. Abaixo a esquerda está Pablo Rada Ustárroz e a sua direita Juan Manuel Durán González.

Foi escolhido para o voo o hidroavião Dornier Do J Wal, planejado e construído pela fábrica Dornier Flugzeugwerke, de Friedrichshafen, Alemanha. Por esta época, devido às restrições existentes no Tratado de Versailles, os alemães não podiam fabricar este tipo de aeronave, por esta razão o comandante Ramon Franco foi buscar o seu exemplar na Itália, onde era fabricado pela a Construzioni Meccaniche Aeronautiche S.A. (CMASA), na Marina de Pisa.

O hidroavião era um dos melhores produtos existentes no seu tempo, possuía um casco central, era de construção totalmente metálica, tripulação de cinco pessoas, com piloto e copiloto sentados lado a lado em cabine aberta. Era motorizado por dois motores Napier Lion, montados em tandem e com potência de 450 hp cada um. Seu peso normal era de 2.500 kg e peso total carregado de 7.500 kg. Tinha uma envergadura de 23,20 metros, comprimento total de 18,20 metros, alcance de 1.080 km, altitude máxima de 3.600 metros, velocidade de 180 km/h, quantidade de combustível de 400 litros de gasolina. Especificamente para este voo a aeronave foi equipada com um sistema de radiotelegrafia com alcance de 600 km, bússolas, derivômetro (Instrumento de voo, usado para indicar o ângulo de deriva), material salva-vidas, uma máquina de destilação de água, sextante, mapas e, visando o apoio no transporte de gasolina de reserva, o comandante Franco solicitou a Marinha Espanhola o apoio de dois navios de guerra, sendo designados o cruzador “Blas de Lezo” e o destroier “Alsedo”. 

Plus Ultra 

Fonte – elladooscurodelahistoria.blogspot.com

Estando tudo pronto, o comandante Franco recebe a ordem de voo no dia 18 de janeiro de 1926, mas faltava um detalhe, o nome da aeronave. Foi escolhido o termo latino “Plus Ultra”, que significa “mais além”. Sua origem vem da antiguidade, quando a Espanha era a terra mais ocidental que havia no mundo antigo, pois se considerava que após o estreito de Gibraltar, não haveria mais nada, só um grande abismo povoado por monstros terríveis. Reza a lenda que o herói mitológico Hércules colocou duas colunas no estreito, eram as conhecidas Colunas de Hércules, sendo uma na Espanha (no monte Calpe) e outra na África (monte Abile), com uma inscrição latina que advertia aos navegantes que não deveriam ir mais adiante “Non Plus Ultra” (não mais além). Mais tarde, com o descobrimento da América por Colombo, o povo passou designar somente “Plus Ultra” (mais além).

A rota escolhida teria início na cidade de Palos de la Frontera, na província de Huelva. A escolha era antes de tudo baseada em fatores históricos e sentimentais para o povo espanhol. Pois foi do porto de Palos que Cristóvão Colombo iniciou a sua épica viagem ao novo mundo 1492. Os aviadores participaram de uma missa solene na igreja de São Jorge, a mesma utilizada por Colombo e seus homens antes da sua viagem.

No dia 22 de janeiro de 1926, às 07:55 da manhã, o “Plus Ultra” decolava do Muelle de La Calzadilla, no porto de Palos, diante de uma grande multidão. A aeronave seguiu sem maiores problemas em direção as Ilhas Canárias, mais precisamente ao seu principal porto, também conhecido como Puerto de la Luz. Chegaram ás 15:03, tendo percorrido o trajeto de 1.315 km, em oito horas e oito minutos, com uma velocidade média de 163 km/h (velocidade esta comum a modernos automóveis com motorização 1.6).

No Puerto de la Luz foi realizada uma minuciosa revisão, mas, pelas condições do mar, o hidroavião foi transferido para a Baía de Gando. Neste local, devido ao pequeno espaço para decolagem, destinaram 400 kg de cargas em um navio holandês para a Argentina.

No dia 26, às 07:35, decola o “Plus Ultra” em direção as ilhas da então colônia portuguesa de Cabo Verde, a 500 km da costa de Senegal. Este trajeto seria monitorado por diversas estações de rádio e navios, que ajudaram o hidroavião Dornier Do J Wal a seguir a melhor rota. Depois de nove horas de voo, avistam a ilha de São Tiago e a cidade de Porto Praia, em uma etapa de 1.670 km, com uma velocidade média de 185 km/h. Em Porto Praia encontram os dois navios de guerra espanhóis que darão apoio na travessia Atlântica. Neste ponto, o alferes Duran, para diminuir o peso, é transferido para o destroier “Alsedo”, que zarpa no dia 27 de janeiro em direção ao Arquipélago de Fernando de Noronha.

A partir daquele ponto teria início a fase considerada mais difícil pelos aviadores – a travessia do Atlântico Sul. 

Sobre o Atlântico Sul 

No dia 30 de janeiro, o hidroavião decola as 06:10 para o “salto”. Durante uma hora mantém contato com Cabo Verde e os navios, depois só o silêncio.

Fernando de Noronha visto pelos aviadores espanhóis.

Voam a 300 metros de altitude, sobre um mar agitado e fortes ventos. Apesar desta situação, o voo transcorreu sem maiores problemas. O moral estava extremamente elevado e as máquinas respondiam aos comandos perfeitamente. Depois de mais de doze horas de voo, quando o sol já estava se pondo, avistam as ilhas brasileiras e as suas luzes.

Sendo impossível o pouso noturno, amerissam a vinte milhas de Fernando de Noronha, recebendo apoio de um navio inglês que reboca a aeronave até as proximidades do porto da Vila dos Remédios (alguns historiadores afirmam que a aeronave amerissou de forma equivocada, mas sem maiores consequências e a tripulação foi socorrida pelo navio).

Quando ancoram definitivamente recebem a visita do tenente Queiroz, comandante interino do presidio que existia no arquipélago, no lugar do Diretor Manoel Pinheiro de Menezes Filho. O militar chega em uma grande balsa e informa que naquele momento as condições do mar não ajudariam ao desembarque da tripulação no porto. Passaram então à noite no “Plus Ultra” e no outro dia chega o destroier “Alsedo”. Os espanhóis finalmente desembarcam em Fernando de Noronha, tendo percorrido 2.305 km, em 12:40 de voo.

Mesmo sem amerissarem no Rio Potengi, em Natal, a expectativa na capital potiguar com uma possível chegada do “Plus Ultra” era intensa. Até mesmo grandes propagandas de marcas de gasolina que abasteceram a aeronave eram vistas nos jornais natalenses da época.

No dia seguinte, 31 de janeiro de 1926, o hidroavião decola as 12:10, com destino a Recife. Estações de radiotelegrafia em Natal, Cidade da Paraíba (atual João Pessoa), Recife e Fernando de Noronha acompanham o trajeto do “Plus Ultra”.

Após a decolagem ouve o problema mais sério de todo o trajeto – a hélice do motor traseiro rompeu-se e houve um princípio de incêndio em pleno voo, debelado pelo mecânico Rada com suas próprias roupas. Neste momento todo material dispensável foi lançado no mar, com o intuito de tornar a aeronave mais leve e poder seguir com apenas um motor.

Este desenho mostra a expectativa da chegada do “Plus Ultra” ao Rio de Janeiro, na época a Capital Federal

No meio de toda tensão, segundo os tripulantes, houve momentos em que o casco do hidroavião Dornier Do J Wal roçou nas ondas, sendo necessário muito esforço e forte tensão para mantê-lo no ar.

Finalmente avistam as praias, provavelmente em algum ponto do litoral paraibano, pois teriam que voar mais 100 km em direção sul para chegarem a Recife. Durante todo este trecho os espanhóis seguiram perigosamente na altura dos coqueiros e já avistavam as pessoas nas praias acenando.

As 16:48, depois de quatro horas e trinta e oito minutos de voo, amerissam em Recife, após realizarem um rasante entre Olinda e o porto da cidade. 

Chegada em Recife

Houve uma grande concentração de pessoas, que começou a se reunir desde as duas da tarde, os aguardava no cais do porto, próximo ao atual bairro do Recife Antigo. A cidade, que em 1922 já havia recebido os pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, repetia a calorosa recepção a um novo hidroavião que atravessara o Atlântico Sul, adicionado pela grande expectativa gerada pela Rádio Clube do Recife, que a todo o momento irradiava boletins sobre a chegada do aeroplano espanhol.

Notícias sobre a chegada do hidroavião espanhol ao Nordeste brasileiro.

Luiz Amador Sanchez, cônsul espanhol na cidade (futuro escritor, professor da USP e pai do recentemente falecido ator global Luiz Gustavo, que interpretou personagens como “Beto Rockfeller” e “Mário Fofoca”), junto com mais de 500 espanhóis residentes na cidade recepcionam os pilotos. Os tripulantes estavam cansados e a imprensa notou que todos traziam medalhas de Nossa Senhora do Carmo. Ramon Franco esteve no Palácio do Campo das Princesas, onde foi saudado pelo então governador pernambucano Sergio Loreto e foi cumprimentado pela oficialidade do contratorpedeiro Piauí (CT-3), comandados pelo capitão Jorge Dodsworth Martins, futuro ministro da marinha brasileira.

Em meio a pouco descanso no Palace Hotel e muitas solenidades em vários locais, a tripulação do “Plus Ultra” esteve presente no Casino Boa Viagem para uma festa na noite de 2 de fevereiro, onde os tripulantes encaram a pista de dança. E parece que a noite foi muito positiva, pois no outro dia, as nove da manhã, Ramon Franco, na companhia de Pablo Rada, realizou um voo de testes de 20 minutos sobre Recife. Além dos dois tripulantes, acompanharam os espanhóis o cônsul Sanchez, o comandante Dodsworth Martins e duas beldades pernambucanas, Carolina Burle e Dolores Salgado. 

A Caminho do Rio de Janeiro 

Contudo, a jornada não estava encerrada, pois havia mais de 2.100 km de distância até o Rio de Janeiro, que até então nunca haviam sido percorridas sem escalas. No dia 04 de fevereiro, o “Plus Ultra” decolava do Rio Capibaribe as cinco da manhã, seguindo em direção sul. Depois de doze horas e dezesseis minutos de voo sem alterações, chegavam a Baía da Guanabara, o pouso inclusive teve alguma dificuldade, devido a grande quantidade de barcos que aguardavam o hidroavião Dornier Do J Wal.

Ramon Franco e o então presidente brasileiro Artur da Silva Bernardes, em recepção no Rio.

Ramon Franco e seus amigos foram recepcionados pelo Presidente Arthur Bernardes e outras autoridades. Como em Recife, grandes festividades aguardavam os espanhóis, sendo o comandante do hidroavião homenageado com seu nome batizando uma rua no bairro da Urca. Esta rua conserva até hoje o seu nome.

Placa da Rua Ramón Franco, no bairro da Urca, Rio de Janeiro.

Depois de cinco dias de eventos e festas, no dia 09 de fevereiro decolam rumo a Buenos Aires. Os tripulantes estão com sorte, pois um vento francamente favorável ajuda-os a percorrerem 2.600 km sem escalas, em doze horas e cinco minutos. Apesar disto, o sol já está se pondo, o que dificultaria a amerissagem no Rio da Plata. Os espanhóis decidem amerissar em Montevidéu, Uruguai, escala não prevista.

A rota do “Plus Ultra” em 1926.

No dia 10 de fevereiro de 1926, decolam para Buenos Aires, chegando depois de uma hora e doze minutos de voo. O hidroavião evolui três vezes sobre a capital Argentina e, após amerissar no Rio de La Plata, ocorre uma estrondosa recepção da população local.

Neste momento ocorre uma situação que poderia ter ampliado muito mais a conquista dos tripulantes do “Plus Ultra” e poderia tê-los trazido a Natal. O comandante Franco prontamente telegrafou ao Rei Afonso XIII, informando a finalização do voo e solicitando a permissão de continuar seguindo viagem pela costa sul americana do Oceano Pacifico, até Cuba. Depois continuariam voando até o norte do Brasil, até Natal e cruzariam pela segunda vez o Atlântico sul. Mas, a resposta foi não.

O Rei e as autoridades aeronáuticas espanholas decidiram encerrar a missão na Argentina, pois já estavam imensamente satisfeitos com o feito e não tinham total confiança de que o “Plus Ultra” poderia concluir o trajeto. Seria melhor ovacionar quatro heróis vivos, do que chorar por quatro mártires. Mais uma vez Natal não poderia ser palco da passagem do hidroavião espanhol.

Grande recepção aos aviadores espanhóis em Buenos Aires.

A distância total percorrida do trajeto Palos/Buenos Aires foi de 10.270 km, com um tempo estimado de cinquenta e nove horas e trinta e nove minutos de voo, em dezenove dias. Atualmente este trajeto é realizado em uma média de doze horas e meia de voo em um moderno Airbus, ou em um Boeing.

O “Plus Ultra” original, preservado em Lujan, Buenos Aires, Argentina – Fonte – https://www.laprensalatina.com/first-plane-to-fly-from-europe-to-latam-still-gleams-95-years-on/

O grande compositor argentino Carlos Gardel não deixou escapar a oportunidade e gravou o tango “La gloria del aguila”, narrando a epopeia dos espanhóis.

A aeronave deveria ser doada a nação Argentina, e lá ela ficou prestando serviços à aviação naval até sua retirada de serviço. Hoje está em exposição no Complexo Museógrafo Enrique Udaondo, de Luján, cidade localizada no extremo oeste da grande Buenos Aires. Uma cópia fiel do hidroavião está exposta no Museo Del Aire, em Madri, Espanha.

Os aviadores espanhóis retornam ao seu país no cruzador argentino “Buenos Aires”, chegando a 5 de abril de 1926. Foram cobertos de glórias e receberam do Rei Afonso XIII medalhas alusivas ao feito.

Esta viagem foi considerada na época, um grande salto na modernização do estado espanhol. Depois o país acompanharia mais dois “raids” aéreos com sucesso, um para as Filipinas e o outro a Guiné Equatorial, com outros aviões e tripulantes. Ramon Franco e Alda tentariam mais uma empreitada aérea, mais sem sucesso (ler mais adiante). 

Caminhos Distintos 

O destino final dos aviadores seria muito diferente, em meio a situações político-sociais extremas na Espanha e na Europa.

Como resultado da crise da bolsa de valores de Nova York agravou-se a situação social e econômica da Espanha, levando a deposição do General Primo de Rivera e, em seguida, caiu também a monarquia. O Rei Afonso XIII foi obrigado a buscar o exílio e a República foi proclamada em 1931.

Havia com a proclamação da república a intenção da Espanha buscar uma maior aproximação com os seus vizinhos europeus, realizando uma reforma social que iria retirar a nação do oásis tradicionalista no qual vivia. Existiam projetos para a separação da igreja e do estado (No Brasil, este fato ocorreu em 1889), introdução de conquistas sociais, liberdade eleitoral, liberdade de expressão e organização sindical.

Contudo, a profunda depressão econômica provocou uma enorme frustração generalizada na sociedade espanhola, que apoiada em forte radicalismo de determinados setores, terminou levando o país a conhecer um violento enfrentamento de classes. O mais dramático e sangrento ocorrido na Europa antes da Segunda Guerra Mundial.

Em meio a esta situação política o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles viria a falecer cinco meses depois do voo, em um acidente de aviação. Já os outros três tripulantes estariam presentes na tragédia quer foi a Guerra Civil Espanhola.

Julio Ruiz de Alda torna-se em 1927, membro do Conselho Superior de Aviação e Automobilismo e representante espanhol para a Federação Internacional de Aeronáutica. Em 1928 é nomeado chefe de um grupo de aviação. Foi neste período que ele tenta, juntamente com Ramon Franco, realizar uma volta ao mundo em um avião Dornier 16, mas sem sucesso. Logo após solicita baixa do exército. Torna-se empresário e, com o fim da ditadura, aproxima-se da política. Tanto que em 1932, já é considerado por alguns setores políticos espanhóis chefe do fascismo na Espanha. Em 29 de outubro de 1933, funda com José Antonio Primo Rivera (filho do ex-ditador Primo Rivera), a Falange Espanhola. Este grupo seria conhecido como tradicionalista, fascista, paramilitar, que participaria da guerra civil junto ao futuro ditador Francisco Franco. Por suas atividades, Alda seria preso pelo governo republicano em 14 de março de 1936 e fuzilado em 23 de agosto do mesmo ano.

O soldado mecânico Pablo Rada Ustarroz, depois de agraciado pelo Rei Afonso XIII, inicia estudos e obtém o brevê de piloto. Por sua forte amizade a Ramon Franco participa, em 1930, de um fracassado movimento de ação política (ver mais adiante).

Dedicou-se a política durante a república, tornando-se militante de esquerda. Participou da queima de conventos católicos durante a Guerra Civil. Com o desfecho do conflito, foi obrigado a exilar-se na Colômbia, aonde se dedica a indústria de automóveis. Retornou em abril de 1969, para falecer na Espanha, com uma grave enfermidade hepática, tinha 67 anos. 

O Último Voo de Franco 

Contudo, a figura com a biografia mais intensa após o vôo do “Plus Ultra”, seria o próprio comandante Ramon franco. Se já seria muito comentar que o mesmo era irmão caçula do próprio general e futuro ditador Francisco Franco, mais interessante é saber que o aviador, durante um período, foi opositor do poderoso irmão e posteriormente seu aliado, para depois de sua morte ser esquecido durante muito tempo pelo governo espanhol.

Depois do vôo do “Plus Ultra”, Ramon Franco torna-se da noite para o dia uma figura muito popular na Espanha, mais que qualquer artista ou toureiro, tal era a admiração da população pela aviação e pelo seu glorioso “raid”, chegando a escreve em 1926, o livro “De Palos a Plata”, narrando o voo.

Tenta juntamente com Alda, em 1928, à volta ao mundo em um Dornier 16, mas o avião cai no mar. Eles passam alguns dias à deriva, sendo enfim resgatados por um porta aviões britânico. Ramon é fortemente criticado pelo fracasso da missão, torna-se um forte opositor e conspirador contra a monarquia e a ditadura.

Devido a sua popularidade era considerado um adversário muito perigoso. Seria preso e, posteriormente, conseguiria fugir com a ajuda de Rada. Em 15 de dezembro de 1930, junto com o mesmo Pablo Rada, Queipo de Llano e outros aviadores que apoiavam a república, apoderam-se de alguns aviões no aeroporto de “Quatro Vientos”, com a intenção de bombardear o Palácio Real, em Madri. Não conseguiram realizar a ação, fugindo para Portugal. Deste episódio, Franco escreveria em 1931, o livro “Madrid bajo las bombas”.

Após a sua fuga da Espanha, Ramon só retornaria com a proclamação da república. No regresso foi nomeado Diretor Geral da Aeronáutica, sendo destituído por participar de uma revolta anarquista na Andaluzia. Foi depois eleito para o parlamento por grupos republicanos de Sevilha e Barcelona, declarava-se um tanto estranhamente “republicano de esquerda, mas não comunista”. Retirou-se do exército, que por esta época era uma instituição que cada dia mais se tornava antirrepublicana. Não foi um grande parlamentar e seus biógrafos consideram o maior erro de sua vida a sua entrada na política.

Quando estourou a Guerra Civil, Ramon encontrava-se nos Estados Unidos como membro agregado do adido aeronáutico espanhol. Ao retornar a sua nação, mostrando a sua inconsistência ideológica, não mais apoia os republicanos e segue as ideias do irmão, “El Generalíssimo Franco”. Foi nomeado tenente-coronel e chefe da Base Aérea de Barcelona, a mesma Barcelona que o elegera deputado republicano. O comandante Ramon Franco sempre foi considerado um homem de ação, mais de poucas ideias políticas concretas.

Em outubro de 1938, seu hidroavião italiano caiu nas proximidades da Ilha de Maiorca, quando pretendia bombardear a zona republicana. Existe até hoje na Espanha uma discussão se o comandante Franco caiu com seu hidroavião, suicidou-se ou se a aeronave caiu por um ato de sabotagem. Nada ficou totalmente esclarecido. Seu irmão, que na época combatia em Elbro, não foi ao seu enterro em Maiorca. 

Conclusão 

Durante o terrível regime franquista, talvez por ter sido muito contraditório, o comandante Ramon Franco se converteu em um personagem muito incômodo, sendo ele praticamente esquecido do panteão dos heróis nacionais.

Mas a Espanha mudou, Francisco Franco se tornou passado e um novo país surgiu no sul da Europa.

Em 30 de janeiro de 2001, com a presença do então Príncipe de Astúrias, atual Rei Felipe VI, decolou da mesma Palos de La Fronteira, um hidroavião de combate a incêndio, buscas e salvamento Canadair CL-215T, do Grupo 43, da Força Aérea Espanhola, acompanhado de um Hércules C-130. As duas aeronaves realizavam a mesma rota, ponto a ponto, percorrida por Ramon Franco e seus companheiros do “Plus Ultra”. 

O voo do “Plus Ultra”, não veio a Natal e nem sequer sobrevoo terras potiguares. Entretanto, na sua época, seu “raid” teve uma repercussão enorme no cenário da aviação mundial. Os espanhóis mostrariam que com o aparelho certo, tecnologia de ponta e correto apoio, estava pronto o cenário para a realização de grandes viagens aéreas sobre o Atlântico Sul.

O MISTÉRIO NÃO RESOLVIDO DO DESAPARECIMENTO DO NAVIO USS CYCLOPS

Mais de um século depois, permanece sem solução o mistério do USS Cyclops, um desaparecimento que ocasionou uma das maiores perdas de vidas humanas na Marinha dos Estados Unidos. O que aconteceu com esse navio? Para onde ele foi?

Autora – Hannah Hirzel

Fonte – https://www.usni.org/magazines/naval-history-magazine/2021/october/uss-cyclops-deadliest-unsolved-mystery-navy

Quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha e seus aliados em abril de 1917, navios de apoio como o Ciclope ficaram sob o comando da Marinha. A mudança administrativa afetou fortemente a tripulação dessas embarcações de apoio. Em vez de serem comandados por civis, os oficiais agora eram membros da Força de Reserva Naval.

O USS Cyclops foi construído na Filadélfia, tinha 150 metros de comprimento e 20 metros de largura. O navio era um carvoeiro da classe Proteus e podia transportar 12.500 toneladas de carvão, a uma velocidade de 15 nós com seus dois motores. 

A missão final do Ciclope era transportar 9.960 toneladas de carvão de seu porto de origem em Norfolk, Virgínia, para o Rio de Janeiro, Brasil, e trazer de volta 11.000 toneladas de minério de manganês. 

A nave partiu em 9 de janeiro de 1918 e chegou ao Rio em 28 de janeiro, onde permaneceu por duas semanas descarregando e carregando cargas. Em 15 de fevereiro, 309 almas partiram para a Bahia, Brasil, a única parada programada antes do porto de Baltimore, Maryland. 

Dois dias depois, às 18h00 de 22 de fevereiro, o navio partiu, onde deveria chegar nos Estados Unidos em 13 de março. A última localização conhecida do Ciclope foi uma parada não planejada feita em Barbados em 3 de março.

Após a partida de Barbados, os passageiros e a tripulação nunca mais foram vistos. A causa ainda é um mistério. Mesmo depois de mais de 100 anos, o destino dessas pessoas permanece desconhecido.

Independentemente das evidências, as pessoas estão sempre dispostas a especular. Cinquenta e um anos após o incidente, um oficial, Conrad A. Nervig, que foi transferido do navio no Rio, contou sua experiência no Ciclope

O desaparecimento desse navio foi notícia em todo Brasil.

Nervig escreveu em 1969 um artigo para o US Naval Institute Proceedings sobre o navio problemático e sua tripulação igualmente preocupante. Ele descreveu o comandante George W. Worley como um “sujeito rude e excêntrico da velha escola, dado a carregar uma bengala, muito indiferente e um navegador excessivamente cauteloso. Antipático e taciturno, ele geralmente não era apreciado por seus oficiais e marinheiros”. 

Nervig relatou um incidente em que um dos motores foi ligado enquanto um marinheiro estava em um pequeno barco realizando um serviço fora do navio. A força da hélice atraiu o barquinho e jogou o marinheiro ao mar, e ele se afogou. Conrad A. Nervig atribuiu essa tragédia a um capitão que criou uma tripulação “completamente desmoralizada e desorganizada” por causa de seus “métodos irracionais de comando”1 .   

Ancorado no rio Hudson, próximo à cidade de Nova York, em 3 de outubro de 1911.
(Naval History and Heritage Command)

O maior mistério do desaparecimento do Ciclope é a causa. Mesmo um mau comandante e uma tripulação com baixo moral geralmente podem transitar em uma viagem padrão por águas pacíficas, mas algo fez esse navio sumir.

Nervig teorizou que o Ciclope foi dividido ao meio e afundou rapidamente. Ele acredita que o minério de manganês poderia ter sido armazenado apenas nos porões a meia nau, acentuando, portanto, a fraqueza inerente da embarcação. 

O armazenamento incorreto provavelmente ocorreu porque o único oficial a bordo com experiência para armazenar corretamente o minério de manganês era o oficial executivo, que havia sido colocado sob prisão e confinado em seu quarto devido a um “desentendimento trivial” com o capitão2.

Nervig explicou como o estresse no mar poderia quebrar o casco navio em dois, enchendo rapidamente os espaços com água enquanto o navio ficava vertical. Ele acreditava que isso aconteceu rápido demais para que os botes salva-vidas pudessem ser acionados. A teoria de Nervig é uma entre muitas a respeito dessa tragédia.

Outra camada especulativa aponta que o navio teria sido perdido no Triângulo das Bermudas. 

Richard Winer investigou o desaparecimento do Ciclope para seu documentário de 1973, The Devil’s Triangle. Ele sugeriu um motim fracassado e deu a entender que havia problemas no navio, apoiando as afirmações de Nervig. 

Os tripulantes do Cyclops aproveitaram o carnaval de 1918 no Rio de Janeiro, antes de começar a triste e famosa “Gripe Espanhola”.

Outras teorias vão desde a explosão do manganês, ao naufrágio, até um polvo gigante surgindo do mar e arrastando o navio para baixo3 .

Igualmente especulam que o USS Cyclops foi afundado por um submarino alemão, mas os registros do pós-guerra indicam que não havia submarinos na área na época4 .

Existe a teoria que acredita que o navio estava operando com um único motor e isso tornaria o navio mais suscetível a outros problemas de engenharia, que poderiam teoricamente levar ao afundamento. Também houve relatos de danos no casco e separação de tubos que não foram resolvidos prontamente pelo capitão5 . Algumas dessas teorias são mais prováveis ​​do que outras, mas a verdadeira causa do desaparecimento do USS Cyclops permanece desconhecida.

O mundo pode nunca descobrir a verdade. O navio estava fadado à tragédia por causa de uma liderança horrível, ou ela era apenas mais uma vítima misteriosa do Triângulo do Diabo? 

NOTAS

1. Conrad A. Nervig, “The Cyclops Mystery” Proceedings , julho de 1969.

2. Nervig, “The Cyclops Mystery”.

3. Howard L. Rosenberg, “Exorcizing the Devil’s Triangle”.

4. Nervig, “The Cyclops Mystery”,

5. CAPT Lawrence B. Brennan, USN (aposentado), “The Unanswered Loss of USS Cyclops- March 1918.”

COMO UM AZARADO SUBMARINO NAZISTA FOI PARAR EM UM MUSEU?

Mais de 1.150 formidáveis submarinos foram construídos na Alemanha durante a Segunda Guerra, sendo conduzidos por valentes marinheiros, que fizeram essas naves singrarem os sete mares levando o terror da sua presença. Hoje restam apenas cinco dessas máquinas e é uma delas, que está exposta em um museu em Chicago, que vamos comentar no TOK DE HISTÓRIA – O U-505 não alcançou grandes êxitos bélicos, foi sabotado, experimentou situações extremas e o azar fez parte quase que permanente de sua carreira. Mas a história de sua captura em alto mar é uma das páginas mais intensas e interessantes de toda Segunda Guerra. Além do formidável esforço para sua preservação.

Rostand Medeiros – IHGRN

Houve um momento durante a Segunda Guerra Mundial que o povo dessa grande nação tropical chamada Brasil ficou possuído de muito medo e muita raiva de tudo que significasse Alemanha. Isso aconteceu principalmente na segunda metade do mês de agosto de 1942, quando o submarino alemão U-507 torpedeou vários navios brasileiros no litoral da Bahia e Sergipe e suas ações mataram mais de 500 pessoas.

O Primeiro Ministro Britânico Winston Churchill comentou que a arma inimiga que mais temeu durante aquele conflito foram os submarinos. Diante dos milhares de afundamentos de cargueiros britânicos, Churchill compreendeu que se algo não fosse feito de maneira eficiente, os recursos vitais que os britânicos necessitavam para continuar a luta deixariam de chegar aos seus portos e faria com que aquele povo caísse de joelhos pela fome.

Submarinos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.

Mais de 1.150 formidáveis submarinos foram construídos na Alemanha durante a Segunda Guerra, sendo conduzidos por valentes marinheiros, singraram os sete mares levando o terror da sua presença em todas as partes. Hoje restam apenas cinco dessas máquinas e quatro delas são abertas ao público na Alemanha (2), Grã-Bretanha (1) e nos Estados Unidos (1). E é sobre o submarino que está na terra do Tio Sam que vamos comentar!

Ele é o antigo U-505, uma nave de guerra que comparativamente a outros submarinos na época, não alcançou grandes êxitos bélicos. Consta que foi sabotada, experimentou situações extremas e parece que o azar fez parte quase que permanente de sua carreira. Mas a história de sua captura em alto mar é uma das páginas mais intensas e interessantes de toda Segunda Guerra. Além do formidável esforço para sua preservação.

Visita Do Próprio BdU

O U-505 era um submarino alemão do Tipo IX-C, tendo sua construção se iniciado em 1940 na cidade de Hamburgo. O U-505 foi lançado ao mar em 25 de maio de 1941 e logo passou a fazer parte da marinha de Hitler. Oito meses depois sua tripulação concluiu seu treinamento de combate.

Kapitänleutnant Axel-Olaf Löwe – Fonte – https://uboat.net/

Foi designado como seu comandante o Kapitänleutnant Axel-Olaf Löwe (ou Loewe como querem alguns). Tinha 31 anos de idade, era natural da cidade portuária de Kiel, havia entrado na Marinha alemã em 1928, começou o treinamento em submarinos no final de 1940 e era considerado um líder nato, calmo e justo.

Aquele submarino começou sua primeira patrulha no final de janeiro de 1943, quando partiu do porto de Kiel e seguiu para sua base de operações no porto de Lorient, na França ocupada. Por 16 dias sua tripulação circundou ao norte das Ilhas Britânicas e depois tomaram rumo em direção sul. Atracaram no destino no dia 3 de fevereiro e se uniram à 2ª Flotilha de Submarinos.

O almirante alemão Karl Dönitz – Fonte – https://uboat.net/

Na sexta-feira, 6 de fevereiro de 1942, o almirante alemão Karl Dönitz se encontrava no porto de Lorient para inspecionar o submarino U-505 e todos os seus tripulantes, que ficaram em rígida formação no convés superior para saudar Dönitz, o Befehlshaber der Unterseeboote, ou BdU, o comandante supremo da arma de submarinos da Marinha alemã. 

Cinco dias após essa cerimônia, o comandante ordenou soltar os cabos de amarração, enquanto a ponte de comando se encontrava adornada com guirlandas de flores. Uma banda naval começou a tocar marchas militares e o público nas docas aplaudiu o U-505 e sua tripulação.

Bunkers de proteção de submarinos alemães, existentes até hoje na cidade francesa de Lorient – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Base_de_submarinos_de_Lorient

A nave de guerra seguiu para alto mar percorrendo o calmo Rio Blavet, acompanhado do submarino U-64 e de um caça minas como escolta. Aquele pequeno grupo de embarcações navegaram juntos até a altura da cidadela de Port-Louis, onde os dois submarinos tomaram rumo sul, para realizarem patrulhas de busca e destruição de navios mercantes Aliados na região da costa ocidental africana.

Após deixarem para trás Lorient, o comandante Löwe ordenou a Herbert Nollau, primeiro oficial de vigia, que as guirlandas de flores fossem jogadas na água, pois na tradição marítima, pelo menos na tradição marítima alemã, dava azar carregar flores em um barco.

Mal sabia Löwe e seus tripulantes que ao longo de sua trajetória, a falta de sorte seria uma constante no U-505!

Vitórias Em Alto Mar

Quando o U-505 passou pelo arquipélago português dos Açores, Löwe autorizou uma “ponte livre”, o que significava que os homens poderiam subir até o convés para bater papo, tomar banho de mar, sol e fumar. Na sequência, depois de passarem pelas Ilhas Canárias, o comandante ordenou “desligaram um motor e correram a meia velocidade para economizar combustível” e não chamar atenção. Chegaram à área de operações em 1º de março de 1942. Löwe tinha um comando independente em um submarino novo em folha, com dezenove torpedos a bordo e logo começaria a utilizá-los.

O SS Benmohr – Fonte – https://uboat.net/

Na noite de 5 de março o SS Benmohr, um navio a vapor britânico de 6.000 toneladas, que seguia sem escolta a caminho da Escócia, foi torpedeado e afundou a cerca de 210 milhas náuticas a sul-sudoeste de Freetown, capital de Serra Leoa. Toda a tripulação de 56 pessoas sobreviveu e foram resgatados por um hidroavião quadrimotor britânico Sunderland do 95 Squadron da RAF (Royal Air Force).

No dia seguinte, quase ao meio-dia, o MV Sydhav, um navio-tanque norueguês de 7.600 toneladas que também se encontrava a sudoeste de Freetown, foi atingido a estibordo por dois torpedos. O navio afundou rapidamente pela popa e alguns membros da tripulação, entre eles o comandante Nils O. Helgesen, saltaram no mar e foram puxados para baixo pela sucção. Um outro foi atacado por tubarões e desapareceu. O resto dos sobreviventes se amontoaram em duas jangadas e avistaram o submarino a cerca de 250 metros de distância. Os náufragos viram que o mensageiro chinês do Sydhav, que se agarrava a destroços na água, foi interrogado. Então os alemães partiram sem terem se aproximado das jangadas. Mais tarde os sobreviventes conseguiram resgatar o mensageiro, mas ele morreu em decorrência dos ferimentos. Löwe e alguns de seus tripulantes afirmaram que pretendiam ajudar os náufragos, mas surgiu um avião inimigo e eles submergiram. Dos 35 tripulantes do Sydhav, 12 morreram.

MV Sydhav – Fonte – https://uboat.net/

Mais tarde, em 28 de março, Löwe teve que mergulhar duas vezes para escapar de uma aeronave e de uma corveta que estavam escoltando um navio a vapor. O U-505 foi atacado com cargas de profundidade por quatro longas horas, mas Löwe escapou com um mergulho profundo de 600 pés (183 metros). O comandante observou durante o batismo de fogo do U-505 “a tripulação se comportou de maneira excelente”.

Löwe manteve o moral elevado por meio do seu estilo de comando, mantendo a tripulação informada de suas intenções, exercendo uma liderança leve em lugar de utilizar de aspereza para remediar os lapsos dos marinheiros e respeitando as tradições e superstições marítimas. Incluindo a tradicional e elaborada cerimônia do cruzamento da Linha do Equador, que o U-505 realizou pela primeira vez na terça-feira, 31 de março de 1942.

A festa ao cruzar a Linha do Equador é uma tradição muito antiga no meio naval – Fonte – https://theleansubmariner.com/2019/02/07/get-in-line-you-useless-pollywog-prepare-to-meet-king-neptune/

Mesmo no meio de uma guerra total, a tradição marítima exigia que a deferência adequada fosse dada a Netuno, o deus romano do mar, que deveria embarcar em todos os navios que cruzam a linha imaginária, na busca de desafortunados marinheiros que ainda não haviam “lhe pedido permissão para estar no seu oceano”. Um dos marinheiros mais experientes se fantasiava de Netuno e realizava suas “obrigações”, normalmente brincadeiras de terrível mal gosto contra os recrutas mais jovens, mas que deleitavam os veteranos. Tal como ocorreu com outros submersíveis alemães, essa festa aconteceu no convés do U-505, a luz do dia, mas com os vigilantes bem atentos na torre.

Em 3 de abril, o U-505 afundou o SS West Irmo e na noite seguinte foi a vez do SS Alphacca, ambos próximo ao litoral da Costa do Marfim.

O West Irmo era um navio a vapor americano escoltado pela corveta britânica HMS Corpinsay, que viajava de Lagos, na Nigéria, com destino a cidade de Nova York, Estados Unidos. O U-505 seguiu esse navio por 29 extenuantes horas, antes de atacá-lo por volta das 21:30. Os dois primeiros torpedos que ele disparou o contornaram inofensivamente, sem chamar a atenção de sua tripulação ou dos militares da corveta que o escoltava. Horas depois fizeram uma nova tentativa e obtiveram sucesso. O West Irmo só afundou no dia seguinte e dos 109 tripulantes, dez morreram.

Já o Alphacca era um navio mercante holandês sem escolta, de 6.000 toneladas, que Löwe afundou à noite com um torpedo G7a, em um ataque de superfície. O fato se deu depois dos alemães perseguirem esse navio por mais de sete horas, a cerca de 154 milhas ao sul de Cabo Palmas, Costa do Marfim. A maioria dos tripulantes e todos os passageiros abandonaram o navio em quatro botes salva-vidas, sem enviar um sinal de socorro e 14 membros da tripulação foram perdidos. O submarino emergiu depois e se aproximou para questionar os sobreviventes e fizeram perguntas sobre o nome, nacionalidade, carga e rota da embarcação. Mas também questionaram se eles tinham abastecimento e água suficientes? Depois de ajudar os sobreviventes do Alphacca, estes foram informados o curso e a distância para o Cabo Palmas e mutuamente desejaram boa sorte e boa viagem. Os botes salva-vidas então navegaram em direção à costa, mas um bombeiro morreu no dia seguinte e seu corpo foi entregue ao mar. Em 9 de abril, todos os quatro pequenos barcos com os náufragos desembarcaram a leste do Cabo Palmas. Löwe observou no Diário de Guerra do U-505 “Barcos bem equipados e abastecidos. A tripulação falava alemão. Ironia da guerra, lutamos contra homens que falam a nossa própria língua”.

SS Alphacca – Fonte – https://uboat.net/

Depois das quatro vitórias, o U-505 passou a ser bastante perseguido pela aviação antissubmarino britânica e em 21 de abril de 1942 Löwe anunciou que eles estavam voltando para Lorient. Chegaram no dia 7 de maio, depois de várias perseguições infrutíferas dos ingleses. Nessa patrulha o submarino afundou um total de 26.000 toneladas de naves inimigas, ao custo de 14 torpedos, dos quais oito atingiram seus alvos.

Retorno festivo de um submarino ao porto de Lorient – Fonte – Bundesarchiv – https://pt.wikipedia.org/wiki/Base_de_submarinos_de_Lorient

No Mar do Caribe

O terceiro cruzeiro operacional do U-505 (e o segundo cruzeiro de combate) começou em um domingo, 7 de junho de 1942, e seu destino foi o cálido Mar do Caribe.

Uma bússola quebrada nesta viagem causou problemas de navegação, mesmo assim, antes de chegar em sua área operacional, o U-505 afundou dois navios mercantes ao norte das ilhas Leeward, ou Ilhas de Sotavento. Eles foram o SS Sea Thrush, em 28 de junho, e o SS Thomas McKean um dia depois.

O Sea Thrush – Fonte – https://uboat.net/

Sea Thrush era um cargueiro americano de 6.900 toneladas, que realizava sua viagem com carga geral e material de guerra, incluindo munições e aeronaves. Partiu da Filadélfia para a Cidade do Cabo, a capital da África do Sul, via a ilha de Trinidad. No começo da noite Löwe o atingiu com dois torpedos a cerca de 425 milhas a nordeste de San Juan, Porto Rico. Uma hora depois a tripulação evacuou e o comandante alemão acabou com o navio utilizando um terceiro torpedo. Todos os quarenta e um tripulantes, quatorze passageiros do Exército dos Estados Unidos e onze membros da Marinha americana sobreviveram em quatro botes salva-vidas.

Thomas McKean em chamas, fotografado pela tripulação do U-505 – Fonte – https://uboat.net/

Já o Thomas McKean era outro navio americano, de 7.400 toneladas e recém lançado ao mar. Partiu de Nova York para sua viagem inaugural até o Golfo Pérsico levando uma carga de aviões, tanques e outros suprimentos de guerra para a União Soviética. Foi atingido por dois torpedos e depois que a tripulação baixou os botes salva-vidas, Löwe terminou o serviço no Thomas McKean com 72 disparos do canhão de quatro polegadas do convés do U-505. A tripulação alemã tirou fotos do navio em chamas, de um barco salva-vidas e deu aos náufragos suprimentos médicos e instruções para navegarem para terra, a 360 milhas náuticas de distância. Quatro, dos 59 tripulantes, morreram quando o Thomas McKean afundou e, dos quatro botes salva-vidas que deixaram a área do sinistro, dois foram resgatados em quatro dias, um chegou à costa após sete dias e o último alcançou as praias após nove dias.

Náufragos do Thomas McKean, igualmente fotografados pelo pessoal do U-505 – Fonte – https://uboat.net/

Pelos próximos 23 dias o U-505 circulou por uma grande área do Mar do Caribe em busca de presas. Passou ao sul da Colômbia, Panamá, ao sul das belas ilhas de Bonnaire, Curaçao e Aruba. Depois se aproximou do litoral venezuelano, bem como do litoral da Colômbia, Panamá e Nicarágua. Em outros momentos adentrou mais o Mar do Caribe, sempre vasculhando atrás de vítimas. Então, as três da tarde de 22 de julho de 1942, algo surgiu no horizonte a 12 graus, 24 minutos de latitude norte e 81 graus, 28 minutos de longitude oeste.

Destruindo Um Veleiro

Era uma escuna de três mastros chamada Urios, mas que recentemente havia sido rebatizada de Roamar (o que causa confusão entre os pesquisadores) e deslocava 400 toneladas. Era registrada na cidade de Barranquilla, Colômbia e foi visualizada a doze milhas náuticas a noroeste de Cayo Bolivar, na ilha colombiana de San Andréas.

Löwe ordenou que o segundo oficial de vigia Gottfried Stolzenburg desse um tiro de advertência sobre a proa, porque o veleiro não tinha bandeira e se movia em ziguezague, tal como um navio que estava tentando evitar torpedos. O problema foi que o primeiro tiro do U-505 destruiu o mastro principal da escuna, que estava desarmada. O pânico se instalou, com seu mastro e velas caindo sobre seus decks elegantes como uma tenda gigante.

Interior da sala de torpedos do U-505.

Mas a escuna não parava, então Löwe ordenou outro par de tiros de advertência, momento em que a tripulação içou uma bandeira identificada como sendo da Colômbia. Mesmo assim a escuna não parava. Löwe manobrou o U-505 para interceptar o veleiro, mas em vez de chegar próximo, ele mudou de curso e de ideia e ordenou que afundassem aquele barco.

Segundo narrativas da tripulação do U-505, o primeiro tiro direto no casco do veleiro foi todo o convencimento de que a tripulação de língua espanhola precisava para abandonar seu barco. Os alemães afirmaram que esperaram até que a tripulação, “quase histérica” na opinião dos submarinistas, estivesse bem longe da escuna e voltaram a abrir fogo. Deram mais de vinte disparos e não demorou para que o canhão de convés transformasse aquele barco de 400 toneladas em palitos de fósforo. 

Consta que a tripulação alemã se “divertiu muito com o ataque”, mas prontamente Löwe percebeu que aquilo foi um grande erro. O comandante ordenou imediatamente saírem daquela área, presumindo que o veleiro tivesse tido tempo de sobra para comunicar a presença do submarino pelo rádio.

Enfermaria do U-505.

E os problemas realmente iriam começar para o U-505. E de várias maneiras!

Primeiramente a Colômbia não era uma nação que havia declarado guerra à Alemanha e, para piorar a situação, o veleiro era propriedade de um diplomata colombiano. Seu afundamento, embora pudesse ser considerado em tempo de guerra perfeitamente legal, forneceu a base política para a Colômbia declarar guerra contra a Alemanha! 

Some a isso o fato dos tripulantes jamais serem vistos novamente. Sobre essas vítimas consta que haveria quatro mulheres entre os desaparecidos e, dependendo das fontes pesquisadas, o número final de pessoas que estavam a bordo e sumiram para sempre após o ataque, varia de uma dúzia a 24.

O certo é que, coincidência ou não, a partir desse momento a situação do U-505 nas mãos dos alemães jamais foi positiva.

Material de detectação do submarino U-505.

Parece até que Netuno, o Rei dos Oceanos, se irritou profundamente com o fato daquele moderno submarino atacar um veleiro indefeso, com a alegria dos submarinistas com aquela ação e com o desaparecimento dos tripulantes. Supersticiosos como só os marinheiros podem ser, para muitos tripulantes do U-505 os infortúnios posteriores do submarino foram atribuídos ao afundamento daquela escuna.

Começo Do Azar

Logo após o ataque ao barco colombiano o comandante Axel-Olaf Löwe ficou gravemente doente. Sua condição física piorou dramaticamente nos dias seguintes e começou a afetar seu desempenho. E para piorar o quadro o comandante Löwe não conseguia afastar a sensação de que havia cometido um erro tremendo.

Na sexta-feira, 31 de julho de 1942, Löwe solicitou permissão para interromper seu cruzeiro de guerra e retornar ao porto devido à sua doença. Um dia depois o comando alemão ordenou a volta do U-505 a Lorient, mas antes ele entregou parte do combustível e suprimentos a outro submarino. Demoraram quase um mês para completar o trajeto e quase não chegaram, pois ataques de aviões britânicos ao U-505 aumentaram quando ele se aproximou do Golfo da Biscaia.

Interior do U-505 nos dias atuais.

Dois dias depois que voltou à base, Löwe foi submetido a uma apendicectomia. O atendimento médico aliviou a ameaça à sua vida, mas a dor física que ele suportou não era nada comparado à angústia emocional que ele viveu com o naufrágio daquela maldita escuna de três mastros. Por alguma razão alguém nas altas esferas do Reich alemão, que não descobri quem era, não gostou nem um pouco da atitude de Löwe em relação ao naufrágio do veleiro colombiano. Ele foi sumariamente dispensado do comando do U-505 e designado para o serviço em terra.

A situação de Löwe só não se transformou em uma catástrofe total, porque o próprio almirante Dönitz reconheceu os talentos do capitão e providenciou para que ele fosse incluído em sua equipe. Depois, entre julho de 1944 a abril de 1945, Löwe foi designado como um elemento de ligação naval no Ministério de Armamentos e Produção em Berlim, sob o comando de Albert Speer. Ele terminou a guerra na região de Schleswig-Holstein, servindo em um regimento naval antitanque próximo a Kiel, sua cidade natal. Sobreviveu e foi detido após a rendição, sendo libertado em 30 de dezembro de 1945. Faleceu no final do ano de 1984.

Já o que aconteceu depois com o U-505, foi bem mais estranho!

Oberleutnant zur See Peter Zschec – Fonte – https://uboat.net/

Após a exoneração de Löwe, assumiu o comando no dia 6 de setembro de 1942 o Oberleutnant zur See Peter Zschec. Ele tinha 25 anos de idade, começou o treinamento de submarinos em outubro de 1940 e foi designado para o U-124, comandado por Johann Mohr. Durante sua permanência na nave de Mohr, o jovem Zschec presenciou o afundamento de 22 navios inimigos e três outros foram danificados. Com toda essa bagagem e experiência, o jovem oficial foi enviado para a escola de comandantes de submarinos e o alto comando acreditava que grandes coisas seriam realizadas por Peter Zschech. 

Mas ele não correspondeu a essas altas expectativas e, de acordo com muitos relatos, não era querido por sua tripulação. Consta que Zschech foi descrito como um comandante duro, ambicioso em seu primeiro comando, indiferente ao moral dos seus homens e muito mal-humorado.

A sua primeira patrulha, de 69 dias, transcorreu em parte sem incidentes e Zschech conseguiu afundar seu único navio, o mercante britânico Ocean Justice, de 7.173 toneladas. Esse navio transportava 600 toneladas de minério de manganês como lastro e fazia a rota Karachi (Paquistão), Durban (África do Sul), ilha de Trinidad e Nova York, sendo destruído ao largo da l. Toda tripulação de 56 pessoas foi salva por barcos Aliados. 

Um Lockheed Hudson da RAF. O Brasil também utilizou modelos dessa aeronave.

Na sequência, em 11 de novembro de 1942, o submarino foi fortemente danificado por um ataque aéreo no Mar do Caribe. O impacto direto no convés de proa de uma bomba de 250 libras, lançada por um avião bombardeiro bimotor Lockheed Hudson vindo de Trinidad, arrancou o canhão do barco e rompeu gravemente o casco. O impacto foi tão estupidamente forte que o avião atacante, pilotado pelo sargento de voo australiano Ronald Rashleigh Sillcock, do 53 Squadron do Comando Costeiro da RAF, simplesmente caiu no mar. Sillcock e outros quatro tripulantes morreram diante dos atônitos marinheiros do U-505.

O sargento de voo australiano Ronald Rashleigh Sillcock, que quase afundou o U-505, mas morreu no ataque – Fonte – https://www.awm.gov.au/collection/C1277868

Zschech ordenou que seus homens abandonassem o navio, mas seus oficiais recusaram a ordem e conseguiram manter a nave à tona. A após uma verdadeira maratona, o U-505 voltou mancando para Lorient, onde chegou em 12 de dezembro, dando a nave a honra mista de ser o submarino mais danificado em combate a retornar com sucesso ao seu porto durante a guerra. A paulada levada pelo submarino foi tão grande, que os reparos demoraram seis meses. 

Sabotagens e Suicídio a Bordo

Quando Zschech novamente tentou levar o U-505 para o mar, repetidas falhas mecânicas o forçaram a voltar para reparos depois de apenas alguns dias de navegação. Isso aconteceu seis vezes consecutivas, geralmente devido à sabotagem dos trabalhadores do estaleiro francês.

Como o U-505 ficou após o ataque do sargento Sillcook.

Mesmo assim essa situação fez com que o U-505 se tornasse alvo de inúmeras piadas por sua ineficácia no combate. Diziam que enquanto alguns submarinos estavam acumulando totais de tonelagem impressionantes e outros estavam sendo afundados com toda sua tripulação, o U-505 nem tinha conseguido deixar o Golfo de Biscaia em quase um ano. Durante quase 14 meses no comando, Zschech passou apenas 96 dias no mar durante seis patrulhas. A principal piada sobre o comandante do U-505 era que, enquanto muitos outros submarinos estavam sendo afundados… “há um capitão que sempre voltará para casa … Zschech”. O U-505 também ficou conhecido como um Werftbock (cabra de doca seca). Naturalmente, isso teve um impacto deletério no moral de Zschech e de sua tripulação.

Para piorar o clima geral, mesmo sabendo que os fracassos do U-505 foram obras de sabotagem, para muitos marinheiros alemães em Lorient, o azar havia impregnado o casco daquele submarino e nada mais poria aquela nave nos eixos. O certo é que os membros da tripulação do U-505 começaram a comentar com colegas de outros submarinos seus infortúnios e mostravam o temor do que poderia acontecer.

Com cada mau funcionamento, o comportamento do comandante Zschech tornou-se mais errático, alternando entre introversão taciturna e explosões sádicas de agressão.

O comandante Zschech na torre do U-505 em Lorient

Mas o pior estava por vir!

Em 10 de outubro de 1943, o U-505 finalmente conseguiu deixar Lorient com sucesso. Depois de apenas 14 dias, o submarino chamou a atenção de um par de contratorpedeiros Aliados enquanto emergia a leste dos Açores. O U-505 sofreu um forte ataque de cargas de profundidade concentrada, um procedimento muito comum para tripulações de submarinos alemães neste ponto da guerra. Mesmo assim Peter Zschech desabou de vez, sofreu um colapso nervoso e tirou a própria vida na sala de controle do barco com um tiro na cabeça de uma pistola Luger (alguns afirmam que a pistola era uma Walter PPK). 

O certo é que Zschech ganhou notoriedade como primeiro (e até agora único) comandante de submarino a cometer suicídio enquanto estava no comando ativo de uma embarcação debaixo d’água. O oficial Paul Mayer, com 26 anos de idade, assumiu o comando, evitou os perseguidores e devolveu o barco a Lorient em 7 de novembro de 1943.

O suicídio do seu comandante devastou o moral dos tripulantes do U-505. Mas o almirante Dönitz não dispersou a tripulação por outros submarinos, temendo que a boataria sobre esse episódio logo se espalhasse e gerasse um forte efeito negativo no moral da frota.

Dönitz chamou então um velho lobo do mar para colocar ordem naquela verdadeira zona que havia se tornado o U-505.

“Irmão Mais Velho”

O Oberleutnant zur See Harald Lange tinha 40 anos de idade quando assumiu esse comando, sendo na época um dos oficiais mais velhos na Unterseebootswaffe (Frota de Submarinos). 

Oberleutnant zur See Harald Lange .

Lange era um homem fisicamente imponente, que tinha quase dois metros de altura e possuía uma voz de barítono. O novo comandante do U-505 nasceu em Hamburgo no dia 23 de dezembro de 1903 e antes da Segunda Guerra era capitão de um navio da Linha Hamburgo-Americana. Continuou a trabalhar na marinha mercante até ser chamado para o serviço ativo em 1939. Seu primeiro comando foi um barco caça minas, depois assumiu um barco patrulha no Mar Báltico, onde danificou um submarino inglês em um combate noturno. No final de 1941 se juntou a frota de submarinos.

Lange era um homem mais maduro do que a maioria dos comandantes de submarinos alemães, que na sua atividade em navios mercantes aprendeu a lidar com marinheiros, ganhando confiança e exercendo liderança. Não sendo um oficial naval profissional, talvez fosse mais tolerante com as fragilidades humanas do que um rígido oficial da Marinha alemã, embora não mimasse seus homens e insistisse que coisas importantes fossem feitas exatamente da maneira certa. Mas ele entendia o que a tripulação do U-505 havia passado, era informal em seus tratos com eles e fazia concessões nas pequenas coisas. Lange se tornou um tipo de “irmão mais velho”, que era exatamente o que essa equipe precisava se quisesse se manter unida.

O comandante Lange, de quepe branco, junto a tripulação do U-505 – Fonte – https://www.msichicago.org/

A primeira experiência de Lange a bordo de um submarino foi como oficial de guarda do U-180, que tinha como comandante o Korvettenkapitän Werner Musenberg. Neste submarino Lange participou de uma missão bastante diferente para a maioria dos submarinos alemães na Segunda Guerra.

O U-180 era um modelo quase único, um submarino de longo alcance, com parte de sua estrutura interna removida para criar um compartimento para carga extra. Nesta missão, essa nave partiu da Alemanha com correio diplomático para a embaixada alemã em Tóquio, projetos de motores a jato, materiais técnicos para os militares japoneses, duas toneladas de ouro e dois passageiros indianos. Um deles era Subhas Chandra Bose, um ativista que lutava pela liberdade da Índia do julgo britânico e contava com o apoio dos nazistas. Bose deu meia volta no mundo a bordo do U-180 para retornar secretamente a sua terra e buscar insuflar a revolta do povo hindu contra os britânicos e conseguir a independência. Em 27 de abril de 1943 o U-180 realizou um encontro no Oceano Índico com o submarino japonês I-29, que recebeu os ativistas para levá-los a Sumatra e os preciosos materiais para o Japão. Aquela missão foi altamente secreta, tendo sido cumprida de forma excepcional e o U-180 ainda afundou dois navios de carga aliados no seu trajeto para a França.

Última Patrulha

Logo o U-505 foi para o mar!

Exemplo de um submarino partindo para o Oceano Atlântico – Fonte – Bundesarchiv – https://pt.wikipedia.org/wiki/U-108#/media/Ficheiro:Bundesarchiv_Bild_101II-MW-3956-05A,_Frankreich,_Lorient,_U-107.jpg

Entre o dia 20 e 21 de dezembro de 1943, aquele complicado submarino partiu em um novo cruzeiro de guerra, mas tal como nas outras vezes, retornou a Lorient por causa de um vazamento em seu primeiro mergulho prático. Parecia que nada dava certo naquela nave!

Finalmente no sábado, 25 de dezembro de 1943, em pleno dia de Natal, o U-505 deixou novamente Lorient, apenas para no dia 28 seguir para resgatar sobreviventes do barco torpedeiro alemão T-25, que tinha sido afundado na Baía de Biscaia durante uma batalha entre torpedeiros alemães e destroieres britânicos. Depois de emergir para conduzir uma busca de cinco horas de duração, o U-505 recolheu 34 sobreviventes, de nove botes salva-vidas. O submarino então se dirigiu para o porto francês de Brest, quando na manhã do dia 30 de dezembro foi atacado por um avião inglês que lançou duas bombas. O ataque alarmou e sacudiu os homens da frota de superfície, mas a tripulação do U-505 levou a coisa toda na maior indiferença. Mas o ataque atingiu o eixo de uma das hélices, o que dificultou a navegação.

Quando chegaram a Brest uma barcaça cheia de correspondentes de guerra veio até o submarino para cobrir a história do resgate. Aí do nada, enquanto os jornalistas estavam a bordo do U-505, ocorreu um incêndio elétrico!

Fogo em um submarino alemão – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/German_submarine_U-515

Os jornalistas estavam obtendo algumas imagens internas do submarino, quando inesperadamente um clarão cegante, semelhante a um relâmpago, irrompeu da sala do motor elétrico. Um enorme raio branco-azulado de eletricidade estava saindo e uma grande nuvem de fumaça branca, que se transformou em uma fumaça negra e malcheirosa, exalava do motor. Essa dramática exibição elétrica causou pânico imediato entre os jornalistas, que correram como um rebanho de gado assustado em direção à sala de controle. Os sobreviventes do barco de patrulha T-25 juntaram-se a eles quando a nuvem de fumaça sufocante começou a invadir o barco. O fogo foi logo controlado e o submarino foi para o estaleiro.

Somente em 16 de março de 1944, depois de dez semanas em Brest, o U-505 partiu para a sua décima segunda e última patrulha! 

Para essa saída ao mar a tripulação do U-505 era composta de 59 homens, sendo cinco oficiais, 17 suboficiais e 37 recrutas não qualificados. Sua área operacional deveria ser ao largo da costa oeste da África, na região da cidade portuária de Freetown. Mas devido a ação dos aviões britânicos de caça de submarinos, o U-505 levou doze dias para atravessar o Golfo da Biscaia.

Visão a partir de um periscópio de um submarino – Fonte – http://www.spiegel.de/

Na sua área de patrulha o submarino não encontrou alvos durante um mês inteiro e o único barco que visualizou foi um navio de passageiros de 9.000 toneladas do neutro Portugal. Nesse meio tempo, como era normal com aquela nave, vários sistemas mecânicos quebraram e Lange poderia ter retornado à base, mas preferiu mandar consertá-los no mar. Os tripulantes do U-505 não tinham mais certeza se aqueles fatos eram exemplos de sabotagem, sinais de queda na qualidade do material de guerra, ou definitivamente aquele barco estava amaldiçoado.

Em 30 de maio de 1944 Lange definiu o curso para leste, em direção à África Ocidental Francesa. Percorreu 84 milhas em 42 horas, antes de mudar o curso de volta para o norte. Na manhã do dia 4 de junho, o U-505, continuava cruzando os mares da África Ocidental em busca de oportunidades para enviar navios aliados para o fundo do oceano. Em dado momento, de forma inesperada, cargas de profundidade vindas do navio da Marinha dos Estados Unidos USS Chatelain explodiram.

O Submarino Está Subindo!

Embora acertar o submarino com cargas de profundidade tenha sido um golpe de sorte, nessa época os serviços de inteligência dos Aliados já haviam conseguido decifrar mensagens e informações que permitiram à Marinha dos Estados Unidos aprimorar-se na caça dos submarinos inimigos.

O Uss Pillsbury, um dos navios que atacou o U-505 – Fonte – US Navy

Foi descoberto que um grupo de submarinos alemães estavam conduzindo uma operação de caça e destruição de navios mercantes Aliados próximo as ilhas de Cabo Verde. A Marinha americana então enviou um grupo de navios para capturar e destruir esses submarinos. O grupo era comandado pelo comandante Daniel V. Gallery, a bordo do porta-aviões USS Guadalcanal. Ele estava acompanhado por cinco destroieres, que operavam sob o comando do capitão Frederick S. Hall. Esses navios eram o USS Pope, USS Jenks, USS Pillsbury, USS Flaherty e o já comentado destroier Chatelain. Esse grupo de navios foi denominado United States Navy Task Group 22.3 (TG 22.3). 

Os membros dessa flotilha embarcaram do porto de Norfolk, na Virgínia, em 15 de maio de 1944 e no final do mês suas tripulações começaram a missão de localizar e destruir os submarinos inimigos na costa ocidental africana. Eles estavam equipados com tecnologia de sonar de localização de alta frequência chamado “Huff Duff” e foram auxiliados pelo reconhecimento aéreo proporcionado por duas esquadrilhas do Guadalcanal, sendo uma formada por aeronaves Grumman F4F Wildcat e outra de Grumman TBF Avenger.

O USS Guadalcanal sendo sobrevboado por um Grumman TBF Avenger – Fonte – https://www.navsource.org/archives/03/0306014.jpg

Pouco antes de meio-dia de 4 de junho, através do contato de sonar o grupo de destroieres encontrou um alvo. Estavam à aproximadamente 150 milhas (280 km) de distância da costa da antiga colônia espanhola de Rio de Oro, que atualmente corresponde ao Saara Ocidental.

Logo a nave nazista ficou a apenas 800 jardas (700 metros) a estibordo da proa do destroier Chatelain. Toda a força naval americana respondeu rapidamente ao chamado de ação e se moveram em direção ao submarino. O Guadalcanal lançou um F4F Wildcat para se juntar a outro F4F e um TBF Avenger que já estavam patrulhando. Surpreendentemente quando o Chatelain partiu para atacar o submarino, ele estava tão perto que suas cargas de profundidade não puderam cair com rapidez suficiente para atingir o submersível. Felizmente aqueles caçadores de submarinos sabiam exatamente o que fazer.

Ao passar sobre o U-505 a tripulação disparou morteiros antissubmarino “Hedgehog” e retornaram para realizar um ataque de acompanhamento. Enquanto o Chatelain se posicionava, uma aeronave avistou a nave alemã e marcou sua posição. O Chatelain novamente lançou suas cargas de profundidade, atingindo o submarino e fazendo com que ele vazasse óleo combustível abundantemente. Um dos pilotos na área transmitiu pelo rádio a seguinte informação para a tripulação do destroier – “Você descobriu petróleo! O submarino está subindo!”. 

Corrida Para Salvar o Submarino

O ataque foi rápido e produtivo. O tempo total necessário para forçar o submarino subir à superfície foi de pouco menos de sete minutos. O U-505 emergiu a cerca de 700 jardas (640 metros) do Chatelain, fortemente danificado e sem opções de defesa. Nesse momento tudo que pertencia a Marinha dos Estados Unidos e estava na água e no ar abriu fogo com todas as suas armas contra o submarino.

U-505 estava com pouca eletricidade e sendo destruído. O comandante Lange acreditava que não havia como o submarino sobreviver ao ataque e então ordenou que sua tripulação abandonasse a nave. Mas quando sua ordem foi dada, seus homens não seguiram o protocolo adequado de destruírem a embarcação ao abandoná-la. Algumas das válvulas foram deixadas abertas para entrar água do mar, mas não foi o suficiente para o submarino afundar e, para cúmulo do azar e piorar a situação, os alemães deixaram os motores funcionando em marcha lenta. 

O U-505 navegando em círculos e abandonado – Fonte – https://uboat.net/

O resultado foi que o U-505, que teve o leme danificado pelas cargas de profundidade, começou a circular lentamente no sentido horário a velocidade de aproximadamente 7 nós (13 km/h). Nesse meio tempo o comandante do Chatelain viu o submarino virando para seu navio e pensou que ela estava prestes a atacar, então ordenou que um único torpedo fosse disparado. Por sorte a tripulação do Chatelain errou o U-505 vazio. Depois desse erro, os caçadores perceberam que o submarino havia sido abandonado e o Chatelain e o Jenks começaram a resgatar os sobreviventes.

O comandante Daniel V. Gallery ordenou que um grupo de embarque de oito homens do destroier Pillsbury, comandados pelo tenente Albert Leroy David, buscassem evitar que o submarino afundasse, garantindo sua captura para os serviços de inteligência dos Estados Unidos, que assim poderia descobrir os segredos dos temidos submarinos alemães.

O grupo de tenente Albert invadindo o submarino

Leroy David e seu grupo conseguiram abordar o submarino em uma corrida no meio do oceano e subiram na torre de comando. No convés eles encontraram o corpo do sinaleiro de primeira classe Gottfried Fischer, a única fatalidade do combate, e o U-505 completamente vazio de gente. 

A tripulação americana que se infiltrou no U-505, interrompeu os vazamentos fechando as válvulas de escape e mantiveram o submarino flutuando, mesmo com uma boa quantidade de água no seu interior. Eles também desligaram os motores e começaram a trabalhar para proteger o que havia dentro e fosse útil para o pessoal da inteligência. O grupo descobriu gráficos, livros de códigos difíceis de encontrar e desarmou as cargas de demolição que haviam sido plantadas pelos submarinistas em fuga, mas que, outro azar dos germânicos, não funcionaram!

A esquerda vemos o comandante Daniel V. Gallery, junto ao tenente Albert L. David, fotografados a bordo do USS Guadalcanal em junho de 1944. O tenente Albert foi condecorado postumamente com a Medalha de Honra do Congresso, a mais alta condecoração militar dos Estados Unidos, por ter liderado o grupo de abordagem que invadiu o U-505. Ao final da Guerra, pouco antes de ocorrer a cerimônia de entrega da medalha na Casa Branca, em Washington, o tenente Albert morreu de um ataque cardíaco. Sua esposa recebeu a comenda das mãos do presidente Harry S. Truman – Fonte – US Navy.

O próximo passo do comandante do Pillsbury foi tentar rebocar o submarino de volta para as proximidades do porta aviões Guadalcanal, o maior navio daquela pequena frota. Infelizmente o U-505 colidiu com o destroier repetidamente e o Pillsbury teve que se afastar com três compartimentos inundados. 

O U-505 ao lado do USS Pillsbury – Fonte – https://uboat.net/

Depois que o reboque inicial falhou, um segundo grupo de embarque foi enviado do Guadalcanal pelo comandante Gallery e conseguiram colocar um cabo de reboque do porta-aviões para o submarino e começaram a arrastar a nave alemã até um local seguro. 

O engenheiro chefe do Guadalcanal, comandante Earl Trosino, encontrou uma forma para que as hélices do U-505 girassem através do deslocamento da água proporcionado pelo reboque e isso regenerou as baterias do submarino. Consequentemente foi possível bombear para fora a água do mar e os compressores de ar começaram a encher os tanques de lastro. O resultado final foi o submarino totalmente emerso na superfície.

O U-505 sendo atado ao porta aviões Guadalcanal – Fonte – https://uboat.net/

Depois de ser rebocado por três dias, o comandante Gallery ordenou que o submarino fosse transferido para o rebocador da frota USS Abnaki, onde conseguiu chegar no dia 19 de junho a Port Royal Bay, nas Bermudas, após ter percorrido 1.700 milhas náuticas (3.150 km). O U-505 era a primeira captura da Marinha dos Estados Unidos em mais de um século, tendo a última ocorrido durante a guerra de 1812. Além disso esse submarino inimigo foi um dos seis que foram capturados pelas forças Aliadas durante toda Segunda Guerra Mundial.

Benefícios e Uma Quase Punição

Junto com o submarino, quase 60 prisioneiros foram entregues nas Bermudas. Depois esses homens foram internados em Camp Ruston, na Louisiana. 

Quando ainda estavam detidos, alguns dos prisioneiros alemães aprenderam a jogar beisebol com os guardas americanos, que eram membros de um time de beisebol da Marinha. Enquanto os prisioneiros nazistas estavam aprendendo um esporte americano, a Marinha dos Estados Unidos estava aprendendo os segredos internos do U-505

Material capturado do U-505, no hangar do USS Guadalcanal – Fonte – https://uboat.net/

Além dos mapas, livros atualizados de códigos de coordenadas, um livro de códigos curtos e, o maior dos prêmios, os americanos conseguiram capturar intacta uma máquina decifradora conhecida como “Enigma”. Todas as informações conseguidas nessa abordagem foram divididas com os britânicos e uma equipe de criptografia começou a trabalhar no material recém capturado.

Aquele material forneceu uma vantagem perfeita para os Aliados. Usando documentos recuperados do submarino, a Marinha dos Estados Unidos despachou navios para as localizações dos submersíveis e navios de guerra da Marinha alemã e assim destruí-los. Além disso as rotas de transporte de suprimentos foram cuidadosamente planejadas para minimizar os danos que os alemães poderiam causar aos barcos Aliados.

Prisioneiros do U-505, no USS Guadalcanal – Fonte – https://uboat.net/

Embora os benefícios de curto prazo fossem cruciais, a captura do submarino em si trouxe capacidades de longo prazo para defender adequadamente os navios de guerra contra os submarinos nazistas. Os torpedos do U-505 eram do tipo acústicos e foram dissecados e testados. Isso permitiu a criação de um sistema de contra-ataque capaz de combater mais eficazmente as naves submersíveis alemãs.

Surpreendentemente, mesmo com a captura do submarino, chegou-se a cogitar uma punição ao comandante Gallery! 

O controverso almirante Ernest J. King, Chefe de Operações Navais dos Estados Unidos, considerou uma corte marcial ao comandante Gallery, porque ele rebocou o U-505,em vez de afundá-lo após capturar os livros de código e a máquina “Enigma”. King acreditava que o reboque tenha levado a possíveis vazamentos de informações e isso poderia ocasionar sabotagens dos nazistas.

Ernest J. King

Ernest King serviu 55 anos na ativa na Marinha dos Estados Unidos, uma das carreiras mais longas já registradas para esse serviço. Foi o único homem que já ocupou simultaneamente os cargos de Chefe de Operações Navais e Comandante-em-chefe da Frota daquele país, tornando-o um dos oficiais mais poderosos na história daquela força naval. King era altamente inteligente e extremamente capaz, mas controverso e difícil. A sua propalada franca honestidade e seu temperamento explosivo, fizeram com que ele angariasse vários inimigos, deixando um legado misto. Por exemplo, o general Dwight D. Eisenhower, Comandante em Chefe das Forças Aliadas na Europa, reclamou em seu diário particular que o almirante King era “um tipo arbitrário e teimoso, com pouco cérebro e uma tendência a intimidar os mais novos”. Era amplamente respeitado por sua habilidade, mas não era apreciado por muitos dos oficiais que comandava. Existem insinuações que King chegou mesmo a utilizar do seu poder para tentar conquistar mulheres de seus oficiais inferiores. Ainda sobre essa figura, Franklin D. Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos durante maior parte da Segunda Guerra, certa vez descreveu King como “um homem que faz a barba todas as manhãs com um maçarico”.

Jornal americano da época noticiando a captura.

A ideia maluca de punição do almirante King não prosperou e a iniciativa de salvar o submarino foi muito elogiada, abrindo o caminho para o competente comandante Daniel V. Gallery receber uma promoção de almirante.

Salvo Em Um Museu

Para garantir ainda mais o segredo, a tripulação do U-505 foi completamente isolada. Eles não viram nenhum outro prisioneiro durante seu tempo de cativeiro e até mesmo a Cruz Vermelha teve o acesso negado a eles. Mas a aposta valeu a pena, pois a Alemanha declarou a morte da tripulação do submarino e informou as famílias. Os prisioneiros só seriam libertados e voltariam para casa em 1947.

O U-505 junto a um navio da Marinha americana.

O U-505 ficou na Base Operacional Naval dos Estados Unidos nas Bermudas e os oficiais e engenheiros da inteligência da Marinha o estudaram intensamente. Para manter a ilusão de que a nave alemã havia sido afundada, em vez de capturada, ela foi pintada para se parecer com um submarino americano e rebatizado como USS Nemo. A marinha removeu o periscópio da nave alemã e o colocou em um tanque de água usado para pesquisas em um laboratório em San Diego, na Califórnia.

Após as análises, o U-505 foi utilizado como máquina de propaganda e promoveu entre a população americana a venda de bônus de guerra. Em junho de 1945 o submarino visitou as cidades de Nova York, Filadélfia, Baltimore e foi até a capital Washington. Qualquer cidadão que comprasse um bônus de guerra, tinha direito a embarcar e conhecer o submarino. 

Após o fim do conflito a marinha fez pouco uso do submarino e ele ficou esquecido no Estaleiro Naval de Portsmouth, New Hampshire. Então ficou decido utilizá-lo como alvo de seus navios de guerra, até que afundasse. Mas o agora contra almirante Daniel V. Gallery se opôs aos planos sobre o destino do U-505. Ele comentou o caso com um irmão, um religioso influente, que conhecia Lenox Riley Lohr, o diretor do prestigioso MSI – Museum of Science and Industry (Museu de Ciência e Indústria) de Chicago. Lohr foi contatado para saber se a instituição que dirigia, gostaria de receber o famoso U-505. A resposta foi um eloquente “sim”!

Em setembro de 1946 decidiu-se que o governo dos Estados Unidos doaria o submarino ao museu e logo começou uma campanha junto aos habitantes de Chicago para arrecadar dinheiro para transportar o submarino e preparar o museu para recebê-lo. Conseguiram 250.000 dólares.

O U-505 nos Estados Unidos na década de 1950 – Fonte – https://uboat.net/

Em Chicago o pessoal do MSI descobriu que quase todas as partes removíveis haviam sido arrancadas do interior do U-505 e ele não estava em condições de servir para uma exposição. O diretor Lohr então contactou as empresas alemães que originalmente forneceram peças para a fabricação da nave e solicitou aos fabricantes que fornecessem os mesmos componentes e peças originais do submarino. Consta que todas as empresas não negaram apoio e forneceram as peças solicitadas gratuitamente. Desejavam assim que aquelas peças e o submarino servissem para mostrar a capacidade da tecnologia alemã.

O U-505 nos dias atuais. Reparem no buraco de um disparo de canhão na torre, ocasionado no dia de sua captura – Fonte – https://www.msichicago.org/

Em 25 de setembro de 1954, o submersível capturado tornou-se uma exposição permanente no MSI e foi criado um memorial para todos os marinheiros que perderam suas vidas na Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Vinte anos após a captura do U-505, em meio a uma reunião realizada no museu que uniu antigos inimigos, o almirante Daniel Gallery devolveu ao comandante Harald Lange um par de binóculos que lhe pertencera. Lange faleceu em 1967 e Gallery dez anos depois.

Recordam do periscópio que foi removido do U-505 e levado para San Diego? Pois bem, ele ficou esquecido por lá durante décadas, mas em 2003 foi reencontrado e a Marinha o doou ao museu para ser exibido junto com o submarino.

Torre do U-505 nos dias atuais – Fonte – https://www.msichicago.org/

Em 2004, o exterior do U-505 havia sofrido danos perceptíveis pelo tempo. O museu então o mudou para um novo local climatizado em abril de 2004. Eles o restauraram e reabriram ao público em 5 de junho de 2005.

Em 2019, o Museu da Ciência e Indústria reformou a antiga nave, restaurando-o para ficar mais próximo de sua condição original e uma exposição especial com muitos artefatos adicionais foi aberta.

E o submarino U-505 está lá no MSI, tendo voltado a receber visitantes em 2021, após grande parte do público americano já ter sido vacinados contra o Covid-19.

————————————————————————————————-

FONTES

https://www.thevintagenews.com/2016/01/31/50264/?fbclid=IwAR20jMvads0WpMU0ctv0dG4hgPmcRnWnSGxYsPllx2kbq-kFdvaBwds8H-

https://deanoinamerica.wordpress.com/2014/03/22/u-505-das-booot

https://deanoinamerica.wordpress.com/2014/03/22/u-505-das-boot/https://en.wikipedia.org/wiki/German_submarine_U-505

https://inthegardencity.com/2018/08/29/the-u-505s-service-history-before-capture-the-war-patrols-of-axel-olaf-lowe-by-s-m-oconnor

https://uboat.net/allies/merchants/ship/1953.html

https://uboat.net/boats/u505.htm

A HISTÓRIA DE UM CARIOCA DE CORAÇÃO, QUE COMBATEU NOS CÉUS DA EUROPA PILOTANDO UM BOMBARDEIRO B-17 E CUJA A FILHA SE TORNOU ATRIZ DE HOLYWOOD

Rostand Medeiros

Em relação à participação de brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial, a primeira lembrança que surge para nós que vivemos neste imenso país tropical é a da atuação da nossa heroica Força Expedicionária Brasileira e a luta dos nossos pracinhas nos campos de batalha da Itália.

Sabemos que muitos dos que envergaram os uniformes do nosso exército na Europa eram filhos de imigrantes e honraram suas famílias e tradições.

Existiram outros filhos de imigrantes nascidos no Brasil, que deixaram nossa nação e lutaram ao lado das forças do Eixo. Outros tantos entraram nas fileiras dos exércitos de nações Aliadas.

Mas houve, por assim dizer, outra categoria de combatentes oriunda de nosso país durante aquele conflito. É a dos filhos de pais estrangeiros, que nasceram, ou não, no Brasil, mas criaram fortes vínculos com nossa nação.

Normalmente estes jovens eram filhos de pessoas que representavam empresas com filiais em nosso país, ou de profissionais liberais estrangeiros que aqui abriram negócios nesta nossa bela terra tropical. Mas que não perderam totalmente seus vínculos com as suas respectivas pátrias.

Paisagem do Rio de Janeiro na década de 1940

Muitos destes jovens estudaram em por aqui, ou tinham mães brasileiras, o que aumentavam enormemente suas ligações pessoais com o nosso país. Tecnicamente eu não sei informar se estes jovens seriam enquadrados como “brasileiros natos”. Mas é certo que viveram entre nós, absolveram nossos costumes, nosso idioma, nosso jeito de ser e levavam para fora muito do nosso jeito tropical.

Nos antigos jornais cariocas temos a história de um deles.

A CAMINHO DA GUERRA

Oscar O’Neill Jr.

Este é o caso de Oscar Delgado O’Neill Junior, um jovem que certamente gostava muito do Rio de Janeiro.

Salvo informação em contrário, sabemos que seu pai, Oscar D. O’Neill, era oriundo de Porto Rico e casado com a Ada Lee O’Neill, sendo este casal bastante conceituado na sociedade carioca da época. Temos a informação que o Sr. O’Neill foi dirigente de uma instituição bancária e que aparentemente sua família morava na Rua Caning, número 31, no bairro de Ipanema, a cerca de 300 metros do mar.

Já sobre a juventude de Oscar Delgado O’Neill Junior, local onde estudou e outras informações, não temos maiores detalhes. Mas sabemos que após a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, o jovem Oscar, então com 25 anos, se alistou na United States Army Air force – USAAF.

Seguiu para o treinamento na terra do Tio Sam, onde se tornou piloto de B-17, o famoso bombardeiro quadrimotor que ficou conhecido como Fortaleza Voadora.

Católico praticante, aqui vemos o cap. O’Neill (com o capacete de voo), ao lado de uma autoridade eclesiástica católica. Abaixo o texto do verso desta foto – Fonte – NARA

Após a fase de aprendizado O’Neill foi encaminhado para servir na 8º Air Force, a grandiosa força de bombardeiros pesados da USAAF que ficava baseada na Inglaterra, de onde atacavam impiedosamente o coração do Reich alemão e todos os locais de importância estratégica para os nazistas.

No conjunto das unidades aéreas da 8º Air Force, O’Neill foi então designado para o 91th Bomb Group, com base na cidade de Bassingbourn, região de East Anglia, Leste da Inglaterra. No 91 th, O’Neill foi encaminhado para o Esquadrão Operacional 401, cujas as letras de identificação pintadas nas fuselagens dos B-17 eram “LL”.

O 91th Bomb Group foi um dos primeiros grupos de bombardeiros B-17 da USAAF a se instalar na Inglaterra. Começou a seguir para aquele país em 25 de outubro de 1942 e já em 4 de novembro realizou seu primeiro ataque. O alvo foi uma base de submarinos na cidade de Brest, na França.

A B-17 Memphis Belle original – Fonte – NARA – ENGLAND: AIRPLANES, MEMPHIS BELLE The Boeing B-17 “The Memphis Belle” is pictured on her way back to the United States after completing 25 missions from an airbase in England. 9 June 1943.

Do 91th Bomb Group fazia parte a B-17 modelo F-10-BO, com número de série 41-24485, que ficaria mundialmente conhecida como “Memphis Belle”. Esta aeronave foi uma das primeiras Fortalezas Voadoras a completar 25 missões de combate com sua equipe intacta. O avião e sua tripulação então retornam aos Estados Unidos, realizando visitas em várias cidades do país para aumentar a venda de Bônus de Guerra com a sua história, Este B-17 também serviu de tema para dois filmes. O primeiro, rodado em 1944, era um documentário intitulado “The Memphis Belle: A Story of a Flying Fortress” e o segundo uma obra dramática de Hollywood de 1990, com o título “Memphis Belle”.

EM COMBATE

Cada missão é uma prova de fogo. A expectativa de retornar para a base não é elevada. As taxas de perdas em missões de combate sobre o continente são exorbitantes. Cerca de um em cada três tripulantes não sobrevivem, ou não completam a quota de 25 missões para retornar aos Estados Unidos.

O capitão Oscar O’Neill recebendo uma condecoração e o texto que existe no verso desta foto – Fonte – NARA

O’Neill vai demonstrando extrema capacidade como comandante de B-17. Em 30 de dezembro de 1942, após lançar suas bombas sobre Lorient, França, o seu avião sofreu uma tremenda ação de combate realizada pelos caças da força aérea de Hitler, a famosa Luftwaffe.

O estrago no quadrimotor é grande, o motor número 4 havia sido arrancado da asa, os instrumentos e o sistema elétrico deixaram de funcionar. Mesmo em condições tão extremas, O’Neill conseguiu atravessar o Canal da Mancha e aterrissar na Inglaterra.

Em 4 de março de 1943 o capitão O’Neill realizou uma missão de combate onde novamente os caças da Luftwaffe atacaram com toda força. Em dado momento uma B-17 de sua esquadrilha se encontrava bastante avariada e na eminência de cair. O capitão O’Neill então manobrou seu avião, trocando de lugar com a aeronave avariada, colocando-a em uma posição mais defensiva. Pelo sangue frio e capacidade de comando, O’Neill foi condecorado com a DFC-Distinguished Flying Cross. Depois vieram as condecorações Air Medal e Oak Leaf Cluster.

Notícia da cerimônia de entrega de condecorações a família do capitão O’Neill no Rio de Janeiro

Algumas destas condecorações foram entregues a sua família pelo adido aeronáutico militar dos Estados Unidos no Brasil, o coronel J. C. Selzer, em uma cerimônia ocorrida no Rio de Janeiro, no dia 26 de outubro de 1943. Estavam presentes a solenidade o embaixador Jefferson Caffery e várias autoridades brasileiras.

A razão da entregue destas medalhas a família do capitão O’Neill, foi pelo fato dele se encontrar prisioneiro dos alemães. O fato ocorreu em 17 de abril de 1943, durante um ataque a fábrica de aviões Focke-Wulf, na cidade de Bremen, Alemanha.

VOLTA A CIDADE MARAVILHOSA

O retorno de Oscar do campo de prisioneiros para o Rio de Janeiro ocorreu no dia 8 de agosto de 1945, onde desembarcou de um hidroavião “Clipper” da empresa Pan American World Airways. Junto ao aviador vinha a sua esposa Irene, uma inglesa com quem ele havia casado na cidade de Londres, após a sua libertação. Chamou a atenção do repórter do jornal carioca Diário da Noite, na edição de 8 de agosto de 1945, como o capitão O’Neill dominava fluentemente a língua portuguesa.

Descobrimos que após a guerra Oscar O’Neill Jr. teve participação em empresas controladas pelo seu pai no Brasil, como a O’Neill Ltda e a Perfumaria Vibour. Outro trabalho realizado por O’Neill no Rio de Janeiro foi na Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, no setor de cultura desta representação diplomática.

Jennifer O’Neill

Ainda no Rio de Janeiro, em 20 de fevereiro de 1948, nascia a sua filha Jennifer.

Em 1962 na família O’Neill decide se mudar para os Estados Unidos. Naquele mesmo ano a sua bela filha foi descoberta pela agência de modelos Ford e colocada sob contrato. Aos 15 anos, a jovem Jennifer O’Neill estava na capa das revistas Vogue, Cosmopolitan e Seventeen e ganhando US$ 80.000,00 somente em 1962. Logo a garota estava trabalhando como modelo em Nova York e Paris.

Diante de sua beleza, em 1968 a indústria do cinema chamou Jennifer para seu primeiro papel. Este foi no filme “For Love of Ivy”. Apesar de sua pequena participação, ela atraiu a atenção do diretor Howard Hanks, que em 1970 a contratou para estrelar “Rio Lobo”, onde Jennifer O’Neill contracenou com John Wayne. Seu grande momento foi no filme “Summer of ‘42”, que a tornou extremamente conhecida nos Estados Unidos.

Junto a sua aeronave e sua tripulação, vemos o capitão O’Neill, o terceiro agachado, da esquerda para a direita – Fonte – NARA

Não sei se em sua biografia, “Surviving Myself”, a bela atriz Jennifer O’Neill comenta o fato de ter nascido no Brasil, ou alguma informação sobre a sua relação com nosso país. Mas nesta história me chamou a atenção o fato do seu pai, mesmo sem ter nascido no Rio de Janeiro, sempre fazia questão de apontar em documentos oficiais que esta era a sua cidade.

VEJA TAMBÉM A HISTÓRIA DE UM HERÓI DA RAF DURANTE O CERCO DE MALTA E QUE VIVEU MUITOS ANOS EM RECIFE

– https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/12/08/um-heroi-da-raf-em-malta-que-cresceu-em-recife/

Todos os direitos reservados

É permitida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de
comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.

A HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA DE JUDEUS QUE FUGIU DAS PERSEGUIÇÕES EM SUA TERRA E VIERAM PARA A CIDADE DE NATAL PARA VIVER EM PAZ

E A ESTRANHA SITUAÇÃO DOS NATALENSES NO SÉCULO XXI, QUE BUSCAM AS SUAS ANTIGAS RAÍZES JUDAICAS PARA FUGIR DA ATUAL E CRESCENTE VIOLÊNCIA EM SUA TERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Nos últimos anos no Rio Grande do Norte é notório que várias pessoas buscam ardentemente nas histórias dos seus antepassados uma pretensa ligação com a fé judaica.

Isso é bem interessante para quem vive no Rio Grande do Norte.

Pois esse é um Estado onde é perceptível que a sua classe dirigente (de todas as orientações ideológicas) pouco se importa com os temas ligados à nossa cultura e a nossa própria história. São dirigentes que pouco sabem e pouco utilizam como ferramentas positivas para o crescimento da cidadania potiguar as nossas interessantes e ricas manifestações culturais, ou dos fatos ligados ao nosso passado. Dito isso, é inegável que essas buscas individuais por uma pretensa “Raiz judaica” chamam a minha atenção.

Percebi que esse movimento de potiguares em busca da “Estrela de Davi” se tornou tão intenso, que ao publicar algumas postagens relacionadas com esse tema no “TOK DE HISTÓRIA”, todas tiveram muita procura e intensa visibilidade.

A Estrela de Davi na mais antiga cópia completa sobrevivente do texto massorético, o Códice de Leningrado, datado de 1008 – Fonte – https://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/788679/jewish/Star-of-David-The-Mystical-Significance.htm

Busca Da Fé?

Tal como o autor desse texto, cujos antepassados imigraram do Velho Mundo para viver em solo potiguar no início do século XVIII, muitas das pessoas que buscam suas “Raízes judaicas” possuem histórias semelhantes em relação aos seus antepassados.

Soldados romanos carregando os despojos das guerras judaicas – Fonte – http://www.bible-history.com/archaeology/rome/arch-titus-menorah-1.html.

Mesmo que já tenha se passado quase três séculos que essas pessoas aqui chegaram para povoar as terras potiguares, mesmo que não exista nenhuma ligação com terra de onde esses antigos vieram, mesmo tendo avós, bisavós e tataravós que nasceram em nosso sertão e debaixo do credo cristão, nos dias atuais muitos insistem e persistem arduamente nessa busca por essa “Estrela Perdida”.

Levado unicamente pela curiosidade, sempre que me encontro com aqueles que desejam se ligar (ou já se ligaram) ao judaísmo através das histórias dos seus antepassados, eu não perco a oportunidade de questionar a razão desse esforço e dessa busca.

Nos diálogos que tive percebi que alguns realmente acreditam nessa antiga ligação religiosa, que levam o tema a sério, estudam e pesquisam bastante os fatos. São pessoas que possuem informes orais que, segundo eles, provam essa ligação de maneira concreta e afirmam que seus antepassados realizavam em datas determinadas certos atos e ações que apontam para essa ligação com a fé judaica. Em meio a certos critérios, percebi que eles possuem pura e simplesmente a fé nessas teses. E sobre fé eu nada comento, apenas respeito!

Mas outros com quem dialoguei, vários inseridos nos setores sociais mais privilegiados da sociedade potiguar, essa busca pouco tem relação com a vontade de realmente se ligar a uma religiosidade praticada pelos antigos. Observei que para essas pessoas, a pretensa descoberta dessas ligações antigas se resume unicamente em conseguir determinados mecanismos que lhes facilitem a conquista de um passaporte estrangeiro para imigrar para outro país.

Pude notar que para esses que buscam suas “Raízes judaicas” como forma de facilitar sua saída do Brasil, várias são as razões pessoais para realizar esse tipo de projeto. Entretanto houve uma unanimidade nesses diálogos – A existência da violência urbana em Natal como principal motivador dessa mudança.

Ouvi repetidamente que “Natal está muito violenta”, que tem “Muito medo de viver em Natal”, ou medo de “Criar filhos em um lugar tão violento” e um até me disse que “Valia a pena até virar judeu para ir embora”.

E é verdade. Faz tempo que a capital potiguar deixou de ser o lugar idílico, calmo e tranquilo que conheci na minha juventude.

Protesto na Praia de Ponta Negra, em Natal, em 2017. O belo cartão postal da capital potiguar virou um “cemitério” em protesto por número de homicídios no Rio Grande do Norte naquele ano – Fonte – Reprodução/Inter TV Cabugi – https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2019/06/05/rio-grande-do-norte-tem-a-maior-taxa-de-homicidios-de-jovens-do-brasil-diz-atlas-da-violencia.ghtml

A nossa violência urbana, igualmente comum em outras grandes cidades brasileiras, por aqui avançou (e avança) de forma contundente e intensa. Muitas são as razões para esse fenômeno, sendo claro que as fortes desigualdades econômicas e sociais amplificadas nas últimas décadas, muito contribuíram para essa terrível mudança. Mas foi (e ainda é) algo tão forte, tão avassalador, que mudou totalmente nossos hábitos de convivência e de agir no dia a dia. E não posso esquecer que nas nossas periferias continuam a ser assoladas por uma matança incrível e cotidiana, onde os maiores atingidos são principalmente os jovens pobres e negros.

Pastores judeus da Bessarábia – Fonte – https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00279.html

Foi quando percebi que essa situação contemporânea envolvendo potiguares, possui uma certa relação com os judeus membros das famílias Mandel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, que devido a violência contra a fé judaica na Bessarábia, deixaram a sua terra na primeira metade do Século XX para encontrar na cidade de Natal aquilo que muitos atualmente sentem que perderam – Paz e tranquilidade para viver e crescer.   

Uma Região Intensa e Complicada

Possuindo uma área de 45.630 km², pouco menor que o estado do Espírito Santo, a Bessarábia fica localizada na Europa Oriental e na atualidade dois terços dessa região se encontram na República da Moldávia e uma pequena parte na República da Ucrânia. Mas no início do século XIX sua área era um principado vassalo aos turcos otomanos, que passou ao Império Russo através de negociações.

Em 1856, após a Guerra da Criméia, a Bessarábia fez parte de uma Moldávia independente, causando a perda do Império Russo acesso ao rio Danúbio, situação a qual não se conformaram. Através de negociações e ameaças, a região voltou para o domínio dos Czares em 1878. Mas em 1917, em meio a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, a Bessarábia passou a fazer parte do então Reino da Romênia, cujas tropas invadiram a região em troca da passagem livre das tropas alemãs para a Ucrânia. O governa da recém criada União Soviética não se conformou com a situação e passou a considerar essa área como sua, além de se colocava politicamente favorável a retomá-la, a força se necessário. 

Até esse período, pelas idas e vindas em sua história, dá para perceber que a Bessarábia viu muita coisa acontecer, principalmente o sangue da sua gente derramado em várias guerras. E os judeus que lá viviam estavam sempre propensos a sofrerem com essa volatilidade política, mesmo vivendo nessa região ha séculos.

Os Judeus se estabeleceram na Bessarábia no século XV, formando comunidades mais ou menos numerosas. Com o tempo começaram a participar ativamente do comércio local, tornando-se conhecidos pela fabricação de bebidas alcoólicas. Um censo realizado em 1900 apontou que viviam na Bessarábia 1.935.000 pessoas, sendo 219.000 judeus. Eles dividiam esse espaço com romenos, russos, ucranianos, búlgaros, povos de origem turcas e minorias de origem grega e alemã. Provavelmente nesse período ali viviam os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband.

Segundo um conjunto de fichas que classificaram os estrangeiros residentes em Natal, produzidas pelo Departamento de Segurança Pública em 1937 e atualmente guardada no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, descobri que dezesseis judeus, dessas seis famílias comentadas, vieram da Bessarábia e desembarcaram no Brasil entre 1912 e 1935. A maioria dessas pessoas inicialmente desembarcou em outras capitais brasileiras, para depois seguirem em momentos distintos para Natal. Eram homens e mulheres com idades variando de 61 a 19 anos, vindos das cidades de Secureni e Ataki, localizadas a nordeste da Bessarábia e distantes apenas 28 quilômetros uma da outra.

Historicamente os judeus que viviam na região de Secureni, onde consegui melhores informações, viviam do pequeno comércio, plantavam tabaco e beterraba, derrubavam e vendiam madeira, tinham moinhos de farinha e negociavam com cavalos, ovelhas, frutas e vegetais. Entre eles também haviam carpinteiros, sapateiros, peleteiros, serralheiros e outros profissionais.

Se no início do século XX essas duas cidades faziam parte da Romênia, atualmente Secureni, hoje chamada Sokyryany, fica no Condado de Chernivsti, na Ucrânia, ao lado da fronteira da República da Moldávia, onde a poucos quilômetros se encontra a antiga Ataki, atual Otaci.

Perseguições

Na primeira metade do século XIX, os judeus que viviam na Bessarábia não estavam sujeitos a perseguições dos russos. Mas em 1835, quando essa região estava gradualmente começando a perder sua autonomia e as ações de maior fortalecimento da população russa se multiplicaram, as leis antijudaicas começaram a ser aplicadas na Bessarábia, com a criação de vários decretos que tornaram a vida deles bastante complicada.

Judeus começaram a ser segregados nas grandes cidades, proibidos de estudar, impedidos de possuir propriedades e ainda exilados e isolados em pequenas aldeias espalhadas pela Europa Oriental.

As sociedades europeias da época possuíam um grande número de judeus integrados, participando até mesmo das esferas políticas, militares, econômicas e intelectuais. Apesar disso existiam fortes correntes antissemitas, de raízes religiosas ou não, na opinião pública europeia da época. Entre os cristãos europeus mais devotos, os judeus eram considerados como os “Algozes de Jesus” e outro tipo de preconceito bastante forte era o de ordem econômica. Diante desse quadro, não demorou para à situação dos judeus na Bessarábia piorar.

Macabro resultado do Primeiro Progrom de Chisinau em 1903.

Em 6 a 7 de abril de 1903, na cidade de Chisinau, atual capital da Moldávia, durante o Pessach, a Páscoa judaica, habitantes locais foram incentivados por autoridades do Império Russo para organizarem um “pogrom”, ou seja, uma série de ataques massivos, espontâneos contra os judeus, caracterizado por assassinatos, espancamentos, assédio, destruição de casas, de negócios, templos religiosos e outros ataques violentos. 

O chamado Primeiro Pogrom de Chisinau deixou 49 judeus assassinados, entre estas várias crianças. Cerca de 500 pessoas ficaram feridas, 1.500 casas e lojas judias foram parcialmente ou totalmente destruídas e 2.000 famílias judias ficaram desabrigadas.

Este pogrom abalou a população judia do Império Czarista e marcou uma virada na opinião pública judaica e mundial. Isso foi seguido por um novo aumento nas ondas de emigração de judeus da Europa Oriental para os Estados Unidos e para à Palestina.

O Presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt chama a atenção do Czar da Rússia Nicolau II para o massacre de Chisinau.

Uma das consequências desse ataque foi a vinda de 267 judeus da Bessarábia, distribuídos em 37 famílias, para formar uma colônia agrícola no Brasil, que ficou conhecida como Colônia Philippson. Eles chegaram em 18 de outubro de 1904 para ocupar uma área de 4.472 hectares, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 

Mas não demorou e os judeus da Bessarábia levaram uma segunda dose de violência. Entre 19 e 20 de outubro, novamente em Chisinau, ocorreu um segundo progrom, com 19 mortos. Dessa vez o número de vítimas foi menor porque os judeus resistiram em algumas áreas e chegaram a matar alguns atacantes. Já na área das cidades de Secureni e Ataki não ocorreram ataques dos russos, mas o medo passou a ser a tônica do dia a dia desses judeus, que poucos anos depois começariam a imigrar para Natal.

Monumento na Moldávia em honra aos que morreram nos progroms realizados na Bessarábia.

Logo a região da Bessarábia, conforme comentamos anteriormente, passou a ser dirigida por autoridades do atualmente extinto Reino da Romênia. Isso criou a ideia que as perseguições diminuiriam, mas não foi assim que aconteceu.

Os judeus que viviam na cidade de Secureni tinham relações estáveis ​​com seus vizinhos, mas sofriam com a atitude dos agentes do governo. No final de 1921, na véspera do Yom Kippur, judeus andando nas ruas foram presos, muitos homens, mulheres e crianças foram retirados à força de suas casas e levados para um campo fora da aldeia, onde foram vigiados por guardas armados e montados em cavalos. Depois da meia-noite, em meio a muito frio, o Chefe da Polícia, outros policiais e um médico indicado pelo governo vieram ao campo. Queriam prender dois refugiados que haviam cruzado um rio das proximidades e seriam espiões russos. Ameaçaram que no caso de não encontrar os dois homens, eles deportariam todos da aldeia. Os soldados abusaram dos judeus, mas como não encontraram os dois elementos desistiram da ação e todos voltaram para casa.

Parece que com essa perseguição (e talvez outras mais), associado a notícia da mudança de judeus da Bessarábia para o Brasil, tornou atrativa a ideia de alguns judeus das cidades de Secureni e Ataki mudarem para o nosso país. Pois a maioria dos judeus que vieram dessa região para viver em Natal, partem da Bessarábia na primeira metade da década de 1920.

Chegada ao Novo Mundo

Ao tentarmos cruzar informações disponíveis na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, com os dados que possuímos sobre os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, são poucas as informações conseguidas. Mas foi possível traçar o caminho de uma dessas famílias através do tempo e perceber, mesmo limitadamente, como se desenvolveu sua mudança para Natal e sua vida posterior.

RMS Andes – Fonte – http://www.naval-history.net

No dia 21 de junho de 1926, ao meio dia, o vapor inglês RMS Andes, da Royal Mail Steam Packet Company, conhecida no Brasil como Mala Real Inglesa, lançou âncora em frente ao farol da barra do porto de Recife. Havia zarpado 15 dias antes do porto de Southampton (Inglaterra), com escalas em Cherbourg (França), Vigo (Espanha) e Lisboa (Portugal).

Em Recife desembarcaram 22 passageiros, entre eles o jovem casal Samuel e Bertha Axelband, ele com 24 e ela com 19 anos de idade e sem filhos. Mas os tramites burocráticos do casal na alfandega só foram resolvidos um dia depois, uma terça-feira. A razão provável foi um grande bafafá ocorrido na repartição, inclusive noticiado nos jornais, em decorrência da prisão do comerciante judeu Alexander Gurewitz. Este pretendia embarcar no mesmo RMS Andes para o Rio de Janeiro, mas teve a sua partida sustada por dois oficiais de justiça e policiais, que cumpriram um mandato expedido pelo juiz Adolpho Cyriaco, a pedido da Sra. Sophia Goldel, também judia e sua credora. (Diário de Pernambuco, 22/06/1926, págs. 2 e 4).

Certamente na capital pernambucana o casal recebeu apoio da comunidade judaica, que era relativamente numerosa e atuante. Mas, por alguma razão, eles não permaneceram em Recife. Provavelmente Samuel deve ter trabalhado como mascate, profissão que abria contatos e horizontes e era a atividade muito comum entre os judeus desembarcados Brasil vindos da Europa Oriental.

Uma situação normal para todos estrangeiros e imigrantes no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial – Todos seus deslocamentos em aeronaves eram monitorados pelo DOPS. Isso ocorria independentemente de raça, origem, credo, etc. O interessante é que esse material normalmente traz boas informações de pessoas que são alvo de pesquisas históricas.

Talvez como fruto de suas andanças, vamos ter notícias dos Axelband sete anos depois de desembarcarem em Recife. Uma nota afirma que Samuel Axelband era um comerciante em São Luís, no Maranhão, e divulgava o aniversário do seu filho Aron (O Imparcial, 07/03/1933, pág. 2). Mas seja lá o tipo de comércio que Samuel tinha nessa cidade, aparentemente ele não durou muito, pois quatro anos depois seu nome consta no prestigiado Almanak Laemmert (Ed. 1937, pág. 1.376) como sendo proprietário da alfaiataria “A Carioca”, na Rua Simplício Mendes, no Centro de Teresina, Piauí, uma rua com várias alfaiatarias. Nesse negócio Samuel aparentemente tinha uma sociedade com uma pessoa de sobrenome “Luz”, mas não obtive maiores informações.

É provável que essa informação não seja totalmente correta. Não no sentido que Samuel Axelband e sua família viveram em Teresina, mas na data. Pois é conhecido que os nomes listados no Almanak Laemmert perduravam por anos nas novas edições desse almanaque, gerando informações equivocadas. Até porque a família Axelband já vivia em Natal em janeiro de 1938.

Imigrante de Sucesso

O Censo demográfico de 1940 apontou Natal com 109 judeus e, segundo Câmara Cascudo (Ver o livro História da Cidade do Natal, 1999, IHGRN, pág. 389) sua sinagoga havia sido fundada em 12 de janeiro de 1919, um domingo, quando a pandemia de Gripe Espanhola se encaminhava para seu final. É provável que a existência dessa comunidade judaica e o fato de prováveis parentes de sua esposa, cujo sobrenome de solteira era Mandel, já viverem e comerciarem em Natal, tenha influenciado Samuel Axelband a viver nessa parte do Brasil.

Não sabemos como seu deu a chegada dessa família em Natal, qual negócio Samuel montou primeiramente e nem como se deu sua relação com a comunidade judaica e com a população local. Mas sabemos que quem se destacou em sua família na cidade por essa época, foi a sua filha Riva Axelband, que começou a chamar atenção do maestro Waldemar de Almeida como exímia pianista e logo a jovem realizava apresentações para a sociedade local. Como na 19ª audição do “Curso Waldemar de Almeida”, ocorrida em 31 de janeiro de 1938 no Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão. No seu piano marca Albert Schmölz, Riva tocou a “Mazurca” opus 24 n. 1, do polonês Frederic Chopin e nos anos seguintes outros recitais se repetiriam.

Temos a informação que Samuel Axelband fundou, em data desconhecida, uma loja chamada “Casa Glória”, especializada em artigos masculinos, no bairro da Ribeira, na Rua Dr. Barata, número 205. Ao lado da sua loja havia o comércio de um outro judeu, era a “J. Mandel & Cia”, um parente de sua esposa.

Bairro da Ribeira, em Natal, na época da Segunda Guerra.

Provavelmente Samuel percebeu claramente a grande possibilidade de negócios que ocorreria com a Segunda Guerra Mundial e a presença de tropas americanas na capital potiguar em Natal. Logo seu negócio prosperou enormemente, ao ponto de fundar na Rua Chile, número 240, em frente a atual Capitania dos Portos, uma movelaria chamada “Progresso”.

Segundo o livro Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff (Pág. 53, Rio de Janeiro, 1984), 30 dias após a morte de Franklin Delano Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos, houve na sede do Centro Israelita de Natal (CEN), no centro da cidade a cerimônia dos trinta dias de falecimento, que na fé judaica se denomina Shloshim. O ato foi realizado pelo Rabino Baum e contou com a presença de militares americanos judeus. Também estiveram presentes vários judeus que moravam em Natal, entre eles Samuel Axelband. 

Após o fim da guerra, como fizeram quase todos os judeus que viviam em Natal, os Axelband partiram da cidade nordestina que lhes deu tranquilidade para viver, mas que depois da Segunda Guerra e da partida das tropas estrangeiras, tinha pouco em termos econômicos a oferecer. Samuel foi viver em Recife, onde manteve uma representação de relógios.

Não sabemos quando sua existência findou nesse plano existencial e nem o que ocorreu com a sua família, mas sua trajetória e sua história no Brasil, especialmente em Natal, apontam para uma história de sucesso de um imigrante judeu da Europa Oriental que, mesmo recebendo apoios de pessoas da mesma religião, claramente mostra como essas pessoas desse grupo minoritário podiam viver tranquilos em Natal e no Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX, sem o perigo dos progoms e das perseguições religiosas.

Cada um tem o direito acreditar na religião que quiser. Isso é uma situação de foto íntimo. Mas não deixa de ser um tanto irônico que em Natal, na segunda década do século XXI, na era do “futuro”, vários de seus cidadãos que não nasceram judeus, se voltem para suas pretensas “Raízes judaicas” para migrar de uma violência que anualmente crescer no número de assassinatos.

JHJHJHKJKH

Livros – História da Cidade do Natal, Câmara Cascudo, 1999, IHGRN, pág. 389.

Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff, 1984.

Internet – https://kehilalinks.jewishgen.org/philippson/index.html

https://www.apusm.com.br/2014/09/fazenda-phillipson-os-114-anos-da-imigracao-judaica-em-santa-maria/

https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00382.html

https://en.wikipedia.org/wiki/Bessarabia

https://ro.wikipedia.org/wiki/Istoria_evreilor_din_Republica_Moldova

NO TOK DE HISTÓRIA PODEM SER ENCONTRADOS ESSES TEXTOS SOBRE ASSUNTOS LIGADOS A JUDEUS.

PARA NUNCA SER ESQUECIDO – AUSCHWITZ: IMAGENS DE ONTEM E DE HOJE

O MITO SOBRE A ORIGEM DE SOBRENOMES DE JUDEUS CONVERTIDOS

OS CRIPTO JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS EM NATAL – A SAGA DOS PALATNIK

A HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS SEM SABER

LEI PODE DAR CIDADANIA A BRASILEIROS DESCENDENTES DE JUDEUS

DIÁSPORA: DESCUBRA COMO OS JUDEUS SE ESPALHARAM PELO MUNDO

https://tokdehistoria.com.br/2014/03/23/sobrenomes-de-judeus-expulsos-da-espanha-em-1492-veja-se-o-seu-esta-na-lista/

A EXPULSÃO DOS JUDEUS DE PORTUGAL

ALIADOS? – A ESPIONAGEM BRITÂNICA NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Sabemos que durante a Segunda Guerra Mundial inúmeros navios brasileiros foram afundados por submarinos e essas ações bélicas levaram o Brasil a declarar formalmente o Estado de Guerra contra a Alemanha Nazista e a Itália Fascista no dia 22 de agosto de 1942.

Com isso o Brasil tornou-se um dos países que lutaram ao lado dos Aliados e em nosso território forças militares norte-americanas construíram estratégicas bases aéreas e navais que ajudaram na defesa do nosso território, na ação contra os submarinos nazifascistas, bem como no transporte aéreo para as áreas de combate na África, Ásia e Europa.

Igualmente sabemos que antes mesmo dessa declaração de guerra o Brasil foi alvo de espiões dos países do Eixo, que atuaram com o apoio de colaboradores brasileiros, a maioria deles antigos participantes da Ação Integralista Brasileira (AIB). Esse foi um movimento político de extrema-direita surgido em nosso país em 1932, cujos integrantes eram jocosamente chamados de “Galinhas Verdes”, por utilizarem uniformes nesse padrão de cor.

Ao longo do conflito mundial as autoridades brasileiras, apoiados por americanos, prenderam vários espiões estrangeiros e seus colaboradores tupiniquins. Muitos deles foram julgados e condenados, alguns até mesmo a pena de morte, mas nunca foram executados.

Instrumentos de trabalho de um espião na Segunda Guerra.

A história sobre a espionagem nazifascista no Brasil durante a Segunda Guerra é bem conhecida e propalada. Mas são poucas as informações sobre a atuação de espiões dos países Aliados agindo em território brasileiro.

Mas ela existiu!

Um dos casos mais conhecidos é uma ação orquestrada pelos britânicos, que criaram uma carta idêntica à de uma empresa aérea italiana, em cujo conteúdo o presidente Getúlio Vargas era chamado de “Gordinho” e os brasileiros de “macacos”. A carta foi tão séria que acabou com uma importante brecha no esquema de segurança dos Aliados na América do Sul. Isso tudo logo após uma séria crise diplomática entre brasileiros e britânicos.

Comecemos por essa crise!

O Caso do Navio Siqueira Campos

Logo após o início das hostilidades, a Grã-Bretanha e sua marinha, a maior e mais poderosa do mundo naquela época, iniciou um bloqueio naval à Alemanha e a Itália, buscando cortar os suprimentos militares e civis vitais a essas nações.

Ocorre que em 1938 o Governo do Brasil assinou um acordo de oito milhões de libras esterlinas com a fábrica de armamentos alemã Friedrich Krupp AG, cuja finalização dos artefatos só ocorreu no segundo semestre de 1940, após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1 de setembro de 1939.

O navio Siqueira Campos – Fonte – 1.bp.blogspot.com

Quando o material bélico ficou pronto, os alemães despacharam tudo até Lisboa em trens, onde os caixotes seriam embarcados no navio de cargas e passageiros Siqueira Campos, da empresa de navegação Lloyd Brasileiro. Em 19 de novembro daquele ano esse navio estava pronto para partir rumo ao Rio de Janeiro, com o lote de armas acondicionadas no seu porão.

Após o Siqueira Campos içar âncora, deixar Lisboa para trás e alcançar águas internacionais, navios de guerra da Marinha Britânica surgiram no horizonte e ordenaram a parada do navio brasileiro. Este foi abordado por oficiais e marinheiros impecavelmente uniformizados com bermudas e meiões brancos.

Destroier britânico na época da Segunda Guerra.

Na sequência a tripulação do Siqueira Campos foi obrigada a seguir com seu navio para a colônia britânica de Gibraltar, aonde chegou em 22 de novembro de 1940, ancorando próximo ao porto e tendo a bordo 145 tripulantes e 250 passageiros. Esse pessoal não pode desembarcar e só partiram quando a crise se encerrou, quando a situação a bordo era alarmante.

No Brasil, o gaúcho Oswaldo Euclides de Souza Aranha, então Ministro das Relações Exteriores, recebeu a notícia e comunicou o fato ao presidente Vargas. Na sequência Aranha manteve contato com Geoffrey George Knox, Embaixador Britânico no Brasil, que estava de mãos atadas esperando instruções do seu governo. Depois Oswaldo Aranha correu em busca do auxílio da diplomacia dos Estados Unidos para ajudar a resolver o imbróglio. Os americanos logo se deram conta que a atitude britânica em relação ao Siqueira Campos poderia comprometer toda sua “Política de Boa Vizinhança” com o Brasil e os países latino-americanos.

Enquanto a diplomacia buscava uma solução, a notícia da apreensão do Siqueira Campos em Gibraltar deixou os brasileiros furiosos com o Governo Britânico. Em relação a esse caso muitos brasileiros tinham a percepção que a Grã-Bretanha agia com uma clara atitude imperialista. Nas ruas do Rio comentavam que os britânicos tomariam as armas do navio, compradas e pagas aos alemães ainda em 1938, para utilizá-las contra seus fabricantes e não receberíamos nada em troca.

O Embaixador Britânico no Brasil Geoffrey George Knox cumprimenta com um aperto de mão “diplomático” o Presidente Getúlio Vargas, diante do olhar atento do Ministro Oswaldo Aranha – Fonte Agência Nacional.

Em meio a todo esse rolo do Siqueira Campos, quem ria abertamente da truculenta bobagem britânica eram os alemães e seus colaboradores. Enquanto a influência da Alemanha crescia positivamente em nosso belo país tropical, os alemães mostravam aos brasileiros o tipo de “Aliado” complicado que os britânicos podiam ser.

Finalmente os dois países chegaram a um acordo para liberar o Siqueira Campos, que partiu para o Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1940. Mas essa crise diplomática, uma das mais sérias entre brasileiros e britânicos no Século XX, marcou negativamente a visão do governo Vargas e do povo brasileiro em relação aquele país.

Perigo Real

Avião da LATI com suas cores e marcações características – Fonte http://www.spmodelismo.com.br

Em 1941 os britânicos mantinham em Nova Iorque uma agência de informações, cuja finalidade era proporcionar estreita ligação com os serviços de informações norte-americanos em seu próprio país, facilitando as manobras dos dois grandes aliados na guerra contra o Eixo. O Chefe dessa Agência era o cidadão inglês William Samuel Stephenson, cujo codinome era “Intrépido”.

Nessa época aeronaves da companhia aérea italiana LATI (Linee Aeree Transcontinentali Italiane) realizavam voos regulares entre o Brasil e a Europa, onde transportavam importantes figuras nacionais e estrangeiras, além de correios especiais dos diplomatas alemães e italianos, que não podiam ser violados. Vale ressaltar que muitos desses diplomatas eram na verdade espiões nazifascistas disfarçados. Nesses voos seguiram para a Europa diamantes, platina, mica, substâncias químicas, livros e filmes de propaganda dos Aliados. Um verdadeiro “buraco” no bloqueio militar e econômico efetuado pelos ingleses contra a Alemanha e a Itália.

Um submarino nazista em mar agitado. Esse foi o verdadeiro flagelo do Brasil na Segunda Guerra.

Stanley E. Hilton, em seu livro Hitler’s Secret War In South America, 1939-1945: German Military Espionage and Allied Counterespionage in Brazil informou que membros da embaixada americana no Brasil transmitiram aos britânicos que durante as travessias no Oceano Atlântico, os pilotos da LATI estavam visualizando navios britânicos, marcando suas posições em mapas e informando os alemães para enviar seus submarinos e afundá-los (pág. 205).

Hilton também comentou sobre uma carta de Jefferson Caffery, Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, de 29 de novembro de 1941, endereçada ao Ministro Oswaldo Aranha e atualmente guardada no Arquivo Histórico do Itamaraty. Nela Caffery informou que provavelmente foram os tripulantes da companhia aérea italiana, os responsáveis ​​por transmitirem informações que levaram ao afundamento de navios britânicos perto das Ilhas de Cabo Verde, nessa época uma colônia portuguesa. (pág. 207).

Cruzando essa informação com dados sobre a movimentação e ação de submarinos alemães e de aviões da LATI nesse período, descobri na página 5, da edição de 10/10/1941 do Diário de Pernambuco, que no dia 9 de outubro havia partido de Roma o aparelho da LATI modelo Savoia-Marchetti SM.82, número de fabricação MM.60326 e matrícula I-BENI. Essa aeronave trimotor fez escalas em Sevilha (Espanha), Villa Cisneiros (atual Dakhla, na região do Saara Ocidental) e Ilha do Sal (Cabo Verde), onde pernoitou. No outro dia, 10 de outubro, decolou para atravessar o Atlântico Sul, tendo pousado por volta das 15h20min da tarde em Recife, no Campo do Ibura. Estranhamente essa aeronave trouxe um único passageiro que vinha de Berlim – o jornalista chileno Ernesto Samhaber.   

O cargueiro britânico SS Nailsea Manor – Fonte – http://www.sixtant.net

Ocorre que nesse mesmo dia pela manhã, na posição 18° 45’ N e 21° 18” W, a cerca de 180 milhas náuticas a nordeste das Ilhas de Cabo Verde, o cargueiro britânico SS Nailsea Manor foi torpedeado pelo submarino alemão U-126, comandado pelo capitão-tenente (Kapitänleutnant) Ernest Bauer. Esse navio transportava uma preciosa carga de 6.000 toneladas de armas, munições e no seu convés estava até um LCT, ou Landing Craft Tank, um barco de desembarque de veículos blindados. Devido uma tempestade o Nailsea Manor estava desgarrado de um comboio e seguia acompanhado de dois outros navios de carga. Esse pequeno grupo estava sendo escoltado pela corveta HMS Violet (K-35), comandada pelo Tenente Frank Clarin Reynolds, que não pode fazer nada em relação ao torpedeamento. O capitão John Herbert Hewitt, comandante do Nailsea Manor, conseguiu retirar do barco toda a sua tripulação de 41 pessoas, que foram recolhidos pelo pessoal do Violet (Ver http://www.sixtant.net/2011/index.php).

O kapitänleutnant Ernest Bauer na torre do submarino U-126 – Foto de Ariane Krause, através de http://www.uboat.net

Apesar da carta do Embaixador Caffery comentar com o Ministro Oswaldo Aranha sobre o torpedeamento de “navios britânicos” perto das Ilhas de Cabo Verde, não encontrei outra informação sobre ataques de submarinos nazistas nessa área entre outubro e novembro de 1941. Acredito que o torpedeamento do cargueiro britânico SS Nailsea Manor, é o caso comentado por Caffery a Aranha.

O Savoia-Marchetti SM.82, I-BENI, realizou durante sua operação no Brasil um total de 25 travessias transatlânticas e foi o avião da LATI que mais percorreu o trajeto entre a Itália e o Brasil.

Espiões Britânicos em Ação no Brasil, Antes de 007

Mas é que os britânicos, depois do verdadeiro banzé que foi o caso do Siqueira Campos, poderiam convencer o governo brasileiro a barrar essa brecha no seu bloqueio aos países do Eixo?

Avião da LATI aterrissando no Campo de Parnamirim, Natal, Rio Grande do Norte, em 1940. No solo estão trabalhadores potiguares realizado os serviços bancados pelo governo americano para a construção da base de Parnamirim Field – Foto Hart Preston – LIFE.

Para piorar o meio de campo, consta que o governo brasileiro não desejava obstruir esse fluxo aéreo. Um dos genros do presidente Getúlio Vargas era um dos diretores técnicos dessa linha aérea e havia muitos brasileiros influentes interessados em preservar os direitos da LATI em nosso território. Além disso, era a Standard Oil, companhia de petróleo norte-americana, que abastecia os aviões da LATI com o combustível necessário para os voos intercontinentais. Detalhe – Uma das bases da LATI no Brasil era em Natal, no antigo Campo dos Franceses, que nessa época já começava a se transformar em uma grande base aérea construída pelos norte-americanos e seria conhecida como Parnamirim Field.

O Chefe das Operações Especiais em Londres estava ansioso para que algo drástico fosse realizado no sentido de eliminar esse grave inconveniente para os interesses britânicos, mas sem criar problemas com o Brasil e, por tabela, com os norte-americanos. Instruções foram remetidas a William Stephenson em Nova Iorque, informando sobre o fato, das consequências para o bloqueio inglês e ordenando que algo deveria ser feito para tapar a brecha inconveniente.

Stephenson e seus assessores conceberam então um plano que consistia em fazer chegar ao governo brasileiro uma carta comprometedora, cujo teor teria sido supostamente escrito por alguém importante, da alta administração da LATI na Itália, e endereçada a um diretor da companhia no Brasil. O texto da missiva deveria conter elementos tão graves, que pudessem resultar no cancelamento da concessão da companhia italiana para operar a rota transatlântica.

William Stephenson, o “Intrépido”

Os agentes de Stephenson no Brasil imediatamente puseram mãos à obra e, depois de algumas semanas, conseguiram obter uma carta genuína escrita pelo presidente da LATI, o General Aurélio Liotta, e remetida da sede central da companhia em Roma. Encaminharam-na para Nova Iorque sugerindo que a carta falsa deveria ser endereçada ao diretor geral da LATI no Brasil, o Comandante Vicenzo Coppola, que morava no Rio de Janeiro.

Os técnicos em Nova Iorque teriam que simular exatamente o tipo de papel empregado, o timbre existente e aforma dos caracteres da máquina de escrever usada pelo General Liotta.

Por sorte, foi conseguida uma pequena quantidade papel de polpa da palha do tipo necessário e que constituía um detalhe essencial na operação proposta. O relevo do timbre foi copiado com detalhes microscópicos, uma máquina de escrever foi especialmente reconstruída a fim de reproduzir as imperfeições mecânicas daquela usada pela secretária do General para datilografar a carta original e um falsificador copiou a assinatura de Liotta.

Uma verdadeira obra-prima da falsificação.

A Carta do “Gordinho”

A carta falsa foi então preparada em italiano, microfotografada e o microfilme remetido para o principal agente de Stephenson no Rio de Janeiro.

Traduzida, continha o seguinte teor:

Linne Aeree Transcontinentale Italiano S.A.

Roma, 30 de outubro de 1941.

Prezado Camarada:

Recebi seu relatório que chegou cinco dias depois de ter sido despachado.

Este relatório foi levado ao conhecimento dos interessados que o consideraram de suma importância. O comparamos com um outro recebido de Praça Del Prete. Os dois relatórios apresentaram o mesmo quadro da situação que ali existe, mas o seu é mais detalhado. Quero lhe dar os meus parabéns, O fato de que, obtivemos desta vez informações mais completas com o Sr. e seus homens, me proporciona grande satisfação.

Não resta dúvida que o “gordinho” está cedendo ante os lisonjeios dos Americanos, e que somente uma intervenção violenta por parte de nossos amigos verdes poderá salvar o país. Os nossos colaboradores de Berlim, depois de entendimentos que tiveram com o representante em Lisboa, decidiram que tal intervenção deverá se realizar o mais breve possível. Porém você está a par da situação. No dia em que se der a mudança, os nossos colaboradores não se interessarão de maneira alguma pelos nossos interesses e a Lufthansa colherá todas as vantagens.

Para evitar que isto aconteça, precisamos procurar amigos de influência dentre os “verdes” o mais cedo possível. Faça-o sem demora.

Avião da Lati no Rio de Janeiro – Fonte – LIFE.

Deixarei a seu critério a escolha das pessoas mais apropriadas: talvez Padilha ou E. P. de Andrade seriam de mais utilidade do que o Q.B. o qual, apesar de ativo, não vale muito.

A importância que você necessitar será posta a sua disposição, não importa o fato dos camisas verdes precisarem de somas consideráveis. Eles as terão. O ponto importante é que nosso serviço deverá tirar proveito de uma mudança de regime. Procure saber quem é que deseja nomear para Ministro da Aeronáutica e tente captar a sua simpatia. O Senhor precisará ficar a par do que suceder, porém já concordamos em que as negociações ficarão em mãos da LATI, que atuará na sua capacidade de empresa brasileira procurando a extensão a melhoramento de seus próprios serviços.

Espero a máxima discrição de sua parte. Como disse no seu relatório a respeito da Standard Oil, os ingleses e americanos se interessam em tudo e em todos. E se for também verdade – como você afirma com justiça que o Brasil é um país de macacos, não nos devemos esquecer que são macacos dispostos a servir a quem tem as rédeas na mão.

Saudações Fascistas

(a) General P. Liotta

Comandante

Vicenzo COPPOLA

Linee Aeree Transcontinentale Italiana S.A.

RIO DE JANEIRO (BRASIL)

Coppola Preso e a LATI Impedida de Voar

O tal “gordinho”, ou “il grassoccio” em italiano, foi imediatamente identificado como sendo o Presidente Getúlio Vargas, e os “amigos verdes”, ou simplesmente “verdes”, eram os integralistas. Como vimos, a carta continha um insulto pessoal ao Presidente da República, abuso de hospitalidade, críticas à sua política externa e sugeria o encorajamento de seus inimigos políticos. Os agentes secretos ingleses esperavam que essa combinação de apreciações negativas fizesse com que o Presidente Vargas reagisse vigorosamente. Imediatamente após ter recebido o microfilme da carta, o agente de Stephenson no Rio de Janeiro providenciou para que fosse executado um “roubo” à casa do Comandante Coppola, situada na Avenida Vieira Souto, 442, Ipanema, no qual um relógio de cabeceira e outros artigos foram roubados. Atualmente nesse endereço se encontra o Condomínio Ker Franer.

Coppola então chamou a polícia e o “caso” teve alguma publicidade – exatamente o que esperava o agente britânico no Rio – pois tornava patente para as autoridades brasileiras e o público em geral, que se tratava de um roubo real.

Ficha de imigração de Vicenzo Coppola – Fonte – Arquivo Nacional.

Em seguida um brasileiro ligado ao agente secreto inglês procurou um repórter da agência noticiosa americana “Associated Press”. Após obter do mesmo a promessa de que guardaria segredo absoluto, confessou ter tomado parte no assalto à casa de Coppola e entre os seus pertences encontrara um documento microfotografado, que parecia ser muito interessante. Quando o repórter leu seu conteúdo percebeu que era uma carta do presidente da LATI e chegou à conclusão que o original havia sido considerado muito perigoso para ser remetido pelo correio aéreo normal. Concluiu também que aquela missiva tinha sido enviada de forma clandestina para evitar uma possível interceptação. Com aquele tesouro nas mãos, o repórter dirigiu-se à Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, e mostrou-a ao Embaixador Jefferson Caffery. Este diplomata determinou que fossem feitas investigações para ampliação e constatação de sua possível veracidade.

Ao receber o resultado dessas investigações, Caffery concluiu que a carta microfotografada era verdadeira e imediatamente enviou para o Presidente Vargas o microfilme e os resultados obtidos com as investigações em meados de novembro. Para Caffery o Presidente do Brasil pareceu “muito impressionado” com a missiva em italiano e reagiu exatamente como Stephenson esperava. Cancelou imediatamente todos os direitos da LATI no território nacional e ordenou a prisão do seu diretor geral.

Notícia sobre Coppola na época de sua fuga para a Argentina.

Vicenzo Coppola tentou fugir do país, tendo previamente retirado um milhão de dólares de um banco, mas foi preso quando procurou cruzar a fronteira com a Argentina. Mais tarde foi sentenciado a sete anos de prisão e teve seus bens confiscados. Foi posto em liberdade no dia 14 de agosto de 1944, em consequência de um habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Faleceu no Rio de Janeiro, em 27 de maio de 1963.

Por infração às leis brasileiras a empresa aérea LATI foi multada em CrS 85.000,00 (oitenta e cinco mil cruzeiros), além de ter seus aviões, campos de pouso e equipamentos de manutenção confiscados pelas autoridades, enquanto suas tripulações e o pessoal de origem italiana foram internados.

Para os integrantes da representação diplomática dos Estados Unidos no Brasil, a opinião dominante na época foi que a carta do General Liotta havia sido o principal fator que levara o Presidente Vargas a se voltar contra o inimigo.

Espião preso por militares americanos.

Consta que os norte-americanos generosamente decidiram repartir o segredo com o representante do serviço de inteligência na Embaixada Britânica no Rio. Um membro do corpo diplomático americano reproduziu a carta e o agente de Stephenson fingiu mostrar grande interesse e admiração pelo fato e até cumprimentou efusivamente seu colega por esse trabalho.

Conclusão

Nesse tipo de negócio, o bem mais valioso que existe e que todos buscam avidamente são as informações estratégicas vindas de fontes privilegiadas, com conteúdos valiosos, principalmente ligados a assuntos de defesa de uma nação.

Esse tipo de informação é tão importante quanto o poderio bélico, sendo algo que pode definir conflitos entre países e esse tipo de atividade sempre esteve presente em praticamente todos os períodos da historia.

Henry John Temple, o 3º Visconde de Palmerston, mentor da política externa britânica durante grande parte do século XIX, declarou no Parlamento Britânico “Não temos aliados eternos e não temos inimigos perpétuos. Nossos interesses são eternos e perpétuos, e é nosso dever seguir esses interesses”.

Não é novidade que nações amigas realizam espionagem entre si, o chamado “conhecimento comum”. Muitas vezes essas ações se realizam focados na ideia, bem real, que “um amigo de hoje, pode não ser um amigo amanhã”. Além disso, como bem apontou Palmerston, nações não possuem amigos, apenas interesses.

SEGUNDA GUERRA EM NATAL – O DEPÓSITO DA ADP DA RUA CHILE

Rostand Medeiros – IHGRN

Parte Integrante do livro Lugares de Memória – Edificações e Estruturas Históricas em Natal Durante a Segunda Guerra Mundial, páginas 73 a 75.

Sobre esse depósito, Lenine Pinto assegura que o local original era ao lado do Centro Náutico Potengy, tradicional clube de remo localizado na Rua Chile. Para esse autor, o prédio seria como um “ship Chandler”, um local da Airport Development Program (ADP), especializado em fornecimento de suprimentos para os navios da Marinha dos Estados Unidos.

Ali, segundo Lenine, eram estocados grandes carregamentos de suprimentos, acondicionados em caixas, fardos e outras embalagens. Quando esse material estragava, pelo menos para o padrão dos norte-americanos, era jogado no Rio Potengi. Aí um funcionário brasileiro do local só colocava esses produtos no rio com a maré vazante, onde o material flutuava até a comunidade do Canto do Mangue. Pessoalmente, já ouvi alguns depoimentos de pessoas que recolheram no Rio Potengi várias latas de manteiga de ótima qualidade.

Lenine comentou, por meio do relato de Rui Garcia, que ao final do conflito o que sobrou nesse depósito e em outros “três grandes depósitos de comestíveis” que os americanos possuíam em Parnamirim, foi vendido para o Exército Brasileiro[1].

Durante a realização desta pesquisa, em contato com outros pesquisadores do tema, surgiram dúvidas se o depósito nesse endereço teria sido realmente utilizado para esse fim. Ou teria sido em outro local?

A dúvida surgiu por esse ser um depósito que possui pequenas dimensões na atualidade e que, aparentemente, não teria condições de ser um local de armazenamento da ADP. Vale lembrar que essa era a empresa que desenvolvia a gigantesca obra da Base de Parnamirim.

Foto antiga do Porto de Natal.

Seria, então, esse local de maiores dimensões, ou ele sofreu alterações?

Segundo relatos de trabalhadores e administradores de empresas na região, quando estivemos visitando o prédio em 2014, aparentemente a resposta é não!

Pudemos perceber na época dessa visita que a edificação apresentava poucas alterações mais radicais.

Outra dúvida estava nas proximidades.

Não muito distante do endereço da Rua Chile, número 44, existe um local conhecido naquele setor com “Frigorífico” e pertencente à Companhia Docas do Rio Grande do Norte (CODERN). Pela sua grande dimensão, antes de ter sido utilizado para conservação de gêneros alimentícios, ali poderia ser esse o antigo depósito da ADP?

Atendendo a um pedido nosso, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte solicitou informações sobre o caso ao Almirante Elis Treidler Öberg, atual Diretor-Presidente da CODERN. Esse, por sua vez, encaminhou um texto do jornalista Aproniano César Fagundes Trindade, pesquisador da história do Porto de Natal desde 1972 e fundador de um museu que guarda a história do nosso porto. Nesse texto Trindade informou ter sido o local idealizado como frigorífico durante a Segunda Guerra e destinado ao abastecimento das tropas aqui sediadas. Mas sua construção só se iniciou em 1948 e foram concluídas em 1951. Isso descartou a utilização do “Frigorífico” como o antigo depósito da ADP, pois os norte-americanos deixaram definitivamente Natal em 1947.

Nesse sentido, sem maiores opções e mesmo com as dimensões reduzidas, deixamos valendo a informação de Lenine Pinto, que aponta ter sido o prédio da Rua Chile, 44, o antigo depósito da ADP.

Sobre a utilização do Porto de Natal durante a Segunda Guerra Mundial, soubemos, por intermédio do trabalho do jornalista Aproniano César Fagundes Trindade, que nosso porto podia receber navios de até 27 pés de calado. Petroleiros, destroieres e cruzadores penetravam nesse porto sem nenhuma dificuldade. Após a Guerra, o porto começou a entrar em crise, sendo uma das causas o fato do canal de acesso não ter sido mais dragado por anos e, por isso, muita areia acumulou-se no seu leito.

Essa situação agravou o problema dos transportes marítimos em Natal. No início de dezembro de 1950, devido à impossibilidade de acesso à barra de navios de calado superior a 20 pés, Rui Moreira Paiva, então agente da Companhia Nacional de Navegação Costeira, comunicou à imprensa local que os navios de passageiros daquela empresa não aportariam mais em Natal.

Quem da capital potiguar quisesse viajar para as capitais do norte e sul do país teria que embarcar em Recife ou Fortaleza.

Obviamente essa situação acarretou sérios prejuízos para a economia potiguar, pois reduziu as exportações dos nossos produtos e encareceu a importação das mercadorias[2].

NOTAS


[1] PINTO, Lenine. Natal, USA. 2. Ed – Natal-RN: Edição do autor, 1995. Páginas 81 e 82.

[2] SMITH JUNIOR, Clyde – Trampolim Para a Vitória. 1. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1993, Páginas 15 a 27.

1910 – A MISTERIOSA NOITE DOS HOLOFOTES EM NATAL

Quando a Pequena e Provinciana Natal Foi Iluminada Por Poderosas Luzes Desconhecidas – Causou Medo e Preocupação no Povo – As Portas da Igreja de Bom Jesus foram Arrombadas Para as Pessoas Rezarem por Proteção  – O Fenômeno Foi Testemunhado Por Câmara Cascudo – Diferente do Que se Pensou na época, Não Foi o Encouraçado Minas Gerais Que Iluminou a Capital Potiguar

Rostand Medeiros – IHGRN

Estamos na capital potiguar em uma quarta-feira, dia 29 de março do ano de 1910, então uma bucólica cidade com pouco mais de 27.000 habitantes, que naqueles dias acordava em meio a muito frio para a sua realidade, com temperaturas que variavam entre 22 e 23 graus por volta das sete da manhã[1].

Além disso, de manhãzinha bateu um vento sudoeste e caiu uma chuva e ao longo do dia as temperaturas máximas nem sequer chegaram aos 29 graus[2]. Com a forte precipitação do dia anterior, onde foram testemunhados trovões e relâmpagos sobre a cidade, o pluviômetro marcou mais de 100 m.m. de chuvas em Natal[3].  

Pela manhã cedo era comum nessa antiga Natal que as pessoas seguissem para o Mercado Público na Avenida Rio Branco, o principal entreposto de vendas de alimentos. Outros locais procurados sempre pela manhã o povo natalense seguiam para orar, ascender velas, participar de missas nas igrejas de Nossa Senhora da Apresentação, do Galo, a de Nossa Senhora do Rosário, ou de Bom Jesus. Sendo as três primeiras localizadas na Cidade Alta e a última na Ribeira.

Próximo da estação da Great Western.

Nessa cidade calma e tranquila, em meio a um tempo frio e talvez bem nublado, o dia 29 de março de 1910 foi avançando e logo a noite foi chegando. 

Bom, quem estiver lendo esse texto deve imaginar que nessa noite em Natal os lampiões da Empresa de Iluminação a Gás Acetileno estariam acesos em seus postes de ferro, com os bicos de gás com potência de iluminação de apenas “15 velas”, clareando basicamente o bairro da Ribeira. Mas isso não ocorreu naquela data. Teria havido algum problema na iluminação?

Um dos lampiões de gás acetileno, que iluminavam a Rua do Comércio, atual Rua Chile, onde vivia em 1910 a família de Luís da Câmara Cascudo.

Recorremos então a Luís Câmara Cascudo para descobrir em seu livro História da Cidade do Natal, que essa iluminação ficava apagada três dias antes e três dias depois da fase em que a lua estava cheia[4]. E naquele mês de março de 1910, conforme está na primeira página do jornal A República de 26 de março, a lua cheia estava marcada para o dia 27.

Para completar a situação, na Natal de 29 de março de 1910 não existia luz elétrica nas residências. Em um mundo sem rádio, televisão, computador, aparelhos celulares, internet e outras maravilhas modernas que utilizam a energia elétrica para seu funcionamento, grande parte da população dormia bem cedo.

Feixes de Luzes Misteriosos e o Pânico em Natal

Rua Dr. Barata, na Ribeira.

Pesquisando os jornais da época vi que o jantar era servido normalmente às seis da noite e depois o que havia para fazer era se reunir com os parentes em casa, ler algo a luz de um candeeiro a base de querosene, ou simplesmente pegar uma cadeira, um tamborete e sentar nas calçadas com os vizinhos e conversar.

Mas naqueles dias a temperatura estava fria, de vez em quando chovia, e, mesmo com a pequena capital potiguar iluminada pela luz natural da lua, acredito que às nove da noite desse dia muita gente já estava em casa, se preparando para ir para cama. É possível que por volta das nove da noite a “Guarda Nocturna” já se encontrasse nas ruas com seus apitos e cassetetes realizando suas patrulhas, para uma ronda que se apresentava sem maiores alterações.

Foi quando repentinamente e de forma surpreendente, o céu foi iluminado por feixes de uma luz clara, branca, radiante e muito forte.

Luís da Câmara Cascudo, então com apenas 11 anos de idade, rememorou aquela noite inesquecível quase 32 anos depois na sua coluna “Acta Diurna”, no jornal natalense A República. Ele então morava com seus pais na Rua do Comércio (atual Rua Chile), no número 44. Eles viviam em uma casa com a parte posterior voltada para o Rio Potengi, onde certamente o jovem e sua mãe viram os feixes de luzes “cortarem os céus em súbitos safanões luminosos”, conforme descreveu em 1942.

Justino Cascudo, sua esposa e seu filho Luís.

Do seu local de visualização Cascudo comentou que as luzes iluminaram o mangue do outro lado do rio, as águas tranquilas do Potengi, coqueiros, dunas e chegavam até o Refolés, onde atualmente se encontra a Base Naval de Natal. Do seu ponto de observação Cascudo viu os feixes se elevarem no firmamento, onde depois escreveu que “Cruzavam-se, confundindo no espaço como num duelo dantesco de enormes serpentes vestidas de relâmpagos”.

Texto publicado por Luís da Câmara Cascudo no jornal natalense A República no dia 6 de fevereiro de 1942, em sua coluna “Acta Diurna”, onde detalhou o caso dos holofotes em Natal.

O pai de Cascudo, o comerciante Francisco Justiniano da Oliveira Cascudo, colocou o filho para rezar em alto e bom som um “Salve Rainha” e que fosse dito “sem errar”. Mas não foi apenas na casa da família Cascudo que a reza, embalada pelo medo do desconhecido, ecoou com força e fé. Cascudo informou que nas casas vizinhas na Rua do Comércio dava para ouvir as ladainhas dos desesperados em busca de proteção divina. Até uma das portas da Igreja do Bom Jesus das Dores da Ribeira foi arrombada (“voou em pedaços”, segundo Cascudo), para os fiéis adentrarem o templo e pedirem a salvação dos céus.

Igreja de Bom Jesus, no bairro da Ribeira.

Horas depois, certamente após tomar conhecimento com outras pessoas na cidade sobre aqueles feixes de luz, o coronel Cascudo explicou ao filho o que acreditava ser aquele fenômeno e a calma voltou na casa às margens do rio Potengi e também na cidade.

As luzes vistas no dia 29 de março repercutiram bastante, pois dois dias depois o jornal A República trazia na sua primeira página a nota que reproduzimos abaixo e que acredito ter sido a explicação aceita sem contestação sobre o estranho caso.

Não demorou e um interessante artigo assinado por Hernani Fontes apontou como a passagem do Minas Gerais por Natal chamou atenção da comunidade e era o motivo de conversas das “pessoas gradas” da comunidade[5].

Logo o medo do povo natalense se tornou coisa do passado e surgiu certo encantamento, pela capital potiguar ter sido a “Primeira cidade brasileira iluminada pelos potentes holofotes do encouraçado Minas Gerais”, considerado então o mais poderoso navio de guerra a singrar os sete mares.

Mas NÃO foi essa nave de guerra que realizou esse procedimento diante de Natal, pois na noite de 29 de março de 1910 o encouraçado Minas Gerais não se encontrava na costa brasileira!

O Encouraçado Minas Gerais e Como ele Veio Navegou Para o Brasil?

As obras de construção desse grande navio se iniciaram em abril de 1907, no estaleiro W. G. Armstrong Whitworth & Co Ltd, na cidade deNewcastle-on-Tyne, ou simplesmente Newcastle, no norte da Inglaterra.

Era uma nave verdadeiramente espetacular para seu tempo. Possuía doze canhões com calibre de 305 mm, uma verdadeira bateria de ferro e fogo. Para nível de comparação, o famoso o encouraçado russo Potemkin, muito ligado a Revolução Russa de 1917, tinha apenas quatro canhões desse mesmo calibre. Além desse armamento superpesado, o Minas Gerais tinha nos seus costados quatorze canhões de 120 mm e couraças de proteção que variavam de oito a nove polegadas de espessura e confeccionados pela empresa Krupp. O Minas Gerais e seu irmão gêmeo, o São Paulo, poderiam alcançar uma velocidade máxima de 21 nós (39 km / h) e as tripulações desses navios podiam chegar a 106 oficiais e 887 marujos. A nave deslocava quase 20.000 toneladas, sendo lançada nas águas em setembro do ano seguinte e comissionado em abril de 1910.

Batimento da quilha do encouraçado Minas Gerais.

No final de 1910, segundo o jornal The Times de Londres, em sua edição de 3 de março de 1911 (pág. 7) a Inglaterra tinha doze encouraçados e o resto das grandes potências mundiais outros treze, dos quais cinco pertenciam à Alemanha e quatro aos Estados Unidos. Mas naquele momento o Brasil tinha dois dos mais recentes e maiores poderosos encouraçados navegando e prontos para entrar em ação[6]. E na Inglaterra estava sendo construído um terceiro encouraçado, o gigantesco Rio de Janeiro[7].

O Minas Gerais descendo para água.

E qual a razão do Brasil, uma grande nação repleta de recursos naturais, mas muito pobre e quase sem indústrias, drenou milhares de libras esterlinas para os ingleses construírem aqueles três colossos dos mares?

Na virada do século XX, a Marinha do Brasil era inferior às rivais argentinas e chilenas em qualidade e tonelagem total. Em 1904, o legislativo brasileiro votou pela alocação de uma quantia significativa de recursos para resolver esse desequilíbrio naval. Os proponentes dessa estratégia acreditavam que uma marinha forte ajudaria a tornar o país uma potência internacional. Esses navios de guerra, os mais poderosos do mundo, entrariam em serviço em uma época em que os encouraçados estavam rapidamente se tornando uma medida de prestígio internacional. Eles, portanto, chamaram a atenção global para o que era percebido como um país recém-ascendente.

O Minas, como os marujos simplificavam o nome do encouraçado, era comandado pelo veterano capitão de mar e guerra João Batista das Neves, um oficial com mais de trinta anos na Marinha de Guerra. Ele tivera um papel de destaque na conhecida Revolta da Armada de 1893, comandando o cruzador Andrada. Neves assumiu o comando desde a saída do encouraçado dos estaleiros de Newcastle-on-Tyne, no dia 4 de fevereiro de 1910.

O Minas Gerais já completamente pronto.

Mas o navio brasileiro não seguiu direto para o Brasil. Primeiramente rumou para os Estados Unidos, para o porto de Norfolk, no estado da Virgínia. Antes atracou no porto de Plymouth, sudoeste da Inglaterra, onde desembarcou alguns marinheiros que estavam doentes. Partiu no dia 8. Pouco mais de 24 horas depois o navio brasileiro se viu diante de um fortíssimo temporal e seu comandante decidiu seguir para a ilha de São Miguel, nos Açores, aonde chegou em 15 de fevereiro. Nessa ilha o Minas recebeu carvão e zarpou no dia 21 para os Estados Unidos[8].

O Minas Gerais, em uma pintura do inglês Charles L. De Lacy.

Chegaram na costa americana no dia 2 de março, mas só puderam entra no canal de Hampton Roads dois dias depois devido a um pesado nevoeiro. Antes de atracar no porto de Norfolk, o encouraçado seguiu para um local chamado Old Point Confort, defronte ao Fort Monroe, uma das maiores fortificações militares americanas na época. Nesse local o Minas Gerais disparou uma salva de 21 tiros de canhão em saudação a nação anfitriã. O navio brasileiro foi então saudado pela guarnição do forte e do encouraçado USS Lousiana.

USS North Carolina

Depois de treze dias o Minas Gerais se juntou ao cruzador blindado USS North Carolina, da Marinha dos Estados Unidos (US Navy), e seguirem para o Rio de Janeiro. A missão do North Carolina era transportar o corpo de Joaquim Nabuco, então embaixador do Brasil nos Estados Unidos e falecido em janeiro de 1910. Os dois navios zarparam às dez e meia da manhã de 17 de março.

Na sequência os dois navios realizaram no dia 22 de março uma parada para abastecimento de carvão na ilha de Barbados, no Caribe, então uma colônia britânica. No outro dia as duas naves seguiram em direção ao Brasil[9].

Salva dos poderosos canhões do Minas Gerais.

E é aí onde começa o mistério da noite em que Natal foi iluminada por holofotes.

Quem Iluminou Natal?

Os primeiros brasileiros que comunicaram terem visualizado a dupla Minas Gerais e North Carolina, foi o pessoal do farol de Salinas, atualmente Salinópolis, no Pará. O caso ocorreu na tarde de 31 de março de 1910, quase dois dias depois do caso de Natal ter sido misteriosamente iluminada por luzes que aparentemente eram de holofotes[10].

É certo que esses navios passaram por Natal no começo da manhã do dia 4 de abril, onde provavelmente não foram vistos por ninguém. Sabemos disso porque nessa mesma data, às duas da tarde, eles passaram diante do porto de Recife, onde diminuíram a marcha, emitiram sinais de luz e foram vistos por muitas pessoas[11]. Dependendo da condição do mar, um navio que siga entre Natal e Recife a 21 nós de velocidade, leva cerca de sete a oito horas de navegação[12].

Se não foi nem o Minas Gerais e nem o North Carolina, quem então iluminou Natal?

Sabemos que não era incomum nessa época, anterior a criação do radar, que navios utilizassem seus holofotes. Evidentemente que a quantidade desses aparelhos por navio dependia da sua utilização, no caso do Minas Gerais, uma nave de guerra, haviam nove holofotes de 90 centímetros de diâmetros, que tinha um alcance de até seis minhas náuticas, ou cerca de onze quilômetros.

O uso desse tipo de aparelho de iluminação marítimo estava condicionado a situações variadas. Desde necessidade de navegação segura, localização de obstáculos, transmissão de sinais, busca de náufragos no mar e muito mais.

Holofotes de 90 cm em uma nave inglesa durante a Primeira Guerra Mundial, iguais aos utilizados no encouraçado Minas Gerais.

Então seria errado algum navio ligar seu farol para tentar entrar no porto de Natal e assim evitar bater nas rochas que durante séculos atrapalharam a entrada de naves no rio Potengi? Teoricamente não!

Inclusive nessa época já existia na Fortaleza dos Reis Magos um farol de sinalização que orientava os navegantes a ultrapassar a barra do rio e chegar ao porto. Mas em 1910 o procedimento normal era esses barcos entrarem no nosso porto com o apoio de um prático de navios durante o dia. Esse é tipo de profissional até hoje, mesmo com todos os avanços tecnológicos, conhece os detalhes e obstáculos de um determinado corpo de água e trabalham orientando navios a adentrarem e atracarem com segurança nos portos de todo mundo.

Uso de holofotes na Marinha do Canadá, na década de 1910.

Percebemos que um barco que utilizasse de maneira indiscriminada holofotes de alta potência e longo alcance sobre uma cidade, sem adentrar o seu porto (o que justificaria o uso dos holofotes), assustando toda uma população, não sei se é considerado algum tipo de crime. Mas certamente não é uma situação normal, pois não conheço outro caso.

Pelos dias posteriores a 29 de março de 1910, as notícias sobre o encouraçado Minas Gerais que circularam no jornal natalense A República, o principal da cidade, focaram basicamente na sua chegada ao Rio de Janeiro, então Capital Federal. Comentaram principalmente sobre a retumbante festa que aconteceu no porto da cidade, onde não faltaram manifestações patrióticas e nacionalistas. Em tempo – Afora as notícias publicadas em A República, nenhum outro jornal, ou qualquer documento oficial, trouxe novas informações sobre a passagem do encouraçado Minas Gerais diante da capital potiguar e sobre a utilização de holofotes iluminando a cidade.

Não tenho meios para dizer o que foi que iluminou Natal e assustou sua população em 29 de março de 1910.

O mistério permanece!

NOTAS————————————————————————————————————————————————————–


[1] Sobre a população de Natal na época e outros dados ver Cascudo, C. História da Cidade do Natal, 3ª ed., Natal-RN, Edição IHGRN, 1999, página 95.

[2] Nesse tempo em Natal existia uma estação pluviométrica e suas medições eram publicadas diariamente na primeira página do jornal A República, o principal jornal do Rio Grande do Norte na época. Chama atenção as temperaturas bem mais amenas que nos dias atuais.

[3] Como ocorre até hoje em uma região afetada pelas secas, a boa notícia naqueles dias frios era que no interior do Rio Grande do Norte as chuvas caiam em todo sertão e os rios Assú, Mossoró, Ceará-Mirim e Potengi estavam com grande volume de água. Como naquela época o algodão, o gado e outros produtos agropastoris eram os motores da fraca economia potiguar, aquelas chuvas eram ótimas notícias depois de dois anos de seca.

[4] Ver Cascudo, C. História da Cidade do Natal, 3ª ed., Natal-RN, Edição IHGRN, 1999, página 301.

[5] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 18/03/1910, pág. 1. Não consegui encontrar nenhuma informação sobre quem era Hernani Fontes, mas seu artigo é muito interessante e aponta com antecedência o que ocorreu na Revolta da Chibata.

[6] Pesquisadores e jornalistas do ramo de defesa nacional apontam que durante um curto período após seu lançamento e incorporação na Marinha do Brasil o encouraçado Minas Gerais, assim como seu irmão São Paulo, realmente foram os navios de guerra mais poderosos em termos de armamentos no mundo. Ver o canal https://www.youtube.com/watch?v=4tMAxMwob70

[7] Em razão de falta de dinheiro, decorrente de uma da muitas crises econômicas que atingiram o Brasil em sua História, o encouraçado Rio de Janeiro foi vendido para o Império Otomano, atual Turquia, em outubro de 1913 e rebatizado Sultân Osmân-ı Evvel. Com o início da Primeira Guerra Mundial o navio foi assumido pelos ingleses e denominado HMS Agincourt. Ver http://www.dreadnoughtproject.org/tfs/index.php/H.M.S._Agincourt_(1913)

[8] As quase 20.000 toneladas de deslocamento permitiam ao Minas Gerais enfrentar a maioria dos temporais marítimos,  mas a tripulação a bordo estava reduzida a 836 homens e, na avaliação do comandante João Batista das Neves, estes se encontravam “bastante fatigados”. Por isso a necessidade dav parada nos Açores. Ver jornal A Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, 17/04/1910, págs. 3 e 4.

[9] É possível conhecer todos os detalhes da viagem do encouraçado Minas Gerais para o Brasil em 1910 em uma grande reportagem publicada nos jornal A Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, 17/04/1910, págs. 3 e 4.

[10] Ver notas sobre essa visualização nos jornais  A Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, 17/04/1910, págs. 3 e 4. E A Província, Recife-PE, 02/04/1910, pág. 1. O farol do município de Salinas foi construído em 1852, reformado em 1916 e continua em funcionamento até nossos dias. Sobre esse farol ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Farol_de_Salin%C3%B3polis. Sobre o município de Salinópolis ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Salin%C3%B3polis.

[11] Ver Jornal de Recife, Recife-PE, 05/04/1910, pág. 1.

[12] Sobre a distância marítima entre Natal e Recife e o tempo de navegação, ver www.geografos.com.br

1939 – A INTERESSANTE PALESTRA DE JUVENAL LAMARTINE SOBRE O ENVOLVIMENTO DE NATAL NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Juvenal Lamartine

Rostand Medeiros – IHGRN

Na noite de 4 de fevereiro de 1939, sete meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, o ex-governador potiguar Juvenal Lamartine de Faria proferiu uma interessante palestra no Rotary Club de Natal. Ali Juvenal comentou com os presentes sobre sua antiga ligação com a aviação, anteviu o início da Guerra, apontou como em sua opinião seria o envolvimento da capital potiguar no grave conflito, clamava a atenção das autoridades para o que poderia acontecer e apontou as ações que os militares dos Estados Unidos executariam para a sua defesa.

Essa palestra foi integralmente apresentada na edição do jornal A República, de 11 de fevereiro de 1939, página 10, mas não causou nenhuma repercussão e nem foi posteriormente comentada naqueles dias incertos.

NATAL: A MAIS IMPORTANTE BASE DE DEFESA AÉREA DO BRASIL

Palestra do Dr. Juvenal Lamartine, na reunião de 4 do corrente no Rotary Clube de Natal.

Em 1927, quando tive a honra de ocupar uma cadeira no Senado Federal, como representante do Rio Grande do Norte, apresentei à consideração aquela casa do Parlamento, tão rica de brilhantes tradições, um projeto de lei autorizando o governo da República a construir um aeroporto em Natal com base para os aviões em Fernando de Noronha e, nos rochedos de São Pedro e São Paulo, um farol aéreo, cuja coluna fosse uma alegoria, que lembrasse e perpetuasse a memória de Santos Dumont.

Fernando de Noronha na década de 1920.

Decorridos hoje mais de dois lustros, e tendo o mundo passado por profundas e graves transformações políticas, penso que cada dia mais se impõe e se faz urgente a realização da ideia que tive em 1927, diante não só do desenvolvimento da aviação comercial, como principalmente dos perigos que ameaçam as nações militarmente fracas, mas ricas em matérias primas, como é o caso do Brasil.

Embora afastado da atividade pública, continuo, entretanto, a me interessar vivamente por tudo que se relaciona com o desenvolvimento do nosso potencial econômico, segurança e integridade do Brasil.

Juvenal Lamartine, o0 primeiro a esquerda, ao lado de um biplano francês.

Desde que vi o primeiro avião, fiquei empolgado pela aviação aérea, na qual antevi um futuro formidável e o meio de transporte ideal para o Brasil, cujo vasto território não é possível cortar de estradas de ferro, se não em um futuro muito remoto e às custas de somas fora de nossas possibilidades econômicas.

Quando os pilotos franceses foram contratados como instrutores do nosso Exército e vieram fundar nossa primeira escola de aviação, fui dos primeiros civis a subir em avião. Nesse tempo era uma temeridade andar pelos ares. A sensação que experimentei nesse voo inicial foi formidável: mas tive desde logo a visão nítida que os céus seriam, em pouco tempo, cortados em todas as direções pelas hélices por aparelhos de todas as nações do mundo, numa competição cada vez maior, e que era preciso estender as linhas aéreas, não só às capitais dos Estados, como ao nosso hinterland[1].

Djalma Petit e Juvenal Lamartine no Aeroclube. Foto da Revista Cigarra. Fonte-http://peryserranegra.blogspot.com

Eleito Presidente do Rio Grande do Norte, dediquei-me com entusiasmo no desenvolvimento do novo meio de transporte, fundando, com parcos recursos do Tesouro do Estado, o Aeroclube de Natal, criando uma escola de pilotos civis, construindo e pessoalmente inaugurando trinta campos de pouso nos municípios no interior, facilitando a instalação nesta Capital de companhias estrangeiras que aqui fundaram bases para seus aviões comerciais, animando, finalmente, por todos os modos esse admirável meio de transporte e já hoje a mais terrível arma de guerra e destruição[2].

A posição geográfica do Rio Grande do Norte e as condições privilegiadas de Natal devem merecer a atenção dos responsáveis pela defesa do Brasil, cujo ponto mais vulnerável a quaisquer ataque aéreo é a costa do Nordeste. Os Estados Unidos da América do Norte, possuindo uma das forças aéreas das mais fortes do mundo e aviões de bombardeiro que não encontram paridade, já pelo se poder ofensivo, já pelo seu raio de alcance, vão gastar somas formidáveis na construção de bases em toda a costa do Atlântico e nas ilhas da América Central, a fim de garantir-se contra um possível ataque de uma potência europeia.

Mapa da empresa Compagnie Générale Aéropostale (CGA) mostrando sua rota aérea que passava por Natal e a nossa privilegiada posição estratégica.

Muito, muito maior é o perigo que corre o Brasil, econômica e militarmente fraco e detentor de imensas riquezas ainda inexploradas e cobiçadas pelos povos imperialistas. O seu ponto mais vulnerável, como já disse, é o Nordeste e a base de defesa mais importante é Natal, donde os aviões poderão exercer um patrulhamento eficiente contra quaisquer tentativas de ataque não só ao Brasil, como mesmo a toda a América do Sul.

Na ausência de autoridade para só por mim agitar o problema, venho lembrar que o Rotary tem a iniciativa de sugerir as altas autoridades da República, a começar pelo comandante da Região Militar, a necessidade de ser incluída no plano quinquenal a construção do porto aéreo de Natal.

Festividade em Natal para os aviadores italianos Ferrarin e Del Prete. Da esquerda para direita vemos o Cônsul italiano em Recife, Arturo Ferrarin, Juvenal Lamartine, Carlo del Prete e a cientista Berta Lutz

Embora não seja técnico, penso, entretanto, que o melhor local para esse porto é o que se encontra entre o Radiofarol e o forte dos Reis Magos, feita a terraplanagem das dunas e a elevação do recife desde o mesmo forte até a praia do Meio.

As condições são as melhores possíveis, pois, além de oferecer espaço bastante para a construção de pistas para os aviões de terra, fica à margem do Potengi, onde podem amerissar os mais possantes hidroaviões do mundo[3].

Juvenal Lamartine de Faria em 1935

Com um apoio ou base em Fernando de Noronha e outro, se possível, nos rochedos de São Pedro e São Paulo, como propus em meu projeto de 1927, estará o Brasil de posse do mais importante porto militar aéreo da América do Sul e a chave da defesa deste Continente.

Para reforçar ainda mais o poder defensivo do porto aéreo de Natal e lhe dar maior eficiência, deve ser utilizada a Lagoa do Bonfim, a cerca de 30 quilômetros desta capital, para nela permanecer uma esquadrilha de hidroaviões de bombardeiro. São excepcionais as condições que oferece a Lagoa do Bonfim. Mermoz, o grande piloto francês há pouco desaparecido, considerava essa Lagoa uma das melhores bases do mundo para hidroaviões[4].

Alunos do Aeroclube do Rio Grande do Norte e, ao centro, de branco, o instrutor Djalma Petit.

Certamente ninguém pensa em concentrar todos os elementos de defesa aérea do Brasil no sul do país, de vez que, ocupado o norte, dificilmente seria desalojar daí o inimigo.

Qualquer ataque que sofrer o Brasil, por uma das nações fortes e imperialistas da Europa, só pode ser feito por via aérea e marítima visando precisamente o norte desprotegido de qualquer elemento de defesa e muito acessível a toda investida estrangeira.

Estou, aliás, convencido de que os poderes públicos conhecedores da importância estratégica de Natal mandarão construir aqui a base de defesa da nossa costa setentrional.

Pouco tempo depois da divulgação do discurso de Juvenal Lamartine no Rotary de Natal, a Segunda Guerra começou e logo, como Juvenal Lamartine previu, Natal se tornou um dos principais pontos estratégicos da aviação dos Aliados. Não demorou e logo hidroaviões do tipo Consolidated PBY Catalina, que na foto estão participando de uma cerimônia no Rio, se tornaram frequentes na capital potiguar.

Daqui é possível não só repelir qualquer tentativa de ataque por aviões que projetem atravessar o Atlântico, como estabelecer linhas de defesa para os Estados do sul e do norte do Brasil.

O ideal de todos os povos do mundo é a paz; mas, como a humanidade ainda não atingiu esse ideal, o dever de todos os povos é organizar sua defesa para a proteção de seus habitantes e de suas fontes de produção e de riqueza[5].

NOTAS

——————————————————————————————————————–


[1] Palavra de origem alemã que significa “terra de trás”. Em alemão, a palavra também se refere à parte menos desenvolvida de um país, aquela menos dotada de infraestrutura e menos densamente povoada. Era muito utilizada por parte de autores e intelectuais brasileiros do início do século XX como sinônimo de sertão e interior.

[2] O que Juvenal Lamartine denomina como “Presidente eleito do Rio Grande do Norte” nesse texto significa que ele tinha sido eleito Governador do Estado. Durante o regime imperial, os atuais governadores eram denominados “Presidentes de Província”, denominação que foi alterada para “Presidente dos Estados” com a implantação do período republicano em 1889. Essa denominação seguiu até a Revolução de 1930, quando aparece o termo “Governador”, sendo essa maneira como se designam os Governantes dos estados brasileiros até hoje.

[3] O Radiofarol ao qual Juvenal Lamartine se refere era uma instalação pertencente à Marinha do Brasil, inaugurado em 27 de janeiro de 1937, situada nas dunas que atualmente estão na área do quartel do 17° GAC. Servia para a orientação de aeronaves que cruzavam o Oceano Atlântico em direção a Natal através de ondas de rádio e possuía duas torres de transmissão com cerca de 60 metros de altura. Tratamos neste livro sobre esse local. Já a ideia dessa pista de pouso aparentemente seria uma estrutura que teria sua cabeceira na região do Iate Clube de Natal, percorreria a área onde atualmente se encontram os tanques de combustível da Petrobras e parte do bairro das Rocas, finalizando próximo à beira mar. Na época, essa era uma área com poucas habitações e essa pista de pouso poderia ter uma extensão alcançaria entre 800 a 1.200 metros.

[4] Juvenal Lamartine se referiu ao piloto Jean Mermoz (1901 – 1936), verdadeiro mito da aviação francesa, que com seu forte espírito desbravador realizou, em 12 de maio de 1930, a primeira viagem transatlântica de correio aéreo sem escalas. Partiu de Saint-Louis (atual Senegal) a bordo de um hidroavião Laté 28 com mais dois companheiros e chegou a Natal depois de 21 horas de voo, percorrendo uma distância superior a 3.000 km. Seis anos após esse feito, após partirem de Natal, Jean Mermoz e sua tripulação desapareceram no Atlântico, durante a sua 25.ª travessia do Atlântico Sul, a bordo de um hidroavião Laté 300.

[5] Ver o jornal A República, Natal/RN, edições de sábado, 4 de fevereiro de 1939, pág. 4 e 11 de fevereiro de 1939, pág. 3.

A ESQUECIDA CANTINA DO COMBATENTE EM NATAL

Durante a Segunda Guerra Mundial Existiu na Capital Potiguar um Local que Muito Ajudou os Militares Brasileiros que aqui estavam. Completamente esquecido nos dias atuais, era conhecido como Cantina do Combatente e Foi um dos Poucos Locais Criados para Atender e Apoiar as Necessidades Dessas Pessoas. Um Futuro Governador Potiguar se Destacou no Seu Desenvolvimento.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

O jovem Getúlio Vargas e sua esposa Darcy em 1911.

A partir de janeiro de 1928, quando Getúlio Dorneles Vargas se tornou governador do Rio Grande do Sul, sua mulher Darcy Sarmanho Vargas acompanhava sua carreira política de forma mais reservada. Mas a partir desse ano essa gaúcha da cidade de São Borja assumiu funções que estavam muito além das de ser a esposa e a genitora de cinco filhos. Ela começou a participar ativamente de atividades assistencialistas do governo do seu marido.

Dois anos depois, ainda em terras gaúchas, a primeira-dama criou a Legião da Caridade, entidade fundada para apoiar com mantimentos e remédios às famílias dos riograndenses do sul que participaram da Revolução de 1930, episódio político que levou seu marido a permanecer no cargo máximo do poder executivo brasileiro até o ano de 1945[1].

Dona Darcy Vargas – Fonte – http://2.bp.blogspot.com/

Após se mudar para o Rio de Janeiro, Darcy Vargas realizou visitas a hospitais e asilos e montou com a estrutura do governo uma casa de costura para ajudar doentes da Santa Casa de Misericórdia[2]. Em 1936 a primeira-dama brasileira fundou oficialmente o Abrigo Cristo Redentor, onde realizou trabalhos de apoio aos mendigos e menores abandonados. Em 1940 ela fundou a Casa do Pequeno Jornaleiro, onde buscou oferecer aos menores de rua abrigo e alimentação, dando-lhes ocupação com aulas e cursos profissionalizantes, além de emprego[3]. Foi na Casa do Pequeno Jornaleiro que Darcy Vargas organizou pela primeira vez o chamado Natal das Crianças, também conhecido como Natal do Pobres, onde era realizado uma grande festividade natalina marcada pela distribuição de brindes e oferta de diversão ao público. Consta que esse evento foi tomando grandes proporções, tendo em 1944 beneficiado 25 mil menores[4].

Sabemos que Darcy Vargas foi uma das incentivadoras para a criação oficial da Legião Brasileira de Assistência – LBA, como um órgão assistencial público e de abrangência nacional. Depois de todos os trâmites burocráticos e contando com o apoio de federações e associações comerciais e industriais brasileiras, a instalação da LBA se deu em 2 de outubro de 1942.

Como nessa época o Brasil se encontrava em guerra contra a Alemanha e a Itália, um dos principais focos da LBA foi ajudar os militares brasileiros que atuavam na defesa do país, bem como de suas famílias.

Ao longo dos anos Darcy Vargas e a direção da LBA realizaram várias campanhas beneficentes como a Campanha da Madrinha dos Combatentes, ou as Hortas da Vitória, para incentivar a produção de alimentos pela população. Organizou também as Legionárias da Costura, que fabricavam materiais médico-hospitalares e roupas para serem doadas aos soldados. Na sequência instituiu a Cantina do Combatente, lugar de apoio e lazer para os soldados, cuja primeira unidade foi inaugurada no Rio de Janeiro em 20 de novembro.

E Natal foi uma das cidades contempladas com a criação de uma Cantina do Combatente.

O Início

Nos primeiros dias do mês de dezembro de 1942 desembarcou na Base de Parnamirim a Sra. Rosa de Mendonça Lima, uma das diretoras da LBA e esposa do general João de Mendonça Lima, então Ministro da Viação e Obras Públicas. Ela estava viajando pelo Nordeste para inaugurar as sedes da Cantina do Combatente em Salvador, Recife e Natal[5].

Getúlio Vargas, ao centro o general João de Mendonça Lima, então Ministro da Viação e Obras Públicas, e sua esposa Rosa de Mendonça Lima – Foto Arquivo Nacional.

Segundo o jornal natalense A Ordem, assim foi apresentada a Cantina do Combatente – “Instituição que visa o prolongamento do lar. Aí, os soldados brasileiros terão um ponto de diversão e assistência. Na cantina os militares terão cigarros, bebidas (não alcoólicas), leite, sanduiches e divertimentos, como livros, cinema, teatro, etc., tudo isso gratuitamente”. Uma ação muito apreciada pelos militares brasileiros era a existência de materiais para escrever e enviar cartas e o selo também era gratuito[6]. Percebe-se nitidamente o caráter assistencialista que a LBA colocava nessa ideia.

Depois de ser entrevistada na Rádio Educadora de Natal no programa “Fé e Civismo” e ser recebida pelo Interventor Federal Interino Aldo Fernandes Raposo de Melo, a Sra. Rosa de Mendonça Lima participou da inauguração[7].

Essa foi a única imagem que consegui da Cantina do Combatente em Natal.

A festa aconteceu no final da tarde de sábado, 5 de dezembro de 1942, e a sede da Cantina ficava localizada na Rua Jundiaí, no bairro de Petrópolis. Busquei com pessoas que viveram naquela época detalhes dessa localização, mas não consegui uma informação concreta. Para alguns, esse local era na esquina da Rua Jundiaí com a Avenida Hermes da Fonseca. Para outros seria em uma grande casa, atualmente derrubada, onde se localiza a Fundação José Augusto.

Aluízio Alves no início de carreira públiva.

Quem comandou o evento foi o jovem bacharel em direito Aluízio Alves, então Secretário Geral da Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência, que discursou e participou de descerramento de placa e da “inauguração” do retrato de Getúlio Vargas. Após a cerimônia oficial os muitos soldados, marinheiros e fuzileiros navais presentes aproveitaram para jogar sinuca, ping-pong, consumir o que havia no bar, jantar no restaurante e, para os que sabiam ler, aproveitar os livros e revistas da biblioteca, que em breve receberia mais de 90 volumes da conceituada Livraria Ismael Pereira[8].

Para animar a soldadesca e os convidados civis, apresentou-se um conjunto musical do 2º Grupo Móvel de Artilharia de Costa (2º GCMA) e as bandas da Polícia Militar e da Associação de Escoteiros.

Um dado interessante e que bem mostra o espírito existente na época devido a guerra em Natal foi que 25 senhoritas “das mais proeminentes famílias da sociedade natalense”, ficaram servindo bebidas e comidas para os jovens militares. Não fosse as circunstâncias do momento, acredito que dificilmente essas meninas de pele clara dariam a mínima atenção a esses rapazes, a maioria deles morenos e vindos do interior.

O primeiro grande evento da Cantina do Combatente foi realizado dias depois, em 13 de dezembro, na comemoração do Dia do Marinheiro. Houve uma palestra proferida por Elói de Souza e a animação foi realizada pelo “grupo de Jazz” da banda da Polícia Militar[9].

Festa de Natal da cantina do Combatente de Recife, Pernambuco. Esse clube ficava no Parque 13 de maio.

Americano Não Entra?

Não consta em nenhuma das fontes pesquisadas que nas solenidades realizadas em dezembro de 1942 estivessem presentes os militares estrangeiros que serviam em Natal.

Observando os jornais da época disponíveis, percebemos que foram poucas as ocasiões que os gringos se fizeram presentes na Cantina do Combatente. Vale recordar que o primeiro de dois clubes recreativos que os militares norte-americanos montaram em Natal só seria inaugurado três meses depois da Cantina dos militares brasileiros.

Ceremônia em Parnamirim Field – https://catracalivre.com.br

Durante a Segunda Guerra Mundial, quando um soldado norte-americano, recebia de seus superiores uma pausa necessária durante a luta, muitas vezes o seu destino eram as unidades recreativas do United Service Organization, popularmente conhecida em todo mundo como U.S.O. Essa organização foi criada em 4 de fevereiro de 1941, sendo financiada e apoiada pelo governo americano e sua missão básica era proporcionar lazer aos membros das forças armadas norte-americanas em qualquer lugar onde estivessem. Tal como a Cantina do Combatente em Natal, os clubes recreativos U.S.O. forneciam um ambiente para dançar, exibição de filmes e entretenimento ao vivo. Mas também serviam como um lugar tranquilo para conversar, escrever cartas e encontros, além de conselhos religiosos com os capelães lotados nas suas unidades militares[10].

Casa onde funcionou o U.S.O. do bairro Petrópolis, em Natal.

Os clubes U.S.O. receberam estrelas dos mais diversos níveis de importância da indústria do entretenimento dos Estados Unidos. Desde simples mágicos que antes da Guerra se apresentavam em pequenas casas de espetáculos, a estrelas hollywoodianas. Figuras como Katharine Hepburn, Groucho Marx, Bette Davis, Marlene Dietrich, Bob Hope e muitos outros fizeram parte das trupes dessa organização.

Um dos clubes U.S.O. em Natal ficava no bairro de Petrópolis, na Avenida Getúlio Vargas, 796, sendo chamado pelos estrangeiros como “U.S.O. Beach” e foi inaugurado em 1º de março de 1943[11]. O segundo ficava localizado no bairro da Ribeira, na Praça Augusto Severo, 252, sendo conhecido como “U.S.O. Town Club” e foi inaugurado em 14 de setembro de 1943[12]. Em Natal a entidade responsável por esses locais era denominada U.S.O. Overseas Department in Natal.

Salão principal e palco do Clube U.S.O. da Ribeira.

Existem, em jornais natalenses, informações de festas realizadas nesses ambientes, que contaram com a presença de autoridades brasileiras e norte-americanas. No jornal A Ordem, edição de 15 de abril de 1944, na 1ª página, temos informações de como foram as festividades em comemoração ao dia “Pan-Americano” no U.S.O. da Ribeira. Uma data bem oportuna e característica daquela época, em que se buscava a união entre os povos do Brasil e dos Estados Unidos. Nesse evento esteve presente o General Fernandes Dantas, natural de Caicó, que nessa época era o interventor no Rio Grande do Norte nomeado por Getúlio Vargas.

Segundo o norte-americano William L. Highsmith, que serviu em Natal entre abril de 1943 e agosto de 1945, era normal na sede do U.S.O. de Petrópolis existir redes de dormir armadas em um alpendre e ele algumas vezes descansava nesse local após o turno da noite anterior na Base de Parnamirim[13].

Nesse local, na Ribeira, funcionou durante a Segunda Guerra Mundial o Clube U.S.O. dos americanos na área mais central de Natal.

Uma Verdadeira Dádiva!

Enquanto Natal e o Brasil repercutiam o encontro dos presidentes Franklin Delano Roosevelt e Getúlio Vargas a bordo do USS Humboldt, um navio tênder de hidroaviões da Marinha dos Estados Unidos que estava ancorado no Rio Potengi, a Cantina do Combatente de Natal seguia normalmente com as suas atividades. O local recebia diariamente uma média de 400 militares brasileiros e todos os dias eram enviadas cerca de 200 cartas para a sede dos Correios e Telégrafos na Ribeira. Estas seriam remetidas ao custo mensal de 5.000 cruzeiros[14].

Mas seria possível que esse local recebesse essa quantidade de frequentadores e fosse gerado esse volume de correspondências?

Muito se comenta sobre o número de norte-americanos ligados a aviação e a marinha que estiveram atuando em Natal. Muitas vezes os números apresentados sobre a quantidade desses estrangeiros na capital potiguar muitas vezes são bem inflados. Mas no meu entendimento, mesmo sem ter maiores dados, o maior contingente de militares em Natal era de brasileiros. Essa dedução surge de forma simples, quando listamos as unidades militares dos três ramos das nossas Forças Armadas que aqui estiveram.

Soldados do Exército Brasileiro em Natal – Foto Hart Preston, LIFE.

Vejam o exemplo do nosso Exército – Natal foi sede do Comando da 14º Divisão de Infantaria (14º DI)[15], do 16º Regimento de Infantaria (16º RI), da 1ª Companhia do 1º Batalhão de Engenharia (1ª/1º BE)[16], do 4º Grupo de Artilharia de Dorso (4º GADô), do I Grupo do 3º Regimento de Artilharia Antiaérea (I/3ºRAAAé), do 2º Batalhão de Carros de Combate (2º BCC)[17], do 2º Grupo Móvel de Artilharia de Costa (2º GMAC), da 14ª Companhia Independente de Transmissões, do Hospital Militar de Natal (HMN), do 24º Circunscrição de Recrutamento (24ª CR), além de outras organizações menores, ou que passaram pouco tempo na capital potiguar.

A Marinha tinha a moderna e imensa Base Naval de Natal, com seus diversos departamentos, onde circulavam centenas de marinheiros. Havia ainda a Estação Rádio na Limpa (atualmente na área do 17º GAC), a 3ª Companhia Regional de Fuzileiros Navais, a Capitania dos Portos e as tripulações de diversos navios brasileiros que utilizavam o Rio Potengi como atracadouro de forma permanente, ou temporária.

Militares americanos e brasileiros da FAB no portão da guarda da base de Parnamirim Field.

Já a Força Aérea Brasileira – FAB, mesmo tendo sido criada no primeiro semestre de 1941, estava fortemente presente em Natal, tendo sido criado em 1942 a Base Aérea de Natal e atuando na mesma área que os americanos chamavam de Parnamirim Field. Em março de 1943 a FAB tinha então cinco esquadrilhas aéreas, que formavam dois Grupos de Aviação. Havia uma Companhia de Infantaria de Guarda composta de cinco pelotões, além de toda uma enorme estrutura de apoio para que essas unidades militares cumprissem corretamente suas inúmeras missões em tempo de guerra[18].  

Comentamos anteriormente que muitos dos militares que serviram em Natal eram provenientes do interior potiguar, mas havia uma parcela substancial que vieram de outros estados brasileiros. Um exemplo claro – Quando foi criado o 16 RI, pelo Decreto Lei 3.344, de 6 de junho de 1941, sua guarnição foi formada por elementos do 29º Batalhão de Caçadores (29º BC), de Natal, complementada por elementos do 11º Batalhão de Caçadores (11º BC), da cidade do Rio de Janeiro, e da 1ª Companhia do 12º Batalhão de Caçadores (1ª/12º BC), de Jacutinga, Minas Gerais[19].

E foi para essa massa de homens fardados vindas de várias partes do país, ou do sertão potiguar, que a Cantina do Combatente serviu perfeitamente. Para um contingente de pessoas cujo salário era bastante limitado, ter um ambiente onde eles podiam se alimentar, escutar uma boa música, ler algo de bom e pegar cigarros, sendo tudo isso de graça, era uma verdadeira dádiva!

Além de ser um ótimo ponto de apoio e de encontros uma situação positiva, destinada a apoiar os militares que não sabiam ler e nem escrever, era que na Cantina do Combatente sempre era possível encontrar alguém que voluntariamente escrevesse uma carta para seus familiares em locais distantes.

Um Aparente Encerramento

Uma das festas que foi marcante na história daquele local foram as comemorações pelo Dia do Soldado de 1943. Muitas autoridades presentes, muita gente circulando e foi realizado o “Show do Combatente”. No palco se apresentaram a banda do 16º RI, da Polícia Militar, além dos “conjuntos regionais” do 2º BCC e do 2º GMAC e a orquestra do Air Transport Command (ATC), da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF). Dividindo o palco com esses grupos musicais se apresentaram atrações locais da Rádio Educadora de Natal, que transmitiu ao vivo todo o evento[20].

Em novembro de 1943, Aluízio Alves entregou o cargo de Secretário da LBA no Rio Grande do Norte a Sra. Maria de Lourdes Dantas Matos e apresentou um relatório de sua gestão.

No tocante a Cantina do Combatente foi informado que entre dezembro de 1942 e setembro de 1943 o local forneceu mais de 52.000 refeições, expediu quase 3.500 cartas, entregou para os militares cerca de 17.500 maços de cigarros e atendeu de diversas formas 374 famílias de combatentes das três armas. Aluízio foi convidado por Dona Darcy Vargas a ir ao Rio de Janeiro, onde recebeu vários elogios da Primeira-dama pelo seu trabalho e conheceu a Cantina do Combatente na cidade carioca.

Outro evento em 1943 que foi bastante movimentado foi a comemoração do “Natal dos Combatentes”, na noite de 22 de dezembro.

Em janeiro de 1944 a Sra. Maria de Lourdes Dantas Matos anunciou que a Cantina do Combatente de Natal passaria por reformas. Mas dessa época em diante ela deixa de ser notícia nos jornais de Natal A Ordem e A República. Não encontrei nenhuma referência de sua reabertura, ou quaisquer outras notícias sobre um provável encerramento das atividades do local.

Provavelmente, como é normal em relação ao período da Segunda Guerra Mundial em Natal, a partir de 1944 a estratégica posição geográfica da capital potiguar e a atuação dos submarinos inimigos na área do Atlântico Sul já não tinha a mesma relevância e importância para os militares norte-americanos. Para os brasileiros, 1944 foi um ano onde toda atenção se voltou para o desenvolvimento da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e sua partida para o front italiano. Com isso algumas unidades militares, principalmente do Exército, foram deslocadas de Natal para outras localidades brasileiras e é provável que o movimento na Cantina do Combatente de Natal tenha diminuído bastante.

Mas esse local prestou relevante serviços ao esforço de guerra em Natal e certamente para um potiguar da cidade sertaneja de Angicos, a Cantina do Combatente foi um momento de grande aprendizado e de muita atividade administrativa na área pública. Tendo sido, juntamente com outras ações realizadas por Aluízio Alves à frente da LBA, algo que, de uma forma ou de outra, ajudou a melhor prepará-lo para assumir o cargo de governador potiguar vinte anos depois.

NOTAS


[1] Ver O combatente vespertino: A campanha de mobilização civil no jornal A Noite durante a Segunda Guerra Mundial (1942) de Vandré Aparecido Teotônio da Silva, Doutor em História Social Universidade de São Paulo. In https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1563823276_ARQUIVO_Ocombatentevespertino_VandreAparecidoTeotoniodaSilva.pdf. Visualizado em 19/10/2020.

[2] As outras faces dos presidentes: Darcy Vargas e Evita Perón, de Marina Maria de Lira Rocha Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. In http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-content/uploads/2016/11/e06_a7.pdf

[3] Ver Educação e produção de moda na Segunda Guerra Mundial: as voluntárias da Legião Brasileira de Assistência, de Ivana Guilherme Simili, Doutora em História, professora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá/UEM.

 in https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332008000200019 . Visualizado em 20/10/2020.

[4] Ver Darcy Vargas, Sarah Kubitschek e Maria Thereza Goulart: Instituição, perpetuação e reapropriação do primeirodamismo brasileiro, de Dayanny Deyse Leite Rodrigues, Doutoranda em História (Universidade Federal de Goiás), in https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1565199356_ARQUIVO_TrabalhoCompletoAnpuh2019.pdf,visualizado. Visualizado em 22/10/2020.

[5] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, ed. 21/11/1942, pág. 1.

[6] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, ed. 03/12/1942, pág. 1.

[7] O Interventor Federal Rafael Fernandes Gurjão se encontrava no interior do Rio Grande do Norte.

[8] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, edições de 05/12/1942, pág. 1 e 22/05/1943, pág. 4.

[9] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 06/12/1942, pág. 1.

[10] Em 1940, por sugestão do General George C. Marshall e com a aprovação do presidente Franklin Roosevelt, mais de um milhão de voluntários administraram mais de 3.000 clubes recreativos, que foram estabelecidos onde podiam encontrar algum espaço. Esses clubes foram alojados em igrejas, museus, celeiros, vagões de trem, lojas e outros locais improváveis.

[11] Lenine Pinto. Natal, USA. 2. Ed – Natal-RN: Edição do autor, 1995. Páginas 27 a 48.

[12] Clyde Smith Junior – Trampolim Para a Vitória. 2. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1999, Páginas 98.

[13] Clyde Smith Junior – Trampolim Para a Vitória. 2. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1999, Páginas 32.

[14] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, edições de 29/01/1943, pág. 1 e de 14/05/1943, págs. 1 e 2.

[15] A 14ª Divisão de Infantaria (14º DI ) foi criada pelo Decreto Reservado nº 4.700-A, de 17 de setembro de 1942, sendo anteriormente conhecida como 2ª Brigada de Infantaria. Depois a 14º DI se transformou na Infantaria Divisionária da 14ª Divisão de Infantaria (Inf Div/14ª DI), pelo Decreto nº 6.177 e 6.180, de 06 de janeiro e Aviso Reservado nº 19-9, de 14 de janeiro de 1944.

[16] Em dezembro de 1942 o 1º Batalhão de Engenharia (1ª/1º BE) se transformou no 1º/7ª Batalhão de Engenharia (1ª/7º BE).

[17] Essa unidade blindada foi criada no Rio de Janeiro, através do Decreto nº 5.003, de 27 de novembro de 1942 e transferida para Natal.

[18] Ver História da Base Aérea de Natal, de Fernando Hoppólyto da Costa. Natal-RN, Ed. Universitária, 1980, págs. 92 e 93.

[19] Ver O Nordeste na II Guerra Mundial – Antecedentes e Ocupação, de Paulo Q. Duarte. Rio de Janeiro-RJ, BIBLIEX, 1971, págs. 184 a 186.

[20] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 26/08/1943, pág. 8.

RIO DO FOGO, 1941: CHEGAM AS PRIMEIRAS VÍTIMAS

Típica cena de um afundamento no Oceano Atlântico por ação de submarinos.

A História dos Primeiros Náufragos a Chegarem ao Litoral Potiguar Durante a Segunda Guerra Mundial.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Esse texto é um dos capítulos do livro “Sobrevoo – Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte, lançado em 2018.

O caçador

Era bom voltar ao mar. Pois era no mar que ele se sentia bem, principalmente realizando o que sabia fazer de melhor: caçar e destruir navios inimigos.

Era um sábado, dia 22 de fevereiro de 1941, e da torre do seu submarino U-105, o capitão tenente (Kapitänleutnant) Georg Schewe, de 32 anos, orientava a navegação de sua nave em direção ao Atlântico pela foz do Rio Blavet, que banha a cidade francesa de Lorient. Ele deixava para trás todo o trabalho de construção da nova e grande base de submarinos nessa cidade, a qual seus superiores prometiam que, quando concluída, seria “inexpugnável” aos bombardeios ingleses, que de vez em quando se apresentavam sobre o porto e a cidade. Schewe, navegando no tranquilo Blavet, tinha a bordo entre seus oficiais os tenentes (Oberleutnant zur See) Max Wintermeyer e Ernst-Wolfgang Ravee, além do alferes (Fähnrich zur See) Hans-Erwin Reith.

Kapitänleutnant Georg Schewe

O capitão Schewe partia de Lorient no mesmo dia que o submarino U-99, comandado pelo capitão Otto Kretschmer, deixava aquele porto, e isso poderia ser um sinal de boa sorte, pois Kretschmer era simplesmente o melhor de todos os capitães da 2ª Flotilha de Submarinos (2. Unterseebootsflottille). Até aquela data ele tinha afundado ou danificado 39 navios aliados em dezesseis patrulhas de combate. Uma situação bem diferente para o aplicado Schewe, que havia participado de nove patrulhas de combate e até aquele momento havia conseguido afundar apenas três navios de carga ingleses [1].

Desde o início da guerra e por quase um ano Schewe comandou o submarino U-60, onde conseguiu sua primeira vitória com o uso de mina explosiva. Depois seguiu uma fase onde realizou várias patrulhas infrutíferas, até que em setembro de 1940 assumiu o comando do U-105, um novo e melhorado modelo IXB. Após uma fase de adaptação, partiu para a primeira missão com a sua nova nave e seus homens. Foi quando o capitão Schewe, em 39 dias de navegação, conseguiu afundar por torpedeamento dois navios a leste da Grã-Bretanha.

Foto de uma cerimônia, creditada como tendo ocorrido no U-105 – https://uboot-recherche.de/en/U105-4588

Certamente que o comandante e sua tripulação estavam otimistas com aquela patrulha que se iniciava e poderia tranquilamente superar mais de 100 dias de mar.

O próprio almirante Karl Döenitz, o Comandante dos Submarinos (B.d.U.  – Befehlshaber der Unterseeboote), ordenou que o U-105 seguisse em direção ao sul do Oceano Atlântico, junto com o U-106 e o U-124. A ideia era que essas naves de guerra buscassem novas presas em outras áreas das que os submarinos alemães atuavam naquele período, como a região do Saliente do Atlântico. Isso colocava aqueles submarinos como os primeiros do Terceiro Reich a atravessarem a linha do Equador durante a Segunda Guerra Mundial. Os outros dois submarinos partiriam de Lorient respectivamente um e quatro dias após o U-105 ter zarpado.

Se houve alguma preocupação por parte de Schewe, certamente a presença de seus experientes colegas pode ter-lhe tranquilizado e animado, pois ambos os capitães eram ótimos submarinistas. Até aquele final de fevereiro de 1940, Jürgen Oesten, comandante do U-106, iniciava sua décima patrulha de combate, tendo no currículo a marca de oito naves inimigas afundadas. Já o capitão do U-124, Georg-Wilhelm Schulz, partia para sua oitava patrulha com a experiência de ter enviado nove naves inglesas para o fundo do mar.

Como acontece com quase todos os alemães, provavelmente parte da animação do capitão Schewe estava na possibilidade de buscar superar seus companheiros de luta em número de vitórias, mesmo que essas conquistas significassem mortos no fundo do Oceano Atlântico.

Aquela caçada prometia[2].

O caçado

Um mês e alguns dias após Georg Schewe zarpar de Lorient para percorrer o Atlântico atrás de novas vítimas, no leste da Inglaterra, na cidade portuária de Kingston Upon Hull, ou simplesmente Hull, o capitão de um navio cargueiro inglês preparava sua nave para mais uma viagem aos confins do mundo, enquanto contemplava a destruição daquela velha cidade fundada no século XII.

Ataque alemão contra a cidade inglesa de Hull – Fonte – https://www.hulldailymail.co.uk/news/history/five-tragedies-hull-blitz-ww2-78134

Entre os inúmeros dramas da Segunda Guerra Mundial, sem dúvida um dos casos mais intensos foi o bombardeiro perpetrado pelos nazistas contra a Inglaterra  entre 1939 e 1940. Inseridos igualmente dentro da chamada Batalha da Inglaterra, esses ataques, que os britânicos denominam simplesmente como “Blitz”, trouxeram muita destruição a várias cidades daquelas ilhas. Uma das que mais sofreram naqueles dias foi Hull e o seu estratégico porto. A cidade foi o alvo do primeiro ataque diurno da Guerra e recebeu o último ataque aéreo contra a Grã-Bretanha. Teve 95% de suas casas atingidas, com 5.000 imóveis destruídos e, de uma população de aproximadamente 320.000 pessoas no começo do conflito, cerca de 150.000 ficaram desabrigadas por efeitos dos bombardeios.

Apesar dos danos, o porto continuou a funcionar durante toda a Segunda Guerra. E era justamente nesse porto, mais precisamente na ponte de comando do cargueiro S.S. Ena de Larrinaga, que o comandante Reginald Sharpe Craston se preocupava com a situação da sua nave. Em momentos alternados entre os dias 13 e 19 de março, a aviação nazista martelou Hull com severos e precisos bombardeios. Bastava que uma bomba de 500 kg acertasse no casco daquele navio de 5.200 toneladas, que ele afundaria rapidamente e poderia levar junto grande parte de seus 43 tripulantes.

S.S. Ena de Larrinaga – Fonte – https://www.wrecksite.eu/wreck.aspx?15355

Logo, em meio a muita tensão, a carga de carvão e outros materiais destinados a Buenos Aires, Argentina, foi colocada nos porões e o comandante Craston recebeu ordens de seguir viagem. Mas se houve certo alívio em deixar a cidade duramente bombardeada, o Ena de Larrinaga agora seguia pelo perigoso Canal da Mancha, atacado pela aviação nazista, para depois navegar em um Oceano Atlântico cheio de submarinos. Era como sair de um caldeirão com água fervente, entrar em uma frigideira cheia de óleo quente e depois cair em uma grande fogueira.

Uma foto de uma revista mostrando os náufragos do Ena de Larrinaga retornando para a Inglaterra, onde vemos o o comandante Reginald Sharpe Craston de chapéu.

O pior era que o comandante Craston e sua tripulação teriam 25 dias de viagem até a capital portenha, em meio a um mar infestado de sorrateiros e invisíveis inimigos da Marinha alemã. Inimigos que no mês anterior, fevereiro de 1940, haviam destruído ou danificado um total de 47 navios cargueiros.

Enquanto a viagem seguia pelo Atlântico, a vigilância no Ena de Larrinaga era intensa e as normas de segurança eram observadas com extremo rigor. À noite ninguém pensava em acender luzes, principalmente quando se navegava em um barco fabricado dezesseis anos antes e que desenvolvia meros dez nós de velocidade máxima, algo em torno de dezoito quilômetros por hora.

Realmente a vida a bordo de um cargueiro inglês naqueles dias não era nada fácil.

Os que ajudaram

Enquanto o mundo desmoronava em meio a um caos de sangue e chamas, em uma praia do Nordeste do Brasil havia uma pequena vila de pescadores onde a vida seguia muito tranquila.

Segundo a historiadora e funcionária pública Gislayne Chiarelle Vieira Soares, que nasceu e vive no atual município litorâneo potiguar de Rio do Fogo, em 1941 a sua comunidade não passava de uma pequena vila de pescadores, que pertencia administrativamente ao município de Touros e possuía em torno de 100 famílias.

Praça principal da cidade de Rio do Fogo – Foto – German Zaunseder.

Segundo uma pesquisa realizada por Gislayne Chiarelle, a tradição oral sobre a chegada de náufragos no lugar é muito rica. E essa tradição abrange tanto os náufragos que chegavam à praia devido a acidentes que ocorreram na barreira de recifes de corais existente a cerca de seis milhas náuticas de Rio do Fogo, quanto a sobreviventes que vieram do alto-mar.

Em um período de navegações heroicas e arriscadas, em que os homens se aventuravam por costas ainda não totalmente mapeadas, passando por áreas sem os faróis para o auxílio à navegação, conduzir um barco através dos oceanos era uma tarefa que exigia muita atenção e a experiência de sua tripulação era fundamental para uma boa viagem. É bem verdade que já se utilizavam bússolas, mapas de navegação, sextantes, cronômetros marítimos e outras ferramentas que facilitavam na navegação, mas nada era totalmente seguro. Em relação a costa do Rio Grande do Norte, esta se apresentou para os navegadores com ventos fortes em certas épocas do ano, correntes marítimas complicadas e algumas perigosas áreas com recifes de corais.

O autor desse artigo mergulhando nas áreas liberadas para os turistas nos recifes de corais, ou parrachos, de Rio do Fogo.

Ao longo dos séculos seguintes não era raro a notícia de algum afundamento nessas, especialmente nas regiões onde se encontram recifes de corais das praias de Maracajaú e Rio do Fogo, onde essas barreiras marítimas naturais são conhecidas como “parrachos”.

O interessante site Naufrágios do Brasil (http://www.naufragiosdobrasil.com.br) possui uma página específica para os afundamentos em águas potiguares. A relação traz os nomes de mais de 100 barcos e alguns aviões que repousam no fundo do mar. O mais antigo registro existente nesse site é de um barco, provavelmente uma caravela portuguesa, com o nome “São João e Almas”, que se perdeu na região do Cabo de São Roque no longínquo ano de 1677.

Nas páginas amareladas do velho jornal Publicador Natalense, edição de sábado, 2 de maio de 1840, existem várias notícias do então governo provincial potiguar, cuja presidência era exercida por Manoel de Assis Mascarenhas. Em uma delas consta que o juiz de paz do município de Touros, deu ciência em 30 de março que o brigue inglês Orion, de 198 toneladas, carregado de café do sul do Brasil, bateu e afundou nos recifes de coral diante da praia de Rio do Fogo, onde nessa época já existia uma povoação de pescadores.

68 anos após o desastre do brigue Orion, o Jornal de Recife, edição de 12 de dezembro de 1872, na sua página quatro, dá conta que, um dia após o “sagrado dia do nascimento de Jesus”, aconteceu na Alfândega da capital potiguar e na presença do vice-cônsul inglês, o leilão de 35.000 tábuas de pinho que estavam a bordo da barca inglesa N. D. Calile, totalmente destruída nos parrachos de Rio do Fogo.

Texto de Luís da Câmara Cascudo sobre Mestre Julião e os mergulhadores de Rio do Fogo.

Apesar do tempo decorrido entre essas duas notícias anteriormente comentadas, aparentemente foram tantos os naufrágios que aconteceram em Rio do Fogo, que Luís da Câmara Cascudo narrou com maestria a vida dos mergulhadores de naufrágios Mestre Julião e de seus irmãos Miguelão e João.

Esse relato de Cascudo foi inicialmente publicado na primeira página do Jornal de Notícias, do Rio de Janeiro, edição de domingo, 28 de julho de 1940, quando o grande pesquisador potiguar informou que os três irmãos Lourenço Ferreira eram nativos de Rio do Fogo, nascidos entre 1852 e 1864, e aprenderam a mergulhar em barcos soçobrados nos parrachos de sua praia para salvar materiais e manter a vida. Com o tempo angariaram fama e respeito, realizando com sucesso esse tipo de atividade em todo o litoral potiguar. Um dos barcos que os irmãos Lourenço Ferreira trabalharam ficou registrado na edição de 15 de julho de 1885 do Diário de Pernambuco, página 2, onde encontramos a informação que no dia 29 do mês anterior o veleiro de carga holandês Stella, comandado pelo capitão Kleipp, carregado de sal de Macau, bateu nos recifes de Rio do Fogo e afundou. Nesse dia, na tentativa de salvar a tripulação, uma jangada dos pescadores locais resgatou três tripulantes, mas virou a caminho da praia e um dos marujos estrangeiros morreu afogado.

Percebi, ao realizar a pesquisa para esse capítulo nos jornais antigos, que sempre existiu uma situação comum sobre esses naufrágios – o apoio da comunidade de Rio do Fogo às vítimas.

Outra visão da praça de Rio do Fogo – Foto – German Zaunseder.

A historiadora Gislayne Chiarelle me contou que um antigo habitante de Rio do Fogo conhecido como “Cachica”, falecido em 2014, narrou-lhe que em uma noite um grupo de náufragos chegou de surpresa na vila buscando ajuda e assustando a todos com um linguajar completamente desconhecido. Os moradores do lugarejo, mesmo bem assustados, saíram de suas choupanas feitas de palha de coqueiro e ajudaram aqueles sobreviventes.

Essa tradição de apoiar os náufragos que chegavam à praia de Rio do Fogo continuou acontecendo, mesmo quando no resto do mundo a barbárie era a ordem do dia.

O ataque

Enquanto a calma e a tranquilidade reinavam na idílica praia de Rio do Fogo, a bordo do submarino alemão U-105 o capitão de Georg Schewe e sua tripulação viviam um momento verdadeiramente feliz. Desde que partiram da França eles haviam conseguido afundar seis navios aliados, com um total de 33.119 toneladas de perdas, e provocado a morte de 134 tripulantes e passageiros.

Tudo começou na madrugada de 8 de março de 1941, catorze dias após zarpar de Lorient, quando o U-105 estava próximo à costa ocidental africana, a norte-nordeste das ilhas de Cabo Verde. Nessa ocasião, em conjunto com o U-124 do capitão Georg-Wilhelm Schulz, atacaram o comboio SL-6. Este era uma massa formada por 55 navios, que havia partido do porto de Freetown, na Serra Leoa, no dia 1º de março e seguia para o porto de Liverpool, Inglaterra. Tinha como escolta oito navios de guerra da Royal Navy, entre esses o porta aviões HMS Ark Royal e o cruzador HMS Renown.

Mesmo com essa proteção, os dois capitães de submarinos realizaram tão corretamente seu trabalho que entre as três e meia e as seis da manhã do dia 8 de março afundaram cinco navios comerciais britânicos, tendo sido creditado ao U-105 o afundamento do S.S. Harmodius, o primeiro dos cinco.

Depois desse sucesso, Georg Schewe se uniu ao capitão Jürgen Oesten do U-106 e atacaram implacavelmente as naves do comboio SL-68.

Capitão Jürgen Oesten – Fonte – https://uboat.net/men/oesten.htm

Esse comboio havia igualmente partido de Freetown com 60 navios e dez escoltas. Entre os dias 17 e 21 de março, em uma área a leste e a norte das ilhas de Cabo Verde, os dois capitães alemães afundaram nove navios, sendo seis britânicos e três holandeses. Coube a Schewe a destruição de cinco barcos (quatro britânicos e um holandês) e a Oesten o afundamento de outras quatro naves (duas britânicas e duas holandesas) e de ter danificado o encouraçado HMS Malaya e outro cargueiro. O Malaya só retornaria à Inglaterra e ao serviço ativo quatro meses depois.

Sabendo que a área próxima às ilhas de Cabo Verde seria intensamente patrulhada pelos ingleses depois dos sucessos desses submarinos, o B.d.U. ordenou que eles se separassem, cabendo ao U-124 permanecer patrulhando na costa ocidental africana e ao U-105 e U-106 seguirem para oeste, patrulhando uma área ao longo da linha do Equador, onde dias depois chegaram mais próximo ao arquipélago brasileiro de São Pedro e São Paulo.

O histórico encontro no Atlântico Sul em 1941, dos submarinos U-105, U-106 e o navio de abastecimento alemão Nordmark, disfarçado como o petroleiro os Estados Unidos, batizado como Prairie – Fonte – https://warfarehistorynetwork.com/2015/08/20/german-merchant-raider-kormoran-hmas-sydneys-deadly-duel/

Nessa área, entre os dias 30 de março e 1º de abril de 1941 houve o encontro do U-105, do U-106 e o navio de abastecimento alemão Nordmark. Como a Alemanha não possuía bases no exterior, as operações navais no Oceano Atlântico exigiam muitas vezes uma rede de navios de abastecimento, que se disfarçavam de navios neutros para evitar a destruição por parte dos britânicos. Na ocasião desse encontro a tripulação do Nordmark havia pintado uma grande bandeira norte-americana na sua lateral e “rebatizado” o navio como Prairie.

Estas eram operações extremamente necessárias, mas difíceis e perigosas, que podiam demorar dias por várias razões e serem interrompidas de maneira abrupta. Nesse encontro foram transferidos para o submarino de Schewe treze torpedos, óleo combustível, lubrificante, água doce e quatro semanas de provisões gerais. Abastecido e renovado, o capitão Schewe retornou à caça ainda na região de São Pedro e São Paulo. Já o U-106 seguiu viagem mais ao sul.

Foto da década de 1930, mostrando o Arquipélago São Pedro e São Paulo – Fonte BN.

No final da tarde do sábado, 5 de abril de 1941, da torre do U-105 o capitão Georg Schewe, seus oficiais e subalternos avistaram um navio mercante que se deslocava a baixa velocidade, mas de maneira firme e segura. Os alemães passaram a segui-lo de forma discreta e sorrateira.

No S.S. Ena de Larrinaga, não existem registros de como se encontrava naquele dia o estado de espírito do veterano comandante Reginald Sharpe Craston, então com 45 anos de idade e com mais de vinte anos de navegações pelos oceanos do mundo. Igualmente não sabemos como se sentiam naquele dia outros 33 britânicos, um malaio, um espanhol, um lituano, cinco caribenhos e até mesmo três japoneses que faziam parte de sua tripulação[3].

Foto meramente ilustrativa de um navio afundando, após ter sido torpedeado durante a Segunda Guerra – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_ships_sunk_by_Axis_warships_in_Australian_waters

Mas é provável que o comandante e seus homens se sentissem mais tranquilos, pois o seu navio se aproximava da linha do Equador e do Atlântico Sul, área onde nessa época os submarinos alemães ainda não atuavam.

Dez horas depois de visualizarem o Ena de Larrinaga, com a ajuda da lua em quarto crescente, Georg Schewe seguiu pacientemente a nave cargueira britânica. Quando estava a 205 milhas náuticas a sudoeste do arquipélago de São Pedro e São Paulo, o alemão encontrou as condições ideais para disparar um único torpedo G7A, com sete metros de comprimento e 280 quilos de explosivos. Este atingiu certeiramente a região da popa, explodiu na casa de máquinas da desprotegida embarcação e ela começou a afundar. O comandante Craston ordenou à tripulação seguir para os barcos salva-vidas e tomou providências para o que viria. Ficou constatado que cinco homens haviam desaparecido e após quinze minutos depois do impacto o Ena de Larrinaga desceu para o fundo.

O U-105 retornando de sua vitoriosa patrulha em 1941.

Do U-105 o capitão Georg Schewe assistiu o ataque, e após constatar que o cargueiro estava perdido deixou calmamente a área, aparentemente sem fazer contatos com os 38 náufragos, que iniciariam uma nova e dura luta.

Sobrevivência

Os barcos salva-vidas continuaram juntos durante a noite. Ao amanhecer o comandante Craston dividiu a tripulação, colocando dezenove para cada barco, e decidiu seguir para Fernando de Noronha, a cerca de 500 milhas de distância a sudoeste. Para isso utilizaram velas e remos que havia nas embarcações.

Para levantar o moral do pessoal em meio à vastidão do Atlântico Sul, o capitão Craston puxou um coro de músicas como “Land of Hope and Glory”, “There’ll Always Be an England”, “God Save the King” e “Are We Downhearted? No!”, um misto de tradicionais canções patrióticas e outras que os militares ingleses entoaram durante a Primeira Guerra Mundial. Nos barcos uma aposta foi acordada: o primeiro que chegasse à terra receberia dez libras como premiação. E era bom mesmo que eles se movimentassem para chegar a algum lugar, pois a todo momento eles testemunharam a presença de tubarões seguindo os dois barcos, circulando aos lados e de vez em quando mordendo os remos.

Certamente pela sua experiência após haver navegado muitas vezes por aquela região, onde o mar é muito quente e o sol implacável, o comandante Craston decidiu esvaziar no mar vinte e seis garrafas do mais puro uísque escocês. Recuperadas de alguma maneira pelo mordomo-chefe após o torpedeamento do navio, o capitão ordenou deixar as garrafas vazias e prontas para serem preenchidas com água fresca de alguma chuva que caísse. Com enorme pesar, a tripulação concordou que aquela era a única ação adequada a ser feita. Com certeza essa ação causou algum desespero na maioria dos marinheiros.

Logo todos estavam sedentos e as garrafas continuavam secas, quando um dia choveu de forma fraca, mal dando para os homens lamberem as poucas gotas que conseguiam reunir em seus bonés. Mas no outro dia houve um verdadeiro dilúvio, que encheu as garrafas e quase fez os barcos transbordarem. Além da água doce acumulada eles tinham duras e secas bolachas e alguma quantidade de leite condensado. Após cinco dias navegando, por razões da ação do mar, os dois barcos se separaram e cada um seguiu seu destino[4].

Navio de carga e passageiro Almirante Alexandrino.

Por sorte, três dias depois da separação, por volta das onze da noite de 13 de abril, um dos barcos foi avistado pelo paquete brasileiro Almirante Alexandrino, navio do Lloyd Brasileiro que procedia do porto de Vigo, Espanha, para o Rio de Janeiro.

O avistamento se deu a cerca de quinze milhas náuticas de Fernando de Noronha, sendo os dezenove marinheiros do Ena de Larrinaga prontamente atendidos e preparados para serem levados a Recife. Antes de seguir viagem, o capitão de longo curso Tasso Augusto Napoleão, natural de Camocim, Ceará, realizou buscas com seu navio nas proximidades do Atol das Rocas, na tentativa de encontrar os outros dezenove náufragos. Mas sem sucesso[5].

Diário da Noite, em 15-4-1941-Rio de Janeiro-RJ.

Enquanto isso, no outro barco salva-vidas, o comandante Craston demonstrava ser um verdadeiro exemplo de liderança e atenção com sua tripulação. Sua autoridade era evidente pela organização e disciplina que prevaleceu ao abandonar o navio torpedeado e durante o tempo que ficaram perdidos no mar. Ele não se negou a ajudar os mais fracos a remar, ou deixou de promover ações para levantar o moral de todos. Como exemplo, mesmo sem ter muito com que comemorar, Craston fez questão de organizar a festa de aniversário do 3° radiotelegrafista George Henry Ellis, de 18 anos, natural da cidade de Goole, região de Yorkshire, que ficou mais velho em plena imensidão do Atlântico Sul.

Qualquer coisa, por mais tola que pudesse acontecer, era motivo de discussões e atenção por parte daqueles dezenove homens perdidos no mar. Houve o caso de um tubarão brincalhão, que seguiu o barco por três dias, de vez em quando brincava com os remos e parecia “interessado” neles. Foi apelidado pelos náufragos como “Snoopy”, que nesse é um adjetivo em inglês para intrometido, curioso. Nenhuma relação com o personagem canino criado em 1950 pelo cartunista norte-americano Charles Monroe Schulz .

Já em outro momento, o encontro com os esqualos não foi nada engraçado, pois os tripulantes tiveram uma colisão com um tubarão que eles afirmaram ser da espécie tigre e possuía um tamanho calculado em “seis metros”.

O segundo bote salva-vidas do Ena de Larrinaga continuou sob o comando do comandante Craston. Este dirigiu com segurança sua diminuta nave até Fernando de Noronha, que avistou no décimo primeiro dia de navegação. Mas, além de não ter sido visto pelos habitantes do lugar, devido ao vento, mar grosso e correntes contrárias, não conseguiram desembarcar.

Agora só restava a costa brasileira a cerca de 200 milhas náuticas de distância, ou 370 quilômetros. O comandante então estabeleceu o curso e dois dias depois, na manhã do 13° dia de provação, a terra surgiu ao longe na forma de uma faixa longa e clara de dunas. Mas, para alcançar a terra, eles teriam de superar uma barreira de recifes de corais que surgiu adiante, onde o mar quebrava em fortes ondas. Foi quando um deles percebeu três pequenas embarcações com alguns homens morenos.

Eles estavam salvos!

O encontro

Manoel Rodrigues Neto, conhecido por todos em Rio do Fogo como Manoelzinho, nasceu no dia 19 de dezembro de 1935 e até recentemente pescava nas águas quentes dessa praia. No dia da chegada dos náufragos ele tinha apenas seis anos de idade; recordou da movimentação, lembrou-se de algumas imagens, mas não tinha compreensão do que acontecia na época. Soube dos detalhes por meio de seu pai.

Seu Manoel Rodrigues Neto, conhecido por todos em Rio do Fogo como Manoelzinho, sendo entrevistado sobre a chegada dos náufragos do Ena de Larrinaga, do qual ele foi testemunha – Foto – German Zaunseder.

Ele é filho do já falecido pescador Francisco Rodrigues, que no dia 18 de abril de 1941, uma sexta-feira, estava pescando em uma das três jangadas tipicamente nordestinas que estavam em um setor dos parrachos de Rio do Fogo conhecido como “Cangote”. Um lugar onde se pescava muito peixe do tipo agulhão. Seu Manoelzinho me comentou ter sido seu pai quem primeiro viu o que ele chamou de “barquinha à deriva”, que vinha sem estar com a vela montada.

Mesmo com os pescadores de Rio do Fogo já tendo conhecimento que submarinos alemães afundavam navios pelo mar afora de guerra, eles perceberam que os homens naquele pequeno barco necessitavam de ajuda e não tiveram receio em socorrê-los.

É certo que as três jangadas que ajudaram os náufragos do Ena de Larrinaga eram bastante similares as embarcações dessa foto, realizada na Praia do Pina, Recife, Pernambuco.

Francisco Rodrigues narrou ao seu filho que ele estava acompanhado de Júlio Lopes, o proprietário da jangada, e de um outro pescador de nome Lucas. No contato com os homens no barco salva-vidas eles viram muitos bastante queimados do sol, enquanto outros se protegiam embaixo de um pano desgastado, que poderia ter sido a vela original do barco salva-vidas.

A mímica foi utilizada para haver o entendimento. Logo os pescadores compreenderam que os náufragos estrangeiros queriam ir à terra. Os brasileiros então trataram de amarrar as três jangadas no barco pra rebocá-los até a beira-mar e sua vila, pois se eles continuassem à deriva iriam encalhar na altura da praia de Perobas, onde então viviam poucas pessoas em uma comunidade muito simples. Os pescadores armaram suas velas triangulares e, no dizer tradicional dos valorosos homens do mar das praias nordestinas, “abriram o pano” em direção à terra.

Uma baleeira de salvamento da época da Segunda Guerra Mundial.

Mas antes de percorrer as seis milhas náuticas, cerca de doze quilômetros, que separavam os recifes de corais da praia, os pescadores brasileiros distribuíram entre os náufragos suas cabaças de água e seus “ranchos”, ou seja, a comida que levavam para a pescaria. Segundo Seu Manoelzinho essa alimentação era basicamente composta de pão, bolachas e frutas. No barco dos estrangeiros havia muitos sorrisos de alegria e gestos de agradecimentos, pois para seu pai eles se mostraram debilitados e com bastante fome.

As três jangadas começaram a singrar, puxando aquele barco branco e pesado. Francisco Rodrigues comentou ao filho que o reboque levou cerca de uma hora e meia. Conforme se aproximavam da praia, começou a juntar gente vendo aquela cena pouco usual.

Náufragos do Ena de Larrinaga – Jornal Pequeno, Recife-PE, em 22-4-1941.

Por volta de dez da manhã, as jangadas chegaram com aqueles sofridos e estranhos homens. Alguns estavam visivelmente emocionados e passaram a beijar a areia da praia e a agradecer aos céus e aos pescadores pela salvação.

À frente da comunidade se apresentou Seu Miguel Elias, cujo nome era Miguel Gomes Ribeiro, liderança política local, que exercia a função de subdelegado em Rio do Fogo. Além de Miguel Elias, outra pessoa da comunidade que buscou ajudar os náufragos foi a professora Francisquinha Ribeiro, a única titular da então “Escola Rudimentar de Rio do Fogo” e filha de Eliseu Ribeiro. Considerada uma pessoa de muita fé e virtudes cristãs, era a professora Francisquinha que, além de ensinar o ABC aos mais jovens da comunidade, preparava-os para as aulas de primeira comunhão. De alguma forma a professora Francisquinha conseguiu manter um diálogo com algum dos estrangeiros. Acredito que tenha sido o tripulante de origem espanhola.

Entrevista com o Senhor Miguel Alves de Souza, nascido na comunidade de Rio do Fogo em 18 de setembro de 1921 e conhecido por todos como “Miguel de Doens”.

Outro dos moradores da pequena vila de Rio do Fogo que testemunharam a chegada dos náufragos foi o Senhor Miguel Alves de Souza. Nascido nessa comunidade em 18 de setembro de 1921 é conhecido por todos como “Miguel de Doens”. Ele relembrou a movimentação das pessoas da vila, que viram as jangadas que haviam partido pela manhã retornando cedo e trazendo a reboque um barco desconhecido. Praticamente toda Rio do Fogo estava na beira-mar querendo saber o que era aquilo.

Seu Miguel, além da tripulação da jangada de Júlio Lopes, lembrou que alguns dos pescadores que estavam nas outras jangadas eram Luiz Colaço, Chico de Cândico e recorda que também havia um conhecido como Chico Caetano. O nosso entrevistado percebeu que o estado geral de alguns náufragos ainda era bom, mas a maioria estava debilitada, bastante queimada do sol, desanimada; no entanto, viu que ainda havia alguma comida com eles. Para se ter uma ideia do estado desses náufragos, dias depois o Jornal Pequeno, de Recife, em sua edição de 22 de março de 1941, informou que dos náufragos, mesmo com todos os cuidados recebidos em Rio do Fogo, Touros e Natal, vários ainda inspiravam atenção. Principalmente o 2° oficial inglês Harold Greville Morgan, que se encontrava com os lábios em carne viva, e o malaio Abdul Bin Doolan, que quase havia morrido na travessia e não conseguia comer nada.

A Noite, de 20-4-1941- Rio de Janeiro-RJ.

Em Rio do Fogo quase ninguém entendeu patavina do que os náufragos falavam, mas ficaram impressionados com todo o acontecimento e com a altura daqueles marinheiros estrangeiros. Os habitantes da vila compreenderam pelos gestos que o navio tinha sido torpedeado por um submarino e que eles vinham de longe, de “bem lá dentro do mar”, segundo narrou Seu Miguel.

Enquanto a população fornecia água de coco e alguma comida para aqueles homens, ambos os entrevistados confirmaram que as lideranças locais, devido à inexistência de veículos e estradas transitáveis, logo começaram a organizar a preparação de outras jangadas para levar aquele povo para Touros, a maior cidade das redondezas. A rapidez se justificava, pois a navegação levava algumas horas entre Rio do Fogo e Touros e os pescadores não teriam condições de seguir à noite devido aos perigosos recifes de corais. Logo uma pequena flotilha de jangadas acomodou os dezenove estrangeiros e seguiram costeando pela beira-mar.

Antiga Sede da prefeitura de Touros – Fonte – Vila Praieira, via http://tourosemfoco.blogspot.com/2015/08/antigo-palacio-porto-filho-antiga-sede.html

Nesse tempo Touros possuía uma área territorial bem maior que a atual. Segundo o livro “Povoados do Rio Grande do Norte em 1943 e populações urbanas e rurais”, escrito por Anfilóquio Carlos Soares da Câmara e impresso em 1944 pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, esse município possuía mais de 1.780 km² de área e abrangia várias comunidades que se tornaram municípios autônomos, como Barra de Maxaranguape, Pureza, São Miguel do Gostoso e a própria Rio do Fogo. Já a população da cidade era inferior a 2.000 pessoas, enquanto em sua vasta zona rural viviam 87% da população de 16.777 habitantes.

Segundo Seu Miguel e Seu Manoelzinho, ninguém em Touros esperava a chegada daquele pessoal. Quem tomou a frente para apoiar os náufragos foi o Padre Bianor Aranha, então pároco da cidade, que conseguiu dialogar com alguns dos náufragos em língua estrangeira, provavelmente italiano ou francês. Outro que ajudou no apoio foi Júlio Lopes do Nascimento, então presidente da Colônia de Pescadores Z-2, que abrangia o município de Touros.

Um telegrama foi enviado da cidade para as autoridades em Natal. Através de um pedido do cônsul inglês ao então governador Rafael Fernandes, foi solicitado às lideranças em Touros que providenciassem a vinda dos náufragos para a capital o mais rápido possível. Logo um caminhão foi preparado e este trouxe os náufragos na carroceria, além de um motorista, o padre Bianor e o capitão do Ena de Larrinaga na cabine.

O que as pessoas em Rio do Fogo e em Touros não sabiam era que aqueles dezenove náufragos eram as primeiras vítimas de uma ação direta de combate na Segunda Guerra Mundial a chegarem ao Rio Grande do Norte.

Outras mais viriam no futuro!

Retorno

Diário da Noite, em 16-4-1941-Rio de Janeiro-RJ.

O comandante Craston e seus homens ficaram hospedados na “Pensão Familiar”, de Dona Maria Cabral, na subida para a Cidade Alta, na antiga Avenida Junqueira Aires, número 417, onde hoje se localiza o Solar Bela Vista. O vice-cônsul britânico em Natal, Mr. Willian F. Scotchbrook, proibiu terminantemente os dezenoves homens de manterem contato com pessoas da cidade. Certamente o vice-cônsul sabia da ação dos simpatizantes e espiões nazifascistas em Natal e quaisquer informações vazadas poderiam ser úteis aos inimigos.

A Polícia Marítima listou os seguintes membros da tripulação do Ena de Larrinaga que estiveram em Natal: comandante Reginald Sharpe Craston, 2° oficial Harold Greville Morgan, 1° telegrafista Maurice William Trevethick, 3° telegrafista George Henry Ellis, chefe de máquinas Richard McMillon, 2° maquinista James Alexander Walker, carpinteiro John Lorenz, faroleiro Osman Bin Usop, os marinheiros James Clemento, Abdul Bin Doolan, Richard Raffel, Charles Mizzi, moços de convés (profissão marítima) Albert Wilkinson, Seduz Olbert Hamilton e Joseph Albert Hood, foguistas Siduez Reginald Harold,  comissário Ignácio de Boatigui, 2° comissário Joseph Francis Vella e o ajudante de cozinha Thomaz Binsalch.

Placa com a relação dos mortos do Ena de Larrinaga, existente em Londres, um monumento aos mortos da marinha mercante britânica durante a Segunda Guerra Mundial.

Logo eles deixaram Natal no navio Brasil, com destino a Recife, onde toda a tripulação foi novamente reunida, ficando alguns dias regularizando documentação perdida e estadia por conta do Consulado Britânico. Uma semana depois partiu para os Estados Unidos no transatlântico brasileiro Buarque. Na saída do porto de Recife a tripulação do Ena de Larrinaga foi saudada pela tripulação e pela sirene do navio Brasil.

Após partirem de Nova Iorque, chegaram à Grã-Bretanha e cada um seguiu seu destino.

No final do ano de 1941, pelo seu profissionalismo, capacidade de superação e por haver conseguido salvar grande parte de sua tripulação, o comandante Reginald S. Craston foi condecorado com a medalha da Ordem do Império Britânico (Order of the British Empire, ou OBE) e a Medalha de Guerra Lloyd’s por bravura no mar. Ele voltaria a comandar outro navio mercante e novamente sua nave foi atingida por torpedos e afundou. O nome do navio era Ocean Venture, tinha sido colocado em condições de navegação em dezembro de 1941 e dois meses depois, em 8 de fevereiro de 1942, foi afundado pelo submarino alemão U-108, defronte ao Cabo Hatteras, na costa leste dos Estados Unidos. Dessa vez 31 tripulantes pereceram e o capitão Craston e mais treze tripulantes foram recolhidos pelo destroier da Marinha americana USS Roe, e desembarcados no porto de Norfolk, estado da Virgínia.

O comandante Reginald S. Craston faleceu de causas naturais em 1962.

Os náufragos do Ena de Larrinaga, em foto do Diário da Noite-15-4-1941-RJ.

Em 13 de junho de 1941, depois de passar 112 dias no mar, o capitão Georg Schewe trouxe seu U-105 e sua tripulação de volta ao porto francês de Lorient. Se até então Schewe só havia afundado três navios em várias patrulhas de combate, apenas nessa patrulha ele destruiu doze naves, que totalizaram 71.450 toneladas de navios Aliados perdidos, tornando aquela patrulha a terceira mais produtiva de todos os submarinos alemães em toda a Segunda Guerra Mundial. O capitão Schewe realizou mais duas patrulhas e afundaria apenas mais um navio inglês, alcançando a marca total em sua carreira de 16 navios inimigos destruídos, com 85.779 toneladas perdidas no fundo do mar e 175 tripulantes inimigos mortos.

Esse militar seria então removido para funções em terra, onde sobreviveu ao conflito, vindo a falecer em 1990 na cidade alemã de Hamburgo, aos 80 anos de idade.

Os Senhores Miguel Alves de Souza e Manoel Rodrigues Neto concordam que os acontecimentos envolvendo a chegada daqueles náufragos foi algo marcante para a história de Rio do Fogo e que os fatos ocorridos são um exemplo do que as pessoas do seu lugar têm de melhor: um forte espírito de solidariedade.

?

Nota do autor: para realizar essa pesquisa, esteve ao meu lado na praia de Rio do Fogo o amigo German Zaunseder, nascido na Argentina, descendente de alemães que lutaram na Segunda Guerra Mundial, que há vários anos vive em Natal e é um grande pesquisador sobre temas da Segunda Guerra Mundial. Contei igualmente com o imprescindível apoio financeiro do empresário Luiz Augusto Maranhão Valle, grande batalhador pela história e cultura potiguar.

NOTAS ——————————————————————————

1 – O que Georg Schewe não sabia é que vinte dias depois o U-99 seria afundado a sudeste da Islândia e Otto Kretschmer seria capturado. No total esse submarinista afundou, ou danificou, 47 navios, perfazendo um total de 312.383 toneladas perdidas. Kretschmer passou seis anos preso e retornou à Alemanha em 1947, onde ingressaria na nova Marinha da Alemanha Ocidental. Chegou ao posto de almirante, ocupou altos cargos na OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte e faleceu em 1997, aos 86 anos de idade.

2 – Na atualidade, através do uso da internet, é possível realizar de maneira bastante razoável uma pesquisa sobre a trajetória de quaisquer submarinos alemães e de seus capitães que atuaram na Segunda Guerra Mundial, bem como de suas inúmeras vítimas. Os sites https://uboat.net e http://www.uboatarchive.net/ (língua inglesa), http://www.u-boot-archiv.de/ (língua alemã) e http://www.u-historia.com/ (língua espanhola) possuem muitas informações. Os dois primeiros aqui comentados são os melhores pela qualidade do material exposto, pois são baseados em documentos originais e em farta literatura.

3 – Não esquecer que o Japão e a Inglaterra só entrariam em guerra contra os britânicos em dezembro de 1941.

4 – Antes de retornarem para a Grã-Bretanha, o comandante Reginald Sharpe Craston e os outros sobreviventes do Ena de Larrinaga estiveram em Nova York, onde deram entrevistas à imprensa norte-americana narrando a sua luta pela sobrevivência no Atlântico Sul, sendo a principal para a revista The Lookout, da Seamen’s Church Institute of New York, volume XXXII, número 7, julho de 1941, páginas 7 e 8.

5 – Tasso Augusto Napoleão, além de capitão de navio mercante, foi político, tendo exercido o cargo de Intendente da cidade litorânea cearense de Camocim entre 1917 e 1918, cargo atualmente equivalente ao de prefeito municipal. Depois o comandante Tasso dedicou a vida a comandar navios, tendo passado muitos anos no comando do navio Almirante Alexandrino. Ver Folha doLitoral, Camocim, Ceará, edição de domingo, 29 de setembro de 1918, página 2.

E NATAL PERDEU OUTRO PATRIMÔNIO DA VELHA RIBEIRA E DA ÉPOCA DA SEGUNDA GUERRA – CAIU UMA PARTE DO ANTIGO ARPÈGE!

Foto – Rostand Medeiros.

Hoje, 21 de junho de 2020, por volta de cinco horas da manhã, na Rua Chile, número 161, no bairro da Ribeira, caiu com certo estrondo uma grande parte do antigo prédio da Boate Arpége, um dos mais representativos locais do boêmio bairro da Ribeira e fortemente ligado ao período da Segunda Guerra Mundial e história da aviação histórica em Natal.

O edifício que caiu, aqui no início do século XX.

As últimas chuvas que caíram em Natal ajudaram a destruição desse imóvel que se encontra abandonado já faz algum tempo. A área se encontra isolada e oferece  risco de novos desabamentos e, como parece que ainda vai acontecer novas chuvas em ter os meses de junho e julho, é provável que o que sobrou venha abaixo.

Existe no local e a cena é triste para quem valoriza a história do lugar onde vive. Apesar de toda problemática com o COVID-19, tive a felicidade de encontrar o amigo German Zaunseder, com quem troquei algumas ideias sobre essa situação. Esse local histórico, tombado pelo poder público, em breve deixará de existir definitivamente.

Foto – Isa Cristina.

Em agosto de 2019 do ano passado eu lancei o meu livro “Lugares de Memória”, que nos seus capítulos apresenta informações e imagens (atuais e antigas) de 27 locais de Natal que possuem ligação com a participação de Natal no conflito, incluindo quartéis, hospitais, sedes de companhias aéreas, bares, cabarés, hotéis, clubes militares, residências de oficiais e do cônsul norte-americano, entre tantos outros pontos que ainda mantêm as características de sete décadas atrás, ou cujos prédios originais deram lugar a novas edificações em Natal.

Entre as edificações apresentadas no livro “Lugares de Memória” estava esse histórico edifício, que agora está quase totalmente destruído. Trago aos leitores do blog TOK DE HISTÓRIA o capítulo que trata do antigo Arpége.

Imagem obtida em junho de 2019 – Foto – Rostand Medeiros.

UM CABARÉ CHAMADO ARPÈGE – RUA CHILE, 161

Esse prédio, já quase completamente destruído, com dois pavimentos superiores derrubados por falta de reparos, ficou conhecido durante muitos anos por ser o local onde funcionou o prostíbulo denominado “Boate Arpège”.

Mas esse local, que em 2010 teria sido tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), possui na história de um antigo proprietário uma ligação muito forte com os períodos da aviação histórica e da Segunda Guerra Mundial na capital potiguar.

Lançado em agosto de 2019, “Lugares de memória” trás entre seus capítulo a história do edifício onde funcionou o Arpège.

O site de genealogia http://www.parentesco.com.br aponta que Enest Walter Lück, também conhecido como Ernest Luck, ou Ernesto Luck, nasceu no ano de 1883, na Alemanha. Segundo o falecido escrito e pesquisador Hypérides Lamartine, conhecido por todos em Natal como Pery Lamartine, em um trabalho que foi entregue em 2008 aos pesquisadores Rostand Medeiros e Frederico Nicolau, Enest Lück é oriundo da cidade de Gevelsberg, na antiga província alemã da Westphalian. Era de uma família de agricultores que trabalhavam também como ferreiros[1].

O trabalho de pesquisa de Pery Lamartine foi realizado por meio das informações do filho de Enest, o empresário do ramo do turismo Werner Ernest Ferdinand Lück, falecido em Recife no ano de 2002. Werner comentou que seu pai trabalhava na cidade belga de Ostende, em uma firma de importação e exportação. Quando um amigo de infância chamado Richard Robert Bürgers lhe escreve do Brasil informando que morava no estado do Rio Grande do Norte. Aqui, Bürgers fora contratado por uma firma inglesa para perfurar poços e que precisava de um auxiliar de confiança para participar dos trabalhos. Enest Lück tomou, então, o navio Karshel, que atracou no porto de Recife em 7 de outubro de 1911, seguindo para Natal em um navio costeiro. Na capital potiguar, o novo imigrante alemão soube que a firma inglesa tinha falido e começou a buscar um novo rumo para a sua vida. Lück, então com 28 anos, adquiriu uma fazenda no sertão do Rio Grande do Norte, com a intenção de criar gado, plantar algodão e mamona. Essa fazenda era localizada próxima ao Pico do Cabugi, na região central do estado. Em suas visitas a Natal, o Sr. Lück enamorou-se por uma senhorita chamada Henriqueta Green, de origem inglesa ou norte-americana, cujo romance acabou com a deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914- 1918) e o envolvimento de seus países de origem em lados opostos.

Natal no início do século XX.

Esse conflito em muito retardou o desenvolvimento econômico do Rio Grande do Norte, mas, após o fim da Primeira Guerra, Enest Lück planejou uma mudança de vida. Assim, fundou com um amigo uma loja na Rua Chile, 161, onde se vendia muitos artigos e ficou conhecida como uma loja de “Secos e Molhados”. Além da loja eles criaram a firma de importação e comércio Gurgel, Luck & Cia., com o objetivo de importar produtos da Alemanha e exportar matérias primas produzidas no Rio Grande do Norte, como algodão, óleos, couros, etc.

Ainda segundo Pery Lamartine os sócios vão à Alemanha em 1922 em busca de contatos comerciais, no que são bem-sucedidos. Eles conseguem a representação potiguar da grande casa exportadora Theodor Wille, uma empresa criada por um alemão no Brasil em 1848, que se tornou uma verdadeira potência comercial na década de 1920, onde exportava para a Alemanha o nosso café e exportava tecidos, ferramentas, máquinas e até locomotivas.

Ainda na Alemanha os dois sócios igualmente conseguiram a representação da empresa de navegação Hamburg Sud, ou Hamburg Südamerikanische Dampfschifffahrts-Gesellschaft, também conhecida como Hamburg South America Line, até hoje uma grande empresa de navegação que faz parte da Maersk Line, a maior empresa de transporte de contêineres do mundo.

Ou seja, o alemão e seu sócio brasileiro, além de fecharem um interessante contrato de representação com uma empresa que trazia da Alemanha produtos de primeira qualidade e aceitava comprar as matérias primas produzidas em terras potiguares, também conseguiram a representação de uma grande empresa de navegação. Essa provavelmente transportava os produtos ligados a Gurgel, Luck & Cia., possivelmente com um valor diferenciado e vantajoso.

Nesse retorno de Enest Lück ao seu país, ele reencontrou uma vizinha de infância chamada Elisabeth Luise Bamberger, com quem casou. Enquanto sua vida familiar progredia na caliente Natal, na sua loja da Rua Chile, 161, Enest Lück vendia muitas mercadorias e se tornou referência na cidade. Encontramos em jornais natalenses anúncios de venda de facas, ferramentas agrícolas, talheres, tesouras, etc. Esse edifício não era o único imóvel que o  imigrante alemão possuía naquele setor da cidade. Ele era proprietário de um salão aberto na Travessa Venezuela e uma loja na Rua Dr. Barata, a de número 170, onde ali funcionou durante algum tempo a Confeitaria Savoia, de Giovani Fulco. Enest Lück cresceu como comerciante e na respeitabilidade junto ao povo de Natal, tornou-se o mais proeminente representante da pequena colônia alemã aqui radicada, representante diplomático de sua nação na cidade.

Apesar desses avanços, percebemos na leitura dos antigos jornais uma situação que, aparentemente, chamou negativamente a atenção do povo de Natal em relação às atitudes do alemão Enest Lück.

Propaganda do Sindicato Condor em jornais natalenses.

Segundo nos conta Pery Lamartine, nos primeiros anos da década de 1930, vivia-se, a nível mundial, uma acirrada disputa no que se refere ao transporte do correio aéreo e de passageiros, principalmente entre franceses e alemães. O falecido escritor e aviador potiguar informou que Enest Lück conseguiu então as representações das empresas Lufthansa e Sindicato Condor. Duas companhias de transporte aéreo que se completavam e, conforme podemos observar no capítulo dedicado a  atuação do Sindicato Condor em Natal, ficava localizada na Rua Frei Miguelinho, 119, Ribeira. Foi quando a edição de domingo, 13 de setembro de 1931, do jornal A República, apresentou com grande destaque os fatos que envolveram a tragédia de um hidroavião Dornier Wall, do Sindicato Condor.

Registrado como P-BALA e batizado como “Olinda”, o jornal aponta que, no dia anterior, um sábado, ao buscar decolar no Rio Potengi o piloto Max Christian Sauer e o copiloto Rudolf Karwat não conseguiram força suficiente, aparentemente devido ao mau funcionamento em um dos motores e a aeronave não alcançou a ascensão desejada.

Acidente no Rio Potengi do hidroavião registrado como P-BALA e batizado como “Olinda”,

Ao sobrevoar o Canto do Mangue, local de atracação de barcos de pescadores às margens do Rio Potengi, o piloto decidiu fazer uma curva à esquerda para levar o “Olinda” para o mesmo ponto de onde partiram e tentar uma nova arremetida.

Provavelmente devido à falha no motor, desconhecimento dos obstáculos que havia na área que sobrevoava, desorientação espacial, ou outras causas, o Dornier Wall chocou-se violentamente contra uma antiga barcaça utilizada para o transporte de areia e explodiu em chamas. O impacto ocorreu na outra margem do rio, defronte à administração do Porto de Natal. Os que foram entrevistados pelo jornal nada comentaram sobre o barulho de uma explosão, mas narraram quer viram uma bola de fogo que se criou após o choque.

Consta, nas páginas de A República, que entre os que testemunharam a tragédia e estavam no outro lado do Potengi estava Mestre Manoel Ciríaco, proprietário de um barco conhecido como Minerva, além dos seus tripulantes Luís Jacaré e Chico Velho. Eles rapidamente embarcam no bote e foram os primeiros a chegar ao local da tragédia.

Na barcaça abandonada, que o jornal chama de “areieiro”, Ciríaco encontrou o mecânico Paul Hein, ferido e desacordado. Próximo à barcaça, ainda dentro do que restou da cabina do “Olinda”, os brasileiros viram os restos mortais do piloto, do copiloto e do radiotelegrafista Franz Noether. Nesse momento, encostou uma lancha com vários passageiros, entre eles o alemão Enest Walter Lück e funcionários do Sindicato Condor. Mestre Ciríaco e seus ajudantes transferiram então o mecânico ferido para a lancha e este foi transportado para o cais do porto. Para a surpresa do simples barqueiro e seus tripulantes, em vez de Lück e os membros do Sindicato Condor resgatarem os corpos dos seus companheiros, esses passam a recolher as encomendas, envelopes e malas postais que flutuavam no rio. Ciríaco e seus companheiros comentaram os fatos com detalhe no principal jornal de Natal, o que aparentemente chamou atenção na cidade.

Estaríamos, então, diante da fria lógica germânica que, frente à morte de três tripulantes e da prestação inicial de assistência ao ferido, o mais importante era o recolhimento do material ao resgate dos cadáveres dos seus companheiros? Vale ressaltar que o piloto Max Christian Sauer era o diretor técnico do Sindicato Condor.

E o que haveria de tão importante nesse material que flutuava no Potengi?

O cruzador “Dauntless” entrando em um porto na década de 1930.

Ao observamos os jornais da época, um fato chama a atenção. No dia 27 de agosto de 1931, dezesseis dias antes do acidente do “Olinda”, procedente das Antilhas chegou ao porto de Natal o cruzador ligeiro Inglês H. M. S. Dauntless. Esse era um fato não muito comum na capital potiguar, sendo noticiado pelos jornais da época como “uma tranquila visita de cortesia de 400 oficiais e marinheiros da marinha de Sua Majestade”. Não faltaram inúmeras recepções que movimentaram a urbe, com um baile a bordo do cruzador e outras festividades. Ocorreu até mesmo um movimentado jogo de futebol entre a equipe do navio e o time do América Futebol Clube, que venceu os marinheiros ingleses pelo placar de 4×2. O certo é que o cruzador inglês H. M. S. Dauntless não era nenhum navio desprezível, ou que não chamasse atenção. Era uma moderna nave de combate da classe “D” de cruzadores ligeiros ingleses, estava em serviço ativo desde 1918, possuía o código D-45 e pertencia, na época, à Divisão Sul Americana da frota inglesa. Desenvolvia quase 30 nós de velocidade, com um armamento que incluía torpedos de 533 m.m., seis canhões de 152 m.m. e canhões antiaéreos. Seu peso era de 5.000 toneladas e tinha quase 150 metros de comprimento[2]. Em 1931, apesar de a Alemanha ainda não viver sob o domínio do Terceiro Reich, haviam se passado apenas treze anos do fim da Primeira Guerra Mundial, onde a Inglaterra era vista pelos alemães como um potencial inimigo. Era normal aos agentes e representantes alemães pelo mundo afora, como era o caso de Enest Walter Lück, informar as movimentações e os detalhes sobre as belonaves de guerra dos países considerados inimigos em suas viagens. Haveria então nas malas postais transportadas pelo “Olinda” alguma informação interessante sobre o cruzador H. M. S. Dauntless que teria sido enviada para a Embaixada Alemã no Rio de Janeiro?

Seria essa a razão do Sr. Enest Walter Lück ter deixado de lado o resgate dos corpos dos tripulantes do “Olinda”?

Ou seria apenas uma coincidência?

Não sabemos, mas vale ressaltar que, devido à falta de atenção do Sr. Enest Walter Lück em não ordenar o resgate dos corpos dos tripulantes do hidroavião, esses são deslocados pela maré e se perdem na noite. Só vão ser encontrados, segundo o jornal A República, a partir das dez da manhã de domingo, 13 de setembro. Eles estavam espalhados em vários pontos do rio e já em adiantado estado de putrefação. Ainda no domingo, com grande acompanhamento por parte da população local, autoridades e membros da colônia alemã, os três alemães mortos foram rapidamente enterrados no cemitério do Alecrim.

Conforme apresentamos no texto dedicado ao comerciante italiano Guglielmo Lettieri, durante a Segunda Guerra Mundial, o alemão Enest Lück e dois compatriotas foram acusados e condenados como espiões da Alemanha Nazista atuando em Natal. Clyde Smith deixa a entender em seu livro que a loja que Lück possuía na Rua Chile era uma espécie de fachada para outras atividades, pois ali “aparentemente, ninguém entrava”[3]. Mas logo após o fim do conflito todos foram soltos e, de uma forma que merece estudo complementar, foram perdoados pela sociedade natalense e continuaram a tocar suas vidas.

Rua Chile antiga Rua do Comércio.

Não conseguimos uma informação mais abrangente sobre o que aconteceu com a loja de Lück na Rua Chile, 161. Mas, segundo a dissertação de mestrado do arquiteto e urbanista Gilmar de Siqueira Costa, pouco antes da chegada dos militares norte-americanos a Natal, o dia a dia naquela edificação ficou bem movimentada.

Intitulada Reutilização de imóveis de interesse patrimonial, voltados para a habitação: Um estudo de caso na ribeira – Natal/RN e publicada em 2006, essa dissertação, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, da UFRN, aponta, nas páginas 147 a 149, que o pavimento do edifício da Rua Chile, 161, foi construído em 1904. Já em 1941, o Senhor Nestor Galhardo adquiriu parte da edificação, tendo o intuito de instalar sua própria gráfica, ocupando apenas o pavimento térreo. Porém, com o advento da Segunda Grande Guerra, muitas prostitutas e seus clientes vieram para a Ribeira. Pensando em atender ao grande número de militares e marinheiros, o Sr. Galhardo, que era amante de uma meretriz chamada Rosita, decidiu abrir um cabaré no pavimento superior, que seria administrado pela sua concubina e cuja entrada era feita pela Travessa Venezuela. Aparentemente foi nessa época que a edificação ficou conhecida popularmente como “Edifício Galhardo”.

Segundo Gilmar de Siqueira Costa, um dos aspectos mais curiosos relacionados ao Edifício Galhardo é o fato de ter sediado durante muito tempo uma das mais famosas casas de meretrício do Nordeste – o Cabaré Arpège. O autor aponta como sendo uma “casa de recursos vinculada à cultura da boemia e dos cabarés, geradora de toda uma série de mitologias e anedotas referentes a personagens destacados na vida social, no decorrer do seu tempo de atuação”. Sobre esse lugar paira a lenda que durante a visita dos Presidentes Roosevelt e Getúlio Vargas à Natal, em janeiro de 1943, esses teriam visitado discretamente as instalações do elegante lupanar.

Após a morte do seu proprietário, o seu parente Nestor Galhardo Neto assumiu a administração dos negócios contidos no imóvel. Gilmar de Siqueira Costa aponta como fato curioso que durante as gravações da película “For All”, que buscava retratar a cidade de Natal no período da Segunda Guerra, algumas cenas foram tomadas nos espaços do prédio.

NOTAS


[1]http://www.parentesco.com.br/index.php?apg=pessoa&idp=32290&c_palavra=L%C3%BCck&ori=nomes&ver=por, acessado em 17/05/2019.

[2] O H. M. S. Dauntless chegou a participar de toda a Segunda Guerra Mundial, combatendo os japoneses na região da Batavia e Singapura, além de participar dos combates a submarinos alemães no Atlântico.

[3]SMITH JUNIOR, Clyde – Trampolim Para a Vitória. 1. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1993, página 22.

A B-17 DO AEROCLUBE DO RN – AQUELA QUE NUNCA FOI, MAS QUE NUNCA DEVERIA TER IDO!

A B-17 do Aeroclube – Fonte – Arquivo da família do autor.

A B-17 do Aeroclube – Fonte – Arquivo da família do autor.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Este texto é parte integrante do livro “Sobrevoo: Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte”, lançado em 2019.

Atualmente Natal é uma cidade com quase um milhão de habitantes e grande parte do nosso povo desconhece a história de sua terra e dos fatos relativos ao envolvimento potiguar na Segunda Guerra Mundial. Quando sabe de algo, é quase sempre muito superficial. Acredito que uma das razões é porque pouco existe para mostrar.

Interessante que uma localidade que tinha nos aviões a sua maior referência no mais intenso conflito da história da humanidade atualmente não possui em sua área territorial, em permanente exposição, uma única aeronave dos variados modelos que por aqui passaram durante a Segunda Guerra Mundial.

O triste é que no passado, no nosso tradicional Aeroclube do Rio Grande do Norte, no bairro do Tirol, aqui tivemos um genuíno exemplar de um grande quadrimotor B-17.

Fonte – Arquivo da família do autor.

Mas um dia ele se foi!

Mostrando as asas e as estrelas

O quadrimotor Boeing B-17 foi um dos ícones da aviação militar durante a Segunda Guerra Mundial, mas sua história tem início antes do conflito. Em 1934 o então Corpo Aéreo do Exército dos Estados Unidos (USAAC – United States Army Air Corps) emitiu as normas para a criação de um bombardeiro multimotores. Com grande clarividência, a empresa Boeing Airplane Company projetou o seu Model 299 em junho daquele ano. Era um bombardeiro pesado completo, que voaria mais rápido, mais alto e com longo alcance.

O Model 299 realizou seu primeiro voo em 28 de julho de 1935 em Boeing Field, chamando atenção da imprensa na época. Mas em outubro o protótipo do 299 caiu desastrosamente

As primeiras B-17.

no seu voo de avaliação para os militares da USAAC. O acidente foi atribuído a erro humano, mas o Air Corps reconheceu o potencial do modelo e mandou a Boeing produzir treze exemplares para avaliação.

Quando em uso na USAAC e por tudo aquilo que o grande avião quadrimotor trazia na sua capacidade operacional, ele foi logo batizado por um jornalista de Seattle como Fortaleza Voadora (Flying Fortress).

O 2º Grupo de Bombardeio, de Langley Field, em Hampton, estado da Virginia, foi equipado com as primeiras B-17 em 1937.

Como forma de treinar suas tripulações para voos de longa distância, navegação aérea e técnicas de voo de alta altitude, os comandantes americanos decidiram realizar alguns voos do tipo “Good Will Fligth” para a América do Sul, em que esses aviões estiveram primeiramente na Colômbia e depois na Argentina. Além de melhor capacitar seus aviadores, os voos serviam para “mostrar as asas e as estrelas” do pode aéreo dos Estados Unidos aos países localizados ao sul do Rio Grande.

Outros fatores ajudaram nesta decisão, sendo o principal a grande e forte presença da aviação comercial alemã e italiana na América do Sul. Os americanos ficaram particularmente impressionados com o voo entre a Itália e o Brasil de três aviões trimotores Savoia-Marchetti SM-79T. Comandados por Bruno Mussolini, o segundo filho do ditador italiano, o voo foi realmente um acontecimento para a época. Após partirem de Roma, realizaram uma escala em Dakar e então cruzaram o Oceano Atlântico, a etapa mais longa e exigente para chegar ao Rio de Janeiro. Dois dos aviões atingiram a meta regularmente, enquanto um outro, com a matrícula

I-MONI, sofreu uma falha no motor e teve que pousar em Natal. Os italianos percorreram aproximadamente 9.800 km, em pouco mais de 24 horas, a uma média de 400 km/h.

Diante desse acontecimento, as autoridades em Washington logo aprovaram um novo “Good Will Fligth”, desta vez para o Brasil.

B-17 da USAAF no Brasil e visitando Natal em 1939

Oficialmente seus aviadores participariam das comemorações do 50º aniversário da nossa Proclamação da República.

B-17 do 2º Grupo de Bombardeio – Fonte – USAF.

A esquadrilha de sete aeronaves Flying Fortress partiu em novembro de 1939, comandada pelo tenente-coronel Robert Olds, acompanhado de 27 oficiais e 20 sargentos, entre estes o próprio comandante do USAAC, o major general Delos C. Emmons. Este voo realizou seu trajeto passando por Miami, depois Panamá, Equador, Peru, Bolívia, Paraguai e finalmente entrou em território brasileiro.

Provavelmente com a ideia de “mostrar as asas e as estrelas” na área de maior concentração de alemães no Brasil, o avião do próprio comandante Robert Olds realizou uma visita a Porto Alegre. No Rio de Janeiro, o ditador Getúlio Vargas fez um voo em uma das B-17 sobre a então capital federal.

Nota sobre a chegada das Fortalezas Voadoras – Fonte – Jornal A República, 23 de novembro de 1939.

Depois dos festejos, no voo de retorno aos Estados Unidos, a esquadrilha passou por Natal no dia 23 de novembro.

Para o então acanhado, mas estratégico, campo de aviação de Parnamirim seguiu uma grande comitiva de autoridades potiguares, tendo à frente Rafael Fernandes, então interventor federal. Nos exemplares do jornal A Republica e no livro “Asas sobre Natal – Pioneiros da aviação no Rio Grande do Norte’’ (Natal-RN, Fund. José Augusto, 2012, págs. 404 a 410), temos a informação que a última aeronave pousou às 13h45, depois de sete horas de voo sem escalas desde o Rio.

Além dos americanos, vieram nas B-17 nove oficiais brasileiros que seguiam para estagiar nos Estados Unidos e em Natal ajudavam na função de intérpretes. Um trem especial transportou todos para a capital, onde no desembarque foram recebidos pela banda da Força Policial ao som dos hinos do Brasil e dos Estados Unidos. Os visitantes ficaram hospedados no recentemente inaugurado Grande Hotel, no bairro da Ribeira. Após o desembarque da composição, o major general Delos C. Emmons conheceu a cidade em carro aberto, na companhia do Secretário Geral Aldo Fernandes. Foi oferecido a eles um coquetel no Aeroclube e um suntuoso jantar no Grande Hotel. Muitos militares saíram para conhecer a bucólica Natal, que nem 50.000 habitantes possuía na época.

Trajeto do voo das B-17 em 1939 – Fonte – USAF.

Chamou atenção dos natalenses o alto cargo que o general Emmons, então com 51 anos, ocupava, além do fato dele participar daquele voo. Já o comandante Olds, com 43 anos, possuía a expressiva marca de 4.000 horas de voo. A visita foi  rápida, chamou atenção de alguns, mas não de muitos, e às seis da manhã do outro dia os aviões da esquadrilha partiram.

O voo de regresso para os Estados Unidos foi através da Guiana Holandesa, Venezuela e Porto Rico. As Flying Fortress completaram o trajeto sem escalas até Paramaribo em nove horas.

Em combate

Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, a doutrina no Air Corps mudou, bem como a própria instituição, que passaria a se chamar Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (USAAF – United States Army Air Force). As B-17 passaram a voar em grandes formações rápidas, em alta altitude, largando suas bombas contra alvos estratégicos e defendendo-se contra combatentes inimigos com as suas próprias metralhadoras. Para isso as B-17 mudaram, sendo criadas outras versões mais modernas e com melhor armamento defensivo.

Uma B-17 a caminho da Europa, sobrevoando a América Central – Fonte – National Archives and Records Administration – NARA.

Durante a Guerra a aeronave foi empregada principalmente na campanha de bombardeios estratégicos contra a Europa ocupada. A 8º Air Force da USAAF, com base em muitos aeroportos no sul da Inglaterra, bem como a 15º Air Force, com sede na Itália, mantinham a superioridade aérea sobre as cidades, fábricas e campos de batalha da Europa Ocidental, com ataques de precisão à luz do dia. Trabalhavam combinados com o Comando de Bombardeiros da Royal Air Force – RAF, que operavam à noite. O B-17 Flying Fortress também participou da Guerra do Pacífico, mas em menor escala.

A B-17 era potente como bombardeiro de longo alcance, capaz de se defender e voltar para casa, apesar dos danos de batalha. Rapidamente tomou proporções míticas entre os aviadores, com notáveis histórias dos B-17 que sobreviviam com enormes danos. Até o fim da guerra, em 1945, o B-17 foi um dos bombardeiros americanos mais ativos durante o conflito, com 290.000 missões realizadas, tendo lançado mais de um terço (640.000) dos 1,5 milhões de toneladas de bombas americanas na Europa e no Pacífico. Mais de 12.731 exemplares da Flying Fortress foram fabricados.

Esquadrilha de B-17 sobre a Europa ocupada – Fonte – National Archives and Records Administration – NARA.

Milhares deles, a caminho dos teatros de operações, passaram por Natal e pousaram em Parnamirim Field.

Voando na FAB

Com o final do conflito a grande maioria das B-17 Flying Fortress foram desativadas e muitas se transformaram em sucata. Outras foram convertidas para uso em reconhecimento aéreo, transporte de carga e busca e salvamento (SAR – Search and Rescue), tendo voado ainda por muitos anos.

SB-17G de busca e salvamento. Reparem que este avião transportava um pequeno barco que podia ser lançado ao mar no socorro aos náufragos

Segundo o site http://darozhistoriamilitar.blogspot.com.br/2009/11/missao-pernambuco-b-17-fortaleza.html, as B-17 destinadas ao serviço de busca e salvamento (SAR) foram adaptadas a partir de aeronaves originalmente construídas do modelo G, tiveram suas denominações alteradas nos Estados Unidos para SB-17G e 180 delas foram modificadas  para esse padrão. Já as aeronaves destinadas à função de reconhecimento aerofotográfico e meteorológico receberam a denominação RB-17G.

No início da década de 1950, a Força Aérea Brasileira precisava formar uma unidade de busca e salvamento marítimo e outras especialidades. Para isso foram adquiridas 13 desses modelos especiais de B-17 e utilizadas entre 1951 e 1968 (uma delas foi perdida na fase de treinamento e não entrou no inventário da FAB).

Estas aeronaves ficaram lotadas no 6º Grupo de Aviação (6º GAV), com base em Recife, Pernambuco. O 6º GAV, por sua vez, possuía dois esquadrões de B-17: o 1º Esquadrão/6º Grupo de Aviação (1º/6º GAV), que operou as aeronaves de busca e salvamento, e o 2º Esquadrão/6º Grupo de Aviação (2º/6º GAV), que operou os B-17 no reconhecimento, meteorologia e aerofotogrametria.

Os vetustos quadrimotores serviram condignamente à FAB, que foi a última operadora militar a retirar essas aeronavesde serviço. Foram utilizados para apoiar uma unidade militar brasileira a serviço da ONU na Faixa de Gaza em 1956. Realizaram voos de transporte na Amazônia e as aeronaves de reconhecimento e fotogrametria fizeram os primeiros levantamentos topográficos da região amazônica. Mas os anos de voo começaram a cobrar um alto preço. Além de acidentes, muitas aeronaves passaram a não mais voar, servindo como fornecedoras de peças para manter outras voando. Em 1968 foi o fim das atividades do B-17 na FAB.

Fonte – National Archives and Records Administration – NARA.

Segundo o site http://culturaaeronautica.blogspot.com.br/, uma destas aeronaves foi doada para um museu aeronáutico nos Estados Unidos e duas outras ficaram no Brasil. Uma delas é o Boeing B-17 G-95-VE, que nos Estados Unidos utilizou a numeração 44-8558. Até nossos dias este belo avião está em exposição na entrada da Base Aérea de Recife, nas cores e configuração originais da FAB. Segundo informação do site Cultura Aeronáutica, embora este B-17 esteja ao ar livre, é cuidadosamente conservado pelo pessoal da base, sendo a única aeronave do seu tipo preservada e exposta no Brasil. Talvez em toda a América do Sul.

Já a outra aeronave veio para Natal.

A B-17 do Aeroclube do Rio Grande do Norte

A B-17 natalense era originalmente um Boeing B-17G-95-DL, que nos Estados Unidos tinha o número 44-83718. A sua história operacional não aponta que tenha servido em alguma frente de combate na Segunda Guerra, mas descobri que passou quase três anos em esquadrões de busca e salvamento na Base Aérea de Wheelus, na Líbia, sedo depois vendida à FAB.

Após ser desativada, essa aeronave ficou estocada por três anos em Recife e depois foi transferida para a Base Aérea de Natal. Com grande festa, por ocasião do dia do Aviador, 23 de outubro de 1973, os militares colocaram a B-17 em exposição estática no Aeroclube do Rio Grande do Norte e durante a década de 1970 este avião foi a maior referência na memória dos natalenses sobre o período da Segunda Guerra Mundial.

Brigado Everaldo Breves

Quem trouxe a B-17 para Natal e depois para o Aeroclube foi o brigadeiro Everaldo Breves. O militar, que hoje tem nome de avenida na cidade de Parnamirim, já naquela época possuía a ideia de ser aqui construído um museu que guardasse a memória do envolvimento de Natal durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1973, durante uma visita de jornalistas americanos a Natal, eles foram aparentemente levados pelo brigadeiro Breves a conhecer a B-17 e a história da nossa participação no conflito. Foi publicada uma reportagem no jornal The Herald Statesman , da cidade de Yonkers, estado de Nova Iorque, edição de 17 de maio daquele ano. 

Reportagem sobre a B-17 de Natal – Fonte – Jornal The Herald Statesman.

Quem vinha de carro para aquela tranquila Natal dos anos 1970, com pouco menos de 300.000 habitantes, e desejava seguir em direção ao Centro da cidade, normalmente se deslocaria pela Avenida Hermes da Fonseca. Em dado momento surgia à sua esquerda, dominando o cenário, um grande quadrimotor prateado, com listas amarelas e hélices negras. O B-17 ficava em um ponto mais elevado do terreno, nas dependências do Aeroclube, no bairro do Tirol.

Em 1977 a família do autor desse livro foi morar no mesmo bairro do Tirol.

Passei a fazer parte da escolinha de natação do clube e sempre estava perto da B-17. Muitas vezes fui bater bola no Aero e sempre contemplava a aeronave. Meus pais já tinham me dado a satisfação de ter comprado alguns poucos livros com desenhos de veteranas B-17 da época da Guerra e passei horas embaixo da sombra de suas asas, comparando os desenhos e a “minha” B-17. Um senhor que trabalhava no Aeroclube, certamente com pena, algumas vezes abriu a pequena porta próximo à deriva da aeronave e eu percorria a sua fuselagem. Sentei na cabine de comando, toquei no manche, contemplei a infinidade de “reloginhos” que havia no painel, visualizei da cabine a dimensão daquelas asas e disposição dos motores.

Curti muito aquela aeronave!

A B-17 do Aero nunca foi a primeira a pousar em Parnamirim Field em 1942

No “bico” do avião havia uma placa com os seguintes dizeres;

“FORTALEZA VOADORA-B-17-PRIMEIRO AVIÃO MILITAR USA QUE POUSOU NA BASE AÉREA DE NATAL-“TRAMPOLIM DA VITÓRIA”, EM 6-1-1942”

Apesar de toda a pompa e circunstância dos dizeres, a B-17 do Aeroclube do Rio Grande do Norte nunca foi o avião homenageado. E isso ocorre porque em 6 de janeiro de 1942 aquele avião simplesmente não existia. A primeira vez que uma B-17G decolou foi em 21 de maio de 1943 e as aeronaves de produção só começaram a aparecer nos esquadrões da USAAF em julho daquele ano.

A B-17 Memphis Belle – Fonte – National Archives and Records Administration – NARA.

Esta versão “G” do Flying Fortress foi mais produzida em número do que qualquer outra versão. Um total de 8.680 B-17G saíram das fábricas – 4.035 pela Boeing, 2.395 pela Douglas e

2.250 pela empresa Vega (ver http://www.historyofwar.org/articles/weapons_B-17G.html).

E finalmente, para corroborar esta informação, sabemos que o número original deste avião nos Estados Unidos era 44-83718. Quem olhar as fotos de aviões americanos na Segunda Guerra Mundial normalmente vai encontrar uma série de sete números na deriva da aeronave. Geralmente os dois primeiros números correspondem ao ano em que o contrato de fabricação foi firmado entre os militares e a indústria produtora (ver http://www.joebaugher.com/).

Mas realmente, no dia 6 de janeiro de 1942, quase um mês após o ataque japonês à base naval de Pearl Harbor, nas ilhas do Havaí, aviões B-17 e também os quadrimotores B-24 Liberators passaram por Parnamirim Field em direção ao Extremo Oriente. Isso ocorreu na transferência desses bombardeiros no conhecido Project X. Esse foi o primeiro grande esforço de transferência de grandes unidades de bombardeiros americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de muitos atrasos, 44 ​ bombardeiros do tipo B-24 e B-17 foram entregues as forças combatentes no Sudoeste do Pacífico.

Uma das B-17 do Project X que comprovadamente passaram por Natal no primeiro mês de 1942 foi a B-17E, número 41-2471, do 7Th Bomb Group e pilotado pelo tenente Donald R. Strother. Foi metralhada no solo pelos caças Zeros japoneses em 8 de fevereiro em Java e ficou inoperante. Após sua captura, foi colocada em condição de voo e levada ao Japão como troféu de guerra, onde depois foi destruída.

Quatro dos B-17 se perderam completamente sobre o Oceano Atlântico depois de passarem por Natal. Outro caiu próximo a Belém, um foi forçado a retornar para os Estados Unidos para reparos e um ficou esperando por socorro mecânico na África até maio 1942. Apesar dos problemas, para a natureza pioneira do trabalho foi um bom começo, pois se deve considerar que enquanto o movimento de aviões estava em andamento, com equipes inexperientes e mal treinadas, os americanos se desdobravam em organizar uma grande rota aérea de transporte através do Atlântico Sul, África e Índia. Rota onde Natal teve um papel destacado. (Ver –http://en.wikipedia.org/wiki/South_Atlantic_air_ferry_route_in_World_War_II)

A saída da B-17 de Natal e o que sobrou dessa memória

Apesar de sua importância histórica, infelizmente, sem conservação adequada, a aeronave se desgastou e, já em 1976, a FAB desejava retirá-la de Natal para o Museu Aeroespacial –MUSAL.

A B-17 do Aeroclube sendo desmontada – Fonte – BNN.

Mas nessa época, segundo podemos ler no Diário de Natal, edição de 7 de outubro daquele ano, o então presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, o deputado Dary Dantas, fez um apelo ao brigadeiro Joelmi Araripe Macedo, então Ministro da Aeronáutica, e a B-17 ficou por aqui. Entretanto, quatro anos depois o brigadeiro Délio Jardins de Matos, que ocupava o cargo de Ministro da Aeronáutica, determinou a transferência. Nesse período o vereador natalense Bernardo Gama fez um apelo para que a aeronave permanecesse na cidade. Mas foi tudo em vão.

O velho e imponente avião foi então desmontado e transportado para o Rio de Janeiro, sendo as partes maiores, fuselagem e asas, levadas pelo navio Soares Dutra, e as menores, como partes da empenagem e motores, via caminhão. As partes que vieram por navio chegaram ao MUSAL em 29 de dezembro de 1980, mas ficaram bastante danificadas no transporte.

Como se encontrava a velha B-17 do Aero no MUSAL, no Rio de Janeiro – Fonte – http://culturaaeronautica.blogspot.com/2010/12/o-boeing-b-17-na-forca-aerea-brasileira.html

Foram estocadas no hangar de restauração do MUSAL por muitos anos, e alguns trabalhos de recuperação chegaram a ser feitos nesse tempo, até meados da década de 2000. Com a reorganização e remodelação do hangar de restauração do MUSAL, o avião foi retirado de seu interior e armazenado ao ar livre, protegido das intempéries por lonas plásticas e nunca foi remontada.. Não existe previsão para a conclusão dos serviços de restauração desse avião, por falta de recursos financeiros e em breve vai completar 40 anos que essa aeronave está desmontada naquele museu. (Ver – site http://culturaaeronautica.blogspot.com.br/)

Foi uma grande perda para Natal.

Para finalizar, sei que no município de Parnamirim, dentro da Base Aérea de Natal – BANT, existem as aeronaves de bombardeio B-25 Mitchell e A-26 Invader, na chamada Praça “Ninho das Águias”, reinaugurada em 20 de outubro de 2009, depois que as aeronaves passaram por reformas desde 2006.

O autor deste artigo em uma visita a BANT, junto a B-25 preservada Praça “Ninho das Águias”

Entre os anos de 1942 e 1975, essas aeronaves integraram o 1º Grupo de Bombardeio Médio, o 5º Grupo de Aviação (5º GAV) e a Esquadrilha de Adestramento da Base. O B-25 Mitchell começou a operar em 1942 durante a Segunda Guerra Mundial e ficou ativo até 1957. Já o A-26 Invader serviu à FAB entre 1957 a 1975, sendo o último avião de uso específico para bombardeio utilizado por nossa Força Aérea.

Isso tudo é muito louvável, mas a BANT é uma unidade militar e não um centro de memória. Apesar de haver uma política dos militares destinada à visitação das aeronaves, algumas vezes o acesso a elas é mais limitado.

Melhor seria se as aeronaves estivessem como a B-17 em Recife: colocadas no portão de acesso, mas pelo lado de fora. A vigilância militar manteria a sua integridade, em uma área onde seria possível estacionar um veículo e  contemplar as velhas águias.

Acredito que assim poderíamos ter como mostrar à nossa gente uma parte muito interessante de nossa História.

QUEM ERAM OS IRMÃOS PERNAMBUCANOS QUE MORRERAM EM COMBATE DURANTE A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL?

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Nos últimos tempos o tema da Primeira Guerra Mundial esteve bastante presente em vários meios de comunicação e de entretenimento. Como foi o caso do prêmio Oscar 2020, onde o interessante filme “1917”, do diretor inglês Sam Mendes, mesmo sem ganhar a estatueta de melhor película chamou muita atenção para esse centenário conflito.

No meu caso, o que sempre me interessou sobre esse período diz respeito às ações dos submarinos alemães e as histórias dos combates aéreos sobre a Europa. Em relação a esse segundo tema, eu nunca fico entediado em ler algo sobre os episódios envolvendo aquelas primitivas aeronaves e todo arrojo daqueles pilotos durante os combates.

Outro dia, ao me pesquisar na internet com alguns interessantes trabalhos ingleses sobre esse tema, me debrucei com maior atenção sobre a vida do ás alemão Ernst Udet. Com sessenta e duas vitórias confirmadas, Udet foi o segundo melhor piloto de caça alemão na Primeira Guerra Mundial e o piloto desse país a sobreviver ao conflito com maior número de aviões inimigos derrubados. Ele voou ao lado do mítico piloto Manfred Von Richthofen, o famoso Barão Vermelho, o maior ás alemão da Primeira Guerra, mas que morreu em combate[1].

Ao conhecer mais sobre a atuação desse piloto de caça, me deparei com a notícia que no ano de 1917 ele derrubou um avião inglês em um combate, ocasionando a morte do adversário. Esse fato em si não trazia nenhuma novidade, mas o que me chamou atenção era o fato do falecido aviador ter nascido no Brasil. E que cinco meses antes de sua morte, o seu irmão mais velho, tenente no exército inglês, morreu em combate na Frente Ocidental, mais precisamente na Batalha de Arras.

O ás alemão Ernest Udet após a Primeira Guerra Mundial.

Primeiramente, devido à existência de um marco de memória em uma antiga igreja no nordeste da Inglaterra, esses irmãos seriam cariocas. Mas após começar a garimpar as notícias, entrar em contato com pessoas que sabem desse tema muito mais do que eu, surgiu a confirmação que eles eram naturais de Recife.

Mas quem eram esses pernambucanos?

OS INGLESES ESTÃO CHEGANDO…

Para respondermos essa pergunta é interessante conhecer uma curiosa particularidade que existiu em Pernambuco entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX – A influência e a importância da comunidade inglesa que viveu nesse estado!

Quadro que representa a chegada da corte portuguesa a Salvador – Fonte – http://jcoutinhomaimai.com.br/wp-content/uploads/2013/10/E4285.jpg

Essa história começa no dia 28 de janeiro 1808, mais precisamente na cidade de Salvador, Bahia. Nessa data o príncipe regente de Portugal, Dom João de Bragança, futuro rei Dom João VI, assinou o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, que literalmente abriu a grande colônia portuguesa do Brasil para o comércio exterior. Mas a verdade é que esse comércio ficou basicamente restrito aos ingleses e houve uma forte razão para isso. Apenas oito dias antes de assinar esse Decreto, praticamente toda a corte portuguesa havia desembarcado na capital baiana, fugindo das tropas francesas de Napoleão Bonaparte, que em 19 de novembro do ano anterior haviam invadido Portugal. E foram os ingleses que apoiaram a fuga dos nobres portugueses para sua enorme colônia.

Após a entrada dos franceses em território luso, Dom João de Bragança assinou uma convenção secreta com a Inglaterra, onde ficou estabelecido que esse país recorreria a ação da Royal Navy, a Marinha Real Inglesa, para a Família Real e membros do governo português chegarem sãos e salvos no Brasil. O Reino de Portugal por sua vez “compensaria” largamente os ingleses com a abertura do comércio no Brasil.

Uma charge em que Napoleão puxa a peruca do general francês Jean-Andoche Junot, por não ter conseguido capturar a Família Real portuguesa – Fonte – https://jcoutinhomaimai.com.br/do-caos-de-lisboa-rumo-ao-brasil/

Não demorou muito e os súditos do monarca inglês Jorge III, conhecido como “o rei louco que perdeu a América do Norte”, desembarcaram na caliente América Portuguesa, principalmente nas cidades do Salvador, Rio de Janeiro e Recife, onde esperavam encontrar uma boa oportunidade para expandir sua indústria e comércio e poderiam auferir grandes lucros.

Com o passar do tempo os súditos da coroa britânica criaram e mantiveram fortes laços com Pernambuco, desenvolvendo muitos negócios e empresas que tiveram grande influência não apenas nesse estado, mas em toda a região Nordeste. Foi o caso da Western Telegraph Company, da Pernambuco Transways and Power Company, da Great Western of Brazil Railway Company (que possuía ramal ferroviário até Natal), da Telephone Company of Pernambuco, do Bank of London & South America,do London & River Plate Bank,da Price Waterhouse,da Machine Cotton,White Martins e de outros mais[2].

Recife antigo.

Através da valiosa ajuda do advogado e fotógrafo pernambucano Ricardo Argm, soube com detalhes da influência que os ingleses exerceram entre a elite social pernambucana, divulgando seus hábitos, comidas, bebidas, maneirismos e seus esportes tradicionais. Ricardo é descendente de ingleses e comentou que no seu estado, bem como em todo Brasil, o esporte bretão que mais fortemente marcou foi o “foot-ball”[3].

Um dos ingleses que moravam em Recife era Thomas MacDonald Hood. Sabemos que nasceu na Inglaterra, era comerciante na última década do século XIX, se tornando depois agente na cidade da empresa J. & P. ​​Coats Limited, atual Coats Group Public Limited Company, conhecida no Brasil como Coats Corrente Ltda. Thomas Hood casou com Ellen Paton em 10 de fevereiro de 1894, na capela do consulado inglês em Recife. Sua esposa havia nascido na capital pernambucana em 1º de novembro de 1871[4].

Através de uma nota publicada em jornais sabemos que o casal vivia em Apipucos, uma área tida como suburbana, afastada nove quilômetros do centro da cidade, que entre o final do século XIX e início do século XX foi escolhido como local de residência pelos muitos ingleses que viviam em Recife[5]. A escolha se deveu, sobretudo, a natureza exuberante e aprazível que ali existia. Os ingleses introduziram o hábito de construir casarões com fartos jardins e utilizar a água como recurso paisagístico.

Segundo Gilberto Freyre, naqueles tempos as águas do hoje poluído rio Capibaribe eram recomendadas para banhos medicinais naquela região. Ainda segundo o famoso escritor pernambucano, em Apipucos havia “banhos de rio pela manhã, à tarde, jogo de cartas, à noite pastoris e danças – assim decorria a vida em Apipucos para a gente sinhá, nos grandes dias dos passatempos de festas de recifenses e de famílias vindas de casas-grandes do interior”.[6]

Uma área aparentemente muito agradável, principalmente para dois garotos de origem inglesa. Estes eram Douglas Edward Hood e Ronald Paton Hood!

DO RIO PARA A GUERRA

Foto creditada a Douglas Edward Hood.

Douglas nasceu em 26 de maio de 1896 e Ronald em 28 de junho de 1898, mas de suas juventudes não conseguimos nenhuma informação. Sabemos que a família mudou de Recife para o Rio de Janeiro, pois já em 1910 Thomas MacDonald Hood está atendendo seus clientes no centro da então Capital Federal, na Rua São Pedro, número 120, como gerente da “Machine Cottons”.[7] Três anos depois, conforme está descrito no jornal O Paiz  (19/11/1913-pág.9), Hood se torna presidente da Companhia Brasileira de Linhas. Ali encontramos uma concessão em seu nome, por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro, para a construção de edifícios na Rua do Hospício, nos números 144, 146 e 148[8].

Após o início da Primeira Guerra Mundial só vamos ter notícias dos irmãos recifenses em janeiro de 1917, quando Douglas Hood embarca no porto do Rio para a Inglaterra, junto com um jovem de 19 anos chamado Charley Taylor, filho de um empresário, que foi servir na França como tenente da 119º Battery, da Royal Field Artillery. Seguiram de Santos, São Paulo, mais dois combatentes para a luta. Um deles era o bancário D. M. McKie e o outro um cidadão chamado E. Foy[9].

Símbolo do Regimento Bedfordshire .

Douglas Hood segue para o 1º Batalhão do Regimento de Bedfordshire (1st Battalion Bedfordshire Regiment), uma tradicional unidade de linha do exército inglês. Foi formado em 1688 pela ordem real do imperador James II, tendo ao longo de sua história lutado em inúmeras guerras que envolveram o Império Britânico. Durante toda a Primeira Guerra Mundial o Regimento de Bedfordshire esteve em atuação na Frente Ocidental, na Frente Italiana e até no Oriente Médio, tendo sido composto por vinte e um batalhões.

Membros do 1º Batalhão de Regimento de Bedfordshire.

No caso específico do 1º Batalhão, este desembarcou na França em 15 de agosto de 1914, dezoito dias após o início do conflito, como parte da Força Expedicionária Britânica original.

UM BATALHÃO QUE LUTOU DURANTE TODA A GUERRA

Entre os combates que o 1º Batalhão participou no primeiro ano da guerra estão listados em agosto as Batalhas de Mons, principalmente na área da vila belga de Wasme, lugar onde o pintor Vincent Van Gogh viveu algum tempo em 1879. Nessa ocasião, embora os britânicos tenham lutado bem e infligido baixas desproporcionais aos alemães numericamente superiores, acabaram sendo forçados a recuar devido à maior força dos inimigos. Houve ainda em agosto a Batalha de Le Cateau. Em setembro estiveram na Primeira Batalha de Marne, onde morreram cerca de 500.000 homens dos dois lados da contenda. Participaram da Primeira Batalha de Aisne, quando as trincheiras se tornaram comuns nessa guerra. Já em outubro houve os enfrentamentos da Batalha de La Bassée e da Batalha de Ypres de 1914 (também conhecida como a Primeira Batalha de Ypres).

No ano seguinte os homens do 1º Batalhão morreram e mataram seus inimigos na Segunda Batalha de Ypres, no oeste da Bélgica, onde houve o primeiro uso de gás venenoso pela Alemanha. Lutaram também na chamada Batalha da Colina 60, onde as baixas dessa unidade militar foram tantas, que ela foi duas vezes reconstruída durante a luta.

Típico combatente inglês da Primeira Guerra Mundial.

Em 1916 o 1º Batalhão do Regimento de Bedfordshire esteve envolvido em várias fases da Batalha do Somme, a maior batalha da Frente Ocidental, um verdadeiro moedor de carne humana que tragou, entre feridos ou mortos, mais de um milhão e meio de homens de ambos os lados. O Somme é algo tão grande, que muitos historiadores a definem como Ofensiva do Somme, onde se desenrolaram uma série de combates entre julho e novembro daquele ano. Especificamente o 1º Batalhão participou dos combates de High Wood, Longueval, de Guillemont (na captura da Fazenda Falfemont, de 3 a 6 de setembro) e os combates de Flers-Courcelette, Morval e Le Transloy. 

Trincheira britânica em pleno momento do combate .A guerra nas trincheiras foi uma das situações marcantes da Primeira Guerra Mundial. – Fonte – www.sahistory.org.za/sites/default/files/article_image/worldwar1somme-tl.jpg

É quando 1917 começa…

NA BATALHA DE ARRAS E NO ZOUAVE VALLEY

Sabemos que o recifense Douglas Edward Hood saiu do Brasil em janeiro de 1917 para a Inglaterra, onde realizou seu treinamento básico. A próxima notícia que temos desse jovem é de abril, onde ele recebeu a patente de segundo-tenente e se encontra no norte da França com o experiente 1º Batalhão do Regimento de Bedfordshire. Logo a unidade de Douglas Hood está envolvida na Segunda Batalha de Arras, na região de Nord-Pas-de-Calais, atualmente chamada Hauts-de-France. Aquela era uma ofensiva inglesa contra os alemães, que se desenrolou próximo a cidade de Arras, entre 9 de abril e 16 de maio. Cerca de 130.000 alemães ficaram frente a frente contra 158.000 ingleses, canadenses, sul-africanos, australianos e neozelandeses.

Canadenses combatendo em Vimy, na chamada Batalha de Vimy Ridge, como parte dos combates ocorridos em Arras.

O esforço contra os alemães foi um ataque relativamente amplo, após um longo bombardeio preparatório, que começou em alguns pontos em 20 de março e se prolongou até o início da batalha. Foram lançados incríveis 2.689.000 projéteis. O Dia Zero foi combinado para 9 de abril, com a Hora Zero às 05:30, sendo o principal ataque realizado a leste da cidade de Arras. Ali aconteceu aquela que é a parte mais cuidadosamente trabalhada de toda essa ofensiva, quando os canadenses, ao custo de 3.598 mortos, lançaram um ataque em direção a comuna de Vimy, avançando quase quatro quilômetros por uma área extremamente bem defendida. Após os ganhos territoriais dos primeiros dois dias, seguiu-se uma pausa. Pelos padrões da Frente Ocidental, com milhares de homens dos dois lados, enfurnados em estáticas trincheiras, esse ganho de quatro quilômetros foi considerado espetacular. Durante essa ofensiva, em 26 de maio, o jovem Douglas Hood completou 21 anos de idade.

Em uma vila chamada Souchez, a cerca de doze quilômetros ao norte de Arras, ocorreram outros combates.

Souchez foi uma urbe totalmente destruída durante a Primeira Guerra Mundial, com sua tragédia tendo início em outubro de 1914, quando a vila permaneceu por quase um ano nas mãos das tropas alemãs. Foi definitivamente conquistada pelos franceses em 25 de setembro de 1915. Nessa época ficou marcada uma área ao sul de Souchez, onde morreram em combate 4.207 homens de uma divisão composta majoritariamente de soldados vindos do Marrocos, então uma colônia francesa. Essas tropas eram formadas por homens oriundos do norte africano, existiram entre 1830 até 1962 e eram chamados de Zouave. O local onde a maioria desses marroquinos morreram perto de Souchez, é até hoje conhecido como Zouave Valley.

Segundo o site que preserva a história do 1º Batalhão do Regimento de Bedfordshire (http://www.bedfordregiment.org.uk/1stbn/1stbtn1917diary.html) e o livro “Visiting the Fallen: Arras: Nort” (pág. 184), do historiador inglês Peter Hughes, o 1º Batalhão se encontrava no Zouave Valley em 14 de julho de 1917, na reserva das tropas inglesas em combate. Na manhã desse dia o segundo-tenente Douglas Edward Hood estava participando da construção de uma mule track (trilha de mulas), para apoio aos homens que se encontravam nos túneis denominados Tottenham e Gevenchy-em-Gohelle. Foi quando ocorreu um intenso bombardeio e Hood foi morto, junto com outros quatro militares e dois ficaram feridos[10]. Aparentemente em sua homenagem, seus companheiros batizaram a trilha onde ele morreu de “Hood Track”.

Lápide de Douglas Edward Hood

Douglas Edward Hood está enterrado próximo de onde morreu, no Cemitério Militar de Zouave Valley[11].

Apesar dos ganhos iniciais significativos na Batalha de Arras, os ingleses e seus aliados não conseguiram mais avançar e a situação voltou ao empate tradicional. Embora os historiadores geralmente considerem essa batalha uma vitória britânica, no contexto mais amplo da Frente Ocidental, ela teve muito pouco impacto na situação estratégica ou tática[12].

O JOVEM AVIADOR PERNAMBUCANO

Foto creditada a Ronald Paton Hood, como oficial do Royal Flying Corps.

Temos informações que Ronald Paton Hood deixou o Brasil antes do início da Primeira Guerra e que ele estudou na tradicional Felsted School. Uma instituição de ensino fundada em 1564, localizada na região de Essex, leste da Inglaterra. Com a eclosão da guerra e após sair da escola em setembro de 1915, ele imediatamente se juntou a uma unidade de reserva do exército inglês, recebendo treinamento básico ne a patente de segundo-tenente. Em abril do ano seguinte foi enviado para o Royal Flying Corps, sendo incorporado no Esquadrão número 43 (Squadron Nº 43). Esse esquadrão era conhecido como “Fighter Cokcs”, os “Galos Lutadores”.

Símbolo do 43º Esquadrão.

Essa unidade aérea foi criada na cidade de Stirling, Escócia, em 15 de abril de 1916, e ficou baseado no Raploch Aerodrome, localizado na Fazenda Fallinch, cujos edifícios foram requisitados para uso militar. Hangares de madeira foram construídos para as aeronaves, enquanto os outros edifícios técnicos e as acomodações eram de lona. Ali os homens treinaram o suficiente para ir para a França e se mudaram para Frente Ocidental em janeiro de 1917, realizando missões de reconhecimento de combate usando aeronaves Sopwith 1½ Stutters. Acidentes de voo e aterrissagens foram comuns nos primeiros dias.

A Royal Air Force comemora o centenário do Raploch Aerodrome, localizado na Fazenda Fallinch, Stirling, Escócia.

Ronald Paton Hood, o jovem aviador nascido em Pernambuco, foi combater na Europa com apenas 19 anos de idade, sendo um dos integrantes da Esquadrilha B. Certamente após o dia 14 de julho Ronald deve ter recebido a notícia da morte do seu irmão Douglas no Zouave Valley, mas nada sabemos sobre sua reação.

Desenho de um Sopwith Camel F1.

Em setembro de 1917 o Esquadrão 43 recebeu aeronaves Sopwith Camel F1, armado com duas metralhadoras Vickers e mudou para missões de ataque ao solo, realizando esse tipo de atividade até o final da guerra. Essa era uma aeronave difícil e mortal nas mãos de um novato, onde muitos pilotos foram mortos enquanto aprendiam a pilotar um Camel. Mas nas mãos de um piloto habilidoso, capaz de tirar proveito de suas características temperamentais de voo, era um avião de combate extremamente capaz.

A Esquadrilha B do 43º Esquadrão, onde o segundo-tenente Hood estava lotado.

Mesmo estando na França com o Esquadrão 43 desde o começo do ano, até aquela data sabemos que Ronald Hood não tinha abatido nenhum avião em combate e na metade de 1917 fazia pouco tempo que voava no novo Sopwith Camel F1. Por maior que fosse sua impetuosidade e motivação, o segundo-tenente Hood era antes de tudo inexperiente.

ENCONTRO COM O UDET

Pouco mais de dois meses após a morte de seu irmão, no dia 28 de setembro, Ronald Hood decolou algumas vezes para atacar tropas alemãs e realizar patrulhas ofensivas. Nesse dia Hood pilotava seu Camel, com a matrícula B6209, atuando como ala do experiente capitão Thomas S. Wynn, que pilotava um Sopwith Camel F1, de matricula B2366.

Pelo final da tarde a dupla voava em patrulha ao sul da área da comunidade de Wingles e ao norte da cidade de Lens, na mesma região de Nord-Pas-de-Calais.

Ernest Udet ao lado de seu avião Albatroz.

Tal como Ronald Hood, o alemão Enest Udet era jovem, tinha apenas 21 anos de idade. Mas até aquele mesmo dia 28 de setembro ele já havia conseguido derrubar onze aeronaves inglesas e francesas em combate. O interessante foi que Udet havia conseguido suas vitórias com aeronaves tidas como inferiores as dos seus inimigos, como era o caso do avião que pilotava naquele momento, um medíocre Albatros DV. Aquela era uma aeronave de motor fraco, que deixou o próprio barão Manfred Von Richthofen particularmente decepcionado com o seu desempenho abaixo do padrão, especialmente depois que Von Richthofen foi gravemente ferido em combate pilotando um desses modelos[13]

O Albatroz DV de Enest Udet.

No entanto, os pilotos alemães voavam e lutavam com o que tinham. Mas eles podiam compensar essas deficiências utilizando o que possuíam de melhor – Suas habilidades em combate e o Spirit de corps que existia nos esquadrões de caça alemães. Nessa época Udet era membro do esquadrão de caça Jagdstafell 37, do Luftstreitkräfte, o Corpo Aéreo Imperial Alemão. Abreviado para Jasta 37, essa unidade de combate era altamente qualificada, sob o comando do seu amigo Kurt Grasshoff, que em breve indicaria Udet como seu substituto para comandar o Jasta 37.

Naquele final da tarde de 28 de setembro, Udet voava acompanhado de outro Albatros DV da sua unidade, ao norte da cidade de Lens, quando viu a patrulha de dois Sopwith Camel a 3.500 metros de altitude (10.500 pés) e logo mirou no avião que se posicionava atrás do líder. Após um longo e íngreme mergulho o alemão abriu fogo a cerca de quarenta metros do inimigo, que não ofereceu resistência. O avião de Hood caiu em chamas nas cercanias da cidade de Point-à-Vendin, área então dominada pelos alemães e sua queda foi testemunhada pela guarnição de um canhão antiaéreo inglês.  

Pintura que mostra o avião Albatroz DV de Enest Udet, atacando um avião inglês modelo Sopwith Camel.

O capitão Thomas Wynn prontamente reagiu ao ataque e colocou seu avião a pouca distância de um dos alemães e atacou com uma curta rajada de suas metralhadoras, mas não obteve sucesso. Wymm havia atacado o ala de Udet e este, com extrema habilidade, conseguiu se posicionar atrás do Camel sobrevivente e abriu fogo. Em seu relatório o capitão Wynn informou que seu avião foi atingido no motor e este parou. Ele abandonou o combate a cerca de 300 metros de altitude (1.000 pés) e começou a girar sua aeronave em direção ao solo. Depois direcionou sua máquina danificada para as linhas amigas e conseguiu sobreviver ao pouso forçado. Os alemães não seguiram o inglês em sua descida com a ideia de aniquilar o oponente. Depois Wynn descobriu que os disparos de Udet destruíram seis cilindros do seu motor e perfuraram os tanques de óleo e de combustível[14].

Ficha do segundo-tenente Ronald Paton Hood.

Após conquistar sua 12º vitória, a segunda no mesmo dia, o ás Enest Udet e seu colega retornaram para sua base[15]. Já o corpo carbonizado do jovem nascido em Pernambuco provavelmente ficou entre os destroços de sua aeronave, em meio aos seus inimigos e nunca foi encontrado pelos ingleses. Ronald Paton Hood foi abatido em um local que em média fica apenas quinze quilômetros a nordeste de onde seu irmão tombou e está enterrado.

A seta asinala o nome Hood R. P. – Ronald Paton Hood.

No memorial de guerra de Faubourg d’Amiens, em Arras, estão os nomes de quase 1.000 aviadores que morreram combatendo os alemães na Primeira Guerra Mundial e que não têm sepultura conhecida. O nome de Ronald Paton Hood está entre eles[16].

No nordeste da Inglaterra, no condado de North Yorkshire, encontramos o distrito de Hambleton, onde existe uma pequena vila chamada South Otterington, que data do século X ou XI. Neste último local existe a igreja de Saint Andrew, reconstruída em 1846 sobre um antiquíssimo templo normando, ainda dos primórdios da vila. E é na parte externa desse templo que a família Hood ergueu uma placa de memória para assinalar três de seus membros que morreram na Primeira Guerra Mundial, entre eles Douglas e Ronald Hood.

NOTAS

[1] Ernest Udet nasce em Frankfurt no dia 26 de abril de 1896, era filho de um engenheiro e uma dona de casa, criado em Hamburgo e que desde cedo deu muita atenção à aviação. Udet era um alemão bem distinto e diferenciado. Tinha uma personalidade atraente, mostrando-se bastante expansivo, alegre e de mente aberta. Dava muito valor a mulheres, vinhos e a atmosfera de luxo confortável. Após o fim do conflito esse alemão tornou-se um pioneiro no cinema aéreo, viveu nos Estados Unidos onde atuou como dublê de pilotos em películas de sucesso e ficou reconhecido internacionalmente nessa atividade. Em junho de 1935 Udet ingressou como coronel na força aérea de Adolf Hitler, a Luftwaffe, e um ano depois foi nomeado chefe do Gabinete Técnico do Ministério do Ar. Udet foi responsável pela introdução do Junkers JU-87 Stuka e do Messerschmitt Bf 109. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele subiu ao posto de diretor de armamento aéreo. Em 1940, os pilotos começaram a reclamar que o caça inglês Spitfire era superior às aeronaves alemãs. Mais tarde Hitler e o comandante da Luftwaffe, o controverso Hermann Goering, o acusaram de ser responsável pela derrota da Luftwaffe durante a Batalha da Grã-Bretanha. Ele também foi criticado por negligenciar o desenvolvimento de novos bombardeiros pesados. Udet ficou deprimido com o desempenho e em 17 de novembro de 1941, Udet deu um tiro na cabeça enquanto estava no telefone com sua amante. Hitler ficou constrangido com a morte de Udet e emitiu uma declaração de que Udet havia sido acidentalmente morto enquanto testava uma nova arma. 

[2] Ver FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil: aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1977.

[3] Guilherme de Aquino Fonseca, um filho da aristocracia canavieira pernambucana que havia ido estudar na Inglaterra e adorava os esportes que viu por lá, foi quem organizou os primeiros embates futebolísticos em Recife. No seu retorno da Inglaterra o jovem Guilherme soube que em Recife vários súditos ingleses batiam uma bolinha e ele organizou em 1904 o primeiro jogo, ou “match”, contra o time da Western. No ano seguinte, em 13 de maio, Aquino fundou com a participação de brasileiros e britânicos o tradicional Sport Club do Recife. Segundo está descrito no Diário de Pernambuco, em 22 de junho de 1905 essa neófita equipe se bateu no seu primeiro jogo contra a equipe do English Eleven, um time formado pelos funcionários de companhias inglesas instaladas em Recife. O placar foi de 2 x 2. Ver LIMA e EDUARDO. (2013). Recife entra em campo: história social do futebol recifense 1905-1937. XIV Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia. Departamento de Historia de la Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza, páginas 10 a 18 – http://cdsa.aacademica.org/000-010/292.pdf

[4] Ver – extra.bccy.org.uk/gibson/gen_tree/default.htm?page=family-ThomasMacdonaldHoodAndEllenPaton-F00101.htm e http://www.familiagibson.org/2012/10/

[5] Ver Diário de Pernambuco, edição de 27/02/1894, pág. 3.

[6] Ver FREYRE, Gilberto. Apipucos: que há num nome? Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1983 e http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=352&Itemid=189

[7] Ver Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Rio de Janeiro, edição de 1910, pág. 1425. A antiga Rua São Pedro, cujos primeiros registros de ocupantes datam de 1624, atualmente não existe mais, fazendo parte da Avenida Getúlio Vargas. Sobre sua história ver https://reficio.cc/publicacoes/memorias-para-servir-a-historia-do-reino-do-brasil/rua-sao-pedro/

[8] Atualmente essa rua se chama Buenos Aires e a região é uma área extremamente comercial, popularmente conhecida como Saara, um termo que designa a Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega.

[9] Ver Wileman’s Brazilian Review, 01/05/1917, pág. 321.

[10] Os feridos foram um soldado e o tenente Leonard Dolman, que foi atingido por estilhaços no ombro, era um antigo professor de 28 anos, originário do leste da Inglaterra e em combate na França desde outubro de 1914.

[11] Ver Diário de Pernambuco, edição de 23/04/1917, pág. 1 e Jornal Pequeno, edição de 24/04/1917, pág. 1.

[12] Ainda em 1917 o 1º Batalhão do Regimento de Bedfordshire participou dom ataque a La Coulotte e em maio na Terceira Batalha do Scarpe. Eles também estiveram envolvidos na captura de Oppy Wood em junho. Durante as Batalhas de Ypres de 1917 (conhecida também como Terceira Batalha de Ypres, ou Passchendaele), o batalhão esteve envolvido em outubro nas Batalhas de Broodseinde e Poelcapelle, bem como na Segunda Batalha de Passchendaele, nessa última entre outubro e novembro. Ainda em 1917, em dezembro, o 1º Batalhão esteve na Itália para fortalecer a resistência italiana após um recente desastre na Batalha de Caporetto e seus homens ficaram posicionados ao longo do rio Piave, na região do Vêneto, Itália setentrional. Em abril de 1918 o 1º Batalhão retornou à França e mais uma vez se envolveu em várias ações, como a Batalha de Hazebrouck, Defesa da Floresta Nieppe e as Batalhas de Albert, Bapaume, Drocourt-Queant, Epehy, do Canal du Nord e do Selle. Finalmente, em 11 de novembro de 1918, o 1º Batalhão do Regimento de Bedfordshire encerrou suas ações na Primeira Guerra em Louvignies, França. 

[13] https://science.howstuffworks.com/albatros-dva.htm

[14] http://www.theaerodrome.com/forum/showthread.php?t=65449

[15] https://science.howstuffworks.com/albatros-dva.htm

[16] http://www.theaerodrome.com/forum/showthread.php?t=68697

NATAL E O RN NA PANDEMIA DA GRIPE ESPANHOLA DE 1918

Rostand Medeiros, escritor, pesquisador e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Gripe espanhola de 1918.

Primeiros Casos Relatados no Mundo

11 de março de 1918 – Um soldado do exército dos Estados Unidos, se reportou ao hospital de Fort Riley, Kansas, com estranhos sintomas envolvendo uma gripe muito forte. Logo, mais de 100 outros soldados relataram sintomas semelhantes, marcando o que se acredita serem os primeiros casos da pandemia histórica de influenza de 1918, mais tarde conhecida como gripe espanhola. Apesar do nome e do que aconteceu no Kansas, dados históricos e epidemiológicos não conseguem identificar a origem geográfica desta pandemia. Depois de observada no interior dos Estados Unidos, a doença avança pela Europa e em partes da Ásia, antes de se espalhar rapidamente pelo mundo. 

Espanhola?

Acredita-se que a origem do nome “gripe espanhola” deriva da propagação da pandemia da Espanha para a França em novembro de 1918. Nessa época a Espanha permaneceu neutra durante a Primeira Guerra Mundial e não impôs nenhuma censura em seus jornais sobre o avanço dessa doença naquele país, como ocorria em outras nações. Logo as histórias amplamente divulgadas, mostrando a Espanha especialmente atingida criou uma falsa impressão em outras partes do mundo que tudo teve origem nesse país.

Influenza espanhola nos Estados Unidos, outubro de 1918. (National Archives)

Avanço da doença no Mundo

A pandemia de gripe espanhola de 1918, a mais mortal da história, infectou cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo – um terço da população do planeta – e matou em torno de 20 a 50 milhões de vítimas. Alguns acreditam que chegou a 100 milhões. Na época não existiam terapias antivirais específicas. Hoje em dia, as coisas não mudaram muito, e a maioria dos tratamentos para a enfermidade se dirige a aliviar os sintomas, em vez de curar a doença.

Os cidadãos de alguns países em 1918 receberam ordens para usar máscaras. Dependendo da região do mundo escolas, teatros e empresas foram fechados e corpos empilhados em necrotérios improvisados ​​antes que o vírus encerrasse sua mortal marcha global. No Brasil, tal como agora, foram as cidades e os governos estaduais que decidiram suas ações, mediante o avanço da doença. Nem sequer existia Ministério da Saúde. Ele só foi criado doze anos depois do surto de gripe espanhola no Brasil, mas vinculado com a pasta da educação. De forma autônoma e independente o Ministério da Saúde só foi criado em 25 de julho de 1953.

Atendimento contra a gripe espanhola.

Em todas as partes no ano de 1918 a pandemia de gripe fez muitos temerem o fim da humanidade, além de alimentar por muito tempo a ideia de que se tratava de uma cepa viral particularmente letal. Entretanto, estudos mais recentes indicam que o vírus, embora mais mortífero que outras cepas, não era diferente dos vírus que causaram as epidemias de outros anos. Na Europa conflagrada a taxa de mortalidade pode ser atribuída em grande medida as aglomerações nos acampamentos militares e nos ambientes urbanos. Bem como à má qualidade da alimentação e às condições sanitárias precárias. Atualmente, acredita-se que muitas mortes de 1918 decorreram do desenvolvimento de pneumonias.

Mundialmente a onda inicial de mortes pela gripe, na primeira metade de 1918, foi relativamente pequena. Foi na segunda onda, de outubro a dezembro do mesmo ano, que se registrou a maior taxa de mortalidade. A terceira fase, no primeiro semestre de 1919, foi mais letal que a primeira, porém menos que a segunda.

Enfermeira contra a gripe espanhola.

Em todo o mundo os funcionários dos serviços públicos de saúde, a polícia e os políticos tinham motivos para minimizar a gravidade da gripe de 1918, o que fez com que ela atraísse menos à atenção da imprensa. Para quem participava da Guerra havia o temor de que divulgá-la abertamente encorajasse os inimigos em época de guerra, e além disso existia o interesse em preservar a ordem pública e evitar o pânico. Entretanto, as autoridades reagiram. No auge da pandemia, foram estabelecidas quarentenas em muitas cidades. Algumas foram obrigadas a restringir os serviços básicos, incluindo os da polícia e dos bombeiros.

Primeiras Notícias no Brasil – Primeira quinzena de julho de 1918

Utilizando modernas ferramentas de visualização digital de jornais antigos e lendo as páginas que fotografei do jornal natalense A República, pude perceber que nesse período surgem as primeiras notícias nos jornais brasileiros sobre casos a “Influenza Hespanhola” na Bélgica, Alemanha e Inglaterra. Mas não são notícias destacadas.

A Imprensa Brasileira Entre julho e setembro de 1918

Crzuzador Bahia, participante da Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG).

Devido ao afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães, o nosso país declarou guerra à Alemanha em 16 de novembro de 1917. Em janeiro de 1918 o governo brasileiro cria a Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG), uma esquadra da Marinha com oito navios, destinada ao patrulhamento contra a ação de submarinos alemães no Oceano Atlântico. Partiu do Rio em 14 de maio e, depois de passar por Salvador e Recife, chegaram a Natal no final de julho. A capital potiguar na época tinha cerca de 29.000 habitantes (equivalente hoje a população de Extremoz).

Nesse período os jornais não comentaram nada sobre prevenção e nem sobre algum tipo de preparação contra o vírus no Brasil. Acredito que as notícias da participação da DNOG na Primeira Guerra serviu como uma espécie de “cortina de fumaça”, que evitou uma informação mais intensa sobre a ação da gripe espanhola em outros países. Acredito que em 2020 o nosso carnaval, ocorrido no final de fevereiro, foi essa nova “cortina de fumaça”.

Primeiros Mortos Brasileiros – 23 de setembro de 1918

Nos dias atuais o COVID-19 só foi notícia mais ativa após o primeiro caso conhecido no país e após a primeira morte de um brasileiro em 27 de março de 2020. Já os jornais de 1918 só passaram a dar uma atenção maior ao tema depois que estourou a notícia que na Divisão Naval, que se encontrava ancorada na cidade de Dacar, na África Ocidental havia 55 mortos de gripe espanhola.

A Gripe Espanhola Chega ao Brasil – 24 de setembro de 1918

Acredita-se que essa seria a data mais correta para a chegada da gripe espanhola em nosso país, pois nesse dia atracou no porto de Santos, São Paulo, o vapor inglês Demerara, utilizado para o transporte de passageiros e cargas. Tal como agora, quando foi dito que no início do mês de março de 2020 não houve em aeroportos brasileiros nenhum tipo de inspeção dos passageiros que desembarcavam principalmente da Itália, em 1918 houve uma séria acusação aos funcionários da então chamada Polícia Sanitária daquele porto. Eles teriam sido negligentes por não realizarem a necessária inspeção de saúde dos passageiros daquele navio. Uma passageira da 2ª classe denunciou que o Demerara trazia mais de 40 enfermos e que em um único dia foram lançados ao mar (ou sepultados) cinco corpos de falecidos pela gripe espanhola.

Navio inglês Demerara – Fonte – https://uboat.net/

Tanto em 1918 e 2020 a gripe chegou ao Brasil vindo da Europa, trazida pelo principal meio de transporte que liga nosso país ao Velho Mundo em cada época. Hoje em aviões de carreira, em 1918 nos navios de passageiros e cargas. Mas vale ressaltar que no passado esses navios possuíam 1ª, 2ª e 3ª classes de passageiros e cada viagem, dependendo do tamanho do navio, trazia de 300 a 1.000 pessoas.

Naquele tempo como agora, o parlamento brasileiro criou novas leis após a eclosão da pandemia em território nacional.

Em 1918 os parlamentares apresentaram uma série de projetos de lei com o objetivo de, em diferentes frentes, combater a doença e amenizar seus efeitos. Uma das propostas determinou a aprovação automática de todos os estudantes brasileiros, sem a necessidade dos exames finais. Outro projeto de lei ampliou em 15 dias o prazo para o pagamento das dívidas que tinham o seu prazo final em plena epidemia.

A Gripe Espanhola Chega a Recife – 28 de setembro de 1918

Segundo o Jornal do Recife, nessa data duas pessoas a bordo do navio de passageiros brasileiro Tabatinga apresentaram o que parecia ser os mesmos sintomas de gripe espanhola. Não existiam exames específicos para diagnóstico dessa doença. Talvez por essa razão a “Inspectoria de Higyene” de Recife não achou que os dois enfermos pudessem ter contraído essa gripe. O que gerou uma forte querela entre os funcionários dessa repartição e os jornalistas, devido ao estado de saúde dos enfermos do Tabatinga.

Na verdade esse é um aspecto de uma situação comum a essa pandemia no Brasil: a negação e até mesmo ocultação de dados por parte das autoridade em 1918, fato que se repete em alguns países em 2020.

A Gripe Espanhola Chega a Natal – 3 de outubro de 1918

Essa questão de negação e até mesmo ocultação de dados sobre a gripe espanhola também ocorreu em Natal. Mas através de jornais de outros estados, principalmente os de Recife, que mantinha correspondentes em Natal, é possível ter uma ideia do que aconteceu na capital potiguar.

O Diário de Pernambuco, de 4 de outubro de 1918 informou através de um telegrama emitido pela Great Western, que o navio de passageiros brasileiro Itassucê aportou em Natal no dia anterior com seis enfermos de gripe espanhola.

A Primeira Vítima em Natal – 15 de outubro de 1918

Aparentemente, a primeira morte em decorrência da gripe espanhola ocorrida em Natal foi a do comerciante cearense Mozart Barroso, a bordo do navio Pará, que estava ancorado no porto da cidade. Em A República, na edição de 15 de outubro, informou que o falecimento ocorreu devido a uma “moléstia” contraída em Recife, vindo o comerciante a falecer em decorrência da viagem. Já o Diário de Pernambuco afirma que nesse mesmo navio vários outros passageiros e tripulantes, entre estes o médico de bordo, estavam com a gripe espanhola. O navio Pará ficou interditado em nosso porto por vários dias.

Mesmo sem A República esclarecer se Mozart Barroso morreu, ou não, de gripe espanhola, chama atenção que quatro dias depois da divulgação dessa notícia o respeitado médico Januário Cicco escreveu nesse mesmo jornal uma coluna visando “auxiliar na defesa da saúde pública contra a epidemia de influenza espanhola, que celeremente se disseminou por toda parte”. O Dr. Januário recomendava então o uso da “quinina”, muito utilizado contra a malária, informando ter distribuído pelas farmácias da cidade comprimidos deste produto. Este médico solicitava que “os poderes competentes”, ordenassem aos funcionários da Inspetoria de Higiene que fossem visitar as “choupanas dos mais pobres, distribuindo quinino, aconselhando a melhorar os aspectos de higiene, escolher uma alimentação sadia, beber água de procedência e evitar aglomerações”. Nada diferente de hoje.

Um fato especialmente destacável foi a predileção da doença por tirar a vida de jovens adultos saudáveis, e não de crianças e idosos. Algo bem diferente do COVID-19.

Engana-se quem pensa que a Gripe Espanhola atacou basicamente Natal. Conforme podemos ver na capa da edição do dia 7 de dezembro de 1918 do jornal O Município, de Jardim do Seridó, a peste também o interior potiguar.

Gripe Espanhola no Interior do RN – 15 de outubro de 1918

As Informações dão conta que o interior não se mostrava imune aos efeitos da pandemia.

De Areia Branca o Coronel Francisco Fausto, Presidente da Intendência (cargo que atualmente equivale ao de prefeito), informava que a gripe havia atacado a cidade, mas sem fornecer detalhes. Jornais de Recife informaram que em Macau haviam pessoas atingidas pela gripe espanhola. Já Jerônimo Rosado, intendente de Mossoró, informava que 38 pessoas haviam ali falecido. Fora do litoral veio a notícia que em Nova Cruz, cidade servida por um ramal ferroviário inaugurado em 1883, o Sr. Mario Manso, seu intendente, se recuperava da gripe.

Macau foi uma das cidades atingidas – Fonte – http://www.ibamendes.com/2020/01/fotos-antigas-de-macau-rio-grande-do.html

Fica evidente pelos noticiários que essa gripe de 1918 atacou primeiramente as cidades do Rio Grande do Norte que recebiam navios de carga e passageiros. Vale lembrar que o movimento dos portos de Macau e Areia Branca era muito maior do que nos dias atuais.

A gripe vai se interiorizando através da velocidade das poucas linhas de trens existentes, dos raros automóveis e, certamente com maior intensidade, através das patas dos cavalos e burros. Sabemos de casos ocorridos em dezembro de 1918 em Lajes, Jardim do Seridó e Acari. O interessante é que no sertão as notícias apontam para uma letalidade baixa.

Vista de Nata nos primeiros anos do Século XX, do alto da torre da Igreja Matriz, em foto do alemão – Fonte – Bruno Bougardhttps://hislucianocapistrano.blogspot.com/2017/07/natal-cidade-memoria.html

Remédios Para a Gripe Espanhola em Natal

Quem lê os jornais do período, percebe como aos poucos essa doença entra no cotidiano da população de Natal.

Os jornais estão repletos de anúncios de remédios milagrosos que se dizem capazes de prevenir e de curar a gripe. A oferta vai de água tônica de quinino a balas à base de ervas, de purgantes a fórmulas com canela. Surgem propagandas de remédios, tais como a “Kolyohimbina”, “Puritol”, ou o “Balsamo Philantropico”, que prometiam a “cura milagrosa contra o mal espanhol”.

Em meio à apreensão causada pelo alastramento da gripe, o comércio se adequava como podia a triste novidade. A farmácia Torres anunciava que por 1$800 (um mil e oitocentos réis) era vendido um preservativo que poderia ser utilizado no ato sexual em meio ao surto de gripe, “prevenindo pessoas que dele fazem uso com vantagem”. Para outras atividades a situação era mais complicada; a fábrica de gelo da Força e Luz, a única da cidade, parou suas atividades durante a ocorrência do surto.

Outros remédios vendidos em Natal, conforme podemos ver na propagandas divulgadas nos jornais locais foram a “Bromo quinina” e a “Toni Kina”, todos a base de quinino.

De Recife, com destino a Natal e Macau, partiu o navio Curupu com milhares de pílulas a base de quinino. Além disso, a Companhia Comércio e Navegação (CCN) doou dez contos de réis em medicamentos nos municípios de Macau e Areia Branca, para serem distribuídos com a população local.

Diante de uma doença mortal nova e da falta de informação, a população fica apavorada e acredita em qualquer promessa de salvação. Estamos observando que até hoje é assim.

Ações do Governo de Ferreira Chaves

O governo estadual não se pronunciava sobre muito sobre a crise. Apenas em 1º de novembro, o então governador potiguar, Joaquim Ferreira Chaves, anunciou através do jornal A República, que estava “agindo para acudir a pobreza desta cidade”, organizando na escola Frei Miguelinho uma comissão de apoio, que visava fornecer alimentação aos necessitados no bairro.

O governador potiguar, Joaquim Ferreira Chaves.

Este trabalho estava sob a batuta do Diretor da Inspetoria de Higiene, o Doutor José Calistrato Carrilho de Vasconcelos, com a participação do professor Luís Soares, então diretor da escola Frei Miguelinho e do padre Fernando Nolte. Outros que participaram foi o Dr. Antônio Soares, tenente João Bandeira e o Senhor Laurentino de Moraes, contando com o apoio dos escoteiros. Desta comissão o governo criou um Posto de Assistência do Alecrim, onde trabalhavam os médicos Varela Santiago e Marcio Lyra. A missão do Posto era fornecer remédios, alimentos e até mesmo querosene para iluminação.

Um indício de como estava à situação no bairro do Alecrim é apontada pela própria comissão, que em média atendia a um número superior de 350 pessoas por dia. Escoteiros percorreram diversas ruas do bairro para entregar alimentos e remédios nas casas dos que estavam tão atacados que não tinham sequer condições de se deslocarem para a escola Frei Miguelinho.

De barco seguiu com vários medicamentos para as praias de Muriú e Maracajaú o farmacêutico Floriano Pimentel, da Inspetoria de Higiene. As povoações  existentes Nessas praias nessa época eram prósperos entrepostos de comércio de pescado.

Outra notícia, sem detalhes estatísticos ou maiores referências, informa que o governador Ferreira Chaves buscava atender, com as mirradas condições do tesouro estadual, os inúmeros pedidos das cidades e vilas do interior para o combate a pandemia.

Mas se havia pouco dinheiro para ajudar os potiguares que viviam no interior, não faltou para outras coisas!

Em novembro de 1919, quando a gripe espanhola era motivo de péssimas lembranças em Natal, o governador Ferreira Chaves publicou a sua mensagem governamental no Congresso do Estado, atual Assembleia Legislativa, onde prestou contas de suas ações no ano anterior. Ele comentou que as despesas para fazer frente a gripe espanhola chegaram ao valor de 30:314$850 (trinta contos, trezentos e quatorze mil e oitocentos e cinquenta réis). O problema é que na mesma prestação de contas o governador Chaves informou que comprou 17 reprodutores de “gado indiano”, para entregar a somente sete criadores potiguares e por preço inferior ao custo. Com a justificativa de “auxiliar a pecuária”, receberam essa benesse do governo potiguar criadores como Juvenal Lamartine de Faria (recebeu dois exemplares), Francisco Justino Cascudo (dois exemplares), Ezequiel Mergelino de Souza (seis exemplares), Pompeu Jácome (dois exemplares) e outros.

Era uma verdadeira bênção, porque cada reprodutor custou para o erário público cerca de 1:783$000 (um conto e trezentos e oitenta e três mil réis) e esses abonados fazendeiros tiveram que pagar por cada exemplar apenas 600:000 (seiscentos mil réis). E nem precisaram pagar em dinheiro vivo de uma única vez. Os exemplares do “gado indiano” foram pagos em notas do Tesouro Estadual, com tranquilas prestações. O valor total da compra dos animais para o tesouro estadual foi de 16:150$000 (dezesseis contos e conto e cinquenta mil réis).

É inegável que esse tipo de ação governamental visava a melhoria do plantel bovino potiguar, isso tudo em uma época onde o Brasil tinha sua riqueza econômica ligada a agropecuária e sua população vivia em grande parte no meio rural. Mas, em um ano de terrível calamidade na saúde pública, em meio a mais mortal pandemia já experimentada pela humanidade, gastar mais da metade do que se gastou no combate à gripe espanhola com 17 touros, é no mínimo um acinte.

Ações Para Diminuir a Força da Gripe Espanhola em Natal

Percebe-se pelos jornais que setores da sociedade passaram a cobrar do governo uma maior atenção com as questões de higiene pública, onde surgem cobranças para a extinção de lamaçais existentes nas ruas da cidade, ou contra o abate de animais em residências, além da providência de se enterrar com urgência as carcaças.

Escolas alteraram suas rotinas. A diretoria do extinto Colégio da Conceição decidiu encerrar a 23 de outubro o ano letivo, “sem entrega de diplomas e sem festas devido à epidemia”.

Conforme o medo do alastramento da doença crescia, medidas profiláticas eram recomendadas. Mas algumas delas pareciam saídas de algum tratado de bruxaria; lavagens intestinais com água morna, chá de pimenta d’água com duas gotas de glicerina, ou tomar um vidro de magnésia fluida, com vinte gotas de “briônia” e dez gotas de “tintura de beladona”.

Em meio aos carcomidos exemplares que restam dos antigos jornais natalenses na atualidade, chama atenção um aviso publicado no início de dezembro de 1918 pela Inspetoria de Higiene. Intitulado “A influenza espanhola, conselhos ao povo”, onde entre outras coisas, solicitava “evitar aglomerações, não fazer visitas, evitar toda fadiga e excesso físico”. Mas eram tidos apenas como “conselhos”.

No Diário de Pernambuco, o seu correspondente em Natal informou que para evitar a propagação da gripe Fortunato Aranha, então presidente da intendência da capital, mandou cancelar os jogos de futebol e encerrar o campeonato estadual de 1918.

Foi informado que a partir do final de outubro o Governo Federal proibiu as aglomerações públicas. Os teatros e os cinemas, além de lacrados, deveriam ser lavados com desinfetante. Em Natal os cinemas Royal e Polytheama ficaram sem exibições cinematográficas desde outubro e foram rigorosamente desinfetados.

Ainda no Diário de Pernambuco foi descrito que a “Inspectoria de Hygiene” de Natal emitiu uma proibição para os comerciantes locais não utilizarem, como era comum na época, papéis de jornais para embalar os produtos vendidos.

O bispo de Natal em 1918 era Dom Antônio dos Santos Cabral, o segundo a ocupar esse cargo. Ele mandou então suspender o novenário e outras solenidades externas relativa as comemorações de 21 de novembro, dia de Nossa Senhora da Apresentação, padroeira de Natal. Uma das solenidades atingidas foi a tradicional procissão. Dom Antônio ordenou também que houvesse a desinfecção das igrejas, principalmente das pias de água benta. Pediu que os atos religiosos fossem realizados sempre pela manhã, de forma mais rápida possível e que os padres transmitissem ao maior número de participantes medidas de higiene para evitar a propagação do vírus, além de dar assistência aos necessitados. Como aconteceu nas Rocas, onde o bispo incentivou as “Damas de Caridade”, grupo ligado à Igreja Católica, a atuar nesta região no apoio principalmente às famílias dos pescadores.

Dom Antônio dos Santos Cabral nasceu em Propriá (SE), estudou no Seminário Santa Teresa, em Salvador (BA). Foi ordenado padre no dia 1º de novembro de 1907 e regressou a , sua cidade natal, onde trabalhou como coadjutor de 1907 a 1912. Tornou-se pároco em 1912 e exerceu esse ministério até 1918. Graças ao excelente trabalho realizado, Dom Cabral foi nomeado cônego capitular da Sé de Aracaju (SE) e recebeu do Papa Bento XV, em janeiro de 1914, o título de monsenhor. Pouco tempo depois, em 1º de outubro de 1917 foi publicada a bula do Sumo Pontífice Bento XV, que o nomeou bispo de Natal. A Sagração de Dom Cabral foi realizada na Catedral Metropolitana, em 14 de abril de 1918, antes da chegada da gripe espanhola em Natal. Segundo o site https://arquidiocesebh.org.br/arquidiocese/organizacao/governo/dom-antonio-dos-santos-cabral/ Dom Cabral criou dezenas de instituições católicas na capital do Rio Grande do Norte. Ordenou sacerdotes, iniciou a construção do Seminário e da nova catedral. Em 1922, a Santa Sé o transferiu para a recém criada Diocese de Belo Horizonte. Sua chegada à capital mineira aconteceu no dia 30 de abril.

Quando sabemos o grau de religiosidade católica existente na população brasileira da época, percebemos o quanto as ações de Dom Antônio se coadunavam com o momento complicado.

Doentes e Mortes

Igualmente no Diário de Pernambuco foi informado no início de novembro que em Natal haveria cerca de 2.000 pessoas atacadas pela gripe espanhola e que o número de mortos era considerado pequeno.

O principal jornal pernambucano comentou o estado de algumas pessoas ilustres que foram atacadas pela doença, entre elas estava Francisco Justino Cascudo, comerciante, que se recuperava. O interessante é que na mesma nota o filho de Francisco Cascudo, Luís, também estava enfermo, mas não é dito de forma taxativa que seria de gripe espanhola. Entretanto é algo provável, pois encontrei a informação que o advogado Bruno Pereira, então diretor do jornal A Imprensa, que pertencia a Francisco Cascudo e era muito frequentado pelo seu filho, estava acometido de gripe espanhola.

Mas discretamente, nas páginas diárias de A República, surgem diversas notas de falecimentos atribuindo abertamente a gripe espanhola à causa da morte de várias pessoas.

São inúmeros os informes, tais como o falecimento em 3 de novembro de Armando de Lamare, superintendente da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte. Ou dos dois filhos menores de José Calazans Carneiro, funcionário dessa ferrovia. Já o capitão da polícia Abdon Trigueiro, informava a morte do seu irmão, o sargento da polícia Othoniel Trigueiro. Ou o falecimento de Alfredo Costa, serralheiro da Ferrovia Great Western, que deixou numerosa família. Houve também a morte do comerciário da empresa A. dos Reis & Cia., Miguel Medeiros, que morreu nas dependências do hospital Jovino Barreto e foi enterrado no cemitério do Alecrim.

Historiadores apontam que as famílias ricas no Brasil de 1918 foram menos atingidas do que as famílias pobres porque se refugiaram em fazendas no interior do país, mantendo distância do vírus. No caso do Rio Grande do Norte, sem maiores dados é temerário afirmar se a classe mais abastarda de terras potiguares na época foi, ou não, muito atingida pela pandemia de gripe espanhola. Entretanto, entre os inúmeros necrológicos publicados no período temos o falecimento do desembargador Vicente Simões Pereira de Lemos, ou do comerciante Alexandre de Vasconcelos, ou do professor Tertuliano da Costa Pinheiro.

O Fim do Pesadelo. Ou Não?

No mês de dezembro de 1918, os jornais informam que da mesma forma abrupta que este pesadelo chegou a Natal, ele estava deixando a nossa terra. No dia 11 de dezembro, a Inspetoria de Higiene considerava praticamente extinta o surto de gripe espanhola em Natal.

Do interior do Rio Grande do Norte chegam notícias do declínio dos surtos. De Lajes o intendente Felix Teixeira informava o recuo da doença e agradecia o apoio do governador Ferreira Chaves.

No dia 15 de dezembro o governo decidiu encerrar as atividades do Posto de Assistência do Alecrim, o principal da cidade. Ao final houve homenagens, festas e comemorações para a Inspetoria de Higiene, aos que trabalharam e mantiveram ativo o Posto e aos escoteiros. Todos foram recebidos com honras pelo mandatário estadual no palácio do governo.

Segundo informou o professor Luís Soares, em trinta dias de atividades o Posto atendeu nada menos que 5.381 pessoas. das quais 8 morreram. Os escoteiros visitaram neste período 169 casas, atendendo 135 doentes mais atingidos.

Sede da Associação de Escoteiro do Alecrim.

Infelizmente os jornais da época não explicam com maiores detalhes estes dados estatísticos. Não sabemos se destas 5.381 pessoas todas estavam doentes, ou o grau de virulência a que foram submetidos e, principalmente, em nenhuma linha é divulgado quantos morreram neste período. Acredito que em Natal se repetiu o mesmo que ocorreu em outras partes do país; no momento da pandemia as autoridades deliberadamente escamotearam os dados sobre a doença para, talvez, evitar o pânico. Ou esconder suas incompetências!

Para uma cidade onde a população girava em torno de 29.000 pessoas, um surto epidêmico que leva ao atendimento de 10.814 habitantes mostra a dimensão do problema que foi a gripe espanhola.

Entretanto, como para estragar qualquer comemoração pelo fim do mal, as mortes em Natal e no interior potiguar não ficaram restritas a 1918.

Em 3 de janeiro de 1919 é publicado no Diário de Pernambuco o falecimento do juiz distrital Ponciano Barbosa. Lembrado hoje por ser o nome de uma rua no centro da cidade (atrás do Hospital Varela Santiago), em 1918 Ponciano era uma pessoa extremamente popular nos meios católicos de Natal. Além da magistratura, era o Presidente do Círculo de Operários Católicos, que naquele ano realizou um grande evento pelo aniversário do falecimento do padre João Maria. No dia 1º de novembro esse juiz teve a honra de receber em sua casa Dom Antônio dos Santos Cabral, para realizar a cerimônia de entronização da imagem do Sagrado Coração de Jesus. Pouco mais de dois meses depois Ponciano Barbosa faleceu em meio a uma grande comoção na cidade. Já em Assú, em 24 de janeiro, faleceu em decorrência da gripe o advogado Cândido Caldas, parente do famoso poeta assuense Renato Caldas.

Na verdade, como houve em todo mundo, uma nova manifestação da gripe espanhola atingiu o Rio Grande do Norte. Tanto que o diretor da Inspetoria de Higiene, o Doutor Calistrato Carrilho, reabriu um posto de atendimento na Repartição de Higiene. O Dr. Carrilho informou entretanto que o número de falecidos nesse segundo ataque foi pequeno. Esse novo momento da gripe marcou também a política nacional, pois em 16 de janeiro o vírus vitimou Francisco de Paula Rodrigues Alves, quinto presidente da República, no início de seu segundo mandato, onde ele não chegou sequer a tomar posse. Uma nova eleição fora de época é convocada e o eleito é o paraibano Epitácio Pessoa.

Mas enfim, qual foi o número de mortos de gripe espanhola no Rio Grande do Norte em 1918?

É na mensagem transmitida pelo governador Ferreira Chaves, publicada em novembro de 1919, que surge um dado oficial sobre o número de mortos.

O governador informou que no relatório preparado pela “Inspectoria de Hygiene” sobre as ações do governo na área de saúde pública entre outubro de 1918 e junho de 1919, período que o governo potiguar definiu como de duração da gripe espanhola, faleceram 187 pessoas em Natal, cujo pico ocorreu entre novembro e dezembro, com 125 mortos. Não existem números sobre o interior. Esse número de 187 pessoas falecidas, não chega a ser nem sequer 1% da população de Natal na época.

Já Luís da Câmara Cascudo, afirma em seu livro História da Cidade de Natal (1999, pág. 213), sem citar fontes, que morreram na cidade 1.086 pessoas, pouco menos de 4% da população. Cascudo informou que no ano anterior o obituário local chegou a 699 pessoas. 

Sem maiores dados eu não tenho como responder essa questão com exatidão. Entretanto, observando os jornais antigos onde temos a informação que no Posto de Assistência do Alecrim foram atendidos 10.814 habitantes e os esforçados escoteiros visitaram neste período 169 casas, atendendo 135 doentes mais atingidos, o número oficial de 187 pessoas falecidas parece ser uma fantasia!

Mas esse tema ligado a estatísticas controversas não se restringiu ao Rio Grande do Norte. Faltam dados confiáveis a respeito das vítimas dessa pandemia em todo Brasil. Mesmo assim, não há dúvidas de que essa doença foi avassaladora. Por exemplo, em um único dia de 1918 o Rio de Janeiro chega a registrar mais de mil mortes.

Tal como ocorre agora com o COVID-19, a grande maioria de pessoas que contraíram a gripe em 1918 sobreviveu. Em geral, as taxas nacionais de mortalidade dos infectados não superaram 20%. Entretanto, esses índices variavam de um grupo para outro. Evidentemente, mesmo uma taxa de mortalidade de 20% supera bastante a de uma gripe convencional, que mata menos de 1% dos infectados.

Quase 90 anos depois, em 2008, os pesquisadores anunciaram que haviam descoberto o que tornava a gripe de 1918 ser tão mortal: um grupo de três genes permitiu que o vírus enfraquecesse os tubos brônquicos e os pulmões de uma vítima e abrisse caminho para a pneumonia bacteriana.

EVENTO DE LANÇAMENTO DO PROJETO DO SEBRAE – NATAL E PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

SITE DO PROJETO NATAL & PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA http://www.segundaguerra.com.br/

Foi uma noite memorável na Casa da Ribeira, principalmente para aquele que pensam e realizam projetos relativos ao conhecimento e democratização da informação histórica dos eventos ligados a Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte.

Como comentou o amigo Yves Bezerra, gestor desse projeto, a proposta busca apresentar em Natal e Parnamirim os pontos de interesse cultural e histórico das duas cidades, que até então têm sido pouco explorados e que estes possam ser trabalhados por empresas de receptivo para atrair mais turistas e interessados no assunto.

Um salto verdadeiramente interessante para o turismo potiguar. Esse projeto faz parte das ações do programa Investe Turismo, que é promovido pelo Sebrae, Ministério do Turismo, Embratur e Secretaria Estadual de Turismo (Setur).

Depois de dois anos de trabalho, foi hora do SEBRAE-RN apresentar Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra. E tudo foi muito bom!

Com Zeca Melo, Diretor Superintendente do SEBRAE-RN,

Como foi comentado anteriormente, a presença de milhares de soldados americanos no cotidiano de Natal mudou a cultura e os costumes da cidade, a população bem sabe. No entanto, nenhum desses argumentos foi relevante para o Rio Grande do Norte ter um roteiro turístico para explorar esse fato histórico. Agora chegou a hora!

Meus agradecimentos aos amigos da Art&C e ao SEBRAE-RN, especialmente ao superintendente Zeca Melo pela confiança e apoio.

Com o amigo Yves Guerra de Carvalho, Gestor do Projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra Investe Turismo RN.

SEBRAE MAPEIA PONTOS TURÍSTICOS DO RN DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra será lançado nesta quarta-feira, 9 de outubro de 2019.

Por Agência Sebrae de Notícias / 8 de outubro de 2019

Que o Rio Grande do Norte teve um papel relevante, e até mesmo decisivo, para a vitória dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, não restam dúvidas. Que Parnamirim abrigou a primeira base aérea dos Estados Unidos fora do território norte-americano, os livros de história dão conta muito bem. Que a presença de milhares de soldados americanos no cotidiano de Natal mudou a cultura e os costumes da cidade, a população bem sabe. No entanto, nenhum desses argumentos foi relevante para o Rio Grande do Norte ter um roteiro turístico para explorar esse fato histórico.

Parnamirim Field – Foto – Getty Image

O Sebrae no Rio Grande do Norte, entretanto, pretende virar essa página e abrir caminho para a implantação de uma nova rota turística no estado a partir desta quarta-feira (9), quando a instituição vai lançar o projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra. O lançamento será em solenidade fechada para convidados na Casa da Ribeira, a partir das 19h. Durante a cerimônia, que terá espetáculos teatral e sinfônico, será apresentado o mapeamento feito pelo projeto com pontos de interesse histórico e cultural importantes da participação das duas cidades na segunda Grande Guerra.

Na esquerda da imagem está Rostand Medeiros, responsável pelo blog TOK DE HISTÓRIA e autor do livro SOBREVOO-EPISÓDIOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NO RIO GRANDE DO NORTE, junto com José Ferreira de Melo Neto, o Zeca Melo, Diretor Superintendente do SEBRAE-RN, além de Edwin Aldrin Januário da Silva, Gerente de Comunicação e Marketing SEBRAE-RN, Yves Guerra de Carvalho, Gestor do Investe Turismo RN do SEBRAE-RN, Lorena Roosevelt Lima , Gerente da Unidade de Desenvolvimento da Indústria do SEBRAERN, e Leonardo Dantas, da Fundação Rampa.

Todo o levantamento está reunido em um portal em quatro idiomas (Inglês, Francês, Espanhol e Português), que além do mapeamento dos pontos históricos, traz também personagens e fatos curiosos relacionados ao tema, como o caso do açúcar nos tanques de combustível, o rasante no desfile de 7 de setembro e do espião preso em Jacumã. Além desse levantamento, feito por historiadores da Fundação Rampa e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, o projeto criou governança ao chamar os principais interessados no tema para debater o assunto e desenvolveu os estudos de viabilidade técnica e econômica do aeroporto Augusto Severo, que será transformado em um Centro Cultural, e do Museu da Rampa.

Militares dos Estados Unidos no Grande Hotel, no bairro da Ribeira – Foto – Getty Image

Além disso, vai utilizar a tecnologia de realidade aumentada para criar mais atrativos nos principais equipamentos turísticos ligados à participação na Segunda Guerra. Monumentos, como a rampa, terão pontos de realidade aumentada em que o turista ao apontar a câmera do smartphone poderá fazer fotos em meio a jipe e soldados virtuais.

“A proposta do projeto é apresentar esses pontos de interesse cultural e histórico das duas cidades, que até então têm sido pouco explorados e passem a ser trabalhados por empresas de receptivo para atrair mais turistas e interessados no assunto”, explica o gestor do projeto, Yves Guerra. O Sebrae também inseriu a temática no edital de economia criativa, que apoiou financeiramente projetos culturais, como o espetáculo ‘Bye, Bye Natal’ e a coleção de três livros ‘A Participação do RN na Segunda Guerra Mundial‘, entre outras iniciativas.

Barracas dos militares dos Estados Unidos em Parnamirim Field – Foto – Getty Image

Diversificação

O projeto Natal & Parnamirim Field já vinha sendo trabalhado há cerca de dois anos e, atualmente, faz parte das ações do programa Investe Turismo, que é promovido pelo Sebrae, Ministério do Turismo, Embratur e Secretaria Estadual de Turismo (Setur). Um dos objetivos do programa é diversificar a oferta turística que vá além do turismo de mar. Por isso, o projeto tomou a participação do RN na Grande Guerra como forma de atrair turistas ao estimular entre o trade turísticos e entes governamentais a criação bem estruturada de um roteiro turístico histórico e cultural em volta da temática.

“Mesmo sendo um episódio histórico bastante conhecido, essa participação na Segunda Guerra nunca foi de fato transformada em oferta turística. Por isso, estamos dando esse primeiro passo para a criação de um roteiro”, ressalta Yves Guerra. Além do portal, o projeto também prevê a publicação de uma websérie de dez vídeos, envolvendo a relação entre o Rio Grande do Norte e a II Guerra Mundial. O primeiro já será apresentado no momento do lançamento do projeto, que terá inclusive a participação do cônsul dos Estados Unidos em Recife (PE), John Barrett.

UM TESOURO ENTERRADO HÁ MAIS DE MIL ANOS NA ALEMANHA É ENCONTRADO POR UM PROFESSOR E SEU ALUNO DE 13 ANOS UTILIZANDO UM DETECTOR DE METAIS

_100897354_bluecoinsbigafp13apr
O rei viking Harald Gormsson poderia ter enterrado o tesouro enquanto fugia de seus inimigos.

Os historiadores supõem que durante seu reinado legou um sistema unificado e converteu a Dinamarca ao cristianismo, mas Harald Gormsson aparentemente também deixou outra coisa: um tesouro enterrado na ilha Rügen, na Alemanha, que foi recentemente descoberto por um arqueólogo amador e uma criança de 13 anos.

Editorial BBC World

Fonte – http://www.bbc.com/mundo/noticias-43788902?ocid=socialflow_twitter

A descoberta inclui anéis, broches, pérolas, colares trançados, um martelo de Thor e até 600 moedas divididas, das quais pelo menos 100 correspondem ao tempo em que Harald Gormsson, ou Harald Blåtand – um rei viking que também era conhecido como Harald Dente azul – que governou sobre o que hoje em dia é a Dinamarca, o norte da Alemanha, o sul da Suécia e partes da Noruega, aproximadamente entre os anos 958 e 986.

Dente azul liderou campanhas militares contra os nobres francos que governavam partes da França e da Alemanha durante a era carolíngia.

_100897355_bluecoinsafp13apr18
Muitas das moedas encontradas têm o desenho da cruz.

No ano de 950, ele se converteu ao cristianismo e estabeleceu várias dioceses na Dinamarca.

No entanto, por volta do ano 980 ele foi forçado a fugir para a Pomerânia, após ser derrotado em uma batalha naval por forças leais a seu filho Sweyn Forkbeard, que assumiu o trono dinamarquês.

Pesquisa intencional

A descoberta dessas peças antigas foi feito em janeiro por René Schön e seu pupilo Luca Malaschnitschenko, de 13 anos, que pertencem a um grupo de arqueologia amadora, que encontraram o tesouro em uma área ao norte da ilha Rügen usando um detector de metais.

_100903441_hi046225812
René Schoen e seu aluno Luca Malaschnichenko, de 13 anos, foram os primeiros a encontrar o local onde o tesouro foi enterrado.

Então eles tropeçaram no que pensavam ser um pedaço de alumínio sem valor. No entanto, em uma inspeção mais profunda, eles perceberam que era uma moeda de prata.

O que aconteceu foi mantido em segredo até que uma equipe de especialistas foi mobilizada para realizar escavações em uma área de cerca de 400 metros quadrados.

“Este tesouro é o maior achado de moedas da época de Harald Dente azul na região sul do Mar Báltico e, portanto, tem grande importância”, disse Michael Schirren, o principal arqueólogo responsável pelas escavações.

_100897356_blucoinsite13apr18afp
Os especialistas escavaram em uma área de 400 metros quadrados.

O local de descoberta, Schaprode, está localizado a poucos quilômetros de Hiddensee, uma ilha e um município da Alemanha localizado no distrito de Rügen, estado de Mecklemburgo, na Pomerânia Ocidental, onde no século XIX foi encontrado um conjunto de 16 peças de ouro da época deste rei viking.

Especialistas acreditam que o tesouro foi enterrado ao mesmo tempo em que Harald Dente azul fugiu para a Pomerânia, onde morreu em 987.

“Este é o caso incomum de uma descoberta que parece corroborar o que as fontes históricas dizem”, disse o arqueólogo Detlef Jantzen.

PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

worldwar1somme-tl
A guerra nas trincheiras, verdadeiro moedor de carne humana, foi uma das situações marcantes da Primeira Guerra Mundial. – Fonte – http://www.sahistory.org.za/article/world-war-ihttp://www.sahistory.org.za/sites/default/files/article_image/worldwar1somme-tl.jpg

Envolvimento do país no conflito é pouco conhecido, mas digno de um bom enredo, que começa com o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães e termina com a participação na criação da Liga das Nações.

Por Luciana Fagundes e Sagran Carvalho.

Fonte – https://cafenofront.wordpress.com/2017/10/26/participacao-brasileira-na-primeira-guerra-mundial/

A Grande Guerra ou Primeira Guerra Mundial começou em agosto de 1914 e terminou em novembro de 1918. Tal evento dramático aglutinou, inicialmente, as forças aliadas da chamada Tríplice Entente, composta pelo reino da Grã-Bretanha, os impérios da Rússia e do Japão e a República da França, contra as forças da Tríplice Aliança, composta pelos impérios centrais da Alemanha e da Áustria Hungria, o império Turco-Otomano e o reino da Itália. No desenrolar do conflito, ambos os lados sofreram alterações em sua composição: a própria Itália entrou efetivamente na guerra ao lado da Tríplice Entente e não da Tríplice Aliança, e o Império Russo retirou-se da guerra em 1917 devido a graves problemas internos, ocupando seu lugar na Entente os Estados Unidos. A princípio neutro diante do conflito, o Brasil revogou a neutralidade em favor da França, Rússia, Grã- Bretanha, Japão, Portugal e Itália em junho de 1917, reconheceu o estado de guerra em novembro seguinte e enviou uma Divisão Naval em Operações de Guerra em maio de 1918.

world_war_one
Tropas alemãs com proteção contra gases – Fonte – http://www.emersonkent.com/wars_and_battles_in_history/world_war_I.htm

DA NEUTRALIDADE À PARTICIPAÇÃO

As preocupações com uma guerra generalizada na Europa mostraram-se frequentes já no final do século XIX. Um sinal da iminência da guerra foi a corrida armamentista que se acelerou no início do século XX, conduzida em grande medida pela situação internacional que lançou as nações em uma acirrada competição. A Europa dividiu-se gradualmente em dois blocos, derivados do surgimento no cenário europeu de um Império Alemão unificado, através de alianças e contra alianças. Tais blocos, fortalecidos por planos de estratégia e mobilização, tornaram-se mais rígidos, arrastando todo o continente europeu para a guerra através de uma série de crises internacionais.

A crise final veio em 1914, com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria quando se encontrava em visita a Sarajevo.

DC-1914-27-d-Sarajevo-cropped
O atentado ao arquiduque, o estopim da guerra de 1914 – Fonte – https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ea/DC-1914-27-d-Sarajevo-cropped.jpg

Quando eclodiu a guerra na Europa, o Brasil matinha relações bastante cordiais com os principais países beligerantes, como a Alemanha, que era seu principal parceiro comercial, seguida pela Inglaterra e depois França. Outro setor onde se fazia notar a influência alemã era o militar. Desde a ascensão do marechal Hermes da Fonseca ao Ministério da Guerra em 1906, o Exército brasileiro seria profundamente influenciado pela organização militar alemã, com o envio inclusive de jovens oficiais para servirem no Exercito alemão, considerado o mais bem organizado da época.

Deflagrado o conflito, o governo brasileiro adotou a completa neutralidade, fixando regras para sua observação. Ao optar pela neutralidade, o Brasil sofreu com uma série de restrições comerciais impostas pelos países beligerantes aos países neutros. Um exemplo de tal ação foi a imposição pelos países aliados da statutory list, ou lista negra, uma relação de empresas em países neutros com as quais estava proibido o comércio por manterem relação com a Alemanha. A aplicação da lista negra provocou violentos protestos contra a Inglaterra, pois as consequências foram desastrosas para a economia brasileira. Tais protestos, dirigidos ao Itamaraty ou diretamente ao presidente da República, vinham principalmente de associações comercias que contavam com capitais alemães, como por exemplo, firmas exportadoras de café, que foram incluídas na lista negra e exigiam a interferência constante do Itamaraty junto aos cônsules ingleses. A dificuldade de comércio com a Europa abriu amplas oportunidades para a entrada de produtos norte-americanos, possibilitando o crescimento dos Estados Unidos como principal parceiro econômico das nações latino-americanas, especialmente do Brasil. Outra implicação da guerra que afetou negativamente a economia brasileira do período foi a crise dos transportes marítimos, devido à falta crescente de navios de comércio e aos riscos da navegação para o exterior, o que dificultou ainda mais a exportação do café, limitando seus mercados consumidores.

hrvzk6by7ooogeeribxk
O teórico militar prussiano Carl von Clausewitz escreveu uma vez que “a guerra é uma continuação da política por outros meios”, e sendo isso verdade, então, para entender a Grande Guerra é preciso começar com a política da Europa. No final do conflito quatro impérios já não mais existiam e a contagem final de baixas militares e civis é estimada em mais de 37 milhões de seres humanos. Nesta imagem, um oficial francês é atingido por disparos de uma metralhadora durante um contra-ataque em Verdun, 1916 – Fonte – https://io9.gizmodo.com/11-intriguing-ways-world-war-i-could-have-turned-out-di-1652195903

“ALIADÓFILOS”, “NEUTRAIS” E “GERMANÓFILOS”

O posicionamento do Brasil no conflito mundial, além de problemas comerciais, suscitou um intenso debate que dividiu a opinião de intelectuais e políticos entre “aliadófilos”, “neutrais” e “germanófilos”. Eram evidentes, todavia, as simpatias pelos Aliados. A própria invasão da Bélgica pelos alemães em agosto de 1914, logo no início da guerra, provocou uma moção apresentada à Câmara dos Deputados pelo parlamentar Irineu Machado na qual o Brasil se colocava contrário à ação alemã, por tratar-se de clara violação de tratados e desconsideração das leis internacionais. A fundação, no ano seguinte, da Liga Brasileira pelos Aliados marcou claramente a preferência pela causa das nações da Entente. Para presidente da entidade foi escolhido Rui Barbosa, e para vice, o ensaísta e crítico literário José Veríssimo. Também integravam a Liga Graça Aranha, Barbosa Lima, Olavo Bilac e Manuel Bonfim.

3-5-768x474
Fonte – https://blogdoenem.com.br/primeira-guerra-mundial-historia-enem-2/

Entre os simpatizantes dos impérios centrais, a voz mais ativa era do deputado Dunshee de Abranches, que, quando do início do conflito, ocupava o posto de presidente da Comissão de Diplomacia da Câmara. Na visão de Abranches, a origem do conflito era puramente comercial e econômica, e tinha como objetivo a destruição da prosperidade nacional da Alemanha. Abranches criticou a ingenuidade dos aliadófilos que acreditavam no discurso inglês de defesa da civilização contra a barbárie, considerando fruto da propaganda britânica as denúncias de violências praticadas nas invasões alemãs à Bélgica e França. Tal postura acabou levando à sua renúncia à posição de presidente da Comissão de Diplomacia.

Quanto aos que defendiam uma posição neutra, seu principal argumento residia no fato de que a posição “aliadófila” significava um alinhamento automático aos Estados Unidos, o que colocava o Brasil em uma posição de dependência em relação àquele país. A manutenção da neutralidade também foi defendida pela imprensa carioca no início do conflito, justificada pela tradição pacifista nacionalista, e contava com figuras de destaque na opinião pública, como Assis Chateaubriand, Vicente de Carvalho, Jackson de Figueiredo, Azevedo Amaral, Carlos Laet e Alberto Torres.

9005711_orig
A aviação obteve um grande desenvolvimento com a Primeira Guerra – Fonte – Mrs. Warner’s 4th Grade Classroom

INTEGRIDADE DAS AMÉRICAS

À medida que o conflito se expandia pela Europa, propostas de alianças diplomáticas surgiram entre as nações americanas, como a ideia de um Tratado Pan-Americano, sugerida pelo presidente norte americano Woodrow Wilson com o objetivo de garantir a independência política e a integridade territorial de todos os países das Américas. Outra iniciativa foi a realização da Conferência Pan-Americana em Washington, com o objetivo de discutir uma reação hemisférica em caso de ameaça de ataques de submarinos alemães.

As negociações diplomáticas não prosseguiram, e a realização da conferência em Washington tornou-se inviável com o decorrer da guerra; já o Tratado Pan-Americano enfrentou dificuldades, como o posicionamento do ministro brasileiro Lauro Müller, que defendia a continuidade da neutralidade brasileira, embora a opinião pública nacional se inclinasse à adesão às forças da Entente.

22BOYD-jumbo
Soldados franceses em Verdun – Fonte Getty Images

Em janeiro de 1917, o quadro ficou mais complicado, quando o governo alemão resolveu declarar guerra submarina irrestrita com a finalidade de bloquear o comércio aliado. O governo brasileiro protestou, declarando não aceitar o bloqueio; já o governo norte americano rompeu relações diplomáticas com a Alemanha. A ruptura de relações diplomáticas dos Estados Unidos foi seguida de um convite do presidente norte-americano Woodrow Wilson às nações neutras para que estas acompanhassem tal atitude e também rompessem relações com a Alemanha. O Brasil não aceitou o convite, e por isso enfrentou severas críticas da imprensa brasileira, que exigia a mudança de posição do país no conflito.

Alguns meses depois, os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha, no mesmo momento em que o Brasil, após o torpedeamento do vapor brasileiro Paraná por submarinos alemães, decidiu romper relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, em 11 de abril de 1917. A ação brasileira incluiu também declarar sem efeito os exequatur de todos os funcionários consulares alemães.

I0011679-3Alt=006988Lar=004896LargOri=004896AltOri=006988
Notícia do afundamento do navio brasileiro Acary.

Após o afundamento do Paraná, o ministro Lauro Müller ficou em uma situação difícil. O rompimento de relações com a Alemanha não era suficiente, e crescia a pressão para a entrada do Brasil na guerra. A ascendência germânica do ministro e a oposição da opinião pública à sua atuação no ministério levaram à sua saída da pasta em 3 de maio de 1917.

Dois dias após assumiu o ministério Nilo Peçanha, admirador do aliadófilo Rui Barbosa. A entrada do novo ministro foi decisiva para a mudança da posição brasileira, para a qual contribuiu também o torpedeamento dos vapores brasileiros Tijuca Lapa por submarinos alemães.

BRASIL EM GUERRA

Após as agressões alemãs, o governo brasileiro pediu e obteve do Congresso autorização para declarar sem efeito o decreto que estabelecia a neutralidade brasileira na guerra dos Estados Unidos contra o Império Alemão e para utilizar os 46 navios mercantes alemães ancorados em portos nacionais.

17825752_303
O presidente da República Venceslau Brás declara guerra contra o Império Alemão e seus aliados. Ao seu lado, o ex-presidente da República e ministro interino das Relações Exteriores, Nilo Peçanha, e o presidente de Minas Gerais e futuro presidente da República, Delfim Moreira – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil_na_Primeira_Guerra_Mundial

O posicionamento ao lado dos Estados Unidos ficou claro, ressaltado na mensagem de Nilo Peçanha enviada em 2 de junho aos governos estrangeiros, justificando a revogação da neutralidade pelas práticas de solidariedade continental características da política externa brasileira. Também foram utilizadas como justificativa a Doutrina Monroe e a amizade tradicional com os Estados Unidos. A revogação da neutralidade em favor da França, Rússia, Grã-Bretanha, Japão, Portugal e Itália foi decretada ainda em junho de 1917 e apontou como justificava a reincidência de ataques de submarinos alemães a vapores brasileiros.

O reconhecimento do estado de guerra com o Império Alemão se deu após o torpedeamento do vapor brasileiro Macau e do aprisionamento de seu comandante. A lei de guerra foi sancionada em 16 de novembro de 1917, e proibiu aos alemães no Brasil todo comércio com o exterior, bem como o transporte de carga inimiga em navios nacionais e a remessa de fundos para o exterior. Foram cassadas também as licenças para o funcionamento de companhias de seguro e bancos alemães.

hqdefault

A entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial como nação beligerante colocou-o em um seleto grupo junto com os Estados Unidos e as repúblicas centro-americanas, uma vez que Uruguai, Peru, Equador e Bolívia apenas romperam relações diplomáticas com a Alemanha, e Argentina, Chile, México, Venezuela e Paraguai mantiveram-se neutros.

141110120316_primeira_soldados_624x351_publicdomain_nocredit
Participação militar brasileira na Primeira Guerra Mundial foi discreta, mas conflito deu início a mudanças substanciais na realidade do país – Fonte – http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141110_brasil_guerra_fd

Já como nação beligerante, o Brasil participou da Conferência Interaliada em Paris, realizada de 30 de novembro a 3 de dezembro de 1917, tendo como representante Olinto de Magalhães, ministro plenipotenciário junto ao governo francês. Nesse momento, o governo brasileiro resolveu participar efetivamente do conflito, através do envio de forças de guerra.

DNOG

A participação brasileira na Primeira Guerra ao lado das forças aliadas consistiu no envio de uma divisão naval composta dos scouts Rio Grande do Sul Bahia, dos destroyers ParaíbaRio Grande do NortePiauí Santa Catarina, e do transporte de guerra Belmonte.

141110121305_guerra_baia_624x351_dominiopublico_nocredit
Um dos navios enviados pelo Brasil para o conflito, o cruzador “Bahia” teria matado um bando de golfinhos por engano ao confundi-los com um submarino – Fonte – http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141110_brasil_guerra_fd

Sob o nome de Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG), e sob o comando geral do contra-almirante Pedro Max de Frontin, a divisão partiu com destino à Europa em 16 de maio de 1918. Outras providências tomadas pelo governo brasileiro foram o envio de nove oficiais aviadores da Marinha e do Exército para auxiliar nos combates aéreos, e de uma missão chefiada pelo deputado e médico Nabuco de Gouveia à França, composta de médicos-cirurgiões que, auxiliados por um corpo de estudantes e de soldados do Exército, constituíram o Hospital do Brasil para o tratamento de feridos de guerra. A instituição continuou prestando assistência aos feridos mesmo depois de encerrado o conflito.

Após muitas dificuldades técnicas, a Divisão Naval brasileira chegou a Dacar, onde a guarnição brasileira foi vítima de uma epidemia de gripe espanhola. Apenas parte da esquadra conseguiu seguir viagem e chegar a seu destino, o porto de Gibraltar, um dia antes do armistício (11 de novembro de 1918) que encerrou a Primeira Guerra Mundial.

141110121519_guerra_missao_624x351_dominiopublico_nocredit
Além das operações navais, participação brasileira ocorreu com envio de uma missão médica para frente europeia

Apesar de uma atuação inexpressiva militarmente, o Brasil foi o único país da América do Sul a participar do conflito, o que garantiu sua presença na Conferência de Paz, que seria realizada em 1919 em Versalhes, e na organização da Liga das Nações.

Implicações importantes da Primeira Guerra Mundial no Brasil foram a consolidação da política externa brasileira voltada para os Estados Unidos e a desilusão com civilização Belle Époque que marcou o pós-guerra, anunciando o declínio da cultura europeia e a aurora do novo mundo representado pela América.

FONTES: BARRETO, F. Sucessores; BUENO, C. Política; GARAMBONE, S.

Primeira; VINHOSA, F. Brasil.

O COMANDANTE DE UM SUBMARINO ALEMÃO DA SEGUNDA GUERRA QUE VIVEU NO BRASIL

UB (17)

Autores – Rostand Medeiros (IHGRN) & German Zaunseder[1]

A frota de submarinos de Hitler foi uma arma naval utilizada operacionalmente de maneira brilhante durante a Segunda Guerra Mundial, obtendo uma justificada reputação de eficiência e de criar um verdadeiro terror nos sete mares durante aqueles dias difíceis.

Apesar de existirem inúmeras estatísticas, sabe-se que mais de 3.000 navios aliados foram afundados pelos submarinos alemães em várias partes do mundo e isso gerou algo em torno de 30.000 pessoas mortas nestes afundamentos. Esses ataques totalizaram cerca de 13 milhões e meio de toneladas de navios e de mercadorias perdidos para o fundo do mar e desse total quase 12 milhões foram afundadas apenas no Atlântico Norte. 

Foram estes submarinos, chamados de U-boot (do alemão: Unterseeboot), a arma que mais perto colocou o Terceiro Reich como vencedor do conflito. Até o próprio Winston Churchill admitiu que os submarinos alemães foram seu maior temor para uma possível derrota da Grã Bretanha na Segunda Guerra. [2]

UB (12)

Apesar de suas retumbantes vitórias, os membros da arma submarina do Terceiro Reich sofreram perdas enormes. Segundo Anthony A. Evans e David Gibbons, autores de “A compacta história da Segunda Guerra” (Universo dos livros, 2016), durante o conflito foram produzidos 1.170 U-boots, dos quais 1.000 entraram em operação e 781 foram perdidos (uma taxa próxima a 80%), com 25.870 tripulantes (63% dos 40.900 envolvidos) tendo apenas o mar como tumba. Já outros 5.338 tripulantes se tornaram prisioneiros de guerra.

Apesar de suas elevadíssimas perdas, é indiscutível que essas naves de guerra, comandadas por um seleto grupo de 1.058 homens, marcaram de maneira indelével a História do maior conflito já ocorrido.

E um desses comandantes de U-boot veio viver no Brasil!

Aristocracia e a Guerra no U-18

Heinz von Hennig nasceu em Berlim, era filho de vice-almirante Heinrich Georg Julius von Hennig e de Ilse Leder von Hennig. Seu pai era membro de uma aristocrática família prussiana dedicada a política, mas ele preferiu seguir a carreira naval e entrou em 1902 na Marinha Imperial (Kaiserliche Marine). Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial o tenente de navio () Heinrich von Hennig assumiu o comando do submarino U-18.

U-Boote_Kiel_1914 - Copy
Submarino U-18 em Kiel, 1914 – Fonte – http://www.bundesarchiv.de

A participação do pai de Heinz von Hennig neste conflito foi breve, mas marcante sob alguns aspectos. Em 23 de novembro de 1914 o U-18 conseguiu passar furtivamente pela Hoxa Sound, a entrada principal ao sul da baía de Scapa Flow, nas ilhas Orkney, norte da Escócia, onde nas duas guerras mundiais se localizou a principal base naval da Marinha Real Britânica (Royal Navy).

O comandante Heinrich superou as barreiras de contenção e as minas explosivas, auxiliado pela forte maré. Ele também seguiu bem próximo a um cargueiro que entrou na área. Quando estava perto do ancoradouro Heinrich levantou periscópio e, para sua decepção, percebeu que a baía se encontrava praticamente vazia. Infelizmente nesse dia os principais navios de guerra inimigos se encontravam espalhados por várias localidades da Grã-Bretanha.

Chateado e sem ter alvos que valessem os disparos de seus torpedos ele ordenou o retorno para mar aberto. Mas o U-18 foi localizado pela tripulação da traineira Dorothy Gray, um barco de pesca desarmado, que provisoriamente servia a Marinha Real como dragador de minas. Valentemente os ingleses arremeteram sua pequena nave contra o submarino e o Dorothy Gray bateu contra o periscópio e o casco do U-boot. Logo dois destróieres se uniram a caçada e, sem ter como fugir, o comandante Heinrich decidiu pela rendição, salvando a sua vida e a de seus comandados. As autoridades britânicas mantiveram todos os detalhes da captura em segredo, pois esperavam que os alemães acreditassem que o U-18 tinha sido afundado pelas formidáveis defesas da base naval.[3]

h
Notícia do afundamento do U-18 no jornal carioca “A Noite”, mas sem muito detalhamento.

O comandante Heinrich bem que tentou contar aos seus comandantes o que havia acontecido com seu submarino. Em agosto de 1915, juntamente com mais dois companheiros, escapou da prisão militar onde era mantido. Mas perderam o encontro que havia sido previamente organizado com um submarino na costa inglesa, que deveria trazê-los de volta para Alemanha. O futuro almirante Heinrich só saiu do cativeiro após o fim da guerra. 

Um Novo e Futuro Submarinista 

Apesar de ter ficado em combate apenas por quatro meses e perder seu submarino, a ação do pai de Heinz von Hennig  foi considerada exitosa e sua tentativa de fuga posterior lhe valeu elogios[4].

berlin_charlottenburg_kaiser_wilhelm_gedächtniskirche_historisch_kirche_neo_romanik_e80e298837_600x450xfr
Berlim na década de 1920 – Fonte – http://www.bilderbuch-berlin.net

Ele permaneceu na Marinha alemã, sendo designado inicialmente para o comando de uma fortaleza localizada em uma ilha perto da fronteira com a Holanda e depois seguiu uma carreira mais burocrática naquela força. Foi adido naval em países europeus, chegou ao posto de contra-almirante (Konteradmiral) e teve passagens por Berlim. Em uma destas ocasiões, em 17 de março de 1922, nasceu seu filho Heinz.

Na capital alemã os Hennigs viveram no aprazível distrito de Friedenau, um lugar com ruas residenciais tranquilas, onde uma classe média educada se estabeleceu e fez a região se tornar um local especial[5]. Mas nada sabemos sobre a infância e a adolescência de Heinz von Hennig e nem o grau de envolvimento de sua família com o Nacional Socialismo.

hennig_heinz_vo (5)
O orgulhoso Heinz von Hennig – Fonte – http://www.uboat.net/men/commanders/460.html

Sabemos, entretanto, que o jovem Heinz entrou na Marinha do Reich (Kriegsmarine) em setembro de 1940 e em 1 de janeiro de 1943 seguiu para a cidade de Danzig (atual Gdańsk, na Polônia), para se incorporar a tripulação do submarino U-421 e realizar seu treinamento de combate no frio mar Báltico.[6]

type-vii
Reprodução artística de um submarino alemão Tipo VIIC, o mesmo modelo do U-421 – Fonte – https://laststandonzombieisland.files.wordpress.com/2015/10/type-vii.jpg

Este submarino era do modelo VIIC, o verdadeiro cavalo de batalha da força de U-boots alemã na Segunda Guerra Mundial, dos quais foram construídos um total de 568 submersíveis a partir de 1941. Embora seu raio de ação não fosse tão grande como o do tipo IX, o VIIC foi uma máquina de combate eficaz, segura e que atuou em quase todas as áreas onde a força de U-boots operou. O U-421 era comandado pelo alferes de navio (Oberleutnant zu See) Hans Kolbus, que nos seus 22 anos incompletos estreava na função. Aquele submarino transportava de 50 tripulantes, levava quatorze torpedos, tinha um canhão de 88 m.m. no convés.[7]

hennig_heinz_vo (6)
Comando do U-421. Ao centro o comandante Hans Kolbus, a sua direita Heinz von Hennig e a sua esquerda vemos provavelmente Hans-Heinrich Barschkis, que chegaria a comandar um U-boot Tipo XXIII e afundaria um cargueiro britânico no fim da guerra – Fonte – http://www.uboat.net/boats/patrols/patrol_677.html

Durante dez meses a tripulação do U-421 treinou duro no mar Báltico para realizar plenamente suas missões e logo a nave seguiu para o porto alemão de Kiel para os últimos preparativos, onde Heinz von Hennig foi promovido a alferes de navio (Oberleutnant zur See ). Finalmente, em 1 novembro de 1943, aquele submarino partiu para sua primeira missão de combate como integrante da 9ª Flotilha (9. U-Flottille, ou 9. Unterseebootsflottille), com base em Brest, na França, para onde o submarino deveria seguir, caso sobrevivesse ao final desta patrulha.

Patrulha Fracassada

O moral da tripulação estava alto, mas já havia preocupação no ar. Aquela era uma época difícil, a maré das perdas estava virando a favor dos Aliados e já não existiam os chamados “Tempos felizes”, quando os submarinos alemães afundavam navios mercantes aliados em quantidades incríveis. Em novembro do ano anterior os U-boots afundaram 142 navios (entre estes os brasileiros Porto Alegre e Apalóide) e perderam apenas treze submarinos. Mas um ano depois seriam dezesseis navios aliados destruídos, para dezenove submersíveis afundados. Os novos equipamentos de busca e destruição de submarinos que os Aliados estavam utilizando ajudavam nessa mudança.

Bundesarchiv_Bild_101II-MW-5613-03A,_Wilhelmshaven,_U-Boot_läuft_ein
Um submarino em um porto alemão – Fonte – http://www.bundesarchiv.de

Durante um período de 64 dias este submarino patrulhou uma vasta região do Atlântico Norte, tomando parte da chamada Batalha do Atlântico, a mais longa campanha militar da Segunda Guerra Mundial. Mas a primeira missão da nave onde se encontrava Heinz von Hennig não foi nada exitosa durante aqueles mais de dois meses.

O U-421 navegou de Kiel para o Mar do Norte, seguindo próximo ao sul da Noruega, contornando as Ilhas Britânicas a uma distância prudente, passando entre as Ilhas Faroé e o sudeste da Islândia e chegando finalmente na sua região de atuação.

U-Boot U-123 in See
Tripulação de submarino alemão fazendo uso do canhão – Fonte – http://www.bundesarchiv.de

No primeiro mês o submarino não atacou ninguém e nem foi atacado. Circulou e circulou por uma grande área e nada aconteceu. Durante o segundo mês de patrulha a nave se incorporou a seis distintos grupos de busca e destruição de barcos mercantes dos aliados. Estes grupos eram as famosas “Matilhas de lobos”, ou “Wolfpacks”, que utilizavam as táticas de ataque em massa de submarinos alemães contra comboios de navios.

Os britânicos tinham organizado a navegação mercante na forma de comboios, onde desenvolveram um perímetro de defesa com escoltas armadas ao redor destes navios e assim tentavam chegar inteiros aos seus destinos com preciosos materiais para a guerra. 

Para contrabalançar essa situação o comando dos submarinos (denominado BdU – Befehlshaber der Unterseeboot) desenvolveu uma tática de ataque surpresa, formando grupos de U-boots organizados via rádio, que buscavam sobrepujar as escoltas. O primeiro submarino a fazer contato com um comboio informava ao BdU e acompanhava discretamente o grupo de navios, relatando a posição dos inimigos sempre que necessário. Então, por ordem do BdU, vários submarinos convergiam ao encontro do comboio e receberia ordem para atacar. A partir deste momento cada comandante era livre para usar qualquer tática por ele escolhida.[8]

image-120558-galleryV9-zzga-120558
Visão a partir de um periscópio de um submarino – Fonte – http://www.spiegel.de/

Os seis grupos de ataque que o neófito U-421 participou naquele mês de dezembro de 1943 buscaram formar uma verdadeira barreira de submersíveis entre a Terra Nova, no Canadá, e as Ilhas Britânicas, circulando por uma área com grande movimentação de comboios. Estas Wolfpacks variaram muito no número de participantes, aonde uma chegou a ter 21 naves e outra patrulhou com apenas quatro submarinos. Mas apesar dos esforços deu tudo errado para os submarinos participantes e eles não conseguiram afundar um único navio aliado.

Se a situação para o U-421 naquela primeira patrulha era ruim, ela quase se tornou trágica na sua finalização!

CNC SG 393 For Valour
Quadro representando um B-24 do Comando Costeiro da RAF atacando um submarino

Após a passagem do ano novo o U-421 recebeu ordens de seguir para Brest e assim procedeu. Mas no dia 3 de janeiro de 1944 foi atacado por um avião bombardeiro quadrimotor B-24 Liberator britânico, pertencente ao Esquadrão 224 do Comando Costeiro da Royal Air Force (RAF). O oficial Ethan Allen atacou com oito cargas de profundidade, mas os danos não foram expressivos e a tripulação do U-421 realizou um excepcional trabalho com as armas de defesa antiaéreas. O submarino escapou mergulhando e chegou a Brest no dia 8 sem maiores alterações e sem nada para comemorar.

Novo Porto e o Fim do U-421 

Talvez por sua boa conduta em combate Heinz von Hennig foi elevado a condição de segundo oficial mais importante a bordo do U-421, que levaria mais de um mês para o sair novamente ao mar.

image-120558-galleryV9-zzga-120558 - Copy
Oficial observando em um periscópio – Fonte – http://www.spiegel.de/

Na verdade aquela sua segunda patrulha, que se iniciou em 19 de fevereiro, nada mais foi do que a realização do percurso entre Brest e a cidade francesa de Toulon, no Mar Mediterrâneo, local da nova base deste submarino. O problema é que no meio do caminha havia o Esteiro de Gibraltar.[9]

Para evitar ter seu submarino localizado e destruído nesta área extremamente complicada, o comandante Hans Kolbus percorreu grande parte do caminho até o Estreito navegando muito lentamente e próximo aos litorais da Espanha e de Portugal. Esta tática de avanço estava funcionando positivamente, mas isso não impediu que eles fossem novamente atacados por um avião do Comando Costeiro da RAF.

ac_288
Um bombardeiro britânico Vickers Wellington – Fonte – http://www.wardrawings.be

Eram três e dez da madrugada de 2 de março e o submarino se encontrava navegando na altura do Cabo de São Vicente, quando um bombardeiro britânico Vickers Wellington Mk XIV, pertencente ao Esquadrão 179, sob o comando do oficial Ronald George Knott surgiu inesperadamente[10].

2e3aopk

O U-421 seguia pela superfície quando foi localizado no radar do avião bimotor que partiu para o ataque. Apesar de terem sido iluminados por um holofote de alta potência, o pessoal das armas antiaéreas do submarino reagiu e acertou vários impactos na aeronave. Foram danificados o motor de estibordo e o radar, fazendo assim com que o comandante Knott não acertasse suas quatro cargas da profundidade e deixasse a área de combate. A tripulação do avião inglês foi até mesmo obrigada a descartar todo o equipamento supérfluo para continuar voando com um só motor, incluindo o radar danificado. Conseguiram alcançar sua base após três horas de voo bem atribuladas.

Toulon06 - Copy

Apesar das expectativas a passagem do submarino pelo Estreito de Gibraltar seguiu depois sem maiores problemas e o U-421 chegou ao porto de Toulon no dia 1 de abril, após 43 dias de navegação. A nave se incorporou a 29ª Flotilha de submarinos, mas o problema foi que nessa época o estratégico porto vinha sendo severamente bombardeado pelas aeronaves aliadas.  

www.brendtandbrendt.com - Copy
O U-421 destruido no porto de Toulon – Fonte – http://www.brendtandbrendt.com

Entre novembro de 1943 e agosto do ano seguinte aconteceram doze grandes ataques ao local, com a destruição de vários vasos de guerra franceses e nove submarinos alemães, entre estes o barco de Heinz von Hennig. O fato aconteceu às onze e meia de 29 de abril de 1944, menos de um mês após o U-421 chegar a Toulon. A nave estava sendo preparada para uma nova missão de patrulha e se encontrava no Cais Missiessy, quando aviões quadrimotores da 15ª Força Aérea dos Estados Unidos bombardearam fortemente a área e o destruíram.  

Comandante de U-boot 

Germany U-Boat Training School
Submarinos em Neustadt – Fonte – http://www.spiegel.de/

Enquanto seu país seguia desmoronando cada vez mais, Heinz von Hennig foi enviado por ordem superior para a 3ª Divisão de Treinamento de Submarinos (3. ULD – 3. Unterseeboots-Lehrdivision), na cidade portuária alemã de Neustadt, em Holstein, no mar Báltico.

uboat_type_xxiii
Submarino Tipo XXIII – Fonte – http://www.bundesarchiv.de

Depois seguiu para a 23ª Flotilha visando a realização do treinamento KSL (Kommandantenschiesslehrgang) para ser comandante de um submarino. Em fevereiro de 1945, dez meses depois da destruição do U-421, Heinz assume o comando do submarino U-2361, um dos novos modelos tipo XXIII, seguramente um dos mais avançados submersíveis da Segunda Guerra Mundial.

Oficiais da marinha alemã realizam a saudação nazista em novembro de 1944. Esse era o submarino U-2332, do Tipo XXIII.

Estas naves tinham um formato exterior bastante aerodinâmico, muito avançado, além de uma ponte de comando relativamente pequena e foram os primeiros submarinos do mundo a usar um projeto de casco único. O tipo XXIII provou ser um barco excelente e mortal se fosse manuseado por bons profissionais, sendo altamente manobrável na superfície e abaixo dela.

Apertada torre submarino Tipo XXIII.

Dos 280 submarinos ordenados apenas 61 entraram em serviço, dos quais apenas seis realizaram efetivamente alguma patrulha de guerra, o que resultou em cinco navios aliados afundados e sem perdas para os submersíveis atacantes. Em 7 de maio de 1945 coube a um tipo XXIII, o U-2336, afundar o último navio mercante inimigo durante a Batalha do Atlântico. [11]

Uboot Hecht (S 171; ex U 2367)
A República Federal da Alemanha recuperou um submarino do Tipo XXIII (o antigo U-2367) e o rebatizou de S-171 – Fonte – http://www.bundesarchiv.de

O comandante Heinz von Hennig foi um dos comandantes de submarinos desta época que não realizou nenhuma patrulha de combate com o seu novo U-2361, tendo largado para o mar apenas para treinamentos, quando chegou a notícia que a guerra acabou.

Segundo o livro “Von original zum modell: Uboottyp XXIII”, dos alemães Eberhard Rösller e Fritz Köhl (1993), na página 30, essa foto é do submarino U-2361 em Kristiansand Süd, na Noruega.

Em 9 maio 1945 ele entregou sua nave aos Aliados em Kristiansand Süd, na Noruega, juntamente com outros dezesseis submarinos alemães de vários tipos. O U-2361 foi levado ainda em maio para Loch Ryan, na Escócia, e em novembro daquele ano foi afundado no Atlântico Norte por tiros de canhões disparados pelos destróieres HMS Onslow (inglês) e ORP Blyskawica (polonês).

Segundo Tomasz Frąckowiak, essa é uma foto do U-2361, em umna doca seca – Fonte – Facebook.

Juntamente com muitos outros comandantes de submarinos, Heinz foi enviado para o Campo de Prisioneiro 18, em Featherstone, no condado de Northumberland, norte da Inglaterra e ali recebeu a designação de prisioneiro B.105727. As atividades deste campo foram encerradas em 1948, quando acreditamos que Heinz retornou para Alemanha.

Blyskawica_w_nowym_kamuflazu_-_02-01-2012
O destróier polonês ORP Blyskawica, que afundou o U-2361, conservado até os dias atuais e transformado em museu na Polônia – Fonte – http://www.muzeummw.pl (polonês)

No Novo Mundo 

No seu retorno soube do falecimento do seu pai em 1947 e, aparentemente, seguiu atividades na área comercial. Sabemos também que ele casou, mas não sabemos com quem e quando. Entretanto sabemos que em 21 de maio de 1957, o recifense Jorge Kirchhofer Cabral, Cônsul do Brasil em Frankfurt am Main, assinou para Heinz von Hennig, cidadão da República Federal da Alemanha, a sua ficha consular de admissão de entrada no Brasil em caráter permanente.  Heinz declarou que nesta época vivia na cidade de Fellbach, a nordeste de Stuttgart, no estado de Baden-Wuerttemberg, sul da Alemanha. Informou que era comerciante, não registrou nome de algum filho menor de dezoito anos e tinha na ocasião 35 anos de idade.[12]

record-image_939X-41KP-X - Copy (2)

Heinz von Hennig atravessou o Atlântico a bordo do navio de passageiros S.S. Conte Biancamano, da companhia Italia di Navegazione S.p.A., tendo partido provavelmente de Gênova, ou Nápoles, e desembarcou no porto de Santos em 18 de julho de 1957. Na sua ficha encontramos a informação que ele ficou no Hotel Santos, na Praça Barão do Rio Branco, onde atualmente fica o prédio da Justiça Federal de Primeiro Grau daquela cidade, vizinho a secular Igreja do Convento do Carmo. Este hotel era pertinho do porto de Santos e muito procurado por imigrantes que chegavam de todo o mundo a bordo dos navios. 

fotos057a
Foto do Hotel Santos e da Praça Rio Branco, Santos, São Paulo. Esse local foi demolido -Foto: Arquivo Novo Milênio – http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos057.htm

A partir do desembarque em Santos, por maiores que fossem nossos esforços em buscar informações que mostrasse os passos de Heinz von Hennig no Brasil, somente conseguimos algo dezoito anos depois de sua chegada, através da publicação oficial de uma ata de reunião societária de uma empresa privada.  No Diário Oficial do Estado de São Paulo de 7 de agosto de 1975, na sua página quatorze temos a reprodução da reunião da Assembleia Geral ordinária, para prestação anual de contas da empresa Indústria e Comércio Nova Técnica S.A., localizada no número 4651, da via denominada na época como “Estrada Circuito Itapecerica para Santo Amaro”, no município de Itapecerica da Serra, São Paulo. Consta que a reunião foi presidida por Heinz von Hennig, com a presença de mais outros treze participantes, sendo nove destes pessoas nascidas na Alemanha, ou, devido a natureza teutônica de seus nomes e sobrenomes, claramente descendentes de pessoas que nasceram neste país. 

Imagem1

Sabemos que a antiga Estrada Circuito Itapecerica para Santo Amaro, ou Estrada de Itapecerica, é um local histórico. Em 1908 ali se realizou a primeira corrida oficial de automóveis da América Latina, em um circuito de 75 quilômetros, que reuniu mais de 10.000 espectadores ao longo das vias e teve largada no Parque Antártica em São Paulo. Hoje a via onde se localizava a empresa Indústria e Comércio Nova Técnica S.A. se chama Rodovia Armando Salles e no número 4651, próximo a ponte sobre o rio M’boi Mirim, existe uma fábrica de embalagens plásticas denominada “Plasfan”, que não sabemos se possui alguma relação com o antigo comandante de U-boot. 

record-image_939X-41KP-X - Copy
Heinz von Hennig em 1957.

Não é surpresa que a reunião presidida por Heinz von Hennig tivessem tantos alemães, ou seus descendentes, e que ele estivesse presidindo uma reunião de uma empresa com endereço nesta região do estado de São Paulo. Para quem conhece um pouco de colonização alemã no Brasil, sabe que ainda nas últimas décadas do século XIX existiram colônias de imigrantes alemães na região de Santo Amaro e Itapecerica da Serra. Certamente era uma interessante área para um alemão se estabelecer no Brasil em 1957. 

Conseguimos uma informação, da qual não conseguimos confirmação, que esse alemão teria trabalhado na empresa Volkswagen do Brasil.

o
Os autores deste artigo Rostand Medeiros (E) e German Zaunseder (D), pesquisando sobre a II Guerra em uma praia potiguar.

Os autores deste artigo, que moram em Natal, Rio Grande do Norte, nada mais encontraram sobre Heinz von Hennig em buscas através de arquivos digitais espalhados pela internet. Esperamos que este nosso texto publicado no blog TOK DE HISTÓRIA possa servir como ferramenta para novas buscas sobre este comandante.

Se vivo for o Sr. Hennig terá 95 anos e será, talvez, o único comandante de submarinos alemães a viver nas Américas.


NOTAS

[1] Rostand Medeiros é brasileiro de Natal, Rio Grande do Norte, autor de quatro livros, sendo um delas a biografia de Emil Anthony Petr, veterano da USAAF na Segunda Guerra Mundial que viveu em Natal e intitulado “Eu não sou herói – A História de Emil Petr” (Jovens Escribas-2012). É membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN.

German Zaunseder é argentino de Buenos Aires, descendente de alemães e seu bisavô serviu a Wehrmacht durante a Segunda Guerra Mundial, é um grande entusiasta do estudo sobre este conflito e domina quatro idiomas .

[2] Algumas fontes estatísticas aqui utilizadas estão em: https://www.navyhistory.org.au/british-and-german-submarine-statistics-of-world-war-ii/ e ver também http://www.uboat.net

[3] O ardil deu tão certo que somente em 1918 foi que outro submarino alemão tentou um novo ataque contra Scapa Flow.

[4] Apesar do resultado pouco proveitoso do comandante Heinrich na Primeira Guerra, sabe-se que anos depois um filho de um juiz que havia se tornado comandante de submarino estudou a ação do antigo comandante do U-18 na grande baía de Scapa Flow em 1914. Seu nome era Ghünter Prien, sua nave era o U-47 e ele fez história quando em 14 de outubro de 1939 afundou naquele local o encouraçado inglês Royal Oak. Sua ousada ação provocou a morte de 833 ingleses, criou um considerável efeito no moral nos alemães e mostrou, pouco mais de um mês após o início da Segunda Guerra Mundial, o poder e alcance da arma submarina alemã.

[5] Ainda sobre o contra-almirante Heinrich Georg Julius von Hennig é interessante comentar que ele foi um grande jogador e afamado campeão de xadrez, jogo que aprendeu durante as horas de folga nos navios da Marinha Imperial. Heinrich criou uma jogada que leva seu nome e de outro enxadrista, incentivou o esporte por onde passou e seus embates mais importantes são criteriosamente analisados até hoje por aficionados do xadrex.

[6] Heinz von Hennig era o terceiro em comando nesta nave e nesta época tinha a patente de alferes de fragata (Leutnant zu See).

[7] O U-421 foi um dos 42 modelos VIIIC lançados ao mar pelo estaleiro Danziger Werft AG, da própria cidade de Danzig.

[8] Normalmente estes ataques aconteciam após o crepúsculo, onde a pequena silhueta dos U-boots tornava a detecção difícil. Logo as Wolfpacks provaram ser uma ameaça séria ao transporte aliado.

[9] Separação natural entre a África e a Europa e passagem obrigatória entre o Atlântico e o Mediterrâneo, o Estreito de Gibraltar era uma local muito patrulhado contra os submarinos do Eixo nos dias da Segunda Guerra. Por possuir uma largura mínima de apenas quatorze quilômetros, boa cobertura aérea e naval, não era a toa que várias carcaças destruídas de U-boots jaziam no leito marinho daquela região.

[10] Este piloto chegaria ao posto de vice-marechal do ar na RAF e OTAN na década de 1970.

[11] Apesar da construção destas naves enfrentarem grandes pesadelos logísticos, com muitas interrupções causadas pelos avanços terrestres aliados, bombardeios aéreos constantes, escassez de material e de mão-de-obra, o primeiro Tipo XXIII saiu da linha de montagem em 17 de abril de 1944 e foi batizado como U-2321. Era daquele tipo de arma excepcional, mas que chegou tarde demais para o Terceiro Reich de Hitler.

[12] Não sabemos as razões da vinda do ex-comandante de U-boot para o Brasil, mas conseguimos a informação que seu pai, entre janeiro de 1943 e maio de 1945, foi adido naval alemão em Lisboa, Portugal. Teria de alguma forma essa permanência de seu pai em terras lusas contribuído para sua vinda ao Brasil?

O DIA EM QUE JOHN KENNEDY ESTEVE NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

66cb97f2fb180d8b7309bd088866867d
Kennedy no Rio junto com sua mãe Rose (D) e sua irmã Eunice (E).

Rostand Medeiros – Escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) 

Eu acredito que os países que possuem sistemas presidencialistas têm ao longo de suas histórias os seus mandatários relevantes, onde suas carreiras e suas vidas foram tão expressivas que eles nunca foram esquecidos e eles são sempre são lembrados no imaginário do seu povo.

Apontar quem seriam estes homens adentra no pantanoso e complicado terreno das paixões políticas, algo ao qual não tenho muito conhecimento e nem me interesse de explorar. Mas me arrisco a comentar que na vizinha Argentina o presidente mais marcante da história deste país foi Juan Domingo Perón. Já no Chile creio ser possível indicar Salvador Allende, ou não?. Mas e no nosso Brasil, teríamos, talvez, uma espécie de “empate técnico” entre Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek? E nos Estados Unidos, as indicações apontam para Franklin Roosevelt e John Kennedy?

john-f-kennedy-jackie-kennedy-nyc-broadway-ticker-tape-parade
John F. Kennedy e sua esposa Jackie desfilando na Broadway em carro aberto em Nova York.

Este último presidente estadunidense foi um homem de uma história de vida icônica, que remete a muitos sucessos e enormes tragédias. Vem de uma rica e famosa (ou infame) família, foi herói na Segunda Guerra, consagrou-se como um político respeitado e atuante, que assumiu a presidência do seu país com apenas 43 anos de idade e foi associado como mandatário que desenvolveu um governo inovador. Era casado com uma bela mulher, foi muito popular até mesmo fora dos Estados Unidos e teve sua vida abruptamente interrompida na cidade de Dallas, Texas, no dia 22 de novembro de 1963.

Sobre John Kennedy muito já se falou e foi escrito, sendo tema de inúmeros livros, documentários e filmes de Hollywood. Mas o que muitos brasileiros não sabem é que ele esteve no nosso país vinte anos antes de se tornar presidente.

E o que ele veio fazer no Brasil?

Berço de Ouro

John Fitzgerald Kennedy nasceu em 29 de maio de 1917, sendo filho do empresário, filantropo e político Joseph Patrick “Joe” Kennedy e da socialite Rose Elizabeth Fitzgerald Kennedy. Era descendente de imigrantes irlandeses católicos e vários de seus antepassados foram políticos no estado de Massachusetts, tendo seu avô, P. J. Kennedy, sido prefeito de Boston. 

2D23CBD600000578-3262024-All_in_the_family_The_Kennedy_clan_pose_for_a_photo_at_Hyannis_P-m-9_1444143176235
Os Kennedys

John Kennedy tinha um irmão mais velho, Joseph Jr., e sete irmãos mais novos; Rosemary, Kathleen, Eunice, Patrícia, Robert, Jean e Ted.

Sem problemas com dinheiro a família Kennedy mudou-se em 1927 para uma mansão majestosa, de estilo georgiano, na cidade de Nova York. Ali John frequentou a Riverdale Country School, uma escola particular para meninos. A família Kennedy passava seus verões em uma casa na área costeira de Hyannis Port, Massachusetts. Já durante as férias de Natal e Páscoa, muito frio nessa época na região de Nova York, os Kennedy seguiam para uma casa em Palm Beach, Flórida.

Durante a adolescência John Kennedy teve vários problemas de saúde, que culminaram com uma hospitalização de emergência em 1934, quando os médicos pensaram que ele poderia ter leucemia. Apesar do susto, no ano seguinte ele fez sua primeira viagem a Europa com seus pais e sua irmã Kathleen e no ano seguinte matriculou-se na Universidade Harvard.

Young-JFK-with-double-breasted-combination-collar-pin-with-father-Joe-and-siblings

Em julho de 1937, desejoso de conhecer outros lugares, John Kennedy viajou para a França e passou mais de dois meses junto com um amigo percorrendo a Itália, Alemanha, Holanda e Reino Unido.

Um Mundo Em Guerra

No ano seguinte seu pai foi designado pelo Presidente Franklin D. Roosevelt embaixador dos Estados Unidos na Inglaterra e John seguiu para trabalhar na embaixada americana em Londres. Este cargo de prestígio abriu novas avenidas sociais para a família Kennedy e eles assistiram na primeira fila a abertura do triste drama da Segunda Guerra Mundial. 

Os Kennedy acompanharam os esforços do governo britânico por uma política de apaziguamento, destinada a evitar a guerra a qualquer custo, principalmente após Adolf Hitler ocupar Áustria e a Tchecoslováquia. Essa ação política era firmemente apoiada pelo embaixador Joseph Kennedy e ele seria um feroz crítico dos apelos de Winston Churchill para uma ação mais contundente contra a ameaça nazista. 

Além desse posicionamento o pai do futuro Presidente dos Estados Unidos era declaradamente a favor do isolacionismo dos Estados Unidos em relação a guerra europeia e estridente antissemita. Uma irônica intolerância para um homem que havia sido vítima de muito sentimento antirreligioso por ser católico.

2D24531100000578-3262024-image-a-12_1444143893256
John Kennedy e seu pai, notório isolacionista e antissemita

Em 1938, porém, essas preocupações estavam mais no futuro. John Kennedy usou a posição de seu pai para organizar outra grande viagem, em preparação para sua tese final em Harvard. Esteve novamente na França e seguiu para a Polônia, União Soviética, os Bálcãs e chegou a ir até mesmo ao Oriente Médio. Viajante inveterado, Kennedy passou sete meses na estrada e só retornou a Londres em 1 de setembro de 1939, no mesmo dia em que a Alemanha invadiu a Polônia e teve início a Segunda Guerra Mundial.

O jovem Kennedy começou seu último ano em Harvard na primavera de 1940, com o campus universitário em grande efervescência com o que acontecia no outro lado do Oceano Atlântico. Ele se mostrava cada vez mais interessado na política, concentrando-se em assuntos internacionais e escreveu uma tese sobre a política externa da Inglaterra antes do início da guerra. Este material acadêmico foi bem recebido e ajudou John Kennedy a conquistar a graduação magna cum laude, a segundo maior possível no ranking de Harvard. Mais importante ainda, seu esperto pai aproveitou a tese como uma forma de tornar John uma figura pública. O embaixador puxou as cordas na indústria editorial e contratou um repórter de jornal para editar e polir a prosa. Logo, em julho de 1940, foi lançado o livro Why England Slept. O trabalho rendeu a John Kennedy um modesto best-seller e lhe concedeu seu primeiro gosto como celebridade.

BW SS Argentina
O S. S. Argentina, da respeitada empresa de navegação Moore-McCormack Lines – Fonte – http://www.moore-mccormack.com/images/BW%20SS%20Argentina.JPG

Na sequência John seguiu para a conceituadíssima Stanford Business School e decidiu realizar uma viagem pela América do Sul junto com sua mãe Rose e sua irmã Eunice. 

Eles embarcaram no final de abril de 1941 no luxuoso transatlântico S. S. Argentina, da respeitada empresa de navegação MooreMcCormack Lines, com grande experiência e tradição na ligação marítima entre os Estados Unidos e a América do Sul.

O suntuoso navio de passageiros realizava a rota Nova York ao Rio de Janeiro, seguindo sob bandeira americana, que na época era então um país neutro no conflito. Mas isso não significava que o S. S. Argentina não viesse a sofre um ataque por parte de submarinos nazifascistas, ou algum tipo de ocorrência com os próprios Aliados. E foi o que aconteceu naquela ocasião, quando a grande nave foi parada por um cruzador inglês de 10.000 toneladas e poderosamente artilhado, a 300 milhas da foz do rio Amazonas. A tripulação do S. S. Argentina foi obrigada a informar se a bordo havia entre os passageiros cidadãos de origem alemã ou italiana. Com a negativa a viagem do transatlântico foi liberada. 

Celebridades a Bordo 

Depois de dezesseis dias de viagem, às duas da tarde no dia 7 de maio de 1941, o grande navio aporta Rio de Janeiro, na época a Capital Federal.

ss-argentina-in-rio48.thumbnail
S. S. Argentina no Cais da Praça Mauá em 1948.

Como era praxe na época, durante o desembarque dos passageiros vários jornalistas corriam ao cais do porto da Praça Mauá em busca de saber quem estava a bordo, quem desembarcaria e se entre estes haviam figuras interessantes, o que chamamos hoje de “celebridades”.

Poderiam ser ricaços chegando de viagens, políticos patrícios retornando de suas férias para descansar do seu “pesado labor”, cientistas estrangeiros, ou astros e estrelas do cinema e da música do exterior com destino a Cidade Maravilhosa, ou de passagem para Buenos Aires. Serviam para aquelas verdadeiros “piranhas da notícia” até mesmo pessoas com notícias frescas sobre os tristes acontecimentos da guerra.

I0006154-3Alt=005320Lar=003403LargOri=004537AltOri=007093 - Copia
As celebridades que desembarcaram no Rio de Janeiro em 7 de maio de 1941.

Em meio aos flashes quem mais chamou atenção no desembarque foi a atriz Rosita Moreno. Nascida na Espanha ela já vivia há anos no México era filha de ator e estava radicada desde 1930 na Meca do cinema mundial – Hollywood. Rosita seguia para Buenos Aires a fim de realizar um filme e recebeu a todos saboreando uma “Coca-Cola gelada com batatas fritas”. Contou que já havia realizado muitos filmes mexicanos, argentinos e espanhóis e também foi destaque em versões em espanhol dos filmes de Hollywood.

I0005170-3Alt=005180Lar=003581LargOri=004775AltOri=006907 - Copia

Foi enaltecida pelo jornalista de O Imparcial por está exalando o suave odor do perfume francês “Arpège”, cujo frasco pequeno custava a bagatela de “180$000” (cento e oitenta mil réis). Além dela os repórteres descobriram entre os passageiros um renomado dentista que vinha dar um importante curso sobre dentaduras, um jornalista de Nova York e um violinista judeu de San Francisco que vinha para alguns concertos na cidade. Este possuía alguma fama em 1941, mas viria a se tornar nos anos vindouros um dos maiores violinistas do Século XX – Yehudi Menuhin. Além destes se encontrava a bordo um jovem que era filho de Joseph Kennedy, o ex-embaixador dos Estados Unidos na Inglaterra.

“Missão Especial do Governo Americano”

Descrito como magro, de cabelos claros, olhos azuis e muito calmo, John Kennedy não negou a ser interpelado pelos jornalistas e informou que veio ao nosso país basicamente como um simples turista a passeio e com “um desejo de conhecer outros países e outros povos”.

record-image_S3HT-6PVS-FHM
Ficha de entrada de John Kennedy no Brasil em 1941.

Ele foi logo recordado pelos homens da imprensa que seu pai era um dos maiores defensores do isolacionismo dos Estados Unidos na guerra, mas fugiu diplomaticamente do questionamento. Depois foi perguntado se acreditava na vitória dos súditos do Rei da Inglaterra contra os alemães e respondeu que sim. Mas acrescentou ponderadamente que “seria imprudente dar qualquer declaração categórica sobre o desenrolar dos acontecimentos”. Kennedy comentou bastante sobre seu livro, que também estava escrevendo para jornais e revistas nos Estados Unidos e pretendia escrever outros livros sobre a conjuntura internacional. Ele foi descrito pelos jornalistas como “possuidor de bom humor e comunicativo e logo se tornou simpático na roda dos jornalistas”. Apesar de jovem, John Kennedy já tinha bastante experiência para tratar com o pessoal da imprensa e sabia o que significava não atender corretamente aos jornalistas.

Na edição do Jornal do Brasil do dia seguinte (página 12) surgiu a notícia que um suposto companheiro de viagem de Kennedy teria confidenciado a um jornalista deste periódico que o filho do embaixador Joseph estava de viagem pelo Brasil e pela Argentina em uma “missão especial do governo americano”. Segundo este amigo o jovem Kennedy pretendia “examinar as pulsações sentimentais dos povos sul-americanos em face ao conflito europeu”.

d36c241b4744ae94e8915689a250255b

Essa informação não deve ser verdade, pois nenhuma fonte pesquisada cita, além de sua mãe e de sua irmã, algum pretenso companheiro de viagem de John Kennedy a América do Sul. Além disso, o governo americano tinha na região embaixadas com pessoas altamente treinadas e extremamente atentas a todos os movimentos e ações dos governos sul-americanos e dos seus povos em relação ao conflito que ocorria na Europa.

Aparentemente Kennedy, sua mãe e sua irmã realmente vieram para o Brasil fazer apenas turismo, conforme mostra a foto que abre este texto.

Mas se aqueles dias do primeiro semestre de 1941 a vida de John Kennedy foi de tranquilidade no Brasil e na América do Sul, no fim daquele mesmo ano a situação ficou bem diferente.

Mas isso é outra história.


Fontes 

https://mholloway63.wordpress.com/2013/08/02/what-happened-on-august-1st-john-f-kennedy-and-pt-109/

https://br.pinterest.com/pin/450289662722928980/

http://www.bbc.co.uk/history/people/john_f_kennedy

https://www.jfklibrary.org/JFK/Life-of-John-F-Kennedy.aspx

https://familysearch.org

http://millercenter.org/president/biography/kennedy-life-before-the-presidency

http://www.historyplace.com/kennedy/president.htm

http://jfks.de/about-jfks/history/the-history-of-the-john-f-kennedy-school/

http://www.dailymail.co.uk/news/article-3262024/My-story-collision-getting-better-time-ve-got-Jew-n-r-John-F-Kennedy-revealed-father-exploited-PT-109-incident-make-son-hero-pave-road-White-House.html

https://www.gentlemansgazette.com/president-john-f-kennedy/

OS CRIPTO JUDEUS NO BRASIL

1
Fonte – https://www.shutterstock.com/video/clip-720313-stock-footage-fire-david-star-with-alpha-channel.html

O povo Judeu se estabeleceu pela primeira vez na Península Ibérica (a região hoje conhecida como Espanha e Portugal), antes da chegada dos fenícios, em cerca de 900 AC.

Comerciantes judeus se estabeleceram ao longo da costa da Espanha durante o tempo do rei Salomão, quando esta região era chamada de Tarso, ou Társis. Mais judeus emigraram após a destruição do Primeiro Templo em Jerusalém. Quando o rei babilônico Nabucodonosor conquistou Jerusalém, já havia grandes assentamentos judaicos bem estabelecidos em toda a Península Ibérica.

arch-titus-relief-1a
Soldados romanos carregando os despojos das guerras judaicas. A destruição de Jerusalém aconteceu em 70 D.C., quando as legiões romanas saquearam Jerusalém e retornaram a Roma com os despojos, daquela que era considerada a cidade mais rica no Império Romano – Fonte – http://www.bible-history.com/archaeology/rome/arch-titus-menorah-1.html.

A primeira perseguição registrada contra os judeus na Espanha começou há cerca de 490 D.C., quando os judeus foram proibidos de se casar com não judeus, ou ocupar cargos públicos e seus os filhos nascidos de casamento entre judeus e católicos foram forçosamente batizados na Igreja Católica.

A partir deste momento em diante, os judeus ibéricos foram periódica e progressivamente submetidos à pior perseguição. Entre os anos de 653 a 672 muitos foram decapitados, queimados vivos, ou apedrejados até a morte pelo crime da prática do judaísmo. Durante o período de 489 a 711, quando a Península Ibérica ficou sob o domínio franco e visigótico, surgiram pela primeira vez os cripto judeus (judeus secretos) como um grande grupo.

033112_1206_MosqueofCor5
Uma vista geral do interior da mesquita em Córdoba – do livro “Antiguidades árabes na Espanha”, de James Cavanah Murphy, publicado em 1816 – Fonte – http://islamic-arts.org/2012/islamic-architecture-of-andalusia-2/.

Em 711 os mouros do norte da África conquistaram a Península Ibérica e ficaram por cerca de 300 anos, o que é conhecido como a “Idade de Ouro da Tolerância”. Para muitos pode parecer aos dias atuais algo estranho, mas nesta época os governantes muçulmanos coexistiram com os judeus e cristãos com muita tolerância e de forma extremamente edificante. Pessoas não muçulmanas foram autorizadas a ter grande liberdade religiosa e social, desde que eles pagassem um imposto especial, algo que os judeus acordaram de bom grado.

Judeus floresceram em relativa paz e abundância, apreciando a Idade de Ouro e a livre troca de ideias, em meio a um nível relativamente alto de educação, aproveitando os benefícios de viver entre os estudiosos do Torá e do Talmude. Cidades como Lucena, Granada e Tarragona eram povoadas por judeus magnificamente ricos em bens de cultura e materiais.

The Court of the Caliphate of Cordova in the Time of Abd-al-Rahman III, by Dionisio Baixeras Verdaguer, 1885 - TORQUEMADA 3
Era de ouro do Islã na Espanha. Abd-ar-Rahman III, califa de Córdoba, e sua corte em Medina Azahara , por Dionisio Baixeras Verdaguer – Fonte – http://newjacksonianblog.blogspot.com.br/2016/06/israel-islam-and-clash-of-civilizations.html.

A arte, música, medicina, educação e estudo religioso judaico floresceram. A população judaica aumentou consideravelmente, prosperou e muitos judeus se tornaram fabulosamente ricos e famosos. Durante a Idade de Ouro a Espanha se tornou o centro mundial de estudos talmúdicos, onde existiram algumas das mais famosas academias rabínicas do mundo. Alguns dos maiores estudiosos judeus viveram na Espanha moura. O rabino Abraham Ben Meir Ibn Ezra nasceu em Tudela, Espanha, em 1089, sendo considerado em seu tempo um grande poeta, matemático, gramático, astrônomo, comentarista da Torá e filósofo. Já o rabino Moshe ben Maimôn nasceu em Córdoba, Espanha, em 1135, e ganhava a vida como um médico, sendo famoso por sua codificação da lei judaica, intitulado Mishne Torá. O rabino Moshe ben Nachman nasceu em 1194 e como Maimôn era um médico respeitado e estudioso, sendo o primeiro a incorporar a cabala, ou misticismo judaico, no ensinamento da Torá.

No entanto a chamada Idade de Ouro na Espanha também foi marcada por revoltas violentas ocasionais e turbulência política. Isso afetou os judeus e os cripto judeus, que estavam sujeitos aos caprichos dos governos que mudavam frequentemente. Por exemplo, a violência eclodiu em 1002, quando dois ricos e politicamente poderosos muçulmanos lutaram para governar Granada; infelizmente, os judeus tinham apoiado o perdedor e sofreram depois. Em 1066 um ministro-chefe judeu de Granada foi crucificado, seguido do ataque a mais de 1.500 famílias judias.

a4
A crucificação é um dos métodos de execução mais conhecidos devido à crucificação de Jesus Cristo. É uma execução deliberadamente lenta e dolorosa, onde o condenado é amarrado ou pregado em uma grande cruz de madeira e deixado para pendurar até morrer, o que geralmente leva dias. Judeus foram crucificados na Espanha. – Fonte – http://deliciavita.com/most-horrifying-torture-techniques-through-history/

Depois a dinastia moura original na Península Ibérica foi dominada por grupos fanáticos. Em 1149 os muçulmanos da península se fragmentaram em cerca de doze pequenos reinos. A falta de controle centralizado causou logo constantes lutas pelo poder entre os reinos vizinhos.

Embora os judeus tenham coexistido relativamente pacificamente com os muçulmanos, os católicos se ressentiam amargamente da perda de controle cristão da península desde 711 e frequentemente realizavam distúrbios e revoltas de forma mais limitada, mas em 1212 começou a rebelião aberta. A reconquista de toda a região foi considerada como uma obrigação sagrada para os cristãos. Infelizmente os judeus foram identificados negativamente pelos cristãos como ligados a morte de Cristo e aos governantes muçulmanos sob o qual os judeus tinham desfrutado privilégios e poder.

d431fb80f289f1fe2089727b54d8e307
Vítimas da peste negra.

Também durante este período a peste negra assolou a Europa, matando como um em cada quatro pessoas, mas a população judaica foi muito menos atingida e, talvez por causa de uma melhor higiene, relativamente poucos judeus morreram por causa da praga. Judeus lavavam as mãos antes de comer pão, banhando-se semanalmente antes do Shabat e antes dos feriados, lavando suas roupas regularmente, mantendo fortes regras de higiene (especialmente na cozinha e nas instalações sanitárias), consumindo apenas carnes frescas e de animais saudáveis. Eles eram obrigados a ficar distantes do esgoto e de outras formas de impurezas e enterravam seus mortos dentro de vinte e quatro horas. Todas essas práticas dos judeus forneciam alguma medida de proteção contra a peste, embora não a imunidade total. Já os católicos da época não observaram tais estilos de higiene e raramente se lavavam e tomavam banho. Consequentemente os católicos odiavam os judeus pela sua aparente imunidade à praga.

20120504-Spain pogrom Barcelona 1391
Pogrom em Barcelona no ano de 1391 – Fonte – http://factsanddetails.com/world/cat55/sub351/item1381.html

Nesse meio tempo os católicos se uniram contra os muçulmanos e lentamente, assumiram a maioria dos pequenos reinos, um por um. Mas as regras católicas não foram gentis aos judeus. Os “pogroms”, ou perseguições, se generalizaram a partir de 1391 e resultou na morte de cinquenta mil judeus. O medo era tal que dezenas de milhares se converteram ao catolicismo. Essas pessoas eram chamadas de “conversos” (convertidos), “cristãos novos”, e “Marranos” (um termo depreciativo que significa “porco”).

Em 1412 leis excluíram os judeus de qualquer intercâmbio econômico com os cristãos. A partir deste momento até o Édito de Expulsão de 1492, os judeus foram estritamente limitados aos guetos e tiveram que usar uma espécie de crachá de identificação proeminente no lado de fora de suas roupas, algo que voltaria a acontecer na Alemanha a partir de 1933.

expulsion de judios
Expulsão dos judeus da Espanha

Duramente pressionados para sobreviver, muitos judeus, talvez mais de 600.000, se converteram forçadamente ao cristianismo até o final do século XV. Muitos dos cristãos novos eram na realidade cripto judeus. Cristãos por fora, mas interiormente praticando secretamente o judaísmo.

O Édito espanhol de expulsão de 1492 afirmou que todos os judeus deveriam deixar o país. Aqueles que ficaram enfrentariam a Inquisição. Um pequeno número fugiu para a Itália, Amsterdã e nas Américas descoberta por Colombo. Mas a maioria foi para o vizinho Portugal. Quando a Inquisição chegou a Portugal em 1496, os judeus foram forçados a sair, converter ou morrer. Desses conversos que não optaram por emigrar, muitos, se não a maioria, foram assassinados pela “Santa” Inquisição. Por volta de 1500 estimativas apontam que entre 40.000, a mais de 200.000 judeus foram forçados a deixar a Península Ibérica. Os números exatos não estão disponíveis porque muitos dos nomes de famílias cripto judaica foram alterados após os pogroms dos anos 1300, em antecipação as perseguições do futuro.

Expulsão-dos-judeus-Roque-Gameiro-1
A Expulsão dos Judeus, de Roque Gameiro.

As Inquisições espanhola e portuguesa continuaram por trezentos e cinquenta anos. Ficaram relativamente bem gravados e de forma precisa os nomes, números, datas e punições que foram promulgadas pelos oficiais da Inquisição contra todos aqueles que atingiram. Daqueles judeus e cripto judeus que escolheram não deixar, ou não podiam dar ao luxo de deixar a Península Ibérica, perceberam que para viver só comprando uma passagem em um barco que seguisse para destinos mais seguros. De preferência, o mais longe possível dos escritórios da Inquisição.

GetAttachment_aspx_
Pelo mar, para sobreviver! – Fonte – http://aquilazica.blogspot.com.br/2010/11/navios-para-tarsis.html

Alguns compraram a documentação adequada para viagens de negócios “temporários” (que muitas vezes tornou-se permanente) para a Itália ou a Alemanha. Ao passo que as pessoas mais pobres fugiram para o norte, através das montanhas, e daí para a França. Comunidades inteiras de “cristãos portugueses” foram documentadas no sul da França, enquanto outros continuaram para o norte. Seguira para a Holanda, Inglaterra, Escandinávia e para o leste. Em direção da Alemanha, Áustria, Hungria e Polônia. Na maioria destes destinos europeus, esses “cristãos portugueses” finalmente revelavam sua verdadeira identidade como judeus e posteriormente se uniam as populações judaicas estabelecidas; Assim, como voltaram a assumir sua verdadeira condição religiosa, não encontramos uma longa história de cripto judaísmo na Europa.

internajudeu
Obra mostra cena de expulsão de judeus da Espanha em 1492. Muitos deixaram o país, mas outros optaram por ficar e se converter ao catolicismo. (Xilogravura, Michaly von Zichy, 1880, posteriormente colorizada)

Mas do outro lado do Atlântico a situação foi bem diferente. Muitos judeus e cripto judeus emigraram para o Novo Mundo, agora conhecidos como as Américas, ou Hemisfério Ocidental. Mas suas escolhas ficaram limitadas basicamente às colônias de Espanha e Portugal nesta região.

No caso do Brasil, após a chegada dos cripto judeus, muito se tornaram exportadores de madeira e desenvolveram com largo sucesso o plantio de cana-de-açúcar. Este sucesso atraiu muitos outros conversos da Espanha. Em Recife, a maior cidade no nordeste do Brasil, os cripto judeus prosperaram significativamente. De acordo com registros oficiais, durante o século XV, estes compreendiam 2/3 dos moradores brancos da região.

Rua dos Judeus - Mercado de Escravos - 1641
Rua dos Judeus e seu mercado de escravos. Quadro Rua dos Judeus – Slavenmarkt, de Zacharias Wagener – 1641 – Fonte – http://bairrodorecife.blogspot.com.br/2014/02/a-rua-do-bode-dos-judeus-da-cruz-e-do.html

Em 1630 a Holanda conquistou a colônia portuguesa do Brasil. Pelos próximos 24 anos a cidade de Recife viveu um renascimento judaico. A primeira sinagoga das Américas foi ali fundada. Até mesmo uma rua foi nomeada “dos Judeus” e muitos conversos voltaram abertamente ao judaísmo.

No entanto, os bons tempos não duraram muito. 

Não apenas por isso, mas é bem verdade que os Judeus no Brasil se tornaram tão poderosos que a Igreja Católica pressionou Portugal para reconquistar sua ex-colônia dos “conversos judeus que agora operam suas sinagogas, causando grande humilhação para Igreja”. Assim, em 1654, Portugal mais uma vez ganhou o controle do Brasil. Logo um decreto de expulsão foi emitido contra os judeus para deixar o Brasil em menos de três meses. 

Inquisicao-no-Brasil
Pessoas queimadas através da Inquisição em Portugal, que depois chegou no Brasil 

Em meio a isso a renovada Inquisição se espalhou por todo sul dos Estados Unidos da América, México, América Central e América do Sul, as ilhas do Caribe e Cuba. Nenhum judeu, ou “Converso”, estava a salvo de suspeita, acusação e perseguição. Assim, o número de cripto judeus cresceu para abranger quase todas as pessoas de ascendência judaica.

Para evitar essa situação muitos judeus, os “conversos” ou “cristãos-novos”, foram obrigados a apresentar-se ao catolicismo. Eles são referidos em hebraico como os “anussim”, ou “aqueles que foram forçados” e tiveram que continuar a esconder as suas crenças religiosas. Os membros da família não revelaram sua herança judaica, até mesmo para os seus filhos, filhas, irmãos e irmãs, tudo por medo de perseguição.

237_59
Judaísmo no Âmbito Familiar. Nem assim havia total segurança – Fonte – http://www.coisasjudaicas.com/2011/11/cripto-judaismo.html

O certo é que a experiência dos judeus cripto no Hemisfério Ocidental foi uma litania de sofrimento, medo contínuo, supressão social e política, profissional e religiosa e de assassinatos. E foi algo que durou muito. Somente no final dos anos de 1850 a Inquisição oficialmente terminou no México e em outros lugares um pouco mais cedo; no entanto, a discriminação ostensiva e os incidentes aleatórios de linchamento e assassinatos continuaram até meados da década de 1950 no que hoje chamamos de América Latina.

Voltando a 1654, sabe-se que uma parcela substancial de judeus que viviam no Nordeste do país escolheu se esconder no interior, no sertão, misturando-se entre os moradores locais. Aí surge a dúvida – Quantos descendentes de judeus se converteram ao catolicismo? As estimativas variam de milhares a milhões.

20170124_09_P-professores-768x455
Anita Waingort Novinsky da Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas da USP – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Anita Novinsky, historiadora da Universidade de São Paulo, afirma que não sabe quantos descendentes dos judeus permanecem em todo o Brasil, mas acredita que a muitos judeus com variados níveis de consciência no Brasil. Para ela o Brasil moderno foi fundado por judeus e Só no Brasil estima-se que 10 a 25% do total da população são crpto judeus, que se traduz em 15 a 40 milhões de pessoas.

Embora nem todas as pessoas de linhagem crypto judaica estão são preparados neste momento para aceitar o desafio de voltar a viver uma vida plenamente judaica, tem havido um impulso incrível de voltar ao Judaísmo nos últimos anos. Existem milhares, se não milhões de pessoas que estão com fome de aprender e de se reconectar como judeus.


SE VOCÊ QUER VER MAIS TEXTOS SOBRE JUDAÍSMO NO TOK DE HISTÓRIA VEJA ESTES LINKS: 

https://tokdehistoria.com.br/2015/11/11/lei-pode-dar-cidadania-a-brasileiros-descendentes-de-judeus/ 

https://tokdehistoria.com.br/2015/05/08/diaspora-descubra-como-os-judeus-se-espalharam-pelo-mundo/ 

https://tokdehistoria.com.br/2016/07/12/15533/ 

https://tokdehistoria.com.br/2014/03/23/sobrenomes-de-judeus-expulsos-da-espanha-em-1492-veja-se-o-seu-esta-na-lista/ 

https://tokdehistoria.com.br/2012/04/18/a-expulsao-dos-judeus-de-portugal/

https://tokdehistoria.com.br/2015/06/08/the-first-synagogue-in-the-americas-itamaraca-1634/ 

FONTES DO TEXTO

http://cryptojew.org/the-history-of-the-crypto-jewshispanic-sephardi

http://www.nationalgeographic.com/hidden-history/

http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3319972,00.html

NÍSIA FLORESTA BRASILEIRA AUGUSTA – UMA MULHER À FRENTE DE SEU TEMPO

nisia-floresta
Nísia Floresta Brasileira Augusta

Autor – Elfi Kürten Fenske

Fonte – http://www.elfikurten.com.br/2015/07/nisia-floresta-brasileira-augusta.html?m=1

Dionísia Gonçalves Pinto (Nísia Floresta).. [Papary {hoje Nísia Floresta} RN, 12.10.1810 – Rouen, França, 24.4.1885]. Com o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta, foi educadora, “viajante ilustrada”, “nacionalista”, “pré-feminista”, escritora, abolicionista, ativista dos direitos humanos, indianista e republicana. Mostrou uma preocupação filosófica com o cotidiano brasileiro da época em que viveu e se dedicou a propor uma reforma na educação das meninas no Brasil. Preocupou-se, principalmente, com a educação e o papel das mulheres em nossa sociedade, acreditando que o progresso de uma sociedade dependia da educação que era oferecida às meninas. Para Nísia Floresta, as meninas deveriam estudar porque a mulher exerce uma influência real sobre o destino de seu marido e sobre os destinos das nações e as meninas deveriam ser educadas para terem o reconhecimento da sociedade.

nisia-floresta-brasileira-augusta

Nísia Floresta escreveu sobre os direitos das mulheres e viabilizou o acesso à educação de algumas meninas, lutando para que elas valorizassem os estudos. Foi uma educadora que encarou a educação das meninas como uma missão, além de ter discutido a questão indígena de forma singular, valorizando o papel das mulheres, e de ter provocado as autoridades da época ao questionar sobre o poder e a supremacia dos homens brancos. Suas críticas atingiam também mulheres que deixavam os seus filhos e filhas nos braços das amas de leite.  Ensinava os valores necessários a uma educadora e afirmava que as mulheres poderiam ocupar os cargos públicos. Defendia a ideia de uma nação civilizada que só chegaria a esse patamar se as mulheres fossem educadas e participassem do contexto social.

Nísia Floresta desafiou uma cultura onde as mulheres não eram valorizadas. Superou diversos opositores, fundou colégios para meninas – como o Colégio Augusto – cobrando, assim, o acesso das mulheres ao campo do saber.

nisia-floresta-selo
Nísia Floresta Brasileira Augusta Selo Correios (1954)

Foi cuidadosa e metódica, conseguindo levar a sua mensagem à sociedade da época em jornais lidos pela elite e pelas autoridades. Seu colégio teve existência curta e gerou polêmicas que a impediram de tornar possível muito daquilo que escrevia.  O que encontramos em suas obras é um material riquíssimo para os estudos de gênero, pois denunciam o preconceito dos homens em relação às mulheres tal como ocorria no século XIX.

Nísia Floresta, apesar das condições desfavoráveis à mulher, escreveu cerca de quinze títulos ao longo dos seus 74 anos, dentre poemas, romances, novelas e ensaios, sendo alguns reeditados mais de uma vez. Suas obras foram publicadas em diferentes idiomas e muitas dessas foram publicados pela imprensa.

nisia-floresta-jovem
Nísia Floresta, jovem

Nos lugares por onde andou  (Recife, Olinda, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Lisboa, Coimbra, Londres, Roma, Florença, Nápoles, Paris, Cannes, Alemanha, Bélgica, Suíça, Sicília, Inglaterra, Grécia, Rouen, entre outros), Nísia Floresta escreveu sobre a condição e a vida das mulheres, sobre a educação para meninas e sobre o que via nesses países, denunciando uma sociedade que legitima as desigualdades, lutando por essa causa em uma época em que as mulheres não eram reconhecidas.

Nísia desejou que todas as mulheres fossem cidadãs. Para isso, elas deveriam estudar e a sociedade teria que ser trabalhada para respeitá-la e inseri-la em todos os setores sociais, sem deixar de lado o seu papel de filha, irmã e mãe.

Sofreu influência do positivismo: o pensamento de que educar a mulher é contribuir para a dignidade da família e do mundo traz impregnado o ideário positivista. Impregnada das contradições de seu tempo, educar a mulher significava contribuir para a dignificação da família, da nação e do mundo. A mulher, para Nísia, servia como “o modelo da família” e deveria conservar a dignidade, através da “educação religiosamente cristã” que ela defendeu. A educação “religiosamente moral” iria ajudar as meninas a não se “desviarem”. Fazia apelos aos pais, buscando uma melhor educação para as mulheres.

Escreveu também sobre o Colégio Augusto, sobre o entendimento que tinha a respeito do que deveria ser a mulher e sobre o que o governo estava fazendo em favor do ensino primário das meninas (capítulo XXXVI do Opúsculo Humanitário). Analisou, ainda, o quadro demonstrativo do Estado da Instrução Primária e Secundária das Províncias do Império e Município da Corte, no ano de 1852. Baseando-se nele, afirmou que o número de alunos que frequentavam as aulas era reduzido para a população da época e apontou o seu olhar para o número de meninas: “a estatística dos alunos que frequentaram todas as aulas públicas monta a 55.5000, número tão limitado para a nossa população, e que neste número apenas 8.443 alunas se compreendem” (Nísia Floresta, 1989, p. 81). 

6076586568_6883a6817e_b
Túmulo de Nísia Floresta, na cidade que possui o seu nome. – Fonte – https://www.flickr.com/photos/egbertoaraujo/6076586568

Denunciou o atraso que se encontrava a instrução feminina e nem mesmo as falas presidenciais escaparam ao seu senso crítico. Para ela, as causas que atrapalhavam os progressos na educação eram a falta de interesse e a negligência, por parte do governo da época, o descaso das autoridades que não pensavam nos métodos, não elaboravam as leis e tampouco criavam mais escolas para meninas, ou seja, não se preocupavam com a educação delas.

Além disso, “os encarregados do ensino” eram inaptos e os pais, em muitos casos, não falavam sobre tais problemas. Nísia pesquisou sobre a educação da mulher brasileira. Desejava que a educação da mulher fosse preocupação das autoridades (governo) e do povo brasileiro. Denunciou as casas de instruções que eram dirigidas por pessoas que chegavam de outros países com interesses comerciais, transformando-as em negócio, com raras exceções.

Além disso, fez a crítica ao comércio de escolas, feita por estrangeiros. Criticou os impressos de propagandas da época, que mostravam novidades e ostentação nos colégios que “faziam pretensiosas promessas, contando com a credulidade do público, que era solícito em acolher sem verificar antes” (Floresta, 1989, p. 78).

fachada-01
Museu Nísia Floresta – http://www.conhecendomuseus.com.br/museus/museu-nisia-floresta/

Muitos desses eram comerciantes e artesãos e, para ela, não deveriam ser preceptores da mocidade brasileira. Mesmo apreciando os talentos dos estrangeiros, no que diz respeito à educação, percebia que eram poucos aqueles que poderiam instruir o povo brasileiro e utilizar o próprio conhecimento, ou seja, oferecer instrução e trabalho.

Nísia Floresta escreveu quinze livros, publicados no Brasil e em países da Europa. As obras originais vem assinado com diferentes pseudônimos: Nísia Floresta, Uma brasileira, Telesilla, F. Augusta Brasileira, N. F. Augusta, ou simplesmente B.A eram alguns dos pseudônimos de Dionísia Gonçalves Pinto.

“Quanto mais ignorante é um povo tanto mais fácil é a um governo absoluto exercer sobre ele o seu poder. É partindo desses princípios, tão contrário à marcha progressista da civilização, que a maior parte dos homens se opõe a que se facilite à mulher os meios de cultivar o seu espírito.” 
– Nísia Floresta, em “Opúsculo humanitário”. (1853).. [introdução e notas de Peggy Sharpe-Valadares; posfácio de Constância Lima Duarte]. São Paulo: Cortez Editora, 1989. p. 60.

COMO HITLER PÔDE ACONTECER?

article-2384050-1b214f8b000005dc-309_634x881
Fonte – http://www.dailymail.co.uk/news/article-2384050/Rare-colour-pictures-Hitler-personal-photographer-Hugo-Jaeger.html

O chanceler responsável pelo maior genocídio da história foi eleito democraticamente

Eliminar o país, nada menos que isso, era o objetivo do Exército alemão ao entrar na União Soviética em 1941. Soldados procuravam líderes políticos e autoridades judaicas e os matavam na exata hora e local em que fossem descobertos. A ordem seguinte foi a de levar para campos de concentração e exterminar todos os judeus e comunistas encontrados pela Rússia. Pouco tempo depois, a mesma diretiva passou a valer para todos os judeus da Europa. Milhões deles – principalmente mulheres e crianças – encontraram seu fim em câmaras de gás.

Em linhas gerais, a história de como ocorreu o maior genocídio da história é bastante conhecida. Mas mesmo os estudiosos no assunto gaguejam ao tentar explicar por que Adolf Hitler, o homem por trás de toda essa tragédia, tinha objetivos tão vis e como pôde levar uma nação inteira junto com ele.

Nos últimos dez anos, pesquisadores abordaram o problema de várias formas e trouxeram novas respostas para essa pergunta. Em alguns pontos, destrincharam tudo o que já foi escrito sobre ele nos últimos 60 anos e escolheram os caminhos mais lógicos e prováveis. Em outros, desencavaram novos documentos aos quais até então ninguém havia dado importância. Para completar, começaram a vir a público, a partir da década de 90, informações guardadas confidencialmente nos arquivos das repúblicas do Leste Europeu, da Rússia e dos Estados Unidos. “Agora que essas pastas foram abertas, não acredito que venhamos a encontrar novas coleções de documentos a respeito do governo de Hitler, a não ser por um incrível golpe de sorte”, afirma o historiador Christopher Browning, da Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos. O que você vai ler a seguir é um retrato das teses mais relevantes que emergem da interpretação desse material. Não se espante se considerar que muitas das suas perguntas continuam sem resposta. É bem possível que o terror promovido por Hitler nunca possa ser explicado na totalidade.

fotos-nazistas_04
Hitler saúda as tropas da Legião Condor – que apoiou os nacionalistas espanhóis durante a Guerra Civil Espanhola – após voltarem para a Alemanha em 1939 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

A ORIGEM

Há dois aspectos assustadores que logo vêm à cabeça de quem tenta estudar a origem de Hitler. O primeiro é como alguém que foi um completo fracasso até os 30 anos de idade pode ter ascendido até se tornar um homem com poder para matar milhões e deixar a Europa em ruínas. O segundo é descobrir qual a origem de tanto ódio. “Hitler era obcecado pelo anti-semitismo. A questão é saber por quê”, afirma Browning. A tarefa se torna especialmente complicada porque Hitler eliminou vários dos documentos que poderiam jogar alguma luz sobre o assunto. Segundo William Patrick Hitler – filho do meio-irmão do ditador – seu meio-tio teria lhe dito: “Ninguém deve saber de onde venho”.

A história começa antes mesmo do nascimento de Hitler, com a teoria de que ele próprio poderia ter sangue judeu. Seu avô paterno é desconhecido. Segundo Hans Frank, o advogado do Partido Nazista que investigou a história em 1930, Maria Schicklgruber, avó de Hitler, trabalhava como empregada doméstica na casa de uma família judia na época em que ficou grávida do pai do ditador em 1937.

fotos-nazistas_19
Hitler discursa em Lustgarten, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

A história oficial diz que o avô de Hitler era Johann Georg Hiedler, um dono de moinho com quem Maria se casaria cinco anos depois. Mas Frank teria descoberto um detalhe estranho: os patrões judeus pagaram uma pensão alimentícia à criança até ela completar 14 anos e trocaram cartas com Maria nas quais indicam que o responsável pela gravidez era o filho mais novo da família. Hitler, ao receber o relatório de Frank, teria lhe fornecido outra explicação: seu pai era filho de Georg Hiedler, mas sua avó fez a família judia acreditar que era responsável pela gravidez, só para obter a pensão. Em outras palavras: o líder nazista preferiu acusar sua avó de chantagem sexual a admitir que pudesse ter sangue judeu.

Apesar do alvoroço que a história causou ao vir a público em 1953, não existe nenhum documento que a comprove. É difícil que algum dia ela se confirme: a região da Áustria onde esses fatos teriam ocorrido foi totalmente destruída pela guerra, talvez por ordem do próprio Hitler. “Essa história não comprovada foi usada como pedra angular para explicar a origem do anti-semitismo de Hitler”, afirma o jornalista americano Ron Rosenbaum, autor do livro Para Entender Hitler, uma análise das diversas teorias já feitas sobre o ditador. Muitos propuseram que o ódio contra os judeus fosse a forma de eliminar de dentro de si mesmo a dúvida sobre suas origens, mas essa permanece como apenas uma das muitas possíveis explicações para a obsessão do ditador.

fotos-nazistas_12
Congresso do Partido do Reich, 1937 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Há quem ressalte, por exemplo, o trauma que Hitler teria sofrido aos 18 anos, em 1907, quando Klara, sua mãe, morreu de câncer. O jovem Adolf teria culpado o médico da família, um judeu, e tentado anos depois eliminar o que chamava de “câncer do sionismo”. Outros atribuem o anti-semitismo aos eventos ocorridos meses depois em Viena, quando Hitler foi rejeitado pela Academia de Artes Gráficas. Ele, um aspirante a pintor sem nenhuma instrução formal em arte, teria ficado revoltado contra os judeus que trabalhavam no setor artístico da cidade. Há até a história, defendida pelo caçador de nazistas criminosos de guerra Simon Wiesenthal, de que a demência de Hitler tivesse origem em uma suposta sífilis, contraída de uma prostituta judia durante seus anos na capital austríaca.

Nenhum terreno rendeu tantas explicações para o ódio de Hitler quanto sua sexualidade. Todos os tipos de deturpações e orientações sexuais já foram atribuídos ao Führer – “líder” em alemão – sem que ninguém saiba ao certo qual era o problema. “É raro encontrar um pesquisador de Hitler que não faça do segredo sexual uma variável oculta da psique de Hitler”, afirma Ron Rosenbaum. A acusação mais recente é a de que Hitler foi um homossexual. Muita gente já suspeitava, mas a hipótese só se tornou séria em 2001, com a publicação de O Segredo de Hitler, do historiador alemão Lothar Machtan.

fotos-nazistas_18
Ministro da Propaganda do Reich, Goebbels discursa em Lustgarten, Berlim, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Segundo o livro, Hitler circulava por pontos de encontro de homossexuais em Viena. Anos depois, teria sido visto tendo relações com um de seus colegas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Para Machtan, o ódio contra judeus começou como uma reação aos ataques que a imprensa judaica de Viena deu a um caso de homossexualidade ocorrido na cidade. Hitler, um protetor dos gays? Não. Seu governo, segundo Machtan, manteve a perseguição aos homossexuais que já acontecia na Alemanha, mesmo que o ditador nunca tivesse se pronunciado contra eles.

Antes das revelações de Machtan, as dúvidas quanto à sexualidade de Hitler giravam em torno de um possível caso de monorquidia – a idéia de que ele teria um só testículo. Segundo o relatório da autópsia do corpo carbonizado de Hitler feita pelos soviéticos, havia apenas um desses órgãos entre os restos encontrados. Mesmo que um médico que analisou Hitler quando criança tivesse afirmado que os genitais dele eram normais, não faltou quem tentasse entender as implicações desse suposto problema. Nos anos 60, vários historiadores afirmaram que isso o teria levado à hiperatividade, inadequação social, tendências a exagerar, mentir e fantasiar.

fotos-nazistas_17
Hitler durante discurso na sessão do Reichstag, em Kroll Opera House, Berlim, 1939 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Houve até quem fizesse a conexão com outro mistério: sua relação com a sobrinha Geli Raubal, filha de uma meia-irmã de Hitler (o ditador teve cinco irmãos e dois meios-irmãos). Ela morava no apartamento de Hitler em Munique, onde foi encontrada morta em 1931, enquanto o líder nazista estava viajando. A versão oficial é que ela se matou, mas a causa da morte é objeto de disputa. Há quem diga que foi Hitler quem a assassinou porque ela pretendia fugir com um amante (em algumas versões, judeu). Outros acham que a deformação sexual o tinha afetado de tal maneira que, incapaz de ter relações sexuais normais, ele forçava a sobrinha a uma série de perversões (envolvendo até fezes e práticas masoquistas) que culminaram com o suicídio da moça.

Todas as teorias têm um grande grau de especulação. “As evidências para qualquer psicanálise de Hitler são muito fracas e acho que nunca conseguiremos explicá-lo por essa via”, diz Browning. Mesmo que fosse possível achar a origem de seu anti-semitismo, ela não explicaria como ele conseguiu levar um país inteiro a acompanhá-lo nessa sanha sanguinária. “A questão principal não é a base da obsessão particular de Hitler. O problema é histórico. A fixação de Hitler só se tornou importante porque ele teve uma carreira política”, diz Browning.

fotos-nazistas_20
Hitler discursa em Lustgarten, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

A FORMAÇÃO

O ódio de Hitler contra os judeus, apesar de mais radical que a média, não era nada de novo nem de estranho na Europa daquela época. “Hitler assimilou o clima político da Áustria e começou a culpar vários elementos, particularmente os judeus, pela sua própria frustração. Após ir para a Primeira Guerra, ele começou a achar que poderia ter um papel político”, afirma o historiador Richard Breitman, da Universidade Americana, em Wa-shington, Estados Unidos.

Hitler dizia que os anos passados na Primeira Guerra foram os melhores de sua vida. Em 1914, assim que começaram os conflitos, ele se alistou no Exército alemão e, apesar de trabalhar atrás das trincheiras como mensageiro, conseguiu condecorações por bravura raras para o seu posto. Em 1918, um ataque com gás o levou, parcialmente cego, ao hospital, onde recebeu a notícia de que a guerra havia acabado.

fotos-nazistas_13
Dia do Veterano do Reich, 1939 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Uma revolução havia tomado o país no momento em que o Exército alemão sofria derrotas no campo de batalha. Instaurou-se a República de Weimar – em 1918 – e se assinou um misto de armistício e rendição que impunha duras condições à Alemanha. Para Hitler, foi uma traição. Nesse momento, ele afirma ter tido a visão que o fez seguir carreira na política. Deveria tomar como missão vingar a Alemanha contra a “punhalada nas costas” que tinha tomado dos políticos, muitos deles judeus, que proclamaram a república. “Era uma mentira óbvia, mas uma mentira que Hitler usou como veículo para chegar ao poder”, afirma Rosenbaum.

Ao sair do hospital, ele, então um cabo do Exército alemão, foi mandado para Munique para investigar grupos extremistas. A cidade vivia em um caos, com dezenas de grupos em conflito e uma seqüência de dirigentes sendo assassinados ou depostos. Hitler começou a divulgar seu diagnóstico dos eventos nas cervejarias da cidade e fez uma descoberta, que descreveu no livro Minha Luta, de 1925: “Tive a oportunidade de falar diante de uma grande audiência e o que eu sempre pressenti se confirmava: eu sabia falar”.

fotos-nazistas_10
Hitler no juramento da SS no Congresso do Partido do Reich – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

E sabia mesmo. Filiou-se ao pequeno Partido dos Trabalhadores da Alemanha (que logo mudou de nome para Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas Alemães) e chegou rapidamente ao posto de porta-voz. Em pouco mais de um ano, em 1920, o número de membros do Partido Nazista (abreviação de “nacional-socialista”) passou de cerca de 60 para mais de 2 mil pessoas graças ao impacto de seus discursos (veja quadro na página 70). Kurt Lüdecke, um de seus primeiros admiradores, descreveu em um relato que era como se ele tivesse perdido sua capacidade crítica e estivesse “preso em um feitiço hipnótico”, uma experiência que ele comparava a uma conversão religiosa.

Qual era o conteúdo desses discursos eletrizantes? Aparentemente, nada de novo – um futuro grandioso para a Alemanha, a recuperação econômica, o fim do marxismo e dos judeus. “Para conseguir suporte das massas, foi menos decisiva a doutrina nazista que o estilo de articulação de medos, fobias e expectativas espalhadas pela população. E, quando a questão era representar, Hitler era inigualável”, afirma o historiador inglês Ian Kershaw, da Universidade de Sheffield, Inglaterra. Em meio à crise econômica e ao sentimento de humilhação trazidos pela derrota da Alemanha, grande parte da população já estava disposta a aceitar as idéias de Hitler ou de qualquer outro líder populista de igual calibre. Ao ouvi-lo, a conversão era imediata.

fotos-nazistas_06
Nuremberg, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

A aura que foi se formando em volta do líder nazista lhe permitia ganhar votos mesmo entre o público pouco disposto a aceitar suas idéias. Havia, desde o século 19, a busca quase religiosa por um líder que uniria a Alemanha e a levaria à grandeza. A profecia se fortaleceu após a derrota na guerra, principalmente entre os protestantes, bastante nacionalistas. “Hitler construiu para si a imagem de ser o escolhido, no sentido bíblico da palavra. A insistência dele em um poder e um mistério quase do outro mundo tinha um grande apelo, o que lhe deu a sensação de ser de fato o salvador”, afirma o historiador Fritz Stern, da Universidade de Colúmbia, Estados Unidos. Em seus discursos, não era apenas a sua vontade que o levava a querer reconstruir a Alemanha – seus feitos e sua missão seriam obra da providência divina.

fotos-nazistas_02
Manifestação do Partido Nazista, 1937 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

A ASCENSÃO

Hitler havia se tornado popular, mas para chegar ao poder era preciso muito mais astúcia e, principalmente, sorte. Em meados da década de 20, a situação não era nada boa para os nazistas. O partido tinha se esfacelado depois de uma tentativa frustrada de golpe em 1923, que foi combatida pela polícia e deixou Hitler na prisão por 13 meses. Ao ser libertado, a crise econômica e política tinha se acalmado e as propostas nazistas se tornariam menos atraentes à população. Eles talvez nunca tivessem deixado de ser um partido pequeno se o mundo inteiro não fosse chacoalhado pela crise econômica internacional de 1929. O modo como os nazistas exploraram o colapso financeiro e político que se seguiu permitiu a eles, em 1930, passar de 12 para 107 cadeiras no Parlamento alemão e se tornar o segundo maior partido da casa. Confiante no sucesso eleitoral, Hitler concorreu – e perdeu – ao cargo de presidente em 1932, mas não desistiu de controlar o governo. Meses depois, seu partido ganhou 43,9% dos votos e se tornou a força política majoritária do país.

fotos-nazistas_14
Berlim é acendida à meia-noite para celebrar o 50° aniversário de Adolf Hitler em 1939 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Hitler começou a pressionar o presidente eleito, Paul von Hindemburg, a lhe dar o cargo de chanceler, que lhe permitiria controlar o Poder Executivo. O presidente ignorou o pedido. Frustrado na tentativa de chegar ao poder, o partido começou a sofrer dissidências e obteve um número menor de votos nas eleições realizadas no final de 1932, marcadas depois que o chanceler dissolvera o Parlamento. Foi o momento em que os jornais conservadores começaram a comemorar o fim do Partido Nazista e, curiosamente, foi quando Hitler chegou ao poder. Mais uma vez, ele teve astúcia e sorte para tirar proveito das fraquezas da república.

O Parlamento alemão estava em grande parte dividido entre nazistas e comunistas, uma mistura tão explosiva que poderia facilmente levar a uma guerra civil. Para governar, o Executivo tinha que driblar o Parlamento por meio de “decretos de emergência” e concentrar o máximo de poder em seu gabinete. Os industriais e proprietários rurais, cansados de tanto impasse, havia muito tempo tentavam trocar a república por um governo autoritário.

fotos-nazistas_15
Hitler e Joseph Goebbels no Teatro Charlottenberg, Berlim, 1939 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Os chanceleres, influenciados por essa elite, bem que tentaram acabar com a democracia, mas todos caíram diante de intrigas políticas ou de decisões erradas. Foi quando uma parcela do poder econômico, em especial os ruralistas, começou a achar Hitler uma boa solução. Surgiu então a proposta de dar ao líder nazista o cargo de chanceler, mas em um gabinete composto quase somente por conservadores. Ou seja, queriam fazê-lo de fantoche, aproveitar seu apoio popular para dar base ao governo autoritário que desejavam. Assim, em janeiro de 1933, Hitler assumiu o cargo de chanceler alemão.

Como você deve imaginar, a decisão dos conservadores figura hoje na galeria das maiores idiotices já feitas por um grupo de políticos. Apenas um mês depois de assumir o poder, um incêndio criminoso destruiu o Parlamento e deu a Hitler a chance de consolidar seu poder. Declarando o incidente como sinal de uma revolta comunista, ele ordenou a prisão de milhares de marxistas e opositores políticos e obteve um decreto que suspendia todos os direitos e liberdades individuais no país.

fotos-nazistas_03
Bandeiras nazistas e italianas penduradas juntas na Itália para recepção de Hitler em 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Violência contra opositores não era novidade para ele: o braço armado de seu partido espancava e assassinava inimigos políticos desde a época dos discursos nas cervejarias de Munique, com a conivência dos juízes da região, simpatizantes do movimento nazista. “Hitler desconsiderava nossa noção de moralidade. Para ele, isso era uma construção judaica. Não tinha nenhum escrúpulo e era contra os direitos individuais”, afirma Christopher Browning.

Com dois meses de governo, toda a oposição estava morta, reduzida a organizações clandestinas ou presa em um recém-inaugurado campo de concentração em Dachau. O pouco que restava para consolidar seu poder veio nos anos seguintes: em 1934, com a morte do presidente Hindemburg, ele assumiu controle total sobre o Executivo. Em 1938, utilizou intrigas para afastar os comandantes conservadores do Exército.

5
Funcionários da montadora Volkswagen em cerimônia da pedra fundamental, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Mesmo sem nunca ganhar uma eleição presidencial, Hitler obteve poder absoluto e apoio popular em pouquíssimo tempo. Apesar de matar oponentes em uma escala nunca antes vista na Alemanha, Hitler estava agindo da maneira que muitos alemães esperavam de um dirigente. A classe média, os industriais, os proprietários rurais saíram ilesos de sua ação. E, atacando as minorias, ele conseguiu dar à população a impressão da unidade nacional com que eles tanto sonhavam. “Hitler usou a propaganda de forma espetacular para unificar o país. Havia os inimigos comuns, os judeus e os comunistas, e o alvo, o Tratado de Versalhes, que tinha imposto ao país condições muito desconfortáveis ao final da Primeira Guerra”, diz Stern.

O ESTILO

O novo Führer era vegetariano. Não bebia, não fumava, não tomava café. Seguia rotinas fixas e era aficionado por arquitetura (Veja no final do texto). Não tinha a menor paciência para resolver problemas administrativos. Hitler evitava situações em que tivesse que escolher entre duas opções conflitantes. Limitava-se a aprovar ou reprovar as medidas que chegavam até ele. Aplicava à administração o princípio que dominava toda sua visão de mundo: a ideia de que o mais forte deve vencer. Vários departamentos de seu governo se sobrepunham e os choques entre eles eram constantes. A melhor maneira de fazer um projeto andar em meio às disputas (e de ganhar promoções) era obter a aprovação do Führer. “O estilo de Hitler levava menos a um governo bem dirigido que ao oportunismo e a iniciativas arbitrárias e sem coordenação”, diz Kershaw. A vantagem para Hitler é que sua vontade era cumprida sem que ele se esforçasse ou se envolvesse em disputas que pudessem abalar sua imagem.

fotos-nazistas_01
A Liga das Meninas Alemãs dança no Congresso do Partido do Reich em Nuremberg, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

O governo só funcionava porque havia a disposição de seguir a vontade do Führer. “Por volta de 1939, a maioria da população encontrava algo para admirar em Hitler”, afirma Kershaw. Além da propaganda intensa do regime, a economia alemã sofreu aquecimento durante o novo governo – porque o mundo inteiro já se recuperava da crise de 1929 e também por conta dos crescentes gastos com a indústria bélica. Por fim, a conquista de territórios e o reforço do Exército promovidos por Hitler atraíam a admiração até dos não-partidários do governo.

A ordem internacional permanecia frágil desde 1918. Hitler se aproveitou disso com uma espantosa habilidade para o blefe. “Ele tinha uma sagacidade extraordinária e brutal para explorar a fraqueza dos outros”, diz Stern. Assim como tirou proveito do fim da Primeira Guerra, das fraquezas da República de Weimar e do incêndio no Parlamento alemão para consolidar seu poder, ele agora explorava o impasse entre as potências europeias para quebrar os termos do Tratado de Versalhes. Usando como desculpa o rearmamento promovido pela Inglaterra e pela França, Hitler promoveu alistamento militar para ampliar seu Exército – uma desobediência aos termos do tratado. Um ano depois, invadiu a Renânia, uma região desmilitarizada na fronteira com a França. As demais nações, presas a disputas diplomáticas, não fizeram nenhum protesto.

fotos-nazistas_07
Pessoas saúdam e encorajam plano de Hitler para unir Alemanha e Áustria, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Enquanto isso, assinou tratados de não-agressão com a Polônia e com a União Soviética sabendo que uma hora precisaria rompê-los. Em 1938, Hitler aproveitou crises internas na Áustria e usou seus exércitos para anexá-la ao território alemão. Em março de 1939, fez o mesmo com a Checoslováquia e com regiões da Lituânia. A reação da França e da Inglaterra só veio quando, seis meses depois, ele invadiu a Polônia.

O sonho de Hitler começava a virar realidade. Havia aumentado o território alemão e agora se preparava para aplicar sua política racial. Desde 1935, os judeus estavam proibidos de ter casamentos e relações sexuais com não-judeus, além de terem negada a cidadania alemã. As medidas se tornaram mais drásticas em novembro de 1938. Com a autorização de Hitler, anti-semitas queimaram em uma só noite dezenas de sinagogas, mataram uma centena de judeus e levaram mais de 30 mil pessoas para os campos de concentração.

fotos-nazistas_09
Oficiais nazistas a caminho da cerimônia da pedra angular, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Apesar da violência em enorme escala, Hitler percebeu que esse tipo de ação não era suficiente para eliminá-los da Alemanha. “Mesmo após cinco anos de intensa propaganda anti-semita, a participação popular foi pequena, houve críticas contra a destruição das propriedades e até simpatia pelas vítimas”, diz Richard Levy, autor de vários estudos sobre o anti-semitismo europeu e professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos. A confirmação veio no ano seguinte, com os protestos populares contra o “programa de eutanásia”, uma iniciativa que matou mais de 70 mil doentes mentais e portadores de deficiências. Os dois episódios convenceram Hitler de que ele não poderia contar com a população para aplicar suas políticas raciais. “Ele percebeu que não podia depender das massas para resolver a questão judaica. Quando chegasse o momento, a solução deveria ser encaminhada secretamente e sem a participação popular”, afirma Richard Levy. Esse momento estava chegando.

A QUEDA

A vitória rápida sobre a Polônia e a França, entre 1939 e 1940, estimulou Hitler a tentar seu objetivo final: a invasão da União Soviética. A operação seria diferente das que havia deflagrado até então – dessa vez, era uma “guerra de extermínio”. Segundo Christopher Browning, “a expectativa era que os soviéticos fossem derrotados em duas a quatro semanas. Hitler aprovou a eliminação total e sistemática dos judeus russos”. Browning está no centro do debate sobre quando e por que Hitler decidiu que os judeus deveriam ser exterminados. Ele afirma que a primeira ideia dos nazistas era apenas expulsá-los: mandá-los para a Sibéria, para Madagáscar ou mantê-los em campos de concentração. A decisão de matá-los teria vindo com as vitórias de setembro de 1941 na campanha soviética, quando Hitler se sentiu confiante e percebeu que podia levar a ideia adiante. “Não foi uma hesitação moral. Ele apenas quis garantir que não iria fracassar”, diz Browning.

fotos-nazistas_08
Multidão aguarda início da cerimônia da pedra angular em Fallersleben, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

No outro lado da discussão estão aqueles que acreditam que o extermínio de judeus já estava na cabeça de Hitler muito tempo antes. Para Richard Breitman, o plano teria surgido no início de 1941, antes da invasão soviética. Ele cita um documento do serviço de inteligência britânico de agosto de 1941, que informava que os alemães estariam matando todos os judeus que caíssem em suas mãos – uma evidência não só de que o extermínio pode ter começado antes da data proposta por Browning como de que os aliados sabiam do genocídio desde o início, mas nada fizeram a respeito.

Tanto Breitman quanto Browning afirmaram à Super que, apesar de ainda discordarem em relação às datas, boa parte dessa discussão está sendo superada. “Nunca teremos evidência suficiente para precisar quando os nazistas decidiram pela ‘solução final’ – o extermínio total dos judeus”, afirma Breitman. Existem vários pontos em que eles parecem chegar a um consenso. Um deles é que não coube a Hitler decidir os detalhes. O líder nazista nunca foi a um campo de concentração, não viu os judeus serem mortos e, para alguns, talvez nem tenha dado uma ordem direta para que o holocausto começasse.

fotos-nazistas_16
Multidão aguarda início da cerimônia da pedra angular em Fallersleben, 1938 – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Ninguém nega, no entanto, que ele foi uma figura-chave no genocídio. Coube a ele expressar o desejo de ver o fim dos judeus e autorizar seus subordinados a começar a matança. A partir daí, eles formaram pequenos batalhões voltados para o extermínio, que foram se juntando e ganhando força de acordo com o que julgavam ser a vontade do Führer. O resultado foi uma terrível indústria da morte com vários escalões hierárquicos. O comando cabia aos nazistas convictos. Abaixo deles, profissionais, técnicos e burocratas que emprestavam seu conhecimento ao genocídio. Por último estavam pessoas comuns, recrutadas aleatoriamente, que se viam obrigadas a matar. “Foi uma novidade, um Estado moderno e industrializado usando seus recursos organizacionais e tecnológicos para eliminar inteiramente um povo”, afirma Breitman. O plano deu horrivelmente certo. “Eles tiveram contratempos e precisaram improvisar, porque esse tipo de coisa nunca havia sido feito antes. É terrível pensar que o número de vítimas poderia ser muito maior se tudo desse certo para eles. Mas, no geral, o plano funcionou melhor do que esperavam”, diz Breitman.

hitler-during-the-parade-celebrating-the-legion-condor-on-its-return-from-spain
Hitler durante o desfile comemorando o retorno da Legião Condor da Espanha. À direita está Julius Schaub – Fonte – http://thirdreichcolorpictures.blogspot.com.br/2011/09/legion-condor-in-color.html

Como conseguiram transformar tantas pessoas em assassinos frios? Não existe ainda uma resposta satisfatória para a questão. Um fato surpreendente revelado pelos arquivos soviéticos é que a maior parte da matança no país foi feita por agricultores locais. Em alguns grupos de extermínio, havia dez pessoas de outras etnias para cada alemão. “Os nazistas se aproveitaram de rivalidades internas em várias regiões. O cenário agora é muito mais complexo: precisamos estudar a história das relações entre ucranianos, poloneses, judeus e alemães em cada lugar para entender quais eram os interesses desses grupos”, diz Browning.

No final de 1941, ficou claro que a guerra na Rússia não podia ser ganha. Foi quando a ambição de Hitler tornou-se mais evidente: ele dispensou os generais e assumiu o controle da guerra, recusou-se a recuar ou adotar uma postura defensiva e perdeu divisões inteiras em ataques desesperados. À medida que os exércitos aliados começaram a se aproximar de Berlim, ele ordenou que as cidades alemãs fossem destruídas para não serem utilizadas pelos inimigos. Os estudos recentes indicam que, nessa época, Hitler começava a apresentar sinais de mal de Parkinson, mas continuava a governar como antes. Segundo escreveu Albert Speer, arquiteto e ministro da produção e armamento de Hitler, o ditador tentou acabar com as chances da Alemanha de sobreviver a ele. O povo alemão, aos seus olhos, teria merecido a destruição, uma vez que não foi forte o suficiente para derrotar o inimigo soviético.

june-04-1939
4 de junho de 1939 – Fonte – http://www.warrelics.eu/forum/ss-uniforms-insignia/black-uniforms-period-photos-color-4831/

A autoridade de Hitler permaneceu absoluta até o momento em que ele se matou, em 1945, aos 56 anos. Por mais irracionais que fossem as suas ordens, sempre houve alguém disposto a cumpri-las. Boas explicações para esse fenômeno estão na centralização do governo em sua figura e no assassinato daqueles que tentaram se opor. Mas mesmo essas razões não explicam a devoção que muitos alemães tiveram pelo Führer. “Hitler deve ter tido um efeito carismático estonteante em algumas pessoas”, diz Fritz Stern. “Eu não sei explicar. Não sei quanto disso é de seu magnetismo pessoal, quanto é da atração das massas pelo poder e quanto é do mito que se erigiu à sua volta, do personagem obscuro e fracassado que chegou ao topo do poder.”

“Não há nada que permaneça como um legado positivo dos anos de Hitler no poder”, diz Kershaw. Apesar de ter estimulado as artes, as iniciativas foram para impor a sua noção particular de beleza, que desestimulava qualquer inovação. Seu estilo de administração não serviu de modelo para ninguém. A economia era predatória por natureza, inflada pelos gastos da guerra e dependente em grande parte do trabalho de escravos obtidos nos territórios conquistados. Seu único legado talvez seja a lição do que não deve ser feito. “Acho que a Alemanha está imunizada contra um novo Hitler. Mas a lição é bastante instrutiva para muitos países democráticos em que os movimentos de direita podem querer assumir uma forma mais autoritária, ainda que com apoio popular e econômico”, diz Stern.

1939-a
Fonte – http://www.warrelics.eu/forum/ss-uniforms-insignia/black-uniforms-period-photos-color-4831/

Existem várias explicações para cada detalhe da vida de Hitler e os livros que são lançados quase todo dia sobre o assunto mostram que muitas outras teorias surgirão nos próximos anos. Permanece, no entanto, a questão: Hitler pode mesmo ser explicado? Há quem diga que não devemos fazê-lo porque isso diminuiria a culpa de Hitler. Achar um motivo colocaria a responsabilidade do holocausto em qualquer outro fator – seja ele os ancestrais do ditador, o anti-semitismo de Viena ou a desestruturação do povo alemão na época. Há também aqueles que acreditam que entender Hitler é impossível: alguns dos principais documentos e testemunhas foram perdidos para sempre e, além disso, talvez não tenhamos a capacidade de compreender a dimensão das suas motivações hediondas. Finalmente, existem aqueles que, apesar do perigo e da dificuldade de explicar o holocausto, fazem o possível para torná-lo compreensível. “Temos que ter a esperança de que podemos aprender com isso”, diz o historiador Fritz Stern, um judeu alemão que foi com 12 anos para os Estados Unidos para fugir do nazismo. “É difícil intelectual e emocionalmente, mas é absolutamente necessário. A emoção também é o que nos faz persistir para encontrar essas explicações”.


SAIBA MAIS

Adolf, o artista

A obsessão do Führer por suas obras

Um orador que se contorcia no palco, cercado de bandeiras gigantescas, músicas e enormes batalhões com movimentos coreografados – basta ver os comícios de Hitler para perceber que havia ali algo mais do que simples política. Não é à toa que o arquiteto nazista Albert Speer, a pessoa mais próxima de Hitler durante seus anos no poder, tenha afirmado que, para entender o Führer, era preciso perceber que ele se via, acima de tudo, como um artista. O costume vinha do berço: Hitler estudou piano e canto quando criança e, aos 18 anos, tentou ingressar na Academia de Artes Gráficas de Viena, Áustria.

Foi recusado duas vezes – segundo os críticos, seus trabalhos não tinham vida nem originalidade. Mesmo assim, sobreviveu por seis anos vendendo na rua suas pinturas, que continuou a fazer mesmo nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

Rejeitado pela academia, resolveu aplicar seu estilo na política. Tomou como símbolo do movimento a cruz suástica – um dos sinais mais fortes e antigos da humanidade, utilizado por centenas de etnias ao redor do mundo. Participou do desenho dos uniformes, insígnias, bandeiras e prédios nazistas. Talvez o único assunto que o obcecasse mais que o ódio aos judeus fosse a arquitetura – e nesse ponto seu estilo era muito particular. Considerava as artes modernas “degeneradas” e tentava retomar a grandiosidade que via nos estilos clássicos, com edifícios tão grandiosos quanto as pirâmides egípcias. Seus prédios deveriam demonstrar a superioridade que atribuía ao povo alemão. Um auditório para seus discursos abrigaria 17 vezes mais pessoas que a Basílica de São Pedro, em Roma. Projetou também um Arco do Triunfo 70 metros mais alto que o de Paris. Caberia a esses edifícios manter viva a imagem de Hitler: os materiais usados deveriam, milênios depois, deixar ruínas tão impressionantes quanto as romanas. Nenhuma dessas obras monumentais saiu do papel, o que, para muitos, é um sinal de que a verdadeira arte de Hitler não estava na construção, mas sim na destruição.

Passos para a tragédia

A trajetória de Hitler, da infância à destruição da Europa

1889 – Adolf Hitler nasce na pequena cidade de Braunau am Inn, na Áustria. Seu fraco desempenho escolar o faz abandonar o colégio com 16 anos e seguir pouco depois para Viena com o intuito de estudar pintura

1914 – O início da Primeira Guerra Mundial o impele a se alistar na infantaria alemã. Mesmo condecorado duas vezes por bravura, é tido como inapto para promoção por não demonstrar liderança. Acaba no hospital depois de sofrer um ataque com gás

1918 – Ainda no Exército, recebe a missão de vigiar grupos extremistas em Munique e acaba se tornando o 55º integrante de um deles. Seus discursos fazem com que, cinco anos depois, o movimento passe a reunir 55 mil membros

1923 – Proclama sem sucesso uma revolução contra o governo e acaba na prisão, onde escreve seu livro Minha Luta. Cumpre apenas dez meses de reclusão e reorganiza o partido, que nove anos depois se torna o maior do Parlamento

1932 – Hitler concorre à presidência, é derrotado por Paul von Hindemburg e começa a perder força política. Mas, dez meses depois, manobras nos bastidores forçam Hindemburg a dar a ele o controle do governo, no cargo de chanceler

1933 – Um atentado incendeia o prédio do Parlamento. Hitler aproveita a oportunidade para suspender direitos civis e prender inimigos políticos. Nos meses seguintes, ganha o direito de promulgar leis e fecha todos os partidos e organizações não-nazistas

1934 – Hindemburg morre, Hitler assume também o cargo de presidente e consolida de vez seu poder. Aproveita o impasse nas relações internacionais para armar seu Exército, reocupar territórios perdidos durante a Primeira Guerra Mundial e anexar a Áustria

1939 – Depois de invadir a Tchecoslováquia, Hitler avança sobre a Polônia e dá início à Segunda Guerra Mundial. Menos de dez meses depois, França, Holanda, Noruega, Dinamarca, Bélgica e Luxemburgo já estão sob domínio alemão

1941 – Hitler ordena o assassinato em massa de judeus e invade a Rússia. O fracasso desse ataque abre espaço para a contra-ofensiva soviética e para que britânicos, americanos e seus aliados comecem a retomar os territórios ocupados

1945 – Mesmo acuado, Hitler se recusa a colocar seu Exército na defensiva, tenta ataques desesperados e perde cada vez mais territórios. Com os russos nas redondezas de Berlim, suicida-se e ordena que seu corpo seja incinerado

Filosofia do ódio

Os pensamentos que levaram ao genocídio

1 – A história é uma disputa entre raças, na qual as mais fortes tendem a derrotar as mais fracas. Assim como na evolução das espécies, apenas as raças mais “aptas” sobrevivem.

2 – As grandes civilizações da história desapareceram porque deixaram que seu sangue se misturasse ao de outras raças. A miscigenação é a causa da decadência das culturas.

3 – Judeus são a mais inferior das raças, mas com um incrível instinto de autopreservação. São como parasitas: usam o poder do dinheiro e do capital internacional para se espalhar pelo mundo, infectar e destruir as raças puras.

4 – O marxismo é uma estratégia judaica para dominar o mundo. Com ele, os judeus destruíram a Rússia e pretendem “infectar” outros povos, causando sua destruição. Cabe aos arianos, a raça mais superior, eliminar essa ameaça.

5 – Para se desenvolver, os alemães precisam de um grande território. As outras raças da Europa devem ser eliminadas para que os arianos possam prosperar sem risco de miscigenação.

6 – O Estado deve empreender essas missões, mas não de forma democrática. É preciso um líder genial, moldado para essa tarefa, que leve os alemães à expansão e à luta contra os judeus.

O poder da palavra

Um dos principais fatores para a ascensão de Hitler era a paixão de seus discursos, capaz de levar ouvintes às lágrimas. Uma amostra de sua retórica, de sua capacidade de sofismar, de costurar uma argumentação capciosa a fim de fortalecer seus pontos está no trecho abaixo, retirado de um pronunciamento de 1927, feito em Nuremberg.

Se alguém o chamar de imperialista, pergunte a ele: Você não quer ser um? Se disser que não, então nunca poderá ser pai, porque aquele que tem um filho precisa se preocupar com o pão de cada dia. Mas, se você fornece o pão de cada dia, então é um imperialista. O nosso objetivo deve ser formar uma semente que irá crescer constantemente, ganhando energia e força para o grande objetivo. Àquele a quem os céus deram a grandeza de decidir, eles também deram o direito de dominar.

 

CIÊNCIAS MAIS OU MENOS EXATAS

gettyimages-531012072

Ao longo da história, muitas vezes supostas descobertas científicas foram usadas para justificar fenômenos como o racismo, o machismo e o antissemitismo. Mas o que fazer quando o trabalho de teóricos e pesquisadores é influenciado pelas crenças e pelos valores deles próprios? 

Autora – Gabriela Loureiro

Fonte – http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2016/10/ciencias-mais-ou-menos-exatas.html 

Victor Frankenstein foi um jovem suíço que tinha algum conhecimento em alquimia e se dedicou aos estudos de ciências naturais na Alemanha. Traumatizado pela morte da mãe, passou a estudar febrilmente o segredo da geração da vida para tentar trazê-la de volta e não descansou até chegar muito perto — perto demais, na verdade.

Completamente absorvido em sua tentativa de solucionar o mistério da vida, ele ignorou família e professores e se isolou durante dois anos, criando um monstro que o perseguiu até o fim de sua vida e que poderia muito bem ter destruído a humanidade inteirinha se quisesse.

Tudo bem, essa é apenas a história de Frankenstein, o primeiro romance de ficção científica do mundo, escrito pela britânica Mary Shelley no início do século 19. Mas o clássico do terror contém uma lição importante: quando a ciência é feita em negação dos medos e crenças do cientista e ignorando questões éticas, o resultado pode ser devastador.

A obra de Shelley levanta uma série de questões: por que os cientistas fazem o que fazem? É possível fazer melhor? Qual é a responsabilidade do cientista em relação ao seu trabalho?

gettyimages-527669766

Para entender o que a ética tem a ver com a ciência é preciso levar em conta ao menos duas questões: intenção e previsibilidade. Por exemplo, se por algum motivo você quiser colocar em prática as Leis de Newton e soltar uma pedra do alto de um edifício e essa pedra cair na cabeça de um transeunte inocente, de nada importa se você tinha ou não a intenção de matá-lo — se você não levou em consideração que esse risco existia, a responsabilidade é toda sua.

E o mesmo vale para outros experimentos bem mais complexos. “Seria muito mais fácil para os cientistas — e para todos nós, porque isso se aplica a todos — se não precisássemos nos preocupar com a maneira pela qual alguém pode usar o nosso trabalho para fins perversos. Não importa que minhas intenções sejam boas; se eu posso prever que o que estou fazendo pode machucar alguém, tenho que pensar nisso também”, diz Heather Douglas, professora e chefe da Comissão de Ciência e Sociedade da Universidade de Waterloo, no Canadá.

Hoje, o trabalho de Douglas é entender como a ciência deve funcionar em uma democracia para evitar tanto uma tecnocracia em que os cientistas ditem à sociedade como viver quanto uma ditadura em que a ciência seja censurada e perseguida politicamente.

“Temos que pensar em como ciência e democracia interagem em diferentes momentos, como você define o que é ciência, como você faz a ciência ser democraticamente responsável pelos seus resultados, como você quer que a ciência esteja presente na política”, afirma Douglas.

gettyimages-527667426

“Você não assume que as pesquisas dos cientistas sejam neutras e livres de valores pessoais, mas você também dá a eles espaço para tomar as próprias decisões e manter sua integridade”. Na verdade, há uma área de pesquisa voltada exclusivamente à reflexão sobre a natureza, sobre a prática e o papel da ciência na sociedade: a filosofia da ciência, que consiste em explorar as formas pelas quais a ciência e a sociedade transformam uma à outra reciprocamente, ou seja, entender as implicações das práticas culturais e sociais sobre a ciência e vice-versa.

A ILUSÃO DA NEUTRALIDADE

A ideia de que cientistas são robôs evoluídos que não infligem seus valores pessoais ao seu trabalho, que é feito em ambientes absolutamente fechados e isolados não apenas de ondas eletromagnéticas, mas também de preconceitos e emoções humanas, já está ultrapassada há um bom tempo.

Uma das principais vozes que expandiram a crítica à falsa ideia de neutralidade nas ciências é Donna Haraway, filósofa e professora emérita da Universidade da Califórnia. De acordo com ela, a ciência é também uma prática cultural que pode ser interpretada criticamente inclusive questionando o posicionamento de quem realiza a pesquisa e ainda onde ela é desenvolvida — os chamados conhecimentos situados. Em outras palavras, é preciso avaliar as condições que influenciam certas descobertas científicas.

Há vários exemplos dessa influência nos casos de racismo científico. Um dos mais clássicos é o estudo Crania Americana, de 1839, no qual o médico e cientista norte-americano Samuel Morton defende que é possível determinar características da personalidade das pessoas com base no formato do crânio.

MEU GENE, MINHA VIDA

Para Donna Haraway, a humanidade experimenta hoje uma espécie de fetichismo em relação à genética. Existe uma crença bem disseminada de que os genes seriam capazes de determinar completamente quem somos, por que vivemos como vivemos e quais são as diferenças entre grupos distintos de pessoas.

gettyimages-530754282

Segundo ela, há uma necessidade na tecnociência de negar medos, desejos e valores, uma tradição antiga que obedece à lógica cartesiana que separa razão e emoção e favorece a primeira em detrimento da segunda. De fato, os estereótipos de gênero que consideram as mulheres mais frágeis e instáveis do que os homens privaram as mulheres de muitos direitos hoje considerados banais em sociedades democráticas.

Em 1876, o médico Edward Clarke, da Faculdade de Medicina de Harvard, publicou um livro no qual afirmou que a menstruação tornava as mulheres inaptas à educação superior. Segundo a teoria dele, a soma de energia de um corpo é constante e, se uma mulher gastasse energia demais estudando, ela teria que transferir energia de seus órgãos reprodutores para o cérebro e se tornaria infértil.

Por esses e outros motivos, é preciso bater na tecla da ciência ética. Para Martin Savransky, professor de Sociologia da Universidade de Goldsmiths (Londres) e autor do livro The Adventure of Relevance: An Ethics of Social Inquiry (“A Aventura da Relevância: Ética da Investigação Social”, em tradução livre), o problema é que ética e política são vistas como assuntos completamente separados do saber e, quando são observadas como temas “cruzados”, geralmente é em forma de denúncia, por quem aponta o dedo para mostrar que não há objetividade na ciência.

gettyimages-530755210

“Esse argumento de ‘ou isto ou aquilo’, como se o conhecimento fosse ou científico ou político, é o que dificulta uma conversa construtiva e civilizada sobre as políticas da produção de conhecimento. Dizer que a produção de conhecimento é política não é dizer que não é científica. Pelo contrário: significa que, até na ciência — especialmente na ciência —, produzir conhecimento relevante envolve riscos e preocupações”, diz Savransky.

Por um lado, as atrocidades cometidas em nome da ciência nos últimos 300 anos demandaram o desenvolvimento da filosofia da ciência, mas por outro, a separação entre política e ciência transformou esse questionamento ético em um organismo regulador da moralidade dos estudos e não em algo inerente e constitutivo da investigação científica. “A ética é apresentada como mera questão de julgamento — os cientistas não precisam estar particularmente interessados nela, mas precisam demonstrar que estão de acordo com as regras”, explica. Em 2018, o romance Frankenstein completa 200 anos, tempo que, aparentemente, foi insuficiente para que aprendêssemos sua principal lição.

NÓS X ELES

A ideia de que uma raça poderia ser superior a outra remonta à antiguidade greco-romana como forma de diminuir os povos com os quais diferentes exércitos se confrontavam, mas ela só ganhou um selinho de “comprovação científica” no século 18, quando o biólogo sueco Carlos Lineu separou os organismos em três reinos, inventou os conceitos de gênero e espécies e dividiu os seres humanos em quatro categorias, chamadas de raças. As categorias de Lineu foram muito além da biologia e serviram de defesa para uma série de genocídios, como a escravidão, o holocausto e o apartheid sul-africano.

gettyimages-529980980

MOVIDAS A ESTROGÊNIO

Durante boa parte do século 20, acreditava-se que as diferenças entre os gêneros poderiam ser explicadas por hormônios. Portanto, mulheres eram mulheres por causa do estrogênio. Como a capacidade de gerar filhos era o centro da vida de uma mulher na época e o estrogênio era considerado a base da feminilidade, durante três décadas, entre 1940 e 1970, os médicos nos Estados Unidos prescreviam um estrogênio sintético chamado dietilstilbestrol (DES) para mulheres que queriam engravidar, mas sofriam abortos espontâneos.

O DES havia sido criado em laboratório pouco antes, em 1938, e já nos anos 1950 pesquisas com animais indicaram que ele não era eficaz. Mesmo assim, continuou sendo receitado pelos médicos por mais 18 anos, e algo em torno de 5 e 10 milhões de mulheres grávidas e suas filhas foram submetidas ao hormônio até que uma pesquisa publicada em 1971 comprovou que o DES era a causa de um câncer vaginal raro em meninas e mulheres expostas ao estrogênio ainda no útero da mãe. Muitas mulheres morreram, e foi feita uma campanha nacional para impedir a receita do DES.

SEXUALIDADE E IDENTIDADE

A homossexualidade passou a ser estudada pela ciência no século 19 como uma preocupação com o processo de urbanização especialmente nas grandes cidades europeias, já que o que era considerado pecado pelo cristianismo passou a ficar mais evidente. Naquele tempo, a homossexualidade era vista como “atividade sexual não natural” com status de doença contagiosa que “drenava fluidos corporais vitais”.

A ciência da época reproduziu a crença e passou a considerar a homossexualidade uma doença psiquiátrica (o “homossexualismo”), e isso só mudou em 1973, depois de muita pressão do movimento gay e por causa da total falta de dados empíricos para manter o status de doença. Por outro lado, a transexualidade continua sendo vista como um transtorno e não uma identidade de gênero, e as pessoas trans ainda são obrigadas a lidar com o estigma de loucura ou degeneração sexual.

pato_flickr

NO MUNDO ANIMAL

Muitas vezes os conceitos políticos sobre comportamento humano extrapolam espécies e os cientistas reproduzem ideias preconcebidas sobre os gêneros também no reino animal. Por um longo tempo, biólogos tentaram entender o ritual de acasalamento dos patos, que costuma ser bastante violento em algumas espécies, com machos forçando penetração nas fêmeas.

Impressionados com o tamanho do pênis do macho, que pode chegar a 40 cm, com sua forma de parafuso e com o fato de que o pênis definha ao final de uma estação de reprodução e cresce de novo na próxima, o foco sempre esteve no comportamento do macho. Foi comprovado que o tamanho depende da competitividade no local: quanto mais machos para competir, maior o pênis.

Mas isso é irrelevante no processo reprodutivo, porque as fêmeas não só também possuem longa vagina em formato de saca-rolhas no sentido contrário ao do pênis como ainda têm uma cavidade que joga fora o esperma do macho se elas não quiserem reproduzir com eles, basta contrair músculos internos. E, na verdade, apenas 3% das copulações forçadas resultam fertilização, o que comprova que são as fêmeas que decidem se vão reproduzir ou não. Ou seja, a resposta estava o tempo todo no sistema reprodutivo das fêmeas.

A FÁBRICA DE FILHOTES NAZISTAS

www-deviantart-14
Fonte – http://www.deviantart

Hitler recrutou crianças e adolescentes alemães para doutriná-los. Um livro analisa os crimes de guerra que eles cometeram e como foram precursores das crianças-soldado

A juventude sob Hitler não podia ser boa. De 1933 a 1945, os jovens alemães foram incorporados em massa à trituradora ideológica e militar do nazismo e muitos se tornaram autores dos crimes do regime.

A cumplicidade genérica da juventude da Alemanha com seu Führer é indiscutível, mas também é verdade que esses meninos e meninas que ofereceram sua alma ao perverso ditador, seduzidos ou forçados, foram de alguma forma, e em maior ou menor grau, dependendo do caso, vítimas. Doutrinados até o indizível, coagidos, intimidados, despojados de sua infância e adolescência, arrancados de suas casas e escolas, muitas vezes entregues pelos próprios pais ao ogro da suástica, os jovens alemães foram usados pelos nazistas, que os tornaram sujeitos de um experimento social atroz, reservatório de suas ideias abomináveis e, em última instância, bucha de canhão para sua guerra com o mundo.

www-deviantart-17
Fonte – http://www.deviantart

A principal ferramenta usada pelos nazistas para se apropriar dos jovens alemães e unificá-los em seu credo foi a Juventude Hitlerista (JH), que recebeu o nome em 1926 a partir de formações anteriores, inicialmente ligada às SA (unidades de choque do partido nazista).

Na Juventude Hitlerista serviram 9 de cada 10 jovens alemães. De tipo paramilitar (com belos uniformes – de cor negra e mostarda – e insígnias próprias), era destinada a meninos com idades entre 14 e 18 anos. Para os menores, de 10 a 14 anos, havia um ramo infantil, o Deutsches Jungvolk (DJ), que desembocava naturalmente na Juventude Hitlerista e cujos membros eram chamados de pimpfe. Quanto às meninas, existia a seção feminina da Juventude Hitlerista, a Liga das Meninas Alemãs, com seu próprio ramo para as meninas. Todas usavam saia azul-marinho e uma camisa branca, muito à la mode, de acordo com o gosto nazista, e usavam tranças ou coques.

Uma das meninas mais famosas egressas da Juventude Hitlerista foi Irma Grese, a Bela Besta, a terrível guardiã de campos como Ravensbrück, Auschwitz e Bergen-Belsen.

www-deviantart-16
Fonte – http://www.deviantart

A Juventude Hitlerista tornou-se a única organização juvenil da Alemanha a partir de 1936, quando foram proibidas todas as outras. A filiação passou a ser obrigatória por lei em 1939 para todos os adolescentes com idade entre 10 e 18 anos. Da Juventude Hitlerista, que passou de 100.000 membros quando Hitler chegou ao poder (1933) para dois milhões no fim de 1933 e 5,4 milhões em dezembro de 1936, se saía para ingressar no partido (nazista), na Frente Alemã do Trabalho, nas tropas de assalto ou na SS (principal organização militar, policial e de segurança do Reich), ou no serviço da Waffen-SS (corpo de combate de elite da SS) e na Wehrmacht (Exército).

No início de 1939, 98,1% dos jovens alemães pertenciam à Juventude Hitlerista. Entre os que escaparam de suas garras, com grande risco, porque havia pesadas sanções (recorria-se a Heinrich Himmler e sua polícia e à SS para fazer cumprir o serviço), figurava aquele que depois seria escritor e prêmio Nobel de Literatura, Heinrich Böll, com 16 anos em 1933. No entanto, outro autor e também prêmio Nobel, Günter Grass, fez um percurso clássico completo: pimpfe aos 10 anos, auxiliar antiaéreo aos 15 e artilheiro de carro de combate da Waffen-SS aos 17.

www-deviantart-6
Fonte – http://www.deviantart

Nosso olhar se dirige a esses jovens frequentemente com uma perturbadora ambivalência. Ficamos espantados e indignados com imagens de jovens multidões ruidosas e entusiasmadas diante do líder, alinhadas em ordem militar, desfilando com arrebatamento marcial, cantando com endemoniada pureza diabólica (como na icônica e impressionante cena de Tomorrow Belongs To Me, do filme Cabaret); os mais fanáticos, incorporados ao combate nas divisões mecanizadas de elite ou na luta política e racial: a juventude que queima livros, persegue e maltratada –e até assassina –os opositores e os judeus nas ruas (ou nos campos de concentração), denuncia seus próprios vizinhos e até mesmo seus pais para a Gestapo.

a-15-years-old-german-luftwaffe-anti-aircraft-crew-member-crying-after-being-taken-prisoner-by-american-forces2
Fonte – http://ww2images.blogspot.com.br/2013/04/15-year-old-german-soldier-cries-after.html

Tudo isso indica que este foi um conflito intergeracional. A outra face é a da foto (que foi capa da Life) do soldado de 15 anos, enfiado num casaco muito grande, chorando como o que é, um menino, depois de sua captura em 1945 pelos norte-americanos.

Ou a dos 20 soldadinhos condecorados com a Cruz de Ferro, um deles um “pequeno herói” (como foi batizado pela propaganda) de 12 anos, recebidos no bunker da chancelaria do Reich no dia 19 de março de 1945 por um Hitler já espectral, mas ainda capaz de enviá-los para a morte mais absurda e inútil diante dos tanques russos depois de lhes dar um beliscão na bochecha. “Não voltarão a ser livres pelo resto de suas vidas”, profetizara em 1938 o grande flautista de Hamelin da Alemanha.

O historiador nascido na Alemanha, mas naturalizado canadense Michael H. Kater (Zittau, 1937), um especialista na cultura do Terceiro Reich, doutor em História e Sociologia pela Universidade de Heidelberg e professor da Universidade de York (Toronto, Canadá) acaba de publicar um livro imprescindível sobre a Juventude Hitlerista, organização sobre a qual girou especialmente o esforço dos nazistas para se aproveitar dessa geração alemã.

51jxbtdy8l-_sx331_bo1204203200_
Fonte – https://www.amazon.com/Hitler-Youth-Michael-H-Kater/dp/0674019911

Hitler Youth (Juventude Hitleriana) é uma obra tão exaustiva quanto apaixonante e comovente que combina a investigação científica com o relato humano – explica que os acampamentos da Juventude Hitlerista, onde proliferava o sadismo, eram um mau lugar para molhar a cama. E instala em seu centro uma profunda reflexão moral.

“As organizações juvenis, como as Wandervögel, existiam na Alemanha desde a era guilhermina e o início do século”, diz Kater, “elas se voltaram mais para a direita, de acordo com o espectro político geral; na última metade da República de Weimar (1925-1932), quando Hitler estava em alta, membros de grupos de juventude nacionalista simpatizavam secreta ou abertamente com o NSDAP, o partido nazista, embora menos do que com a Juventude Hitlerista, que teve um início fraco e tardio. À medida que os padrões democráticos foram derrubados, uma estrutura com um Führer passou a ser aceitável entre a juventude alemã, e isso facilitou para que todos os grupos juvenis fossem incorporados à Juventude Hitlerista. Isso aconteceu em etapas. Aqueles que resistiram foram forçados a fazê-lo em 1935”. Uma das chaves do sucesso da Juventude Hitlerista é que ela se apresentava como excitante, moderna e progressista.

www-deviantart-11
Fonte – http://www.deviantart

Que conceito Hitler tinha da juventude? “No começo, realmente nenhum”, responde o historiador. “Não estava interessado nos jovens porque não podiam votar. Eventualmente Hitler se convenceu de que criar jovens seguidores não era uma má ideia: um movimento milenar deveria ter uma retaguarda”.

Ante a imagem do jovem soldado da Life e a de dois meninos do bunker de Hitler, Michael H. Kater deixa claro seus sentimentos: “Pessoalmente sinto uma imensa compaixão por eles. Para mim, nesse tempo, eram obviamente meninos inocentes que tinham sido explorados por políticos fascistas criminosos”.

www-deviantart-15
Fonte – http://www.deviantart

Com a guerra, recorreu-se aos membros da Juventude Hitlerista para ajudarem após os bombardeios das cidades alemãs, o que obrigou meninos de 12, 13 e 14 anos a terem experiências espantosas, desenterrando famílias inteiras carbonizadas. Pior ainda foi o recrutamento para as defesas antiaéreas, em que 200.000 meninos e meninas da Juventude Hitlerista prestaram serviço como pessoal auxiliar de artilharia (Flakhelfer). Saiam das escolas diretamente aos canhões, e muitos sofriam crises nervosas devido ao medo.

Junto a isso, afirma Kater, está o fato de que o doutrinamento da Juventude Hitleriana desempenhou um importante papel nos crimes de guerra da Wehrmacht e das SS, quando esses jovens ingressaram em suas fileiras convertidos em soldados políticos. “É possível identificar dois importantes ingredientes da formação ideológica da Juventude Hitlerista que os jovens transferiram para a Wehrmacht e as SS: um é a crença de que a Alemanha deveria dominar outras partes do mundo, e o outro, a hierarquia racial, que colocava os alemães arianos no cume e os judeus na parte mais baixa”. Um hábito sinistro dos jovens recrutas provenientes da Juventude Hitlerista era o “turismo de execução”: assistir aos assassinatos coletivos de judeus sobre o terreno.

www-deviantart-8
Fonte – http://www.deviantart

A Juventude Hitlerista foi realmente útil militarmente?

Kater responde que foi fundamental para que os nazistas pudessem colocar tantas forças no campo de batalha. “Tinham recebido treinamento paramilitar, inclusive antes de março de 1935, quando se introduziu o recrutamento geral, e de setembro de 1939 (início da II Guerra Mundial). É preciso lembrar que o selo distintivo da socialização da Juventude Hitlerista foi a militarização, com os acampamentos, as marchas e os jogos de guerra”. A Juventude Hitlerista, inclusive, tinha áreas especializadas como a naval, a equestre e a de pilotos de planadores, cujos integrantes eram cobiçados por Hermann Göering. “Ao passar a fazer parte das forças regulares da Wehrmacht ou das SS, os jovens da Juventude Hitlerista se misturavam facilmente em suas fileiras e reforçavam sua agressividade”.

www-deviantart-4
Fonte – http://www.deviantart

 

Houve inclusive uma divisão de elite vinculada à Juventude Hitlerista, a 12ª Divisão Panzer Hitlerjugend, formada em 1943 com 16.000 membros da Juventude Hitlerista nascidos em 1926. “Eram combatentes nazistas particularmente fanáticos, tendo sido socializados sem problemas desde os campos da Juventude Hitlerista até as casernas das SS”. A Juventude Hitlerista cometeu crimes de guerra. Também houve membros da organização no supervalorizado Werwolf, a guerrilha nazista que enfrentou a ocupação aliada.

O historiador concorda que os meninos da Juventude Hitlerista com bazucas Panzerfaust tão habituais ao final da guerra como membros do Volkssturm, a milícia popular de último recurso, eram claros precedentes dos modernos meninos soldados. “Desde cedo. No grande conflito prévio, a I Guerra Mundial, o Exército alemão foi muito cuidadoso em não admitir recrutas com menos de 18 anos – por exemplo, o próprio Heinrich Himmler -, inclusive apesar de alguns menores terem entrado furtivamente no exército imperial (como Ernst Jünger). Mas o fenômeno dos meninos soldados é uma marca das últimas fases desesperadas da II Guerra Mundial”. Kater aponta que com os recrutas da Juventude Hitlerista enviados para os Panzer em 1943 e 1944 não se compartilhava cigarros como com os soldados adultos, mas sim… doces.

www-deviantart-13
Fonte – http://www.deviantart

Responsabilidade e culpa estão no núcleo do livro de Kater, que, além de ser sobre história, é um livro sobre moral, e inclusive sobre juízo moral. “Qualquer um que escreva sobre a Juventude Hitlerista tem de se ocupar desses temas. É um assunto muito delicado, e responder de maneira satisfatória a todas às perguntas que surgem, impossível”. Ser de origem alemã deve complicar as coisas. “O fato de ter nascido na Alemanha e de ter estado, em 1945, a apenas dois anos de ser incorporado à Juventude Hitlerista provavelmente me faz ser especialmente sensível ao tema. Me considero um democrata liberal de esquerda, e hoje tremo ante o que teria me aguardado como membro da Juventude Hitlerista se a guerra tivesse durado o suficiente. Nascido em 1937, me mudei para o Canadá em 1953 e me converti em cidadão canadense, deixando para trás de propósito minha nacionalidade alemã. Graças a Deus o Canadá é uma terra de tolerância e integração. Não existe Marine Le Pen aqui, nem Trump, nem NSDAP”.

www-deviantart-3
Fonte – http://www.deviantart

Percebe-se no livro uma tensão entre a visão do historiador – e seu impecável exame dos pecados das Juventudes Hitlerianas – e a compaixão ante determinados casos dessa juventude abreviada.

Qual é a avaliação final de Kater?

Vítimas e perpetradores?

“Sim, ambas as coisas. É preciso diferenciar entre adolescentes suficientemente mais velhos para aceitar responsabilidade (e inclusive culpa) por certas atitudes e ações, e meninos que em um tribunal de justiça, inclusive em um nazista, deveriam ter sido considerados inocentes. Obviamente, essas duas categorias sempre se sobrepõem, e quem pode dizer onde estão os limites claros?”.

www-deviantart-10
Fonte – http://www.deviantart

A Juventude Hitlerista não teve muita sorte – se é possível se dizer assim – com seus dois líderes: Von Schirach (julgado em Nuremberg) e Artur Axmann. “Ambos foram personagens impessoais na maquina nazista e intercambiáveis no que diz respeito à Juventude Hitlerista. Nenhum tinha carisma, eram meros funcionários. Schirach, não muito brilhante, era particularmente vazio, mas com enormes pretensões, mais culturais do que políticas. Axmann ao menos havia lutado na guerra, na frente do Leste, onde foi gravemente ferido e teve o braço direito amputado”.

O líder das Juventudes Hitlerianas pediu a seus rapazes e moças que defendessem Berlim até o fim: mantiveram abertas as pontes sobre o rio Havel para que escapassem os faisões dourados nazistas, os hierarcas, entre eles o próprios Axmann.

www-deviantart-5
Fonte – http://www.deviantart

Nem toda juventude alemã seguiu Hitler. Houve dissidentes. Individuais e em grupo. Como os Jovens do Swing, atraídos pelo jazz norte-americano, as gangues (era difícil ser rebelde sem causa na Alemanha nazista) e os integrantes do grupo de resistência da Rosa Branca.

O historiador aborda em profundidade um tema característico da Juventude Hitlerista: o gênero. “Sempre houve no partido nazista duas tendências, uma que queria que as meninas e mulheres fossem colocadas em massa para trabalhar, especialmente em tempo de guerra, e a outra que esperava que se dedicassem a ser amas do lar e paridoras de nazistas. Hitler pertencia ao segundo grupo. Albert Speer e Joseph Goebbels, ao primeiro. Em última instância, Hitler ganhou. Inclusive as mulheres nazistas que se revoltaram contra isso foram rapidamente silenciadas. Assim como as feministas na Juventude Hitlerista. A ala feminina, a BDM – cuja saída militar poderia ser a de ajudantes nos distintos ramos das Forças Armadas -, tinha que obedecer sempre aos membros masculinos, inclusive as líderes”.

www-deviantart-9
Fonte – http://www.deviantart

O assunto do sexo é bastante sinistro.

“Apesar da ideologia oficial que afirmava que as mulheres deveriam ser honradas e que o sexo era só um catalizador necessário para a reprodução eugênica, os nazistas (homens) se aproveitavam de suas posições hierárquicas para explorar sexualmente meninas e mulheres. Na Juventude Hitlerista havia jovens (com energia e libido alta) muitas vezes bonitos (uma boa isca para a luxuria) misturados com uma estrutura autoritária, onde sempre havia alguém que podia mandar e outro que não estava autorizado a dizer que não, a promiscuidade era muito alta”. De fato, o acrônimo da Liga das Meninas Alemãs, BDM, passou a ser lido como Bund Deutscher Matrazen (liga de colchões alemães) ou Bubi Drück Mich (vamos rapaz, me aperte forte).

insert_pic_01_0001
Fonte – http://dachaukz.blogspot.com.br/2011/03/my-own-surrender-to-3rd-us-army-9th-may.html

Qual é o legado da Juventude Hitlerista?

“Depois da guerra, praticamente todo mundo havia feito parte delas e podiam se sentir envergonhados ou culpados, então não se falava do tema. Os de ultradireita são uma exceção, claro”. 

AUTOR – Jacinto Antón

FONTE – http://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/01/internacional/1478025759_957657.html

BASE MILITAR SECRETA NAZISTA DESCOBERTA POR CIENTISTAS RUSSOS NO ÁRTICO

secret-nazi-wwii-base-in-arctic-located-by-russian-experts-00_00_00_00-still001-1

Os cientistas relataram a descoberta de bunkers, balas enferrujadas e outras relíquias que datam da Segunda Guerra Mundial

Autor – Rostand Medeiros

Tem horas que eu penso que a Segunda Guerra Mundial nunca vai acabar no quesito de novas e interessantes descobertas. Pois recentemente uma equipe expedicionária do Parque Nacional Ártico russo encontrou uma base secreta nazista no Ártico.

Nas ruínas do que foi outrora uma base nazista foram descobertos mais de 500 objetos de valor histórico. Em um comunicado, Evgeny Ermolov, pesquisador sênior do Parque Nacional Ártico russo disse: “Antes a base só era conhecida a partir de fontes escritas, mas agora também temos a prova real.” 

O antigo posto militar fica na Ilha de Alexandra, localizada a mais de 1.000 quilômetros do Polo Norte, em uma área conhecida como Terra de Franz Josef. O lugar foi criado em 1942, um ano depois de Hitler invadir a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, atual Federação Russa, e foi batizado como “Schatzgraber” ou “Treasure Hunter”.  

A ilha era estrategicamente vital para ambos os lados durante a Segunda Guerra Mundial, por causa de seu valor na produção de relatórios sobre as condições climáticas.  A descoberta foi feita em agosto passado, 72 anos depois de abandonada, e já se sabe que as informações produzidas neste local foram crucias para o movimento de tropas nazistas durante a invasão da Rússia. Isso foi especialmente verdadeiro diante do brutal inverno russo de 1942, que fez com que o implacável avanço alemão atolasse em um sério impasse na neve. 

secret-nazi-wwii-base-in-arctic-located-by-russian-experts-00_01_21_05-still010

E a ilha foi ainda mais importante para os alemães, porque a maioria dos outros locais com potenciais para produzir boletins meteorológicos polares na região estavam nas mãos dos Aliados. 

Até agora os pesquisadores russos recuperaram cerca de 500 objetos das ruínas da base, que estão em condições relativamente boas, preservadas pelo frio intenso. Entre estes objetos constam latas de gasolina, pedaços de tendas, itens pessoais como sapatos e até mesmo documentos em papel. 

Acredita-se que em julho de 1944 o pessoal que trabalhava na base foi evacuado através de submarinos, após uma doença que eclodiu devido ao consumo de carne de urso polar contaminada.  Todos os artefatos descobertos na base “Treasure Hunter” estão sendo transportados para a cidade russa de Arcangel, para análise por especialistas que vão tentar resolver o mistério e propósito real da base nazista abandonado no Ártico. 

well-perserved-documents

No entanto, para os aficionados em mistérios, através de inúmeras páginas na internet ao redor do mundo, já comentam que um dos detalhes mais interessantes que cercam a base secreta nazista é por que os alemães decidiram nomear uma estação meteorológica como “Treasure Hunter” (Caçador de Tesouros)? 

Acreditam que o nome dado ao local sugere que os nazistas podem ter tido outra missão, mais secreta, possivelmente em busca de um tesouro mítico, ou artefatos bélicos antigos, ou até mesmo armas de origem “extraterrestre”.

secret-nazi-wwii-base-in-arctic-located-by-russian-experts-00_01_35_05-still011

É bem conhecido que durante a Segunda Guerra Mundial os nazistas realizaram uma série de experiências estranhas, com alegadas tecnologias desconhecidas em sua tentativa de dominar o mundo. Mas se eles estavam procurando tesouros reais, então por que o inóspito Ártico?

Autores acreditam que os nazistas possuíam também uma grande base secreta na Antártida chamada “Station 211”. E as especulações só aumentaram quando em 1946 e 1947, o almirante estadunidense Richard Evelyn Byrd, um dos mais famosos exploradores polares, como membro da Operação Highjump, a maior armada já enviada para a Antártica, teria ido a esta região fria para investigar a presença nazista. 

main-qimg-a6591e4d3e7b993c1528a6c290adc312
Corpos de soldados alemães mortos pela fome e pelo frio na Russia em 1942.

Mas como os nazistas esperavam encontrar algo de extrema importância, com alguma fantástica “tecnologia antiga”, em dois dos lugares mais inóspitos da Terra?

Para mim a realidade é simples e clara – O tesouro maior que “Treasure Hunter” buscava era a informação meteorológica correta, que antecipasse com alguma precisão as condições do tempo, para que a máquina de guerra nazista conquistasse o solo da Rússia.

Fato esse que, felizmente, não ocorreu devido à capacidade de luta do povo russo, com seus mais de 20 milhões de vidas sacrificadas, além de forte apoio material dos Aliados para derrotar os nazistas e acabar com a Segunda Guerra Mundial na Europa.

Fontes – http://www.independent.co.uk/news/world/europe/secret-nazi-military-base-russian-scientists-alexandra-land-a7373401.html

https://www.thesun.co.uk/news/2020632/secret-nazi-treasure-hunter-base-arctic-found-abandoned-poisoned-polar-bears/

ABSURDO: PESSOAS NEGRAS FORAM EXIBIDAS EM ZOOLÓGICOS HUMANOS NA EUROPA

zoologico-de-pessoas

É fato que o racismo ainda é uma ferida aberta em todo o mundo e difícil de ser curada.

A ideia de um “zoológico humano”, com negros em exibição, coisa que hoje causa espanto e repulsa, era realidade na avançada Noruega de um século atrás e, recentemente (2014), uma exposição intitulada “Kongolandsbyen” foi aberta em Oslo, capital, da Noruega, para marcar os cem anos da abertura da mostra original, que remontou uma pequena cidade que ficou conhecida como Vila Congo. Nela, as “vilas de negros” ou “zoológicos humanos” exibiam pessoas, especialmente vindas da África, em confinamentos semelhantes a jaulas de animais.

ZOOHUMANOVALE

Em 1914, no local da exposição na Noruega, viviam cerca de 80 pessoas de origem africana, a maioria do Senegal, que encenavam para visitantes costumes vistos como exóticos. Calculasse que um milhão e meio de noruegueses (ou três quartos da população total do país, na época) pagaram para assistir os africanos cozinhando e fazendo artesanato, por exemplo, vestidos com trajes tradicionais. Os organizadores disseminavam uma prática conhecida como “exposição etnológica”.

zoologico-de-pessoas_01

A exibição de humanos nesses “zoológicos” não foi exclusividade da Noruega. Igualmente espetáculos horrendos como estes aconteceram na Alemanha, França e Bélgica tiveram, com reproduções de vilas nos mesmos moldes do que aconteceu na Noruega.

Assim, elas eram visitadas continuamente por famílias brancas, especialmente crianças. Algumas delas, no entanto, nunca haviam feito contato com negros antes e chegavam a levar pães e doces para alimentá-los e, assim, chamar sua atenção. 

zoologico-de-pessoas_02

A exibição de africanos e outros povos não ocidentais eram meios utilizados como um instrumento para convencer a opinião pública da necessidade de colonização. Esses grupos eram mostrados como animais, reforçando uma ideia eurocentrista de civilização.

Fonte de textos e fotos – http://oglobo.globo.com/sociedade/mostra-reproduz-zoo-humano-que-exibia-negros-na-noruega-12627773#ixzz4Eqb5TVWQ

http://www.jornalciencia.com/absurdo-ha-apenas-60-anos-pessoas-negras-eram-exibidas-em-zoologicos-humanos-na-europa/

A HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

Autor – Rostand Medeiros

A história dos judeus no Brasil é longa e complexa, uma vez que se estende desde o início da colonização européia no novo continente. Mas antes de tudo é uma vergonhosa história de intensas perseguições religiosas.

Inicialmente os judeus sofreram com os tribunais eclesiásticos da Inquisição na Espanha a partir de 1478 e a partir de 1492, quando tem inicio às expedições colonizadoras espanholas para o Novo Mundo, é um ano que também marca o início da Segunda Diáspora, quando os judeus foram expulsos da Espanha.

Em 1497, seguindo o exemplo dos vizinhos, os portugueses baniram os judeus de seu país e muitos fugiram para um país europeus mais hospitaleiro, como a Holanda.

moriscos4
Expulsão de judeus na Espanha em 1492 – Fonte – http://www.alertadigital.com/

Os que continuaram em Portugal buscaram sobreviver como “Cristãos-novos” (também conhecidos como Conversos ou Marranos, judeus obrigados a converter-se ao catolicismo romano pela coroa Portuguesa). Alguns destes Marranos, embora publicamente “convertidos”, mesmo com o risco de captura e morte pela Inquisição, assumiram o risco e continuaram secretamente a praticar o criptojudaísmo (estes eram grupos que praticavam a fé judaica e seus costumes em segredo, por receio de perseguições religiosas).

Outros que haviam concordado em desistir do Judaísmo parecem ter realmente colocado sua religião de lado para sobreviver – pelo menos exteriormente – como cristãos.

Dois anos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral a Bahia, na condição de “cristãos-novos”, foi oficialmente sancionada e concedida a vinda de um primeiro grupo destas pessoas para se instalarem no Brasil e exportar a madeira para Portugal. Em terras tupiniquins os Marranos também desenvolveram práticas agrícolas com resultados positivos. Acredita-se que o primeiro exemplar de cana-de-açúcar foi trazida para o Brasil em 1532, por um fazendeiro judeu da Ilha da Madeira.

Conforme a colonização avançava, assumindo abertamente, ou não, a sua religião, em vários locais no Novo Mundo se desenvolveram comunidades judaicas. Além da colônia portuguesa do Brasil, existiram pequenos grupos nas colônias espanholas que se tornariam países como Colômbia, Cuba, Porto Rico, México, Peru e República Dominicana. São conhecidos grupos no Suriname e Curaçao holandês, e nas colônias inglesas da Jamaica e Barbados. Estas comunidades judaicas se desenvolveram mais fortemente nas áreas sob controle holandês e inglês, povos bem mais tolerantes em relação ao Judaísmo do que os portugueses e espanhóis. Tanto assim que em meados do século XVII, uma das maiores comunidades judaicas do Hemisfério Ocidental estava localizada no Suriname colonizado pelos holandeses.

Expulsos de Portugal

Enquanto isso em Portugal, a partir de 1536, é implantado oficialmente a Inquisição. Assim, a maioria dos Marranos portugueses evitou imigrar para o Brasil, porque também nas terras tropicais seriam perseguidos por este tribunal eclesiástico.

Pinturas-de-Frans-Post-10
Quadro do holandês. Frans Janszoon Post (Leyden, 1612 — Haarlem, 1680) mostrando o Brasil Holandês – Fonte – http://cultura.culturamix.com/arte/pinturas-de-frans-post

Muitos judeus portugueses se refugiaram em países mediterrânicos (Norte de África, Itália, Grécia) e região do Oriente Médio. Já outros emigraram ainda com mais força para países que toleravam o Judaísmo como a Inglaterra, Alemanha e a sempre presente Holanda.

Muitos judeus que chegaram ao conhecido País Baixo tinham ótimas qualificações na produção de açúcar e, em um futuro nem tão distante assim, suas habilidades seriam positivamente apreciadas por uma empresa holandesa que se instalaria a força no Nordeste do Brasil. Era a Companhia das Índias Ocidentais (West Indian Company).

No início dos anos 1600 o Brasil já possuía uma população com cerca de 50.000 europeus, alguns deles descendentes dos conversos. Em 1624 parte do Nordeste do Brasil ficou sob o domínio holandês, capitaneado pelo investimento bélico da Companhia das Índias Ocidentais.

Vista do Recife - 1630-1631 - Johannes de Laet
Recife, capital de Pernambuco, foi um grande centro judaico da América Latina – T’RECIF de PERNAMBVCO’ ca. 1630 fonte: Ilustração do livro de Johannes de Laet – 1644 – Fonte – http://bairrodorecife.blogspot.com.br/2014/02/a-rua-do-bode-dos-judeus-da-cruz-e-do.html

Esta foi uma boa notícia para a comunidade judaica no Novo e Velho Mundo, pois os holandeses eram, por assim dizer, simpáticos ao povo judeu e permitiram a imigração judaica para a região. Judeus que tinham praticado a sua religião de forma clandestina por décadas na América do Sul, celebraram tão exuberantemente sua liberdade com desfiles e marchas pela cidade de Recife, que os holandeses tiveram de lhes pedir para restringir a sua alegria e evitar conflitos com Luso-brasileiros católicos.

Os judeus do Nordeste do Brasil tornaram-se membros de uma sociedade numerosa, bem estabelecida e prosperaram economicamente. O inglês Adam Smith atribuiu grande parte do desenvolvimento da indústria de açúcar do Brasil a chegada dos judeus portugueses a região de Pernambuco.

Rua dos Judeus - Mercado de Escravos - 1641
Rua dos Judeus, em Recife, e seu mercado de escravos. Quadro Rua dos Judeus – Slavenmarkt, de Zacharias Wagener – 1641 – Fonte – http://bairrodorecife.blogspot.com.br/2014/02/a-rua-do-bode-dos-judeus-da-cruz-e-do.html

Para o Nordeste do Brasil começaram a chegar judeus vindos da Polônia, Turquia e Hungria, bem como muitos da Espanha e de Portugal. Em 1636 no Recife, capital de Pernambuco, os judeus construíram escolas e uma sinagoga. Este é considerado o primeiro templo judaico das Américas. Em 1642, um grande grupo de judeus chegou a Recife vindos de Amsterdã, capital da Holanda. Neste grupo estavam o rabino Isaac Aboab da Fonseca e Cantor Moisés de Aguilar. Autores apontam que a população de Recife atingiu um ponto alto em 1645, respondendo por cerca de 50% da população branca da cidade.

Desenvolvimento e Expulsão do Nordeste

Os judeus que tinham se estabelecido logo no início no Brasil foram os proprietários de terra e barões do açúcar. Aqueles que chegaram mais tarde se envolveram no comércio. Judeus brasileiros formaram uma rede de comércio exterior com os judeus em Amsterdã, desenvolvendo parcerias para levar suprimentos para o Brasil. Alguns destes judeus se tornaram bem-sucedidos comerciantes de escravos.

Em 1645 foi concedida pela Companhia das Índias Ocidentais a permissão para um judeu exercer a advocacia em Recife, mas o Supremo Tribunal na Nova Holanda (em holandês Nieuw Holland, também conhecida como Brasil Holandês) se recusou a aceitar sua licença. A comunidade judaica em Amsterdã intercedeu em seu nome e ele acabou sendo autorizado a praticar a lei no Brasil.

Diante do sucesso dos comerciantes judeus, especialmente no lucrativo comércio de escravos, empresários cristãos Luso-brasileiros mais de uma vez pediram ao governo da Nova Holanda para limitar a prática de comércio judaico em Recife. O governo de ocupação recusou-se a tomar medidas para prejudicar de alguma forma os negócios dos judeus, pois o dinheiro gerado por eles era muito importante para a economia da colônia.

Os Luso-brasileiros queriam de volta seu valioso território no Nordeste do Brasil. A situação para os judeus tomou um rumo para pior em 1654, quando os portugueses, através de uma vitoriosa luta, reafirmaram sua autoridade sobre os holandeses.

Em seu tratado de rendição os holandeses haviam exigido que os judeus deveriam ser tratados da mesma maneira que outros cidadãos holandeses: eles teriam que deixar a região dentro de três meses e seriam autorizados a vender sua propriedade e negócios.

Alguns voltaram para Amsterdã, entre eles o rabino Aboab da Fonseca e Cantor De Aguilar. Um barco cheio deles, soprado fora do curso tradicional, se estabeleceu em New Amsterdam (mais tarde Nova York, Estados Unidos), sendo estes os primeiros judeus a desembarcarem e fundarem a primeira comunidade judaica neste país. Muitos partiram para outras ilhas ou colônias do Caribe, tais como Curaçao, Barbados e Suriname (mais tarde Guiana Holandesa). Apenas alguns permaneceram no Brasil.

O Esquecimento Dos Que Ficaram

Muitos dos que não conseguiram sair, fosse por razões financeiras, ou principalmente pessoais, foram mortos pelos portugueses. Para sobreviver alguns tornaram a praticar o criptojudaísmo. Estes viviam longe das autoridades, no interior do Brasil. Alguns se tornarão donos de glebas no ermo sertão nordestino, convivendo com indígenas bem diferentes dos existentes no litoral, criando bovinos, caprinos, plantando algodão, fumo e tocando a vida.

DSC_0457
É possível que alguns dos judeus que buscaram refúgio no interior do sertão do Nordeste do Brasil tenha construído vivendas fortificadas, como esta casa existente na região de Serra Talhada, Pernambuco, que aqui é apresentada meramente como exemplo. Foto – Rostand Medeiros

Por esse tempo, no entanto, os poucos remanescentes dos Marranos já tinham de tal forma assimilado a cultura católica brasileira que perderam grande parte do conhecimento das práticas e costumes judaicos. Conforme se deu o avanço da massa de novos colonizadores no sertão nordestino, com forte presença da autoridade da Igreja Católica, foi que este esquecimento se ampliou. Permaneceram em algumas comunidades mais distantes e isoladas no sertão nordestino algumas práticas de uma antiga cultura, pequenos sinais na verdade, que muitos desconheciam a razão e origem, mas que os diferenciavam de outros grupos que existiam em suas regiões.

Esse desconhecimento se explica, pelo menos em parte, devido às perseguições contra os judeus por parte das autoridades portuguesas. Consta que no distante ano de 1713, várias centenas de judeus foram extraditados do Brasil para Portugal por causa da Inquisição. Finalmente, em 1773, um decreto real acabou com as práticas da Inquisição no paí dos Lusos.

DSC05270
A cidade potiguar de Venha Ver, no oeste do estado, teria estes sinais indicativos de uma presença judia em seu passado. Sobre este tema ver o link desta postagem no TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.com.br/2011/06/30/a-cidade-potiguar-de-venha-ver-e-a-sua-possivel-tradicao-judaica/

Apesar deste fato, existe a informação que no final do século XVIII, alguns judeus Marranos vieram de Portugal para a região sudeste do Brasil com a intenção de trabalhar nas minas de ouro. Muitos foram presos acusados de judaísmo.

Somente em 1822, quando o Brasil se tornou independente de Portugal, começou a ocorrer mudanças.

Um Novo Recomeço No Brasil

Após a primeira constituição brasileira em 1824, que concedeu a liberdade de religião, os judeus começaram a retornar bem lentamente ao Brasil.

Muitos judeus marroquinos chegaram no século XIX, principalmente em razão do boom da borracha na Amazônia, onde seus descendentes continuam a viver por lá.

07-nota[4]
Sinagoga Shaar Hashamaim de Belém do Pará. Foto de Moisés Unger – Fonte – http://menorahbrasil.blogspot.com.br/2014/03/judeus-no-brasil.html

A maioria das fontes afirma que a primeira sinagoga de Belém, capital do Grão-Pará, seria a Sha’ar Hashamaim (“Porta do Céu”) e teria sido fundada em 1824. Há, no entanto, controvérsias; Samuel Benchimol, autor do livro “Eretz Amazônia: Os Judeus na Amazônia”, afirma que a primeira sinagoga criada na cidade de Belém foi Eshel Avraham (“de Abraão Tamargueira”), fundada em 1823 ou 1824, enquanto a Sha’ar Hashamaim teria sido fundada em 1826 ou 1828. Independente desta questão sabe-se que a população judaica na região cresceu a ponto de ter sido estabelecido uma necrópole exclusiva para os judeus no ano de 1842.

Cerca de quarenta anos depois, principalmente a partir de 1881 e se prolongando até 1900, ocorreu um grande fluxo de imigração internacional para o Brasil. Mas a imigração judaica no período foi bastante baixa, pois muitos judeus europeus decidiram imigrar para países mais industrializados.

Maurice_de_Hirsch_-_Tableau
Barão Maurice Hirsch Von Gereuth – Fonte – http://www.wikiwand.com/fr/Maurice_de_Hirsch

Mas em razão das condições desfavoráveis na Europa, principalmente diante de perseguições, a partir da década de 1890 os judeus daquele continente começaram a debater o estabelecimento de assentamentos agrícolas no Brasil, tendo o primeiro sido criado em 1902, na área de Itaara, no município de Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul.

Este empreendimento era apoiado pela Jewish Colonization Association (JCA), entidade fundada em setembro de 1891 e presidida pelo Barão Maurice Hirsch Von Gereuth, banqueiro de origem judaico alemã. O objetivo desta entidade era proporcionar aos judeus da Europa Oriental estudos agrícolas básicos, transporte para países sem restrições raciais e religiosas, lotes de terra para cultivo, equipamentos e animais para o início dos trabalhos e escolas para as crianças. Em contrapartida o imigrante se comprometia a reembolsar as suas despesas com a instituição em um prazo estipulado entre 15 a 20 anos, garantindo assim financiamento para novas famílias buscarem uma oportunidade na América.

87442865
Antiga entrada da Fazenda Philippson, no atual município gaúcho de Itaara – Foto de Ubirajara Buddin Cruz – Fonte – http://www.panoramio.com/user/2815684?with_photo_id=87442865

O primeiro assentamento foi denominado Fazenda Philippson, aonde primeiramente 148 pessoas, de 37 famílias, vindas da Bessarábia (região histórica da Europa Oriental, localizada entre os atuais territórios da Moldávia, Ucrânia e Romênia), estavam dispostos a se estabelecer na colônia experimental. Estes receberam lotes de 25 a 30 hectares, equipados com casas de madeira, animais, instrumentos agrícolas e sementes. 

Mas a temporada de colheitas de 1904 falhou devido à inexperiência, fundos insuficientes e mau planejamento.

Em 1911 houve uma nova tentativa, quando a JCA  adquiriu a Fazenda dos Quatro Irmãos Pacheco, para transformá-la em uma colônia judaica, com uma nova leva de imigrantes. Mas a iniciativa falhou novamente.

1436193758-Praca Onze 1930 (2)
Nas quatro primeiras décadas do século XX, judeus do Leste Europeu e negros vindos da Bahia e da região cafeeira do Estado do Rio dividiam ruas, escolas e mesmo casas no bairro Praça Onze, em Porto Alegre. Eles vendiam mercadorias, produziam boa música e boa comida. Ao redor da praça, os judeus criaram sinagogas e escolas. Esta história quase esquecida foi contada pela jornalista e pesquisadora Beatriz Coelho Silva, no livro “Negros e Judeus na Praça Onze. A história que não ficou na memória” (Editora Bookstar) – Fonte – http://www.conib.org.br/blog/noticias/1061/negros_e_judeus_na_praa_onze_rio_de_janeiro_a_histria_que_quer_ficar_na_memria

No ano de 1910, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, diante do crescente número de judeus que vinham viver e negociar na cidade, muitos ex-colonos da Fazenda Philippson, uma escola judaica foi aberta e em 1915 foi criado um jornal em idioma iídiche, o “Di Menshhayt” (Humanidade).

Até a Primeira Guerra Mundial cerca de 7.000 judeus vieram viver no Brasil. Em 1916 a comunidade judaica do Rio de Janeiro formou um comitê de ajuda para as vítimas do conflito.

Pós Holocausto

A maioria das nações latino-americanas era relativamente aberta aos imigrantes judeus entre as décadas de 1910 e 1930. Mas durante a Grande Depressão os líderes políticos e os governos em toda a região exploraram a crise econômica para desenvolver bases populistas.

Novos governantes refletiram esta tendência política, o que incentivou o desenvolvimento de partidos antimigração ou plataformas e campanhas de imprensa fortes contra a imigração.

maxresdefault
Nazismo na Alemanha, terror para os judeus.

Em 1933, após a tomada do poder na Alemanha pelos nazistas, a busca de refúgio na América Latina se intensificou, bem como aumentou a resistência popular e oficial à aceitação dos judeus europeus e outros estrangeiros. Essa situação gerou a criação de leis de imigração cada vez mais rígidas em toda a América Latina no final da década de 1930.

Além disso, a simpatia de alguns latino-americanos de descendência alemã para as teorias raciais da ideologia nazista também contribuiu para o aumento do anti-semitismo. Os governos latino-americanos oficialmente permitiram a entrada de cerca de 84.000 refugiados judeus entre 1933 e 1945, menos de metade do número admitido entre 1918 e 1932.

No caso do Brasil, por exemplo, 96.000 imigrantes judeus foram admitidos no país entre 1918 e 1933, mas apenas 12.000 entre 1934 e 1941. Geralmente o governo brasileiro não cumpria a sua própria legislação de imigração.

Muitos outros judeus entraram nos países latinos através de canais ilegais.

Mesmo com estes problemas é inegável que a América Latina foi um importante destino para muitos sobreviventes do Holocausto.

Nazis singing to encourage a boycott of the allegedly Jewish-founded Woolworths, 1933
1933 – Nazistas cantando para incentivar um boicote a um loja de judeus na Alemanha – Fonte – rarehistoricalphotos.com

Mais de 20.000 judeus imigraram para a região entre 1947-1953. Seu principal destino foi a Argentina, que se tornou o lar de pelo menos 4.800 sobreviventes do Holocausto. Outros se radicaram no Brasil, Paraguai, Uruguai, Panamá, Costa Rica, entre outros países.

Uma nova constituição no Brasil, promulgada em 1945, ajudou a garantir os direitos dos cidadãos judeus, e em 1947, o Brasil lançou o seu voto favorável para a criação de um Estado judeu na recentemente criada ONU.

Novos Tempos no Brasil

Os judeus no Brasil desenvolveram fortes estruturas de apoio e oportunidades econômicas, o que atraiu a imigração judaica polaca e européia oriental. No final dos anos 1950, outra onda de imigração trouxe milhares de judeus norte-africanos. Hoje em dia as comunidades judaicas prosperam tranquilas no Brasil, onde um completo espectro de instituições sociais, religiosas, vários clubes e escolas estão em permanente atuação.

news_13712201643852_20
Ficha Consular de Qualificação para entrada no Brasil do judeu de origem egípcia Armand Toueg Soriano – Fonte – https://judeusarabes.wordpress.com/

Os judeus brasileiros possuem ativo papel na política, nos esportes, no meio acadêmico, no comércio, na indústria e estão bem integrados em todas as esferas da vida brasileira. A maioria dos judeus no Brasil vivem no estado de São Paulo, mas também há comunidades consideráveis no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraná.

No início do século XXI cerca de 500.000 judeus vivem na América Latina, estando concentrados na Argentina, Brasil e México, com o primeiro pais sendo considerado o centro da população judaica nesta parte do mundo. Já o Brasil possui a nona maior comunidade judaica, com mais de 107.000 pessoas em 2010, de acordo com o censo do IBGE. Entretanto a Confederação Israelita do Brasil (CONIB) estima que existam mais de 120.000 judeus no país.

Familia-judeus-marroquinos-morar-Santarem_ACRIMA20120521_0017_15
Família de judeus marroquinos no Brasil – Fonte – http://www.coisasjudaicas.com/2013/01/os-judeus-marroquinos-no-brasil.html

De acordo com um relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos, o anti-semitismo no Brasil continua a ser raro. Mas infelizmente alguns atos e eventos anti-semitas menores ainda ocorrem. Um deles foi durante a Guerra do Líbano de 2006, com o vandalismo de cemitérios judaicos.

O Brasil condena estritamente anti-semitismo e tal ato é uma violação explícita da lei. De acordo com o Código Penal Brasileiro é ilegal escrever, editar, publicar ou vender literatura que promova o anti-semitismo ou o racismo. A lei prevê penas de até cinco anos de prisão por crimes de racismo ou intolerância religiosa e permite aos tribunais multar ou prender de dois a cinco anos quem exibir, distribuir ou transmitir material de anti-semita ou racista.

Também em 1989, o Senado brasileiro aprovou uma lei que proíbe o fabrico, comércio e distribuição de suásticas com o propósito de disseminar o nazismo. Qualquer pessoa que quebra essa lei é susceptível de servir a uma pena de prisão de dois a cinco anos (Lei n. 7.716 de 05 de janeiro de 1989).

2013-608418923-2013-608281910-2013042708929.jpg_20130427.jpg_20130428
GUm mal que ainda persiste no Brasil – Grupo de neonazistas brasileiros presos na 77ª DP, em Icaraí, Niterói, Rio de Janeiro. Este grupo foi acusado em 2013 e aqui eles estão ao lado do material de propaganda nazista apreendido pela polícia: maioria tem tatuagens de suásticas e a cabeça raspada – Foto – Luiz Ackermann – Fonte – http://oglobo.globo.com/rio/estado-tem-pelo-menos-quatro-grupos-neonazistas-8519436

Os resultados de uma pesquisa global sobre os sentimentos anti-semitas, divulgado pela Liga Anti-Difamação, colocou o Brasil entre os países menos anti-semitas no mundo. De acordo com esta pesquisa global realizada entre julho de 2013 e fevereiro de 2014, o Brasil tem o menor “Índice de Anti-semita” (16%) na América Latina e no terceiro mais baixo em todas as Américas, atrás apenas do Canadá (14%) e Estados Unidos (9%).


VEJA MAIS POSTAGENS SOBRE TEMAS LIGADOS A JUDEUS NO TOK DE HISTÓRIA 

https://tokdehistoria.com.br/2015/11/11/lei-pode-dar-cidadania-a-brasileiros-descendentes-de-judeus/

 https://tokdehistoria.com.br/2015/05/08/diaspora-descubra-como-os-judeus-se-espalharam-pelo-mundo/

https://tokdehistoria.com.br/2014/03/23/sobrenomes-de-judeus-expulsos-da-espanha-em-1492-veja-se-o-seu-esta-na-lista/ 

https://tokdehistoria.com.br/2012/04/18/a-expulsao-dos-judeus-de-portugal/

 https://tokdehistoria.com.br/2015/06/08/the-first-synagogue-in-the-americas-itamaraca-1634/


FONTES DESTA POSTAGEM

https://www.ushmm.org/wlc/en/article.php?ModuleId=10007824

http://sefarad.org/lm/010/bresil.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Judeus_em_Portugal

http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/vjw/Brazil.html

http://www.esteditora.com.br/MemoriasdeQuatroIrmaosColonizacaojudaica

http://ensina.rtp.pt/artigo/breve-historia-da-inquisicao-em-portugal/

https://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_Colonization_Association

http://hypescience.com/10-corajosos-diplomatas-da-segunda-guerra-mundial-que-salvaram-a-vida-de-milhares-de-judeus/

http://blog.webjudaica.com.br/santa-maria-rs-sedia-mostra-sobre-imigracao-judaica-rio-grande-sul/

JUDEUS SEM SABER

IMG_23701
Fonte – http://culturahebraica.blogspot.com.br/2013_06_23_archive.html

Perseguidos na Europa pela Inquisição, centenas de judeus se exilaram na América no fim da Idade Média. Cinco séculos depois, descendentes tentam descobrir suas raízes

Eduardo Manet não esquece aquela noite de junho de 1943. O tempo estava bom em Havana. Ele e a mãe tinham ido ao cinema. Na volta para casa, o futuro escritor cubano ouviu a mãe explicar que ela havia nascido em uma família “Marrana”. O menino não entendeu imediatamente o que aquilo queria dizer. “Creio que não ouvi direito… o ruído do mar, meus ouvidos zumbiam…”

A frase não fazia sentido para Manet. “Marrano” significa “porco” em espanhol. Confuso, ele perguntou: “Como assim? Você nasceu com os porcos?”. O adolescente, prestes a completar 13 anos, compreendeu na hora que acabara de ferir profundamente a mãe. Com uma expressão séria no rosto, ela explicou ao filho o sentido religioso do termo: “Chamamos de Marranos os judeus sefarditas que foram obrigados a se converter à religião católica no fim do século XV. Eles não tinham escolha: era o exílio ou a conversão. Os que não quiseram abandonar a terra de seus ancestrais nem se converter ao catolicismo acabaram na fogueira”.

internajudeu
Obra mostra cena de explusão de judeus da Espanha em 1492. Muitos deixaram o país, mas outros optaram por ficar e se onverter ao catolicismo. (Xilogravura, Michaly von Zichy, 1880, posteriormente colorizada)

Sessenta anos depois, o escritor manteve gravado na memória esse dia em que descobriu o segredo de sua família. Ele era judeu sem o saber. Ou melhor, era um criptojudeu. Inspirado por essa revelação, decidiu pesquisar mais a fundo a história de seus antepassados. Em 2007, reuniu o resultado de seus estudos para escrever o livro Marrane! (Marrano!), publicado pela editora francesa Hugo et Compagnie. A obra não é apenas uma emocionante viagem à Cuba da juventude do autor, mas também um interessante relato sobre a trajetória de uma família marrana que se refugiou no Novo Mundo para fugir da Inquisição. Em busca das origens, o autor se debruçou sobre sua árvore genealógica e retrocedeu no tempo até chegar a doña Asunción, judia sefardita que foi obrigada a dissimular sua religião na Espanha do século XV.

Naquela época, os judeus eram alvo de uma feroz perseguição religiosa na Península Ibérica. O antissemitismo não era novo. As primeiras manifestações desse tipo de preconceito remontam à Antiguidade, mas só no fim do século XIV a intolerância assumiu a forma de grandes massacres de judeus, os chamados pogroms. A situação dos filhos de Israel só piorou quando, cem anos depois, a rainha Isabel de Castela, conhecida como “a Católica”, assinou vários decretos reais condenando severamente todos os hebreus que não abraçassem a fé cristã.

landing_of_columbus_2
Há quem garanta que Colombo foi judeu, assim como grande parte da tripulação de suas três caravelas. (Chegada de Colombo na América em 1492, óleo sobre tela John Vanderlyn, séc. XIX)

Milhares de judeus passaram então a esconder sua religião. A Inquisição se mostrou especialmente implacável com eles. Em 1481, muitos Talmudes (livros que registram as leis e costumes dos hebreus) foram queimados em autos de fé organizados em toda a Espanha. Em 1492, os reis católicos tomaram Granada, expulsando definitivamente os muçulmanos da Península Ibérica. Senhores absolutos da Espanha e contando com o apoio do papa Sisto IV, que reconheceu oficialmente a Inquisição espanhola em uma bula de 1478, os soberanos de Castela e Aragão assinaram o Decreto de Alhambra em 31 de março de 1492, que expulsou os judeus do reino espanhol. De acordo com esse texto, todos os súditos hebreus deveriam se converter ao catolicismo ou partir. Apesar da enérgica ação de Isaac Abravanel, funcionário da corte de Isabel de Castela que tentou obter a anulação do decreto, as perseguições se intensificaram.

Centenas de milhares de israelitas (entre 200 mil e 400 mil pessoas, dependendo da fonte) escolheram deixar o país. Alguns foram para Portugal, de onde foram expulsos em 1497. Outros atravessaram o estreito de Gibraltar para viver livremente sua fé do outro lado do Mediterrâneo, no Marrocos. Muitos fugiram para o Oriente – para a Itália, para o leste da Europa, para o Egito ou para a Palestina. Houve os que encontraram refúgio no Império Otomano, onde o sultão Bayazid II lhes ofereceu sua hospitalidade. Os que ficaram (cerca de 150 mil) se converteram, mas um grande número continuou a viver secretamente de acordo com a tradição judaica.

Não era fácil professar a fé na clandestinidade, principalmente na ausência de rabinos e de ensino religioso. Praticados de forma secreta, os ritos e as festas perdiam às vezes o sentido, mas os gestos sobreviveram e foram transmitidos de pai para filho. A comunidade dos marranos na Europa, também chamados de “conversos”, contava com algumas celebridades, como o filósofo Baruch Spinoza (que acabou rompendo com o judaísmo), ou Antoine de Luppes, avô materno do filósofo Michel de Montaigne.

168234_1288972501119025_823126977778199736_n (1)
Página original do decreto, assinado pelos soberanos de Castela e Aragão, que determinou a expulsão dos judeus no século XV

Há quem diga que o próprio Cristóvão Colombo era um criptojudeu, mas não há provas que corroborem tal afirmação. A única certeza é que grande parte dos financiadores de sua expedição de 1492 era judia. Entre eles estavam Abraão e Isaac Abravanel, Juan Cabrero, Luis de Santángel, Gabriel Sánchez e Alfonso de la Caballeria. Segundo Lee Friedman, autor de um estudo sobre os pioneiros judeus do Novo Mundo intitulado Jewish pioneers and patriots (Pioneiros e patriotas judeus), vários membros da tripulação das três caravelas da expedição de Colombo seriam judeus. Alguns teriam, inclusive, criado raízes na América desde a primeira missão, em agosto-setembro de 1492. Cada nova onda de conquistadores trouxe novos criptojudeus.

Desde a década de 60, diversas comunidades marranas vêm sendo identificadas no continente americano. Não só em Cuba, mas também em Porto Rico, no Brasil (a partir dos anos 80), no México e nos Estados Unidos. Um dos casos mais interessantes é o de um grupo de moradores da região do Novo México, nos EUA, que, apesar de oficialmente cristãos, seguem há várias décadas as tradições judaicas sem sequer ter consciência disso.

A revelação sobre as raízes israelitas dessa comunidade do sudoeste dos Estados Unidos foi feita pelo historiador Stanley Hordes em 2005 e gerou polêmica entre a população local. Segundo Hordes, o Novo México abrigaria uma das mais antigas comunidades criptojudaicas da América. O historiador de Santa Fé revelou que centenas de viejitos – como são conhecidos lá os velhos habitantes hispanófonos – ignoram que mantêm vivos diversos elementos da tradição israelita há centenas de anos, mesmo se considerando oficialmente católicos.

eduardo_manet
Eduardo Manet, escritor cubano, que se descobriu marrano: pesquisa resultou num livro que vai da inquisição à Cuba do século XX

Eles evitam, por exemplo, comer carne de porco e acendem duas velas nas sextas-feiras à noite. A oração que recitam em enterros seria muito próxima de uma prece judaica chamada kaddish, mas não existe sinagoga alguma em um raio de mil quilômetros e eles não conhecem a Torá.

Hordes divulgou sua pesquisa no livro To the end of the Earth – A history of the crypto-jews of New Mexico (Até o fim do mundo – Uma história dos criptojudeus do Novo México), publicado em 2005. Nessa obra, o historiador defende a ideia de que os ancestrais dessa “tribo perdida” seriam marranos vindos no rastro de Hernán Cortez, explorador espanhol que conquistou o México em 1519. Segundo Hordes, esses descendentes de judeus teriam se instalado na fronteira norte do império colonial espanhol, no território correspondente ao atual Novo México, onde era mais fácil escapar da autoridade da Igreja e do Estado e praticar sua fé livremente.

Para sustentar sua tese, Hordes cita várias biografias de conquistadores investigados por tribunais espanhóis por causa de suas crenças religiosas. O principal caso seria o de um certo Luis de Carvajal, sobrinho do governador da província de Nuevo León, no México. Ele, sua mãe e sua irmã foram condenados à morte em 1596 por serem judeus. Seu tio e outros 170 marranos teriam então deixado a cidade de Cerralvo, no atual México, marchando em direção ao norte, sem dar nunca mais nenhum sinal de vida. Stanley Hordes acredita que os criptojudeus do Novo México sejam descendentes desses homens e mulheres.

Expulsão-dos-judeus-Roque-Gameiro-1
A Expulsão dos Judeus, de Roque Gameiro.

O isolamento dessa comunidade se revelou uma faca de dois gumes. Desenraizados e tendo adotado o calendário romano, eles teriam perdido o sentido das tradições que, no entanto, continuaram observando. Nos últimos anos, alguns desses marranos têm realizado o movimento que os judeus chamam de techuva, o “retorno às origens”.

Stanley Hordes conta o caso de uma moradora da cidade católica de Ruidoso, no Novo México, que empreendeu esse resgate de suas origens ancestrais. Sonya Loya diz sempre ter se sentido judia, mas só recomeçou a observar o Shabbat depois de descobrir a história de suas origens ao ler o livro de Hordes. Na verdade, essa revelação não a surpreendeu. Um de seus tios, ao retornar da Segunda Guerra Mundial, disse ter visto o nome da família em uma lista de prisioneiros dos campos de concentração. Criptojudia, ela decidiu se converter ao judaísmo para se tornar “plenamente” judia.

O caso de Bill Sanchez é ainda mais impressionante, pois esse marrano chegou a ser ordenado padre católico. As revelações de Hordes o abalaram de tal modo que ele decidiu mandar analisar seu DNA. O exame revelou que ele possuía uma série de marcadores genéticos em seu cromossomo Y presentes em 30% dos homens judeus (os cientistas reiteram, no entanto, que não existe um cromossomo “judeu”). Bill Sanchez não renegou a fé católica, mas hoje ele usa uma correntinha no pescoço com a estrela de Davi ao lado de um crucifixo.

AUTOR – Baudouin Eschapasse – Jornalista e colaborador da revista Historia

FONTE – http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/judeus_sem_saber.html


VEJA MAIS POSTAGENS SOBRE TEMAS LIGADOS A JUDEUS NO TOK DE HISTÓRIA 

LEI PODE DAR CIDADANIA A BRASILEIROS DESCENDENTES DE JUDEUS

DIÁSPORA: DESCUBRA COMO OS JUDEUS SE ESPALHARAM PELO MUNDO

SOBRENOMES DE JUDEUS EXPULSOS DA ESPANHA EM 1492 – VEJA SE O SEU ESTÁ NA LISTA

A EXPULSÃO DOS JUDEUS DE PORTUGAL

https://tokdehistoria.com.br/2015/06/08/the-first-synagogue-in-the-americas-itamaraca-1634/

A HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

OS DETALHES SOBRE O NAVEGADOR ALEMÃO MUMIFICADO ENCONTRADO NAS FILIPINAS

OLYMPUS DIGITAL CAMERA
O barco do alemão Manfred Fritz Bajorat vagando pelo Pacífico, quando encontrado pelos tripulantes do veleiro de competição LMAX Exchange, quanse trinta dias antes de ser encontrado por pescadores filipinos – Fonte – http://www.dailymail.com

Um Moderno Drama Marítimo, Que Parece Ter Saído Das Páginas De Um Livro De Suspense Do Século XIX

Seguramente as coisas mais incríveis acontecem quando você menos espera.

Aquela manhã de 26 de fevereiro de 2016 deveria ter sido um dia normal de trabalho para Christopher Rivas e seu primo, companheiro de tripulação. Um dia como outro qualquer.

Quando apareceram as primeiras luzes da manhã no horizonte eles trouxeram seu pequeno barco de pesca para o porto de Barobo, na região de Surigao do Sul, no sul das Filipinas. Após vários dias de fortes tempestades eles partiram em meio a um belo dia de mar calmo e algumas horas mais tarde estavam nas suas zonas de pesca habituais, a cerca de 40 milhas da costa.

Tinha tudo para ser um dia rotineiro para aqueles dois pequenos pescadores artesanais asiáticos.

Mas não foi!

www.dailymail.co (34)
Área onde foi encontrado o veleiro do alemão – Fonte – http://www.dailymail.com

Em algum momento, quatro horas após iniciarem suas atividades, Christopher parou o que estava fazendo naquele momento e deixou seu olhar vagar sobre o mar, calmo e tranquilo como um espelho. Foi então quando o seu dia se transformou em algo muito difícil de esquecer.

No começo ele não tinha certeza do que estava vendo. De longe viu algo que estava imóvel e flutuando na água. Um pedaço de formas incertas, levado pelas correntes e ventos. Christopher e seu primo içaram as redes e, com parcimônia, se aproximaram do estranho objeto.

Surigao del Sur é relativamente perto de uma das principais artérias marítimas comerciais. Uma área que é rota usual de inúmeros cargueiros que partem da China, Coréia do Sul e Japão e seguem em direção a Europa e Estados Unidos. É uma rota naval tão ocupado, que é um fato totalmente normal os pescadores encontrarem materiais boiando nas águas. Muitas vezes encontram apenas lixo e porcaria flutuante, mas às vezes alguns deles encontram um volumoso contêiner abarrotado de mercadorias. Estes caem no mar a partir de navios de carga atingidos por uma forte tempestade e ficam à mercê das ondas.

www.dailymail.co (28)
Fonte – http://www.dailymail.com

É fácil imaginar a tensão que aumentou a bordo de pequeno barco de pesca filipino enquanto eles se aproximavam da grande objeto flutuante: ali poderia estar produtos eletrônicos ou componentes de alto valor, que se bem embalados em recipiente vedados, e se a água salgada não tivesse ocasionado muitos danos, Christopher e seu primo poderiam ter tirado um verdadeiro prêmio de loteria.

Mas conforme se aproximavam do objeto a expressão dos dois foi mudando. Ficou claro que aquilo não era um contêiner e nem lixo.

Logo, flutuando a poucos metros de seu barco estava um veleiro semi-submerso, modelo Jeanneau Sun Magic, de 44 pés.

O estranho barco não tinha mastro, sua quilha estava inclinada quase 30 graus, preenchido por um emaranhado de cordas, restos mutilados de velas e perecendo ter sido achatado pelas ondas. Estranhamente os dois painéis se encontravam em perfeito estado, como se toda devastação que atingiu o barco não os tivesse tocado.

www.dailymail.co (45)
Modelo e registro do veleiro encontrado – Fonte – http://www.dailymail.com

Parte do casco estava coberto de algas, crustáceos e moluscos. Uma marcação de linha de água escura e grossa deixava claro que havia muito tempo que aquele veleiro estava na água, mas o nome do barco estava perfeitamente distinto, Sayo, escrito em grandes letras pretas sobre a tinta branca rachada.

Christopher e seu primo cruzaram olhares nervosos e decidiram abordar o barco para descobrir o que se escondia ali dentro.

Dólares, latas de alimentos e fotos

A luz do sol penetrava através das pequenas escotilhas abertas, mesmo assim Christopher levou um tempo para acostumar os olhos à escuridão do interior da cabine.

Por algum local a água do mar havia penetrado na cabine, deixando água suficiente que chegava à altura dos tornozelos, onde flutuavam restos de comida, óleo e vários objetos. Então ele viu no fundo da cabine um homem sentado na mesa de navegação, que parecia estar cochilando sobre o seu braço direito, com o rádio a poucos centímetros de seus dedos.

O relatório detalhado da Estação de Polícia de Barobo permite reconstruir quase passo a passo o que aconteceu.

www.dailymail.co (36)
Assim o pescador filipino Christopher Rivas encontrou o navegador alemão Manfred Fritz Bajorat – Fonte – http://www.dailymail.com

Como afirmou Christopher em seu depoimento perante as autoridades policiais filipinos, nesse momento uma onda mudou o barco de posição, suficiente para que um raio de luz caísse sobre a cabeça do homem. Foi quando o pescador percebeu que seu dia seria realmente complicado, pois não é todo dia que você se depara com um barco fantasma e ocupado por uma múmia.

Assustados, os dois pescadores decidiram rebocar o iate golpeado para a costa. Conforme seguiam galgando as ondas, mais e mais água entrava na cabina. Quando os primeiros policiais chegaram ao Sayo, a água quase alcançava os joelhos do cadáver dissecado.

A primeira coisa que se observou foi que todos os valores ainda estavam a bordo, retirando a suspeita que aquele espetáculo dantesco fosse fruto de um ataque pirata, algo nada fora do comum naquela parte do Oceano Pacifico. Havia uma carteira cheia de dólares e euros, grandes estoques de alimentos enlatados e equipamentos de telecomunicações caros.

Flutuando na água estagnada dentro da cabine estavam dezenas de fotos, onde se viam pessoas com rostos sorridentes, cujas imagens se transformavam lentamente em manchas de cores turva pela ação da água do mar.

www.dailymail.co (31)
Fotos de Manfred e sua esposa Claudia encontrados no barco a deriva – Fonte – http://www.dailymail.com

Nas imagens estava um homem de meia-idade com um sorriso, ao lado de uma bonita mulher e de uma menina que com o passar dos anos se transformou em uma garota atraente. Havia fotos em alguma cidade da Europa Central, que logo davam lugar a imagens de um sorridente casal nos portos mais inesperados do mundo.

As perguntas estão a começaram a se acumular sobre os policiais.

O que aconteceu com aquele barco?

Como e quando aquele navegador tinha morrido?

E, acima de tudo, como poderia o seu corpo ter ficado preservado, em um último gesto que mostrava uma tentativa de fazer uma chamada de rádio?

Quem ele queria chamar?

E para quê?

Logo as autoridades começaram a ligar os pontos.

www.dailymail.co (48)
Fonte – http://www.dailymail.com

O Alemão Solitário

Uma carteira laminada com documentos permitiu dar uma identidade ao misterioso cadáver mumificado e único membro da tripulação.

Seu nome era Manfred Fritz Bajorat, um alemão de 59 anos que no final da década de 1990 decidiu trocar a sua ordeira e pacífica vida como vendedor de seguros de uma cidade da região do baixo Ruhr alemão e fugir do frio. Ele vendeu tudo o que tinha e foi explorar os mares do mundo com sua esposa, Claudia, com quem fora casado por mais de trinta anos. Informações apontam que eles tenham terminado o relacionamento em 2008.

www.dailymail.co (43)
Manfred e Claudia entre amigos – Fonte – http://www.dailymail.com

Segundo as autoridades constava que Manfred não era visto desde que havia estado no porto de Mallorca, Espanha, em 2009, quando conheceu outro navegador alemão chamado Dieter.

Posteriormente descobriu-se que o Sayo cruzou com outro barco no mar e depois tomaram conhecimento que quando Claudia morreu de câncer em 2010, Manfred a enterrou na ilha caribenha da Martinica.

www.dailymail.co (30)
Claudia Bajorat – Fonte – http://www.dailymail.com

Um dos documentos recuperados na cabine de Sayo mostrou que em 2013 foi emitida uma permissão ao proprietário deste barco pela polícia marítima em São Vicente, embora ainda não esteja claro se ele foi emitido em Cabo Verde, ou no Brasil, já que ambos os países possuem portos com o mesmo nome.

Mas a partir daí só breves atualizações em suas contas em redes sociais davam algum sinal de vida do navegador solitário alemão. Mas até que de repente, há cerca de um ano, estas também desapareceram completamente e a trilha do velejador solitário ficou perdida

Foi como se o alemão tivesse sido engolido pelas ondas… Até que ele apareceu mumificado nas águas Filipinas.

www.dailymail.co (37)
Fonte – http://www.dailymail.com

Enquanto o Sayo, exausto depois de completar a sua última viagem, permanecia amarrado a boias para evitar afundar, um médico legista examinou o corpo do marinheiro. Sua primeira conclusão foi que um ataque cardíaco fulminante matou o alemão e que ele já estava morto há mais de um ano, provavelmente dois.

Uma estranha e curiosa combinação de calor a alta temperatura dentro da pequena cabana, junto com o vento marinho carregado com sal, tinha sido capaz de drenar o corpo de Manfred Bajorat e, sob muitos aspectos, em perfeito estado.

www.dailymail.co (42)
O barco encontrado estava bem abastecido – Fonte http://www.dailymail.com

Entretanto, logo circulou na internet uma outra versão. Teoricamente surgida em jornais filipinos, apontou que o relatório da autópsia em Manfred, apesar de seu corpo mumificado, teria levado a conclusão que ele poderia ter morrido de um ataque cardíaco “em torno de sete dias antes da data que ele foi encontrado na costa da Barobo”. Especialistas forenses explicaram que uma combinação de calor tropical, vento seco e ar salgado do mar podem “preservar, ou mumificar, um cadáver, com o processo acontecendo mais rapidamente em pessoas mais magras”.

www.dailymail.co (39)
Fonte – http://www.dailymail.com

Independente desta questão, para quem viu o barco na costa filipina se impressionou com o contraste entre o corpo incorrupto de Manfred e suas fotos de família. Havia várias fotografias de viagens a França, Luxemburgo, Bélgica e outras regiões. Algumas imagens mostravam Manfred ao lado de amigos, de Claudia, de Nina Bajorat, a filha do casal. Aquilo foi considerado profundamente perturbador.

Outra situação que chamou a atenção da polícia das Filipinas foi o fato que havia poucos pertences pessoais, além do álbum de fotos.

www.dailymail.co (46)
Claudia e Nina – Fonte – http://www.dailymail.com

Enquanto os filipinos buscavam respostas, logo surgiu a notícia que quase um mês antes o estropiado veleiro havia sido visto pela tripulação de outro veleiro e um de seus tripulantes chegou até a cabine do Sayo e encontrou o corpo mumificado de Manfred Bajorat

Visto e Esquecido…

Na manhã de 31 de janeiro de 2016 o veleiro de competição de alto desempenho LMAX Exchange, participava da 7ª etapa da competição Clipper Round the World Yacht Race. Eles estavam percorrendo um trecho entre Airlie Beach, Austrália, até o porto de Da Nang, no Vietnã, quando as 06:24 avistaram um iate com um mastro quebrado, sem tripulação visível e denominado Sayo.

www.dailymail.co (53)
O veleiro de competição LMAX Exchange no Rio de Janeiro – Fonte – O Globo

O capitão do LMAX Exchange, o francês Olivier Cardin, informou a organização da corrida que estava momentaneamente paralisando sua participação para examinar um iate abandonado, que se encontrava à deriva em seu caminho, tendo este barco sido avistado nas coordenadas 11 38N / 137 46E, a 650 milhas náuticas a leste das Filipinas e a 470 milhas náuticas a oeste da Ilha de Guam. Este último local é um território pertencente aos Estados Unidos desde 1898, fica localizado na Micronésia, na extremidade sul das Ilhas Marianas, no oeste do Oceano Pacífico.

www.dailymail.co (33)
O barco de Manfred visto a partir do veleiro LMAX Exchange – Fonte – http://www.dailymail.com

O capitão Cardim então apitou a sirene de bordo, mas alma viva deu as caras fora da cabine do Sayo. Ele então ordenou que seu pessoal preparasse um de seus tripulantes para abordar aquele estranho barco e saber o que acontecia dentro.

O barco de competição deu uma volta e, ao passar próximo do iate, o tripulante se jogou ao mar e nadou em direção ao barco aparentemente abandonado. Este tripulante colocou na testa uma pequena câmera a prova d’água, de alta resolução, destinada a filmar o que encontrasse.

OLYMPUS DIGITAL CAMERA
Tripulante do veleiro de competição nadando para o veleiro de Manfred – Fonte – http://www.dailymail.com

Após certa dificuldade para subir a bordo do veleiro, o tripulante do LMAX Exchange começou a investigar o que havia na embarcação e entrou na cabine. Foi quando ele tomou um grande susto ao encontrar o corpo mumificado de Manfred Bajorat.

Neste link é possível ver a filmagem da abordagem e  o susto do tripulante ( http://www.dailymail.co.uk/news/article-3481756/The-moment-mummified-sailor-discovered-Yacht-team-release-footage-crew-member-tragic-German-widow-horrifying-state.html ).

Ao saber do achado o capitão Cardim entrou em contato com a base da Guarda Costeira dos Estados Unidos (United States Coast Guard – USCG)  em Guam e informou o achado. Os americanos então transmitiram aos tripulantes do LMAX Exchange que, como eles não poderiam fornecer nenhuma assistência adicional, a equipe deveria continuar na competição enquanto os membros da Guarda Costeira em Guam assumiriam a investigação. 

www.dailymail.co (47)
Fonte – http://www.dailymail.com

Justin Taylor, Diretor da Corrida Clipper, também notificou a embaixada alemã em Londres, que informou a polícia alemã e a marinha daquele país sobre o ocorrido.

Através dos dados de registro do barco fornecidos pela equipe de competição, a polícia germânica começou a buscar os parentes de Manfred, para descobrir quando ele entrou em contato pela última vez e tentar determinar quando ele morreu. 

Só que estranhamente, pelo menos em relação às últimas notícias conseguidas pelo TOK DE HISTÓRIA, ou ninguém foi atrás do veleiro do alemão Manfred Bajorat, ou se foram não encontraram nada, ou talvez não valesse a pena o esforço americano resgatar o cadáver de um navegador solitário alemão.

www.dailymail.co (27)
O barco patrulha USCGC Washington (WPB-1331), da Guarda Costeira dos Estados Unidos, que tem sua base em Guan – Fonte – http://www.uscg.com

Vale ressaltar que segundo o site da Guarda Costeira em Guam ( http://www.uscg.mil/d14/sectguam/default.asp ) lá existem três embarcações de pronta utilização, sendo duas de patrulha, entre estas a que é apresentada na foto, o USCGC Washington (WPB-1331).

As provas fotográficas feitas em 31 de janeiro pela equipe do LMAX Exchange derrubaram totalmente a tese que Manfred Bajorat só poderia ter morrido de um ataque cardíaco “em torno de sete dias antes da data que ele foi encontrado na costa da Barobo”.

Independente destas questões, o certo foi que o Sayo e seu quieto tripulante percorreram mais de 600 milhas náuticas até a descoberta macabra de Christopher Rivas.

“Que a sua alma para encontrar a paz. O seu Manfred”

É difícil entender como um veleiro de 12 metros pode navegar à deriva por muito tempo sem que ninguém perceba. Talvez a enormidade do Pacífico e a própria natureza solitária em que Manfred estava vivendo ajuda a entender o caso.

www.dailymail.co (35)
O Sayo nas Filipinas – Fonte – http://www.dailymail.com

Entre todos os documentos existentes no Sayo, o mais significativo encontrado pelos filipinos foi um texto com cerca de 20.000 palavras e dedicado a falecida esposa de Manfred. Ele estava trabalhando neste material quando a morte o surpreendeu no mar.

“Trinta anos estivemos no mesmo caminho. Então, o poder dos demônios foi mais forte do que o desejo de viver. Você me deixou. Que sua alma encontre a paz. O seu Manfred”.

Dependendo do leitor pode ser muito complicado, ou muito fácil, imaginar o sentimento de perda daquele solitário homem do mar, navegando sem curso, em busca de um consolo de que a enormidade do oceano não poderia lhe dar.

www.dailymail.co (29)
O Sayo flutuando com ajuda de boias – Fonte – http://www.dailymail.com

Mas não é difícil imaginar o momento de pânico na hora que Manfred sentiu a picada reveladora em seu peito, que anunciou que ele estava sofrendo um ataque cardíaco, totalmente sozinho, a centenas de quilômetros de alguma área habitada. É impossível ficar indiferente ao saber que aquele ser humano, na sua mesa de navegação onde estava seu rádio, tentou enviar uma mensagem de socorro com os dedos cada vez mais desajeitados e sua condição ficando cada vez mais limitada.

O que nós não precisamos imaginar é a postura serena e descontraída com que o seu corpo, com a mão muito perto do transmissor, submergiu em um sono profundo e eterno.

www.dailymail.co (44)
Fonte – http://www.dailymail.com

Aparentemente por quase dois anos o Sayo e seu capitão fantasma caminharam juntos no Pacífico, em meio a tempestades, áreas de noites calmas e longos dias de verão e inverno. Uma versão moderna do fantasmagórico navio Flying Dutchman ( Sobre a história deste barco veja – https://tokdehistoria.com.br/2013/10/03/flying-dutchman-o-mais-famoso-navio-fantasma/ ).

Durante todo esse tempo, apenas as estrelas e, talvez, alguma baleia solitária testemunharam como o barco estava indo devagar, se desmanchando diante dos elementos, enquanto o capitão permanecia sentado, realizando uma chamada eterna em busca de uma ajuda que nunca chegou.

www.dailymail.co (50)
O barco de Manfred chegando as Filipinas – Fonte – http://www.dailymail.com

No Sayo foi encontrada uma placa de bronze aparafusada, onde está gravada uma mensagem, que agora, vista em perspectiva, é arrepiante: “Este barco é um deleite para o capitão, mas um inferno para os marinheiros”.

Sem dúvida que Manfred Bajorat, como capitão e único membro da tripulação do Sayo, conheceu profundamente os extremos dessa sentença.

www.dailymail.co (40)
Fonte – http://www.dailymail.com

E só ele tem as respostas para todas as questões que vão ficar para eternidade.

————————————————————————–

Texto produzido com base no texto do espanhol Loureiro Manel e publicado em

http://www.elmundo.es/cronica/2016/03/10/56da9b3922601d21408b462e.html

Ver também – http://www.express.co.uk/news/world/650684/Mummified-captain-German-Manfred-Bajorat-sailor-yacht

UMA VISITA AO RIO GRANDE DO NORTE

A República-3 de dezembro de 1919
Jornal “A República”, Natal-RN, 3 de dezembro de 1919

Manuel de Oliveira Lima foi um ilustre escritor, crítico, embaixador do Brasil em diversos países, professor-visitante na Universidade de Harvard e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL). Em novembro de 1919 ele esteve em terras potiguares e o blog TOK DE HISTÓRIA traz na íntegra o interessante relato do próprio Oliveira Lima sobre essa visita.

NOTA – Este material foi originalmente publicado no site http://www.consciencia.org/

É um ótimo sinal quando se chega a uma terra que não é uma terra de arte como a Itália ou a Grécia, ou uma terra de incomparáveis belezas naturais como o Japão ou a Suíça, e as coisas que há a mostrar ao estrangeiro são escolas e hospitais.

Quer isto dizer que essa terra acalenta as preocupações sociais sem as quais qualquer comunidade se torna improgressiva e infecunda do ponto de vista humano. Como o Rio Grande do Norte parece precisamente que nutre e dá, pelo que verifiquei, expansão a semelhantes preocupações, sendo isso tanto mais de admirar quanto é um dos Estados mais pobres da Federação.

www.fernandomachado.blog.br
Manuel de Oliveira Lima – Fonte – http://www.fernandomachado.blog.br

É clássica a pilhéria de que os vencimentos dos seus empregados públicos se pagavam em parte com jerimuns, cuja abundância era notável ao lado da escassez do numerário. As circunstâncias decerto mudaram: os jerimuns devem ter diminuído ao ponto que os não vi e achei pouco delicado perguntar por eles, e o numerário, se não cresceu muito, tem sido aproveitado com tamanha felicidade que tem chegado para dotar-se o Estado de boas escolas, entre elas notáveis grupos escolares, e atender-se a serviços de assistência aos doentes, aos loucos e aos desvalidos.

Ao aproximarmo-nos de Natal, ao largo da linha negrft dos arrecifes, antes de dobrarmos a fortaleza dos Reis Magos, inofensiva hoje mas sempre pitoresca, que a patina secular embeleza e o senso da tradição faz conservar, e de subirmos o amplo Potengi, avista-se no cimo de um morro, a cavaleiro da praia onde se quebram as ondas e com um horizonte de colinas cobertas de uma vegetação escura, um grupo de construções. São o hospital, a cadeia e o asilo, o primeiro e o último já remodelados de maneira a preencherem adequadamente os seus fins.

O desvelo manifestado por semelhantes assuntos de pedagogia e de assistência honra o espírito público dos dirigentes. Mas também os dirigidos se distinguem pela sua cordura e urbanidade.

DSC04395
Coleção TOK DE HISTÓRIA

Tem-se a impressão de lidar com gente boa, de sentimentos mais pacíficos, e de fato o sertão do Rio Grande do Norte destoa dos sertões vizinhos em não apresentar essa feição peculiar do banditismo. A população acusa, portanto, uma superior disposição moral. Por quê? Não saberia dizê-lo, nem me deram disso a razão. O Rio Grande do Norte tem ainda falta de sociólogos. A superior mentalidade feminina que observei deverá ser, antes do que causa, resultado daquela condição do meio.

É curioso verificar esse maior desenvolvimento intelectual da mulher, que se sente como se sente que já vem de longe o favor que merece o ensino. A primeira formação espiritual da notável escritora que foi Nísia Floresta fez-se no agreste de Papari, desabrochando das brenhas essa flor de civilização. Outras senhoras continuam e zelam semelhante tradição, que dota a inteligência do seu sexo de uma maior independência e de uma maior amplidão. A Escola Doméstica de Natal, da qual não é exagero quanto se disser de bom que não tem sua parelha no Brasil, nem mesmo noutros países, havia forçosamente de adaptar-se ao meio, nele se sentido à vontade.

Ouvi que exerceram grande influência em Natal na sua atividade de educadoras duas americanas, Miss Reed e Miss Porter, se não me engano. Miss Leora James, a diretora incomparável da Escola Doméstica, que pela organização e pela disposição parece um pedaço dos Estados Unidos encravado no Rio Grande do Norte, não faz mais do que seguir-lhes as pegadas na esfera que lhe proporcionou a lúcida iniciativa do Governo.

eloy4web
Alunas da Escola Doméstica de Natal em uma aula na horta do educandário – Fonte – http://www.skyscrapercity.com

A educação americana é útil pelo seu espírito prático adequado às vicissitudes da vida, pelo bom humor que preside ao seu desenvolvimento, por uma tonalidade que não é apenas jovial mas altamente eficiente. Considero-a vantajosa para a nossa mentalidade mais formalista e mais pautada pelas convenções. Nos discursos pronunciados na festa literária pelas alunas graduadas da Escola Doméstica pode perfeitamente notar-se esse influxo americano. Nem sentimentais, nem bombásticos, esses discursos, por elas elaborados, foram todos repassados de um humour que se casa perfeitamente com a saudade descrevendo um, com a franqueza da despedida, episódios da vida escolar, esboçando outro com uma ponta de malícia mas sem maldade os perfis dos mestres com os seus cacoetes, dando outro a conhecer um testamento muito espirituoso, formulando ainda outro com graciosa ironia o programa que por magia cada uma dessas moças se traçara para a existência. Esta última produção é da aluna Isabel Dantas, que teve o prêmio de viagem.

A Escola Doméstica não tem desviado sua atenção do fim essencial da sua ação, que é ajudar o progresso social da comunidade, dando às moças, que serão amanhã mães de família, além dos conhecimentos gerais indispensáveis à vida da inteligência, o preparo necessário para desempenharem conscientemente, isto é, cientificamente, as diferentes categorias de atividade em que até aqui procediam empiricamente, quer dizer, instintivamente. Assim é que para a aula de puericultura existe anexa uma creche com seis crianças, de dois dias a cinco anos, cuja evolução fisiológica e psicológica pode, portanto, ser diretamente observada.

vaq-16
Oliveira Lima assistiu uma tradicional vaquejada, com vaqueiros trajando sua característica vestimenta de couro, como apresentada nesta foto do início do século XX. Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

A essa chamada e verdadeira medicina do lar agregam-se cursos que debalde se procurariam noutras instituições: o de educação social, a cargo de Henrique Castriciano; o de educação estética, comportando a decoração da casa, uma arte simples e encantadora mas ainda rara no nosso meio; de direito usual, para que as mulheres não ignorem nem os seus direitos civis, nem o que seja uma hipoteca ou outra qualquer transação sobre propriedade, assim evitando que pela vida adiante venham a ser logradas nos seus bens.

Não há por enquanto na Escola um campo de tennis. Entretanto, o sport não é alheio ao belo sexo do Rio Grande do Norte: pela mais gentil das deferências, baixei a terra numa embarcação tripulada por adestradas remadoras do Clube Náutico feminino. Outros desportos florescem: não posso dizer se também o football entre os homens. É mais que provável, se bem que sem o furor que noutro Estado do norte divide a sociedade local em campos irreconciliáveis, sendo por exemplo vedado ao membro ou partidário de um dos dois clubes fazer negócio com o do outro clube, extremando-se o comércio nesses antagonismos e chegando não raro os desaguisados de opinião à pancadaria.

Ao sertão não alcançaram, porém, ainda esses exercícios físicos americanos e o seu desporto principal continua a ser a vaquejada nacional. Assisti a uma na Fazenda Santa Rita, em que tomaram parte oitenta e tantos artistas, na maior parte profissionais vestidos de couro — a vestia, o dianteiro, as perneiras, o chapéu de abas e as meias-luvas — alguns, porém, amadores, como um negociante da Serra Caiada que me confessou que dava a alma por essa corrida em disparada atrás do animal que o cavaleiro trata de segurar pela cauda e desse modo derrubá-lo, para o que se requer força e agilidade. Já noutras ocasiões tinha partido um braço, uma perna e uma clavícula; concertara tudo e lá estava numa das filas de cavaleiros, esperando a saída do bicho do curro.

95798
Antiga sede da Escola Doméstica de Natal – Fonte – tribunadonorte.com.br

Se já não tivesse quatro filhos, não perdia uma, rematou. E eu dava-lhe razão, porque a vaquejada deve ali operar como a tourada no espírito dos que se criaram assistindo a elas e interessando-se por quanto lhes diz respeito.

A Escola Doméstica de Natal representa uma soma incalculável de esforço e de tenacidade. Não faltavam preconceitos a disputar-lhe o passo. Foi ela combatida como pouco pudica por ter uma seção de puericultura, a qual entretanto é de natureza a prestar relevantes serviços, ajudando a cruzada do saneamento da população nacional, empreendida por alguns espíritos previsores e generosos. Nós sabemos quanto é avultada no país a mortalidade infantil e que a razão disto está mais que tudo na falta, não de carinho, mas de cuidados inteligentes dados à alimentação e à higiene das crianças.

Ciência ou arte, a puericultura deve adquirir-se como qualquer outra, e é como se procede hoje nos Estados Unidos, que tão grande atenção estão prestando a esse gênero de questões.

A Escola foi ainda increpada de fútil por pretender ensinar a coser, a lavar e engomar, a cozinhar, a fabricar manteiga e queijos, a tratar de galinhas, a cuidar de jardins e de hortas. Ora, um minuto de reflexão basta para indicar quanta utilidade envolve tudo isso. Ensina-se a costura e a cozinha naquele estabelecimento de instrução com o máximo do gosto e o máximo da economia. No Brasil os pobres sofrem de falta de alimentação substancial mais do que na Europa: em compensação, porém, os que podem gastar, e mesmo os remediados, comem demasiado, considerando uma mesa opípara ou pelo menos muito farta a primeira das condições do conforto. O nosso jantar comum de família compõe-se de dois e três pratos de meio, quando um bastaria, com uma sopa e uma sobremesa. E o desperdício no preparar iguala o desperdício no consumir. O banquete que me foi oferecido pela Escola Doméstica, todo de execução das alunas graduadas, auxiliadas pelas do segundo ano, consistia numa boa sopa, um peixe excelente, galinha com salada de legume e sorvete de abacaxi.

almoc3a7o-para-rafael-fernandes-na-antiga-ed-anos-1930
Henrique Castriciano de Souza foi um dos que estiveram junto de Oliveira Lima na sua visita ao Rio Grande do Norte – Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

As alunas aprendem a compor o seu orçamento culinário como outro qualquer e a respeitarem esses orçamentos: assim fizessem os governos. Os vestidos das graduadas, para a festa da formatura, por elas próprias executados, custaram, fazenda e enfeites, 47$000 cada um. Também para os trajes se faz orçamento, o que constitui uma magnífica promessa de tranquilidade nos casais. A modéstia é de rigor na vestimenta escolar. Trajam todas igualmente de branco, sem sacrifício da elegância compatível com a simplicidade, e não usam joias, para não estabelecer diferenças de fortuna assinalando-as por esse meio.

Compreende-se a vantagem que o fabrico dos laticínios pode emprestar a muitas raparigas, filhas de criadores, cujas manadas de vacas dão muito mais leite do que podem consumir suas famílias e que só aproveitam as sobras em uma espécie tradicional de requeijão. A avicultura é outra ciência de grandes benefícios, como também a pomicultura e a horticultura. Tudo isso, aliás, distrai dos trabalhos puramente mentais e varia o programa escolar, contribuindo para completar uma educação feminina. A vida no internato faz-se assim tão aprazível, dada também a suavidade da direção, a qual não exclui a disciplina, apenas trata de torná-la consciente, que não há por assim dizer aluna que não deixe a escola com vivas saudades da atmosfera de bem-estar e de cordialidade que em redor delas soube criar a ótima educadora a quem em boa hora a Liga do Ensino confiou semelhante tarefa.

teatro-e-bonde-4
Na época da visita de Oliveira Lima a Natal, a cidade tinha uma população com pouco mais de 30.000 habitantes. Na foto vemos o então Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

Nessa vivenda adrede construída, em boa parte segundo as indicações da mesma diretora, passa-se uma existência muito mais de família que de colégio, na velha acepção do termo, cumprindo cada qual seus deveres com satisfação e não se regateando as ocasiões de agradável intercurso, participando as alunas da administração comum, vivendo portanto do espírito da casa que é de método ao mesmo tempo que de liberdade, e é sobretudo de autonomia no pensar e no sentir. Pelo que pude ver, as alunas adquirem desembaraço sem contraírem desenvoltura.

A festa da Escola terminou por uma alegoria à paz, a qual expulsa do palco a guerra, enquanto os Estados Unidos e o Brasil se unem num amplexo de aliança. Os educadores norte-americanos, longe de quererem suscetibilizar o sentimento patriótico das nações da América do Sul, fazem o que está ao seu alcance para avivá-lo, no interesse mesmo da cooperação e solidariedade visadas. A sua ação redunda igualmente na disseminação do espírito associativo, que faz parte integrante do feitio americano. A seção culinária da Escola Doméstica de Natal já está ensaiando uma espécie de “extensão” entre as famílias; mediante o preparo, pelas matronas que aderem aos clubes gratuitos, de conservas de legumes e frutas com que aproveitar o produto de umas estações em outras, também de bolos e doces.

oliveira-lima1
Oliveira Lima em seu local de trabalho – Fonte – http://www.cafecolombo.com.br

De tudo quanto me foi dado observar na minha rápida visita ao Rio Grande do Norte, eu trouxe a impressão consoladora para um espírito brasileiro de que no seu governo e nos agentes que lhe personificam a ação existe mais pronunciado do que noutros pontos do território nacional o sentimento do dever cívico que se desdobra no dever humanitário para com os nossos semelhante. O fato deixará de parecer surpreendente a quem tiver em mente que o vulto histórico para quem vão todas as simpatias locais, todo o culto da comunidade, foi não um agitador ou um demagogo, mas um homem essencialmente de caráter.

O Padre Miguelinho foi um sacerdote instruído e meigo, professor querido dos seus discípulos e espírito não só ilustrado como preocupado de conciliação e de concórdia; mas o que sobretudo o torna grande entre as vítimas generosas da revolução de 1817 foi a sua inquebrantável lealdade para com os companheiros de revolução e sobretudo para com a sua fé política. Nessa figura tocante, que resistiu ao apelo à vida que lhe estendiam, é que se concentra a devoção patriótica dos rio-grandenses do norte. O influxo de tal devoção não podia deixar de ser salutar para uma sociedade.

Parnamirim, dezembro de 1919

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971. Através do link – http://www.consciencia.org/uma-visita-ao-rio-grande-do-norte

———————————————————————————————————————————————-

download
Fonte – pt.wikipedia.org

Manuel de Oliveira Lima (Recife, 25 de dezembro de 1867 – Washington, Estados Unidos, 24 de março de 1928).

Oliveira Lima começou a trabalhar como jornalista com catorze anos de idade. Em seus artigos constantemente criticava o domínio das oligarquias sobre a recém-fundada República e por isso ganhou fama de monarquista.

Formou-se em letras na Faculdade de Lisboa em 1887, e em 1890 começou a trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Atuou como diplomata em Portugal, Bélgica, Alemanha, Japão e Estados Unidos.

Foi encarregado de negócios da primeira missão diplomática brasileira no Japão. Em 1901 deu parecer contrário ao projeto brasileiro de recebimento de imigrantes japoneses. Escreveu então ao Ministério das Relações Exteriores alertando sobre o perigo de o brasileiro se misturar com “raças inferiores”.

Chegou a ser falado para a embaixada brasileira em Londres mas o Senado não aprovou sua indicação. Oliveira Lima era malvisto pelo governo britânico por defender que o ideal de que o Brasil permanecesse neutro na Primeira Guerra Mundial e por sua proximidade intelectual com a Alemanha.

Também fez inimigos dentro do país, em parte por não aprovar a atitude expansionista da República em situações como a anexação do Acre realizada pelo Barão do Rio Branco. Ele dizia que o território nacional já era vasto e muito mal fiscalizado e que a verdadeira expansão do Brasil só viria através do comércio.

Oliveira Lima sempre gostou de ler e escrever. publicou numerosas obras de história, entre elas: Memória sobre o descobrimento do BrasilHistória do reconhecimento do ImpérioElogio de F. A. VarnhagenNo JapãoSecretário Del-ReiDom João VI no Brasil. Sobre esta última obra de história que Oliveira Lima publicou é importante destacar sua importância para o rearranjo da historiografia brasileira, pois ela é considerada como sendo um clássico da historiografia nacional segundo o Lima um intelectual que têm variadas conferências sobre a formação da nacionalidade brasileira. A ilustre obra “Dom João VI no Brasil” é considerada como sendo uma das grandes obras do autor Oliveira Lima. Essa avaliação é feita por muitos estudiosos e autores relacionados a questões significativas sobre o Brasil. Alguns autores e escritores como Gilberto Freyre, Octavio Tarquínio de Souza e Wilson Martins já tiveram a oportunidade de escrever sobre os relatos de Oliveira Lima contidos nesta obra de grande prestígio para a historiografia brasileira. 

Em 1913 quando já morava nos Estados Unidos, Oliveira Lima doou sua descomunal biblioteca à Universidade Católica de Washington por temer que a coleção não recebesse os cuidados adequados no Brasil. Impôs a condição de que ele próprio fosse o primeiro bibliotecário e organizador do acervo, função que desempenhou por quatro anos.

Em 1924 foi apontado professor honorário da Faculdade de Direito do Recife.

Morreu em 1928 e foi enterrado no cemitério Mont Olivet, Washington. Em sua lápide não consta seu nome, mas a frase “Aqui jaz um amigo dos livros“.

FONTE – https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Oliveira_Lima

MAIS SOBRE OLIVEIRA LIMA – http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Oliveira+Lima&ltr=o&id_perso=413

SOBRE O SITE http://www.consciencia.org/

Este site é um espaço virtual de estudo, pesquisa e ensino. Tradicional site de filosofia, que ampliou o leque temático para abranger outras ciências humanas: História do Brasil, História Geral, Literatura, Antropologia, Sociologia, Linguística e áreas afins. Foi criado em 1997, pelo filósofo Miguel Lobato Duclós (1978-2015). Segundo seu pai, Nei Duclós, o trabalho desenvolvido por Miguel Lobato Duclós proporcionou a criação de um vasto acerto virtual de conhecimento, um trabalho pioneiro num país onde a universidade ainda possui um forte preconceito contra a internet. O espaço virtual consciência.org atrai milhares de estudantes e é responsável pela introdução à Filosofia e atualização do conhecimento para mais de uma geração de alunos, que se mostram admirados e agradecidos, como atestam as inúmeras cartas recebidas e publicadas neste website.

O blog TOK DE HISTÓRIA homenageia Miguel Lobato Duclós como verdadeiro pioneiro da democratização da informação intelectual em espaço virtual.

 

 

BRASIL TEVE O MAIOR PARTIDO NAZISTA FORA DA ALEMANHA

ilustrahistoria_230911
Reprodução da capa de revista Der Nationalsozialist, periódico do Partido Nazista.

Estima-se que existiram 2,9 mil filiados ao partido em 17 estados brasileiros

Apesar de o Brasil não ter aderido ao nazismo – e lutar contra ele junto aos aliados na Segunda Grande Guerra –, um grupo de alemães que morava no país cultivou as ideologias propostas por Adolf Hitler. Essas pessoas ajudaram, inclusive, a colocar o Füher no poder em 1933.

Calcula-se que chegaram a 2,9 mil os filiados ao Partido Nazista Brasileiro. Mesmo se tratando de um partido, ele não almejava nem concorrer a eleições nacionais, nem ser registrado na Justiça Eleitoral do Brasil. Por este motivo, o presidente Getúlio Vargas e os governadores locais não se importaram com sua fundação, pelo contrário, eram simpatizantes, até mesmo participaram de festividades nazistas. O partido existiu em 83 países, mas, no exterior, foi justamente no Brasil onde teve mais repercussão. “Sua expressividade foi maior, inclusive, do que em países como a Áustria e a Polônia, que estavam sob a tutela do 3.º Reich”, afirma a professora de História da Universidade Federal do ABC Ana Maria Dietrich.

634951648172270000

Fundação

Um documento mostra que foi em Santa Catarina, na cidade de Timbó, em 1928, que o partido foi fundado no país. O estado, porém, teve um número menor de filiados (528) do que São Paulo (785). No Paraná, o partido foi o quinto maior (com metade dos filiados em Curitiba). Segundo o Censo da época, havia 12 mil alemães natos no estado, dos quais menos de 2% eram filiados. “Os nazistas do Paraná, do ponto de vista institucional, não se reportavam diretamente à Alemanha. Acima estava o Landesgruppe (com sede em São Paulo) e este, por sua vez, se reportava à Auslandsorganisation (Organização do Partido Nazista para o Exterior), em Berlim”, explica o historiador Rafael Athaides, que acaba de lançar o livro O partido nazista no Paraná (Editora UEM, R$ 50 com frete).

Na foto, crianças alemãs da cidade de Presidente Bernardes (SP) fazem a saudação a Hitler, na década de 1930.

Comunidade alemã

A explicação para o partido nazista ter sido bem sucedido por aqui está diretamente relacionada com a extensa comunidade alemã do Brasil – eram cerca de 230 mil – que migraram, sobretudo para São Paulo, na década de 1920, quando a Alemanha de Weimar estava em crise e havia a busca por melhora na vida econômica.

Assim como na Alemanha, o partido nazista brasileiro pregava a superioridade de certas raças, combatia o comunismo, fomentava o repatriamento de alemães (muitos retornaram, após receber um financiamento) e, graças ao partido, os alemães daqui também puderam votar em Hitler para assumir o poder na Alemanha em 1933. “O Füher também financiou atividades nazistas nas empresas alemãs instaladas no país”, conta Ana.

634951622256170000

No Paraná, segundo Athai­­des, a atuação do partido foi barulhenta. “Se fez sentir, sobretudo, nos indivíduos da comunidade germânica do estado. Os nazistas se sentiam no direito de se portar como administradores das entidades germânicas locais ”, afirma. É claro que, para fazer parte do partido, era preciso ser alemão de nascimento (os descendentes não eram bem-vindos). Os partidários, de certa forma, também sabiam que o nazismo não era apenas uma reviravolta na economia alemã – que cresceu e quase zerou o desemprego –, mas, acima de tudo, era violento e exterminador.

Dentre as organizações vinculadas ao Partido Nazista Brasileiro, uma delas era a Juventude Hitlerista. “O discurso de Hitler era o de investir em crianças e jovens, porque, dizia ele, os velhos estavam gastos”, afirma a historiadora Ana Maria Dietrich. As crianças alemãs que viviam no Brasil cantavam hinos nazistas, celebravam o aniversário de Hitler e faziam saudações a ele. O Füher pediu a introdução da disciplina de eugenia nas escolas. As crianças aprendiam, entre outras coisas, que não podiam se miscigenar. Os professores das escolas alemãs do Brasil foram orientados a ensinar às crianças segundo os ideários do 3º Reich. 

Amazônia seria alvo de alemães

Existem diversas especulações de que os nazistas pretendiam criar uma área alemã no Brasil, mas historiadores descartam a hipótese porque esta intenção política nunca foi documentada. Na verdade, segundo historiadores, isso não passa de confusão.

634951646183200000

Primeiro porque existiu uma expedição de alemães, patrocinada por nazistas, de 1935 a 1937, à Amazônia. “Na verdade, estas expedições de reconhecimento de território eram comuns à época. A questão é que um dos integrantes morreu durante o caminho e o enterram lá com uma cruz que existe até hoje”, afirma a historiadora Ana Maria Dietrich. A cruz, que tem uma suástica, é explorada como atração turística no Amapá.

O historiador Rafael Athaides lembra que a ideia de que os nazistas “agiam sorrateiramente para conquistar o Sul do Brasil é uma falácia veiculada pela mídia durante a Segunda Guerra Mundial.”

Um pequeno cemitério isolado que fica a mais de uma hora e meia de barco da sede do município de Laranjal do Jari, no extremo Sul do Amapá, guarda resquícios da história que relembra uma expedição da Alemanha Nazista na floresta amazônica na década de 1930 – Fonte – https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/sepultura-nazista-isolada-no-amapa-revela-projeto-secreto-de-colonizacao-alema-na-amazonia.ghtml

“Esse mito de ‘perigo alemão’ serviu durante o Estado Novo (1937–1945) por dois motivos”, diz Athaides. Um deles, o projeto nacionalista varguista, que via nos alemães uma ameaça nacional; outra, a aproximação do Brasil com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra, que resultou em benefícios econômicos ao país, mas criou a necessidade de rompimento com a Alemanha.

Atualidade

Outra confusão que costuma acontecer é associar as ações dos neonazistas (de hoje) com a comunidade alemã e o nazismo histórico. Athaides acredita que é pouco provável que exista qualquer ligação. “Basta fazermos um levantamento do perfil dos indivíduos presos por atividades neonazistas. Nenhum deles é descendente dos nazistas históricos”, diz, antes de completar em seguida. “Os neonazis são, em geral, jovens, desprovidos de referencial identitário e que manipulam os signos do nazismo no mundo.” (PM)

Fonte – http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/brasil-teve-o-maior-partido-nazista-fora-da-alemanha-cf8zq3aco0zap6q9928osdzym

P.S. – Algumas fotos possuem função meramente ilustrativa.

Fonte das fotos – http://historia.newsweek.pl/odpowiedzialnosc-niemcow-za-ii-wojne-swiatowa-spoleczenstwo-niemieckie-ii-wojna-swiatowa,artykuly,371716,1.html

LEI PODE DAR CIDADANIA A BRASILEIROS DESCENDENTES DE JUDEUS

Passaporte português está mais próximo de milhares de brasileiros descendentes de sefarditas - Foto: iStock
Passaporte português está mais próximo de milhares de brasileiros descendentes de sefarditas – Foto: iStock
Decreto divulgou lista oficial de sobrenomes e o que é necessário para conseguir o passaporte português

Milhares de brasileiros podem obter a cidadania portuguesa como descendentes de sefarditas. A lei portuguesa que beneficia os herdeiros dos judeus expulsos da Península Ibérica no século 15 foi aplicada pela primeira vez em outubro, com a aprovação de três pedidos de naturalização, um deles vindo justamente do Brasil.

Embora não existam dados oficiais que confirmem o número atual de sefarditas, diferentes organizações judaicas estimam que haja 3,5 milhões em todo o mundo. No Brasil, eles seriam em torno de 40 mil, dos cerca de 110 mil judeus que vivem no país.

Mas o número de brasileiros beneficiados pela medida do governo português pode ser significantemente maior, já que a lei não especifica que apenas os descendentes que ainda pratiquem o judaísmo sejam contemplados com a naturalização.

“O critério legal é a ascendência sefardita portuguesa, não a religião do interessado. Como se sabe, um segmento importante de pessoas abrangidas pela lei é de descendentes de judeus sefarditas que foram forçados à conversão ao cristianismo”, explica à BBC Brasil o advogado português Rui Castro, especialista em processos de cidadania lusa e que mantém escritórios no Brasil e em Portugal.

Em 1496, o rei D. Manuel determinou a expulsão de todos os judeus do território português. Os que optaram por permanecer no país foram obrigados a se converter, ficando conhecidos como cristãos-novos. Durante o período da Inquisição, muitos desses judeus convertidos também foram perseguidos e forçados a abandonar Portugal, refugiando-se em diversos países, entre eles o Brasil.

Sobrenomes oficiais

A aquarela 'A Expulsão dos Judeus', do artista português Roque Gameiro, retrata a história da Inquisição em Portugal - Foto: Reprodução
A aquarela ‘A Expulsão dos Judeus’, do artista português Roque Gameiro, retrata a história da Inquisição em Portugal – Foto: Reprodução

Desde que surgiram as primeiras notícias há aproximadamente dois anos, de que Portugal e Espanha aprovariam leis que facilitariam a naturalização dos descendentes de sefarditas, circulam pela internet listas com milhares de sobrenomes – alguns deles entre os mais comuns do Brasil – que indicariam a ascendência, mas nenhuma delas de cunho oficial.

Essa lacuna foi preenchida com a publicação do Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro passado, que abriu caminho para a naturalização dos descendentes de sefarditas, em que a Justiça lusa finalmente divulgou uma lista oficial com os seguintes sobrenomes: Abrantes, Aguilar, Almeida, Álvares, Amorim, Andrade, Avelar, Azevedo, Barros, Basto, Belmonte, Brandão, Bravo, Brito, Bueno, Cáceres, Caetano, Campos, Cardoso, Carneiro, Carvajal, Carvalho, Castro, Crespo, Coutinho, Cruz, Dias, Dourado, Duarte, Elias, Estrela, Ferreira, Fonseca, Franco, Furtado, Gaiola, Gato, Gomes, Gonçalves, Gouveia, Granjo, Guerreiro, Henriques, Josué, Lara, Leão, Leiria, Lemos, Lobo, Lopes, Lombroso, Lousada, Lopes, Macias, Machado, Machorro, Martins, Marques, Mascarenhas, Mattos, Meira, Melo e Prado, Mello e Canto, Mendes, Mendes da Costa, Mesquita, Miranda, Montesino, Morão, Moreno, Morões, Mota, Moucada, Negro, Neto, Nunes, Oliveira, Osório (ou Ozório), Paiva, Pardo, Pereira, Pessoa, Pilão, Pina, Pinheiro, Pinto, Pimentel, Pizarro, Preto, Querido, Rei, Ribeiro, Rodrigues, Rosa, Sarmento, Salvador, Silva, Soares, Souza, Teixeira, Teles, Torres, Vaz, Vargas e Viana.

A iniciativa, no entanto, gerou críticas, pois apenas o sobrenome não é suficiente para a entrada com o pedido de cidadania. “O legislador cometeu um erro ao mencionar essa lista. Existem nomes que efetivamente estão estreitamente relacionados a uma origem sefardita, mas, mesmo nestes casos, o interessado tem de reunir elementos complementares de prova”, diz Rui Castro.

Lei beneficia herdeiros dos judeus expulsos da Península Ibérica (mapa acima) no século 15 - Foto: Divulgação
Lei beneficia herdeiros dos judeus expulsos da Península Ibérica (mapa acima) no século 15 – Foto: Divulgação

Maior rigor

Segundo o Consulado Geral de Portugal em São Paulo, para solicitar a naturalização é preciso que o candidato comprove laços com uma comunidade sefardita de origem portuguesa. Isso é possível através de alguns requisitos que confirmem a ligação com Portugal, como sobrenome, idioma familiar, e descendência direta ou colateral.

Em países como Turquia, Israel ou Estados Unidos, com um número considerável de descendentes de sefarditas, a confirmação de um nome de família e até mesmo do uso da língua portuguesa já pode significar um grande passo para conseguir a cidadania lusa. No entanto, o fato de o Brasil ser uma ex-colônia de Portugal faz com que muitos destes elementos não sejam suficientes para provar a ascendência, tornando o processo mais rigoroso para os brasileiros.

“Os pedidos de cidadãos brasileiros que afirmam ser descendentes de pessoas condenadas pela Inquisição por heresias relativas ao judaísmo não pode ser admitido automaticamente”, admite Michael Rothwell, porta-voz da Comunidade Israelita do Porto, responsável por emitir o Certificado da Comunidade Judaica Portuguesa, documento usado para confirmar a ascendência sefardita no processo de naturalização.

A organização com sede no Porto tem emitido o certificado apenas para judeus praticantes, o que tem sido criticado pelos advogados especialistas na naturalização lusa.

“Esta é uma interpretação errada da lei, não só para a maioria dos juristas que tratam do tema, mas também na opinião da Comunidade Israelita de Lisboa, que não segue por este caminho”, argumenta Rui Castro. “A naturalização não deve ser condicionada pela halachá (lei judaica), que determina sob seus específicos critérios quem é ou não judeu. O que deve ser considerado é se o interessado é descendente desses portugueses que foram forçados a abandonar seu país e, muitas vezes, suas crenças para continuar vivos.”

Hoje um dos pontos turísticos mais famosos de Lisboa, a praça do Rossio, no centro da capital, foi palco de execuções de judeus durante a Inquisição - Foto: Reprodução
Hoje um dos pontos turísticos mais famosos de Lisboa, a praça do Rossio, no centro da capital, foi palco de execuções de judeus durante a Inquisição – Foto: Reprodução

Fundador e diretor da Associação Brasileira de Descendentes de Judeus da Inquisição (Abradjin), Marcelo Miranda Guimarães defende uma interpretação “sensibilizada” da lei pelos portugueses, que facilite a naturalização dos herdeiros de cristãos-novos.

“A lei é muito bem-vinda, mas precisa ser interpretada com consciência e sensibilidade, porque a maioria desses judeus foi obrigada a se converter ao cristianismo para não morrer, eram pessoas proibidas de realizar qualquer ritual ligado ao judaísmo”, explica Guimarães à BBC Brasil.

“Como podemos ir a uma sinagoga buscar os documentos dos nossos ancestrais se nem sinagogas existiam naquela época no Brasil, onde o judaísmo também era proibido? Mas existem caminhos alternativos. Vários livros relatam as histórias dessas famílias no país, listam nomes e documentam a realidade da época. Isso deve ser levado em consideração como prova, porque, se não for, mais de 95% dos descendentes brasileiros não terão direito a essa reparação”, afirma.

Custos e procedimentos

Uma seção do Museu da História da Inquisição, em Belo Horizonte, é dedicada às vítimas brasileiras da intolerância religiosa - Foto: Divulgação Associação Brasileira de Descendentes de Judeus da Inquisição
Uma seção do Museu da História da Inquisição, em Belo Horizonte, é dedicada às vítimas brasileiras da intolerância religiosa – Foto: Divulgação Associação Brasileira de Descendentes de Judeus da Inquisição

Depois de levantar os documentos que considerar necessários para comprovar a ascendência sefardita, é preciso obter o Certificado da Comunidade Judaica Portuguesa, por intermédio das comunidades israelitas de Lisboa ou do Porto. A ausência desse certificado pode ser compensada de outras maneiras, como com “a apresentação de registros de sinagogas e cemitérios judaicos, títulos de residência, títulos de propriedade, testamentos e outros comprovantes de ligação familiar na linha colateral de progenitor comum a partir da Comunidade Sefardita de origem portuguesa”, de acordo com o Consulado Português em São Paulo.

Os candidatos têm ainda de ser maiores ou emancipados face à lei portuguesa e não podem ter sido condenados a crimes com pena igual ou superior a três anos, também de acordo com a legislação vigente no país europeu.

Segundo Rui Castro, o custo global do processo nunca será inferior a 1 mil euros (cerca de R$ 4,3 mil), valor que pode aumentar se for preciso realizar o levantamento de documentos ou se o candidato optar por contratar uma assessoria jurídica.

Em contato com a BBC Brasil, o Ministério da Justiça português informou que até o fim de outubro 250 pedidos de naturalização estavam em análise, dos quais cerca de 10% correspondiam a cidadãos brasileiros. A expectativa, no entanto, é de que esse número cresça nos próximos meses, impulsionado pelas notícias de que Portugal começou a aplicar a lei que garante a cidadania aos descendentes de sefarditas.

———————————————————————————————————————————————————-

Fonte – BBC BRASIL.com – http://noticias.terra.com.br/brasil/saiba-como-lei-portuguesa-pode-dar-cidadania-a-brasileiros-descendentes-de-judeus,76b283919d683a5010ec8b8da1a3492e64vhj841.html


VEJA MAIS POSTAGENS SOBRE TEMAS LIGADOS A JUDEUS NO TOK DE HISTÓRIA 

JUDEUS SEM SABER

DIÁSPORA: DESCUBRA COMO OS JUDEUS SE ESPALHARAM PELO MUNDO

SOBRENOMES DE JUDEUS EXPULSOS DA ESPANHA EM 1492 – VEJA SE O SEU ESTÁ NA LISTA

OS CRIPTO JUDEUS NO BRASIL

A EXPULSÃO DOS JUDEUS DE PORTUGAL

ASSISTA AO DESASTRE DA MAIOR MÁQUINA VOADORA DA HISTÓRIA

Fonte - http://www.sueddeutsche.de/auto/hindenburg-tragoedie-vor-jahren-es-ist-in-flammen-ausgebrochen-1.1348696-13
Fonte – http://www.sueddeutsche.de/auto/hindenburg-tragoedie-vor-jahren-es-ist-in-flammen-ausgebrochen-1.1348696-13

Fonte – http://super.abril.com.br/historia/assista-ao-desastre-da-maior-maquina-voadora-da-historia?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_super

Construído em 1930, o dirigível foi batizado em homenagem a Paul von Hindenburg, então presidente do país. A nave também era conhecida como Zeppelin – nome da companhia aérea alemã que a operava. Com 245 metros de comprimento, demandava 200 mil metros cúbicos de hidrogênio para decolar. Até hoje, é considerado a maior máquina voadora da história.

hind

O desastre do LZ 129 Hindenburg foi o primeiro acidente registrado em filme. Em 6 de maio de 1937, o Zeppelin, vindo da Alemanha, preparava-se para pousar em uma base naval em Nova Jersey, quando começou a pegar fogo. O incêndio pode ter sido causado por um vazamento de combustível ou mesmo uma sabotagem – a causa exata é desconhecida. A cerca de 100 metros do solo, o dirigível foi consumido pelas chamas. Das 97 pessoas a bordo, 35 morreram.

Veja o vídeo:

LUDWIG VAN BEETHONEN – UM LIBERTÁRIO

Ludwig van Beethoven
Ludwig van Beethoven

As crenças e valores mais gerais são formados anonimamente pela sociedade. Como no folclore, ninguém sabe quem disse algo pela primeira vez. Alguém disse, é certo, porque nada nasce do nada, o que é o mesmo que não nascer. Alguém disse e os outros começaram a repetir. Pronto, eis, por exemplo, o Saci-Pererê. Folk é povo em inglês, como em alemão (Volk – pronuncia-se efe para v em alemão e wagen – pronuncia-se v para w em alemão).

Bem, mas o assunto não é etimologia e temos de prosseguir.

A transmissão, a conservação e o reforço de crenças e valores, de que não se conhece a origem, contudo, podem ser localizados. A família, a escola, a igreja, os meios mais gerais de comunicação são os instrumentos visíveis da transmissão, conservação e reforço de nossas crenças e valores. Mas grandes homens da história, muitos deles, também foram e são estrelas-guia, cujo pensamento e/ou comportamento modelam nossa visão de mundo.

Na Grande Música, entre 1770 e 1827, existiu uma dessas personalidades que deixaram sua marca luminosa em nosso pensamento. Trata-se de Ludwig van Beethoven, alemão de origem holandesa, que nasceu na cidade de Bonn. Foi um dos maiores gênios do Romantismo musical e sinfonias suas, como a quinta e a nona, há mais de duzentos anos, são das músicas mais tocadas no mundo inteiro.

Pois bem, há dois incidentes na vida de Beethoven que demonstram até que ponto ia seu pensamento revolucionário. Não podemos esquecer que isso aconteceu no início do século XIX, quando governo republicano não passava de um sonho de malucos.

Napoleão
Napoleão

Passeando com Goethe pelas ruas de um balneário, em Teplitz, eis que passa a carruagem da imperatriz da Áustria. O escritor, reverentemente, tira o chapéu e, inclinando-se, arrasta-o no chão durante a passagem do séquito. Beethoven, a seu lado, enterra a cabeça no chapéu e continua caminhando sem dobrar a coluna.

Quando Napoleão surge na França para desbancar os membros da dinastia dos Bourbon, Beethoven dedica-lhe sua terceira sinfonia, a Heroica, acreditando tratar-se de um libertador da humanidade. Pouco depois, o mesmo Napoleão autoproclama-se imperador, e Ludwig rasura o cabeçalho da partitura até rasgá-la, eliminando-lhe a dedicatória. Em seu lugar, ele anota “Sinfonia heroica, composta para celebrar a memória de um grande homem”.

Virtudes se transmitem e conservam muito mais pelos exemplos do que pelos discursos. Foi um gênio em sua área e um Homem em sua natureza.

Como fazem falta homens desse calibre.

Texto – Menalton Braff

Fonte – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/um-libertario-5152.html?utm_content=bufferf85fa&utm_medium=social&utm_source=plus.google.com&utm_campaign=buffer