A HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA DE JUDEUS QUE FUGIU DAS PERSEGUIÇÕES EM SUA TERRA E VIERAM PARA A CIDADE DE NATAL PARA VIVER EM PAZ

E A ESTRANHA SITUAÇÃO DOS NATALENSES NO SÉCULO XXI, QUE BUSCAM AS SUAS ANTIGAS RAÍZES JUDAICAS PARA FUGIR DA ATUAL E CRESCENTE VIOLÊNCIA EM SUA TERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Nos últimos anos no Rio Grande do Norte é notório que várias pessoas buscam ardentemente nas histórias dos seus antepassados uma pretensa ligação com a fé judaica.

Isso é bem interessante para quem vive no Rio Grande do Norte.

Pois esse é um Estado onde é perceptível que a sua classe dirigente (de todas as orientações ideológicas) pouco se importa com os temas ligados à nossa cultura e a nossa própria história. São dirigentes que pouco sabem e pouco utilizam como ferramentas positivas para o crescimento da cidadania potiguar as nossas interessantes e ricas manifestações culturais, ou dos fatos ligados ao nosso passado. Dito isso, é inegável que essas buscas individuais por uma pretensa “Raiz judaica” chamam a minha atenção.

Percebi que esse movimento de potiguares em busca da “Estrela de Davi” se tornou tão intenso, que ao publicar algumas postagens relacionadas com esse tema no “TOK DE HISTÓRIA”, todas tiveram muita procura e intensa visibilidade.

A Estrela de Davi na mais antiga cópia completa sobrevivente do texto massorético, o Códice de Leningrado, datado de 1008 – Fonte – https://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/788679/jewish/Star-of-David-The-Mystical-Significance.htm

Busca Da Fé?

Tal como o autor desse texto, cujos antepassados imigraram do Velho Mundo para viver em solo potiguar no início do século XVIII, muitas das pessoas que buscam suas “Raízes judaicas” possuem histórias semelhantes em relação aos seus antepassados.

Soldados romanos carregando os despojos das guerras judaicas – Fonte – http://www.bible-history.com/archaeology/rome/arch-titus-menorah-1.html.

Mesmo que já tenha se passado quase três séculos que essas pessoas aqui chegaram para povoar as terras potiguares, mesmo que não exista nenhuma ligação com terra de onde esses antigos vieram, mesmo tendo avós, bisavós e tataravós que nasceram em nosso sertão e debaixo do credo cristão, nos dias atuais muitos insistem e persistem arduamente nessa busca por essa “Estrela Perdida”.

Levado unicamente pela curiosidade, sempre que me encontro com aqueles que desejam se ligar (ou já se ligaram) ao judaísmo através das histórias dos seus antepassados, eu não perco a oportunidade de questionar a razão desse esforço e dessa busca.

Nos diálogos que tive percebi que alguns realmente acreditam nessa antiga ligação religiosa, que levam o tema a sério, estudam e pesquisam bastante os fatos. São pessoas que possuem informes orais que, segundo eles, provam essa ligação de maneira concreta e afirmam que seus antepassados realizavam em datas determinadas certos atos e ações que apontam para essa ligação com a fé judaica. Em meio a certos critérios, percebi que eles possuem pura e simplesmente a fé nessas teses. E sobre fé eu nada comento, apenas respeito!

Mas outros com quem dialoguei, vários inseridos nos setores sociais mais privilegiados da sociedade potiguar, essa busca pouco tem relação com a vontade de realmente se ligar a uma religiosidade praticada pelos antigos. Observei que para essas pessoas, a pretensa descoberta dessas ligações antigas se resume unicamente em conseguir determinados mecanismos que lhes facilitem a conquista de um passaporte estrangeiro para imigrar para outro país.

Pude notar que para esses que buscam suas “Raízes judaicas” como forma de facilitar sua saída do Brasil, várias são as razões pessoais para realizar esse tipo de projeto. Entretanto houve uma unanimidade nesses diálogos – A existência da violência urbana em Natal como principal motivador dessa mudança.

Ouvi repetidamente que “Natal está muito violenta”, que tem “Muito medo de viver em Natal”, ou medo de “Criar filhos em um lugar tão violento” e um até me disse que “Valia a pena até virar judeu para ir embora”.

E é verdade. Faz tempo que a capital potiguar deixou de ser o lugar idílico, calmo e tranquilo que conheci na minha juventude.

Protesto na Praia de Ponta Negra, em Natal, em 2017. O belo cartão postal da capital potiguar virou um “cemitério” em protesto por número de homicídios no Rio Grande do Norte naquele ano – Fonte – Reprodução/Inter TV Cabugi – https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2019/06/05/rio-grande-do-norte-tem-a-maior-taxa-de-homicidios-de-jovens-do-brasil-diz-atlas-da-violencia.ghtml

A nossa violência urbana, igualmente comum em outras grandes cidades brasileiras, por aqui avançou (e avança) de forma contundente e intensa. Muitas são as razões para esse fenômeno, sendo claro que as fortes desigualdades econômicas e sociais amplificadas nas últimas décadas, muito contribuíram para essa terrível mudança. Mas foi (e ainda é) algo tão forte, tão avassalador, que mudou totalmente nossos hábitos de convivência e de agir no dia a dia. E não posso esquecer que nas nossas periferias continuam a ser assoladas por uma matança incrível e cotidiana, onde os maiores atingidos são principalmente os jovens pobres e negros.

Pastores judeus da Bessarábia – Fonte – https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00279.html

Foi quando percebi que essa situação contemporânea envolvendo potiguares, possui uma certa relação com os judeus membros das famílias Mandel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, que devido a violência contra a fé judaica na Bessarábia, deixaram a sua terra na primeira metade do Século XX para encontrar na cidade de Natal aquilo que muitos atualmente sentem que perderam – Paz e tranquilidade para viver e crescer.   

Uma Região Intensa e Complicada

Possuindo uma área de 45.630 km², pouco menor que o estado do Espírito Santo, a Bessarábia fica localizada na Europa Oriental e na atualidade dois terços dessa região se encontram na República da Moldávia e uma pequena parte na República da Ucrânia. Mas no início do século XIX sua área era um principado vassalo aos turcos otomanos, que passou ao Império Russo através de negociações.

Em 1856, após a Guerra da Criméia, a Bessarábia fez parte de uma Moldávia independente, causando a perda do Império Russo acesso ao rio Danúbio, situação a qual não se conformaram. Através de negociações e ameaças, a região voltou para o domínio dos Czares em 1878. Mas em 1917, em meio a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, a Bessarábia passou a fazer parte do então Reino da Romênia, cujas tropas invadiram a região em troca da passagem livre das tropas alemãs para a Ucrânia. O governa da recém criada União Soviética não se conformou com a situação e passou a considerar essa área como sua, além de se colocava politicamente favorável a retomá-la, a força se necessário. 

Até esse período, pelas idas e vindas em sua história, dá para perceber que a Bessarábia viu muita coisa acontecer, principalmente o sangue da sua gente derramado em várias guerras. E os judeus que lá viviam estavam sempre propensos a sofrerem com essa volatilidade política, mesmo vivendo nessa região ha séculos.

Os Judeus se estabeleceram na Bessarábia no século XV, formando comunidades mais ou menos numerosas. Com o tempo começaram a participar ativamente do comércio local, tornando-se conhecidos pela fabricação de bebidas alcoólicas. Um censo realizado em 1900 apontou que viviam na Bessarábia 1.935.000 pessoas, sendo 219.000 judeus. Eles dividiam esse espaço com romenos, russos, ucranianos, búlgaros, povos de origem turcas e minorias de origem grega e alemã. Provavelmente nesse período ali viviam os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband.

Segundo um conjunto de fichas que classificaram os estrangeiros residentes em Natal, produzidas pelo Departamento de Segurança Pública em 1937 e atualmente guardada no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, descobri que dezesseis judeus, dessas seis famílias comentadas, vieram da Bessarábia e desembarcaram no Brasil entre 1912 e 1935. A maioria dessas pessoas inicialmente desembarcou em outras capitais brasileiras, para depois seguirem em momentos distintos para Natal. Eram homens e mulheres com idades variando de 61 a 19 anos, vindos das cidades de Secureni e Ataki, localizadas a nordeste da Bessarábia e distantes apenas 28 quilômetros uma da outra.

Historicamente os judeus que viviam na região de Secureni, onde consegui melhores informações, viviam do pequeno comércio, plantavam tabaco e beterraba, derrubavam e vendiam madeira, tinham moinhos de farinha e negociavam com cavalos, ovelhas, frutas e vegetais. Entre eles também haviam carpinteiros, sapateiros, peleteiros, serralheiros e outros profissionais.

Se no início do século XX essas duas cidades faziam parte da Romênia, atualmente Secureni, hoje chamada Sokyryany, fica no Condado de Chernivsti, na Ucrânia, ao lado da fronteira da República da Moldávia, onde a poucos quilômetros se encontra a antiga Ataki, atual Otaci.

Perseguições

Na primeira metade do século XIX, os judeus que viviam na Bessarábia não estavam sujeitos a perseguições dos russos. Mas em 1835, quando essa região estava gradualmente começando a perder sua autonomia e as ações de maior fortalecimento da população russa se multiplicaram, as leis antijudaicas começaram a ser aplicadas na Bessarábia, com a criação de vários decretos que tornaram a vida deles bastante complicada.

Judeus começaram a ser segregados nas grandes cidades, proibidos de estudar, impedidos de possuir propriedades e ainda exilados e isolados em pequenas aldeias espalhadas pela Europa Oriental.

As sociedades europeias da época possuíam um grande número de judeus integrados, participando até mesmo das esferas políticas, militares, econômicas e intelectuais. Apesar disso existiam fortes correntes antissemitas, de raízes religiosas ou não, na opinião pública europeia da época. Entre os cristãos europeus mais devotos, os judeus eram considerados como os “Algozes de Jesus” e outro tipo de preconceito bastante forte era o de ordem econômica. Diante desse quadro, não demorou para à situação dos judeus na Bessarábia piorar.

Macabro resultado do Primeiro Progrom de Chisinau em 1903.

Em 6 a 7 de abril de 1903, na cidade de Chisinau, atual capital da Moldávia, durante o Pessach, a Páscoa judaica, habitantes locais foram incentivados por autoridades do Império Russo para organizarem um “pogrom”, ou seja, uma série de ataques massivos, espontâneos contra os judeus, caracterizado por assassinatos, espancamentos, assédio, destruição de casas, de negócios, templos religiosos e outros ataques violentos. 

O chamado Primeiro Pogrom de Chisinau deixou 49 judeus assassinados, entre estas várias crianças. Cerca de 500 pessoas ficaram feridas, 1.500 casas e lojas judias foram parcialmente ou totalmente destruídas e 2.000 famílias judias ficaram desabrigadas.

Este pogrom abalou a população judia do Império Czarista e marcou uma virada na opinião pública judaica e mundial. Isso foi seguido por um novo aumento nas ondas de emigração de judeus da Europa Oriental para os Estados Unidos e para à Palestina.

O Presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt chama a atenção do Czar da Rússia Nicolau II para o massacre de Chisinau.

Uma das consequências desse ataque foi a vinda de 267 judeus da Bessarábia, distribuídos em 37 famílias, para formar uma colônia agrícola no Brasil, que ficou conhecida como Colônia Philippson. Eles chegaram em 18 de outubro de 1904 para ocupar uma área de 4.472 hectares, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 

Mas não demorou e os judeus da Bessarábia levaram uma segunda dose de violência. Entre 19 e 20 de outubro, novamente em Chisinau, ocorreu um segundo progrom, com 19 mortos. Dessa vez o número de vítimas foi menor porque os judeus resistiram em algumas áreas e chegaram a matar alguns atacantes. Já na área das cidades de Secureni e Ataki não ocorreram ataques dos russos, mas o medo passou a ser a tônica do dia a dia desses judeus, que poucos anos depois começariam a imigrar para Natal.

Monumento na Moldávia em honra aos que morreram nos progroms realizados na Bessarábia.

Logo a região da Bessarábia, conforme comentamos anteriormente, passou a ser dirigida por autoridades do atualmente extinto Reino da Romênia. Isso criou a ideia que as perseguições diminuiriam, mas não foi assim que aconteceu.

Os judeus que viviam na cidade de Secureni tinham relações estáveis ​​com seus vizinhos, mas sofriam com a atitude dos agentes do governo. No final de 1921, na véspera do Yom Kippur, judeus andando nas ruas foram presos, muitos homens, mulheres e crianças foram retirados à força de suas casas e levados para um campo fora da aldeia, onde foram vigiados por guardas armados e montados em cavalos. Depois da meia-noite, em meio a muito frio, o Chefe da Polícia, outros policiais e um médico indicado pelo governo vieram ao campo. Queriam prender dois refugiados que haviam cruzado um rio das proximidades e seriam espiões russos. Ameaçaram que no caso de não encontrar os dois homens, eles deportariam todos da aldeia. Os soldados abusaram dos judeus, mas como não encontraram os dois elementos desistiram da ação e todos voltaram para casa.

Parece que com essa perseguição (e talvez outras mais), associado a notícia da mudança de judeus da Bessarábia para o Brasil, tornou atrativa a ideia de alguns judeus das cidades de Secureni e Ataki mudarem para o nosso país. Pois a maioria dos judeus que vieram dessa região para viver em Natal, partem da Bessarábia na primeira metade da década de 1920.

Chegada ao Novo Mundo

Ao tentarmos cruzar informações disponíveis na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, com os dados que possuímos sobre os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, são poucas as informações conseguidas. Mas foi possível traçar o caminho de uma dessas famílias através do tempo e perceber, mesmo limitadamente, como se desenvolveu sua mudança para Natal e sua vida posterior.

RMS Andes – Fonte – http://www.naval-history.net

No dia 21 de junho de 1926, ao meio dia, o vapor inglês RMS Andes, da Royal Mail Steam Packet Company, conhecida no Brasil como Mala Real Inglesa, lançou âncora em frente ao farol da barra do porto de Recife. Havia zarpado 15 dias antes do porto de Southampton (Inglaterra), com escalas em Cherbourg (França), Vigo (Espanha) e Lisboa (Portugal).

Em Recife desembarcaram 22 passageiros, entre eles o jovem casal Samuel e Bertha Axelband, ele com 24 e ela com 19 anos de idade e sem filhos. Mas os tramites burocráticos do casal na alfandega só foram resolvidos um dia depois, uma terça-feira. A razão provável foi um grande bafafá ocorrido na repartição, inclusive noticiado nos jornais, em decorrência da prisão do comerciante judeu Alexander Gurewitz. Este pretendia embarcar no mesmo RMS Andes para o Rio de Janeiro, mas teve a sua partida sustada por dois oficiais de justiça e policiais, que cumpriram um mandato expedido pelo juiz Adolpho Cyriaco, a pedido da Sra. Sophia Goldel, também judia e sua credora. (Diário de Pernambuco, 22/06/1926, págs. 2 e 4).

Certamente na capital pernambucana o casal recebeu apoio da comunidade judaica, que era relativamente numerosa e atuante. Mas, por alguma razão, eles não permaneceram em Recife. Provavelmente Samuel deve ter trabalhado como mascate, profissão que abria contatos e horizontes e era a atividade muito comum entre os judeus desembarcados Brasil vindos da Europa Oriental.

Uma situação normal para todos estrangeiros e imigrantes no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial – Todos seus deslocamentos em aeronaves eram monitorados pelo DOPS. Isso ocorria independentemente de raça, origem, credo, etc. O interessante é que esse material normalmente traz boas informações de pessoas que são alvo de pesquisas históricas.

Talvez como fruto de suas andanças, vamos ter notícias dos Axelband sete anos depois de desembarcarem em Recife. Uma nota afirma que Samuel Axelband era um comerciante em São Luís, no Maranhão, e divulgava o aniversário do seu filho Aron (O Imparcial, 07/03/1933, pág. 2). Mas seja lá o tipo de comércio que Samuel tinha nessa cidade, aparentemente ele não durou muito, pois quatro anos depois seu nome consta no prestigiado Almanak Laemmert (Ed. 1937, pág. 1.376) como sendo proprietário da alfaiataria “A Carioca”, na Rua Simplício Mendes, no Centro de Teresina, Piauí, uma rua com várias alfaiatarias. Nesse negócio Samuel aparentemente tinha uma sociedade com uma pessoa de sobrenome “Luz”, mas não obtive maiores informações.

É provável que essa informação não seja totalmente correta. Não no sentido que Samuel Axelband e sua família viveram em Teresina, mas na data. Pois é conhecido que os nomes listados no Almanak Laemmert perduravam por anos nas novas edições desse almanaque, gerando informações equivocadas. Até porque a família Axelband já vivia em Natal em janeiro de 1938.

Imigrante de Sucesso

O Censo demográfico de 1940 apontou Natal com 109 judeus e, segundo Câmara Cascudo (Ver o livro História da Cidade do Natal, 1999, IHGRN, pág. 389) sua sinagoga havia sido fundada em 12 de janeiro de 1919, um domingo, quando a pandemia de Gripe Espanhola se encaminhava para seu final. É provável que a existência dessa comunidade judaica e o fato de prováveis parentes de sua esposa, cujo sobrenome de solteira era Mandel, já viverem e comerciarem em Natal, tenha influenciado Samuel Axelband a viver nessa parte do Brasil.

Não sabemos como seu deu a chegada dessa família em Natal, qual negócio Samuel montou primeiramente e nem como se deu sua relação com a comunidade judaica e com a população local. Mas sabemos que quem se destacou em sua família na cidade por essa época, foi a sua filha Riva Axelband, que começou a chamar atenção do maestro Waldemar de Almeida como exímia pianista e logo a jovem realizava apresentações para a sociedade local. Como na 19ª audição do “Curso Waldemar de Almeida”, ocorrida em 31 de janeiro de 1938 no Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão. No seu piano marca Albert Schmölz, Riva tocou a “Mazurca” opus 24 n. 1, do polonês Frederic Chopin e nos anos seguintes outros recitais se repetiriam.

Temos a informação que Samuel Axelband fundou, em data desconhecida, uma loja chamada “Casa Glória”, especializada em artigos masculinos, no bairro da Ribeira, na Rua Dr. Barata, número 205. Ao lado da sua loja havia o comércio de um outro judeu, era a “J. Mandel & Cia”, um parente de sua esposa.

Bairro da Ribeira, em Natal, na época da Segunda Guerra.

Provavelmente Samuel percebeu claramente a grande possibilidade de negócios que ocorreria com a Segunda Guerra Mundial e a presença de tropas americanas na capital potiguar em Natal. Logo seu negócio prosperou enormemente, ao ponto de fundar na Rua Chile, número 240, em frente a atual Capitania dos Portos, uma movelaria chamada “Progresso”.

Segundo o livro Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff (Pág. 53, Rio de Janeiro, 1984), 30 dias após a morte de Franklin Delano Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos, houve na sede do Centro Israelita de Natal (CEN), no centro da cidade a cerimônia dos trinta dias de falecimento, que na fé judaica se denomina Shloshim. O ato foi realizado pelo Rabino Baum e contou com a presença de militares americanos judeus. Também estiveram presentes vários judeus que moravam em Natal, entre eles Samuel Axelband. 

Após o fim da guerra, como fizeram quase todos os judeus que viviam em Natal, os Axelband partiram da cidade nordestina que lhes deu tranquilidade para viver, mas que depois da Segunda Guerra e da partida das tropas estrangeiras, tinha pouco em termos econômicos a oferecer. Samuel foi viver em Recife, onde manteve uma representação de relógios.

Não sabemos quando sua existência findou nesse plano existencial e nem o que ocorreu com a sua família, mas sua trajetória e sua história no Brasil, especialmente em Natal, apontam para uma história de sucesso de um imigrante judeu da Europa Oriental que, mesmo recebendo apoios de pessoas da mesma religião, claramente mostra como essas pessoas desse grupo minoritário podiam viver tranquilos em Natal e no Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX, sem o perigo dos progoms e das perseguições religiosas.

Cada um tem o direito acreditar na religião que quiser. Isso é uma situação de foto íntimo. Mas não deixa de ser um tanto irônico que em Natal, na segunda década do século XXI, na era do “futuro”, vários de seus cidadãos que não nasceram judeus, se voltem para suas pretensas “Raízes judaicas” para migrar de uma violência que anualmente crescer no número de assassinatos.

JHJHJHKJKH

Livros – História da Cidade do Natal, Câmara Cascudo, 1999, IHGRN, pág. 389.

Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff, 1984.

Internet – https://kehilalinks.jewishgen.org/philippson/index.html

https://www.apusm.com.br/2014/09/fazenda-phillipson-os-114-anos-da-imigracao-judaica-em-santa-maria/

https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00382.html

https://en.wikipedia.org/wiki/Bessarabia

https://ro.wikipedia.org/wiki/Istoria_evreilor_din_Republica_Moldova

NO TOK DE HISTÓRIA PODEM SER ENCONTRADOS ESSES TEXTOS SOBRE ASSUNTOS LIGADOS A JUDEUS.

PARA NUNCA SER ESQUECIDO – AUSCHWITZ: IMAGENS DE ONTEM E DE HOJE

O MITO SOBRE A ORIGEM DE SOBRENOMES DE JUDEUS CONVERTIDOS

OS CRIPTO JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS EM NATAL – A SAGA DOS PALATNIK

A HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS SEM SABER

LEI PODE DAR CIDADANIA A BRASILEIROS DESCENDENTES DE JUDEUS

DIÁSPORA: DESCUBRA COMO OS JUDEUS SE ESPALHARAM PELO MUNDO

https://tokdehistoria.com.br/2014/03/23/sobrenomes-de-judeus-expulsos-da-espanha-em-1492-veja-se-o-seu-esta-na-lista/

A EXPULSÃO DOS JUDEUS DE PORTUGAL

1937 – O DIA EM QUE UM VIOLINISTA RUSSO E UM FORD V8 ESTIVERAM NO PALCO DO PRINCIPAL TEATRO DE NATAL

Dizem que Natal é uma cidade onde seu povo tem uma adoração intensa pelos veículos motorizados. Se observarmos nos dias atuais o número de carros de passeio bastante novos circulando pelas nossas atravancadas ruas, provavelmente deve ser verdade. Fala-se que por mês mais de 2.000 veículos novos, 0 km, são desovados nas congestionadas vias de circulação da capital potiguar.

Harry Brounstein, gerente da Ford no Rio, no palco do Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, abrindo o recital ao lado de um Ford V 8.

Ainda se comenta que este gosto surgiu durante a Segunda Guerra Mundial, com a presença de tropas estadunidenses em nossas terras.

Existe a ideia que após o conflito, as tropas de Tio Sam despejaram nas nossas ruas potentes e reluzentes Lincons e Studebakers que não quiseram levar de volta para casa e isso ficou nas mentes dos natalenses. Até já tratei disso em nosso TOK DE HISTÓRIA (Ver em – https://tokdehistoria.com.br/2013/11/30/o-prazer-nosso-pelo-carro-novo-sao-os-militares-americanos-os-responsaveis-por-isso/ ).

Na época da visita da trupe, Natal tinha uma população com pouco mais de 30.000 habitantes. Na foto vemos o então Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

Provavelmente a intensa adoração dos natalenses por veículos movidos a gasolina surgiu bem antes da Segunda Guerra e tudo aponta que se deveu muito mais a bem planejadas ações de propaganda desenvolvidas pelos fabricantes de veículos, do que uma pretensa ação das tropas americanas por aqui. 

Nova Forma de Propagandas 

Na segunda metade da década de 1930 os dois principais agentes que vendiam veículos em Natal eram a M. Martins & Cia., pela Ford, cujo um dos seus sócios era José Alves dos Santos e pela Chevrolet a empresa de Severino Alves Bila.

José Alves dos Santos, da M. Martins e Cia.

Como a Natal daquele tempo tinha pouco mais de 50.000 habitantes, onde praticamente toda elite se conhecia, é provável que os proprietários destas firmas tivessem amizade (ou quem sabe até parentesco pelo sobrenome comum). Mas nas páginas amareladas dos velhos periódicos temos uma verdadeira “guerra” de propagandas destes fabricantes de veículos sendo apresentada ao público natalense.

Não é incomum encontrarmos anúncios de página inteira, que eram publicadas por semanas, com maravilhosos desenhos de novos e potentes veículos. E vale ressaltar que a propaganda de carros nos jornais era bem diferente das atuais. Enquanto hoje não faltam produções suntuosas para gerar fotos fantásticas, muita imagem trabalhada no computador, participação de modelos fenomenais e pouca informação prática (normalmente só umas letrinhas miudinhas no final da propaganda), naquelas priscas eras a coisa era muito mais informativa.

Mas em 1937 houve uma mudança nesta estratégia de propaganda que chamou muita atenção em Natal.

The Cherniavsky Trio 

Em fins de 1936 o experiente violinista Leo Cherniavsky estava realizando concertos em Nova York, no prestigiado Carnegie Hall, quando foi contratado pela Ford Motors Company para se apresentar no início de abril de 1937 em Fortaleza, Natal, Recife e Salvador. A ideia destes recitais era comemorar 25 milhões de veículos da marca Ford manufaturados.

Leo Cherniavsky teria durante suas apresentações na região a companhia do pianista pernambucano Alberto Figueiredo, do Conservatório de Recife. Já quem comandava o grupo era Harry Brounstein, da Associação Comercial do Rio de Janeiro, membro do Touring Club do Brasil e gerente da Ford no Rio.

Leo Cherniavsky nasceu em 1890, na grande comunidade judaica da cidade de Odessa, na época parte do Império Russo (atualmente pertencente à Ucrânia). Sua família possuía uma grande tradição musical e junto com seus irmãos Jan (piano) e Mischel (violoncelo) formaram um trio de jovens músicos e realizaram sua primeira apresentação em 1901, quando o mais jovem do grupo tinha apenas dez anos de idade.

Mischel, Jan e Leo, “The Cherniavsky Trio”.

O primeiro show fora da Rússia foi realizado três anos depois em Berlim, Alemanha, onde os garotos receberam críticas mistas. Ainda naquele ano, sob o patrocínio das abastardas famílias judaicas Rothchild e Sassoon, o trio fez sua estreia britânica no Aeolian Hall, em Londres, onde as opiniões dos críticos foram mais animadoras. Chegaram a realizar uma turnê por outros países da Europa com relativo sucesso e tiveram proveitosos encontros com personalidades musicais famosas e respeitadas da época (além de serem pessoas bem mais velhas que os três garotos) – incluindo o russo Misha Elman, o francês Eugène Ysaÿe, o tcheco David Popper e o húngaro Joseph Joachim.

Em 1905, diante das tensões contra os judeus em Odessa, que levou a realização de uma perseguição que resultou na morte de 400 pessoas, a família Cherniavsky se mudou para a Áustria e de lá os jovens seguiram para o Canadá, onde conseguiram a cidadania neste país. Depois começaram a atuar nos Estados Unidos, onde o grupo ficou conhecido como “The Cherniavsky Trio”.

Os jovens músicos ganharam experiência, desenvolveram um conjunto musical de primeira classe e se apresentaram em cinco continentes. Continuaram realizando apresentações e produzindo discos até 1934, quando cada um seguiu seu rumo. Assim Leo Cherniavsky chegou a Natal em abril de 1937. 

Um Gringo Tocar Rabeca 

O paquete “Pará” veio de Fortaleza trazendo a Caravana Ford para a Natal. Na capital cearense o músico estrangeiro e o pianista pernambucano se apresentaram no Teatro José de Alencar. Cherniavsky foi recebido no desembarque no cais da Tavares de Lira pelo maestro Valdemar de Almeida, diretor do Instituto de Música, Edgar Barbosa, então diretor da Imprensa Oficial, José Alves dos Santos, da M. Martins e Cia., Moyses Wanistain, representando a comunidade judaica que então existia em Natal, Carlos Lamas, Cônsul do Chile na cidade, além de Luís da Câmara Cascudo, Sérgio Severo e outros membros da comunidade natalense.

Propagando sobre o recita de Lei Cherniavsky publicado em jornais natalenses.

Como era comum na época, apesar de existirem hotéis, algumas pessoas ilustres que visitavam Natal, principalmente estrangeiros, normalmente ficavam hospedados no palacete da rica comerciante Amélia Duarte Machado, a conhecida Viúva Machado. Com Leo Cherniavsky não foi diferente e ele estava ali acomodado junto com os outros membros da Caravana Ford.

O palco escolhido foi o melhor que Natal poderia oferecer – o Teatro Carlos Gomes, no bairro da Ribeira e atual Teatro Alberto Maranhão. Os jornais da época informam que desde o momento do anúncio do recital do violinista de Odessa, a elite local buscou avidamente a agência M. Martins e Cia. atrás dos 300 ingressos postos a disposição dos futuros compradores de carros novos.

Certamente deve ter chamado atenção dos trabalhadores braçais do cais do porto, dos comerciários da Ribeira, dos que trabalhavam nos depósitos de algodão da Rua Chile, dos pescadores das Rocas e outras pessoas do povo, a intensa movimentação na Rua Frei Miguelinho, nº 133, sede da M. Martins e Cia. Eram muitas “pessoas gradas”, da mais fina flor da sociedade potiguar, com sobrenomes consagrados, agitados atrás de conseguirem um ingresso para ver “um gringo tocar rabeca”. 

Quem Não foi ao Recital Não Era Gente em Natal! 

E o tradicional teatro ficou lotado na noite de 2 de abril de 1937, uma sexta-feira. Natal, por não possuir uma rádio ativa na época, foi a única das capitais nordestinas que não transmitiu o recital pelas ondas do éter.

Leo Cherniavsky, Alberto Figueiredo e o Ford V 8, modelo Tudor sedam de luxo, de quatro portas no palco do principal teatro de Natal.

Uma situação interessante e peculiar ocorreu nesta apresentação – eu não sei como foi feito, mas as fotos aqui apresentadas (apesar da baixa qualidade) provam que, de alguma forma, os organizadores colocaram no palco do tradicional Carlos Gomes um veículo Ford V 8, modelo Tudor sedam de luxo, de quatro portas. Os músicos teriam de tocar ao lado da possante máquina e não foram registrados problemas no teatro. Mas eu duvido que hoje isso acontecesse novamente!

Quando foi exatamente as 21:00, quem subiu ao palco foi Harry Brounstein, seguido de várias personalidades locais com seus longos discursos, situação essa que nunca deixava de acontecer nestes eventos. Depois o violinista nascido em Odessa e o pianista pernambucano subiram no palco do Teatro Carlos Gomes e iniciaram a sessão musical.

Público natalense no recital de 2 de abril de 1937

Infelizmente os jornais da época aos quais tive acesso, tanto o A República de Natal, quanto o Diário de Pernambuco de Recife, nada informaram do que foi apresentado nos recitais apresentados no Teatro Alberto Maranhão e nem no principal teatro da capital pernambucana, o Santa Izabel.

Mas é inegável o evento foi um grande sucesso. Vamos encontrar varias referências sobre o recital de Leo Cherniavsky e de Alberto Figueiredo no jornal A República durante vários dias. Causou enorme impressão a versatilidade dos músicos, da participação da sociedade no evento e, evidentemente, da beleza do novo Ford V 8 no palco.

Foto de um modelo Ford V 8 de 1937 e preservado na Alemanha

O burburinho foi tanto que parece até que quem não foi ao recital não era gente em Natal!

Pessoalmente nunca acreditei que esta dita “adoração por carros” seja uma exclusividade dos natalenses. Como o texto e as fotos apontam, certamente foram as ações de propaganda como as apresentadas em 2 de abril de 1937 que ajudaram a criar na mente da maioria dos brasileiros o gosto pelo carro.

E é um gosto bem estranho e um prazer bem esquisito. Já que até hoje a maioria dos brasileiros não se importa de pagar financiamentos exorbitantes e nem reclamam de impostos gigantescos que são cobrados por um bem que se desvaloriza em até 30% após sair da loja.

DITADOS POPULARES E SEUS SIGNIFICADOS – SEGUNDO CASCUDO

Luís da Câmara Cascudo

Muitas vezes usamos certas expressões, mas não temos ideia do que elas significam.

São ditados ou termos populares que através dos anos permaneceram sempre iguais, significando exemplos morais, filosóficos e religiosos.

Tanto os provérbios quanto os ditados populares constituem uma parte importante de cada cultura.

Historiadores e escritores sempre tentaram descobrir a origem dessa riqueza cultural, mas essa tarefa nunca foi nada fácil.

O grande escritor Luís da Câmara Cascudo já dizia que: “os ditados populares sempre estiveram presentes ao longo de toda a História da humanidade”. No Brasil isso não é nenhuma novidade. Muitas vezes ocorrem expressões tão estranhas e sem sentido, mas que são muito importantes para a nossa cultura popular.

Veja aqui algumas dessas expressões ou ditados populares:

Bicho-de-sete-cabeças

Tem origem na mitologia grega, mais precisamente na lenda da Hidra de Lerna, monstro de sete cabeças que, ao serem cortadas, renasciam. Matar este animal foi uma das doze proezas realizadas por Hércules. A expressão ficou popularmente conhecida, no entanto, por representar a atitude exagerada de alguém que, diante de uma dificuldade, coloca limites à realização da tarefa, até mesmo por falta de disposição para enfrentá-la.

Com o rei na barriga

A expressão provém do tempo da monarquia em que as rainhas, quando grávidas do soberano, passavam a ser tratadas com deferência especial, pois iriam aumentar a prole real e, por vezes, dar herdeiros ao trono, mesmo quando bastardos. Em nossos dias refere-se a uma pessoa que dá muita importância a si mesma.

Ver (ou adivinhar) passarinho verde (MAS PODE SER AZUL, AMARELO, VERMELHO, ROXO E POR AÍ VAI!)

Significa estar apaixonado. O passarinho em questão é uma espécie de periquito verde. Conta uma lenda que alguns românticos rapazes do século passado adestravam o bichinho para que ele levasse no bico uma carta de amor para a namorada. Assim, o casal de apaixonados tinha grandes chances de burlar a vigilância de um paizão ranzinza.

Com a corda toda

Antigamente, os brinquedos que possuíam movimento eram acionados torcendo um mecanismo em forma de mola ou um elástico, que ao ser distendido, fazia o brinquedo se mexer. Ambos os mecanismos eram chamados de “corda”. Logo, quando se dava “corda” totalmente num brinquedo, ele movia-se de forma mais agitada e frenética. Daí a origem da expressão.

Favas contadas

De acordo com Câmara Cascudo, antigamente, votavam-se com as favas brancas e pretas, significando sim ou não. Cada votante colocava o voto, ou seja, a fava, na urna. Depois vinha a apuração pela contagem dos grãos, sendo que quem tivesse o maior número de favas brancas estaria eleito. Atualmente, significa coisa certa, negócio seguro.

Fazer ouvidos de mercador

Orlando Neves, autor do Dicionário das Origens das Frases Feitas, diz que a palavra mercador é uma corruptela de marcador, nome que se dava ao carrasco que marcava os ladrões com ferro em brasa, indiferente aos seus gritos de dor. No caso, fazer ouvidos de mercador é uma alusão a atitude desse algoz, sempre surdo às súplicas de suas vítimas.

Tapar o sol com a peneira

Peneira é um instrumento circular de madeira com o fundo em trama de metal, seda ou crina, por onde passa a farinha ou outra substância moída. Qualquer tentativa de tapar o sol com a peneira é inglória, uma vez que o objecto é permeável à luz. A expressão teria nascido dessa constatação, significando atualmente um esforço mal sucedido para ocultar uma asneira ou negar uma evidência.

O pomo da discórdia

A lendária Guerra de Tróia começou numa festa dos deuses do Olimpo: Éris, a deusa da Discórdia, que naturalmente não tinha sido convidada, resolveu acabar com a alegria reinante e lançou por sobre o muro uma linda maçã, toda de ouro, com a inscrição “à mais bela”.

Como as três deusas mais poderosas: Hera, Afrodite e Atena disputavam o troféu, Zeus passou a espinhosa função de julgar para Páris, filho do rei de Tróia  O príncipe concedeu o título a Afrodite em troca do amor de Helena, casada com o rei de Esparta.

A rainha fugiu com Páris para Tróia, os gregos marcharam contra os troianos e a famosa maçã passou a ser conhecida como “o pomo da discórdia” – que hoje indica qualquer coisa que leve as pessoas a brigar entre si.

Afogar o ganso

No passado, os chineses costumavam satisfazer as suas necessidades sexuais com gansos. Pouco antes de ejacularem, os homens afundavam a cabeça da ave na água, para poderem sentir os espasmos anais da vítima. Daí a origem da expressão, que se refere a um homem que está precisando fazer sexo.

Ave de mau agouro

Diz-se de pessoa portadora de más notícias ou que, com a sua presença, anuncia desgraças. O conhecimento do futuro é uma das preocupações inerentes ao ser humano. Quase tudo servia para, de maneiras diversas, se tentar obter esse conhecimento. As aves eram um dos recursos que se utilizava. Na antiga Roma, a predição dos bons ou maus acontecimentos (Avis spicium, em Latim) era feita através da leitura do voo ou canto das aves. Os pássaros mais usado para isso eram a águia, a coruja, o corvo e a gralha. Ainda hoje perdura, popularmente, a conotação funesta com qualquer destas aves.

Santa do pau oco

Expressão que se refere à pessoa que se faz de boazinha, mas não é. Nos século XVIII e XIX os contrabandistas de ouro em pó, moedas e pedras preciosas utilizavam estátuas de santos ocas por dentro. O santo era “recheado” com preciosidades roubadas e enviado para Portugal.

Mais vale um pássaro na mão que dois voando

Significa que é melhor ter pouco que ambicionar muito e perder tudo. É tradição de antigos caçadores. Eles achavam melhor apanhar logo a ave que tinham atingido de raspão, antes que ela fugisse, do que tentar atirar nas que estavam voando e errar o alvo.

Apressado come cru

Quando não existia o forno microondas, era preciso muito tempo para a comida ficar pronta, ou então comê-la crua. Nessa época, a culinária japonesa ainda não estava na moda e comida crua era vista com maus olhos. Assim, a expressão passou a ser usada para significar afobamento, precipitação.

Chorar as pitangas

Pitangas são deliciosas frutinhas cultivadas e apreciadas em todo o país, especialmente nas regiões norte e nordeste do país. A palavra deriva de pyrang, que, em tupi-guarani, significa vermelho. Sendo assim, a provável relação da fruta com lágrimas, vem do fato de os olhos ficarem vermelhos, parecendo duas pitangas, quando se chora muito.

Farinha do mesmo saco

“Homines sunt ejusdem farinae” esta frase em latim (homens da mesma farinha) é a origem dessa expressão, utilizada para generalizar um comportamento reprovável. Como a farinha boa é posta em sacos diferentes da farinha ruim, faz-se essa comparação para insinuar que os bons andam com os bons enquanto os maus preferem os maus.

Aquela que matou o guarda

Tratava-se de uma mulher que trabalhava para Dom João VI e se chamava Canjebrina, que, como informam os dicionários, significa pinga, cachaça. Ela teria matado um dos principais guardas da corte do Rei. O fato não foi provado. Mas está no livro “Inconfidências da Real Família no Brasil”, de Alberto Campos de Moraes.

Sangria desatada

Diz-se de qualquer coisa que requer uma solução ou realização imediata. Esta expressão teve origem nas guerras, onde se verificava a necessidade de cuidados especiais com os soldados feridos. É que, se por qualquer motivo, se desprendesse a atadura posta sobre as feridas, o soldado morreria, por perder muito sangue.

Colocar panos quentes

Significa favorecer ou acobertar coisa errada feita por outro. Em termos terapêuticos, colocar panos quentes é uma receita, embora paliativa, prescrita pela medicina popular desde tempos remotos. Recomenda-se sobretudo nos estados febris, pois a temperatura muito elevada pode levar a convulsões e a problemas daí decorrentes. Nesses casos, compressas de panos encharcados com água quente são um santo remédio. A sudorese resultante faz baixar a febre.

Cor de burro quando foge

A frase original era “Corra do burro quando ele foge”. Tem sentido porque, o burro enraivecido, é muito perigoso. A tradição oral foi modificando a frase e “corra” acabou virando “cor”.

Pagar o pato

A expressão deriva de um antigo jogo praticado em Portugal. Amarrava-se um pato a um poste e o jogador (em um cavalo) deveria passar rapidamente e arrancá-lo de uma só vez do poste. Quem perdia era que pagava pelo animal sacrificado. Sendo assim, passou-se a empregar a expressão para representar situações onde se paga por algo sem ter qualquer benefício em troca.

De pequenino é que se torce o pepino

Os agricultores que cultivam os pepinos precisam de dar a melhor forma a estas plantas. Retiram uns “olhinhos” para que os pepinos se desenvolvam. Se não for feita esta pequena poda, os pepinos não crescem da melhor maneira porque criam uma rama sem valor e adquirem um gosto desagradável. Assim como é necessário dar a melhor forma aos pepinos, também é preciso moldar o caráter das crianças o mais cedo possível.

Salvo pelo gongo

O ditado tem origem na Inglaterra. Lá, antigamente, não havia espaço para enterrar todos os mortos. Então, os caixões eram abertos, os ossos tirados e encaminhados para o ossuário e o túmulo era utilizado para outro infeliz. Só que, às vezes, ao abrir os caixões, os coveiros percebiam que havia arranhões nas tampas, do lado de dentro, o que indicava que aquele morto, na verdade, tinha sido enterrado vivo (catalepsia – muito comum na época).

Assim, surgiu a idéia de, ao fechar os caixões, amarrar uma tira no pulso do defunto, tira essa que passava por um buraco no caixão e ficava amarrada num sino. Após o enterro, alguém ficava de plantão ao lado do túmulo durante uns dias. Se o indivíduo acordasse, o movimento do braço faria o sino tocar. Desse modo, ele seria salvo pelo gongo. Atualmente, a expressão significa escapar de se meter numa encrenca por uma fração de segundos.

Elefante branco

A expressão vem de um costume do antigo reino de Sião, situado na atual Tailândia, que consistia no gesto do rei de dar um elefante branco aos cortesões que caíam em desgraça. Sendo um animal sagrado, não podia ser posto a trabalhar. Como presente do próprio rei, não podia ser vendido. Matá-lo, então, nem pensar. Não podendo também ser recusado, restava ao infeliz agraciado alimentá-lo, acomodá-lo e criá-lo com luxo, sem nada obter de todos esses cuidados e despesas. Daí o ditado significar algo que se tem ou que se construiu, mas que não serva para nada.

Comer com os olhos

Soberanos da África Ocidental não consentiam testemunhas às suas refeições. Comiam sozinhos. Na Roma Antiga, uma cerimônia religiosa fúnebre consistia num banquete oferecido aos deuses em que ninguém tocava na comida. Apenas olhavam, “comendo com os olhos”. A propósito, o pesquisador Câmara Cascudo diz que certos olhares absorvem a substância vital dos alimentos. Hoje o ditado significa apreciar de longe, sem tocar.

Amigo da onça

Segundo estudiosos da língua portuguesa, este termo surgiu a partir de uma história curiosa. Conta-se que um caçador mentiroso, ao ser surpreendido, sem armas, por uma onça, deu um grito tão forte que o animal fugiu apavorado. Como quem o ouvia não acreditou, dizendo que , se assim fosse, ele teria sido devorado, o caçador, indignado, perguntou se, afinal, o interlpcutor era seu amigo ou amigo da onça. Atualmente, o ditado significa amigo falso, hipócrita.

Estar com a corda no pescoço

O enforcamento foi, e ainda é em alguns países, um meio de aplicação da pena de morte. A metáfora nasceu de anistias ou comutações de pena chegadas à última hora, quando o condenado já estava prestes a ser executado e o carrasco já lhe tinha posto a corda no pescoço, situação que, de fato, é um sufoco. Hoje, o ditado significa estar ameaçado, sob pressão ou com problemas financeiros.

Como sardinha em lata

A palavra sardinha vem do latim sardina. Designa o peixe abundante na Sardenha, conhecida região da Itália. É um alimento apreciado e nutritivo, de sabor bem peculiar. As sardinhas, quando enlatadas em óleo ou em outro molho, vêm coladas umas às outras. Por analogia, usa-se a expressão popular sardinha em lata para designar a superlotação de veículos de transporte público.

O pior cego é o que não quer ver

Em 1647, em Nimes, na França, na universidade local, o doutor Vicent de Paul D’Argenrt fez o primeiro transplante de córnea em um aldeão de nome Angel.

Foi um sucesso da medicina da época, menos para Angel, que assim que passou a enxergar ficou horrorizado com o mundo que via. Disse que o mundo que ele imagina era muito melhor. Pediu ao cirurgião que arrancasse seus olhos.

O caso foi acabar no tribunal de Paris e no Vaticano. Angel ganhou a causa e entrou para a história como o cego que não quis ver. Atualmente, o ditado se refere a a alguém que se nega a admitir um fato verdadeiro.

Andar à toa

Toa é a corda com que uma embarcação reboca a outra. Um navio que está “à toa” é o que não tem leme nem rumo, indo para onde o navio que o reboca determinar. Uma mulher à toa, por exemplo, é aquela que é comandada pelos outros. Jorge Ferreira de Vasconcelos já escrevia, em 1619: Cuidou de levar à toa sua dama. Hoje, o ditado significa andar sem destino, despreocupado, passando o tempo.

Casa de Mãe Joana

Este dito popular tem origem na Itália. Joana, rainha de Nápoles e condessa de Provença (1326-1382), liberou os bordéis em Avignon, onde estava refugiada, e mandou escrever nos estatutos: “Que tenha uma porta por onde todos entrarão”.

O lugar ficou conhecido como Paço de Mãe Joana, em Portugal. Ao vir para o Brasil a expressão virou “Casa da Mãe Joana”. A outra expressão envolvendo Mãe Joana, um tanto chula, tem a mesma origem, naturalmente.

Onde judas perdeu as botas

Como todos sabem, depois de trair Jesus e receber 30 dinheiros, Judas caiu em depressão e culpa, vindo a se suicidar enforcando-se numa árvore.

Acontece que ele se matou sem as botas. E os 30 dinheiros não foram encontrados com ele. Logo os soldados partiram em busca as botas de Judas, onde, provavelmente, estaria o dinheiro.

A história é omissa daí pra frente. Nunca saberemos se acharam ou não as botas e o dinheiro. Mas a expressão atravessou vinte séculos. Atualmente, o ditado significa lugar distante, inacessível.

Quem não tem cão caça com gato

Se você não pode fazer algo de uma maneira, se vira e faz de outra. Na verdade, a expressão, com o passar dos anos, se adulterou. Inicialmente se dizia “quem não tem cão caça como gato”, ou seja, se esgueirando, astutamente, traiçoeiramente, como fazem os gatos.

De pá virada

Um sujeito da pá virada pode tanto ser um aventureiro corajoso como um vadio.

A origem da palavra é em relação ao instrumento, a pá. Quando ela está virada para baixo, é inútil não serve para nada. Hoje em dia, “pá virada” tem outro sentido. Refere-se a uma pessoa de maus instintos e criadora de casos ou a um aventureiro.

Deixar de Nhenhenhém

Conversa interminável em tom de lamúria, irritante, monótona. Resmungo, rezinga.

Nheë, em tupi, quer dizer falar. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, eles não entendiam aquela falação estranha e diziam que os portugueses ficavam a dizer “nhen-nhen-nhen”.

Estar de paquete

Situação das mulheres quando estão menstruadas. Paquete, já nos ensina o Aurélio, é um das denominações de navio. A partir de 1810, chegava um paquete mensalmente, no mesmo dia, no Rio de Janeiro. E a bandeira vermelha da Inglaterra tremulava. Daí logo se vulgarizou a expressão sobre o ciclo menstrual das mulheres. Foi até escrita uma “Convenção Sobre o Estabelecimento dos Paquetes”, referindo-se, é claro, aos navios mensais.

Pensando na morte da bezerra

Estar distante, pensativo, alheio a tudo.

Esta é bíblica. Como vocês sabem, o bezerro era adorado pelos hebreus e sacrificados para Deus num altar. Quando Absalão, por não ter mais bezerros, resolveu sacrificar uma bezerra, seu filho menor, que tinha grande carinho pelo animal, se opôs. Em vão. A bezerra foi oferecida aos céus e o garoto passou o resto da vida sentado do lado do altar “pensando na morte da bezerra”. Consta que meses depois veio a falecer.

Não entender patavina

Não saber nada sobre determinado assunto. Nada mesmo.

Tito Lívio, natural de Patavium (hoje Pádova, na Itália), usava um latim horroroso, originário de sua região. Nem todos entendiam. Daí surgiu o Patavinismo, que originariamente significava não entender Tito Lívio, não entender patavina.

Jurar de pés junto

A expressão surgiu das torturas executadas pela Santa Inquisição, nas quais o acusado de heresias tinha as mãos e os pés amarrados (juntos) e era torturado para confessar seus crimes.

Emanuele Filiberto di Savoia

Testa de ferro

O Duque Emanuele Filiberto di Savoia, conhecido como Testa di Ferro, foi rei de Chipre e Jerusalém. Mas tinha somente o título e nenhum poder verdadeiro. Daí a expressão ser atribuída a alguém que aparece como responsável por um por um negócio ou empresa sem que o seja efetivamente.

Erro crasso

Na Roma antiga havia o Triunvirato: o poder dos generais era dividido por três pessoas. No primeiro destes Triunviratos, tínhamos: Caio Júlio, Pompeu e Crasso. Este último foi incumbido de atacar um pequeno povo chamado Partos. Confiante na vitória, resolveu abandonar todas as formações e técnicas romanas e simplesmente atacar. Ainda por cima, escolheu um caminho estreito e de pouca visibilidade. Os Partos, mesmo em menor número, conseguiram vencer os romanos, sendo o general que liderava as tropas um dos primeiros a cair. Desde então, sempre que alguém tem tudo para acertar, mas comete um erro estúpido, dizemos tratar-se de um “erro crasso“.

Lágrimas de crocodilo

O crocodilo, quando ingere um alimento, faz forte pressão contra o céu da boca, comprimindo as glândulas lacrimais. Assim, ele chora enquanto devora a vítima. Daí a expressão significar choro fingido.

Fila indiana

Tem origem na forma de caminhar dos índios americanos, que, desse modo, encobriam as pegadas dos que iam na frente.

Passar a mão pela cabeça

Significa perdoar, e vem do costume judaico de abençoar cristãos-novos, passando a mão pela cabeça e descendo pela face, enquanto se pronuncia a bênção.

Gatos pingados

Esta expressão remonta a uma tortura procedente do Japão que consistia em pingar óleo fervente em cima de pessoas ou animais, especialmente gatos.

Existem várias narrativas ambientais na Ásia que mostram pessoas com os pés mergulhados num caldeirão de óleo quente. Como o suplício tinha uma assistência reduzida, tal era a crueldade, a expressão “gatos pingados” passou a significar pequena assistência sem entusiasmo ou curiosidade para qualquer evento.

Queimar as pestanas

Antes do aparecimento da eletricidade, recorria-se a uma lamparina ou uma vela para iluminação. A luz era fraca e, por isso, era necessário colocá-las muito perto do texto quando se pretendia ler o que podia dar num momento de descuido queimar as pestanas. Por essa razão, aplica-se àqueles que estudam muito.

Sem papas na língua

Significa ser franco, dizer o que sabe, sem rodeios. A expressão vem da frase castelhana “no tener pepitas em la lengua”. Pepitas, diminutivo de papas, são partículas que surgem na língua de algumas galinhas, é uma espécie de tumor que lhes obstrui o cacarejo. Quando não há pepitas (papas), a língua fica livre.

A toque de caixa

A caixa é o corpo oco do tambor que foi levado para a a Europa pelos árabes. Como os exercícios militares eram acompanhados pelo som de tambores, dizia-se que os soldados marchavam a toque de caixa. Atualmente, refere-se a uma tarefa que se tem de fazer rapidamente, eventualmente a mando de alguém ou mesmo à força.

Maria vai com as outras

Dona Maria I, mãe de D. João VI (avó de D. Pedro I e bisavó de D. Pedro II), enlouqueceu de um dia para o outro . Declarada incapaz de governar, foi afastada do trono. Passou a viver recolhida e só era vista quando saía para caminhar a pé, escoltada por numerosas damas de companhia. Quando o povo via a rainha levada pelas damas nesse cortejo, costumava comentar: “Lá vai D. Maria com as outras”. Atualmente aplica-se a expressão a uma pessoa que não tem opinião e se deixa convencer com a maior facilidade.

Fonte: CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções Tradicionais no Brasil. São Paulo, Editora Global/2008.

Fonte internet – http://saibahistoria.blogspot.com.br/2010/07/blog-post.html

VEJA UMA SEGUNDA PARTE SOBRE ESTE TEMA EM NOSSO TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/10/03/ditados-populares-e-seus-significados-ii/

O “CINE JORNAL” DE 1924

O PRIMEIRO LONGA-METRAGEM REALIZADO NO RIO GRANDE DO NORTE FOI UM DOCUMENTÁRIO

Rostand Medeiros – IHGRN

Sou um entusiasta pela sétima arte, onde, obrigatoriamente, busquei no excelente livro do jornalista potiguar Anchieta Fernandes, “Écran Natalense”, conhecer a história do cinema no Rio Grande do Norte.

Desejava que uma curiosidade fosse satisfeita ao ler este livro; qual foi o primeiro longa-metragem produzido em terras potiguares?

Em uma das páginas, uma pequena nota apontava para um documentário produzido pelo governo do estado, no início dos anos de 1920. Busquei maiores detalhes sobre este projeto cinematográfico e encontrei uma interessante história: Em uma edição do jornal “A Republica”, de 25 de julho de 1924, temos uma reportagem sobre a criação de um “film” que mostrava a “vida actual” e “as possibilidades econômicas do Rio Grande do Norte”. Informava “que o Dr. Amphilóquio Carlos Soares da Câmara estava com a missão de dirigir, e naquele momento, acompanhava no Rio de Janeiro a conclusão do material para posterior exibição”.

Ligação com um Livro

Lendo a reportagem detalhada sobre a película, me recordei que já tinha tido oportunidade de ler um livro chamado “Scenarios Norte-Riograndenses”, de 1923, de autoria do mesmo Amphilóquio Câmara, que mostrava as diversas regiões, os potenciais econômicos, as cidades, as características e particularidades do Rio Grande do Norte dos anos 20 do século passado. Este livro fora preparado visando mostrar aos potiguares o que o estado possuía e como as nossas riquezas foram vistas na Exposição Nacional do Centenário da Independência, em 1922, quando o próprio Amphilóquio havia sido designado delegado do Rio Grande do Norte para este evento.

Palácio do Governo e Praça 7 de setembro. A imagem foi captada do primeiro andar do Palácio Felipe Camarão, sede da Prefeitura Municipal de Natal, onde acredito que o cinegrafista Junqueira filmou o mesmo cenário em 1924.

Comparando a descrição e as fotos existentes no livro, e lendo a reportagem sobre o documentário existente em “A República”, pude perceber que o livro e a película tinham ligação concreta. Mostrando como os conhecimentos de Amphilóquio Câmara estavam sendo utilizados na execução deste projeto cinematográfico.

Governador José Augusto Bezerra de Medeiros.

O então governador José Augusto Bezerra de Medeiros apoiou a ideia de Amphilóquio, que buscou contratar um dos melhores cinegrafistas existentes no país, o mineiro Aristides Junqueira, autor do curta-metragem “Reminiscências”, hoje considerado o filme brasileiro mais antigo (1909) ainda disponível. Ficou decidido que o título da película seria, “Cine-Jornal do Rio Grande do Norte”.

Iniciam as Filmagens

Junqueira e Amphilóquio iniciaram o trabalho no final de 1923, tendo sido rodados quatro mil metros de película. Foram feitas, segundo o relato existente no jornal, imagens da capital com seus bairros, avenidas principais, igrejas, praças, a vida cotidiana, vistas do mar e imagens do dia-a-dia. Um dos exemplos foi uma panorâmica em 360° da cidade, feita a partir da torre da Igreja Matriz, na Praça André de Albuquerque, então o ponto mais elevado de uma Natal que possuía uma população em torno de 25.000 pessoas.

Foto da antiga igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque, centro de Natal. No início do século XX era normal que escoteiros ficassem no alto da torre e desfraldassem bandeiras quando um barco era visto se dirigindo para o porto da cidade. Estas bandeiras possuíam cores distintas para diferenciar se os barcos vinham do norte, ou do sul. Durante anos este foi o local mais elevado da cidade, de onde fotógrafos registraram a evolução da cidade. Certamente no alto dessa torre Junqueira deve ter colocado sua câmara.

Como a principal área urbanizada da cidade, praticamente se restringia ao Centro e a Ribeira, provavelmente nesta tomada, Junqueira filmou toda a área da capital potiguar. Igualmente foram filmados ações de governo, prédios públicos, escolas, obras de saneamento da cidade, hospitais, sanatórios e outros.

Fatos sociais foram mostrados, um deles foi o desembarque de José Augusto em Natal, na manhã de 24 de dezembro de 1923. Foi um evento concorrido, onde várias autoridades e figuras sociais estavam presentes no cais da Tavares de Lyra.

José Augusto chegava do Rio de Janeiro, então Capital Federal, para tomar posse como governador. Toda a solenidade foi filmada tanto fora, como dentro do palácio de governo. Outro evento mostrado foi à inauguração da sede da Associação dos Escoteiros de Natal.

O governador decidiu que seriam realizadas filmagens no interior do estado. Para esta empreitada, além de Amphilóquio e Junqueira, uniu-se ao grupo o advogado Dioclécio Duarte. Estes seguiram visitando e filmando aspectos sociais e econômicos de Macaíba, Ceará-Mirim, a praia de Muriú, Macau, Mossoró, Areia Branca e Grossos. Em Macaíba, as lentes de Junqueira apontaram para o então Campo de Demonstração Agrícola.

Em Ceará-Mirim, o alvo foi a produção de cana-de-açúcar, onde uma das tomadas foi realizada em um ponto elevado do engenho “Villa Bella”. No engenho “União” foi realizada cenas da moagem da cana, do trabalho tradicional e da casa do seu proprietário, o “coronel” Felismino Dantas.

Em Muriú, a saída dos pescadores em tradicionais jangadas, foi apresentada para o grupo que realizava o documentário.

A cidade de Macau na década de 1920.

Em Macau foram filmadas solenidades na cidade, os aspectos da indústria salineira, com imagens da salina “Conde Pereira Carneiro” e o transporte do sal para os barcos salineiros impulsionados pela força dos ventos. Na povoação de “Independência” (atual Pendências), foi apresentado ao grupo à cultura da carnaúba e alguns vastos carnaubais.

Mossoró era apresentado como o “maior empório comercial do estado, com sua população de 20.000 habitantes”. Foi realizada uma panorâmica da cidade, feita a partir da torre da igreja de São Vicente. Praças, igrejas, ruas, prédios públicos, com destaque para a Escola Normal, foram capturados pela lente de Junqueira.

Já Grossos e Areia Branca tiveram destaques pelas salinas e o porto. Segundo as notícias, as fortes chuvas ocorridas no primeiro semestre de 1924, impossibilitaram que fossem filmadas outras cidades do interior do Estado.

Escola Normal de Mossoró, na década de 1920. Quando governador do Rio Grande do Norte, José Augusto Bezerra de Medeiros valorizou muito a educação. É possível que em sua visita a Capital do Oeste o cinegrafista Junqueira tenha filmado esse local.

Além das notícias publicadas no jornal “A Republica”, uma referência sobre este filme pode ser lida na própria mensagem governamental de José Augusto, no ano de 1924, onde nas páginas 67 e 68, no tópico “Museu Agrícola e Commercial”, o governador afirmava a necessidade de se fazer propaganda dos recursos do Estado, utilizando esta película, neste museu que estava sendo criado pelo Governo Federal.

Outros Trabalhos de Junqueira

O trabalho do cinegrafista Aristides Junqueira parece ter-se prolongado mais tempo no Rio Grande do Norte. Na edição de 12 de novembro de 2000 da “Tribuna do Norte”, em uma reportagem sobre pesquisas e catalogação do material relativo a Intentona Comunista, existente no próprio Arquivo Público do Estado, existem cartas de Junqueira comentando sobre o levante de 1935. Na reportagem, a então diretora do Arquivo, Vanilde de Souza Rêgo, comenta que o cineasta fez relatos de como ocorreu o movimento comunista na região salineira, algo então desconhecido para muitos. Em uma das cartas, Junqueira afirmava estar “cavando com a machina cinematographica o pão nosso de cada dia…”, onde ele filmaria “as salinas para os meus jornalecos quando estourou o movimento comunista em Natal”.

Teria o cinegrafista Junqueira continuado trabalhando frequentemente com filmagens no Rio Grande do Norte?

Cine Royal.

Ou este cineasta mineiro teria retornado ao estado, apenas para uma nova refilmagem da região salineira e, coincidentemente, estava na área quando ocorreu a Intentona Comunista? Haveria outros antigos documentários sobre o Rio Grande do Norte?

Esta película é certamente o primeiro trabalho cinematográfico, em longa-metragem, no formato de um documentário, realizado de forma profissional no Rio Grande do Norte e desenvolvido por um dos melhores cinegrafistas existentes no Brasil da década de 1920. Foi um projeto executado como uma ação de governo, apresentando a nossa realidade social e econômica, em meio a um país eminentemente agrícola.

È difícil, mas é possível acreditar na possibilidade de que existam alguns fotogramas desta película, talvez algo mais completo do filme, bastando para isto pesquisar de forma correta e trabalhar sério.

Praça Augusto Severo, seguramente um dos locais filmados por Junqueira em Natal.

Encontrar o que sobrou deste material é rever uma Natal e um Rio Grande do Norte que não existem mais.

Não é necessário muito esforço para imaginar a importância que a descoberta material desta película teria para a história iconográfica do Rio Grande do Norte e para nossa história de maneira geral.

Apresentações

Após as filmagens, foi realizada a preparação das imagens no Rio de Janeiro, onde houve uma primeira exibição do “Cine-Jornal do Rio Grande do Norte” e a película volta ao estado. No dia 18 de outubro de 1924, o documentário começou a ser anunciado nos jornais locais. Era informado que este seria um “filme que interessa a todo riograndense do norte”.

Motivo de orgulho de um Rio Grande do Norte pobre e esquecido no sul do país na década de 1920, acredito que as alunas da Escola Doméstica de Natal foram focadas por Junqueira. Na foto as jovens aparecem em uma aula na horta do educandário – Fonte – http://www.skyscrapercity.com

A exibição ocorreu nas duas principais salas de exibição existentes em Natal, o Royal e o Polytheama, onde o material cinematográfico foi dividido em duas exibições, em 13 partes distintas. Na primeira apresentação foram expostas seis partes, no dia posterior, outras sete partes foram exibidas, tendo sido a película repetida por mais uma semana e de forma contínua.

Na primeira exibição o valor da entrada foi de 1$100 (um mil e cem réis), na segunda exibição o valor foi de 2$000 (dois mil réis).

Ainda segundo a opinião dos redatores de “A Republica”, o filme causou uma boa impressão na cidade. Entretanto, Américo Gentile, o proprietário das duas salas de projeção, baixou o preço da entrada para 1$000 réis.

Após estas apresentações, não se encontram notícias sobre outras exibições do documentário nos jornais e ele é esquecido.

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ALIADOS? – A ESPIONAGEM BRITÂNICA NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Sabemos que durante a Segunda Guerra Mundial inúmeros navios brasileiros foram afundados por submarinos e essas ações bélicas levaram o Brasil a declarar formalmente o Estado de Guerra contra a Alemanha Nazista e a Itália Fascista no dia 22 de agosto de 1942.

Com isso o Brasil tornou-se um dos países que lutaram ao lado dos Aliados e em nosso território forças militares norte-americanas construíram estratégicas bases aéreas e navais que ajudaram na defesa do nosso território, na ação contra os submarinos nazifascistas, bem como no transporte aéreo para as áreas de combate na África, Ásia e Europa.

Igualmente sabemos que antes mesmo dessa declaração de guerra o Brasil foi alvo de espiões dos países do Eixo, que atuaram com o apoio de colaboradores brasileiros, a maioria deles antigos participantes da Ação Integralista Brasileira (AIB). Esse foi um movimento político de extrema-direita surgido em nosso país em 1932, cujos integrantes eram jocosamente chamados de “Galinhas Verdes”, por utilizarem uniformes nesse padrão de cor.

Ao longo do conflito mundial as autoridades brasileiras, apoiados por americanos, prenderam vários espiões estrangeiros e seus colaboradores tupiniquins. Muitos deles foram julgados e condenados, alguns até mesmo a pena de morte, mas nunca foram executados.

Instrumentos de trabalho de um espião na Segunda Guerra.

A história sobre a espionagem nazifascista no Brasil durante a Segunda Guerra é bem conhecida e propalada. Mas são poucas as informações sobre a atuação de espiões dos países Aliados agindo em território brasileiro.

Mas ela existiu!

Um dos casos mais conhecidos é uma ação orquestrada pelos britânicos, que criaram uma carta idêntica à de uma empresa aérea italiana, em cujo conteúdo o presidente Getúlio Vargas era chamado de “Gordinho” e os brasileiros de “macacos”. A carta foi tão séria que acabou com uma importante brecha no esquema de segurança dos Aliados na América do Sul. Isso tudo logo após uma séria crise diplomática entre brasileiros e britânicos.

Comecemos por essa crise!

O Caso do Navio Siqueira Campos

Logo após o início das hostilidades, a Grã-Bretanha e sua marinha, a maior e mais poderosa do mundo naquela época, iniciou um bloqueio naval à Alemanha e a Itália, buscando cortar os suprimentos militares e civis vitais a essas nações.

Ocorre que em 1938 o Governo do Brasil assinou um acordo de oito milhões de libras esterlinas com a fábrica de armamentos alemã Friedrich Krupp AG, cuja finalização dos artefatos só ocorreu no segundo semestre de 1940, após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1 de setembro de 1939.

O navio Siqueira Campos – Fonte – 1.bp.blogspot.com

Quando o material bélico ficou pronto, os alemães despacharam tudo até Lisboa em trens, onde os caixotes seriam embarcados no navio de cargas e passageiros Siqueira Campos, da empresa de navegação Lloyd Brasileiro. Em 19 de novembro daquele ano esse navio estava pronto para partir rumo ao Rio de Janeiro, com o lote de armas acondicionadas no seu porão.

Após o Siqueira Campos içar âncora, deixar Lisboa para trás e alcançar águas internacionais, navios de guerra da Marinha Britânica surgiram no horizonte e ordenaram a parada do navio brasileiro. Este foi abordado por oficiais e marinheiros impecavelmente uniformizados com bermudas e meiões brancos.

Destroier britânico na época da Segunda Guerra.

Na sequência a tripulação do Siqueira Campos foi obrigada a seguir com seu navio para a colônia britânica de Gibraltar, aonde chegou em 22 de novembro de 1940, ancorando próximo ao porto e tendo a bordo 145 tripulantes e 250 passageiros. Esse pessoal não pode desembarcar e só partiram quando a crise se encerrou, quando a situação a bordo era alarmante.

No Brasil, o gaúcho Oswaldo Euclides de Souza Aranha, então Ministro das Relações Exteriores, recebeu a notícia e comunicou o fato ao presidente Vargas. Na sequência Aranha manteve contato com Geoffrey George Knox, Embaixador Britânico no Brasil, que estava de mãos atadas esperando instruções do seu governo. Depois Oswaldo Aranha correu em busca do auxílio da diplomacia dos Estados Unidos para ajudar a resolver o imbróglio. Os americanos logo se deram conta que a atitude britânica em relação ao Siqueira Campos poderia comprometer toda sua “Política de Boa Vizinhança” com o Brasil e os países latino-americanos.

Enquanto a diplomacia buscava uma solução, a notícia da apreensão do Siqueira Campos em Gibraltar deixou os brasileiros furiosos com o Governo Britânico. Em relação a esse caso muitos brasileiros tinham a percepção que a Grã-Bretanha agia com uma clara atitude imperialista. Nas ruas do Rio comentavam que os britânicos tomariam as armas do navio, compradas e pagas aos alemães ainda em 1938, para utilizá-las contra seus fabricantes e não receberíamos nada em troca.

O Embaixador Britânico no Brasil Geoffrey George Knox cumprimenta com um aperto de mão “diplomático” o Presidente Getúlio Vargas, diante do olhar atento do Ministro Oswaldo Aranha – Fonte Agência Nacional.

Em meio a todo esse rolo do Siqueira Campos, quem ria abertamente da truculenta bobagem britânica eram os alemães e seus colaboradores. Enquanto a influência da Alemanha crescia positivamente em nosso belo país tropical, os alemães mostravam aos brasileiros o tipo de “Aliado” complicado que os britânicos podiam ser.

Finalmente os dois países chegaram a um acordo para liberar o Siqueira Campos, que partiu para o Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1940. Mas essa crise diplomática, uma das mais sérias entre brasileiros e britânicos no Século XX, marcou negativamente a visão do governo Vargas e do povo brasileiro em relação aquele país.

Perigo Real

Avião da LATI com suas cores e marcações características – Fonte http://www.spmodelismo.com.br

Em 1941 os britânicos mantinham em Nova Iorque uma agência de informações, cuja finalidade era proporcionar estreita ligação com os serviços de informações norte-americanos em seu próprio país, facilitando as manobras dos dois grandes aliados na guerra contra o Eixo. O Chefe dessa Agência era o cidadão inglês William Samuel Stephenson, cujo codinome era “Intrépido”.

Nessa época aeronaves da companhia aérea italiana LATI (Linee Aeree Transcontinentali Italiane) realizavam voos regulares entre o Brasil e a Europa, onde transportavam importantes figuras nacionais e estrangeiras, além de correios especiais dos diplomatas alemães e italianos, que não podiam ser violados. Vale ressaltar que muitos desses diplomatas eram na verdade espiões nazifascistas disfarçados. Nesses voos seguiram para a Europa diamantes, platina, mica, substâncias químicas, livros e filmes de propaganda dos Aliados. Um verdadeiro “buraco” no bloqueio militar e econômico efetuado pelos ingleses contra a Alemanha e a Itália.

Um submarino nazista em mar agitado. Esse foi o verdadeiro flagelo do Brasil na Segunda Guerra.

Stanley E. Hilton, em seu livro Hitler’s Secret War In South America, 1939-1945: German Military Espionage and Allied Counterespionage in Brazil informou que membros da embaixada americana no Brasil transmitiram aos britânicos que durante as travessias no Oceano Atlântico, os pilotos da LATI estavam visualizando navios britânicos, marcando suas posições em mapas e informando os alemães para enviar seus submarinos e afundá-los (pág. 205).

Hilton também comentou sobre uma carta de Jefferson Caffery, Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, de 29 de novembro de 1941, endereçada ao Ministro Oswaldo Aranha e atualmente guardada no Arquivo Histórico do Itamaraty. Nela Caffery informou que provavelmente foram os tripulantes da companhia aérea italiana, os responsáveis ​​por transmitirem informações que levaram ao afundamento de navios britânicos perto das Ilhas de Cabo Verde, nessa época uma colônia portuguesa. (pág. 207).

Cruzando essa informação com dados sobre a movimentação e ação de submarinos alemães e de aviões da LATI nesse período, descobri na página 5, da edição de 10/10/1941 do Diário de Pernambuco, que no dia 9 de outubro havia partido de Roma o aparelho da LATI modelo Savoia-Marchetti SM.82, número de fabricação MM.60326 e matrícula I-BENI. Essa aeronave trimotor fez escalas em Sevilha (Espanha), Villa Cisneiros (atual Dakhla, na região do Saara Ocidental) e Ilha do Sal (Cabo Verde), onde pernoitou. No outro dia, 10 de outubro, decolou para atravessar o Atlântico Sul, tendo pousado por volta das 15h20min da tarde em Recife, no Campo do Ibura. Estranhamente essa aeronave trouxe um único passageiro que vinha de Berlim – o jornalista chileno Ernesto Samhaber.   

O cargueiro britânico SS Nailsea Manor – Fonte – http://www.sixtant.net

Ocorre que nesse mesmo dia pela manhã, na posição 18° 45’ N e 21° 18” W, a cerca de 180 milhas náuticas a nordeste das Ilhas de Cabo Verde, o cargueiro britânico SS Nailsea Manor foi torpedeado pelo submarino alemão U-126, comandado pelo capitão-tenente (Kapitänleutnant) Ernest Bauer. Esse navio transportava uma preciosa carga de 6.000 toneladas de armas, munições e no seu convés estava até um LCT, ou Landing Craft Tank, um barco de desembarque de veículos blindados. Devido uma tempestade o Nailsea Manor estava desgarrado de um comboio e seguia acompanhado de dois outros navios de carga. Esse pequeno grupo estava sendo escoltado pela corveta HMS Violet (K-35), comandada pelo Tenente Frank Clarin Reynolds, que não pode fazer nada em relação ao torpedeamento. O capitão John Herbert Hewitt, comandante do Nailsea Manor, conseguiu retirar do barco toda a sua tripulação de 41 pessoas, que foram recolhidos pelo pessoal do Violet (Ver http://www.sixtant.net/2011/index.php).

O kapitänleutnant Ernest Bauer na torre do submarino U-126 – Foto de Ariane Krause, através de http://www.uboat.net

Apesar da carta do Embaixador Caffery comentar com o Ministro Oswaldo Aranha sobre o torpedeamento de “navios britânicos” perto das Ilhas de Cabo Verde, não encontrei outra informação sobre ataques de submarinos nazistas nessa área entre outubro e novembro de 1941. Acredito que o torpedeamento do cargueiro britânico SS Nailsea Manor, é o caso comentado por Caffery a Aranha.

O Savoia-Marchetti SM.82, I-BENI, realizou durante sua operação no Brasil um total de 25 travessias transatlânticas e foi o avião da LATI que mais percorreu o trajeto entre a Itália e o Brasil.

Espiões Britânicos em Ação no Brasil, Antes de 007

Mas é que os britânicos, depois do verdadeiro banzé que foi o caso do Siqueira Campos, poderiam convencer o governo brasileiro a barrar essa brecha no seu bloqueio aos países do Eixo?

Avião da LATI aterrissando no Campo de Parnamirim, Natal, Rio Grande do Norte, em 1940. No solo estão trabalhadores potiguares realizado os serviços bancados pelo governo americano para a construção da base de Parnamirim Field – Foto Hart Preston – LIFE.

Para piorar o meio de campo, consta que o governo brasileiro não desejava obstruir esse fluxo aéreo. Um dos genros do presidente Getúlio Vargas era um dos diretores técnicos dessa linha aérea e havia muitos brasileiros influentes interessados em preservar os direitos da LATI em nosso território. Além disso, era a Standard Oil, companhia de petróleo norte-americana, que abastecia os aviões da LATI com o combustível necessário para os voos intercontinentais. Detalhe – Uma das bases da LATI no Brasil era em Natal, no antigo Campo dos Franceses, que nessa época já começava a se transformar em uma grande base aérea construída pelos norte-americanos e seria conhecida como Parnamirim Field.

O Chefe das Operações Especiais em Londres estava ansioso para que algo drástico fosse realizado no sentido de eliminar esse grave inconveniente para os interesses britânicos, mas sem criar problemas com o Brasil e, por tabela, com os norte-americanos. Instruções foram remetidas a William Stephenson em Nova Iorque, informando sobre o fato, das consequências para o bloqueio inglês e ordenando que algo deveria ser feito para tapar a brecha inconveniente.

Stephenson e seus assessores conceberam então um plano que consistia em fazer chegar ao governo brasileiro uma carta comprometedora, cujo teor teria sido supostamente escrito por alguém importante, da alta administração da LATI na Itália, e endereçada a um diretor da companhia no Brasil. O texto da missiva deveria conter elementos tão graves, que pudessem resultar no cancelamento da concessão da companhia italiana para operar a rota transatlântica.

William Stephenson, o “Intrépido”

Os agentes de Stephenson no Brasil imediatamente puseram mãos à obra e, depois de algumas semanas, conseguiram obter uma carta genuína escrita pelo presidente da LATI, o General Aurélio Liotta, e remetida da sede central da companhia em Roma. Encaminharam-na para Nova Iorque sugerindo que a carta falsa deveria ser endereçada ao diretor geral da LATI no Brasil, o Comandante Vicenzo Coppola, que morava no Rio de Janeiro.

Os técnicos em Nova Iorque teriam que simular exatamente o tipo de papel empregado, o timbre existente e aforma dos caracteres da máquina de escrever usada pelo General Liotta.

Por sorte, foi conseguida uma pequena quantidade papel de polpa da palha do tipo necessário e que constituía um detalhe essencial na operação proposta. O relevo do timbre foi copiado com detalhes microscópicos, uma máquina de escrever foi especialmente reconstruída a fim de reproduzir as imperfeições mecânicas daquela usada pela secretária do General para datilografar a carta original e um falsificador copiou a assinatura de Liotta.

Uma verdadeira obra-prima da falsificação.

A Carta do “Gordinho”

A carta falsa foi então preparada em italiano, microfotografada e o microfilme remetido para o principal agente de Stephenson no Rio de Janeiro.

Traduzida, continha o seguinte teor:

Linne Aeree Transcontinentale Italiano S.A.

Roma, 30 de outubro de 1941.

Prezado Camarada:

Recebi seu relatório que chegou cinco dias depois de ter sido despachado.

Este relatório foi levado ao conhecimento dos interessados que o consideraram de suma importância. O comparamos com um outro recebido de Praça Del Prete. Os dois relatórios apresentaram o mesmo quadro da situação que ali existe, mas o seu é mais detalhado. Quero lhe dar os meus parabéns, O fato de que, obtivemos desta vez informações mais completas com o Sr. e seus homens, me proporciona grande satisfação.

Não resta dúvida que o “gordinho” está cedendo ante os lisonjeios dos Americanos, e que somente uma intervenção violenta por parte de nossos amigos verdes poderá salvar o país. Os nossos colaboradores de Berlim, depois de entendimentos que tiveram com o representante em Lisboa, decidiram que tal intervenção deverá se realizar o mais breve possível. Porém você está a par da situação. No dia em que se der a mudança, os nossos colaboradores não se interessarão de maneira alguma pelos nossos interesses e a Lufthansa colherá todas as vantagens.

Para evitar que isto aconteça, precisamos procurar amigos de influência dentre os “verdes” o mais cedo possível. Faça-o sem demora.

Avião da Lati no Rio de Janeiro – Fonte – LIFE.

Deixarei a seu critério a escolha das pessoas mais apropriadas: talvez Padilha ou E. P. de Andrade seriam de mais utilidade do que o Q.B. o qual, apesar de ativo, não vale muito.

A importância que você necessitar será posta a sua disposição, não importa o fato dos camisas verdes precisarem de somas consideráveis. Eles as terão. O ponto importante é que nosso serviço deverá tirar proveito de uma mudança de regime. Procure saber quem é que deseja nomear para Ministro da Aeronáutica e tente captar a sua simpatia. O Senhor precisará ficar a par do que suceder, porém já concordamos em que as negociações ficarão em mãos da LATI, que atuará na sua capacidade de empresa brasileira procurando a extensão a melhoramento de seus próprios serviços.

Espero a máxima discrição de sua parte. Como disse no seu relatório a respeito da Standard Oil, os ingleses e americanos se interessam em tudo e em todos. E se for também verdade – como você afirma com justiça que o Brasil é um país de macacos, não nos devemos esquecer que são macacos dispostos a servir a quem tem as rédeas na mão.

Saudações Fascistas

(a) General P. Liotta

Comandante

Vicenzo COPPOLA

Linee Aeree Transcontinentale Italiana S.A.

RIO DE JANEIRO (BRASIL)

Coppola Preso e a LATI Impedida de Voar

O tal “gordinho”, ou “il grassoccio” em italiano, foi imediatamente identificado como sendo o Presidente Getúlio Vargas, e os “amigos verdes”, ou simplesmente “verdes”, eram os integralistas. Como vimos, a carta continha um insulto pessoal ao Presidente da República, abuso de hospitalidade, críticas à sua política externa e sugeria o encorajamento de seus inimigos políticos. Os agentes secretos ingleses esperavam que essa combinação de apreciações negativas fizesse com que o Presidente Vargas reagisse vigorosamente. Imediatamente após ter recebido o microfilme da carta, o agente de Stephenson no Rio de Janeiro providenciou para que fosse executado um “roubo” à casa do Comandante Coppola, situada na Avenida Vieira Souto, 442, Ipanema, no qual um relógio de cabeceira e outros artigos foram roubados. Atualmente nesse endereço se encontra o Condomínio Ker Franer.

Coppola então chamou a polícia e o “caso” teve alguma publicidade – exatamente o que esperava o agente britânico no Rio – pois tornava patente para as autoridades brasileiras e o público em geral, que se tratava de um roubo real.

Ficha de imigração de Vicenzo Coppola – Fonte – Arquivo Nacional.

Em seguida um brasileiro ligado ao agente secreto inglês procurou um repórter da agência noticiosa americana “Associated Press”. Após obter do mesmo a promessa de que guardaria segredo absoluto, confessou ter tomado parte no assalto à casa de Coppola e entre os seus pertences encontrara um documento microfotografado, que parecia ser muito interessante. Quando o repórter leu seu conteúdo percebeu que era uma carta do presidente da LATI e chegou à conclusão que o original havia sido considerado muito perigoso para ser remetido pelo correio aéreo normal. Concluiu também que aquela missiva tinha sido enviada de forma clandestina para evitar uma possível interceptação. Com aquele tesouro nas mãos, o repórter dirigiu-se à Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, e mostrou-a ao Embaixador Jefferson Caffery. Este diplomata determinou que fossem feitas investigações para ampliação e constatação de sua possível veracidade.

Ao receber o resultado dessas investigações, Caffery concluiu que a carta microfotografada era verdadeira e imediatamente enviou para o Presidente Vargas o microfilme e os resultados obtidos com as investigações em meados de novembro. Para Caffery o Presidente do Brasil pareceu “muito impressionado” com a missiva em italiano e reagiu exatamente como Stephenson esperava. Cancelou imediatamente todos os direitos da LATI no território nacional e ordenou a prisão do seu diretor geral.

Notícia sobre Coppola na época de sua fuga para a Argentina.

Vicenzo Coppola tentou fugir do país, tendo previamente retirado um milhão de dólares de um banco, mas foi preso quando procurou cruzar a fronteira com a Argentina. Mais tarde foi sentenciado a sete anos de prisão e teve seus bens confiscados. Foi posto em liberdade no dia 14 de agosto de 1944, em consequência de um habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Faleceu no Rio de Janeiro, em 27 de maio de 1963.

Por infração às leis brasileiras a empresa aérea LATI foi multada em CrS 85.000,00 (oitenta e cinco mil cruzeiros), além de ter seus aviões, campos de pouso e equipamentos de manutenção confiscados pelas autoridades, enquanto suas tripulações e o pessoal de origem italiana foram internados.

Para os integrantes da representação diplomática dos Estados Unidos no Brasil, a opinião dominante na época foi que a carta do General Liotta havia sido o principal fator que levara o Presidente Vargas a se voltar contra o inimigo.

Espião preso por militares americanos.

Consta que os norte-americanos generosamente decidiram repartir o segredo com o representante do serviço de inteligência na Embaixada Britânica no Rio. Um membro do corpo diplomático americano reproduziu a carta e o agente de Stephenson fingiu mostrar grande interesse e admiração pelo fato e até cumprimentou efusivamente seu colega por esse trabalho.

Conclusão

Nesse tipo de negócio, o bem mais valioso que existe e que todos buscam avidamente são as informações estratégicas vindas de fontes privilegiadas, com conteúdos valiosos, principalmente ligados a assuntos de defesa de uma nação.

Esse tipo de informação é tão importante quanto o poderio bélico, sendo algo que pode definir conflitos entre países e esse tipo de atividade sempre esteve presente em praticamente todos os períodos da historia.

Henry John Temple, o 3º Visconde de Palmerston, mentor da política externa britânica durante grande parte do século XIX, declarou no Parlamento Britânico “Não temos aliados eternos e não temos inimigos perpétuos. Nossos interesses são eternos e perpétuos, e é nosso dever seguir esses interesses”.

Não é novidade que nações amigas realizam espionagem entre si, o chamado “conhecimento comum”. Muitas vezes essas ações se realizam focados na ideia, bem real, que “um amigo de hoje, pode não ser um amigo amanhã”. Além disso, como bem apontou Palmerston, nações não possuem amigos, apenas interesses.

RAIMUNDA CÍCERO – A GRANDE ARTESÃ DO BARRO DE CAICÓ

Rostand Medeiros

Quem observa os antigos jornais do eixo Rio – São Paulo na década de 1970, percebe que não eram muitas as notícias vinculadas sobre o pequeno e distante Rio Grande do Norte.

Normalmente o que a grande imprensa do centro sul do país informava sobre a terra potiguar estava mais focado em desgraças, principalmente as secas, enchentes, alguma coisa de política local e fatos pitorescos desta terra que aparentemente tinha tão pouca representatividade.

Peças da artesã Raimunda Cícero, existente na Biblioteca Olegário Vale, em Caicó – Fonte – aflordaterra.blogspot.com

Por isso me chamou atenção uma interessante reportagem realizada na cidade de Caicó, pela jornalista Lena Frias e o fotografo Alberto Ferreira, do então poderoso Jornal do Brasil, o conhecido JB, do Rio de Janeiro.

Publicada em 9 de janeiro de 1978, não teve como tema central as histórias genealógicas que tanto orgulho causa na elite local, ou as querelas políticas da maior cidade da região do Seridó, ou sobre uma nova enchente, ou uma grande seca.

O que a jornalista Lena buscou e o Alberto focou com sua máquina, foi a história de uma mulher simples, negra, de poucas letras, chamada Raimunda Cícero da Conceição. Uma grande artista do barro tirado daquela terra ressequida pelo sol.

Jornal do Brasil, 9 de janeiro de 1978.

Segundo Jordão de Arimatéia, artista plástico e escultor potiguar, Lena e Alberto vieram a Natal a convite do jornalista Wolden Madruga, para conhecer o trabalho que Jordão realizava no Edifício Rio Mar, que consistia na criação de um grande entalhe de barro e cimento, com 4.000 metros de área. Ao conhecer a jornalista, Jordão lhe narrou vários aspectos interessantes sobre nossas artes e entre estes comentou sobre o trabalho extremamente original de Raimunda Cícero em Caicó.

Jornalista capacitada, Lena percebeu que ali tinha uma grande matéria e com o apoio de Wolden Madruga, foi organizada a viagem a Caicó. Jordão de Arimatéia acompanhou os jornalistas do JB nesta viagem.

UMA ARTESÃ ÚNICA

Mostrando sua arte.

Raimunda Cícero da Conceição nem de Caicó era. Elas nasceu em 1933 e veio ao mundo na paraibana cidade de Bananeiras e um dia (quando ela tinha nove meses) e sem que explicasse a razão, sua família deixou a fértil região do Brejo Paraibano e seguiu para o seco sertão do Seridó Potiguar. Narrou que desde criancinha fazia peças de barro para brincar, sendo ensinada pela sua mãe.

Raimunda recebeu os profissionais de imprensa com um delicioso suco de manga, enquanto espantava seus inúmeros filhos para puder conversar com os estranhos e tentar compreender tanta curiosidade daqueles periodistas pelo seu trabalho artesanal, que ela denominou de “caqueira”.

Segundo a periodista, as louças de barro feitas por Raimunda “sem colégio, nem escola!”, no seu conjunto era “pura harmonia” e possuíam uma “elegância natural” que deixou Lena verdadeiramente embasbacada. Basta ler no que ficou gravado nas páginas do jornal.

Na opinião da jornalista, mesmo sem Raimunda Cícero querer, a sua arte era uma referência, onde a mistura do solo seco e árido do Seridó dava as suas peças de barro uma composição, uma textura, que foi classificada de “fina” e também “única”. Chamou atenção o fato de Raimunda moldar suas peças sem planejamento prévio, sem desenho nenhum. Fazia tudo de “cabeça”.

A artesã contou que para chegar ao ponto ideal de sua matéria prima, buscou misturar areia pilada com barro, mas não deu certo. Depois incorporou flores da caatinga e até tentou uma receita bíblica com leite e mel. Mas a coisa só deu certo quando misturou o barro com a pedra sabão pilada. Segundo a jornalista Lena, a pedra sabão que ela conheceu no Seridó seria mais “mole” que o mesmo tipo de rocha proveniente das Minas Gerais.

Sinceramente, eu nem sabia que existia pedra sabão no Seridó!

No preparo de suas louças.

FELIZ COM SEU TRABALHO

O resultado daquele trabalho deixava a artesã Raimunda Cícero tão feliz, ao ponto dela comentar que muitas vezes “tinha vontade de chorar” quando uma “loiça” ficava pronta, com sua original cor pardo-avermelhado.

Consciente da situação de sua família em solo caicoense, Raimunda colocou bem claro para a jornalista que durante muito tempo eles viveram nos sítios dos “brancos”, trabalhando como empregados e ganhando muito pouco.

Ficou nesta situação até 1953, quando veio morar na “rua” de Caicó. Ou seja, se mudou para a zona urbana.

Raimunda, também conhecida na cidade como “Raimunda Coelho”, ou “Raimunda Louceira”, se casou duas vezes. A segunda foi com um cidadão conhecido como Chico Faísca, que no final da década de 1950 seguiu para o Planalto Central e labutou, como milhares de brasileiros, na construção de Brasília.

Neste ponto a história de Raimunda Cícero lembra a de Dona Lindu, a mãe do ex-presidente Lula, que saiu do sertão de Pernambuco levando a filharada, para tentar encontrar o marido que havia seguido para o Sudeste em busca de trabalho e não deu mais sinal de vida para a família no Nordeste. Mas diferente da mãe de Luís Inácio Lula da Silva, que encontrou o marido com outra mulher, a artesã Raimunda Cícero encontrou o seu marido, que havia virado Candango, e retornaram para o sertão potiguar trazendo o primeiro filho – Paulo Roberto.

LUTA PELO RECONHECIMENTO

Na data da entrevista, seu companheiro Chico Faísca tomava conta da “microempresa” que vinha das mãos habilidosas de Raimunda. Ele narrou a jornalista Lena que tinha que ficar ao lado da mulher, pois ela poderia saber fazer as louças, mas não sabia vender. Segundo ele, se deixasse na mão de Raimundo ela era “enganada” devido a sua simplicidade e recebia quase nada pela sua arte.

Raimunda e sua arte.

Arte esta que já não se restringia apenas as casa dos caicoenses.

Já havia peças de Raimunda Cícero no Rio, São Paulo e até mesmo nos Estados Unidos, Itália e França. Ela já havia participado de exposições em Natal e o seu trabalho já havia proporcionado um aumento na renda familiar.

Segundo a reportagem, na época da entrevista, a família aplicava os ganhos das louças na construção de uma casa no centro da cidade. Mas é relatado que esta mudança não era bem vista por parte de algumas pessoas que viviam na área, que era então considerada o setor mais valorizado da principal cidade seridoense. Essa situação irritou muito Chico Faísca e no início trouxe tristeza a sua família de origem humilde. Mas com o tempo as coisas estavam se acomodando.

A repórter deixou registrado que na época da entrevista, a elite local já considerava de bom alvitre ter aquelas louças de barro originais, como finas peças de decoração nos principais cômodos de suas casas.

Peças de Raimunda Cícera – Fonte – http://www.catalogodasartes.com.br

Era uma grande mudança. Raimunda e seu marido afirmaram que no início, na feira da cidade, era até difícil que os feirantes  deixassem que eles “arriassem” o balaio com suas peças de barro. Tudo por ser a arte de Raimunda Cícero considerada “diferente” do que era feito na época. Atitude que Chico Faísca classificou como “fanatismo” e que aquilo “não valia de nada”.

Na verdade o que aconteceu com a artesã Raimunda Cícero e a sua original maneira de dar forma ao barro, foi uma situação que até hoje é muito comum em terras potiguares. Aqui, tudo que é feito pelo povo local, principalmente quando vem dos mais humildes, só tem algum valor quando os de fora enaltecem e se curvam diante da originalidade e maestria dos nossos artistas, artífices e artesões. E os de fora não podem ser paraibanos, pernambucanos e nem cearenses. Estes são vizinhos!

Se for alguém da Bahia que enalteça nossa arte popular, pode até ter algum valor. Mas bom mesmo é quando o elogio vem de pessoas que vivem abaixo do paralelo 15, localizado ao sul do equador. Melhor ainda se for do estrangeiro. Aí é coisa fina!

O QUE FICOU?

Mas voltando para 1978. Encontramos a informação que um conjunto normal de peças feito por Raimunda para seus clientes incluía 12 pratos, 12 copos, três travessas, três conchas, uma moringa, uma farinheira, uma molheira e tudo saia por CR$ 600,00 (Seiscentos Cruzeiros). Isso era pouco menos da metade do salário mínimo da época, que estava na faixa de CR$ 1.560,00 (Ver o site – http://www.uel.br/proaf/informacoes/indices/salminimo.htm). Vale frisar que fora de Caicó os preços destas peças disparavam.

A MARCHA REVOLUCIONÁRIA DE CLETO CAMPELO PELO AGRESTE DE PERNAMBUCO

Rostand Medeiros – Escritor e Pesquisador.

O tenente Cleto Campelo.

Antecedentes

Durante os conturbados anos 20 do século passado, ocorreram inúmeras agitações políticas que abalaram o então agrário Brasil. Entre estes movimentos, o que ficou conhecido como Tenentismo marcou aquele período. Tendo se caracterizado pelas críticas destes jovens oficiais militares às instituições republicanas e às condições da sociedade brasileira da época. Os tenentes defendiam a modernização econômica do país e combatiam a corrupção política. Com o endurecimento do governo federal em relação ao tenentismo, remanescentes da malfadada Revolução de 1924 e dissidentes do Rio Grande do Sul, uniram-se e seguiram em uma coluna de combatentes para o interior do país, defendendo reformas políticas e sociais e lutando para depor o governo do presidente Artur Bernardes (1922-1926).

Sempre conseguindo vitórias, a coluna revolucionária combateu forças regulares e milícias privadas de fazendeiros. A Coluna empregava táticas de guerrilha, possuía um número de combatentes que chegava em média a cerca de 1.200 homens, acompanhado de algumas mulheres e sendo chefiados por Miguel Costa, Siqueira Campos e Luís Carlos Prestes. Conforme a coluna avançava, muitos eram os insatisfeitos militares de baixa patente, que conspiravam pelo Brasil afora para se unir a Coluna, esperando levantar as populações rurais injustiçadas, se possível levando combatentes, armas e provisões para o grupo revoltoso. Um destes idealistas foi o recifense Cleto Campelo e esta é a sua esquecida saga.

O Revolucionário

Cleto da Costa Campelo Filho nasceu em 29 de dezembro de 1898, era filho de um contador e uma dona de casa, onde desde cedo demonstrou vocação pela carreira militar. Em 1913 ingressou no 4º Batalhão de Infantaria, no Recife, de onde partiu para cursar a Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, concluindo o curso em 1916. Ao sair da Academia retorna a capital pernambucana para servir como aspirante no 21º Batalhão de Caçadores. Vale ressaltar que este batalhão seria anos depois transferido para Natal, onde dentro desta unidade militar, iria eclodir a Intentona Comunista de novembro de 1935 na capital potiguar.

Pernambuco, Recife particularmente, era um fervente caldeirão de exaltações partidárias. O então comando do exército brasileiro na região, a 6ª Região Militar, também não ficava alheia às lutas das facções. Cleto Campelo, então 2º tenente, sempre se interessou pela política de seu tempo, onde acabou entrando em choque contra pessoas ligadas ao grupo dominante da poderosa família Pessoa de Queiroz. Fora então transferido, em maio de 1922, para o 6º Batalhão de Caçadores, sediado em Goiás. Inconformado, na passagem pelo Rio de Janeiro, concede uma entrevista ao jornal “Correio da Manhã” e por isso ficou preso por 30 dias na Fortaleza de Santa Cruz.

Dois anos mais tarde, já promovido a 1º tenente, Cleto Campelo retornou a Recife e ao 21º batalhão de Caçadores, mas estava marcado como revolucionário. É deste período à foto acima, onde vemos a oficialidade do 21º Batalhão de Caçadores. Cleto Campelo é o segundo oficial, em pé, posicionado da direita para a esquerda. Repare a sua face tranquila, confiante e como se coloca encarando a objetiva. Outro detalhe que chama a atenção, não sei se proposital, é como os outros oficiais se encontram afastados deste militar, posicionando-se a certa distância, como evitando uma possível ideia de associação por parte de algum observador.

Sempre solidário aos que lutava contra o governo, ele acompanhava os avanços da coluna revoltosa pelo interior do Brasil e procurou aliciar alguns camaradas nos quartéis da capital para se unir aos revoltosos.

Nada conseguiu e desertou. Preferiu destruir a carreira a sacrificar as aspirações. Partiu para a Argentina para se unir a militares brasileiros no exílio, receber ordens, montar planos, conseguir apoio e conspirar novamente em Pernambuco. Voltou clandestinamente no início de 1926, em aventurosa viagem, onde até foguista se tornou em navio costeiro. Tinha ordens de preparar o levante que apoiasse e servisse de suporte à coluna rebelada, quando esta cruzasse o sertão pernambucano.

A Descoberta do Plano e o Início da Revolta

Após ter atravessado o Rio Grande do Norte, invadindo as cidades de São Miguel e Luis Gomes e perpetrar um verdadeiro massacre na cidade de Piancó, na Paraíba, a Coluna Prestes chegou a Pernambuco no dia 2 de fevereiro de 1926, entrando pelo Vale do Pajeú.

No Recife, entre os mais destacados participantes da rebelião de Cleto Campelo estava Anfilóquio Cavalcante. Este mantinha um arsenal na Rua Alecrim, nº 105, o que levou pânico a sua família, tendo o seu cunhado, o alfaiate José Pedro da Silva denunciado as autoridades à existência do armamento. Alguns conspiradores foram presos e o levante no Recife fracassou.

Avisado do fato Cleto Campelo não desistiu do plano e conseguiu fugir para Jaboatão. Às 4 da manhã do dia 17 de fevereiro, em pleno Carnaval, deu início ao seu plano junto com 25 companheiros. O grupo tomou de assalto a cadeia pública, libertaram os prisioneiros, prenderam os policiais e cortaram as linhas telefônicas para o Recife. Após isso requisitaram o dinheiro das coletorias de rendas e dos correios, saquearam algumas casas comerciais e tomaram as oficinas da empresa ferroviária Great-Western. Nesta empresa apossaram-se da munição que existia na estação ferroviária, tomaram o trem de passageiros e descarrilaram os vagões que não precisavam utilizar. Alguns operários da Great-Western decidiram integrar o movimento.

O Caminho para o Agreste.

Marcha de um trem em direção ao agreste pernambucano.

Seguiu viagem pela então Ferrovia Central, onde iniciaram a tentativa de alcançar o Rio São Francisco, na região da cidade de Floresta, ainda em Pernambuco, onde se encontrava uma parte da Coluna comandada pelo tenente João Alberto Lins de Barros.

Durante o trajeto, os revoltosos realizaram paradas sucessivas em Moreno, Tapera, Vitória de Santo Antão e São José dos Pombos.

Em Vitória de Santo Antão, o grupo parou a composição na estação da fazenda Mufumbo, próximo à área urbana, para onde seguiram a pé. Nesta cidade tornaram a destruir o telégrafo, a soltarem os presos, a prenderem os policiais e tomar suas armas.  Almoçaram no Hotel Fortunato e seguiram em frente, procurando antes destruir a linha férrea na ponte sobre o Rio Tapacurá. O grupo então já passava de 80 homens, todos com lenços vermelhos ao pescoço.

Muito chamou a atenção das testemunhas o trato cordial do comandante com a atônita população, sempre passando “recibos revolucionários” de tudo que requisitava e que não fosse do governo. A sua liderança junto aos seus homens crescia a cada momento.

Ao chegarem próximos ao 1º túnel da encosta da Serra da Borborema, os revoltosos dinamitaram um pontilhão em uma curva e danificaram o túnel nº 7, cortando a linha férrea.

A Luta em Gravatá e a Morte de Cleto Campelo

Por volta das 16 horas se aproximaram de Gravatá, onde o comandante sabia que haveria resistência. Afinal, depois de 14 horas e meia do ataque a Jaboatão, o governo já tivera tempo de organizar uma tropa entrincheirada na estação ferroviária. Cleto Campelo ordenou ao maquinista Saturnino que diminuísse a marcha da máquina e entraram lentamente na cidade, que aparentava estar desabitada.  A composição seguia lenta entre as ruas e praças da cidade,  parou a trezentos metros da estação, próximo a cadeia pública e o tiroteio começou.

Antiga Cadeia Pública de Gravatá, atualmente uma biblioteca e museu.

Segundo historiadores pernambucanos, Cleto Campelo arremeteu a frente do grupo contra o edifício da cadeia, cabeça erguida, de revólver na mão, acompanhado de perto do engraxate Ezequiel, neste local jogou uma dinamite, que produziu aterradora explosão. Ao sair do prédio, segundo alguns, inadvertidamente o foguista da composição, Artur Cipriano, abriu fogo contra Cleto Campelo e Ezequiel e ambos foram mortos.

Foto do cadáver de Cleto Campelo

Segundo outros foram tiros efetuados da trincheira legalista mataram os dois revoltosos. O certo é que esta derrota trouxe grande  desgosto para os revoltosos, o pânico tomou conta da tropa e começou a desistência de vários componentes. O agora comandante tenente Valdemar Paula de Lima dominou a situação e convenceu parte do grupo a voltar ao trem e seguir em frente. Valdemar Lima era pernambucano de Recife, fora sargento da marinha e era conhecido como “Tenente Limão”.

Uma das muitas fotos do cadáver do Tenente Cleto, publicada pelos jornais recifenses. Certamente com isso o governo federal desejava mostrar aos militares rebeldes que a mesma situação poderia ocorrer com os participantes de novas rebeliões militares tornassem a acontecer.

Três quilômetros depois de Gravatá, no quilometro 91, no lugar conhecido como “Curva da Caatinga Vermelha”, as margens do Rio Ipojuca, o militar revolucionário ordenou ao maquinista desligar a locomotiva da composição e deixasse a máquina seguir sozinha em direção a cidade de Bezerros. No povoado denominado Gonçalves Ferreira, as tropas do 20º Batalhão de Caçadores assistiram o descarrilamento desta maquina solitária.

Movimentação popular diante da Cadeia Pública de Gravatá, após os combates entre legalistas e a tropa rebelada de Cleto Campelo.

Valdemar de Lima, Comandante

Após deixar o trem, aproveitando a noite que surgia, outros rebeldes fugiram, ficando Valdemar com apenas 30 companheiros. Sem condições de seguir adiante, o grupo desistiu da intenção de chegar ao Rio São Francisco, eles se apossam de cavalos e fogem rumo norte, mata adentro, para o município de Vertentes, de onde pretendiam fugir para o vizinho Estado da Paraíba.

Valdemar sabia das dificuldades que enfrentava para sobreviver, pois estava cercado pela polícia com ordens para matar e na Paraíba pretendia dispensar a tropa.

Antiga estação ferroviária de Gravatá.

Segundo alguns historiadores, Valdemar tinha um contato junto ao fazendeiro Pessoa Monteiro, para onde seguiu em direção a fazenda deste. Lá chegando, ao amanhecer do dia 19 de fevereiro, o grupo teve abrigo e comida. Pessoa Monteiro ofereceu os serviços do seu morador, Manuel Botelho, para servir de guia até a Paraíba. Mais tranquilo Valdemar relaxou na segurança e colocou o grupo para descansar. Só seguiriam viagem na manhã do dia 22

O Combate Final

O fim definitivo do grupo revoltoso de Cleto Campelo, segundo uma teoria existente, teria ocorrido porque o morador Manoel Botelho teria informado ao coronel Francisco Heráclio do Rego, chefe político da cidade pernambucana de Limoeiro, da presença dos revoltosos. Para não seguir com o grupo, Botelho teria alegado um problema de saúde e colocando outro morador, o senhor Amaro Jerônimo, conhecido como “Pai-né”, como novo guia.

O chefe político avisa o sargento legalista José Joaquim, que acompanhado de um grupo de soldados, seguiu margeando o Rio Capibaribe, até o ponto de travessia da fazenda Pitombeira, bem perto do povoado de Topada, pertencente na época ao município de Vertentes e atualmente ao município de Frei Miguelinho. O sargento José Joaquim e seus comandados, estrategicamente montaram uma emboscada por trás de algumas pedras graníticas, ficando muito bem protegidos, com as armas à espera da tropa revoltosa.

Fim do grupo de Cleto Campelo, com a morte de Valdemar Lima – Fonte – Arquivo Público do Estado de Pernambuco.

Os revoltosos, durante o trajeto para a Paraíba, estavam tranquilos e aparentemente não tomaram as precauções devidas. Na hora em que iam atravessando o Rio Capibaribe, receberam muitos tiros vindos dos esconderijos dos policiais. O tenente Valdemar Lima, sem ver seus inimigos, foi o primeiro que caiu do cavalo, morrendo imediatamente. Dois soldados também caíram sem vida, um outro soldado recebeu ferimentos leves e o senhor Amaro Jerônimo foi atingido, ficando esses dois últimos sem condições de correr. O resto da tropa, sem comando, desertou, fugindo pelo mato adentro.

O soldado ferido foi fuzilado, já o senhor Amaro Jerônimo, depois de provada a sua inocência, foi levado para Vertentes e se recuperou. Os quatro cadáveres foram expostos como troféus na calçada da capela de Topada e em seguida levados com desprezo para serem sepultados no cemitério de Vertentes, sendo os três soldados numa cova só e o tenente em outro lugar, junto à parede do cemitério.

Cadeia Pública de Gravatá em 1917.

Problemas Entre os Legalistas

Após algumas horas da triste ocorrência, chegou a Topada o tenente da polícia pernambucana de nome Zumba, tendo sob seu comando quase 40 soldados e foram ao encontro do sargento José Joaquim e seus quase 20 subalternos. O tenente Zumba foi chegando e se arvorando de herói e o sargento José Joaquim não aceitou aquilo.

Mapa da região de Pernambuco onde se desenrolou o conflito.

A discussão aumentou ainda mais quando o tenente Zumba exigiu do subordinado uma bolsa que continha o dinheiro das coletorias e dos correios. Homem valente e obediente, o sargento José Joaquim entregou a referida bolsa com um montante avaliado em 32 contos de réis, uma fortuna para época. O tenente Zumba duvidou que o valor total estava no bisaco e por muito pouco o tempo não fechou entre os policiais. Para maior irritação do sargento José Joaquim, o tenente tomou o revólver de Valdemar Lima que o sargento desejava guardar como troféu. Na troca de ofensas o sargento acusou o tenente de covarde, comentando que o mesmo, comandando quase 40 soldados acampados em Vertentes e tendo conhecimento da aproximação dos revoltosos, permitiu que o sargento chegasse primeiro para evitar o confronto com os revolucionários. Com o fim da altercação, os militares foram embora e seriam recebidos como heróis em Recife e os mortos foram considerados traidores.

Consequências

Os companheiros sobreviventes do grupo de Valdemar, ajudados por fazendeiros amigos de Pessoa Monteiro, foram ajudados ou obrigaram moradores da região a lhe socorrerem às escondidas. Muitos trocaram as fardas, coturnos, armas e munição do exército por roupas de camponeses, alpercatas e caíram “no oco do mundo”.

Quanto ao pessoal da Coluna revoltosa, que entraria para a história como a ”Coluna Prestes”, ao receberem a notícia do fracasso dos companheiros do Recife, atravessaram o Rio São Francisco com destino ao Sul.

Jornal recifense de 1930, mostrando a mudança em relação a figura de Cleto Campelo, então um herói da Revolução de 1930.

Quatro anos depois, vitoriosa a Revolução de 1930, o Exército veio buscar os restos mortais de Valdemar Lima e dos três soldados no cemitério de Vertentes. Foram prestadas honras militares e foi mudando o nome do povoado de Topada para “Capitão Valdemar Lima”. Cleto Campelo e Valdemar Lima ainda seriam homenageados com seus nomes estampados em ruas e praças em Recife e outras cidades. Contudo, sua saga de idealismo e bravura, seria quase totalmente esquecida.

Este não foi o único combate histórico a ocorrer nas proximidades do antigo povoado de Topada. Ainda em 1914, na fazenda da Laje, próxima a povoação de Olho D’água da Onça, ocorreu o tiroteio entre a volante do então tenente Teófanes Ferraz e o bando de Antônio Silvino, em 27 de novembro de 1914, onde morreria neste combate o cangaceiro Joaquim Moura, conhecido como “Serra Branca” e o famoso chefe cangaceiro seria ferido e capturado, sendo libertado apenas em fevereiro de 1937.

Fontes bibliográfica;

– Aragão, José, in “História de Vitória de Santo Antão”, 2º Volume (1843 – 1982). Biblioteca Pernambucana de História Municipal – CEHM/FIDEM, Recife, 1982.

– Ferraz Filho, Geraldo de Sá Torres, in “Pernambuco no tempo do cangaço (Antônio Silvino – Sinhô Pereira – Virgulino Ferreira ”Lampião”) Theophones Ferraz de Barros, um bravo militar, 1926 – 1933”. 2º Volume , Coleção Tempo Municipal, número 22, Centro de Estudos de História Municipal – CEHM/FIDEM, Recife, 2003.

– Joffily, José, in “Revolta e Revolução – Cinqüenta anos depois”. Editora Paz e terra, Rio de Janeiro, 1979.

– Lins, Alberto Frederico, in “História de Gravatá”. INOJOSA. Recife, 1993.

– Jornal “Vida Rural”, novembro de 2000, autor Severino de Moura.

– Jornal “A Republica”, várias edições de fevereiro e março de 1926. Coleção do APE-RN / Arquivo Público do Rio Grande do Norte.

JÂNIO QUADROS NA PRESIDÊNCIA DO BRASIL – DA ESPERANÇA EM UM SALVADOR DA PÁTRIA, ATÉ A RENÚNCIA NO DIA DO SOLDADO

Jânio da Silva Quadros nasceu no dia 25 de janeiro de 1917, na cidade de Campo Grande, no então estado de Mato Grosso e atual capital do Mato Grosso do Sul. Era filho de Gabriel Quadros e de Leonor da Silva Quadros e foi criado em Curitiba, no Paraná, onde estudou em colégios estaduais. Tempos depois sua família mudou para São Paulo, onde Jânio estudou no Colégio Marista Arquidiocesano e em 1935 ingressou na prestigiada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ou Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma academia que formou nada menos que treze presidentes da república brasileira.

Após a formatura Jânio Quadros montou um pequeno escritório de advocacia no centro da capital em 1943 e depois começou a lecionar em dois colégios. Foi também professor de direito processual penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Jânio da Silva Quadros.

Político de Ascenção Meteórica

Em 7 de maio de 1947, por determinação geral do então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra, ocorreu a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Por isso muitas cadeiras na Câmara Municipal de São Paulo ficaram vagas. Jânio então teria sido um dos suplentes chamados a preencher esses lugares em 1948. Essa versão é contestada por alguns, que afirmam ter sido Jânio Quadros um dos três vereadores efetivamente eleitos pelo PDC.

Independente dessa questão, o certo foi que a ação de Jânio como vereador foi decisivo para projetá-lo na vida política paulista. Ele ficou conhecido como o vereador de todas as casas legislativas do país no período a apresentar a maior quantidade de proposições e projetos de lei, além de discursos. Jânio foi igualmente considerado o vereador que assinou a grande maioria das propostas e projetos considerados favoráveis à classe trabalhadora.

Quadro de votação na época da campanha de Jânio Quadros para preidente.

Com esse currículo logo foi consagrado como o deputado estadual mais votado em São Paulo, com mandato a ser exercido entre 1951 e 1953. Jânio percorreu todo o interior do estado de São Paulo, sempre insistindo na bandeira da moralização do serviço público e pedindo sugestões ao povo para resolver os problemas de cada região.

No início de 1953 a capital paulista assistiu à primeira campanha eleitoral para a prefeitura em 23 anos, desde a Revolução de 1930. Jânio foi lançado candidato do PDC em coligação com o Partido Socialista Brasileiro – PSB, vencendo por larga margem as principais máquinas partidárias locais. Essa vitória foi tida como uma grande façanha, pois Jânio enfrentou bloco formado por oito partidos políticos e um adversário, o professor Francisco Antônio Cardoso, que tinha uma campanha milionária, com uma enxurrada de material de propaganda e com apoio ostensivo das máquinas municipal e estadual. 

Assumiu a prefeitura de São Paulo aos 36 anos e um dos seus primeiros atos foi promover demissões em massa de funcionários, iniciando uma cruzada moralizadora que marcou sua gestão.

De Governador a “Salvador da Pátria”

Ademar de Barros, de chapéu.

Em 1954 Jânio Quadros desincompatibilizou-se do cargo de prefeito para candidatar-se a governador do estado de São Paulo e filiou-se ao Partido Trabalhista Nacional – PTN. Ganhou por uma pequena margem de votos, de cerca de 1%, do grande rival Ademar Pereira de Barros, um político popularmente conhecido pelo bordão “Rouba, mas faz”.

Jânio foi empossado governador em 31 de janeiro de 1955 e durante o seu mandato procurou executar ações que transmitisse uma imagem de moralização da administração pública e de combate à corrupção, aliadas a um empreendedorismo que buscava destaque e projeção.

Uma prática comum do governador Jânio era a das visitas surpresa às repartições públicas, a fim de verificar a qualidade dos serviços oferecidos à população. Outra foi a criação de novos serviços e órgãos estaduais, ou a construção de grandes obras.

Desde o início do seu governo Jânio procurou ampliar seu espaço político no nível nacional, estabelecendo positivos contatos com o potiguar João Café Filho, então Presidente da República. A aproximação entre ambos criou condições mais propícias para o governo paulista realizar um trabalho de recuperação financeira do estado. Tudo isso angariou grande popularidade e consagrou Jânio como um líder entre os paulistas.

Com a chegada do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK,  a Presidência da República, houve um foco muito intenso na criação de uma política desenvolvimentista, que foi realizada através da aplicação do chamado “Plano de Metas” e provocou um grande crescimento em diversas áreas e setores no país. São Paulo foi um dos estados mais beneficiados com a implantação de novas indústrias e a concentração de crédito e essa expansão econômica se refletiu no aumento da receita tributária do estado e na criação de condições favoráveis à diminuição do déficit financeiro herdado dos governos anteriores. Apesar de todas as vantagens que São Paulo usufruiu no governo JK, matreiramente Jânio permaneceu alinhado com a oposição em relação a importantes aspectos da política econômica vigente. E isso foi muito útil ao governador paulista, pois apesar do impulso desenvolvimentista, o governo JK gerou um panorama de forte inflação e crise econômica.

Diante do difícil quadro nacional, o nome de Jânio Quadros começou a surgir como alguém que poderia solucionar os problemas e colocar o Brasil em um bom rumo. Um novo “Salvador da Pátria”.

Jânio em campanha.

No dia 20 de abril de 1959, um grupo reuniu-se na Associação Brasileira de Imprensa – ABI no Rio de Janeiro e fundou o Movimento Popular Jânio Quadros – MPJQ, lançando nessa ocasião a candidatura do ex-governador de São Paulo à presidência da República.

Nove Meses de Campanha: A Vassoura Janista na Caça ao Voto.

O homem do “tostão contra o milhão” chegava ao topo da escalada que o conduziria ao Palácio da Alvorada.

Não que fosse um caminho fácil. O líder que granjeara sua popularidade junto às massas operárias de São Paulo, que quando prefeito da capital paulista chegou mesmo a apoiar a greve de 1953 e, como governador, não adotou atitudes repressivas contra os trabalhadores, via-se agora na contingência de conquistar a simpatia de todos os brasileiros — ricos, pobres, remediados, urbanos, rurais, ignorantes ou letrados.

As vassouras de Jânio em suas campanhas.

O povo delirou quando Jânio deixou bem claro a todos os partidos que o apoiavam a sua posição extremamente personalista e autoritária, alheia as agremiações partidárias, as quais ele ignorava até o desprezo. Conter a inflação e governar acima dos partidos era seu propósito. Sobretudo porque, percebendo a fragilidade das plataformas partidárias do momento, ele podia agir dessa maneira.

O “justiceiro” prometeu um governo de austeridade, onde aglutinou setores militares e da classe média (com promessas de “limpeza” na administração e estabilização da economia), das elites empresariais (com afirmação de fé na livre iniciativa) e dos trabalhadores (com promessas de uma ordem social mais justa). Descontentes com a carestia, a maioria dos brasileiros preferiu ir beber nas águas populistas de Jânio Quadros. 

Em 30 de setembro de 1960 era encerrada a tumultuada campanha eleitoral de Jânio Quadros à presidência da República. Em meio a cartazes, animação de bandas de música, fogos de artifício, papéis picados, vassouras, além da marchinha antológica que tinha esses versos – “Varre, varre, varre, varre, vassourinha./ Varre, varre a bandalheira./ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira./ Jânio Quadros é a esperança deste povo abandonado”.

Marechal Teixeira Lott, derrotado por Jânio Quadros.

Nas eleições de 3 de outubro de 1960 quase seis milhões de eleitores fazem Jânio o 22º Presidente do Brasil, sendo até então a maior votação da história no país. O marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, o segundo colocado, foi vencido de forma arrasadora com mais de dois milhões de votos de vantagem.

Mas nem tudo foi positivo para Jânio. Como naquela época votava-se separadamente para presidente e vice, apesar de todo prestígio Jânio não conseguiu eleger Milton Soares Campos, o candidato a vice-presidente de sua chapa. O escolhido foi o gaúcho João Belchior Marques Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB.

Governo de Altos e Baixos

Após a vitória sem precedentes, o presidente eleito partiu para Europa, em uma viagem de “concentração e retiro”. Somente três meses após as eleições, em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros e João Goulart foram empossados. Contrariando a expectativa geral, o discurso de posse do presidente foi discreto e gentil, chegando a tecer elogios ao governo anterior. Porém, na noite desse mesmo dia, Jânio atacou violentamente o governo Juscelino Kubitschek em cadeia nacional de rádio, atribuindo ao ex-presidente a prática de nepotismo, ineficiência administrativa, responsabilidade pelos altos índices de inflação e pela dívida externa de dois bilhões de dólares.

Não demorou e o novo presidente decepcionou pela primeira vez seus correligionários, ao desfazer a expectativa dos que previam que ele realizasse um governo de composição ou união nacional, ou que tentasse obter, através da nomeação ministerial, a maioria parlamentar de que não dispunha.

Jânio compôs seu Ministério contemplando uma mistura de elementos da União Democrática Nacional – UDN e representantes de partidos menos expressivos. Surpreendeu a todos ao nomear cinco ministros do Norte e Nordeste e disse que isso foi feito para honrar compromissos de sua campanha. O Ministério da Fazenda foi confiado a Clemente Mariani Bittencourt, líder da UDN baiana, que fora presidente do Banco do Brasil em 1954 e 55. Afonso Arinos de Melo Franco, da UDN mineira ficou com a pasta das Relações Exteriores. O Ministério era formado ainda por Clóvis Pestana, do Rio de Janeiro (Viação e Obras Públicas), Oscar Pedroso d’Horta, do Ceará (Justiça e Negócios Interiores); Romero Cabral da Costa, de Pernambuco (Agricultura); Brígido Fernandes Tinoco, do Rio de Janeiro (Educação e Cultura); Francisco Carlos de Castro Neves, de São Paulo (Trabalho); Edward Cattete Pinheiro, do Pará (Saúde); João Agripino Vasconcelos Maia Filho, da Paraíba (Minas e Energia) e Artur da Silva Bernardes Filho, de Minas Gerais (Indústria e Comércio). Já os ministérios militares foram preenchidos pelo marechal Odílio Denys (Ministério da Guerra, que teria sua denominação alterada durante o governo do general Costa e Silva  para Ministério do Exército), o brigadeiro Gabriel Grüm Moss (Aeronáutica) e o vice-almirante Sílvio de Azevedo Heck (Marinha), os três do Rio de Janeiro.

Reunião ministerial do governo Jânio Quadros.

No início do seu governo Jânio tomou uma série de pequenas medidas que ficaram famosas, destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e saneamento moral. Também investiu fortemente contra alguns direitos e regalias do funcionalismo público. Reduziu as vantagens até então asseguradas ao pessoal militar ou do Ministério da Fazenda em missão no exterior e extinguiu os cargos de adidos aeronáuticos junto às representações diplomáticas brasileiras.

Tal como aconteceu quando era governador paulista, Jânio Quadros pretendia prescindir da maioria parlamentar, mas duas reações foram imediatas: a dos que o acusavam de veleidades ditatoriais e desprezo pelo Poder Legislativo, e a dos setores nacionalistas, que viam na composição do novo governo uma prova de submissão ao FMI – Fundo Monetário Internacional, pela nomeação do banqueiro Clemente Mariani para o Ministério da Fazenda.

Seguindo um amplo programa anti-inflacionário, em 13 de março de 1961 o Presidente Jânio decretou uma reforma cambial, cuja consequência imediata foi a desvalorização do cruzeiro (a moeda brasileira da época) em 100% e o corte dos subsídios na importação de trigo e gasolina. Disso decorreu um galopante aumento do custo de vida, coincidindo com o congelamento dos salários e restrição ao crédito, o que gerou imediatos protestos sindicais.

Embora contasse com o apoio tácito do Congresso Nacional para sua política de austeridade, Jânio encontrou sérias resistências, mesmo entre seus correligionários, em relação a outros projetos em andamento, como o da reforma da lei antitruste, o da remessa de lucros, o do imposto de renda e o da reforma bancária.

Segundo o seu ministro das Minas e Energia, o paraibano João Agripino, “Jânio atraía contra seu governo todos os grupos econômicos deste país e ao mesmo tempo impunha aos humildes sacrifícios quase insuportáveis”.

Na tentativa de agradar o FMI pela austeridade, a classe média pela sindicância moralizadora dos escândalos financeiros e as camadas populares pelas reformas, Jânio conseguiu, em poucos meses, multiplicar as oposições.

Os Famosos “Bilhetinhos”

Jânio Quadros na capa da revista americana Times.

Alpargatas, blusões folgados, os famosos slacks com jaquetas tipo safari (também conhecidos como pijânios) — era a imagem tropical de um novo estilo de presidente.

Parte dessa performance foram os não menos famosos “bilhetinhos” que Jânio enviava diariamente a funcionários dos mais diversos escalões, como parte de sua estratégia moralizadora da administração pública.

Esperados muitas vezes com humor pela imprensa, esses pequenos recados causavam frequentemente irritação e até desespero nos que os recebiam. Prova é que, dos 1.534 bilhetes ditados durante a presidência, apenas onze foram de elogios ou homenagens.

O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, por exemplo, foi vítima de cerca de 600 deles, o que contribuiu sensivelmente para o desgaste de suas relações com o presidente. Certa feita, o Ministério da Agricultura foi contemplado com um bilhetinho que dizia literalmente: “O objetivo da próxima safra de amendoim deve ser o do atendimento do mercado interno, com largas sobras para exportação, dobrando-se, pelo menos, essa cultura em relação à safra de 1959/60”.

Jânio Quadros e Carlos Lacerda.

Na prática, essas pequenas notas funcionavam, sobretudo como decretos oficiosos, transformando em “lei” várias das pequenas decisões quase legendárias de Jânio.

O funcionalismo público foi o alvo predileto dos “bilhetinhos”: sindicâncias, horário de dois turnos com aumento da jornada de trabalho, cortes de gastos de representação e até ordem para à devolução de carros luxuosos. Muitas vezes justos, a maioria desses bilhetes tratava de assuntos que, sem dúvida, não competiam ao presidente da República.

Jânio também proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, acabou com as corridas de cavalo em dias úteis, com as rinhas de galo, com o lança-perfume em bailes de carnaval e regulamentou o jogo de carteado. Por mais hilárias que possam ter parecido essas medidas na ocasião, 60 anos depois todas essas leis editadas por Jânio ainda continuam em vigor.

Política Externa Radical

Enquanto aplicava uma política interna de austeridade, submissa às orientações do Fundo Monetário Internacional, Jânio Quadros radicalizava progressivamente na chamada Política Externa Independente – PEI.

Essa diretriz introduziu grandes mudanças na política internacional do Brasil, transformando as bases da sua ação diplomática e representou um ponto de inflexão na história contemporânea da política internacional brasileira, que passou a procurar estabelecer relações comerciais e diplomáticas com todas as nações do mundo que manifestassem interesse num intercâmbio pacífico. Essa modalidade de fazer política externa foi firmemente conduzida pelo chanceler Afonso Arinos de Melo Franco.

Jânio levou adiante seu projeto de estabelecer relações com as recém-independentes nações africanas e do bloco socialista. Nomeou Raimundo Sousa Dantas embaixador do Brasil em Gana, sendo este o primeiro embaixador negro brasileiro. Por meio de um sem-número de bilhetes recomendava o reatamento diplomático com os países do Leste, alegando objetivos econômicos. Pronunciou-se contrário à tradição brasileira de apoio às potências colonialistas, sobretudo na África portuguesa, e favorável à admissão da China nas Nações Unidas. Em maio de 1961 recebeu no palácio do Planalto a primeira missão comercial da República Popular da China enviada ao Brasil.

O cosmonauta soviético Yuri Gagarin (a direita), o primeiro homem a ir ao espaço, recebe a Ordem do Mérito Aeronáutico de Jânio Quadros e do brigadeiro Gabriel Grüm Moss, Ministro da Aeronáutica. 

O mesmo fato se repetiu em julho com a missão soviética de boa vontade, que pretendia incrementar o intercâmbio comercial e cultural entre o Brasil e a União Soviética. As primeiras providências para o reatamento diplomático entre os dois países começaram a ser tomadas em 25 de julho, mas o processo só seria concluído durante o governo Goulart. Antes disso, em julho de 1961, Jânio Quadros condecorou com a Ordem do Mérito Aeronáutico o cosmonauta soviético Yuri Alexeievitch Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço e que visitava o Brasil. 

Essa radical mudança na política exterior do Brasil não foi bem vista pelos Estados Unidos, nem por vários grupos econômicos que se beneficiavam da política anterior e nem pela direita nacional, em especial por alguns políticos da UDN, que apoiaram Jânio Quadros na eleição.

Uma Medalha para o Che

Entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961 ocorreu em Punta del Este, Uruguai, a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social da Organização dos Estados Americanos – OEA. Nela estiveram reunidos ministros e dirigentes das economias dos países latino-americanos, incluindo Ernesto Rafael Guevara de la Serna, mais conhecido como Che Guevara, revolucionário marxista e então ministro da Economia de Cuba. A finalidade desta reunião foi discutir o então novo programa da política externa dos Estados Unidos para a América Latina, a Aliança para o Progresso, cujo intuito era desenvolver economicamente e socialmente os países latino-americanos.

Ernesto Che Guevara sendo condecorado por Jânio Quadros.

Ao fim da reunião Che Guevara viajou para a Argentina e na sequência para o Brasil. Jânio aproveitou a passagem de Guevara para pedir, com êxito, a libertação de 20 padres espanhóis presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Aproveitaram e discutiram as possibilidades de intercâmbio comercial por meio dos países do Leste europeu. Finalmente, em 18 de agosto o presidente condecorou o ministro cubano com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, o que provocou a indignação dos setores civis e militares mais conservadores.

As possíveis consequências desse ato foram mal calculadas por Jânio. Sua repercussão foi a pior possível e os problemas já começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda que, amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países e a revista dos militares. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrarem e participarem da cerimônia.

O Fim no Dia do Soldado

Uma verdadeira cruzada passou a ser desencadeada contra a Política Externa Independente de Jânio. Para seus críticos essa política nada mais era do que declarações e ações com fins publicitários e vista por muitos como uma tentativa de atenuar a tensão provocada pelas decepções com sua política interna. O certo é que a condecoração de Che Guevara foi o bastante para o jornalista Carlos Lacerda, então governador do Rio de Janeiro, da UDN, romper publicamente com Jânio Quadros. O presidente perdia assim a sua frágil base parlamentar no Congresso.

Em várias oportunidades, o ministro da Guerra, Odílio Denys, também chegou a adverti-lo sobre a insatisfação da alta hierarquia militar. No plano internacional, a situação não melhorou para o governo.

Jânio parecia ter conseguido com suas ações desagradar a gregos e troianos.

Fotograma da película que mostra a cerimônia do Dia do Soldado em 25 de agosto de 1961, o último ato que Jânio Quadros participou como presidente do Brasil.

Em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, o presidente Jânio Quadros apresentou à nação sua carta de renúncia. O seu último ato presidencial foi um terrível equívoco, uma tentativa de golpe mal arquitetada. O objetivo de Jânio Quadros era criar um clima de comoção nacional de tal modo que os ministros militares, o Congresso e a população pedissem para que ele ficasse. Seu objetivo era negociar sua permanência na presidência da República com poderes excepcionais.

O Congresso, segundo a Constituição, não tinha poderes para negociar uma renúncia, que era um ato unilateral do presidente. A única obrigação do Congresso era investir os poderes ao vice.

Jânio Quadros, ao receber a notícia de que sua renúncia foi acolhida, chorou copiosamente. Seu mandato presidencial de 206 dias (quase sete meses) foi um dos mais breves na história da presidência do país.

A população, frustrada com as medidas econômicas rígidas e com os decretos moralistas, não reagiu como o Presidente esperava. Os ministros militares se limitaram a publicar um manifesto atestando que o vice-presidente, João Goulart, que se encontrava em visita oficial à China comunista, não deveria assumir a Presidência da República por representar um perigo aos quadros democráticos e constitucionais, pois Jango seria apoiado por elementos do clandestino Partido Comunista.

O país estava à beira de uma grave crise por conta da obsessão anticomunista de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. O conflito, entretanto, foi evitado graças a uma solução política negociada: a criação da Emenda Parlamentarista.

O sistema parlamentarista era um paliativo, pois garantia a posse de Goulart, ao mesmo tempo em que retirava os poderes políticos do Executivo federal e o transmitia para o Congresso Nacional, que indicaria um Primeiro-Ministro. Desta forma, Goulart poderia voltar ao Brasil e tomar posse. Foi escolhido como Primeiro-Ministro o político mineiro Tancredo de Almeida Neves. Para Juscelino Kubitschek, que na época era senador, declarou que “a Emenda Parlamentarista foi aprovada por pressão militar”.

O sistema parlamentar, entretanto, teve vida curta. Em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito aprovou o retorno ao regime presidencial e, segundo os próprios militares, aquilo foi o início da contagem regressiva para o golpe contra Jango.

O resultado está estampado na manchete abaixo…

1943 – O CAMINHO DO PRESIDENTE FRANKLIN ROOSEVELT PARA A CONFERÊNCIA DO POTENGI EM NATAL

Rostand Medeiros – IHGRN

Nas primeiras horas de uma manhã de quinta-feira, dia 28 de janeiro de 1943, o tempo na pequena e bucólica capital potiguar estava frio e nublado. Já fazia alguns dias que a chuva caia com certa frequência em todo o Rio Grande do Norte. Uma situação que animava a todos os potiguares depois de uma seca terrível.

Em meio ao tempo frio, a cidade ia acordando tranquila. Se havia alguma movimentação eram daqueles que iam até as padarias comprar pão novo e quentinho, ou seguiam até no Mercado Público da Avenida Rio Branco, ou pegavam os bondes pintados de amarelo que circulavam por uma cidade com poucos automóveis, ou ainda a movimentação dos ônibus que partindo do bairro da Ribeira para o interior.

Quadro assinado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt e entregue a tripulação do cruzador USS Omaha, que participou ativamente no apoio ao presidente na Gâmbia, quando da sua passagem para a Conferência de Casablanca.

Nessa quinta-feira, nas margens do rio Potengi, mais precisamente na área da praia da Limpa, começou uma movimentação. Vários militares americanos isolavam a região e mantinha uma vigilância mais intensa na área da base de hidroaviões da empresa aérea Pan American Airways e da nova base da marinha americana, ainda em construção, onde até recentemente havia funcionado uma base de hidroaviões da empresa alemã Deutsche Lufthansa.

Apesar da movimentação, creio que isso foi percebido sem maiores anormalidades para a população que morava nas poucas casas que havia nas proximidades, pois forças militares dos Estados Unidos utilizavam o território potiguar como parte do esforço de guerra Aliado desde dezembro de 1941, através de acordos com o governo brasileiro. Esses militares aproveitavam o privilegiado ponto estratégico do Rio Grande do Norte para facilitar o transporte aéreo e a caça e destruição de submarinos nazifascistas no Atlântico Sul.

Boeing 314 Clipper, tendo a bordo o presidente Franklin Roosevelt toca o rio Potengi as 07:50 de 28 de janeiro de 1943 – Fonte – NARA.

E porque naquela manhã de 28 de janeiro de 1943 houve essa movimentação dos militares estrangeiros nessa região de Natal?

As 07:50, vindo do Atlântico, um grande hidroavião Boeing B-314, conhecido como Clipper, tranquilamente amerissou no calmo rio Potengi. Na sequência aquela máquina prateada movimentou-se com seus quatro motores até depois da área conhecida como Passo da Pátria. Talvez nesse momento, devido a sua elevada localização em relação à beira do rio, esse hidroavião pode ter chamado a atenção de alguns moradores da Rua da Misericórdia e da região da Praça João Tibúrcio, onde se localiza a colonial igreja de Nossa Senhora do Rosário e seu antigo cruzeiro.

Natal recebia esse modelo de hidroavião na base da Pan American desde os primeiros anos da década de 1940 e a visão daquele tipo de aeronave no rio Potengi nada tinha de inédito. Mas não tão cedo da manhã!

Na sequência o hidroavião deslocou-se pelo rio até a estação da Pan American e foi amarrado no flutuante que servia de atracadouro. Nesse momento, se houvesse algum natalense nas proximidades, provavelmente veria sair daquela máquina vários civis e militares que tratavam com muita deferência um dos passageiros, que claramente possuía deficiências de locomoção. Ali estava Franklin Delano Roosevelt, o presidente dos Estados Unidos, que desembarcava em Natal para um encontro histórico com o presidente brasileiro Getúlio Dorneles Vargas.   

E qual foi o caminho de Roosevelt até Natal? Onde ele esteve e o que ele fez antes de chegar à capital potiguar?

A Viagem Secreta

Roosevelt não foi o primeiro presidente dos Estados Unidos a voar em uma aeronave, honraria que coube ao seu primo Theodore, ainda em 1910. Mas o voo de 1943 foi o primeiro trajeto internacional realizado por um presidente daquele país no exercício do cargo e desde a gestão de Abraham Lincoln que um presidente dos Estados Unidos não seguia ao encontro de suas tropas em uma área tão próximo de um front de guerra.

O staff da Casa Branca organizou secretamente a viagem do presidente Roosevelt e planos para o transporte por via terrestre e aérea foram traçados. Naquele voo, além da questão ligada a limitada mobilidade do presidente Roosevelt devido as consequências da poliomielite que ele contraiu em 1921, havia a tônica em relação foi a segurança. Grupos compostos por agentes do serviço secreto, bem como assessores militares, partiram no final de 1942 para reconhecer o caminho e garantir sua segurança. Dessa maneira, os arranjos foram aperfeiçoados ao longo da rota que o presidente seguiria pela América do Norte, Caribe, América do Sul, até o continente africano.

Base de Parnamirim Field, em Natal, Rio Grande do Norte, no ano de 1943. Foi uma das maiores e mais importantes bases aéreas do esforço estratégico aliado para derrotar as forças do Eixo – Foto – Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images.

Certamente esse pessoal esteve em Natal, mas passaram totalmente despercebidos. Além da secretíssima natureza da sua missão, em janeiro de 1943 a cidade de Natal abrigava muitos homens de várias unidades militares norte americanas. Para que o leitor tenha uma ideia do volume desse pessoal na capital potiguar, estavam na cidade três esquadrões de busca e destruição de submarinos, com mais de 30 aeronaves e centenas de homens (eram o VP-83, VP-74 e o recém-chegado VP-94), além de todo um aparato de apoio ao transporte aéreo. Havia também muitas unidades de apoio e sempre dois ou três navios americanos estavam ancorados no rio Potengi.

Em 9 de janeiro, perto das 22h, o presidente e sua comitiva deixaram a Casa Branca de forma discreta e seguiram de carro por três quilômetros até a Union Station, a principal estação ferroviária de Washington. A composição era composta por um luxuoso vagão dormitório modelo Pullman, denominado “Ferdinand Magellan”, além de um vagão de bagagem e um vagão especial para o pessoal do Exército.

O vagão presidencial “Ferdinand Magellan”, preservado no Gold Coast Railroad Museum, em Miami, Flórida.

A tripulação do trem foi especialmente selecionada, onde incluíram cinco mensageiros do USS Potomac para ajudar no que fosse necessário. Como forma de distrair algum improvável espião, o trem partiu em direção norte, como se estivesse indo para Hyde Park, mas parou em um desvio ao sul de Fort Meade, no estado de Maryland. Ali ficou aguardando por uma hora enquanto os oficiais da Linha da Costa Atlântica liberavam os trilhos para o sul e então o trem seguiu para Miami.

A composição chegou à capital da Flórida cerca de uma e meia da manhã do dia 11 de janeiro, na área da Military Junction, um antigo depósito ferroviário que serviu como estação exclusiva para militares durante a Segunda Guerra Mundial. Desse lugar o grupo seguiu discretamente para a base da Pan American Airways em Dinner Key, na região de Coconut Grove, sudeste de Miami, um local mundialmente famoso na época por ser a principal base de hidroaviões civis dos Estados Unidos. Com o declínio do uso desse tipo de aeronaves na aviação comercial, a base de Dinner Key foi desativada, mas ainda é possível ver o terminal que recebia os hidroaviões, além da área ser um local muito bonito.

Antes do amanhecer John C. Leslie, gerente de operações da Pan American nas áreas do Atlântico e Pacífico, estava com tudo pronto para receber o grupo de Washington.

O Dixie Clipper (NC 18605) que transporto o presidente Roosevelt e assessores próximos.

Foram utilizados nessa missão dois hidroaviões Boeing 314 Clipper, sendo o Atlantic Clipper (NC 18604) destinado ao pessoal de apoio e o Dixie Clipper (NC 18605) pelo presidente Roosevelt e assessores próximos. Os pilotos foram Howard M. Cone Jr. (Dixie Clipper) e Richard W. Vinal (Atlantic Clipper), ambos do quadro de oficiais da reserva da Marinha, experientes pilotos com títulos de Masters of Ocean Flying (maior classificação de piloto comercial do mundo na época) e engenheiros aeronáuticos formados na Universidade de Seattle. Os dois pilotos e suas tripulações receberam o presidente e sua equipe e logo todos embarcaram.

O jornalista Tony Reichhardt, da revista Air & Space (edição de 18 de janeiro de  2013), comentou que em uma ocasião o piloto Howard Cone, falecido em 1969,  relembrou que a tripulação do Clipper ficou “muito surpresa ao saber a identidade do nosso convidado”, e que o presidente foi um “excelente passageiro”. Na aeronave que voou o presidente só houve um pedido especial – que uma das camas fosse equipada com um colchão de casal.

Os pilotos dos hidroaviões foram Howard M. Cone Jr. (Da esquerda e pilotou o Dixie Clipper) e Richard W. Vinal (a direita e pilotou o Atlantic Clipper).

Em suas memórias John C. Leslie lembrou que até esse dia ele não tinha ideia do quanto Franklin Roosevelt era severamente deficiente devido à poliomielite. Foi necessária a colocação de uma rampa especial da doca para a aeronave e o presidente teve de ser carregado para a cabine de passageiros. Às seis da manhã, o Dixie Clipper taxiou nas águas calmas da Flórida e decolou e meia hora depois foi à vez do Atlantic Clipper. Vale ressaltar que o Atlantic Clipper foi utilizado como centro de comunicações, com equipamentos e pessoal capacitados para manter o presidente em contato constante com Washington e as estações de guerra no exterior.

Roosevelt iniciou então sua longa viagem com destino à cidade de Casablanca, no Marrocos, acompanhado por Harry Lloyd Hopkins, conselheiro de política externa e diplomata, de William Daniel Leahy, almirante e chefe de gabinete pessoal do presidente, Ross T. McIntire, contra almirante e atuando como médico, John McCrea, capitão e assessor naval e Arthur Shelton Prettyman, o ajudante afrodescendente do presidente, além de agentes do Serviço Secreto. 

Roosevelt em Belém do Pará

Sobre a montanha Bonnet à l’Evêque, a Citadelle Laferrière, ou Citadelle Christophe, sobrevoada pelo hidroavião que levava o presidente Roosevelt em janeiro de 1943.

Segundo informa a própria Casa Branca, a pedido de Roosevelt o Clipper sobrevoou o Haiti e nessa passagem circularam sobre a montanha Bonnet à l’Evêque, onde no topo foi possível visualizar a bela Citadelle Laferrière, ou Citadelle Christophe, uma grande fortaleza construída por Henri Christophe, o líder negro da independência da antiga colônia francesa do Haiti no início do século XIX. Roosevelt havia visitado o local em 1917, quando ainda era secretário adjunto da Marinha.

As quatro da tarde o Clipper presidencial chegou à antiga colônia inglesa da ilha de Trinidad, atual Trinidad e Tobago. O grupo desembarcou na Base Operacional Naval, onde seguiram por 15 minutos até um isolado hotel operado pela Marinha. Era o Macgueripe Beach Hotel, localizado na pequena baía Macqueripe, a noroeste da ilha de Trinidad e até hoje um lugar preservado e deslumbrante.

Baía Macqueripe, a noroeste da ilha de Trinidad.

No outro dia, terça-feira 12 de janeiro de 1943, os hidroaviões decolaram com destino a Belém, capital do Pará, único ponto no Brasil onde Roosevelt esteve em sua ida a Casablanca.

No caminho o presidente leu, almoçou, cochilou, jogou paciência e olhou para as grandes florestas do Brasil, 2.700 metros abaixo. Quando eram quase duas e meia da tarde a aeronave cruzou a linha do Equador, provavelmente sobre o Amapá ou sobre a ilha do Marajó. Como a bordo se encontravam oficiais navais com larga experiência no mar, Roosevelt havia sido Secretário da Marinha e aquele hidroavião quando amerissava na água se deslocava tal como um barco, foi organizada uma festa que seguiu as mais antigas tradições marítimas e era conhecida como “Festa de Netuno”, ou “Cerimônia de Travessia de Linha”, ou ainda “Festa do Equador”. Alguém se fantasiou de Netuno, o deus dos mares, para dar “permissão para cruzar” a linha equatorial. Outra pessoa enfrentou um interrogatório de Netuno para obter sua bênção e até foi lavrado um documento em nome da “Antiga Ordem das Profundezas”. Hoje em dia, em um tempo onde muitas tradições se perdem rapidamente, não sei se esse tipo de comemoração ainda acontece nos navios pelo mundo afora, mas durante a Segunda Guerra era ainda bem popular. Existem até fotos de tripulações de submarinos alemães realizando esse tipo de evento em plena luz do dia e com muita gente fantasiada.

As 15:30 o Boeing 314 com Roosevelt e seu grupo amerissou na baía do Guajará, após terem voado quase 2.000 quilômetros. O presidente desembarcou e foi recebido pelo vice-almirante Jonas Howard Ingram, Comandante da Força Naval do Atlântico Sul, cuja base ficava em Recife. Junto a ele estava o brigadeiro general Robert LeGrow Walsh, Comandante Geral das Forças Armadas dos Estados Unidos na área do Atlântico Sul. A base do general Walsh era em Natal e sua casa de repouso ficava na Avenida Getúlio Vargas, próximo a conhecida Ladeira do Sol, onde hoje se situa o prédio do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte.

Roosevelt não circulou por Belém, provavelmente nem foi visto por alguém da cidade, pois ficou fortemente protegido por militares na área de Val-de-Cans, palestrando com seus oficiais. Talvez preparando o seu encontro com Getúlio Vargas em Natal, após o retorno do Norte da África. Enquanto isso os Clippers recebiam carga máxima de gasolina para o voo transatlântico.

Pouco antes das sete horas da noite os hidroaviões decolaram para a cidade de Bathurst (atual Banjul), capital da Gâmbia, em um percurso sem escalas de quase 3.900 quilômetros e completados em 19 horas.

Testemunhando a Miséria Provocada Pelo Colonialismo Britânico

Naquele dia 13 de janeiro, por volta das quatro e meia da tarde, as aeronaves sobrevoaram a foz do rio Gâmbia. O segredo deles foi guardado com tanta perfeição que a chegada foi aceita como um voo de rotina. Quando o presidente desembarcou, ele cumprimentou o capitão Cone e sua tripulação pela excelente viagem. Essa foi a última vez que os tripulantes viram ou ouviram falar do presidente e do seu grupo por duas semanas. Mas as ordens dos aviadores da Pan American eram para esperar e os dois Clippers ficaram em Bathurst.

O cruzador de escolta USS Memphis (CL-4).

No rio cercado de manguezais havia dois navios de guerra. Um maior, com quatro chaminés e aspecto meio antiquado, e um menor, com uma chaminé e com jeito de ser uma construção mais recente. Ali estavam respectivamente o cruzador de escolta USS Memphis (CL-4), lançado ao mar em 1920, e o destroier USS Somers (DD-381), com apenas seis anos no mar.

O destroier USS Somers (DD-381).

Oito dias antes em Recife, Pernambuco, através da ordem número 041643, emitida pelo almirante O. M. Read, Comandante da 2ª Divisão de Cruzadores (Commander Cruiser Division Two – ComCruDiv 2) da marinha americana, os dois navios partiram para a Gâmbia. Foi o prático Nelson Campos que com calma e tranquilidade tirou o Memphis do porto. A frente dessa nave o ágil USS Somers seguia abrindo caminho e caçando submarinos inimigos.

Esses navios chegaram à foz do rio Gâmbia em 10 de janeiro, mas a travessia Atlântica não ocorreu sem incidentes. O USS Omaha levava hidroaviões Vought OS2N-1 Kingfisher e no dia 8, no meio do caminho, os oficiais decidiram catapultá-lo para realizar uma patrulha em busca de submarinos inimigos. A patrulha não deu em nada, mas ao amerissar houve um problema e o hidroavião foi considerado perdido. Os aviadores Thomas A. Wood e M. Loeffler foram salvos e na sequência o USS Somers abriu fogo com um dos seus canhões e afundou o que restava do Kingfisher.

Hidroavião Vought OS2N-1 Kingfisher.

Ainda havia claridade quando Roosevelt desembarcou do Clipper na Gâmbia, onde a Grã-Bretanha mantinha uma de suas mais antigas colônias africanas. Ele foi então recebido pelo capitão H. Y. McCown comandante do cruzador Memphis e sugeriu que se o presidente desejasse conhecer um pouco a região havia automóveis e barco para fazer um passeio pelo rio, onde o oficial da marinha britânica E. F. Lawder poderia mostrar o que havia. Roosevelt determinou o passeio de barco.

O diário oficial de sua viagem na época e recentemente publicado na Internet pela Casa Branca (o link está no final do texto) aponta que o passeio demorou meia hora e que “muitos pontos de interesse foram observados ao longo da orla. Várias embarcações, incluindo um tender, petroleiros e barcaças” e que a população local “prestavam pouca ou nenhuma atenção às baleeiras que passavam”. Em outubro de 1995, o historiador americano Donald Wright, professor de história na State University of New York, escreveu na revista American Heritage (Volume 46) que para o capitão George E. Durno, cronista oficial da viagem, o passeio de baleeira pelo porto deu ao presidente “sua primeira boa olhada na cidade incrivelmente sórdida e infestada de doenças”. George Durno continuou: “Entre as docas encardidas havia inúmeras barcaças e barcos abandonados e enferrujados, literalmente repletos de crianças negras e seus pais – os barcos encalhados e ancorados aparentemente servindo de lar para uma parte da população da orla. Na brisa fresca da noite, o rio ao longo do centro de Bathurst cheirava a peixe podre e esgoto”.

Britânicos agindo como britânicos na África no século XIX – Fonte – https://medium.com/sunnya97/british-colonialism-and-social-change-in-the-metropole-4bd87996aeec

E no outro dia a coisa foi ainda pior!

Após uma noite tranquila no cruzador Memphis, o presidente americano e seus conselheiros acordaram antes do amanhecer, pegaram a baleeira até Bathurst e seguiram pela cidade por quinze quilômetros em direção a base aérea de Yundum, pertencente à RAF (Royal Air Force – Real Força Aérea). Informes apontam que enquanto ele passava de barco pelo rio e depois foi conduzido pelas ruas de Bathurst, o presidente Roosevelt – o líder que se preocupou em libertar sua gente da miséria provocada pela “Grande Depressão” de 1929, ajudando a prover seu bem-estar básico através do plano conhecido como “New Deal” – ao lançar seus olhos sobre a pior situação que o colonialismo britânico poderia apresentar, ficou extremamente consternado.

Donald Wright aponta em seu artigo que em 1943 Bathurst era uma das cidades mais insalubres e miseráveis do planeta. A maioria dos gambianos tinha malária, mas, de acordo com relatórios médicos britânicos, as doenças respiratórias foram “as que mais causaram danos”. A bouba era “moderadamente abundante”. Um em cada quatro residentes da maioria das aldeias mostrando “indicações óbvias (feridas abertas) de bouba tardia”. Vermes e infecções intestinais eram “quase universais”; vinte por cento dos gambianos tinham tracoma; a cegueira era “comum”. E havia mais: cada aldeia de qualquer tamanho tinha dois ou três leprosos, e a sífilis e a gonorreia eram quase epidêmicas em partes de Bathurst. As crianças pequenas enfrentavam o pior. Muitas tinham baços aumentados, a conjuntivite era crônica, doenças de pele parasitárias eram comuns, assim como as secreções nasais e a esquistossomose. Devido à prevalência de doenças e às condições higiênicas em geral, a taxa de mortalidade era muito alta e a expectativa de vida era de apenas 26 anos.

Roosevelt ficou horrorizado com a miséria que viu e essa experiência contribuiu para aumentar a crescente antipatia que o presidente dos Estados Unidos tinha pelo colonialismo praticado pelo Império Britânico e pela República da França. 

Douglas C-54 Skymaster

Por recomendação do subcomandante do Comando de Transporte Aéreo, brigadeiro general Cyrus R. Smith, o presidente Roosevelt e sua equipe embarcaram em dois aviões de transporte Douglas C-54 do Exército, movidos cada um por quatro motores Wright de 1.200 cavalos de potência e transportando até 26 passageiros. O avião presidencial foi pilotado por capitão Otis F. Bryan, de 35 anos.

Aqueles aviões voariam pelos mais de três mil quilômetros finais até Casablanca, sobre uma área do mundo onde ainda havia zonas de guerra ativa. Chegaram ao aeroporto Medouina às seis e vinte da noite de 14 de janeiro. No total, para participar da reunião, a viagem exigiu quarenta e seis horas entre três continentes e um oceano, além de vinte e seis horas de trem nos Estados Unidos.

A Conferência de Casablanca

O presidente Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill em Casablanca. Uma situação interessante em relação a maneira como a imprensa fotografava Roosevelt, era a de sempre evitar uma exposição visual do seu problema de locomoção. Segundo o amigo José Henrique de Almeida Braga, pesquisador dos bons sobre o tema da Segunda Guerra e autor do ótimo livro “Salto sobre o lago – e a guerra chegou ao Ceará” (https://tokdehistoria.com.br/2017/09/26/uma-otima-noticia-foi-lancado-um-livro-sobre-a-historia-da-segunda-guerra-mundial-em-fortaleza/), havia uma espécie de acordo para evitar esse tipo de exposição.

Nos dias atuais, segundo a versão divulgada pelo Governo dos Estados Unidos, a conhecida Conferência de Casablanca foi uma reunião ocorrida em janeiro de 1943, cujos atores principais foram o presidente Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e nessa ocasião tomaram importantes decisões que atingiram todo o mundo. E a escolha da mítica cidade marroquina de Casablanca não foi à toa, pois a conferência ocorreu dois meses após os desembarques anglo-americanos no norte da África francesa.

Os debates se concentraram na coordenação da estratégia militar aliada contra as potências do Eixo ao longo do ano seguinte. Resolveram concentrar seus esforços contra a Alemanha na esperança de retirar suas forças da Frente Oriental e aumentar as remessas de suprimentos para a União Soviética. Inclusive o primeiro-ministro soviético Joseph Stalin havia recebido um convite, mas ele não conseguiu comparecer porque na época o Exército Vermelho estava engajado em uma grande ofensiva contra o Exército Alemão.

Embora as forças anglo-americanas começassem a concentrar pessoal e material na Inglaterra em preparação para um eventual desembarque no norte da França, ficou decidido que primeiro aconteceriam combates na área do Mediterrâneo. Seriam realizados desembarques na Sicília e depois na Itália continental, com o objetivo de tirar esse país da guerra. Os líderes também concordaram em fortalecer a campanha de bombardeio estratégico contra a Alemanha, entre outras decisões. 

Em meio à finalização dos planos estratégicos dos Aliados contra as potências do Eixo em 1943, um dos resultados mais notáveis ​​na Conferência de Casablanca foi a promulgação da política de “rendição incondicional”.

No último dia da Conferência, o presidente Roosevelt anunciou que ele e Churchill tinham decidido que a única maneira de garantir a paz no pós-guerra era adotar uma política de rendição incondicional. Roosevelt afirmou claramente que a política de rendição incondicional não implicava na destruição das populações das potências do Eixo, mas sim “a destruição nesses países das filosofias que se baseavam na conquista e na subjugação de outros povos”. Roosevelt queria evitar a situação que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, quando grandes segmentos da sociedade alemã apoiaram a posição, tão habilmente explorada pelo partido nazista, de que a Alemanha não havia sido derrotada militarmente, mas sim “apunhalada pelas costas por liberais, pacifistas, socialistas, comunistas e judeus”.

Texto escrito pelo piloto Richard W. Vinal e o 1º engenheiro Fowler sobre a viagem dos Clippers com o presidente Roosevelt.

Segundo Donald Wright, em meio às reuniões, sobrou críticas de Roosevelt para o Colonialismo. Em um jantar em 22 de janeiro, em homenagem ao sultão do Marrocos Muḥammad ibn Yūsuf, futuro monarca Muhammad V, o presidente americano falou ousadamente sobre as esperanças de independência das possessões britânicas e francesas, encorajou o sultão a declarar a independência marroquina da França e que desejava um esforço internacional no pós-guerra para acabar com o Imperialismo. Winston Churchill e Auguste Noguès, o general francês que tutelava o Marrocos, não puderam deixar de ouvir. O político inglês Harold Macmillan considerou a conversa “igualmente embaraçosa para os britânicos e franceses”, enquanto o diplomata americano Robert Murphy achou o desempenho de Roosevelt “deliberadamente provocativo”. Em seu texto Donald Wright aponta que alguns presentes se perguntaram se o mau humor de Churchill naquela noite se devia mais à conversa do presidente com o sultão, ou a ausência de álcool no jantar em razão das leis da religião muçulmana.

Na Libéria

Na segunda-feira, dia 25 de janeiro, depois de onze dias no Marrocos, os aviões C-54 decolaram em direção a Bathurst às oito horas da manhã, cruzando a cadeia de montanhas Atlas durante o voo. Chegaram à capital da Gâmbia as 15:30 e Roosevelt seguiu para o USS Memphis.

No outro dia, para o viajante VIP só houve movimentação à tarde, quando o Ministro Residente da África Ocidental Britânica, Lord Swinton, subiu a bordo às 16h00 e conversou com o presidente. Em seguida, o presidente o convidou a acompanhá-lo para uma curta viagem pelo rio Gâmbia no rebocador de alto mar HMS Aimwell, de 560 toneladas, aguardando para receber o presidente.

Depois de uma noite tranquila, às seis horas da manhã de 27 de janeiro anunciaram a decolagem dos dois C-54 em Yundum Field, para uma viagem de inspeção até a Libéria, quase 1.300 quilômetros a sudeste de Bathurst.

A Libéria, uma república colonizada por escravos libertos dos Estados Unidos antes da Guerra Civil, foi importante para o esforço de guerra Aliado. Ao chegar no começo da tarde, Roosevelt foi saudado pelo presidente Edwin Barclay e uma excelente banda do Exército dos Estados Unidos tocou os hinos nacionais. A qualidade desses músicos militares se devia ao fato de muitos deles terem tocado na orquestra do cantor de jazz Cab Calloway. 

Depois os presidentes passaram em revista um destacamento do Exército dos Estados Unidos formado por quinhentos soldados afrodescendentes que protegiam o porto de Monróvia, capital do país, e por onde passavam milhões de libras de látex bruto. Roosevelt também visitou na Libéria uma grande plantação de borracha da empresa Firestone, que tinha cerca de vinte mil trabalhadores liberianos. Por volta das três e meia da tarde o grupo embarcou nos C-54 e retornaram a Bathurst.

Roosevelt ocupou seu assento no Dixie Clipper por volta das dez e meia daquela noite, para um longo voo através do Atlântico em direção ao Brasil. Minutos depois o Atlantic Clipper fazia o mesmo trajeto.

Em Natal e o Retorno Para os Estados Unidos

Durante a maior parte do voo sob o Atlântico Sul, o Clipper presidencial voou alto, em meio a muitas nuvens, que tornou a viagem um tanto desconfortável. Para reverter o problema os pilotos Howard M. Cone Jr. e Richard W. Vinal desceram seus hidroaviões para uma altitude de apenas 300 metros, o que tornou o trajeto mais confortável para o restante da rota, que atingiu quase 3.000 quilômetros entre a capital da Gâmbia e a capital potiguar.

Pouco antes de amerissarem no rio Potengi, alguém a bordo do Atlantic Clipper descobriu com entusiasmo que uma hélice estava parada. Ela havia sido interrompida por recomendação do engenheiro de voo ao capitão Vinal e que os reparos poderiam esperar até que pousassem. Quando já estavam em Natal, para evitar atrasos, o Atlantic Clipper foi substituído por outro hidroavião do mesmo modelo, batizado American Clipper.

Após o desembarque Roosevelt seguiu para o USS Humboldt (AVP-21), um navio que já foi confundido com “cruzador” e até “destroier”, mas que era apenas uma unidade de apoio naval leve de hidroaviões da Classe Barnegat. Ao menos aquele era um navio novo, colocado em serviço em outubro de 1941.

Para Roosevelt pouco importava o tipo de navio em que ele estava em Natal, o que importava realmente naquela nave de guerra de pequenas dimensões era o seu encontro com Getúlio Dorneles Vargas, o presidente brasileiro. Um encontro histórico, que, entre outras decisões, levou a efetiva participação de tropas brasileiras no teatro de operações na Itália e fez Natal entrar na mira da imprensa mundial.

Mas isso é outra história!

Enquanto Roosevelt permaneceu em Natal, na manhã seguinte os dois Clippers aceleraram para o norte, cobrindo mais de 3.900 quilômetros até Trinidad, aonde o presidente e seu grupo chegaram no dia seguinte, 29 de janeiro, após um voo sobre o continente sul americano em dois aviões C-54.

Finalmente, em 30 de janeiro, data do 61º aniversário do presidente Roosevelt, os Clippers presidenciais decolaram para os Estados Unidos. O capitão Cone o presenteou com duas cartas, uma de cada tripulação dos Clippers que participaram da viagem, cada uma contendo uma contribuição financeira individual para o Fundo do Baile de Aniversário do Presidente.

Comemoração do 61º aniversário do presidente Roosevelt no Clipper.

Pouco antes do meio-dia o presidente sentou-se para um jantar especial de aniversário, onde foi servido caviar, aipo, azeitonas, peru, ervilhas e café, além de um grande bolo de aniversário, que o presidente cortou com óbvio deleite. Então todos – exceto o capitão Cone, que obedecia aos regulamentos da Pan American – fizeram um brinde com champanhe ao presidente. Depois disso, o Chefe do Executivo foi surpreendido com presentes. Entre eles um portfólio de gravuras raras de Trinidad, uma caixa de cigarro entalhada e outros. Tão exultante estava o capitão Cone com todos esses eventos, que todas as anotações do dia no diário do Dixie Clipper foram escritas a lápis vermelho sob o título “Aniversário do presidente”.

No meio da tarde, os dois Clippers começaram a longa descida em direção à costa da Flórida, onde amerissaram na Base de Dinner Key. Lá o presidente elogiou os membros de ambas as tripulações por seu desempenho e de Miami seguiu de trem para Washington. Embora os tripulantes nunca soubessem qual seria seu próximo destino até pouco antes da decolagem, eles cumpriram a indicação mais responsável que qualquer companhia aérea poderia receber, exatamente de acordo com as ordens.

Rotas da Pan American Airways.

E não havia dúvidas sobre o desempenho: os enormes hidroaviões percorreram mais de 20.000 quilômetros sem incidentes, durante 70 horas e 21 minutos em que estiveram no ar. Eles tocaram três continentes, cruzaram o Atlântico duas vezes e a linha do Equador quatro. A utilização dos Boeing 314 Clipper como aeronave principal nessa viagem presidencial se deveu por ser uma máquina que possuía uma estrutura excepcional, beleza, requinte, conforto, robustez, luxo e capacidade de voo. Apesar de terem sido construídos poucos exemplares e nenhum chegar inteiro até os nossos dias, marcou época e se tornou um clássico da aviação mundial.

Referências  –

https://www.whitehousehistory.org/the-wings-of-franklin-roosevelt-1

https://www.panam.org/explorations/681-1st-transatlantic-passenger-flight

http://www.fdrlibrary.marist.edu/daybyday/daylog/january-12th-1943/

https://www.americanheritage.com/hell-hole-yours#1

https://history.state.gov/milestones/1937-1945/casablanca

https://www.panam.org/war-years/579-the-commodore-the-president-2

https://www.aviationarchaeology.com/src/USN/OS2U.htm

O ATAQUE DO ENCOURAÇADO GRAF SPEE PRÓXIMO A COSTA NORDESTINA

A Primeira Nave de Guerra Nazista no Atlântico Sul – Atacou um Cargueiro Inglês na Costa de Pernambuco – Três Tripulantes Eram Brasileiros e Testemunharam Esse Ataque Perto do Litoral Nordestino – Um Hidroavião Alemão Metralhou O Navio Inglês – O Graf Spee Foi Visto Próximo a Natal? – A Estranha Visita do Adido Naval Britânico a Capital Potiguar – A Guerra que Chegou

Rostand Medeiros – Escritor e Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Em 1939, enquanto o mundo assistia a escalada de uma nova guerra mundial, na Alemanha Nazista havia a certeza que a sua Marinha de Guerra, a Kriegsmarine, não poderia enfrentar a Marinha Real Britânica, a Royal Navy. Mesmo com essa desvantagem foram os alemães que executaram os primeiros movimentos daquilo que entrou para a História como a Batalha do Atlântico, um conjunto de ações navais beligerantes que duraria toda a Segunda Guerra Mundial e atingiria toda extensão desse vasto oceano.

O poderoso encouraçado de bolso Admiral Graf Spee.

O comando da Kriegsmarine decidiu posicionar secretamente no Atlântico Norte naves de superfície, submarinos e navios de apoio para manter os britânicos ocupados quando a guerra estourasse. Entretanto, nesses movimentos navais pré-guerra uma das mais importantes naves da Alemanha seguiu em direção do Atlântico Sul.

Esse navio era o poderoso encouraçado de bolso Admiral Graf Spee, que zarpou do porto de Wilhelmshaven, na costa do Mar do Norte, na noite de 21 de agosto de 1939, recebendo o apoio do petroleiro da frota Altmark e sendo comandado pelo capitão de mar e guerra (kapitän zur See) Hans Langsdorff.

Ninguém a bordo do Graf Spee, a não ser seu capitão, sabia o rumo a nave deveria tomar e a natureza da missão a cumprir.

Para muitos naquele poderoso barco, mesmo com toda tensão na Europa, aquela navegação seria apenas mais um cruzeiro de instrução que seguia em direção sul. Mas o que Langsdorff queria era que seu navio desaparecesse na imensidão do Atlântico. E isso ele conseguiu![1]

Uma Grande Nave de Guerra

O Graf Spee era um navio excepcional, verdadeiro prodígio da engenharia naval alemã da época. Possuía 186 metros de comprimento, um calado máximo de 7,34 metros e era ocupado por cerca de 1.000 tripulantes. Seu casco era pura inovação para uma nave desse tamanho no final da década de 1930, pois era totalmente soldado e não utilizava rebites.

Seus dois motores principais foram fabricado pela MAN (Maschinenfabrik Augsburg-Nürnberg), sendo modelos M9 Zu 42/53, a diesel, de nove cilindros, dois tempos e média velocidade. A potência projetada para o Admiral Graf Spee era de 54.530 HP, o que permitia a velocidade máxima de 26 nós. Mas durante os testes a nave atingiu 28,5 nós (52,5 km/h), com os eixos da hélice girando a 250 rpm. Também haviam motores auxiliares instalados ao longo de cada um dos conjuntos dos motores principais. Tratavam-se de motores MAN M-5 Z 42/48, a diesel, com cinco cilindros, dois tempos, cada um com a potência de 3.500 HP a 425 rpm. Eles abasteciam bombas, compressores, equipamentos de combate a incêndio, etc. A eletricidade era fornecida por oito geradores fabricados pela AEG (Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft), de Berlin, com potência combinada de 3.360 kW, alimentados por 375-400 HP.

Tinha uma autonomia de 20.000 quilômetros e um deslocamento total de 16.020 toneladas, bem mais que as 10 mil toneladas estipuladas pelo Tratado de Versalhes, que limitavam os navios de guerra alemães a naves de pequeno porte e era uma das punições dos países Aliados após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.

Para fugir dessas proibições os engenheiros navais alemães desenvolveram os chamados Panzerschiff (navio blindado) da classe Deutschland, que os britânicos logo apelidaram de encouraçados de bolso, pois possuíam artilharia pesada, em um navio com um tamanho e peso relativamente reduzidos. Mas essa relação superava em muito os cruzadores pesados da época ​​e estava no mesmo nível de muitos navios de guerra mais antigos[2]

Aquela impressionante nave possuía seis canhões de 280 milímetros, com três destes montados em duas torres fortemente blindadas – uma dianteira e outra traseira – com capacidade de lançar projeteis a cerca de 30 quilômetros de distância. Havia oito canhões de 150 milímetros e outros vinte e quatro canhões e metralhadoras antiaéreas. Foram montados no tombadilho dois lançadores de torpedo quádruplos de 533 mm e o Graf Spee podia transportar até dois hidroaviões Arado Ar 196 A-1 para buscar seus alvos à distância e lançados de uma catapulta na superestrutura da ponte[3]. A função dessas aeronaves era complementada pela a existência de um rudimentar radar de busca[4].

Seu Bravo Capitão

O Graf Spee era comandado por um competente oficial que desde os dezoito anos de idade estava na carreira naval. Hans Johann Wilhelm Rudolf Langsdorff  nasceu em 20 de março de 1894 na cidade de Berguen, a maior aglomeração urbana da Ilha de Rugen, próximo a costa norte do Mar Báltico. Vinha de uma tradicional família de pastores luteranos, sendo filho de Ludwig Langsdorff e Elisabeth Steinmetz. Em 1898 sua família mudou-se para a cidade de Düsseldorf, onde seu pai assumiu as funções de juiz e os Langsdorff se tornaram vizinhos da aristocrática família do Conde e Almirante Maximilian von Spee. Ali o jovem Hans Langsdorff conheceu os filhos desse almirante, os futuros cadetes navais Otto e Heinrich Spee[5].

O Capitão Langsdorff.

Certamente influenciado pelos seus honrados vizinhos, mas contra a vontade dos seus pais, que desejavam que ele seguisse a função de pastor, em 1912 Langsdorff entrou na Academia Naval de Kiel. Durante a Primeira Guerra Mundial o então tenente Langsdorff recebeu a Cruz de Ferro de 1ª Classe e em maio de 1916 participou da Batalha da Jutlândia, considerada por muitos a maior batalha naval da história. Após o fim do conflito ele continuou na marinha e em março de 1924 se casou com Ruth Hager, onde da união nasceram seu filho Johann e sua filha Ingeborg Langsdorff[6].

Principalmente por suas habilidades administrativas, a sua carreira naval chamou a atenção do comando da Kriegsmarine. Em 1933, após a ascensão dos nazistas ao poder, Langsdorff buscou se afastar do novo regime e solicitou retornar para o mar, mas foi nomeado para o Ministério do Interior. Finalmente, entre 1936 e 1937, conseguiu uma comissão que o colocou a bordo do novo encouraçado de bolso Admiral Graf Spee, onde participou do apoio alemão ao lado nacionalista de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. 

Logo depois Langsdorff foi promovido a capitão e em outubro de 1938 recebeu o comando do Graf Spee. Nessa nave ele pode mostrar suas habilidades de comandante naval, ficando marcado pela audácia, coragem, companheirismo, capacidade de decisão e um atuante pensamento humanitário.

Essa última faceta do caráter de Hans Langsdorff certamente era fruto de sua criação luterana e foi algo que anos depois lhe custou a vida, mas o fez entrar para a História.

No Atlântico Sul

Foi em uma sexta-feira, 1º de setembro de 1939, o dia que os alemães invadiram a Polônia e a Segunda Guerra Mundial teve início. Nessa mesma data vamos encontrar o Graf Spee já tendo ultrapassado as Ilhas Canárias, estando a cerca de 800 milhas a oeste das Ilhas de Cabo Verde e se aproximando da Linha do Equador, onde, no dia 8 de setembro, teve o privilégio de ser a primeira nave de combate alemã durante a Segunda Guerra Mundial a cruzar essa linha geográfica. Poucos dias depois esse encouraçado de bolso estará em uma posição que o deixou bem próximo do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, seguindo em patrulha para uma área mais próxima do centro do Atlântico Sul. 

O Capitão Langsdorff obedecia à risca às ordens recebidas, onde estava pautado que deveria manter o Graf Spee fora das vistas de outros navios e era proibido de atacar naves cargueiras inglesas e francesas. Seguia acompanhando as notícias na Europa, em velocidade lenta, demorando muito no deslocamento e aguardando as ordens para atacar.

Hitler imaginava que após a conquista da Polônia, a França e a Grã-Bretanha, os principais inimigos da Alemanha, buscariam um acordo para evitar a guerra total. Mas isso não aconteceu e conforme os dias foram passando as restrições de combate de Langsdorff vão caindo, até não mais existirem em 26 de setembro. Nessa data o Graf Spee se encontra praticamente no centro do Atlântico Sul e toma rumo noroeste em busca da sua primeira vítima. Nessa rota se aproxima da costa do Nordeste do Brasil, mais precisamente ao largo de Pernambuco.

Quem observa a linha traçada pelo avanço do Graf Spee naqueles dias, talvez se pergunte o porquê desse navio de guerra ter seguindo em uma rota quase sem alteração e de forma tão célere para a costa pernambucana.

Ao nos debruçarmos sobre as velhas páginas dos periódicos recifenses Diário de Pernambuco e Jornal Pequeno, publicados na segunda quinzena de setembro de 1939, buscando informações sobre a movimentação portuária em Recife, descobrimos que o entra e sai de navios de cargas e passageiros era intenso. Em parte isso se explica porque nessa época a capital pernambucana era terceira maior cidade brasileira, com uma população de 348.424 habitantes[7]. Evidentemente que o maior número de barcos que ali circulavam era de brasileiros, mas nas primeiras semanas da Segunda Guerra Mundial nada menos que nove navios alemães e seis ingleses estiveram escalando no porto de Recife[8]. Também se encontrava atracado o grande transatlântico polonês MV Chrolbry, que segundo os jornais estava sendo totalmente “pintado de cinza para melhor se camuflar no mar” e poder seguir a “qualquer momento para Europa”.

Hidroavião Arado Ar 196 A-1 sendo lançado.

Talvez por estar recebendo mensagens enviadas por espiões germânicos baseados em Recife, o Capitão Langsdorff se aproximou da capital pernambucana para interceptar algum navio inimigo que dali partia[10]. Para melhorar a caçada Langsdorff ordenou o lançamento do hidroavião Arado para uma busca além do horizonte[11].

O Ataque e os Brasileiros a Bordo do Clement

Dias antes desse momento, quando o encouraçado alemão ainda seguia de forma lenta em direção sul, se encontrava no porto de Natal um cargueiro inglês chamado Clement, que deslocava 5.051 toneladas, era comandado pelo Capitão Frederick C. P. Harris, de 58 anos de idade, e possuía um total de 48 tripulantes. Essa nave pertencia a empresa inglesa de navegação Booth Steam Ship Company, sendo uma frequentadora habitual dos portos da costa leste dos Estados Unidos e do norte e nordeste do Brasil. Havia partido de Nova York em 24 de agosto com um carregamento de gasolina e querosene em latas, bacalhau e ferramentas, tendo escalado em Belém do Pará, São Luís e Tutóia (Maranhão), Fortaleza e Natal. Da capital potiguar o Clement partiu para Recife com uma pequena carga de algodão, vindo provavelmente da região do Seridó[12].

Uma particularidade interessante é que entre os tripulantes do Clement havia três brasileiros.

Estes eram Martinho Silva, de 32 anos de idade, Thomaz Brandão, de 30 anos, além de Waldemar Francisco Penedo, com 26 anos. Todos eram paraenses de Belém e haviam embarcado nessa cidade para trabalhar no Clement realizando manutenção e lubrificação dos motores, sendo conhecidos como “graxeiros”, uma das funções mais humildes e sujas a bordo.

Após alguns dias na capital pernambucana, a uma da manhã de 30 de setembro, vamos encontrar o Clement deixando aquele porto para seguir em direção a Salvador para pegar mais cargas. Após essa parada seu destino era o porto de Cabedelo, na Paraíba, onde carregaria mais algodão e depois o próximo porto seria o de Nova York, Estados Unidos[13].

Desde que começou o conflito o capitão Frederick C. P. Harris, veterano da Royal Navy na Primeira Guerra Mundial, vinha navegando mais afastado do litoral, para evitar possíveis ataques[14]

Dias depois Thomaz Brandão declarou para um jornal carioca que por volta das onze e meia da manhã de 30 de setembro, quando o Clement se encontrava a cerca de 70 milhas náuticas (130 quilômetros) da costa pernambucana e a tripulação se preparava para almoçar, o barco foi sobrevoado por uma aeronave. Brandão primeiramente imaginou que fosse “o avião do correio”, mas logo percebeu a cruz negra alemã e soube que aquilo significava problemas[15].

No hidroavião Arado do Graf Spee o piloto Heinrich Bongardts, que possuía a patente de sargento (Unteroffizier) da Força Aérea Alemã (Luftwaffe), emitiu uma chamada de rádio ordenando que o Clement não transmitisse sinais de socorro enquanto dava voltas sobre o cargueiro. Mas a ordem foi ignorada e o oficial do rádio da embarcação começou a transmitir “RRRR” em código Morse, que indicava que um cargueiro inglês estava sob ataque. E esse não demorou a vir por parte do hidroavião, quando o Cabo (Obergefreiter) Hans-Eduard Sümmerer despejou várias rajadas de metralhadora MG no Clement, ferindo um tripulante inglês[16].

Logo a sinistra silhueta do Graf Spee surgiu no horizonte a toda velocidade e abriu fogo de advertência com um dos seus canhões. Diante da nova ameaça o capitão Harris ordenou que as transmissões cessassem e os papéis oficiais do navio e códigos de transmissão fossem colocados em uma sacola e jogados ao mar[17]

Perdidos Perto da Costa Nordestina

O Clement passou a ser abandonado pelos tripulantes, incluindo o comandante e o engenheiro chefe W. Bryant, de 70 anos de idade, que se acomodaram em quatro botes salva-vidas. Mas eles mal começavam a deixar o navio cargueiro, os alemães também desceram um escaler motorizado do Graf Spee e logo buscaram abordar os botes ingleses.

O Clement.

Chegaram armados com pistolas e submetralhadoras e, após identificarem o Capitão Harris e o engenheiro Bryant, ordenaram que os mesmos entrassem em sua lancha para serem levados a bordo do Graf Spee como prisioneiros de guerra e interrogados. Os dois oficiais se resignaram diante da situação, mas antes de partir se despediram de toda tripulação. O homem ferido pelos disparos da aeronave também foi levado para receber tratamento médico pela equipe do navio atacante. Nesse momento os ingleses comentaram aos brasileiros que aqueles homens armados eram alemães.

Os que estavam nos botes salva-vidas receberam instruções para seguirem em direção à costa brasileira[18]. Thomaz Brandão achou interessante o fato dos alemães filmarem os homens do Clement.

O Clement sendo destruído pelos canhões do Graf Spee.

Logo, ao meio-dia, esses sobreviventes assistiram o Graf Spee abrir fogo com seus poderosos canhões, rompendo de maneira ensurdecedora o silêncio oceânico. O Clement foi afundado com cinco granadas de 280 mm e 25 de 150 mm. Dois torpedos também foram disparados, mas ambos erraram o alvo. O cargueiro inglês levou 45 minutos para afundar totalmente e enquanto agonizava o navio atacante partiu rapidamente. Seu pequeno hidroavião evoluiu algum tempo sobre a nave sinistrada e depois também se foi.

Devido ao mar agitado os barcos salva-vidas se dispersaram e assim passaram a noite. Pelas sete horas da manhã do outro dia um desses barcos, com dezesseis homens a bordo, foi avistado e recolhido pela tripulação do vapor nacional Itatinga a quinze milhas do litoral, na altura da praia de Porto de Pedras, Alagoas[19]. Comandado pelo Capitão de longo curso Antenor Dias Sanches, este realizou com seu navio buscas aos outros sobreviventes durante algum tempo, apitando estridentemente e fazendo longas curvas, mas sem sucesso.

Depois o Itatinga seguiu para Maceió, Salvador e Rio de Janeiro, onde nesse último porto Herbert John Gill, o 2º piloto do Clement, deu declarações para imprensa carioca sobre o ataque[20]. Já os outros barcos salva-vidas e os sobreviventes, fazendo o uso de velas, chegaram à costa alagoana.

Os náufragos foram vistos com muita curiosidade pela população das cidades onde estiveram e receberam algum ajuda, pois a maioria só tinha mesmo a roupa do corpo.

Mesmo sem se aperceberem, aqueles tripulantes do Clement foram testemunhas oculares de fatos realmente significativos naquela época. A ação do Graf Spee foi o ataque de um navio de guerra alemão realizado mais próximo do Continente Americano em toda a Segunda Guerra Mundial. Igual situação se enquadra a ação do hidroavião Arado Ar 196 A-1, colocando-o como a aeronave da Luftwaffe a ter realizado um ataque aéreo mais próximo do chamado Novo Mundo.

Os Primeiros Brasileiros Envolvidos na Segunda Guerra Mundial e o Graf Spee Próximo a Natal

No Rio de Janeiro o Ministério das Relações Exteriores do Brasil se pronunciou nos jornais afirmando que o ataque ao Clement se deu fora das águas territoriais brasileiras, não caracterizando uma “violação da neutralidade do país”. Vale ressaltar que nessa época o que o Brasil considerava que suas águas territoriais seriam parcas três milhas náuticas a partir das nossas praias[21].

Quando dias depois um dos três tripulantes brasileiros chegou ao Recife, cujo nome o Diário de Pernambuco omitiu, informou ao jornalista que o ataque do encouraçado ao Clement para ele “foi um grande azar”. Independente de se encontrar vivo e sem um arranhão, comentou que depois de ter sido tripulante de outros navios mercantes britânicos e de ter visitado a Inglaterra em várias ocasiões, estava há meses desempregado no Pará e aquele engajamento no Clement era uma verdadeira dádiva, mas que acabou[22].

Os marinheiros brasileiros ainda comentaram junto à imprensa que informaram ao cônsul inglês que desejavam continuar trabalhando como embarcados em naves comerciais britânicas, desde que “recebessem salários de guerra e seguros de vida”[23].

Sabemos que em setembro de 1939 a Segunda Guerra Mundial se desenrolava com maior força na Polônia, mas eu desconheço se nesse período algum cidadão brasileiro tenha se envolvido em alguma ação bélica nesse país, ou em algum outro local onde os alemães e seus inimigos se batiam. Nesse tocante, creio que é possível afirmar que os paraenses Martinho Silva, Thomaz Brandão e Waldemar Francisco Penedo tenham sido os primeiros brasileiros a se envolverem e testemunharem uma ação bélica nesse conflito. E o interessante é que esse fato ocorreu próximo ao belo e caliente litoral nordestino.

O Almirantado Britânico recebeu então um primeiro relatório dando conta que um poderoso navio de guerra alemão estava operando no Atlântico Sul, nesse momento eles acreditavam que a nave era o Admiral Scheer, pois foi esse o nome que os náufragos do Clement viram pintado na proa do encouraçado. Na verdade era mais um ardil de Langsdorff para enganar seus adversários. Muitos jornais brasileiros caíram no logro e durante algum tempo estamparam notícias que o Admiral Scheer era quem aterrorizava o Atlântico Sul. Fosse lá qual fosse o nome daquele navio de guerra, o certo é que nos dias após o ataque ao Clement os ingleses não faziam a menor ideia onde ele se encontrava. Muitos acreditavam que o navio atacante teria navegado em direção leste, para o meio do oceano.

Mas em 7 de outubro, uma semana depois do afundamento do cargueiro inglês, o próprio Almirantado Britânico publicou um documento reservado onde encontramos a informação que um navio americano comunicava ter visto uma nave de guerra classificada como o Admiral Scheer, navegando a somente 60 milhas náuticas (110 quilômetros) de Natal, Rio Grande do Norte. Esses documentos só foram desclassificados em 2012.

Esse fato é interessante, pois certamente esse documento trás uma das primeiras menções sobre a cidade de Natal em um documento militar de um dos países beligerantes envolvidos na Segunda Guerra Mundial.

A Batalha do Rio da Prata

Um mês após o episódio do Clement, sem revelar sua posição aos adversários e sem matar um só marinheiro inglês, o Capitão Langsdorff e a sua equipe a bordo do encouraçado de bolso Graf Spee haviam mandado para o fundo do mar mais de 50.000 toneladas de navios inimigos e criado problemas nas rotas comerciais marítimas dos ingleses.

Entre outubro e novembro sete grupos de navios de guerra da Marinha Real Britânica e Francesa caçavam o Graf Spee no Atlântico Sul, enquanto outro grupo esquadrinhava o Oceano Índico. No total, ingleses e franceses empregaram quatro porta-aviões, três encouraçados, dezesseis cruzadores e outros tantos navios menores. Em novembro o Graf Spee ainda afundou um pequeno petroleiro a sudoeste de Madagascar e depois voltou para o Atlântico Sul, onde reivindicou mais três vítimas, incluindo o Doric Star no dia 2 de dezembro e o Tairoa no dia 3.

Depois de mais de dois meses em alto mar, tornou-se necessário que o navio voltasse para a Alemanha para reparos, mas antes disso Langsdorff decidiu interceptar um comboio que ele sabia se encontrar ao largo do rio da Prata e transportava para a Grã-Bretanha grãos e carnes.

O HMS Exeter.

Quem também estava na mesma região era o Comodoro inglês Henry Harwood, comandando um grupo de combate (Group G) composto pelo cruzador pesado britânico HMS Exeter (comandado pelo Capitão Frederick Secker Bell), o cruzador leve britânico HMS Ajax (Capitão Charles Henry Lawrence Woodhouse) e do cruzador leve neozelandês HMNZS Achilles (Capitão William Edward Parry). 

Também fazia parte do Group G o veterano cruzador britânico HMS Cumberland (Capitão Walter Herman Gordon Fallowfield), que naquele momento estava nas Ilhas Falklands (Malvinas) reparando seus motores, o que deixava o Comodoro Harwood desfalcado diante do poder de fogo da nave alemã. Mesmo assim ele e seus companheiros ficaram patrulhando a área, esperando encontrar o inimigo.

O Graf Spee.

De maneira inesperada o encontro entre o Graf Spee  e os três cruzadores se deu às 06:10h do dia 13 de dezembro, a 390 km a leste de Montevidéu, quando a nave germânica foi primeiramente vista de uma posição a noroeste. Langsdorff decidiu acelerar ao máximo seu encouraçado para encurtar a distância das três naves adversárias, que para ele pareciam ser simples destroieres e que achava estarem protegendo o cobiçado comboio mercante. Foi quando percebeu tarde demais que estava enfrentando três cruzadores e não havia nenhum navio mercante por perto. 

Confrontado com o armamento mais pesado do Graf Spee, Harwood decidiu colocar sua força em duas alas e tentar assim dividir o fogo das principais armas inimigas. O cruzador pesado Exeter seguiu ao sul, enquanto os outros dois cruzadores ligeiros seguiram para norte. As 06:18h os disparos dos grandes canhões do Graf Spee irromperam o silêncio do Atlântico Sul.

Disparos no calor da Batalha do Rio da Prata.

Todos os quatro navios envolvidos na luta navegavam disparando incessantemente enquanto manobravam. Logo no começo da batalha naval um petardo inglês destruiu o hidroavião Arado e matou os aviadores Bongard e Sümmerer. O Graf Spee então concentrou os canhonaços de suas duas torres de 280 mm no Exeter, que foi duramente atingido. As dez para as sete da manhã todos os navios estavam indo para o oeste. Nessa altura da contenda o Exeter disparava apenas uma de suas quatro torres de tiro. Chamas eram vistas em várias partes do navio e havia danos generalizados. A ponte de comando foi duramente atingida, com estilhaços matando ou ferindo todo o pessoal, exceto o Capitão Bell e outros dois tripulantes. 

Quando uma das torres de tiro do Exeter foi atingida por um impacto direto de um projetil de 280 mm, o fuzileiro real Wilfred A. Russell teve seu antebraço esquerdo explodido e seu braço direito quebrado, mas recusou os primeiros socorros enquanto outros companheiros não fossem atendidos, além de permanecer no convés incentivando seus amigos durante a luta. Ele não cedeu até que o calor da batalha terminasse, mas faleceu de suas feridas poucos dias depois.

Troca de disparos na manhã de 13 de dezembro de 1939.

As comunicações gerais do Exeter ficaram inoperantes e pelo resto da batalha as ordens internas nesse navio tiveram de ser enviadas por uma cadeia de mensageiros. Até para informar ao timoneiro para girar o leme para esquerda ou direita, a ordem tinha de ser repassada por vários tripulantes. O marinheiro de primeira classe Patrick O’Leary, quando recebeu ordens da sede do controle de danos para fazer contato com o comando principal, em um momento de extrema confusão pela falta de comunicações internas, encontrou seu caminho através do apartamento dos oficiais destruído por um disparo de 280 mm. Mesmo assim, através do fogo e da fumaça densa e mortal, ele fez contato com o comando e depois com a sala das máquinas, o que muito ajudou a equilibrar as decisões dos oficiais naquele momento. De lá retornou com várias queimaduras, além dos pulmões cheios de fumaça. Em decorrência desses ferimentos O’Leary faleceu[24]. Enquanto isso o Ajax e o Aquiles chegaram a 12.000 metros do Graf Spee, sempre disparando seus canhões de 150 mm (armamento principal dessas duas naves). Eles começaram a martelar pesadamente a nave de guerra germânica, fazendo com este que dividisse os disparos do seu principal armamento. Essa ação aliviou o sofrimento do Exeter, que recebeu ordens de deixar a ação e ir para o sul, para as Falklands.

Hidroavião Arado do Graf Spee destruido.

Até às oito da manhã o Graf Spee continuou a trocar disparos contra o Ajax e o Aquiles. Depois de quase duas horas de combate, para alguma surpresa dos ingleses e neozelandeses, a nave alemã levantou uma cortina de fumaça e partiu em direção ao continente sul-americano. Aos binóculos dos seus inimigos, o navio alemão tinha apenas um dano superficial visível.

Na verdade um disparo de 203 mm do Exeter desferiu aquele que foi o golpe decisivo contra o Graf Spee. Quando destruiu seu sistema de processamento de combustível cru e deixou a poderosa nave alemã com apenas 16 horas de combustível, insuficientes para permitir que retornasse para a Alemanha. Sua tripulação não podia realizar consertos dessa complexidade em alto mar. Além disso, dois terços de sua artilharia antiaérea foram destruídos, assim como uma de suas torres secundárias. 

O Graf Spee em Montevideo.

Não havia bases navais amigas ao alcance e muito menos reforços disponíveis. Naquelas condições o Graf Spee só poderia seguir para algum o porto neutro, como o da cidade brasileira de Porto Alegre, ou o porto uruguaio de Montevideo, ou para Buenos Aires.

Escolheram Montevideo!

O Fim do Graf Spee

A batalha agora se transformou em uma perseguição marítima. Os cruzadores mantiveram cerca de treze milhas náuticas (24 km) de distância do Graf Spee. Estava claro que a nave alemã seguia para o estuário do rio da Prata, onde entrou em Montevideo a meia noite e dez minutos de 14 de dezembro[25]

Essa decisão foi um erro político, pois o Uruguai, embora neutro, havia se beneficiado do comércio e da significativa influência britânica durante seu desenvolvimento e os uruguaios claramente favoreceriam os Aliados.

Mortos alemães da Batalha do Rio da Prata.

O Capitão Langsdorff libertou 61 marinheiros mercantes cativos que estavam a bordo do Graf Spee, que declararam terem sido humanamente tratados. Os tripulantes alemães feridos foram levados para hospitais locais e os mortos foram enterrados com honras militares completas.

Langsdorff então pediu ao governo uruguaio duas semanas no porto para fazer reparos, mas os diplomatas britânicos começaram a pressionar as autoridades uruguaias para a partida rápida do navio alemão. Langsdorff então recebeu a informação que o governo da República Oriental do Uruguai havia-lhe concedido apenas 72 horas de permanência no porto de Montevideo. 

No enterro dos seus comandados o Capitão Langsdorff faz a tradicional saudação militar, enquanto civis, entre eles religiosos, fazem a saudação nazista.

Ao mesmo tempo, esforços foram feitos pelos britânicos para disseminar falsas informações aos alemães que uma esmagadora força britânica estava chegando, incluindo o porta-aviões HMS Ark Royal e o cruzador HMS Renown. Na verdade, além dos dois cruzadores leves que anteriormente se bateram contra a nave alemã, a eles se juntou apenas o veterano Cumberland, que chegou às 22:00 de 14 de dezembro e sem ter resolvidos todos os seus problemas anteriores.

Os alemães foram totalmente enganados e acreditaram que iriam enfrentar uma força muito superior ao deixar o Rio da Prata. Além disso, o Graf Spee utilizou dois terços de sua munição de 280 mm, o que lhe deixava com o suficiente para aproximadamente 20 minutos de disparos, quantidade de munição limitada para o combate que aconteceria ao sair de Montevideo.

O Graf Spee deixando Montevideo para sua última navegação.

Langsdorff sabia das relações amigáveis entre o Uruguai e a Grã-Bretanha e se aceitasse que seu navio fosse internado e mantido sob a guarda da Marinha do Uruguai, esses certamente permitiriam que os oficiais da inteligência britânica tivessem acesso ao seu interior. Algo impensável. Como Langsdorff tinha ordens de afundar seu navio se não houvesse condições de lutar pela liberdade de seu barco e de sua tripulação e o limite de tempo imposto pelo governo do Uruguai estava próximo de se encerrar, ele decidiu afundar sua nave.

O fim.

Com o capitão e apenas outros 40 homens a bordo, o Graf Spee  seguiu três milhas fora do porto de Montevideo, em águas internacionais, onde então Langsdorff ordenou a destruição de todos os equipamentos importantes a bordo e o suprimento de munição restante foi colocado por todo o navio em preparação para o afundamento. 

Pouco antes de nove da noite, diante de uma grande multidão de uruguaios calculada em 250.000 pessoas, primeiramente a sirene anticolisão do navio alemão soou estridentemente, depois múltiplas explosões lançaram jatos de fogo no ar e criaram uma grande nuvem de fumaça que obscureceu o navio. Imediatamente após o seu afundamento o Graf Spee descansou em águas rasas, a uma profundidade de apenas onze metros, com grande parte da sua superestrutura permanecendo acima do nível da água[26].

O Sacrifício do Comandante

O Capitão Langsdorff evitou sob todas as circunstâncias que sua tripulação fosse internada no Uruguai, preferindo uma transferência para a Argentina, do outro lado do Rio da Prata.

O cargueiro alemão Tacoma, presente nessa ocasião no porto de Montevidéu, recebeu ordens para estar pronto para partir e seguir o navio de guerra. Mas devido ao seu calado, não poderia percorrer a rota direta de Montevidéu a Buenos Aires. Foi quando na noite de 17 de dezembro o Capitão Rudolf Hepe, inspetor em Buenos Aires da empresa de navegação marítima alemã Hamburg-Süd, contratou dois rebocadores argentinos para transportar os marujos do Graf Spee até Montevidéu. Este apoio logístico, que funcionou corretamente até o último minuto, foi essencial para evacuar toda a tripulação para uma Argentina amigável à Alemanha, onde os marinheiros poderiam ter um regime de internamento mais benevolente.

Dois dias depois na capital argentina, depois de completar as formalidades com as autoridades locais, Langsdorff fez um breve discurso para seus oficiais e depois se retirou para um quarto de hotel. Pouco tempo depois, com a bandeira de batalha da Marinha Imperial Alemã ao redor de seus ombros, cometeu suicídio com uma pistola. Langsdorff deixou uma carta para sua família e outra para o Barão von Therman, o embaixador alemão em Buenos Aires, onde assumiu a responsabilidade pelo incidente Graf Spee. Tinha 45 anos de idade.

Hans Langsdorff foi enterrado na Seção Alemã do Cemitério La Chacarita, em Buenos Aires, onde chegou até mesmo a ser homenageado pelos seus inimigos por sua conduta honrosa.

No final ficou patente que Langsdorff escolheu sacrificar seu navio para preservar a vida de seus homens. Ao cometer suicídio o comandante do Graf Spee provou que não havia evitado o combate naval para salvar a sua vida e que seu destino era igual ao do seu navio. 

Para outros, nazistas principalmente, Hans Langsdorff não passou de um mero covarde, que teve uma atitude derrotista causada por maus julgamentos, que preferiu enfrentar o suicídio aos seus inimigos imediatos, ou a desgraça nas mãos de seu governo. Afirmaram ainda que, dadas as probabilidades reais de um combate após partir de Montevideo, um comandante com mais coragem teria condições de afundar de dois a três navios inimigos e tentar voltar para a Alemanha.

Essa possibilidade seria viável?

É possível! Mas tudo se mostraria um sacrifício inútil.

Mesmo que vencesse inicialmente os três cruzadores que estavam no estuário do Rio da Prata, Langsdorff, com pouca munição nos seus paióis e importantes problemas para resolver nas máquinas do seu navio, dificilmente conseguiria fugir dos mais de 30 navios de guerra inimigos que o caçariam implacavelmente por todo Oceano Atlântico.

E não podemos esquecer que sob o comando de Langsdorff a missão operacional do Graf Spee  foi cumprida com sucesso. Apesar de tudo que aconteceu ele conseguiu comprometer as linhas de fornecimento marítimo comercial para a Grã-Bretanha por algum tempo, afundando nove navios mercantes e causando pânico nas tripulações e armadores. Mais importante foi o efeito estratégico de desviar muitos navios de guerra da Marinha Real Britânica e Francesa para caçarem um esquivo atacante alemão que surgiu inesperadamente na imensidão do Atlântico Sul e do vizinho Oceano Índico.

De todas as maneiras o que Hans Langsdorff fez desafia o senso comum. Em foco permaneceu a situação limítrofe de um oficial de marinha que rompeu com a tradição, seguiu sua consciência e salvou a vida de centenas de seus comandados[27].

O Destino das Testemunhas Brasileiras e Um Interessante Estrangeiro Visita Natal

Não demorou e os paraenses Martinho Silva, Thomaz Brandão e Waldemar Francisco Penedo, os simples “graxeiros” do Clement, foram totalmente esquecidos pela imprensa nacional.

Sei que após passarem por Maceió os três paraenses chegaram a Salvador, onde conseguiram roupas e dinheiro com o cônsul britânico ali lotado. Depois tomaram o rumo para Recife e sumiram. Mesmo com muitas buscas nos arquivos dos jornais antigos, nada mais encontrei sobre esses brasileiros.

Já em Natal o episódio do afundamento do Clement foi muito pouco comentado pelos jornais A República e A Ordem, os principais que circulavam na capital potiguar nessa época. Mas uma pequena e discreta nota publicada na terceira página do jornal A República, edição de 13 de outubro de 1939, dá conta da inesperada chegada de um interessante visitante estrangeiro, que parece ter relação com os acontecimentos relativos a destruição desse cargueiro inglês na costa pernambucana.

Capitão Donal Scott McGrath, Adido Naval britânico no Brasil.

Na manhã do dia 12 de outubro de 1939 um hidroavião da Panair amerissou no Rio Potengi e entre os passageiros que desembarcaram estava o Capitão Donal Scott McGrath, Adido Naval britânico no Brasil e a maior autoridade da Marinha de Sua Majestade o rei Jorge VI em nosso país. Esse veterano da Primeira Guerra, ex-comandante de barco torpedeiro e de destroieres em Malta e no Extremo Oriente, havia sido designado para a Divisão de Inteligência Naval do Almirantado antes da Segunda Guerra Mundial e enviado ao Brasil como Adido Naval no Rio de Janeiro[28].

Em Natal o Capitão McGrath foi recebido pelo chefe de gabinete do governador Rafael Fernandes, o advogado Paulo Pinheiro de Viveiros. Apesar dessa informação não sabemos praticamente nada da visita de McGrath a capital norte-rio-grandense, mas temos conhecimento que as duas da tarde do mesmo dia ele embarcou em um trem da Great Western para Recife e sabemos o quanto até aquela data era raro uma visita de um adido naval britânico a Natal.

O oficial Capitão Donal Scott McGrath está sentado, ao centro da foto.

Evidentemente não podemos deixar de perceber que o Capitão Donald Scott McGrath veio primeiro a Natal, para só depois seguir para Recife para, talvez, se encontrar com os náufragos do Clement. Outra situação interessante está no fato desse homem aqui chegar cinco dias após o Almirantado Britânico informar que um cargueiro americano havia visto um navio de guerra alemão a 60 milhas náuticas de Natal[29].

Logo estrangeiros bem mais importantes que o Capitão Donal Scott McGrath chegaria com maior frequência a capital potiguar e a própria Segunda Guerra Mundial seria assunto de atenção primária[30].

Com a Guerra Cada Vez Mais Perto

Manoel de Medeiros Britto, ex-deputado estadual e ex-ministro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte, nascido em 1924, era um jovem seminarista na primeira metade de 1940, no tradicional Seminário São Pedro em Natal. Ele comentou em uma entrevista ao autor deste artigo que nessa época as notícias sobre a Segunda Guerra Mundial preenchiam cada vez mais os debates do dia a dia no Seminário e como toda essa movimentação alterava a sua rotina e a de seus colegas.

O autor desse artigo e o amigo Manoel de Medeiros Britto.

Nos céus de Natal o ronco de aviões estrangeiros se tornou cada vez mais frequente. Era comum o sobrevoo das aeronaves italianas, alemãs e americanas, partindo ou chegando à capital potiguar. Certo dia, durante o recreio no Seminário, Manoel de Britto viu um grande hidroavião quadrimotor prateado passar roncando fortemente e assustando a todos. Era um modelo Boeing 314 Clipper, de fabricação americana e esse colosso dos céus lhe impressionou bastante. Aquela aeronave era um verdadeiro marco da aviação comercial e percorria a linha aérea de Miami ao Rio de Janeiro, com escala em Natal, sempre amerissando no Rio Potengi.

Em maio de 1940 chamou atenção do jovem Manoel de Britto a forte repercussão que a queda da França teve entre os natalenses. A foto de Adolf Hitler ultrajando a Torre Eiffel foi algo que impressionou os moradores da capital potiguar, tanto pela França ser o país estrangeiro mais admirado pelos brasileiros na época, como pela derrota avassaladora que estes sofreram frente aos nazistas. Ele também comentou que após a rendição da França ouviu várias reclamações sobre o aumento dos preços dos produtos alimentícios que eram importados, como a farinha de trigo, conhecida na época como farinha do reino, a pimenta, queijos, manteigas, entre outros.

Boeing 314 Clipper.

Diante desses acontecimentos Manoel de Britto e certamente grande parte dos quase 50.000 habitantes de Natal na época, perceberam que aquela guerra afetaria o dia a dia de todos de uma forma ou de outra.

Eles só não sabiam o quanto e nem como o perigo algumas vezes esteve bem próximo!

NOTAS


[1] Certamente o comando da Kriegsmarine desejava que as ações de combate do Graf Spee obrigasse a Marinha Britânica a deslocar seus vasos de guerra para o Atlântico Sul a fim de caçarem o poderoso navio alemão, deixando o Atlântico Norte desprotegido.

[2]Foram construídos três navios dessa classe; o Deutschland (lançado ao mar em 1931), o Admiral Scheer (1933) e o Admiral Graf Spee (1934). Nenhum deles sobreviveu a Segunda Guerra.

[3] Por ocasião da viagem do Graf Spee ao Atlântico Sul só u m hidroavião foi levado.

[4] Em janeiro de 1938 o Almirante Graf Spee foi o primeiro navio de guerra alemão a ser equipado com um radar de busca. Era o protótipo “Seetakt” FuMG 39G, sendo instalado a bordo do navio com uma antena de 0,8 x 1,8 metros, montada na carcaça giratória do telêmetro.

[5] Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial os três homens da família Spee seguiram para a Marinha Imperial Alemã, onde todos morreram no dia 8 de dezembro de 1914, junto com toda a tripulação do cruzador SMS Scharnhorst, na devastadora derrota alemã na Batalha Naval das Ilhas Falklands (Malvinas). A história começa em 1 de novembro de 1914, onde uma frota de cruzadores imperiais alemães comandadas por Spee destruiu dois cruzadores pesados britânicos próximos a costa do Chile, naquela que ficou conhecida como a Batalha Naval de Coronel. Essa foi a primeira derrota da marinha britânica desde 1812 e o combate ocasionou a morte de 1.700 oficiais e marujos. Mas o troco não se fez esperar e em 8 de dezembro do mesmo ano uma força naval britânica afundou a leste das Ilhas Falklands (Malvinas) oito navios alemães, sendo dois cruzadores de batalha, três cruzadores leves e três navios auxiliares, ocasionando mais de 2.200 mortos.

[6] O filho de Hans Langsdorff, Joachim Langsdorff, também se juntou à marinha alemã. Ele foi morto enquanto pilotava um submarino anão modelo Biber 90 em dezembro de 1944. Sua nave foi posteriormente recuperada pela Marinha Real e está atualmente em exibição no Imperial War Museum, em Londres.

[7] Em primeiro estava o Rio de Janeiro, Capital Federal, com 1.764.141 habitantes e em segundo São Paulo, com 1.326.261. Sobre as populações das capitais estaduais brasileiras em 1940 e outros períodos ver https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00

[8] Os navios em Recife nessa época foram o Tijuca, Uruguay, Bertha Fisser, Curityba, Mecklemburg, São Paulo, Cap Norte e Wolfsburg. Já os ingleses foram o Benedict, Ruperra, Soconía, Western Princes, Baltic e o malfadado Clement. Uma particularidade interessante a todos esses navios é que suas saídas sempre ocorriam à noite e suas luzes eram totalmente apagadas após ultrapassarem a linha dos arrecifes existentes na área desse porto. Apesar do conflito existente na Europa, não consegui encontrar nas páginas dos jornais nenhum conflito que ocorreu com essas tripulações em Recife.

[10] Sobre a existência de espiões do Eixo em Recife e Natal ver https://tokdehistoria.com.br/2017/03/08/o-curioso-caso-do-espiao-nazista-em-natal-durante-a-segunda-guerra-mundial/

[11] Ver o texto “O fim do encouraçado de bolso Admiral Graf Spee”, de Carlo di Risio, in Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v. 111, números 7/9 e 10/12, p. 390, jul./set. e out./dez. 1991.

[12] Sobre a passagem desse navio por Natal ver Jornal Pequeno, Recife, edição de segunda-feira, 2 de outubro de 1939, na página 3.

[13] Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 4 de outubro de 1939, na página 3.

[14] Sobre essa questão os jornalistas do jornal carioca Correio da Manhã tiveram certa dúvida se esse ataque realmente se realizou entre 60 e 70 milhas da costa, pois um barco como o Clement, fazendo uma viagem tão curta, como era o caso entre Recife e Salvador, normalmente “não se afastaria tanto da costa”. Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 4 de outubro de 1939, na página 3.

[15] Nessa época era normal que aviões e hidroaviões, principalmente da empresa Air France, transportassem malas postais de norte a sul do Brasil voando próximo ao litoral brasileiro. Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 5 de outubro de 1939, na 2ª página.

[16] Quando partiu para o Atlântico Sul o Graf Spee transportava apenas uma aeronave e seu respectivo pessoal de apoio. Este foi o Arado 196A-1 do esquadrão aéreo embarcado Bordfliegerstaffel 1./196 – BFGr. 196.

[17] Não existe nenhum indício que aponte que esse hidroavião Arado 196A-1 sequer tenha visualizado a costa brasileira.

[18] O Capitão Harris e o Chefe Bryant foram embarcados a bordo do navio grego Papalemos, que foi parado e revistado pelos alemães no mesmo dia do afundamento do Clement. Os oficiais ingleses foram desembarcados nas Ilhas de Cabo Verde no dia 9 de outubro. O capitão concordou em não transmitir um sinal de socorro até chegar ao seu destino em troca da libertação da tripulação do seu navio. Ele honrou este acordo.

[19] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 3 de outubro de 1939, páginas 1 e 4.

[20] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro, edição de sábado, 7 de outubro de 1939, na 1ª página.

[21] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 4 de outubro de 1939, páginas 1 e 3. Essas três milhas seriam ampliadas para seis em 1966, sendo ampliadas depois de três anos para doze milhas e em 1970 chegou as atuais 200 milhas náuticas. Ver texto de Dalmo de Abreu Dallari “O Mar Territorial do Estado Brasileiro”, obtido no link file:///C:/Users/rosta/Downloads/66716-Texto%20do%20artigo-88104-1-10-20131125.pdf

[22] Ver Diário de Pernambuco, Recife, edição de terça-feira, 4 de outubro de 1939, páginas 1 e 3.

[23] Ver jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, edição de quarta-feira, 5 de outubro de 1939, na página 2.

[24] Além do fuzileiro Russel e do marinheiro O’Leary, outros 63 homens morreram no Exeter como consequência desse combate.

[25] No decorrer da batalha o Graf Spee havia sido atingido aproximadamente 70 vezes, com 36 homens mortos e outros 60 ficaram feridos, incluindo Langsdorff, que havia sido ferido duas vezes por estilhaços enquanto estava na ponte de comando.

[26]Apesar das fortes pressões dos Aliados e dos países do Eixo para que os governantes uruguaios da época colocassem essa pequena nação sul-americana participando mais ativamente do conflito, O Uruguai manteve uma neutralidade extrema durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o drama do Admiral Graf Spee o mais importante acontecimento desse conflito envolvendo aquela nação.

[27] Ver Führungsentscheidung in einer Grenzsituation: Kapitän zur Ver Hans Langsdorff vor und in Montevideo 1939. Vortrag für Klaus-Jürgen Müller zum 80 Geburtstag in der Helmut-Schmidt-Universität de 11. Março 2010. 

[28] Sobre Donal Scott McGrath ver – http://www.holywellhousepublishing.co.uk/commandingofficers.html

[29] Nos jornais de Natal, Recife e Rio de Janeiro não encontramos nenhuma referência sobre a razão da visita deste Adido Naval nessas cidades, nem sabemos se ele chegou mesmo a se encontrar com os náufragos do Clement  em Recife. Sabemos apenas que no dia 17 de outubro ele retornou ao Rio. Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, edição de terça-feira, 17 de outubro de 1939, página 6.

[30] Durante a Segunda Guerra Mundial, após deixar seu cargo na Embaixada Britânica no Brasil, o Capitão Donal Scott McGrath teve participação ativa no conflito. Comandou o navio antiaéreo HMS Ulster Queen, depois foi o comandante do navio desembarque de tropas HMS Glengyle, no malfadado desembarque de Dieppe, França, em 19 de agosto de 1942, na sequência comandou o porta-aviões HMS Tracker e o navio varredor de minas HMS Adventures.

É VERDADE QUE UM AVIÃO NAZISTA ESTEVE EM NATAL DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL?

Fabricado na Alemanha de Hitler e Utilizado Pelos Aliados Romenos – Um Ex-Piloto Comercial Descrente da Vitória – Fuga da Ucrânia para a Ilha de Chipre – Seguindo do Egito Para o Interior da África – Atravessando o Atlântico Sul até Natal e Depois Para os Estados Unidos – Elogios A Base de Parnamirim Field – É Preservado Até Hoje.

Rostand Medeiros – IHGRN

Realmente em 1943 um bimotor Junkers JU-88 D-1 pousou na base de Parnamirim Field, nos arredores de Natal. Mas essa incrível máquina de guerra não pertencia a temida Luftwaffe, a força aérea de Hitler. Fazia parte da arma aérea romena, um aliado dos alemães contra os russos. E porque essa aeronave fabricada na Alemanha Nazista e utilizada pelos romenos contra a antiga União Soviética, veio parar em Natal, no Rio Grande do Norte?

Na Estepe Russa

Estamos em na cidade de Mariupol, no sudeste da Ucrânia, em 22 de julho de 1943, uma quinta-feira. Esta é uma comunidade industrial de tamanho médio, localizada as margens do Mar de Azov, onde existe um bom porto e um aeroporto construído pelos soviéticos em 1931. É neste último local que vamos encontrar um jovem romeno chamado Nicolae Teodoru.

Um majestoso JU-88 em voo.

Ele é um piloto civil de 28 anos de idade, convocado para o serviço militar, que alcançou o posto de Sergentul T.R. aviator, do 2º Esquadrão de Reconhecimento de Longo Alcance (2 Escadrila de Recunoaștere pe Distanțe Lungi) da Força Aérea Romena (Forțele Aeriene Române). Nicolae Teodoru se tornou então piloto de um dos recém-chegados bimotores Junkers JU-88 D-1 de reconhecimento aéreo de longo alcance[1].

Se nessa época o país do sargento Teodoru era um aliado da Alemanha Nazista, no início da Segunda Guerra o então Reino da Romênia, sob a regência de Carol II, adotou oficialmente uma posição de neutralidade. No entanto, as conquistas alemãs na Europa durante 1940, bem como a turbulência política interna, minou essa postura. Fascistas romenos aumentaram em popularidade e poder, incentivando uma aliança com a Alemanha Nazista e seus aliados. 

Hitler no juramento da SS no Congresso do Partido do Reich – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Após a queda da França, em 25 de junho de 1940, o governo da Romênia voltou-se para a Alemanha na esperança de evitar problemas. O que os romenos não sabiam era que o líder alemão Adolf Hitler havia aceitado reivindicações territoriais russas, em um protocolo secreto do Pacto Molotov – Ribbentrop, que igualmente dividiu a Polônia entre nazistas e russos. 

No verão de 1940, uma série de disputas territoriais foi resolvida de forma diplomática, mas totalmente desfavorável para a Romênia, resultando na perda da maior parte do território conquistado aos russos na sequência da Primeira Guerra Mundial. Isso fez com que a popularidade do governo da Romênia despencasse, reforçando ainda mais as facções fascistas e os militares, que eventualmente realizaram um golpe de Estado que transformou o país em uma ditadura sob o comando do marechal Ion Antonescu. Logo, em 23 de novembro de 1940, o novo regime se colocou firmemente ao lado de Hitler[2].

Joachim von Ribbentrop (à direita) e líder romeno Ion Antonescu em junho de 1941.

Nessa aliança, verdadeira dança em boca de vulcão, os romenos participaram junto com os alemães da invasão da antiga União Soviética, que se iniciou em 22 de junho de 1941. Além de tropas e aviões, os romenos forneceram muito petróleo para os nazistas. Vale ressaltar que muitos romenos não aceitaram muito bem essas mudanças.

O tempo passou e em julho de 1943 a coisa se apresentava bem feia para os alemães e seus aliados nas estepes russas.

Em 2 de fevereiro de 1943 aconteceu a incrível derrota do 6º Exército Alemão na batalha pelo domínio da cidade de Stalingrado e, desde 5 de julho, os alemães estavam tendo que se virar em meio a uma sangrenta e imensa batalha de blindados em uma região chamada Krusk, a uns 650 quilômetros aos norte de Mariupol[3]. Nessa área as outrora gloriosas divisões Panzer estavam sendo trucidadas por unidades blindadas formadas por grosseiros, mas eficientes, tanques soviéticos T-34.

Enquanto isso, no aeroporto próximo ao Mar de Azol, certamente o sargento Nicolae Teodoru pensava no que ocorria em seu mundo e nas suas opções para sobreviver.

A Fuga

Seu trabalho e de seus outros três companheiros que faziam parte da tripulação dos novos Junkers JU-88 D-1, era observar e fotografar a movimentação das tropas inimigas com suas câmeras de alta altitude RB 50/30 e RB 75/30. Se dessem sorte poderiam voltar vivos para Mariupol utilizando a capacidade daquele avião de subir até 8.500 metros de altitude e voar a uma velocidade máxima de 480 km/h. Mesmo essas capacidades poderiam não ser totalmente úteis para uma equipe dos JU-88 D-1 romenos sobreviverem. Poucos dias antes, em 23 de junho, o avião de número 4 de sua esquadrilha, pilotado pelo Sublocotenent aviator  Constantin Constantinescu, foi derrubado por caças russos. Mas isso era passado, pois nesse final de julho de 1943 uma nova e grave situação se avizinhava.

Enquanto a grande Batalha de Krusk continuava, dois exércitos alemães do chamado Grupo de Exércitos do Sul, comandados pelo marechal de campo Erich von Manstein, enfrentavam ao norte e nordeste de Mariupol dois grupos de exércitos soviéticos na Bacia do Rio Donets, em uma frente com cerca de 660 quilômetros de extensão. Essa ofensiva soviética ficou conhecida como Ofensiva Estratégica do Donbass, onde mais de 470.000 soldados russos, apoiados por quase 1.900 tanques comandadas pelos generais Fyodor Tolbukhin e Rodion Malinovski, partiram para cima das tropas alemãs.

Não sei se toda essa pressão, ou algum fato isolado, ou talvez a percepção que seu país seria logo ocupado, fez o sargento Nicolae Teodoru tomar a grave decisão de desertar da Força Aérea Romena e levar consigo um dos novos JU-88 D-1[4].

Segundo informações existentes, o avião apresentado nessa fotografia é o “Branco 1” que passou por Natal em outubro de 1943 e se encontra preservado nos Estados Unidos.

Segundo o escritor Dénes Bernád, autor de Rumanian Air Force, The primer decade, 1938-1947, no final da tarde de quinta-feira, 22 de julho de 1943, o sargento Teodoru entrou sozinho na cabina do Junkers designado “Branco 1”, com o número de construção 430650, e decolou com a ideia de nunca mais voltar. Até porque se voltasse seria fuzilado[5].

Sob todos os aspectos estudados, acredito que deve ter sido uma fuga espetacular!

Ju-88 romenos em Mariupol.

Sabemos que o antigo aeroporto soviético de Mariupol foi transformado pelos alemães e romenos em um local extremamente bem equipado, crescendo ao ponto de se tornar uma das principais bases aéreas dessas forças no sul da Rússia. No interessante estudo Luftwaffe Airfields 1935-45 Russia (incl. Ukraine, Belarus & Bessarabia), produzido pelo escritor norte-americano Henry L. deZeng IV, o autor trás inúmeros detalhes sobre a incrível quantidade de 1.917 aeródromos, estações de hidroaviões, pistas operacionais, campo de pouso, pistas auxiliares, bases de hidroaviões, pistas civis, áreas de pouso de emergência e outros locais que foram usados pela Luftwaffe e seus aliados na Rússia. Soubemos através da leitura desse volumoso material, com mais de 800 páginas, que a base de Mariupol não tinha pista pavimentada, mas melhorias foram feitas desde 7 de outubro de 1941, quando os alemães ocuparam a cidade. Foram construídos mais dois campos de pouso e uma estação de hidroaviões as margens do Mar de Azov. No campo principal, chamado Mariupol I, foram erguidos dois hangares e alguns outros edifícios. Havia várias esquadrilhas alemãs e romenas com muitos aviões de caça e transporte, além de artilharia antiaérea, unidades de apoio e muito mais[6].

Mesmo com toda essa estrutura, o sargento Teodoru arranjou uma maneira de decolar seu JU-88 na tarde de 22 de julho de 1943. Segundo Dénes Bernád ele voou em direção sul/sudoeste sem levar mapas para evitar suspeitas. Guardou toda a rota na cabeça e não foi interceptado.

Um Presente de Hitler

Na década de 1930, em um tempo anterior ao radar e outros instrumentos de apoio ao voo, os pilotos civis voavam se orientando através de pontos geográficos ao longo da rota, como rios, montanhas, cidades e o que houvesse. Pode ser que o sargento Teodoru tenha utilizado sua experiência em rotas aéreas comerciais para realizar essa fuga.

Essa é apenas uma ideia da rota seguida pelo sargento Teodoru no comando do JU-88.

O certo é que ele atravessou o Mar de Azol, até a cidade de Novorossiysk, na costa russa do Mar Negro, seguindo em direção a Turquia, cujo território atravessou sem problemas. O piloto deve ter utilizado alta altitude e máxima velocidade, as melhores características daquele Junkers Ju-88 D-1, para cumprir sua rota. A ideia era chegar a cidade de Aleppo na Síria. Lá ele reabasteceria antes de partir para a etapa final de sua missão, em Beirute, no Líbano, que era então uma importante base Aliada para operações navais no Mediterrâneo[7].

Existem informações que o sargento Nicolae Teodoru percorreu o trajeto em cerca de duas horas, quando o tempo piorou e os ventos fizeram com que ele se aproximasse inadvertidamente da ilha de Chipre. Esse lugar abrigava importantes bases aéreas Aliadas e logo uma patrulha de quatro caças Hawker Hurricane IIB, da Força Aérea Real Britânica, composta pelos pilotos Thomas Barker Orford, Arnold Kenneth Asboe[8], Joseph Alfred Charles Pauley e H. M. Woodward, todos do Esquadrão Nº 127, com base em Nicósia, capital da ilha de Chipre, decolaram para interceptar o intruso. Por volta das 19:00 o avião romeno foi visto pelos britânicos[9].

Imagem ilustrativa de um caça Hurricane. Quatro aviões avião muito parecidos com esse escoltaram o JU-88 romeno até a ilha de Chipre – Fonte – https://military.wikia.org/wiki/Desert_Air_Force

O estranho piloto sinalizou para os caças Hurricane. Provavelmente Teodoru baixou os trens de aterrisagem, um sinal característico na aviação que aquele avião desejava pousar[10]. Como não houve resistência do Ju-88 e nem seu piloto fez algum esforço para escapar da patrulha, um Hurricane se posicionou a frente da estranha aeronave para mostrar o caminho e três ficaram atrás para evitar uma possível fuga, que enfim não aconteceu. O JU-88 com o emblema nacional romeno pousou tranquilamente na base britânica de Limassol, ao sul de Chipre[11]

Fabricação do JU-88 – Fonte – Bundesarchiv.

O piloto inimigo taxiou o avião, desligou seus motores, desceu calmamente da cabine e se apresentou como “um prisioneiro de guerra”, mas trazia aquele “prêmio” de maior importância e que ele era um “Presente do Fuhrer”[12]. De saída os britânicos ficaram extremamente satisfeitos ao descobrir que aquele era um dos aviões mais recentemente fabricados na Alemanha de Hitler. Tinha apenas 50 horas de voo e em sua placa estava gravado “Junho de 1943” como o mês de sua montagem na Junkers Flugzeug-und Motorenwerke AG, em Bernburg, no centro do país[13].

Ju-88 D-1 “Branco 1” caiu ileso nas mãos dos britânicos, depois do sargento Teodoru ter voado sem maiores problemas entre 1.300 e 1.400 quilômetros[14]. Relatos apontam que o piloto romeno Nicolae Teodoru, de 28 anos, foi considerado muito jovem pelos seus novos amigos e houve uma verdadeira festa na ilha de Chipre com a chegada daquele maravilhoso presente dos céus![15]

Foto do oficial Charles Sandford Wynne-Eyton – Fonte – https://www.bmmhs.org/the-letcombe-lion/

O piloto romeno passou informações sobre a Luftwaffe no sul da União Soviética, além do estado moral dos nazistas e ensinou o que podia sobre o JU-88 a um dos mais experientes pilotos britânicos do Esquadrão Nº 127, o comandante Charles Sandford Wynne-Eyton. Em pouco tempo a nave decolou de Limassol, voando em direção a um campo de pouso em Heliópolis, perto do Cairo, Egito[16].

Entrega aos Americanos

Houve um arranjo entre autoridades dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, para que o Junkers Ju-88 D-1 “Branco 1” ficasse com técnicos americanos para ser verdadeiramente dissecado e as informações conseguidas serem utilizadas a favor dos Aliados[17]. Não demorou e chegaram para ver o avião dois norte americanos, o major Warner H. Newby e o tenente G. W. Cook.

O major Newby era um experiente piloto, tendo sido lotado no 82º Esquadrão de Bombardeiros, onde realizou diversas missões de combate na África do Norte pilotando bimotores North American B-25 Mitchell. Desde fevereiro de 1943 Newby havia sido designado Diretor de Engenharia no 26º Grupo de Depósitos Aéreos em Deversoir, Egito[18]. Em relação ao tenente Cook, eu não consegui nenhuma informação sobre ele, mas creio que deveria trabalhar próximo ao major Newby. Inclusive os dois estavam prontos para embarcar em um avião de transporte para os Estados Unidos, onde gozariam de uma merecida licença. Mas agora o retorno exclusivamente para descanso teria de ser adiado e a razão seria levar para os Estados Unidos aquele bimotor tão diferente do B-25.

Texto do major Newby, que aparece na foto, publicado em janeiro de 1944, que conta essa aventura e a passagem por Natal.

Em um interessante relato para a revista Air Force – The Oficial Service Journal Of The U.S. Army Air Forces, edição de janeiro de 1944, o major Newby comentou que a primeira vez que ele e o tenente Cook viram o JU-88, os britânicos tinham feito uma nova pintura com manchas de azul, cinza e laranja. Além disso, apelidaram a aeronave de “Baksheesh”. Segundo Newby era uma palavra egípcia que significaria “Gorjeta”.

Newby e Cook souberam que seus aliados britânicos estavam apostando sobre aquele voo e a cotação estava em dois para um que o JU-88 não chegaria aos Estados Unidos. Mas os americanos eram experientes e já tinham percorrido a mesma rota que utilizariam para levar aquela máquina para casa[19].

Bombardeiros vários B-25 do 82º Esquadrão de Bombardeiros no Norte da África em 1942.

Entre 14 de julho e 2 de agosto de 1942, vários B-25 do 82º Esquadrão de Bombardeiros, do 12º Grupo de Bombardeiros, partiram da base de Morrison Field, em West Palm Beach, Flórida, atravessaram o Mar do Caribe e o norte da América do Sul, até chegarem a Natal. As aeronaves e as tripulações foram então preparadas para cruzar o Atlântico Sul. Devido à autonomia reduzida do B-25, todo o grupo realizou uma parada na ilha de Ascenção, uma pequena possessão inglesa no meio do oceano. Na outra parte do trajeto chegaram até a África, mais precisamente na cidade de Acra, capital da antiga colônia inglesa da Costa do Ouro, atual República de Gana. Depois voaram até o Sudão e, em seguida, tomaram rumo norte até o Egito. Em meados de agosto, todas as tripulações concluíram o trajeto sem uma única perda[20].

O piloto britânico Charles Sandford Wynne-Eyton transmitiu as informações e os ensinamentos que recebeu de Nicolae Teodoru aos oficiais americanos. Logo no primeiro voo aquela máquina revelou uma interessante característica. As hélices hidráulicas de três lâminas tinham o passo controlável, velocidade constante e girando sempre para a esquerda. Por conta do torque excessivo, o avião tinha tendência a virar na direção que as hélices giravam. Na opinião de Newby isso era um defeito de construção alemã, uma vez que nos aviões americanos B-25 as hélices giravam uma para cada lado, produzindo um melhor desempenho. Apesar disso o torque não o incomodou e o JU-88 decolou e voou com muita facilidade.

Preparação

Naturalmente, tudo no avião Junkers Ju-88 D-1 era em alemão: as leituras dos instrumentos, instruções sobre os aceleradores, controles gerais, mecanismos de trem de pouso, flaps, freios e ignição. Os dois americanos tinham de se familiarizar antes de decolarem sozinhos.

Desenho da cabine do JU-88, nesse caso com a visão do piloto.

O Ju-88 D-1 era uma aeronave movida por um par de motores V12 Junkers Jumo 211J, fornecendo 2.400 cavalos de potência. A aeronave tinha um alcance de 2.500 quilômetros e armamento defensivo de três metralhadoras MG 15 de calibre 7,92 milímetros. Entrou em serviço na Luftwaffe no verão de 1940 e, além da Romênia, também foi entregue para outros aliados nazistas, como a Croácia, Finlândia, Hungria e Itália[21]

Finalmente Newby e Cook levaram o pássaro para o campo para prepará-lo para o longo voo sobre a água. Seis mecânicos do 26º Grupo de Depósitos Aéreos foram selecionados por causa de suas aptidões mecânicas e habilidade em manter a boca fechada. Logo a tarefa se mostrou bem difícil. Havia muito pouca informação disponível na própria aeronave, mas dados úteis foram conseguidos em um manual entregue pelo romeno Teodoru e traduzido pelo pessoal da inteligência militar. Estes também forneceram dicas sobre o consumo de combustível, consumo de óleo e outras informações.

Tempos depois da deserção do sargento romeno, os americanos conseguiram colocar as mãos em outro JU-88, dessa vez na Itália.

Eles iniciaram uma completa revisão da máquina. Logo perceberam que a capacidade dos tanques de combustível do JU-88 não dava autonomia suficiente para uma travessia do Atlântico Sul utilizando a rota Acra – Ilha de Ascenção – Natal. Aí o jeito foi adaptar externamente dois tanques de combustíveis descartáveis, originários de caças bimotores Lockheed P-38 Lightning, que eram conectados ao sistema de combustível por meio de bombas “emprestadas” de um bombardeiro B-24 Liberator. 

Enquanto isso a equipe descobriu que era possível usar combustível, óleo e material de refrigeração dos motores produzidos nos Estados Unidos, cujas especificações eram equivalentes as da Alemanha. Todas as armas e as câmeras fotográficas foram removidas e enviadas em voos de carga. Também foram verificados equipamentos de emergência e colocados materiais de sobrevivência que proporcionavam condições deles sobreviverem até duas semanas no mar.

O Ju-88 D-1 preparado para cruzar o Atlântico.

Newby e Cook passaram horas estudando os instrumentos e dispositivos alemães. Para maior segurança um localizador de direção americano modelo ARN-7 foi instalado para ajudar na navegação de longo alcance ao longo da rota. Por razões de segurança pintaram a estrela da USAAF na parte inferior e superior das asas e nos lados da fuselagem. Além disso, grandes bandeiras americanas foram pintadas. Tentavam assim evitar que algum jovem e impetuoso piloto abatesse o JU-88 e seus aviadores em busca de uma vitória. Na sequência, uma semana antes da viagem, mensagens foram disparadas para as bases e unidades ao longo do percurso, informando para ficarem alertas quanto o estranho avião e não abrissem fogo com armas antiaéreas.

Chamando Atenção em Terra e no Ar

Finalmente em 8 de outubro de 1943 o Junkers Ju-88 D-1 estava pronto para seguir viagem desde o Egito até os Estados Unidos, com a distância de 10.400 milhas náuticas, ou 19.260 quilômetros, a serem percorridos em sete dias. As paradas para reabastecimento e descanso da tripulação foram feitas no Sudão, Nigéria, Costa do Ouro (Gana), Ilha da Ascensão no Oceano Atlântico, Brasil (Natal e Belém do Pará), Guiana Britânica (atual Guiana), Porto Rico e West Palm Beach na Flórida.

Base Aérea de Acra durante a Guerra. localizada na atual Gana, África, foi um dos destinos dos aviadores Aliados depois de partirem de Parnamirim

Carregavam uma carga completa de combustível, aproximadamente 50.000 litros, ou 1.300 galões. Newby percebeu no trajeto que os motores do avião de fabricação alemã estavam soltando consideravelmente mais fumaça do que ele estava acostumado em aviões americanos. Mas isso ele e Cook consideraram normal e não os preocupou, porque em combate tinham visto muitas aeronaves inimigas soltando essa mesma quantidade de fumaça de seus motores.

Eles seguiram em direção ao Sudão e realizaram duas paradas ainda no coração da África, todas rápidas, e uma parada para descanso noturno, em um local que o major Newby não informou no texto escrito em 1944, mas que provavelmente foi na Nigéria. Comentou que onde quer que eles pousassem todos se aglomeravam ao redor do JU-88 e até um major perguntou se o avião era um dos “nossos novos bombardeiros”. O certo é que em 9 de outubro, depois de um voo de uma hora, estavam em Acra, prontos para saltar sobre o Atlântico Sul.

Decolagem de um C-87. Fonte-Wikipédia.

Eles decidiram seguir um quadrimotor Consolidated C-87 Liberator Express, versão de carga e passageiros do bombardeiro B-24, que seguia para Natal. Era mais uma precaução para alcançar a Ilha da Ascensão, uma pedra vulcânica no meio do Atlântico, que tinha um tamanho de 9,5 por 12,8 quilômetros e que ficava a 2.500 quilômetros (1.350 milhas náuticas) da costa africana.

Não houve problemas na decolagem, mas logo um nevoeiro os fez perder o C-87 de vista. Nessa ocasião quase houve uma tragédia a bordo do JU-88. O major Newby contou que de repente sentiu um farfalhar alto de vento e o ar frio o atingiu no ombro. Olhou em volta e viu o tenente Cook assustado, parado, rígido de medo, olhando através da escotilha que tinha aberto acidentalmente e sem nenhum paraquedas. Ocorre que Cook, ao se deslocar dentro da cabine, inadvertidamente roçou contra a trava de segurança e a escotilha inferior da fuselagem abriu, com o oceano 3.000 metros lá embaixo. A única coisa que o salvou foi a posição dos seus pés no momento da abertura. Depois de lutar por alguns minutos com a escotilha, finalmente Cook a conseguiu fechar. Foi muita sorte!

Douglas A-20 Havoc.

Na sequência viram uma esquadrilha de Douglas A-20 Havoc que se dirigiam para África. Um deles saiu da formação e se aproximou do Ju-88, com acenos mútuos das tripulações. Meia hora depois um grupo de caças Bell P-39 Airacobra, vindos de Wideawake Field, a base aérea da Ilha da Ascensão, chegaram junto ao antigo avião romeno, em um deslize rápido, deixando trilhas de vapor e acompanhando o voo de Newby e Cook até a pequena ilha.

Grupo de caças Bell P-39 Airacobra, em Wideawake Field, Ilha da Ascensão.

No solo houve notícias infelizes. A gasolina existente na ilha tinha uma octanagem bem mais alta que as utilizadas no JU-88, mas não havia escolha. Os tanques foram abastecidos e parecia não haver problemas para os motores. Logo eles estavam no ar novamente, com destino à costa do Rio Grande do Norte.

Elogios a Natal e o Avião Preservado Até Hoje

O major Newby narrou que nessa última parte do voo o JU-88 se comportou perfeitamente e os motores “ronronavam”. Quando estavam a 740 quilômetros (400 milhas náuticas) da costa potiguar, dois cilindros do motor esquerdo explodiram e houve o mais barulho, com o motor cuspindo e falhando como “um desnutrido trator”. Mas o avião continuou firme e alguns minutos depois, para surpresa dos aviadores, o motor continuou funcionando sem muita perda de potência. Naquele momento eles não tinham ideia do que tinha acontecido, mas ficaram alertas e continuaram no curso.

Para o major Newby foi uma sensação “gloriosa” quando o nosso litoral apareceu. Já o Junkers Ju-88 D-1, apesar dos problemas pontuais e das apostas infames dos britânicos na África, estava provando sua capacidade. Ele havia cruzado o Atlântico e mostrou o seu valor, sendo o primeiro avião de combate alemão a fazer essa travessia. Mas com uma tripulação americana!

Quando Newby e Cook se aproximavam de Parnamirim Field ele aponta que “o campo era grande e as comunicações eram boas”, mas, devido ao tráfego de outras aeronaves que chegavam e partiam, eles tiveram que circular por uma hora até receber autorização para pousar. Nisso surgiu outro problema – O trem de pouso não desceu totalmente. As rodas chegaram a baixar até a metade. Newby afirma que eles realizaram várias tentativas de resolver o problema, mas ainda assim a engrenagem ficou presa. Foi quando experimentaram o seletor de emergência hidráulico para baixar as rodas. Ele afirma que a operação foi difícil, mas conseguiram. Enfim pousaram.

Os Aviadores passam dois dias em Parnamirim Field para concertar o problema no trem de pouso e o problema com as velas de ignição do motor, que havia ocasionado a falha quando se aproximavam de Natal. Sem muito esforço o Junkers Ju-88 D-1 se torna centro de atenções do pessoal americano estacionado na base.

Um comentário interessante do major Newby sobre Parnamirim Field e publicado em janeiro de 1944, é quando ele afirma que em Natal existia “um dos melhores clubes de oficiais em qualquer lugar”, além de “boa comida e boa bebida desde que deixaram Estados Unidos há quase um ano”. Essas afirmações ajudam a explicar uma quase total ausência de críticas de militares estrangeiros que passaram por Natal na Segunda Guerra. Logo o major Newby e o tenente Cook continuaram sua viagem sem maiores alterações.

Finalmente, em 14 de outubro, o batizado “Baksheesh” pousou na base de Wright Field, na cidade de Dayton, Ohio. Ali começou sua carreira na Divisão de Engenharia de Teste de Voo. Foi feito uma análise completa entre novembro de 1943 e março de 1944, antes de ir para o Arizona para mais testes. O enorme esforço necessário para trazer o Ju 88 para Dayton mostra até onde os Estados Unidos estavam dispostos a ir para colocar as mãos em aeronaves estrangeiras para análise e avaliação. 

O JU-88 D-1 que passou por Natal e Parnamirim Field está até hoje preservado no Museu Nacional da Força Aérea dos Estados Unidos, em um local próximo a Base Aérea de Wright-Patterson, em Dayton. Apesar de mais de 15.000 aeronaves do tipo JU-88 terem sido construídas, apenas dois desses interessantes aviões sobreviveram à guerra em condições completas. Um deles é o antigo avião levado por  Teodoru.

NOTAS————————————————————————————————————————————————————–


[1] Na época da deserção do sargento Teodoru, julho de 1943, a Romênia operava o JU-88 há apenas alguns meses. O país recebeu seu primeiro lote de 50 aeronaves, incluindo uma dezena de JU-88 D-1 de reconhecimento, na primeira metade de 1943, e suas tripulações foram treinadas na Ucrânia, por instrutores da Luftwaffe. Essas aeronaves eram parte de um esforço maior dos nazistas para aumentar a força aérea de seu parceiro de lutas contra a União Soviética na Frente Oriental. Ver https://www.thedrive.com/the-war-zone/37574/how-this-nazi-recon-plane-ended-up-being-tested-in-the-united-states-during-world-war-ii

[2] Depois que a maré da guerra se voltou contra a Alemanha e seus aliados, a Romênia foi bombardeada pelos norte-americanos partir de 1943, principalmente a área de Ploesti, onde havia uma grande produção petrolífera. Em 1944 a Romênia foi invadida pelos soviéticos. Com o apoio popular contra a participação da Romênia na guerra vacilante e as frentes romeno-alemãs entrando em colapso sob o ataque soviético, o rei Miguel da Romênia liderou um golpe de Estado que depôs o regime de Ion Antonescu e colocou a Romênia ao lado dos Aliados pelo resto da guerra. Antonescu  foi fuzilado em 1947. Apesar dessa associação tardia com o time vencedor a antiga Romênia, que eles denominam historicamente como “A Grande Romênia”, foi amplamente desmantelada, perdendo território para a Bulgária e a União Soviética, mas recuperando da Hungria as áreas da Transilvânia do Norte. Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Romania_in_World_War_II

[3] A estratégica região de Mariupol viu muita desgraça e sangue durante a Segunda Guerra Mundial. Primeiramente foi bombardeada pelos alemães e em 7 de outubro de 1941 a cidade foi ocupada por unidades do 3º Corpo Panzer, do 1º Grupo Wehrmacht Panzer (Grupo de Exércitos Sul). Com isso se iniciou a sua ocupação que durou 23 meses, até 10 de setembro de 1943. Durante esse tempo os nazistas mataram em Mariupol cerca de 10.000 civis e um número calculado em cerca de 50.000 pessoas foram levados de maneira forçada para a Alemanha. Cerca de 36.000 prisioneiros de guerra soviéticos morreram de fome e doenças em campos na região da cidade e entre os dias  20 e 21 de outubro de 1941, os ocupantes de Mariupol massacraram a população judaica. Durante a ocupação alemã a cidade de Mariupol foi várias vezes bombardeada pelos soviéticos, principalmente a noite. Mais recentemente, a partir de 2014, a cidade de Mariupol se viu novamente envolvida em um conflito armado. Dessa vez na chamada Guerra Civil no Leste da Ucrânia, igualmente referida como Guerra na Ucrânia, ou Rebelião pró-russa na Ucrânia, ou ainda a Guerra em Donbass. Trata-se de um conflito armado entre as forças separatistas das autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk e o governo ucraniano. Ainda em 2014 Mariupol foi tomada pelos separatistas, apoiados por russos. O governo ucraniano, contudo, começou uma grande ofensiva terrestre e em meados de junho desse mesmo ano Mariupol já estava sob controle das tropas da Ucrânia. Desde então, os rebeldes separatistas tentaram várias vezes retomar a cidade, a submetendo a bombardeios esporádicos de artilharia, mas Mariupol continua controlada pelas autoridades ucranianas. Esse um conflito armado ainda se encontra em andamento. Sobre essas questões ver –

https://uk.wikipedia.org/wiki/%D0%86%D1%81%D1%82%D0%BE%D1%80%D1%96%D1%8F_%D0%9C%D0%B0%D1%80%D1%96%D1%83%D0%BF%D0%BE%D0%BB%D1%8F e

https://www.terra.com.br/noticias/mundo/europa/mariupol-um-porto-estrategico-do-leste-da-ucrania,0ea428b61fcbb410VgnCLD200000b1bf46d0RCRD.html

[4] Existe a informação do historiador da aviação romeno Danut Vlad, que Teodoru era “incapaz de aceitar a disciplina militar”. Ver https://www.thedrive.com/the-war-zone/37574/how-this-nazi-recon-plane-ended-up-being-tested-in-the-united-states-during-world-war-ii

[5] O canadense Dénes Bérnad se especializou no estudo da aviação militar romena e do Leste Europeu durante a 2ª Guerra Mundial nos últimos 25 anos. Engenheiro mecânico de profissão é também membro fundador da Associação para a Promoção da História da Aviação Romena (Bucareste, Romênia) e da Associação Húngara de História da Aviação (Budapeste, Hungria). https://www.amazon.com/Rumanian-Aces-World-War-2/dp/184176535X

[6] Sobre a base aérea e campos de pouso dos alemães em Mariupol, Ucrânia, ver https://www.ww2.dk/Airfields%20-%20Russia%20and%20Ukraine.pdf

[7] Ver https://www.thedrive.com/the-war-zone/37574/how-this-nazi-recon-plane-ended-up-being-tested-in-the-united-states-during-world-war-ii

[8] Vejam a biografia do piloto Arnold Kenneth Asboe, que era australiano –https://www.spitfireassociation.com/single_crew.php?bio_id=ASBOE-Arnold-Kenneth

[9] Ver Air Force – The Oficial Service Journal Of The U.S. Army Air Forces, Vol. 27, January 1944, New York, USA. Pág. 12.

[10] Ver http://www.modellversium.de/galerie/9-flugzeuge-ww2/11596-junkers-ju-88-d-1-trop-hasegawa.html

[11] Ver http://forum.12oclockhigh.net/archive/index.php?t-13755.html

[12] https://www.thedrive.com/the-war-zone/37574/how-this-nazi-recon-plane-ended-up-being-tested-in-the-united-states-during-world-war-ii

[13] Ver Air Force – The Oficial Service Journal Of The U.S. Army Air Forces, Vol. 27, January 1944, New York, USA. Pág. 12.

[14] Ver http://www.livingwarbirds.com/junkers-ju-88.php

[15] Ver –  http://ww2talk.com/index.php?threads/ju-88-defects-on-9th-may-1943.38830/

[16] O que aconteceu com Nicolae Teodoru não está claro, mas existe a informação que um indivíduo com esse nome aparece novamente em um relatório da CIA datado de abril de 1953, sobre a Força Aérea Romena do pós-guerra. Este documento identifica, a partir de 1949, esse indivíduo em questão como comandante do 6º Regimento de Bombardeiros no Aeródromo de Brasov e que a unidade foi estabelecida com pilotos com “experiência em múltiplos motores”. Isso pode sugerir que Teodoru voltou para a Romênia e continuou sua carreira na Força Aérea da era comunista. Nada mais encontrei sobre o piloto romeno Nicolae Teodoru. Ver – https://www.thedrive.com/the-war-zone/37574/how-this-nazi-recon-plane-ended-up-being-tested-in-the-united-states-during-world-war-ii

[17] Isso aconteceu por que no início daquele verão, os britânicos receberam um JU-88 configurado como caça noturno,  uma variante mais avançada, que pousou na Escócia como resultado de uma deserção dentro da Luftwaffe. Ver – http://www.livingwarbirds.com/junkers-ju-88.php

[18] Ver – https://www.proxibid.com/Firearms-Military-Artifacts/Military-Artifacts/MAJOR-GENERAL-W-E-NEWBY-WWII-A2-FLIGHT-JACKET/lotInformation/48990326

[19] Ver https://www.proxibid.com/Firearms-Military-Artifacts/Military-Artifacts/MAJOR-GENERAL-W-E-NEWBY-WWII-A2-FLIGHT-JACKET/lotInformation/48990326

[20] Ver https://en.wikipedia.org/wiki/12th_Operations_Group#cite_ref-TB286_23-3

[21] Ver https://www.thedrive.com/the-war-zone/37574/how-this-nazi-recon-plane-ended-up-being-tested-in-the-united-states-during-world-war-ii

QUANDO OS PODEROSOS BOMBARDEIROS B-29 PASSARAM POR NATAL

Grupo de nove bombardeiros B-29 em Parnamirim Field em 1944. Provavelmente Natal foi o único local da América do sul a receber esse tipo de aeronave.

Sem dúvida, a aeronave mais revolucionária e cara produzida durante a Segunda Guerra Mundial foi o Boeing B-29. Vários foram os motivos pelos quais os B-29 passaram por Natal, no Nordeste do Brasil, para atacar o distante Japão.

Autor: Rostand Medeiros = https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

– Agradecimentos especiais ao meu amigo João Baptista Rosa Filho pela ajuda no fornecimento de informações adicionais para este artigo.

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Em 1942, nunca houve qualquer dúvida entre as mais altas autoridades políticas e militares dos Estados Unidos de que o Império Japonês, a nação inimiga que realizou o ataque a Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941, tinha de ser bombardeado implacavelmente. Esta situação sempre foi vista como natural; no entanto, os métodos utilizados para alcançá-lo têm sido questionados [1].

Não faltaram modelos de bombardeiros pesados produzidos nos EUA. O problema era que, naquele momento, a Alemanha nazista e os territórios ocupados por aquela nação também precisavam ser derrotados. No caso do Japão, o seu centro político e económico estava localizado muito mais longe do alcance dos bombardeiros Boeing B-17 Flying Fortress e Consolidated B-24 Liberator.

Mas em 21 de setembro de 1942, os Estados Unidos, grande potência industrial, apresentaram uma solução para o caso. Naquele dia, o protótipo XB-29 decolou da cidade de Seattle, no noroeste dos Estados Unidos.

Fábrica da Boeing, em Wichita, Kansas e a planta de fabricação dos B-29.

Logo, a grande aeronave quadrimotora foi chamada de B-29 Superfortress. Era o maior bombardeiro que o mundo já tinha visto naquela época. O seu tamanho e sofisticação, na verdade a arrogância da sua própria criação, permaneceram como monumentos à riqueza e engenhosidade americana. Cada avião custa mais de meio milhão de dólares, o que é cinco vezes o preço de um bombardeiro quadrimotor britânico Avro Lancaster. O projeto B-29 foi considerado o mais caro de toda a Segunda Guerra Mundial, custando aproximadamente três bilhões de dólares

A construção de cada aeronave quadrimotor exigiu aproximadamente 12.250 kg de chapa de alumínio (27.000 libras), mais de 454 kg de cobre (1.000 libras), 600.000 rebites, 15.290 metros de fiação (9,5 milhas) e 3.218 metros de tubulação. (2 milhas). A aeronave foi o primeiro bombardeiro pressurizado do mundo, equipado com uma tripulação de doze homens e tinha um raio operacional impressionante de 5.500 km (3.250 milhas). Muito mais do que os aproximadamente 3.300 km (2.050 milhas) que o B-17 e o B-24 poderiam percorrer [2]. Possuía uma forte bateria de armamento defensivo, composta por doze metralhadoras calibre 12,7 mm em torres remotas, além de um canhão de 20 mm na cauda e controle central de fogo. Um B-29 totalmente carregado pesava mais de sessenta toneladas [3].

A Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (USAAF) exigia que a nova aeronave tivesse velocidade superior a 550 km/h, por isso o B-29 foi fabricado com uma asa altamente alongada e montada centralmente na seção circular da fuselagem [4]. A aeronave era equipada com quatro motores Wright R-3350 Duplex Cyclone, avaliados em 2.200 a 3.700 hp (1.640 a 2.760 kW), dependendo do modelo [5]. Era movido a gasolina de 100 octanas e possuía dois turbocompressores para cada motor, com o objetivo de melhorar o desempenho do bombardeiro em grandes altitudes [6].

À medida que o projeto B-29 avançava, qualquer pessoa que visitasse o Dugway Proving Ground, localizado a cerca de 145 quilômetros a sudoeste de Salt Lake City, no estado de Utah, no oeste dos EUA, ficaria surpresa ao descobrir uma autêntica vila japonesa.

O local contava com duas dezenas de casas de madeira fielmente reproduzidas, cada uma decorada com os tradicionais tatames (tapetes de palha espalhados pelo chão). Em 1943, esta comunidade abandonada foi destruída pela primeira vez por bombardeiros, demonstrando a facilidade e o impacto devastador da destruição que mais tarde seria experimentado pelas cidades do Japão. As casas desta comunidade foram construídas com materiais frágeis, o que as tornou particularmente vulneráveis.[7]

Na mesma época, o pessoal aéreo identificou oito alvos industriais prioritários no Japão, na Manchúria (China) e na Coreia. Um estudo de outubro de 1943 observou que apenas vinte cidades japonesas abrigavam 22% de toda a população do país. Posteriormente foi identificado que se apenas 30% desses locais fossem destruídos, 20% da produção japonesa seria perdida, e o número de vítimas poderia chegar a 560 mil pessoas em um curto período de tempo [8].

Os americanos tinham os seus objetivos, mas o extenso desenvolvimento necessário para o B-29 atrasou a sua entrada em serviço até meados de 1943. Concluído o projeto, quatro fábricas de montagem principais foram construídas por três empresas distintas, amplamente dispersas por todo o país. [9].

Para conseguir esse feito, existia o maior projeto de subcontratação do mundo naquela época. Uma vasta rede foi estabelecida para fornecer materiais, equipamentos e programas de treinamento civil e militar [10].

O Boeing B-29 Superfortress poderia realmente ser considerado uma aeronave excepcional. Nenhum outro grande modelo de caça da Segunda Guerra Mundial, independentemente do tamanho, teve um intervalo tão curto entre o seu primeiro voo e a sua primeira aparição em território inimigo: apenas 20 meses [11].

Mas antes disso alguém teria de deixar aqueles aviões o mais perto possível do Japão. Mas por onde?

Uma Mentira no Caminho da Guerra

Em 1º de junho de 1943, a 58ª Ala de Bombardeio (58º BW) foi criada e ativada na cidade de Marietta, Geórgia. Uma grande unidade que abrigava cinco grupos de bombardeio era o Grupo de Bombardeio ou BG. Essas cinco unidades eram o 40º Grupo de Bombardeio, 444º Grupo de Bombardeio, 462º Grupo de Bombardeio, 468º Grupo de Bombardeio e 472º Grupo de Bombardeio, que tinham bases de treinamento principalmente na região do Kansas. Por sua vez, cada um desses grupos de bombardeio contava com três esquadrões, com uma alocação média de 20 a 30 aeronaves B-29 por esquadrão.

Mais tarde, foram estabelecidas Alas de Bombardeio (BW) adicionais, cada uma com seu Grupo de Bombardeio (BG) correspondente. A ideia inicial era colocar todas essas máquinas e seus operadores na área do teatro de guerra conhecida como CBI, ou China-Birmânia-Índia, a que os americanos se referiam. Para organizar esta força crescente, o XX Comando de Bombardeiros foi criado em 28 de março de 1944. Estabeleceu-se na cidade de Kharagpur, na Índia, e foi liderado pelo Major General Kenneth B. Wolfe. Os B-29 utilizaram campos de aviação pré-existentes em Chakulia, Piardoba, Dudkhundi e na própria Kharagpur. Todas essas bases estavam localizadas em Bengala do Sul e próximas às instalações portuárias de Calcutá. As bases B-29 na China estavam localizadas em quatro locais na área de Chengdu, especificamente em Kwanghan, Kuinglai, Hsinching e Pengshan[14].

Mapa que mostra a área de atuação das B-29 para atacar o Japão a partir de bases chineses

A ofensiva do B-29 contra o Japão foi chamada de Operação Matterhorn. Esta operação envolveu o planeamento das rotas de envio dos B-29 para a Índia e a China, bem como a determinação da utilização de bases de apoio nestes dois países e a seleção dos alvos a serem atacados no Japão [15].

Enquanto o B-29 e a sua estrutura de apoio e comando eram criados, os Chefes de Estado-Maior decidiram não enviar esta aeronave para combate na Europa. Para o alto comando, a utilização do B-29 contra a Alemanha privaria os Estados Unidos do elemento surpresa contra o Japão [16].

Americanos e ingleses apreciando uma B-29 na Inglaterra.

Para corroborar esse plano, no início de março de 1944, um B-29 com número de série 41-36963, um dos primeiros a ser construído, partiu de Salina, no Kansas, e voou para a Flórida. Decolou à noite sob ordens secretas. Inicialmente, voou durante uma hora sobre o Oceano Atlântico em direção ao sul. Em seguida, o piloto mudou de rumo e voou para o norte até Gander Lake, localizado na ilha de Newfoundland, onde pousou na Base Aérea de Gander, Royal Canadian Air Force (RCAF Station Gander) [17]. De lá, o “963” voou sem escalas para uma base no Reino Unido. A ideia era que pessoal técnico e tático das Forças Aéreas do Exército dos Estados Unidos na Europa avaliasse a máquina. Nas duas semanas seguintes, mil cidadãos, indivíduos com papéis cruciais na guerra, inspecionaram o B-29 “963” em duas bases aéreas. Na realidade, tudo isto foi uma farsa – uma tentativa de enganar a inteligência alemã fazendo-a acreditar que o B-29 estaria estacionado no Reino Unido e teria como alvo o império de Hitler [18].

O primeiro B-29 a chegar à Índia foi pilotado pelo Coronel Leonard “Jake” Harmon, comandante do 58º Bomb Wing, que decolou da Base Smoky Hill, no Kansas, em 26 de março de 1944. Este B-29, com o número de série 42-6331, chegou a Chakulia, leste da Índia, sete dias depois e foi entregue ao 40º Grupo de Bombardeio.

O primeiro B-29 a chegar a Índia.

O autor deste texto imaginou então que o primeiro B-29 utilizaria a rota que passava por Natal, atravessava o Atlântico Sul e rumava para leste. Mas parece que a rota por Natal não foi utilizada nas etapas iniciais desta operação.

De acordo com o escritor americano Robert A. Mann, autor do livro “B-29 Superfortress-Chronology-1934-1960”, onze B-29 deixaram a Base Aérea de Pratt, no Kansas, desde 1º de abril de 1944. Eles então pousaram em Presque. Base insular, no estado do Maine, na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, de onde seguiram para Newfoundland e desembarcaram na base de Gander.[19] Depois de reabastecer e preparar suas tripulações, os B-29 voaram através do Oceano Atlântico até a Estação 10 da USAAF no Aeroporto de Menara, na ensolarada Marrakech, Marrocos. A viagem continuou com um desembarque no Cairo, no Egito, para finalmente fazer a última etapa até Chakulia, na Índia.

Outras aeronaves continuaram a utilizar esta rota, mas não demorou muito para que um B-29, número 42-6350, pertencente ao 462º Grupo de Bombardeio, sofresse um acidente em Marraquexe. Não houve vítimas, mas houve perda total do avião [20].

O B-29 que iluminou a véspera de Natal e seu sobrevivente

Talvez pelo desgaste das tripulações devido à longa travessia do Atlântico, ou das máquinas, ou do tempo de voo, ou das condições meteorológicas, em algum momento os B-29 começaram a sair do Kansas com destino a Natal.

Não encontrei nenhuma informação adicional que indicasse o início exato desta passagem, a rota correta utilizada ou a quantidade de aviões presentes. Mas através do relatório do médico militar George A. Johannessen, entregue em 23 de agosto de 2007 a pesquisadores da Rutgers School of Arts and Sciences, da Rutgers University, em New Brunswick, New Jersey, Estados Unidos, temos a informação de que “o primeiro Os B-29 vieram para o Natal.” Dr. Johannessen se perguntou: “Por que eles viriam no Natal?” [21]

Ficha do 1º Tenente Austin J. Peek, piloto da B-29 que caiu em Natal em 10 de agosto de 1944.

Essa pergunta do Dr. Johannessen é ainda mais surpreendente, considerando que no mesmo relatório ele afirma que Natal era a principal rota dos aviões que partiam dos Estados Unidos. Além disso, durante o inverno, serviu de rota aérea para os aviões da Oitava Força Aérea, sediada na Inglaterra. Ele também comentou que no início do conflito passaram por Natal aviões com destino à África Ocidental, Sicília, Itália, China, Birmânia (atual Mianmar) e Índia.

Foto creditada como sendo do 1º Tenente Austin J. Peek,.

O médico informou que os B-29 não pousaram em Belém e seguiam diretamente para Natal. Ele simplesmente não comentou de onde eles vieram. E se esses aviões pousassem em Miami ou fizessem escala na Base Aérea de Waller, na ilha de Trinidad (atual Trinidad e Tobago)? Devo-lhe!

Mas continuaram chegando em Natal, única cidade da América do Sul que recebeu os B-29 a caminho do Japão, o código que Natal recebeu como destino foi UJAW – UNIFORM, JULIET, ALFA, WHISKIE. Sem dúvida um código criado para aparecer na documentação e ser utilizado via rádio [22].

O copiloto 2º Tenente Willard R. Heintzelman, no seu casamento.

Em 10 de agosto de 1944, um B-29 caiu após decolar do Campo de Parnamirim. Novamente, através da história do Dr. Johannessen, temos alguns detalhes deste terrível acidente em que houve apenas um sobrevivente.

O que sabemos sobre esta aeronave é que se tratava de um modelo Boeing B-29-30-BW Superfortress, número 42-24482. Foi entregue à USAAF em 24 de maio de 1944, na fábrica da Boeing em Wichita, Kansas [23]. A tripulação era composta por dez pessoas. Eles eram o 1º Ten Austin J. Peek, piloto, 2º Ten Willard R. Heintzelman; co-piloto, 2º Ten John F. O’Neill; navegador, 2º Ten Leroy Judson; bombardeiro, 2º Ten Dale E. Shillinger; engenheiro. Of Flight, o terceiro sargento. Harold R. Brown era o operador de rádio, o sargento Kurt F. Seeler serviu como operador de radar, o cabo Anthony A. Cobbino foi o artilheiro do lado esquerdo, o cabo Walter Roy Newcomb foi o artilheiro do lado direito e o cabo David C. Prendiz serviu como o artilheiro de cauda.

O 2º Tenente Willard R. Heintzelman em traje de voo contra o frio.

Segundo o Dr. Johannessen, o acidente ocorreu por volta das dez horas da noite de quinta-feira, 10 de agosto. O B-29 decolou para cruzar o Atlântico, mas infelizmente o avião caiu a aproximadamente 5,5 quilômetros da pista do campo de Parnamirim, a poucos quilômetros da praia de Ponta Negra. Quando este B-29 se preparava para atravessar o oceano, a sua queda causou uma enorme explosão, alimentada pelos quase 31.000 litros de combustível de 100 octanas que transportava. Dr. Johannessen testemunhou este evento e afirmou que “todo o céu se iluminou” [24].

Segundo o médico, o navegador John F. O’Neill de alguma forma conseguiu sair do avião e pousou em alguns arbustos, resultando em um pequeno ferimento no dedo mínimo. Em seu relatório, o Dr. Johannessen não comentou o uso de pára-quedas pelo navegador.

Cabo David C. Prendiz, artilheiro de cauda da B-29 sinistrada.

Mesmo sem ter todos os dados disponíveis, ao discutir o caso por telefone com nosso amigo João Baptista Rosa Filho, conhecido como J. B. Rosa Filho acredita que o acidente da aeronave ocorreu devido a um incêndio em um dos motores do B-29. Isso pode explicar por que o B-29 perdeu potência e caiu.

Esse nosso amigo é da linda cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Atua no setor de aviação civil há 33 anos e é piloto privado. Foi piloto de testes da empresa gaúcha Aeromot Aeronaves e Motores, trabalhou como mecânico na extinta companhia aérea Varig e também escreve livros sobre a Segunda Guerra Mundial. Para este profissional experiente e experiente, o que aconteceu no B-29 deve ter sido extremamente grave e repentino, pois apenas deu ao navegador O’Neill tempo suficiente para se salvar.

Esquema mostrando as posições dos tripulantes de uma B-29.

J. B. Rosa Filho acredita que o piloto Austin J. Peek e o copiloto Willard R. Heintzelman tentaram recuperar o controle da aeronave para fazer um pouso de emergência ou estabelecer uma altitude adequada para que todos saltassem de paraquedas com segurança. Mas o avião provavelmente afundou rapidamente, já que apenas o navegador, O’Neill, conseguiu se salvar. O amigo não tem dúvidas de que este sobrevivente usou pára-quedas porque as velocidades mais baixas de um B-29, sem perda de sustentação, eram em torno de 150 km/h. O impacto de uma pessoa contra alguns arbustos naquela velocidade certamente não seria significativo o suficiente. Isso não afeta apenas o dedo mínimo.

A saída bem-sucedida do navegador do avião pode ser atribuída à sua posição sentada na cabine dianteira. Sua estação de trabalho estava localizada logo atrás do piloto, proporcionando-lhe uma visão para a parte traseira do avião e para a esquerda, além de acesso a uma escotilha de evacuação.

Configurações de escape de uma B-29.

Seguindo as instruções de nosso amigo J. B. Rosa Filho, possivelmente John F. O’Neill, notou que um dos motores estava pegando fogo e percebeu que o B-29 estava em perigo. Depois, independentemente de ter recebido ordem para fazê-lo, ele desamarrou o cinto de segurança, abriu a porta e entrou rapidamente no corredor para salvar sua vida. O Grande Arquiteto do Universo completou o quadro para facilitar seu salto, disponibilizando algumas mangabeiras no local de seu pouso [25].

Mesmo com a ajuda inestimável de um experiente profissional da aviação, como J. B. Rosa Filho, é claro, tudo que escrevo sobre esse acidente é especulativo. Mas o certo é que naquela noite, em meio aos céus de Natal, John F. O’Neill foi um homem de muita sorte!

B-29 em Chamas.

Sabemos que houve relatos de muitas pessoas em Natal que observaram um forte clarão no céu durante a noite. Mas vale destacar que houve outros casos de acidentes e destruição de aeronaves na região do campo de Parnamirim.

Paulo Pinheiro de Viveiros comentou em seu livro “História da Aviação no Rio Grande do Norte” que “Toda a cidade ficou surpresa quando, às 21h do dia 6 de fevereiro de 1942, um grande clarão vermelho iluminou repentinamente o céu, partindo da zona sul , perto do Atlântico” [26].

Acidente da B-17 em Parnamirim Field em 1942.

A aeronave em questão era um B-17, que, assim como o B-29 em agosto de 1944, caiu logo após a decolagem. Era um B-17E, numerado 41-2482. O avião estava totalmente carregado com gasolina e foi completamente destruído. Nove tripulantes morreram e todos foram sepultados no cemitério do Alecrim.

Desaparecimento no Atlântico

Exatamente um mês e oito dias após o acidente, outro B-29 foi perdido. Ele saiu de Natal e simplesmente desapareceu no Oceano Atlântico.

A aeronave era um Martin-Omaha B-29-1-MO Superfortress, numerado 42-65203, construído sob licença pela Glenn L. Martin Company de Omaha, Nebraska, e entregue à USAAF em 2 de junho de 1944. Partiu de chegou aos Estados Unidos em 24 de agosto de 1944 e desapareceu em 18 de setembro. O avião seguia para o aeroporto de Accra, capital da então colônia britânica da Costa do Ouro (atual República de Gana), na África Ocidental, após decolar de Natal.

Documento oficial da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (MACR 8525), sobre o desaparecimento da B-29 que decolou de Natal em setembro de 1944.

Segundo o relatório oficial, este B-29 caiu no mar a 2.250 quilômetros (1.400 milhas) de Natal, e toda a tripulação de dez homens desapareceu. Eles eram o primeiro tenente Hugh T. Roberts, piloto; 2º Ten John T. Kirby, co-piloto; 2º Ten LaVerne Bebermeyer, navegador; 2º Ten Paul Clyde Oberg, engenheiro de voo; 2º Ten Roxy D. Menta, bombardeiro; Segundo Tenente David Maas, Operador Central de Controle de Incêndios – CFC; Sargento Conrad I. Bruflat, artilheiro; Cabo James Husser, artilheiro esquerdo; Cabo James Woodie Day Jr., operador de rádio; e cabo John G. Giannios, artilheiro direito.

Ao examinar o documento que faz referência a este desastre (MACR 8525), descobri as seguintes informações sobre as condições meteorológicas naquele dia e naquela área específica. “As nuvens cumulus são normalmente dispersas ou quebradas, com seus picos a 8.000 pés. Os ventos em nível de vôo variam entre 50° e 100°, com velocidades variando de 14 a 25 nós, e uma média de 16 nós.”

B-29 na água e seus tripulantes em botes salva-vidas.

Recorrerei mais uma vez à experiência do meu amigo J. B. Rosa Filho que me informou que as condições climáticas apresentadas não seriam problemáticas para um avião como o B-29 tentar um pouso na água. O avião media 30,18 metros de comprimento, 43,05 metros de envergadura, 8,46 metros de altura e tinha área de asa de 161,3 metros quadrados.

O amigo João Baptista Rosa Filho, que muito ajudou na elaboração desse artigo, com os seus conhecimentos sobre aviação, fruto de 33 anos de bons trabalhos nessa área.

Existem vários relatos e fotografias que mostram aeronaves B-29 que caíram no mar, mas permaneceram parcialmente flutuando, permitindo às suas tripulações um tempo valioso para escapar em botes salva-vidas. Mas para que isso acontecesse, os pilotos teriam que pousar com sucesso o grande avião na água, sem tombar, e garantir que a integridade da aeronave fosse mantida. Porém, J. B. Rosa Filho lembra que pousar na água exige certo nível de experiência e treinamento por parte da tripulação. No caso do B-29 com número de série 42-65203, não está claro se o conhecimento do piloto e do copiloto poderia ter ajudado nesta situação.

2º Tenente LaVerne Bebermeyer, navegador da B-29 que desapareceu no mar.

No caso desta aeronave, é altamente provável que tenha sofrido uma falha mecânica grave enquanto estava no ar, resultando em danos tão extensos que não houve oportunidade de tomar qualquer ação. Outra ideia é que a tripulação cometeu um erro ao submergir a máquina na água.

Além disso, as autoridades americanas dispunham de informações tão limitadas sobre este acidente que aparentemente não estavam reunidas as condições para uma operação de busca e salvamento. Se essas buscas ocorreram por acaso, não há um único comentário, muito menos uma vírgula, indicando seu início e fim, ou seus resultados.

2º Tenente Paul Clyde Oberg, engenheiro de voo.

Embora outros relatórios do tipo MACR apresentem uma enorme quantidade de informações sobre aeronaves danificadas ou desaparecidas, o caso do B-29 42-65203 é uma exceção. Não se sabe se houve algum contato de rádio, pedido de socorro ou se algum barco ou avião na área relatou ter visto coletes salva-vidas, peças de aeronaves ou corpos. Absolutamente nada!

Cabo James Husser, artilheiro esquerdo da B-29.

Este B-29 pertencia ao 462º Grupo de Bombardeio (BG), e seus dez tripulantes foram declarados mortos em 27 de outubro de 1948.

Problemas

Pode parecer que estes dois acidentes relatados indiquem que a rota através do Oceano Atlântico para a Índia e a China representava problemas para as aeronaves B-29. Mas enquanto pesquisava este tópico, descobri que a utilização das rotas de transporte já estabelecidas para o Leste por estes aviões foi altamente bem sucedida.

Em seu livro “B-29 Superfortress-Chronology-1934-1960”, Robert A. Mann destaca que ocorreram apenas sete acidentes na rota dos Estados Unidos para a Índia entre 2 de abril (a chegada do primeiro B-29 na Índia) e 18 de setembro de 1944 (quando o B-29 29 que saía de Natal desapareceu no Atlântico). Nada menos que 163 destes bombardeiros pesados conseguiram pousar com segurança em solo indiano.[28]

Trabalho de abastecimento de uma B-29.

Nesta lista informativa, o autor indica o número de aeronaves envolvidas, os esquadrões a que pertenciam e ainda o nome que as tripulações deram a essas aeronaves [29]. Infelizmente, o autor não comentou as rotas seguidas por esses B-29. No entanto, eles relataram que durante este período, houve vários problemas quando essas aeronaves estavam estacionadas na Índia ou utilizando bases na China para atacar o Japão. O autor observa que nesse período, 52 aeronaves B-29 foram perdidas ou gravemente danificadas, resultando em diversas mortes.

Ao contrário dos bombardeiros pesados americanos que operavam na Europa, cujas bases estavam localizadas na Grã-Bretanha e na Itália e, portanto, próximas do território inimigo, os B-29 baseados na Índia e na China estavam mais distantes do Japão. Além disso, os bombardeiros na Europa tinham uma infra-estrutura de apoio mais organizada e unida. No Oriente, a situação era muito mais complicada. Um exemplo: vários B-29 foram convertidos em aviões de transporte porque, para lançar ataques ao Japão a partir de bases chinesas, os americanos tinham de transportar combustível, bombas e outros fornecimentos necessários da Índia. As despesas foram astronômicas.

Chineses nivelando uma das pistas de pouso e decolagem dos B-29.

Na China, os B-29 voaram a partir de quatro bases recém-criadas, construídas por milhares de trabalhadores chineses que montaram tudo manualmente. As pistas de decolagem foram construídas com brita e transportadas com o mínimo de maquinário. O nivelamento dos trilhos foi feito com enormes rolos de pedra, puxados por vários homens e mulheres. Infelizmente, centenas de trabalhadores chineses perderam a vida em acidentes durante este processo. Eram locais onde as estruturas dificultavam a manutenção, decolagens e pousos das aeronaves. A acrescentar a este desafio está o facto de as rotas aéreas que ligam a Índia e a China passarem sobre as montanhas do Himalaia, que são as mais altas do mundo e frequentemente enfrentam condições climáticas severas.[30]

Max Hastings observa em “Retribution: The Battle for Japan, 1944-45” que o transporte aéreo para Kunming, a capital e maior cidade da província de Yunnan, no norte da China, foi considerada uma das missões mais perigosas e impopulares da Segunda Guerra Mundial. Esta missão resultou em uma perda cumulativa de 450 aeronaves. A eficiência e o moral da tripulação eram notoriamente baixos. Os aviadores que sobreviveram a acidentes de avião tiveram de enfrentar algumas das regiões mais remotas e indomadas do mundo, habitadas por povos indígenas que ocasionalmente poupavam as suas vidas, mas sempre confiscavam os seus pertences.

Hastings acredita que os ataques iniciais do B-29 no Leste foram uma “farsa”. Segundo ele, a maior ameaça à sobrevivência das tripulações não eram os caças e canhões antiaéreos inimigos, mas os próprios aviões. Como disse um comandante, seu B-29 tinha “tantos insetos quanto o departamento de entomologia do Smithsonian Institution em Washington”. A hidráulica, a eletricidade, as torres de metralhadoras e canhões, e especialmente as usinas de energia, foram consideradas altamente não confiáveis.

Motor Curtis Wright R-3350 preservado em um museu nos Estados Unidos.

Os quatro motores Curtis Wright R-3350 eram “o pesadelo de um mecânico”. Devido a uma tendência alarmante de superaquecimento dos cilindros traseiros, em parte causada pela folga mínima entre os defletores dos cilindros e a carenagem, os motores estavam sempre propensos a pegar fogo durante o vôo. Descobriu-se também que esses motores têm uma tendência adicional de ingerir suas próprias válvulas. Além disso, as partes de magnésio foram queimadas e derretidas.

Um dos motores da famosa Cabine da B-29 “Enola Gay”, que em 6 de agosto de 1945 lançou uma bomba atômica sobre a cidade japonesa de Hiroshima. Foto realizada nos Estados Unidos pelo amigo Ricardo Argm, de Recife.

Devido ao alto teor de magnésio na liga do cárter, podem ocorrer incêndios no motor, às vezes queimando a uma temperatura de aproximadamente 3.100°C (5.600°F). Os motores permaneceram temperamentais, e os problemas de superaquecimento, que não foram totalmente resolvidos, eram muitas vezes tão graves que a longarina principal poderia queimar em questão de segundos, levando a uma falha catastrófica da asa.

O piloto Jack Caldwell registrou que “o avião sempre parecia estar tensionando cada rebite a mais de 25.000 pés”. Somando-se a todos os problemas dos B-29 estavam a inexperiência e as deficiências de suas tripulações. A USAAF reconheceu que os desafios no treinamento de tripulações para pilotar este “navio de guerra dos céus” eram monumentais.

Foto do ataque a Yawata.

E as missões tornaram-se difíceis. Em 19 de agosto de 1944, 71 aeronaves B-29 foram preparadas para bombardear a usina siderúrgica de Yawata, na ilha de Kyushu, no Japão. 61 aviões voaram durante o dia e 10 voaram durante a noite. Cinco B-29 foram destruídos pela ação inimiga, dois caíram antes ou durante a decolagem e mais oito foram perdidos devido a falhas técnicas. Apenas 112 toneladas de bombas foram entregues, resultando na perda de 7,5 milhões de dólares em aeronaves e suas valiosas tripulações.[32]

A B-29 Enola Gay, fotografada nos Estados Unidos pelo amigo Ricardo Argm, de Recife.

Este esforço monumental permitiu aos B-29 lançar ataques ao Japão a partir de fora da China, embora com riscos significativos e resultados mínimos. A USAAF ficou incomodada com a enorme quantidade de publicidade positiva dada aos novos bombardeiros gigantes nos Estados Unidos, pois cativou a imaginação do público. Os comandantes sabiam quão pouco os aviões estavam realmente realizando.[33]

Mais Próximo Para o Final

Embora as rotas através do Oceano Atlântico, fosse através de Natal ou da Terra Nova, fossem seguras, as distâncias do Kansas à Índia eram enormes: entre 16.000 e 17.000 quilómetros. A isto somaram-se as perigosas rotas aéreas entre a Índia e a China, com as montanhas do Himalaia no meio, além dos perigos de enfrentar extremistas japoneses no seu país. O custo foi extremamente elevado em termos de combustível, aeronaves e, mais importante, vidas humanas. Logo, o comando americano ordenou que os famosos “fuzileiros navais” desembarcassem nas ilhas de Saipan, Guam e Tinian entre junho e julho de 1944. Essas ilhas faziam parte do grupo conhecido como Marianas.

Várias B-29 em uma base aérea nas Ilhas Marianas.

A um custo de mais de 5.400 fuzileiros navais mortos e 18.000 feridos, os americanos capturaram com sucesso estas ilhas estrategicamente importantes e rapidamente começaram a construção de pistas de pouso para B-29.

A distância do Kansas às Ilhas Marianas é de 11.300 quilômetros, enquanto a distância de Tinian, por exemplo, ao Japão é de aproximadamente 2.400 quilômetros. Grandes fundações foram lançadas e uma estrutura completa foi estabelecida.

Cabine da B-29 Enola Gay, fotografada nos Estados Unidos pelo amigo Ricardo Argm, de Recife.

Com isso, os americanos não precisaram mais enviar seus poderosos bombardeiros para lutar através do Oceano Atlântico. Eles deixaram a Califórnia, sobrevoaram o vasto Oceano Pacífico e alcançaram as novas bases através das ilhas havaianas.[34]

Outras bases foram logo construídas em ilhas recém-conquistadas, como Iwo Jima. Os ataques ao Japão tornaram-se uma ocorrência diária, com centenas de B-29 envolvidos. Essas aeronaves foram constantemente aprimoradas, seus defeitos foram corrigidos e utilizadas de forma mais eficaz.

Em agosto de 1945, os B-29 devastaram as forças armadas, as instalações navais e a indústria do Japão. Embora o país carecesse de recursos militares significativos, os americanos realizaram os polêmicos ataques com bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. O B-29 que lançou a bomba de Hiroshima, denominado “Enola Gay”, partiu de Tinian [35].

NOTAS————————————————————————————————————————————————————–


[1] Ver Hastings, Max. Retribution: The Battle for Japan, 1944-45, Alfred A. Knopf, New York, 2008, Pág. 333.

[2] Ver Hastings, Max. Retribution: The Battle for Japan, 1944-45 Alfred A. Knopf. New York, 2008, Pág. 333 e 334.

[3] Haulman, Daniel L. Hitting Home – The Air Offensive Against Japan, Air Force History and Museums Program, 1999, pág. 6.

[4] http://delprado.com.br/blog/2012/05/22/b-29-superfortress/

[5] Bowers, Peter M.  Warbird Tech Series – B-29 Superfortress. Speciality Press Publishers and Wholesalers, Minnesota, 1999. Pág. 14.

[6] Haulman, Daniel L. Hitting Home – The Air Offensive Against Japan, Air Force History and Museums Program, 1999, pág. 7.

[7] Além da vila japonesa, os militares americanos reproduziram fielmente uma vila alemã. Durante a Segunda Guerra Mundial os dois locais foram bombardeados pelo menos 27 vezes e reconstruídas a fim de testar o uso de artefatos bélicos incendiários contra cidades populosas. Ver The Asia-Pacific Journal-Japan Focus, de 15 de abril de 2018, Volume 16, Edição 8, Número 3, Artigo ID 5136. Disponível em  https://apjjf.org/2018/08/Plung.html

[8] Hastings, Max. Retribution: The Battle for Japan, 1944-45 Alfred A. Knopf. New York, 2008, Pág. 333.

[9] Duas fábricas eram operadas pela Boeing, sendo uma na cidade de Renton, estado de Washington, e outra em Wichita, estado do Kansas. Havia uma fábrica controlada pela empresa Bell, na cidade de Marietta, estado da Geórgia e uma planta da empresa de Martin na cidade de Omaha, capital do estado de Nebraska. Ver Bowers, Peter M. Boeing B-29 Superfortress . Stillwater, Minnesota: Voyageur Press, 1999. Págs. 319 e 322.

[10] Bowers, Peter M.  Warbird Tech Series – B-29 Superfortress. Speciality Press Publishers and Wholesalers, Minnesota, 1999. Pág. 100.

[11] Bowers, Peter M.  Warbird Tech Series – B-29 Superfortress. Speciality Press Publishers and Wholesalers, Minnesota, 1999. Pág. 4.

[12] Haulman, Daniel L. Hitting Home – The Air Offensive Against Japan, Air Force History and Museums Program, 1999, pág. 9.

[13] Ver https://www.456fis.org/HISTORY_OF_THE_B-29.htm

[14] Ver https://www.456fis.org/HISTORY_OF_THE_B-29.htm

[15] Graham, Simmons M.  B-29 Superfortress – Giant bomber of Wolrd War Two and Korea, Pen & Sword Aviation, Barnsley, South Yorkshire, England. Pags 97 e 98.

[16] Haulman, Daniel L. Hitting Home – The Air Offensive Against Japan, Air Force History and Museums Program, 1999, pág. 7. E Pace, Steve. Boeing B-29 Superfortress The Crowood Prees, Berkshire, England, 2003. Pág. 94.

[17] Para os canadenses a base de Gander tem o mesmo aspecto histórico que Natal possui para os brasileiros, como um local situado em um proveitoso ponto estratégico, que na Segunda Guerra Mundial serviu a aviação Aliada, onde foram construídas imensas instalações para receber milhares de profissionais e suas aeronaves de transporte e patrulha contra submarinos. Os canadenses de Newfoundland afirmam que Gander foi “O maior aeroporto do mundo na Segunda Guerra”. Sobre a RCAF Station Gander ver  https://www.heritage.nf.ca/articles/politics/gander-base.php

[18] Graham, Simmons M.  B-29 Superfortress – Giant bomber of Wolrd War Two and Korea, Pen & Sword Aviation, Barnsley, South Yorkshire, England. Pags 84 a 86.

[19] Mann, Robert A, B-29 Superfortress-Cronology-1934-1960, McFarland & Company, Inc., Publishers, Jefferson, North Carolina, and London.  Pág. 31.

[20] Sobre esse acidente ver https://aviation-safety.net/wikibase/98390

[21] O Dr. Johannessen era natural de Seattle, Washington, e nasceu em 10 de Janeiro de 1919. Durante a Segunda Guerra Mundial ele serviu como oficial do Corpo de Administração Médica do Exército dos Estados Unidos (US Army) em vários hospitais nos Estados Unidos e na região do Atlântico Sul, incluindo hospitais de Belém e em Natal. Em seu rico relato comentou que tratou até de prisioneiros alemães que foram trazidos ao seu hospital, capturados pelo afundamento de algum submarino. Ver https://oralhistory.rutgers.edu/interviewees/1011-johannessen-george-a

[22] Mann, Robert A, B-29 Superfortress-Cronology-1934-1960, McFarland & Company, Inc., Publishers, Jefferson, North Carolina, and London. Pág. 15.

[23] Mais detalhe sobre o acidente ver https://aviation-safety.net/wikibase/98432

[24] Não sabemos se esse avião acidentado em Natal estava com toda sua capacidade de combustível, mas sabemos que o combustível nos B-29 eram transportados em quatorze tanques de asa externa, oito de asa interna e quatro tanques na área de bombardeio, dando uma capacidade máxima de quase 31.000 litros, ou 8.168 galões americanos. Uma modificação adicionou quatro tanques na seção central da asa, elevando a capacidade total de combustível para quase 36.000 litros, ou 9.438 galões americanos. Ver https://www.456fis.org/HISTORY_OF_THE_B-29.htm

[25] O relato do médico militar Dr. George A. Johannessen não garante que o sobrevivente da queda do B-29 em 10 de agosto de 1944 era o navegador John F. O’Neill. Mas no site https://pt.findagrave.com/memorial/52036385/walter-roy-newcomb existe a confirmação dessa informação.

[26] Viveiros, Paulo P. História da Aviação no Rio Grande do Norte, Editora Universitária, Natal-RN, Brasil, 1974. Págs. 158 e 159.

[27] Mias sobre esse acidente ver – https://aviation-safety.net/wikibase/98447 e https://www.newspapers.com/clip/6331827/2nd-lt-laverne-bebermeyer-still/

[28] Mann, Robert A, B-29 Superfortress-Cronology-1934-1960, McFarland & Company, Inc., Publishers, Jefferson, North Carolina, and London.  Págs. 32 a 34. O primeiro desses acidentes foi em Marrakesh (anteriormente comentado no texto), o segundo foi com o avião B-29 número 42-6249, aconteceu em 18 de abril, em Payne Field, Cairo, Egito, devido a uma tempestade de areia e não houve mortos. Os três outros acidentes ocorreram todos em 21 de abril, na região de Karachi, Paquistão, por problemas de motor e consequências de uma tempestade de areia. Os envolvidos foram os aviões B-29 números 42-6345, 42-6369 e 42-63357. Nesse último acidente houve cinco mortos. Mais detalhes sobre alguns desses acidentes ver https://aviation-safety.net/wikibase/98393 e https://pt.findagrave.com/memorial/90940187/christopher-d-montagno

[29]  Mann, Robert A, B-29 Superfortress-Cronology-1934-1960, McFarland & Company, Inc., Publishers, Jefferson, North Carolina, and London.  Págs. 31 a 37.

[30] Ver https://warfarehistorynetwork.com/2016/09/07/operation-matterhorn/

[31] Ver https://www.fighter-planes.com/info/b29.htm

[32] Hastings, Max. Retribution: The Battle for Japan, 1944-45 Alfred A. Knopf. New York, 2008, Pág. 334.

[33] Hastings, Max. Retribution: The Battle for Japan, 1944-45 Alfred A. Knopf. New York, 2008, Pág. 335.

[34] Pace, Steve. Boeing B-29 Superfortress The Crowood Prees, Berkshire, England, 2003. Pág 88.

[35] Pace, Steve. Boeing B-29 Superfortress The Crowood Prees, Berkshire, England, 2003. Págs 97 a 102.

SEGUNDA GUERRA EM NATAL – O DEPÓSITO DA ADP DA RUA CHILE

Rostand Medeiros – IHGRN

Parte Integrante do livro Lugares de Memória – Edificações e Estruturas Históricas em Natal Durante a Segunda Guerra Mundial, páginas 73 a 75.

Sobre esse depósito, Lenine Pinto assegura que o local original era ao lado do Centro Náutico Potengy, tradicional clube de remo localizado na Rua Chile. Para esse autor, o prédio seria como um “ship Chandler”, um local da Airport Development Program (ADP), especializado em fornecimento de suprimentos para os navios da Marinha dos Estados Unidos.

Ali, segundo Lenine, eram estocados grandes carregamentos de suprimentos, acondicionados em caixas, fardos e outras embalagens. Quando esse material estragava, pelo menos para o padrão dos norte-americanos, era jogado no Rio Potengi. Aí um funcionário brasileiro do local só colocava esses produtos no rio com a maré vazante, onde o material flutuava até a comunidade do Canto do Mangue. Pessoalmente, já ouvi alguns depoimentos de pessoas que recolheram no Rio Potengi várias latas de manteiga de ótima qualidade.

Lenine comentou, por meio do relato de Rui Garcia, que ao final do conflito o que sobrou nesse depósito e em outros “três grandes depósitos de comestíveis” que os americanos possuíam em Parnamirim, foi vendido para o Exército Brasileiro[1].

Durante a realização desta pesquisa, em contato com outros pesquisadores do tema, surgiram dúvidas se o depósito nesse endereço teria sido realmente utilizado para esse fim. Ou teria sido em outro local?

A dúvida surgiu por esse ser um depósito que possui pequenas dimensões na atualidade e que, aparentemente, não teria condições de ser um local de armazenamento da ADP. Vale lembrar que essa era a empresa que desenvolvia a gigantesca obra da Base de Parnamirim.

Foto antiga do Porto de Natal.

Seria, então, esse local de maiores dimensões, ou ele sofreu alterações?

Segundo relatos de trabalhadores e administradores de empresas na região, quando estivemos visitando o prédio em 2014, aparentemente a resposta é não!

Pudemos perceber na época dessa visita que a edificação apresentava poucas alterações mais radicais.

Outra dúvida estava nas proximidades.

Não muito distante do endereço da Rua Chile, número 44, existe um local conhecido naquele setor com “Frigorífico” e pertencente à Companhia Docas do Rio Grande do Norte (CODERN). Pela sua grande dimensão, antes de ter sido utilizado para conservação de gêneros alimentícios, ali poderia ser esse o antigo depósito da ADP?

Atendendo a um pedido nosso, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte solicitou informações sobre o caso ao Almirante Elis Treidler Öberg, atual Diretor-Presidente da CODERN. Esse, por sua vez, encaminhou um texto do jornalista Aproniano César Fagundes Trindade, pesquisador da história do Porto de Natal desde 1972 e fundador de um museu que guarda a história do nosso porto. Nesse texto Trindade informou ter sido o local idealizado como frigorífico durante a Segunda Guerra e destinado ao abastecimento das tropas aqui sediadas. Mas sua construção só se iniciou em 1948 e foram concluídas em 1951. Isso descartou a utilização do “Frigorífico” como o antigo depósito da ADP, pois os norte-americanos deixaram definitivamente Natal em 1947.

Nesse sentido, sem maiores opções e mesmo com as dimensões reduzidas, deixamos valendo a informação de Lenine Pinto, que aponta ter sido o prédio da Rua Chile, 44, o antigo depósito da ADP.

Sobre a utilização do Porto de Natal durante a Segunda Guerra Mundial, soubemos, por intermédio do trabalho do jornalista Aproniano César Fagundes Trindade, que nosso porto podia receber navios de até 27 pés de calado. Petroleiros, destroieres e cruzadores penetravam nesse porto sem nenhuma dificuldade. Após a Guerra, o porto começou a entrar em crise, sendo uma das causas o fato do canal de acesso não ter sido mais dragado por anos e, por isso, muita areia acumulou-se no seu leito.

Essa situação agravou o problema dos transportes marítimos em Natal. No início de dezembro de 1950, devido à impossibilidade de acesso à barra de navios de calado superior a 20 pés, Rui Moreira Paiva, então agente da Companhia Nacional de Navegação Costeira, comunicou à imprensa local que os navios de passageiros daquela empresa não aportariam mais em Natal.

Quem da capital potiguar quisesse viajar para as capitais do norte e sul do país teria que embarcar em Recife ou Fortaleza.

Obviamente essa situação acarretou sérios prejuízos para a economia potiguar, pois reduziu as exportações dos nossos produtos e encareceu a importação das mercadorias[2].

NOTAS


[1] PINTO, Lenine. Natal, USA. 2. Ed – Natal-RN: Edição do autor, 1995. Páginas 81 e 82.

[2] SMITH JUNIOR, Clyde – Trampolim Para a Vitória. 1. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1993, Páginas 15 a 27.

AS METAMORFOSES DO CORONELISMO

Coronel Marcolino Diniz e seus homens de confiança, Paraíba.

José Murilo de Carvalho – Professor UFRJ (Publicado no Jornal do Brasil em 6/05/2001).

“A lei parava nas porteiras das fazendas. O governo renunciava ao seu caráter público. Um elementar senso de autodefesa dizia à população rural que era mais vantajoso submeter-se ao poder e a proteção do coronel”

Dizia Víctor Nunes Leal, no clássico Coronelismo, enxada e voto, publicado em 1949, que coronelismo era compromisso entre poder privado e poder público. O compromisso, continuava ele, derivava de um longo processo histórico e se enraizava na estrutura social. A urbanização, a industrialização, a libertação do eleitorado rural, o aperfeiçoamento da justiça eleitoral, acreditava, iriam enterrar coronéis e coronelismo.

Pedida a bênção a quem de direito, me aventuro em variações em torno do tema.

Coronel Antônio Ferreira de Carvalho, conhecido como “Antônio Caixeiro”, Sergipe.

No princípio, era o “coronel”. Entre aspas, porque não era chamado assim. Era o homem-bom, o chefe , o patriarca, o mandão, o grande senhor de terras e de escravos, base da organização social da colônia. Alguns historiadores o chamaram até de senhor feudal. Comandava vasto séquito que incluía a família, a parentela, os escravos, os agregados, os capangas. Todos dependiam dele, de seu poder, de seu dinheiro, de sua proteção. Controlava a terra, o trabalho, a política, a polícia e a justiça. Alguns isolavam-se no interior comandando estados à parte. A maioria, no entanto, desde o início vinculava-se à economia exportadora e à administração colonial. O poder colonial não tinha braços suficientes para administrar e delegava aos chefes locais tarefas de governo ou simplesmente deixava que mandassem como bem entendessem.

“Foi na Bahia que os coronéis chegaram ao auge da influência, como tão bem demonstra a obra romanesca de Jorge Amado”

Quando a colônia virou Brasil, o “coronel” virou coronel, sem aspas. A Regência, imprensada entre reacionários de um lado e “povo e tropa”, do outro, não tinha como manter a ordem. Criou a Guarda Nacional, de olho na congênere francesa, para colocar a manutenção da ordem nas mãos dos que tinham o que perder. Faziam parte da Guarda os adultos entre 21 e 60 anos que tivessem renda de 200 mil-réis nas quatro maiores cidades e 100 mil-réis no resto do país. Os oficiais eram nomeados pelo ministro da Justiça, sob recomendação dos presidentes de província. Pode-se adivinhar quem era escolhido. A hierarquia da Guarda seguia a hierarquia da renda e do poder.

Coronal Erônides Ferreira de Carvalho, filho de Antônio Ferreira de Carvalho, Sergipe.

O chefão local virava coronel, o posto mais alto, o segundo mais poderoso virava tenente-coronel, o seguinte major, e assim por diante. Lavradores e artesãos tinham que se contentar em ser praças. A Guarda foi um eficiente mecanismo encontrado pelo governo para cooptar os senhores de terra, para estreitar o laço entre governo e poder privado. Se o posto de coronel não bastava, o governo o fazia barão. Com o tempo, a Guarda deixou de exercer funções de segurança e virou instrumento político-eleitoral. O coronel virou chefe político. A ele se dirigia o deputado para pedir votos. Vangloriava-se das relações com políticos da capital. Alguns iam a cidades próximas para mandar carta para si mesmos, pretendendo ser carta de deputado. Podia ser caprichoso. Na década de 50 do século XX, um coronel ainda se negou a apoiar um pretendente porque não dava votos a quem usava paletó rachado na bunda. A tecnologia eleitoral aperfeiçoou-se em suas mãos. Criou o voto de defunto, o fósforo, que votava várias vezes, o capanga que espantava o opositor, o curral, o bico-de-pena. Para seus subordinados, continuava sendo o chefe, o juiz, o protetor. Seu capanga não era condenado se cometesse crime, seus dependentes não eram recrutados para o serviço militar, seu escravo era solto. Sua mulher não precisava ser defendida das autoridades porque estava submetida a sua justiça particular.

Coronel Horácio Queirós de Matos, Bahia.

A federação de 1891 abriu as portas do paraíso para o coronel. Agora havia um governador de estado eleito que dependia mais dele do que o ministro da Justiça. Surgiu o coronelismo como sistema na terminologia de Víctor Nunes. O coronel municipal apoiava o coronel estadual que apoiava o coronel nacional, também chamado de presidente da República, que apoiava o coronel estadual, que apoiava o coronel municipal. Aperfeiçoou-se ao máximo a técnica eleitoral. Quanto mais regular a eleição, de acordo com as atas, mais fraudada era. Nem a capital da República escapava. Um coronel da Guarda costumava incluir entre os preparativos das eleições cariocas a contratação de um médico para assistir os feridos nos inevitáveis rolos que seus próprios capangas provocavam. Aumentou também o dá-cá-toma-lá entre coronéis e governo. As nomeações de funcionários se faziam sob consulta aos chefes locais. Surgiram o “juiz nosso” e o “delegado nosso”, para aplicar a lei contra os inimigos e proteger os amigos. O clientelismo, isto é, a troca de favores com o uso de bens públicos, sobretudo empregos, tornou-se a moeda de troca do coronelismo. Em sua forma extrema, o clientelismo virava nepotismo. O coronel nomeava, ou fazia nomear, filho, genro, cunhado, primo, sobrinho. Só não nomeava mulher e filha porque o lugar delas ainda era dentro de casa.

Os coronéis tornaram-se poderosos e onipresentes. Em São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul foram enquadrados pelos partidos republicanos estaduais, o PRP, PRM, PRR. No Rio Grande do Sul, seu enquadramento foi feito por Júlio de Castilhos. Dele se conta que ao ouvir um coronel interiorano começar uma frase assim: “Chefe, eu penso que…” interrompeu-o bruscamente dizendo: “Você não pensa, quem pensa sou eu”. Outros estados, como Bahia e Pernambuco, tiveram maiores dificuldades em controlá-los. Nesses estados, alguns coronéis se tornaram legendários. Em Pernambuco, Chico Romão, Chico Heráclio, Veremundo Soares, coronel intelectual, e José Abílio, de que um padre disse poder ser enquadrado em todos os artigos do Código Penal.

Coronel Audálio Tenório de Albuquerque, Pernambuco.

Foi na Bahia que os coronéis chegaram ao auge da influência, como tão bem demonstra a obra romanesca de Jorge Amado. De tão fortes, desafiavam o governo do estado. O coronel estadual, ou governador, em geral membro das velhas oligarquias, não conseguia controlar os coronéis municipais, chefes de estados dentro do estado. Os partidos, Republicano da Bahia e Republicano Democrático, eram meras aglomerações de coronéis rivais. O maior dos coronéis baianos na Primeira República foi Horácio de Matos, senhor das Lavras Diamantinas. Em fins de 1919, ele chefiou uma revolta de coronéis contra o governo do estado. Reuniu mais de 4 mil homens em armas. O governo federal interveio e assinou um tratado de paz com os coronéis, passando por cima do governador. Horácio lutou contra a coluna Prestes e contra Lampião. Em 1930, a pedido de Washington Luís, reuniu milhares de homens para atacar Minas Gerais na expectativa de fazer abortar a revolução que a Aliança Liberal pusera na rua.

Coronel José Pereira Lima, Paraíba.

O coronelismo, como sistema nacional de poder, acabou em 1930, mais precisamente com a prisão do governador gaúcho, Flores da Cunha, em 1937. O centralismo estado-novista destruiu o federalismo de 1891 e reduziu o poder dos governadores e de seus coronéis. Mas os coronéis não desapareceram. Alguns da velha estirpe ainda sobreviveram ao Estado Novo. Chico Romão viveu até a década de 60, assustado ao final da vida com o surgimento das Ligas Camponesas. E surgiu o novo coronel, metamorfose do antigo, que vive da sobrevivência de traços, práticas e valores remanescentes dos velhos tempos.

O coronel típico da Primeira República dependia do governo para manter seu poder. Era governista por definição. Nos casos extremos em que se revoltava contra o governo estadual, fazia-o em conluio com o governo federal. Víctor Nunes percebeu com clareza o problema. O coronel não era funcionário do governo, mas tão pouco senhor absoluto, independente, isolado em seus domínios. Era um intermediário. Sua intermediação sustentava-se em dois pilares. Um deles era a incapacidade do governo de levar a administração, sobretudo da justiça, à população. Constrangido ou de bom grado, o governo aliava-se ao poder privado, renunciando a seu caráter público.

Coronel Joaquim da Silva Saldanha, o “Quincas Saldanha”, Rio Grande do Norte.

A lei parava na porteira das fazendas. O outro era a dependência econômica e social da população. Até 1940, a população brasileira era predominantemente rural (60% nessa data), pobre e analfabeta. Um elementar senso de autodefesa lhe dizia que era mais vantajoso submeter-se ao poder e à proteção do coronel. Fora dessa proteção, restava-lhe a lei, isto é, o total desamparo. Não havia direitos civis, não havia direitos políticos autênticos, não havia cidadãos. Havia o poder do governo e o poder do coronel, em conluio.

Com base nessas premissas, Víctor Nunes previa o fim do coronelismo e do coronel quando o país se industrializasse e urbanizasse, as eleições se moralizassem, o cidadão se emancipasse. O país urbanizou-se (81% da população são hoje urbanos), industrializou-se (só 24% da mão de obra se emprega na agricultura), o direito do voto se estendeu a 65% da população, a justiça eleitoral acabou com a fraude. Diante desses dados, é preciso optar por uma das seguintes saídas: ou dizer que Víctor Nunes se enganou na previsão; ou admitir que ele acertou e que falar hoje em coronel é mera figura de linguagem, retórica política; ou afirmar que a palavra está sendo usada com outro sentido.

Coronel Abílio Wolney, Goiás.

Vamos por partes. São inegáveis as drásticas mudanças econômicas e demográficas por que passou o país desde 1950. Mas algumas coisas não mudaram tanto. Não mudaram a pobreza, a desigualdade e, até recentemente, o nível educacional. Os 50% mais pobres da população ainda recebem apenas 14,5% da renda nacional, ao passo que o 1% mais rico fica com quase a mesma parcela, 12,5%. Adotando-se a linha divisória de 70 dólares, definida pela Organização Mundial de Saúde, mais de 50% dos brasileiros devem ser classificados como pobres. Para o Nordeste, a porcentagem sobe para 80%. A renda per capita de São Paulo equivale a 5 vezes a do Piauí. Cerca de 30% da população de 15 anos ou mais são analfabetos funcionais (menos de quatro anos de estudo). No Nordeste, a porcentagem é de 50%, no Nordeste rural, de 72%. A pobreza e a baixa escolaridade mantêm a dependência de grande parte do eleitorado. O clientelismo tem aí terreno fértil em que vicejar.

Coronel Francisco Heráclio do Rêgo, o “Chico Heráclio”, Pernambuco

Além disso, a política nem sempre segue de perto, de imediato e em linha reta, as transformações sociais. Uma consequência política das mudanças pode ser detectada na década de 30. Surgiu no Rio de Janeiro o populismo, que se difundiu pelas grandes cidades nas décadas de 50 e 60. Ao mesmo tempo que invadia as cidades, a população foi pela primeira vez na história do país admitida em massa ao exercício do voto. Era um passo à frente, mas estávamos longe de um eleitorado maduro. No populismo, o eleitor dispensava a mediação do coronel mas fazia do líder um grande coronel urbano de que esperava ajuda e proteção. No Rio de Janeiro, o populismo montou uma máquina clientelística de corrupção e distribuição de favores à custa de recursos públicos. Mas quando o eleitorado começou a emancipar-se, o golpe de 1964 paralisou a experiência e atrasou o aprendizado democrático por 26 anos, criando um descompasso entre o social e o político. Grande parte do eleitorado de hoje começou a votar sob a ditadura. Muitos desses eleitores ainda funcionam no antigo esquema clientelístico.

Coronel Pacífico Clementino de Medeiros, Rio Grande do Norte e Padre Cícero Romão Baptista, Ceará.

Por fim, quando se fala, melhor, quando eu falo, de coronéis hoje uso a parte pelo todo. O coronel de hoje não vive num sistema coronelista que envolvia os três níveis de governo, não derruba governadores, não tem seu poder baseado na posse da terra e no controle da população rural. Mas mantém do antigo coronel a arrogância e a prepotência no trato com os adversários, a inadaptação às regras da convivência democrática, a convicção de estar acima da lei, a incapacidade de distinguir o público do privado, o uso do poder para conseguir empregos, contratos, financiamentos, subsídios e outros favores para enriquecimento próprio e da parentela. Tempera tudo isso com o molho do paternalismo e do clientelismo distribuindo as sobras das benesses públicas de que se apropria. Habilidoso, ele pode usar máscaras, como a do líder populista, ou do campeão da moralidade. Para conseguir tudo isso, conta hoje, como contava ontem, com a conivência dos governos estadual e federal, prontos a comprar seu apoio para manter a base de sustentação, fazer aprovar leis, evitar investigações indesejáveis. Nesse sentido, o novo coronel é parte de um sistema clientelístico nacional.

Joaquim Paulino de Medeiros, o “Quincó da Ramada”, Rio Grande do Norte.

Nem errou Víctor Nunes, nem uso figura de linguagem. Apenas opero ligeiro deslizamento semântico do conceito. Tudo resolvido? Não. Que os pobres, os analfabetos funcionais, os eleitores iniciantes, elejam e reelejam os neo-coronéis, pode-se entender. Mas quando artistas e intelectuais se solidarizam com paizinhos e paizões, a análise precisa ir mais fundo, além da sociologia. Ela precisa questionar a natureza mesma de nossa cidadania, aventurando-se nos subterrâneos da cultura e da psicologia coletiva. Os valores subjacentes aos pólos coronel/cliente, pai/filho, senhor/servo, parecem persistir na cabeça de muitos de nossos melhores cidadãos e cidadãs, bloqueando a consolidação democrática.

1939 – A INTERESSANTE PALESTRA DE JUVENAL LAMARTINE SOBRE O ENVOLVIMENTO DE NATAL NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Juvenal Lamartine

Rostand Medeiros – IHGRN

Na noite de 4 de fevereiro de 1939, sete meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, o ex-governador potiguar Juvenal Lamartine de Faria proferiu uma interessante palestra no Rotary Club de Natal. Ali Juvenal comentou com os presentes sobre sua antiga ligação com a aviação, anteviu o início da Guerra, apontou como em sua opinião seria o envolvimento da capital potiguar no grave conflito, clamava a atenção das autoridades para o que poderia acontecer e apontou as ações que os militares dos Estados Unidos executariam para a sua defesa.

Essa palestra foi integralmente apresentada na edição do jornal A República, de 11 de fevereiro de 1939, página 10, mas não causou nenhuma repercussão e nem foi posteriormente comentada naqueles dias incertos.

NATAL: A MAIS IMPORTANTE BASE DE DEFESA AÉREA DO BRASIL

Palestra do Dr. Juvenal Lamartine, na reunião de 4 do corrente no Rotary Clube de Natal.

Em 1927, quando tive a honra de ocupar uma cadeira no Senado Federal, como representante do Rio Grande do Norte, apresentei à consideração aquela casa do Parlamento, tão rica de brilhantes tradições, um projeto de lei autorizando o governo da República a construir um aeroporto em Natal com base para os aviões em Fernando de Noronha e, nos rochedos de São Pedro e São Paulo, um farol aéreo, cuja coluna fosse uma alegoria, que lembrasse e perpetuasse a memória de Santos Dumont.

Fernando de Noronha na década de 1920.

Decorridos hoje mais de dois lustros, e tendo o mundo passado por profundas e graves transformações políticas, penso que cada dia mais se impõe e se faz urgente a realização da ideia que tive em 1927, diante não só do desenvolvimento da aviação comercial, como principalmente dos perigos que ameaçam as nações militarmente fracas, mas ricas em matérias primas, como é o caso do Brasil.

Embora afastado da atividade pública, continuo, entretanto, a me interessar vivamente por tudo que se relaciona com o desenvolvimento do nosso potencial econômico, segurança e integridade do Brasil.

Juvenal Lamartine, o0 primeiro a esquerda, ao lado de um biplano francês.

Desde que vi o primeiro avião, fiquei empolgado pela aviação aérea, na qual antevi um futuro formidável e o meio de transporte ideal para o Brasil, cujo vasto território não é possível cortar de estradas de ferro, se não em um futuro muito remoto e às custas de somas fora de nossas possibilidades econômicas.

Quando os pilotos franceses foram contratados como instrutores do nosso Exército e vieram fundar nossa primeira escola de aviação, fui dos primeiros civis a subir em avião. Nesse tempo era uma temeridade andar pelos ares. A sensação que experimentei nesse voo inicial foi formidável: mas tive desde logo a visão nítida que os céus seriam, em pouco tempo, cortados em todas as direções pelas hélices por aparelhos de todas as nações do mundo, numa competição cada vez maior, e que era preciso estender as linhas aéreas, não só às capitais dos Estados, como ao nosso hinterland[1].

Djalma Petit e Juvenal Lamartine no Aeroclube. Foto da Revista Cigarra. Fonte-http://peryserranegra.blogspot.com

Eleito Presidente do Rio Grande do Norte, dediquei-me com entusiasmo no desenvolvimento do novo meio de transporte, fundando, com parcos recursos do Tesouro do Estado, o Aeroclube de Natal, criando uma escola de pilotos civis, construindo e pessoalmente inaugurando trinta campos de pouso nos municípios no interior, facilitando a instalação nesta Capital de companhias estrangeiras que aqui fundaram bases para seus aviões comerciais, animando, finalmente, por todos os modos esse admirável meio de transporte e já hoje a mais terrível arma de guerra e destruição[2].

A posição geográfica do Rio Grande do Norte e as condições privilegiadas de Natal devem merecer a atenção dos responsáveis pela defesa do Brasil, cujo ponto mais vulnerável a quaisquer ataque aéreo é a costa do Nordeste. Os Estados Unidos da América do Norte, possuindo uma das forças aéreas das mais fortes do mundo e aviões de bombardeiro que não encontram paridade, já pelo se poder ofensivo, já pelo seu raio de alcance, vão gastar somas formidáveis na construção de bases em toda a costa do Atlântico e nas ilhas da América Central, a fim de garantir-se contra um possível ataque de uma potência europeia.

Mapa da empresa Compagnie Générale Aéropostale (CGA) mostrando sua rota aérea que passava por Natal e a nossa privilegiada posição estratégica.

Muito, muito maior é o perigo que corre o Brasil, econômica e militarmente fraco e detentor de imensas riquezas ainda inexploradas e cobiçadas pelos povos imperialistas. O seu ponto mais vulnerável, como já disse, é o Nordeste e a base de defesa mais importante é Natal, donde os aviões poderão exercer um patrulhamento eficiente contra quaisquer tentativas de ataque não só ao Brasil, como mesmo a toda a América do Sul.

Na ausência de autoridade para só por mim agitar o problema, venho lembrar que o Rotary tem a iniciativa de sugerir as altas autoridades da República, a começar pelo comandante da Região Militar, a necessidade de ser incluída no plano quinquenal a construção do porto aéreo de Natal.

Festividade em Natal para os aviadores italianos Ferrarin e Del Prete. Da esquerda para direita vemos o Cônsul italiano em Recife, Arturo Ferrarin, Juvenal Lamartine, Carlo del Prete e a cientista Berta Lutz

Embora não seja técnico, penso, entretanto, que o melhor local para esse porto é o que se encontra entre o Radiofarol e o forte dos Reis Magos, feita a terraplanagem das dunas e a elevação do recife desde o mesmo forte até a praia do Meio.

As condições são as melhores possíveis, pois, além de oferecer espaço bastante para a construção de pistas para os aviões de terra, fica à margem do Potengi, onde podem amerissar os mais possantes hidroaviões do mundo[3].

Juvenal Lamartine de Faria em 1935

Com um apoio ou base em Fernando de Noronha e outro, se possível, nos rochedos de São Pedro e São Paulo, como propus em meu projeto de 1927, estará o Brasil de posse do mais importante porto militar aéreo da América do Sul e a chave da defesa deste Continente.

Para reforçar ainda mais o poder defensivo do porto aéreo de Natal e lhe dar maior eficiência, deve ser utilizada a Lagoa do Bonfim, a cerca de 30 quilômetros desta capital, para nela permanecer uma esquadrilha de hidroaviões de bombardeiro. São excepcionais as condições que oferece a Lagoa do Bonfim. Mermoz, o grande piloto francês há pouco desaparecido, considerava essa Lagoa uma das melhores bases do mundo para hidroaviões[4].

Alunos do Aeroclube do Rio Grande do Norte e, ao centro, de branco, o instrutor Djalma Petit.

Certamente ninguém pensa em concentrar todos os elementos de defesa aérea do Brasil no sul do país, de vez que, ocupado o norte, dificilmente seria desalojar daí o inimigo.

Qualquer ataque que sofrer o Brasil, por uma das nações fortes e imperialistas da Europa, só pode ser feito por via aérea e marítima visando precisamente o norte desprotegido de qualquer elemento de defesa e muito acessível a toda investida estrangeira.

Estou, aliás, convencido de que os poderes públicos conhecedores da importância estratégica de Natal mandarão construir aqui a base de defesa da nossa costa setentrional.

Pouco tempo depois da divulgação do discurso de Juvenal Lamartine no Rotary de Natal, a Segunda Guerra começou e logo, como Juvenal Lamartine previu, Natal se tornou um dos principais pontos estratégicos da aviação dos Aliados. Não demorou e logo hidroaviões do tipo Consolidated PBY Catalina, que na foto estão participando de uma cerimônia no Rio, se tornaram frequentes na capital potiguar.

Daqui é possível não só repelir qualquer tentativa de ataque por aviões que projetem atravessar o Atlântico, como estabelecer linhas de defesa para os Estados do sul e do norte do Brasil.

O ideal de todos os povos do mundo é a paz; mas, como a humanidade ainda não atingiu esse ideal, o dever de todos os povos é organizar sua defesa para a proteção de seus habitantes e de suas fontes de produção e de riqueza[5].

NOTAS

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[1] Palavra de origem alemã que significa “terra de trás”. Em alemão, a palavra também se refere à parte menos desenvolvida de um país, aquela menos dotada de infraestrutura e menos densamente povoada. Era muito utilizada por parte de autores e intelectuais brasileiros do início do século XX como sinônimo de sertão e interior.

[2] O que Juvenal Lamartine denomina como “Presidente eleito do Rio Grande do Norte” nesse texto significa que ele tinha sido eleito Governador do Estado. Durante o regime imperial, os atuais governadores eram denominados “Presidentes de Província”, denominação que foi alterada para “Presidente dos Estados” com a implantação do período republicano em 1889. Essa denominação seguiu até a Revolução de 1930, quando aparece o termo “Governador”, sendo essa maneira como se designam os Governantes dos estados brasileiros até hoje.

[3] O Radiofarol ao qual Juvenal Lamartine se refere era uma instalação pertencente à Marinha do Brasil, inaugurado em 27 de janeiro de 1937, situada nas dunas que atualmente estão na área do quartel do 17° GAC. Servia para a orientação de aeronaves que cruzavam o Oceano Atlântico em direção a Natal através de ondas de rádio e possuía duas torres de transmissão com cerca de 60 metros de altura. Tratamos neste livro sobre esse local. Já a ideia dessa pista de pouso aparentemente seria uma estrutura que teria sua cabeceira na região do Iate Clube de Natal, percorreria a área onde atualmente se encontram os tanques de combustível da Petrobras e parte do bairro das Rocas, finalizando próximo à beira mar. Na época, essa era uma área com poucas habitações e essa pista de pouso poderia ter uma extensão alcançaria entre 800 a 1.200 metros.

[4] Juvenal Lamartine se referiu ao piloto Jean Mermoz (1901 – 1936), verdadeiro mito da aviação francesa, que com seu forte espírito desbravador realizou, em 12 de maio de 1930, a primeira viagem transatlântica de correio aéreo sem escalas. Partiu de Saint-Louis (atual Senegal) a bordo de um hidroavião Laté 28 com mais dois companheiros e chegou a Natal depois de 21 horas de voo, percorrendo uma distância superior a 3.000 km. Seis anos após esse feito, após partirem de Natal, Jean Mermoz e sua tripulação desapareceram no Atlântico, durante a sua 25.ª travessia do Atlântico Sul, a bordo de um hidroavião Laté 300.

[5] Ver o jornal A República, Natal/RN, edições de sábado, 4 de fevereiro de 1939, pág. 4 e 11 de fevereiro de 1939, pág. 3.

A ESQUECIDA CANTINA DO COMBATENTE EM NATAL

Durante a Segunda Guerra Mundial Existiu na Capital Potiguar um Local que Muito Ajudou os Militares Brasileiros que aqui estavam. Completamente esquecido nos dias atuais, era conhecido como Cantina do Combatente e Foi um dos Poucos Locais Criados para Atender e Apoiar as Necessidades Dessas Pessoas. Um Futuro Governador Potiguar se Destacou no Seu Desenvolvimento.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

O jovem Getúlio Vargas e sua esposa Darcy em 1911.

A partir de janeiro de 1928, quando Getúlio Dorneles Vargas se tornou governador do Rio Grande do Sul, sua mulher Darcy Sarmanho Vargas acompanhava sua carreira política de forma mais reservada. Mas a partir desse ano essa gaúcha da cidade de São Borja assumiu funções que estavam muito além das de ser a esposa e a genitora de cinco filhos. Ela começou a participar ativamente de atividades assistencialistas do governo do seu marido.

Dois anos depois, ainda em terras gaúchas, a primeira-dama criou a Legião da Caridade, entidade fundada para apoiar com mantimentos e remédios às famílias dos riograndenses do sul que participaram da Revolução de 1930, episódio político que levou seu marido a permanecer no cargo máximo do poder executivo brasileiro até o ano de 1945[1].

Dona Darcy Vargas – Fonte – http://2.bp.blogspot.com/

Após se mudar para o Rio de Janeiro, Darcy Vargas realizou visitas a hospitais e asilos e montou com a estrutura do governo uma casa de costura para ajudar doentes da Santa Casa de Misericórdia[2]. Em 1936 a primeira-dama brasileira fundou oficialmente o Abrigo Cristo Redentor, onde realizou trabalhos de apoio aos mendigos e menores abandonados. Em 1940 ela fundou a Casa do Pequeno Jornaleiro, onde buscou oferecer aos menores de rua abrigo e alimentação, dando-lhes ocupação com aulas e cursos profissionalizantes, além de emprego[3]. Foi na Casa do Pequeno Jornaleiro que Darcy Vargas organizou pela primeira vez o chamado Natal das Crianças, também conhecido como Natal do Pobres, onde era realizado uma grande festividade natalina marcada pela distribuição de brindes e oferta de diversão ao público. Consta que esse evento foi tomando grandes proporções, tendo em 1944 beneficiado 25 mil menores[4].

Sabemos que Darcy Vargas foi uma das incentivadoras para a criação oficial da Legião Brasileira de Assistência – LBA, como um órgão assistencial público e de abrangência nacional. Depois de todos os trâmites burocráticos e contando com o apoio de federações e associações comerciais e industriais brasileiras, a instalação da LBA se deu em 2 de outubro de 1942.

Como nessa época o Brasil se encontrava em guerra contra a Alemanha e a Itália, um dos principais focos da LBA foi ajudar os militares brasileiros que atuavam na defesa do país, bem como de suas famílias.

Ao longo dos anos Darcy Vargas e a direção da LBA realizaram várias campanhas beneficentes como a Campanha da Madrinha dos Combatentes, ou as Hortas da Vitória, para incentivar a produção de alimentos pela população. Organizou também as Legionárias da Costura, que fabricavam materiais médico-hospitalares e roupas para serem doadas aos soldados. Na sequência instituiu a Cantina do Combatente, lugar de apoio e lazer para os soldados, cuja primeira unidade foi inaugurada no Rio de Janeiro em 20 de novembro.

E Natal foi uma das cidades contempladas com a criação de uma Cantina do Combatente.

O Início

Nos primeiros dias do mês de dezembro de 1942 desembarcou na Base de Parnamirim a Sra. Rosa de Mendonça Lima, uma das diretoras da LBA e esposa do general João de Mendonça Lima, então Ministro da Viação e Obras Públicas. Ela estava viajando pelo Nordeste para inaugurar as sedes da Cantina do Combatente em Salvador, Recife e Natal[5].

Getúlio Vargas, ao centro o general João de Mendonça Lima, então Ministro da Viação e Obras Públicas, e sua esposa Rosa de Mendonça Lima – Foto Arquivo Nacional.

Segundo o jornal natalense A Ordem, assim foi apresentada a Cantina do Combatente – “Instituição que visa o prolongamento do lar. Aí, os soldados brasileiros terão um ponto de diversão e assistência. Na cantina os militares terão cigarros, bebidas (não alcoólicas), leite, sanduiches e divertimentos, como livros, cinema, teatro, etc., tudo isso gratuitamente”. Uma ação muito apreciada pelos militares brasileiros era a existência de materiais para escrever e enviar cartas e o selo também era gratuito[6]. Percebe-se nitidamente o caráter assistencialista que a LBA colocava nessa ideia.

Depois de ser entrevistada na Rádio Educadora de Natal no programa “Fé e Civismo” e ser recebida pelo Interventor Federal Interino Aldo Fernandes Raposo de Melo, a Sra. Rosa de Mendonça Lima participou da inauguração[7].

Essa foi a única imagem que consegui da Cantina do Combatente em Natal.

A festa aconteceu no final da tarde de sábado, 5 de dezembro de 1942, e a sede da Cantina ficava localizada na Rua Jundiaí, no bairro de Petrópolis. Busquei com pessoas que viveram naquela época detalhes dessa localização, mas não consegui uma informação concreta. Para alguns, esse local era na esquina da Rua Jundiaí com a Avenida Hermes da Fonseca. Para outros seria em uma grande casa, atualmente derrubada, onde se localiza a Fundação José Augusto.

Aluízio Alves no início de carreira públiva.

Quem comandou o evento foi o jovem bacharel em direito Aluízio Alves, então Secretário Geral da Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência, que discursou e participou de descerramento de placa e da “inauguração” do retrato de Getúlio Vargas. Após a cerimônia oficial os muitos soldados, marinheiros e fuzileiros navais presentes aproveitaram para jogar sinuca, ping-pong, consumir o que havia no bar, jantar no restaurante e, para os que sabiam ler, aproveitar os livros e revistas da biblioteca, que em breve receberia mais de 90 volumes da conceituada Livraria Ismael Pereira[8].

Para animar a soldadesca e os convidados civis, apresentou-se um conjunto musical do 2º Grupo Móvel de Artilharia de Costa (2º GCMA) e as bandas da Polícia Militar e da Associação de Escoteiros.

Um dado interessante e que bem mostra o espírito existente na época devido a guerra em Natal foi que 25 senhoritas “das mais proeminentes famílias da sociedade natalense”, ficaram servindo bebidas e comidas para os jovens militares. Não fosse as circunstâncias do momento, acredito que dificilmente essas meninas de pele clara dariam a mínima atenção a esses rapazes, a maioria deles morenos e vindos do interior.

O primeiro grande evento da Cantina do Combatente foi realizado dias depois, em 13 de dezembro, na comemoração do Dia do Marinheiro. Houve uma palestra proferida por Elói de Souza e a animação foi realizada pelo “grupo de Jazz” da banda da Polícia Militar[9].

Festa de Natal da cantina do Combatente de Recife, Pernambuco. Esse clube ficava no Parque 13 de maio.

Americano Não Entra?

Não consta em nenhuma das fontes pesquisadas que nas solenidades realizadas em dezembro de 1942 estivessem presentes os militares estrangeiros que serviam em Natal.

Observando os jornais da época disponíveis, percebemos que foram poucas as ocasiões que os gringos se fizeram presentes na Cantina do Combatente. Vale recordar que o primeiro de dois clubes recreativos que os militares norte-americanos montaram em Natal só seria inaugurado três meses depois da Cantina dos militares brasileiros.

Ceremônia em Parnamirim Field – https://catracalivre.com.br

Durante a Segunda Guerra Mundial, quando um soldado norte-americano, recebia de seus superiores uma pausa necessária durante a luta, muitas vezes o seu destino eram as unidades recreativas do United Service Organization, popularmente conhecida em todo mundo como U.S.O. Essa organização foi criada em 4 de fevereiro de 1941, sendo financiada e apoiada pelo governo americano e sua missão básica era proporcionar lazer aos membros das forças armadas norte-americanas em qualquer lugar onde estivessem. Tal como a Cantina do Combatente em Natal, os clubes recreativos U.S.O. forneciam um ambiente para dançar, exibição de filmes e entretenimento ao vivo. Mas também serviam como um lugar tranquilo para conversar, escrever cartas e encontros, além de conselhos religiosos com os capelães lotados nas suas unidades militares[10].

Casa onde funcionou o U.S.O. do bairro Petrópolis, em Natal.

Os clubes U.S.O. receberam estrelas dos mais diversos níveis de importância da indústria do entretenimento dos Estados Unidos. Desde simples mágicos que antes da Guerra se apresentavam em pequenas casas de espetáculos, a estrelas hollywoodianas. Figuras como Katharine Hepburn, Groucho Marx, Bette Davis, Marlene Dietrich, Bob Hope e muitos outros fizeram parte das trupes dessa organização.

Um dos clubes U.S.O. em Natal ficava no bairro de Petrópolis, na Avenida Getúlio Vargas, 796, sendo chamado pelos estrangeiros como “U.S.O. Beach” e foi inaugurado em 1º de março de 1943[11]. O segundo ficava localizado no bairro da Ribeira, na Praça Augusto Severo, 252, sendo conhecido como “U.S.O. Town Club” e foi inaugurado em 14 de setembro de 1943[12]. Em Natal a entidade responsável por esses locais era denominada U.S.O. Overseas Department in Natal.

Salão principal e palco do Clube U.S.O. da Ribeira.

Existem, em jornais natalenses, informações de festas realizadas nesses ambientes, que contaram com a presença de autoridades brasileiras e norte-americanas. No jornal A Ordem, edição de 15 de abril de 1944, na 1ª página, temos informações de como foram as festividades em comemoração ao dia “Pan-Americano” no U.S.O. da Ribeira. Uma data bem oportuna e característica daquela época, em que se buscava a união entre os povos do Brasil e dos Estados Unidos. Nesse evento esteve presente o General Fernandes Dantas, natural de Caicó, que nessa época era o interventor no Rio Grande do Norte nomeado por Getúlio Vargas.

Segundo o norte-americano William L. Highsmith, que serviu em Natal entre abril de 1943 e agosto de 1945, era normal na sede do U.S.O. de Petrópolis existir redes de dormir armadas em um alpendre e ele algumas vezes descansava nesse local após o turno da noite anterior na Base de Parnamirim[13].

Nesse local, na Ribeira, funcionou durante a Segunda Guerra Mundial o Clube U.S.O. dos americanos na área mais central de Natal.

Uma Verdadeira Dádiva!

Enquanto Natal e o Brasil repercutiam o encontro dos presidentes Franklin Delano Roosevelt e Getúlio Vargas a bordo do USS Humboldt, um navio tênder de hidroaviões da Marinha dos Estados Unidos que estava ancorado no Rio Potengi, a Cantina do Combatente de Natal seguia normalmente com as suas atividades. O local recebia diariamente uma média de 400 militares brasileiros e todos os dias eram enviadas cerca de 200 cartas para a sede dos Correios e Telégrafos na Ribeira. Estas seriam remetidas ao custo mensal de 5.000 cruzeiros[14].

Mas seria possível que esse local recebesse essa quantidade de frequentadores e fosse gerado esse volume de correspondências?

Muito se comenta sobre o número de norte-americanos ligados a aviação e a marinha que estiveram atuando em Natal. Muitas vezes os números apresentados sobre a quantidade desses estrangeiros na capital potiguar muitas vezes são bem inflados. Mas no meu entendimento, mesmo sem ter maiores dados, o maior contingente de militares em Natal era de brasileiros. Essa dedução surge de forma simples, quando listamos as unidades militares dos três ramos das nossas Forças Armadas que aqui estiveram.

Soldados do Exército Brasileiro em Natal – Foto Hart Preston, LIFE.

Vejam o exemplo do nosso Exército – Natal foi sede do Comando da 14º Divisão de Infantaria (14º DI)[15], do 16º Regimento de Infantaria (16º RI), da 1ª Companhia do 1º Batalhão de Engenharia (1ª/1º BE)[16], do 4º Grupo de Artilharia de Dorso (4º GADô), do I Grupo do 3º Regimento de Artilharia Antiaérea (I/3ºRAAAé), do 2º Batalhão de Carros de Combate (2º BCC)[17], do 2º Grupo Móvel de Artilharia de Costa (2º GMAC), da 14ª Companhia Independente de Transmissões, do Hospital Militar de Natal (HMN), do 24º Circunscrição de Recrutamento (24ª CR), além de outras organizações menores, ou que passaram pouco tempo na capital potiguar.

A Marinha tinha a moderna e imensa Base Naval de Natal, com seus diversos departamentos, onde circulavam centenas de marinheiros. Havia ainda a Estação Rádio na Limpa (atualmente na área do 17º GAC), a 3ª Companhia Regional de Fuzileiros Navais, a Capitania dos Portos e as tripulações de diversos navios brasileiros que utilizavam o Rio Potengi como atracadouro de forma permanente, ou temporária.

Militares americanos e brasileiros da FAB no portão da guarda da base de Parnamirim Field.

Já a Força Aérea Brasileira – FAB, mesmo tendo sido criada no primeiro semestre de 1941, estava fortemente presente em Natal, tendo sido criado em 1942 a Base Aérea de Natal e atuando na mesma área que os americanos chamavam de Parnamirim Field. Em março de 1943 a FAB tinha então cinco esquadrilhas aéreas, que formavam dois Grupos de Aviação. Havia uma Companhia de Infantaria de Guarda composta de cinco pelotões, além de toda uma enorme estrutura de apoio para que essas unidades militares cumprissem corretamente suas inúmeras missões em tempo de guerra[18].  

Comentamos anteriormente que muitos dos militares que serviram em Natal eram provenientes do interior potiguar, mas havia uma parcela substancial que vieram de outros estados brasileiros. Um exemplo claro – Quando foi criado o 16 RI, pelo Decreto Lei 3.344, de 6 de junho de 1941, sua guarnição foi formada por elementos do 29º Batalhão de Caçadores (29º BC), de Natal, complementada por elementos do 11º Batalhão de Caçadores (11º BC), da cidade do Rio de Janeiro, e da 1ª Companhia do 12º Batalhão de Caçadores (1ª/12º BC), de Jacutinga, Minas Gerais[19].

E foi para essa massa de homens fardados vindas de várias partes do país, ou do sertão potiguar, que a Cantina do Combatente serviu perfeitamente. Para um contingente de pessoas cujo salário era bastante limitado, ter um ambiente onde eles podiam se alimentar, escutar uma boa música, ler algo de bom e pegar cigarros, sendo tudo isso de graça, era uma verdadeira dádiva!

Além de ser um ótimo ponto de apoio e de encontros uma situação positiva, destinada a apoiar os militares que não sabiam ler e nem escrever, era que na Cantina do Combatente sempre era possível encontrar alguém que voluntariamente escrevesse uma carta para seus familiares em locais distantes.

Um Aparente Encerramento

Uma das festas que foi marcante na história daquele local foram as comemorações pelo Dia do Soldado de 1943. Muitas autoridades presentes, muita gente circulando e foi realizado o “Show do Combatente”. No palco se apresentaram a banda do 16º RI, da Polícia Militar, além dos “conjuntos regionais” do 2º BCC e do 2º GMAC e a orquestra do Air Transport Command (ATC), da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force – USAAF). Dividindo o palco com esses grupos musicais se apresentaram atrações locais da Rádio Educadora de Natal, que transmitiu ao vivo todo o evento[20].

Em novembro de 1943, Aluízio Alves entregou o cargo de Secretário da LBA no Rio Grande do Norte a Sra. Maria de Lourdes Dantas Matos e apresentou um relatório de sua gestão.

No tocante a Cantina do Combatente foi informado que entre dezembro de 1942 e setembro de 1943 o local forneceu mais de 52.000 refeições, expediu quase 3.500 cartas, entregou para os militares cerca de 17.500 maços de cigarros e atendeu de diversas formas 374 famílias de combatentes das três armas. Aluízio foi convidado por Dona Darcy Vargas a ir ao Rio de Janeiro, onde recebeu vários elogios da Primeira-dama pelo seu trabalho e conheceu a Cantina do Combatente na cidade carioca.

Outro evento em 1943 que foi bastante movimentado foi a comemoração do “Natal dos Combatentes”, na noite de 22 de dezembro.

Em janeiro de 1944 a Sra. Maria de Lourdes Dantas Matos anunciou que a Cantina do Combatente de Natal passaria por reformas. Mas dessa época em diante ela deixa de ser notícia nos jornais de Natal A Ordem e A República. Não encontrei nenhuma referência de sua reabertura, ou quaisquer outras notícias sobre um provável encerramento das atividades do local.

Provavelmente, como é normal em relação ao período da Segunda Guerra Mundial em Natal, a partir de 1944 a estratégica posição geográfica da capital potiguar e a atuação dos submarinos inimigos na área do Atlântico Sul já não tinha a mesma relevância e importância para os militares norte-americanos. Para os brasileiros, 1944 foi um ano onde toda atenção se voltou para o desenvolvimento da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e sua partida para o front italiano. Com isso algumas unidades militares, principalmente do Exército, foram deslocadas de Natal para outras localidades brasileiras e é provável que o movimento na Cantina do Combatente de Natal tenha diminuído bastante.

Mas esse local prestou relevante serviços ao esforço de guerra em Natal e certamente para um potiguar da cidade sertaneja de Angicos, a Cantina do Combatente foi um momento de grande aprendizado e de muita atividade administrativa na área pública. Tendo sido, juntamente com outras ações realizadas por Aluízio Alves à frente da LBA, algo que, de uma forma ou de outra, ajudou a melhor prepará-lo para assumir o cargo de governador potiguar vinte anos depois.

NOTAS


[1] Ver O combatente vespertino: A campanha de mobilização civil no jornal A Noite durante a Segunda Guerra Mundial (1942) de Vandré Aparecido Teotônio da Silva, Doutor em História Social Universidade de São Paulo. In https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1563823276_ARQUIVO_Ocombatentevespertino_VandreAparecidoTeotoniodaSilva.pdf. Visualizado em 19/10/2020.

[2] As outras faces dos presidentes: Darcy Vargas e Evita Perón, de Marina Maria de Lira Rocha Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. In http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-content/uploads/2016/11/e06_a7.pdf

[3] Ver Educação e produção de moda na Segunda Guerra Mundial: as voluntárias da Legião Brasileira de Assistência, de Ivana Guilherme Simili, Doutora em História, professora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá/UEM.

 in https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332008000200019 . Visualizado em 20/10/2020.

[4] Ver Darcy Vargas, Sarah Kubitschek e Maria Thereza Goulart: Instituição, perpetuação e reapropriação do primeirodamismo brasileiro, de Dayanny Deyse Leite Rodrigues, Doutoranda em História (Universidade Federal de Goiás), in https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1565199356_ARQUIVO_TrabalhoCompletoAnpuh2019.pdf,visualizado. Visualizado em 22/10/2020.

[5] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, ed. 21/11/1942, pág. 1.

[6] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, ed. 03/12/1942, pág. 1.

[7] O Interventor Federal Rafael Fernandes Gurjão se encontrava no interior do Rio Grande do Norte.

[8] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, edições de 05/12/1942, pág. 1 e 22/05/1943, pág. 4.

[9] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 06/12/1942, pág. 1.

[10] Em 1940, por sugestão do General George C. Marshall e com a aprovação do presidente Franklin Roosevelt, mais de um milhão de voluntários administraram mais de 3.000 clubes recreativos, que foram estabelecidos onde podiam encontrar algum espaço. Esses clubes foram alojados em igrejas, museus, celeiros, vagões de trem, lojas e outros locais improváveis.

[11] Lenine Pinto. Natal, USA. 2. Ed – Natal-RN: Edição do autor, 1995. Páginas 27 a 48.

[12] Clyde Smith Junior – Trampolim Para a Vitória. 2. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1999, Páginas 98.

[13] Clyde Smith Junior – Trampolim Para a Vitória. 2. Ed. – Natal-RN: Ed. Universitária, 1999, Páginas 32.

[14] Ver jornal A Ordem, Natal-RN, edições de 29/01/1943, pág. 1 e de 14/05/1943, págs. 1 e 2.

[15] A 14ª Divisão de Infantaria (14º DI ) foi criada pelo Decreto Reservado nº 4.700-A, de 17 de setembro de 1942, sendo anteriormente conhecida como 2ª Brigada de Infantaria. Depois a 14º DI se transformou na Infantaria Divisionária da 14ª Divisão de Infantaria (Inf Div/14ª DI), pelo Decreto nº 6.177 e 6.180, de 06 de janeiro e Aviso Reservado nº 19-9, de 14 de janeiro de 1944.

[16] Em dezembro de 1942 o 1º Batalhão de Engenharia (1ª/1º BE) se transformou no 1º/7ª Batalhão de Engenharia (1ª/7º BE).

[17] Essa unidade blindada foi criada no Rio de Janeiro, através do Decreto nº 5.003, de 27 de novembro de 1942 e transferida para Natal.

[18] Ver História da Base Aérea de Natal, de Fernando Hoppólyto da Costa. Natal-RN, Ed. Universitária, 1980, págs. 92 e 93.

[19] Ver O Nordeste na II Guerra Mundial – Antecedentes e Ocupação, de Paulo Q. Duarte. Rio de Janeiro-RJ, BIBLIEX, 1971, págs. 184 a 186.

[20] Ver jornal A República, Natal-RN, ed. 26/08/1943, pág. 8.

O QUE A FEB ENSINOU SOBRE DIVERSIDADE RACIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Ilustração existente na página 27 do livro “Brazilian Expeditionary Force in Wolrd War II”, de César Campiani Maximiano e Ricardo Bonalume, que mostra o soldado Francisco de Paula municiando um obuseiro de 105 m.m. na Itália, em setembro de 1944.

Autora – Paula Mariane, da CNN em São Paulo – 04 de julho de 2020 às 05:00 -Fonte – https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/07/04/o-que-a-feb-ensinou-sobre-diversidade-racial-em-plena-2-guerra-mundial?fbclid=IwAR0028mVMK9Q0bjfbK1uHKGUwTVb848RnfSU-_oFH7T8CjjLMRbj3XGXsxo

Enquanto os debates sobre igualdade racial dominam o debate público no ano em que se comemora os 75 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, é possível destacar que a Força Expedicionária Brasileira (FEB) foi o único contingente racialmente integrado em um conflito em que as tropas dos principais atores do campo de batalha tinham divisões segregadas. E temos muito o que aprender com isso. 

Com um Exército pouco equipado e uma Marinha defasada em termos de tecnologia, parecia óbvio pensar, na época, que seria mais fácil uma “cobra fumar” – expressão que nasce diante de uma descrença pública generalizada – do que o Brasil entrar na 2ª Guerra Mundial. No fim, o maior país da América Latina foi o único do continente a enviar tropas. 

Força Expedicionária Brasileira em acampamento no Campo de Gericinó, no Rio de Janeiro
Foto: Acervo Arquivo Nacional

“A FEB foi uma coisa revolucionária para o Brasil, mas de certa forma ela também foi revolucionária para os aliados. Embora houvesse um racismo velado, como era comum à época, a FEB foi a única tropa aliada racialmente integrada”, explica o historiador e professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) Sandro Teixeira. 

Além da luta contra o nazismo e o fascismo, a segregação racial era uma realidade nas tropas militares – mas este não era o caso da FEB, algo que surpreendeu positivamente os soldados dos Estados Unidos. 

“Você tinha negros e brancos lutando lado a lado, muito diferente do Exército Britânico, que tinha tropas segregadas, do Exército Francês e do Exército Americano”, ressalta.  

Durante parte da campanha, a FEB teve duas divisões americanas que combateram ao lado dos brasileiros, a exemplo da 10ª e da 92ª divisões de Infantaria Americana, que possuíam divisões segregadas entre soldados brancos e soldados negros. 

Força Expedicionária Brasileira em Nápoles, Itália – Foto: Acervo Arquivo Nacional

“Ao ver a FEB com uma divisão integrada, isso pode ter sido uma das chamas que acendeu o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos”, analisa. 

Alvo de notícias

A união dos pracinhas – como os combatentes brasileiros eram chamados – era admirável, e também foi tema de diversas notícias durante a guerra. 

“Todo mundo estava no mesmo barco, todos iriam combater. Digamos que as balas do inimigo não diferem ninguém por cor”, afirma Teixeira. 

“Isso foi alvo de notícias no noticiário oficial do exército americano. Os soldados americanos tinham um jornal que é muito famoso, e existe ainda nos dias atuais, chamado Stars & Stripes. E esse jornal relatava com certo ‘choque’, mas de surpresa mesmo, não de repúdio, o fato de que o Brasil, que era tido como um país atrasado política e tecnologicamente, foi capaz de enviar uma divisão integrada.”

Mais de 25 mil militares compuseram a Força Expedicionária Brasileira – Foto: Acervo Arquivo Nacional

Negociações 

A falta de tecnologia militar era, de fato, um fator preocupante para o Brasil. Desta forma, uma série de negociações feitas com os Estados Unidos possibilitaram que as Forças Armadas brasileiras pudessem ser equipadas e, em contrapartida, a FEB apoiaria os aliados. 

“É o início da nossa industrialização forte. Isso já estava na mentalidade militar, de que um envolvimento nacional era essencial para que o país tivesse segurança. É um ideal muito forte na cabeça dos militares”, afirma o professor. 

Para os EUA, o Brasil era visto “como o gigante da América do Sul, o país que deveria estar ao lado dos Estados Unidos para equilibrar a segurança do hemisfério, ou seja, para impedir que o fascismo viesse para as Américas”, explica Teixeira.

Soldados da FEB durante a Batalha de Monte Castelo, em 1945 – Foto: Acervo/Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX)

Resistência

A participação dos brasileiros na 2ª Guerra Mundial não foi bem vista por todos, em princípio: o país encontrava resistência por parte do Reino Unido, que via sua política externa ameaçada no continente sul-americano. 

“O Reino Unido procurou, de todas as maneiras, tentar vetar a entrada do envio das tropas brasileiras, porque isso, na visão deles, mudaria o papel do Brasil no equilíbrio de forças na América do Sul”, afirma.  

“Com tropas bem equipadas, o Brasil poderia se tornar a grande potência do sul [continente]. Então, havia essa preocupação.”

Aqui vemos o soldado Marcílio Luiz Pinto, de Caconde-SP, o único praça brasileiro agraciado pelo Exército dos Estados Unidos com a medalha Silver Star . Faleceu em 31 de julho de 1993, em Adamantina-SP.

Nazifascismo 

O período entre as duas guerras mundiais foi marcado por uma enorme crise econômica, além de uma descrença nos regimes democráticos, que levaram ao surgimento de ideais extremistas. 

Em 1921, com a ascensão do fascismo na Itália, iniciava-se um período ultranacionalista e autoritário naquele país. “A origem [latina] do nome fascismo vem de ‘fasce’, que era instrumento utilizado na época do Império Romano que simbolizava autoridade e poder”, explica o mestre em História Militar pela Universidade de Lisboa Fábio Laurentino. 

“A sociedade civil num todo se enxerga sem ter no que agarrar politicamente, onde as democracias parecem que falharam”, analisa. “Fascismo é uma ideologia totalitária. São regimes autoritários, que expressam um discurso muito forte, principalmente de ódio.” 

Chegada de 2.760 homens da Força Expedicionária Brasileira pelo navio James Parker, em 1945
Foto: Acervo Arquivo Nacional

Paralelamente, o mesmo sentimento de descrença faz com que o nazismo tome espaço na Alemanha. “Surge o Partido Nazista também no início da década de 1920, com a característica da sociedade alemã ter pedido a fé na força na democracia. Essa descrença é acrescida da supremacia racial”, aponta Laurentino. 

De acordo com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, estima-se que 6 milhões de judeus foram mortos durante o regime nazista. 

O que podemos resgatar da FEB

Mais de sete décadas após o fim da 2ª Guerra Mundial, há muito o que aprender com os mais de 25 mil militares que compuseram a Força Expedicionária Brasileira. E com tudo o que este conflito representou para o mundo: mais de 60 milhões de mortos e um holocausto causador de cicatrizes profundas que seguem nos dias atuais. 

“A diversidade é força. E acho que a força da diversidade que a FEB apresentou, dos soldados que foram lutar pela democracia em um outro continente, enquanto no seu próprio país não havia uma democracia, foi uma das razões para ajudar a redemocratizar o Brasil”, diz Teixeira.

“A integração e a diversidade presentes na tropa talvez tenha sido um elemento-chave para o sucesso dela”, analisa o historiador. “Talvez isso seja algo batido pela nossa história, mas é algo extremamente importante”, diz. 

“Você não tinha tensões raciais. Todos eles ali estavam combatendo, e pelo combate formaram irmãos de armas”, conclui. 

RIO DO FOGO, 1941: CHEGAM AS PRIMEIRAS VÍTIMAS

Típica cena de um afundamento no Oceano Atlântico por ação de submarinos.

A História dos Primeiros Náufragos a Chegarem ao Litoral Potiguar Durante a Segunda Guerra Mundial.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Esse texto é um dos capítulos do livro “Sobrevoo – Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte, lançado em 2018.

O caçador

Era bom voltar ao mar. Pois era no mar que ele se sentia bem, principalmente realizando o que sabia fazer de melhor: caçar e destruir navios inimigos.

Era um sábado, dia 22 de fevereiro de 1941, e da torre do seu submarino U-105, o capitão tenente (Kapitänleutnant) Georg Schewe, de 32 anos, orientava a navegação de sua nave em direção ao Atlântico pela foz do Rio Blavet, que banha a cidade francesa de Lorient. Ele deixava para trás todo o trabalho de construção da nova e grande base de submarinos nessa cidade, a qual seus superiores prometiam que, quando concluída, seria “inexpugnável” aos bombardeios ingleses, que de vez em quando se apresentavam sobre o porto e a cidade. Schewe, navegando no tranquilo Blavet, tinha a bordo entre seus oficiais os tenentes (Oberleutnant zur See) Max Wintermeyer e Ernst-Wolfgang Ravee, além do alferes (Fähnrich zur See) Hans-Erwin Reith.

Kapitänleutnant Georg Schewe

O capitão Schewe partia de Lorient no mesmo dia que o submarino U-99, comandado pelo capitão Otto Kretschmer, deixava aquele porto, e isso poderia ser um sinal de boa sorte, pois Kretschmer era simplesmente o melhor de todos os capitães da 2ª Flotilha de Submarinos (2. Unterseebootsflottille). Até aquela data ele tinha afundado ou danificado 39 navios aliados em dezesseis patrulhas de combate. Uma situação bem diferente para o aplicado Schewe, que havia participado de nove patrulhas de combate e até aquele momento havia conseguido afundar apenas três navios de carga ingleses [1].

Desde o início da guerra e por quase um ano Schewe comandou o submarino U-60, onde conseguiu sua primeira vitória com o uso de mina explosiva. Depois seguiu uma fase onde realizou várias patrulhas infrutíferas, até que em setembro de 1940 assumiu o comando do U-105, um novo e melhorado modelo IXB. Após uma fase de adaptação, partiu para a primeira missão com a sua nova nave e seus homens. Foi quando o capitão Schewe, em 39 dias de navegação, conseguiu afundar por torpedeamento dois navios a leste da Grã-Bretanha.

Foto de uma cerimônia, creditada como tendo ocorrido no U-105 – https://uboot-recherche.de/en/U105-4588

Certamente que o comandante e sua tripulação estavam otimistas com aquela patrulha que se iniciava e poderia tranquilamente superar mais de 100 dias de mar.

O próprio almirante Karl Döenitz, o Comandante dos Submarinos (B.d.U.  – Befehlshaber der Unterseeboote), ordenou que o U-105 seguisse em direção ao sul do Oceano Atlântico, junto com o U-106 e o U-124. A ideia era que essas naves de guerra buscassem novas presas em outras áreas das que os submarinos alemães atuavam naquele período, como a região do Saliente do Atlântico. Isso colocava aqueles submarinos como os primeiros do Terceiro Reich a atravessarem a linha do Equador durante a Segunda Guerra Mundial. Os outros dois submarinos partiriam de Lorient respectivamente um e quatro dias após o U-105 ter zarpado.

Se houve alguma preocupação por parte de Schewe, certamente a presença de seus experientes colegas pode ter-lhe tranquilizado e animado, pois ambos os capitães eram ótimos submarinistas. Até aquele final de fevereiro de 1940, Jürgen Oesten, comandante do U-106, iniciava sua décima patrulha de combate, tendo no currículo a marca de oito naves inimigas afundadas. Já o capitão do U-124, Georg-Wilhelm Schulz, partia para sua oitava patrulha com a experiência de ter enviado nove naves inglesas para o fundo do mar.

Como acontece com quase todos os alemães, provavelmente parte da animação do capitão Schewe estava na possibilidade de buscar superar seus companheiros de luta em número de vitórias, mesmo que essas conquistas significassem mortos no fundo do Oceano Atlântico.

Aquela caçada prometia[2].

O caçado

Um mês e alguns dias após Georg Schewe zarpar de Lorient para percorrer o Atlântico atrás de novas vítimas, no leste da Inglaterra, na cidade portuária de Kingston Upon Hull, ou simplesmente Hull, o capitão de um navio cargueiro inglês preparava sua nave para mais uma viagem aos confins do mundo, enquanto contemplava a destruição daquela velha cidade fundada no século XII.

Ataque alemão contra a cidade inglesa de Hull – Fonte – https://www.hulldailymail.co.uk/news/history/five-tragedies-hull-blitz-ww2-78134

Entre os inúmeros dramas da Segunda Guerra Mundial, sem dúvida um dos casos mais intensos foi o bombardeiro perpetrado pelos nazistas contra a Inglaterra  entre 1939 e 1940. Inseridos igualmente dentro da chamada Batalha da Inglaterra, esses ataques, que os britânicos denominam simplesmente como “Blitz”, trouxeram muita destruição a várias cidades daquelas ilhas. Uma das que mais sofreram naqueles dias foi Hull e o seu estratégico porto. A cidade foi o alvo do primeiro ataque diurno da Guerra e recebeu o último ataque aéreo contra a Grã-Bretanha. Teve 95% de suas casas atingidas, com 5.000 imóveis destruídos e, de uma população de aproximadamente 320.000 pessoas no começo do conflito, cerca de 150.000 ficaram desabrigadas por efeitos dos bombardeios.

Apesar dos danos, o porto continuou a funcionar durante toda a Segunda Guerra. E era justamente nesse porto, mais precisamente na ponte de comando do cargueiro S.S. Ena de Larrinaga, que o comandante Reginald Sharpe Craston se preocupava com a situação da sua nave. Em momentos alternados entre os dias 13 e 19 de março, a aviação nazista martelou Hull com severos e precisos bombardeios. Bastava que uma bomba de 500 kg acertasse no casco daquele navio de 5.200 toneladas, que ele afundaria rapidamente e poderia levar junto grande parte de seus 43 tripulantes.

S.S. Ena de Larrinaga – Fonte – https://www.wrecksite.eu/wreck.aspx?15355

Logo, em meio a muita tensão, a carga de carvão e outros materiais destinados a Buenos Aires, Argentina, foi colocada nos porões e o comandante Craston recebeu ordens de seguir viagem. Mas se houve certo alívio em deixar a cidade duramente bombardeada, o Ena de Larrinaga agora seguia pelo perigoso Canal da Mancha, atacado pela aviação nazista, para depois navegar em um Oceano Atlântico cheio de submarinos. Era como sair de um caldeirão com água fervente, entrar em uma frigideira cheia de óleo quente e depois cair em uma grande fogueira.

Uma foto de uma revista mostrando os náufragos do Ena de Larrinaga retornando para a Inglaterra, onde vemos o o comandante Reginald Sharpe Craston de chapéu.

O pior era que o comandante Craston e sua tripulação teriam 25 dias de viagem até a capital portenha, em meio a um mar infestado de sorrateiros e invisíveis inimigos da Marinha alemã. Inimigos que no mês anterior, fevereiro de 1940, haviam destruído ou danificado um total de 47 navios cargueiros.

Enquanto a viagem seguia pelo Atlântico, a vigilância no Ena de Larrinaga era intensa e as normas de segurança eram observadas com extremo rigor. À noite ninguém pensava em acender luzes, principalmente quando se navegava em um barco fabricado dezesseis anos antes e que desenvolvia meros dez nós de velocidade máxima, algo em torno de dezoito quilômetros por hora.

Realmente a vida a bordo de um cargueiro inglês naqueles dias não era nada fácil.

Os que ajudaram

Enquanto o mundo desmoronava em meio a um caos de sangue e chamas, em uma praia do Nordeste do Brasil havia uma pequena vila de pescadores onde a vida seguia muito tranquila.

Segundo a historiadora e funcionária pública Gislayne Chiarelle Vieira Soares, que nasceu e vive no atual município litorâneo potiguar de Rio do Fogo, em 1941 a sua comunidade não passava de uma pequena vila de pescadores, que pertencia administrativamente ao município de Touros e possuía em torno de 100 famílias.

Praça principal da cidade de Rio do Fogo – Foto – German Zaunseder.

Segundo uma pesquisa realizada por Gislayne Chiarelle, a tradição oral sobre a chegada de náufragos no lugar é muito rica. E essa tradição abrange tanto os náufragos que chegavam à praia devido a acidentes que ocorreram na barreira de recifes de corais existente a cerca de seis milhas náuticas de Rio do Fogo, quanto a sobreviventes que vieram do alto-mar.

Em um período de navegações heroicas e arriscadas, em que os homens se aventuravam por costas ainda não totalmente mapeadas, passando por áreas sem os faróis para o auxílio à navegação, conduzir um barco através dos oceanos era uma tarefa que exigia muita atenção e a experiência de sua tripulação era fundamental para uma boa viagem. É bem verdade que já se utilizavam bússolas, mapas de navegação, sextantes, cronômetros marítimos e outras ferramentas que facilitavam na navegação, mas nada era totalmente seguro. Em relação a costa do Rio Grande do Norte, esta se apresentou para os navegadores com ventos fortes em certas épocas do ano, correntes marítimas complicadas e algumas perigosas áreas com recifes de corais.

O autor desse artigo mergulhando nas áreas liberadas para os turistas nos recifes de corais, ou parrachos, de Rio do Fogo.

Ao longo dos séculos seguintes não era raro a notícia de algum afundamento nessas, especialmente nas regiões onde se encontram recifes de corais das praias de Maracajaú e Rio do Fogo, onde essas barreiras marítimas naturais são conhecidas como “parrachos”.

O interessante site Naufrágios do Brasil (http://www.naufragiosdobrasil.com.br) possui uma página específica para os afundamentos em águas potiguares. A relação traz os nomes de mais de 100 barcos e alguns aviões que repousam no fundo do mar. O mais antigo registro existente nesse site é de um barco, provavelmente uma caravela portuguesa, com o nome “São João e Almas”, que se perdeu na região do Cabo de São Roque no longínquo ano de 1677.

Nas páginas amareladas do velho jornal Publicador Natalense, edição de sábado, 2 de maio de 1840, existem várias notícias do então governo provincial potiguar, cuja presidência era exercida por Manoel de Assis Mascarenhas. Em uma delas consta que o juiz de paz do município de Touros, deu ciência em 30 de março que o brigue inglês Orion, de 198 toneladas, carregado de café do sul do Brasil, bateu e afundou nos recifes de coral diante da praia de Rio do Fogo, onde nessa época já existia uma povoação de pescadores.

68 anos após o desastre do brigue Orion, o Jornal de Recife, edição de 12 de dezembro de 1872, na sua página quatro, dá conta que, um dia após o “sagrado dia do nascimento de Jesus”, aconteceu na Alfândega da capital potiguar e na presença do vice-cônsul inglês, o leilão de 35.000 tábuas de pinho que estavam a bordo da barca inglesa N. D. Calile, totalmente destruída nos parrachos de Rio do Fogo.

Texto de Luís da Câmara Cascudo sobre Mestre Julião e os mergulhadores de Rio do Fogo.

Apesar do tempo decorrido entre essas duas notícias anteriormente comentadas, aparentemente foram tantos os naufrágios que aconteceram em Rio do Fogo, que Luís da Câmara Cascudo narrou com maestria a vida dos mergulhadores de naufrágios Mestre Julião e de seus irmãos Miguelão e João.

Esse relato de Cascudo foi inicialmente publicado na primeira página do Jornal de Notícias, do Rio de Janeiro, edição de domingo, 28 de julho de 1940, quando o grande pesquisador potiguar informou que os três irmãos Lourenço Ferreira eram nativos de Rio do Fogo, nascidos entre 1852 e 1864, e aprenderam a mergulhar em barcos soçobrados nos parrachos de sua praia para salvar materiais e manter a vida. Com o tempo angariaram fama e respeito, realizando com sucesso esse tipo de atividade em todo o litoral potiguar. Um dos barcos que os irmãos Lourenço Ferreira trabalharam ficou registrado na edição de 15 de julho de 1885 do Diário de Pernambuco, página 2, onde encontramos a informação que no dia 29 do mês anterior o veleiro de carga holandês Stella, comandado pelo capitão Kleipp, carregado de sal de Macau, bateu nos recifes de Rio do Fogo e afundou. Nesse dia, na tentativa de salvar a tripulação, uma jangada dos pescadores locais resgatou três tripulantes, mas virou a caminho da praia e um dos marujos estrangeiros morreu afogado.

Percebi, ao realizar a pesquisa para esse capítulo nos jornais antigos, que sempre existiu uma situação comum sobre esses naufrágios – o apoio da comunidade de Rio do Fogo às vítimas.

Outra visão da praça de Rio do Fogo – Foto – German Zaunseder.

A historiadora Gislayne Chiarelle me contou que um antigo habitante de Rio do Fogo conhecido como “Cachica”, falecido em 2014, narrou-lhe que em uma noite um grupo de náufragos chegou de surpresa na vila buscando ajuda e assustando a todos com um linguajar completamente desconhecido. Os moradores do lugarejo, mesmo bem assustados, saíram de suas choupanas feitas de palha de coqueiro e ajudaram aqueles sobreviventes.

Essa tradição de apoiar os náufragos que chegavam à praia de Rio do Fogo continuou acontecendo, mesmo quando no resto do mundo a barbárie era a ordem do dia.

O ataque

Enquanto a calma e a tranquilidade reinavam na idílica praia de Rio do Fogo, a bordo do submarino alemão U-105 o capitão de Georg Schewe e sua tripulação viviam um momento verdadeiramente feliz. Desde que partiram da França eles haviam conseguido afundar seis navios aliados, com um total de 33.119 toneladas de perdas, e provocado a morte de 134 tripulantes e passageiros.

Tudo começou na madrugada de 8 de março de 1941, catorze dias após zarpar de Lorient, quando o U-105 estava próximo à costa ocidental africana, a norte-nordeste das ilhas de Cabo Verde. Nessa ocasião, em conjunto com o U-124 do capitão Georg-Wilhelm Schulz, atacaram o comboio SL-6. Este era uma massa formada por 55 navios, que havia partido do porto de Freetown, na Serra Leoa, no dia 1º de março e seguia para o porto de Liverpool, Inglaterra. Tinha como escolta oito navios de guerra da Royal Navy, entre esses o porta aviões HMS Ark Royal e o cruzador HMS Renown.

Mesmo com essa proteção, os dois capitães de submarinos realizaram tão corretamente seu trabalho que entre as três e meia e as seis da manhã do dia 8 de março afundaram cinco navios comerciais britânicos, tendo sido creditado ao U-105 o afundamento do S.S. Harmodius, o primeiro dos cinco.

Depois desse sucesso, Georg Schewe se uniu ao capitão Jürgen Oesten do U-106 e atacaram implacavelmente as naves do comboio SL-68.

Capitão Jürgen Oesten – Fonte – https://uboat.net/men/oesten.htm

Esse comboio havia igualmente partido de Freetown com 60 navios e dez escoltas. Entre os dias 17 e 21 de março, em uma área a leste e a norte das ilhas de Cabo Verde, os dois capitães alemães afundaram nove navios, sendo seis britânicos e três holandeses. Coube a Schewe a destruição de cinco barcos (quatro britânicos e um holandês) e a Oesten o afundamento de outras quatro naves (duas britânicas e duas holandesas) e de ter danificado o encouraçado HMS Malaya e outro cargueiro. O Malaya só retornaria à Inglaterra e ao serviço ativo quatro meses depois.

Sabendo que a área próxima às ilhas de Cabo Verde seria intensamente patrulhada pelos ingleses depois dos sucessos desses submarinos, o B.d.U. ordenou que eles se separassem, cabendo ao U-124 permanecer patrulhando na costa ocidental africana e ao U-105 e U-106 seguirem para oeste, patrulhando uma área ao longo da linha do Equador, onde dias depois chegaram mais próximo ao arquipélago brasileiro de São Pedro e São Paulo.

O histórico encontro no Atlântico Sul em 1941, dos submarinos U-105, U-106 e o navio de abastecimento alemão Nordmark, disfarçado como o petroleiro os Estados Unidos, batizado como Prairie – Fonte – https://warfarehistorynetwork.com/2015/08/20/german-merchant-raider-kormoran-hmas-sydneys-deadly-duel/

Nessa área, entre os dias 30 de março e 1º de abril de 1941 houve o encontro do U-105, do U-106 e o navio de abastecimento alemão Nordmark. Como a Alemanha não possuía bases no exterior, as operações navais no Oceano Atlântico exigiam muitas vezes uma rede de navios de abastecimento, que se disfarçavam de navios neutros para evitar a destruição por parte dos britânicos. Na ocasião desse encontro a tripulação do Nordmark havia pintado uma grande bandeira norte-americana na sua lateral e “rebatizado” o navio como Prairie.

Estas eram operações extremamente necessárias, mas difíceis e perigosas, que podiam demorar dias por várias razões e serem interrompidas de maneira abrupta. Nesse encontro foram transferidos para o submarino de Schewe treze torpedos, óleo combustível, lubrificante, água doce e quatro semanas de provisões gerais. Abastecido e renovado, o capitão Schewe retornou à caça ainda na região de São Pedro e São Paulo. Já o U-106 seguiu viagem mais ao sul.

Foto da década de 1930, mostrando o Arquipélago São Pedro e São Paulo – Fonte BN.

No final da tarde do sábado, 5 de abril de 1941, da torre do U-105 o capitão Georg Schewe, seus oficiais e subalternos avistaram um navio mercante que se deslocava a baixa velocidade, mas de maneira firme e segura. Os alemães passaram a segui-lo de forma discreta e sorrateira.

No S.S. Ena de Larrinaga, não existem registros de como se encontrava naquele dia o estado de espírito do veterano comandante Reginald Sharpe Craston, então com 45 anos de idade e com mais de vinte anos de navegações pelos oceanos do mundo. Igualmente não sabemos como se sentiam naquele dia outros 33 britânicos, um malaio, um espanhol, um lituano, cinco caribenhos e até mesmo três japoneses que faziam parte de sua tripulação[3].

Foto meramente ilustrativa de um navio afundando, após ter sido torpedeado durante a Segunda Guerra – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_ships_sunk_by_Axis_warships_in_Australian_waters

Mas é provável que o comandante e seus homens se sentissem mais tranquilos, pois o seu navio se aproximava da linha do Equador e do Atlântico Sul, área onde nessa época os submarinos alemães ainda não atuavam.

Dez horas depois de visualizarem o Ena de Larrinaga, com a ajuda da lua em quarto crescente, Georg Schewe seguiu pacientemente a nave cargueira britânica. Quando estava a 205 milhas náuticas a sudoeste do arquipélago de São Pedro e São Paulo, o alemão encontrou as condições ideais para disparar um único torpedo G7A, com sete metros de comprimento e 280 quilos de explosivos. Este atingiu certeiramente a região da popa, explodiu na casa de máquinas da desprotegida embarcação e ela começou a afundar. O comandante Craston ordenou à tripulação seguir para os barcos salva-vidas e tomou providências para o que viria. Ficou constatado que cinco homens haviam desaparecido e após quinze minutos depois do impacto o Ena de Larrinaga desceu para o fundo.

O U-105 retornando de sua vitoriosa patrulha em 1941.

Do U-105 o capitão Georg Schewe assistiu o ataque, e após constatar que o cargueiro estava perdido deixou calmamente a área, aparentemente sem fazer contatos com os 38 náufragos, que iniciariam uma nova e dura luta.

Sobrevivência

Os barcos salva-vidas continuaram juntos durante a noite. Ao amanhecer o comandante Craston dividiu a tripulação, colocando dezenove para cada barco, e decidiu seguir para Fernando de Noronha, a cerca de 500 milhas de distância a sudoeste. Para isso utilizaram velas e remos que havia nas embarcações.

Para levantar o moral do pessoal em meio à vastidão do Atlântico Sul, o capitão Craston puxou um coro de músicas como “Land of Hope and Glory”, “There’ll Always Be an England”, “God Save the King” e “Are We Downhearted? No!”, um misto de tradicionais canções patrióticas e outras que os militares ingleses entoaram durante a Primeira Guerra Mundial. Nos barcos uma aposta foi acordada: o primeiro que chegasse à terra receberia dez libras como premiação. E era bom mesmo que eles se movimentassem para chegar a algum lugar, pois a todo momento eles testemunharam a presença de tubarões seguindo os dois barcos, circulando aos lados e de vez em quando mordendo os remos.

Certamente pela sua experiência após haver navegado muitas vezes por aquela região, onde o mar é muito quente e o sol implacável, o comandante Craston decidiu esvaziar no mar vinte e seis garrafas do mais puro uísque escocês. Recuperadas de alguma maneira pelo mordomo-chefe após o torpedeamento do navio, o capitão ordenou deixar as garrafas vazias e prontas para serem preenchidas com água fresca de alguma chuva que caísse. Com enorme pesar, a tripulação concordou que aquela era a única ação adequada a ser feita. Com certeza essa ação causou algum desespero na maioria dos marinheiros.

Logo todos estavam sedentos e as garrafas continuavam secas, quando um dia choveu de forma fraca, mal dando para os homens lamberem as poucas gotas que conseguiam reunir em seus bonés. Mas no outro dia houve um verdadeiro dilúvio, que encheu as garrafas e quase fez os barcos transbordarem. Além da água doce acumulada eles tinham duras e secas bolachas e alguma quantidade de leite condensado. Após cinco dias navegando, por razões da ação do mar, os dois barcos se separaram e cada um seguiu seu destino[4].

Navio de carga e passageiro Almirante Alexandrino.

Por sorte, três dias depois da separação, por volta das onze da noite de 13 de abril, um dos barcos foi avistado pelo paquete brasileiro Almirante Alexandrino, navio do Lloyd Brasileiro que procedia do porto de Vigo, Espanha, para o Rio de Janeiro.

O avistamento se deu a cerca de quinze milhas náuticas de Fernando de Noronha, sendo os dezenove marinheiros do Ena de Larrinaga prontamente atendidos e preparados para serem levados a Recife. Antes de seguir viagem, o capitão de longo curso Tasso Augusto Napoleão, natural de Camocim, Ceará, realizou buscas com seu navio nas proximidades do Atol das Rocas, na tentativa de encontrar os outros dezenove náufragos. Mas sem sucesso[5].

Diário da Noite, em 15-4-1941-Rio de Janeiro-RJ.

Enquanto isso, no outro barco salva-vidas, o comandante Craston demonstrava ser um verdadeiro exemplo de liderança e atenção com sua tripulação. Sua autoridade era evidente pela organização e disciplina que prevaleceu ao abandonar o navio torpedeado e durante o tempo que ficaram perdidos no mar. Ele não se negou a ajudar os mais fracos a remar, ou deixou de promover ações para levantar o moral de todos. Como exemplo, mesmo sem ter muito com que comemorar, Craston fez questão de organizar a festa de aniversário do 3° radiotelegrafista George Henry Ellis, de 18 anos, natural da cidade de Goole, região de Yorkshire, que ficou mais velho em plena imensidão do Atlântico Sul.

Qualquer coisa, por mais tola que pudesse acontecer, era motivo de discussões e atenção por parte daqueles dezenove homens perdidos no mar. Houve o caso de um tubarão brincalhão, que seguiu o barco por três dias, de vez em quando brincava com os remos e parecia “interessado” neles. Foi apelidado pelos náufragos como “Snoopy”, que nesse é um adjetivo em inglês para intrometido, curioso. Nenhuma relação com o personagem canino criado em 1950 pelo cartunista norte-americano Charles Monroe Schulz .

Já em outro momento, o encontro com os esqualos não foi nada engraçado, pois os tripulantes tiveram uma colisão com um tubarão que eles afirmaram ser da espécie tigre e possuía um tamanho calculado em “seis metros”.

O segundo bote salva-vidas do Ena de Larrinaga continuou sob o comando do comandante Craston. Este dirigiu com segurança sua diminuta nave até Fernando de Noronha, que avistou no décimo primeiro dia de navegação. Mas, além de não ter sido visto pelos habitantes do lugar, devido ao vento, mar grosso e correntes contrárias, não conseguiram desembarcar.

Agora só restava a costa brasileira a cerca de 200 milhas náuticas de distância, ou 370 quilômetros. O comandante então estabeleceu o curso e dois dias depois, na manhã do 13° dia de provação, a terra surgiu ao longe na forma de uma faixa longa e clara de dunas. Mas, para alcançar a terra, eles teriam de superar uma barreira de recifes de corais que surgiu adiante, onde o mar quebrava em fortes ondas. Foi quando um deles percebeu três pequenas embarcações com alguns homens morenos.

Eles estavam salvos!

O encontro

Manoel Rodrigues Neto, conhecido por todos em Rio do Fogo como Manoelzinho, nasceu no dia 19 de dezembro de 1935 e até recentemente pescava nas águas quentes dessa praia. No dia da chegada dos náufragos ele tinha apenas seis anos de idade; recordou da movimentação, lembrou-se de algumas imagens, mas não tinha compreensão do que acontecia na época. Soube dos detalhes por meio de seu pai.

Seu Manoel Rodrigues Neto, conhecido por todos em Rio do Fogo como Manoelzinho, sendo entrevistado sobre a chegada dos náufragos do Ena de Larrinaga, do qual ele foi testemunha – Foto – German Zaunseder.

Ele é filho do já falecido pescador Francisco Rodrigues, que no dia 18 de abril de 1941, uma sexta-feira, estava pescando em uma das três jangadas tipicamente nordestinas que estavam em um setor dos parrachos de Rio do Fogo conhecido como “Cangote”. Um lugar onde se pescava muito peixe do tipo agulhão. Seu Manoelzinho me comentou ter sido seu pai quem primeiro viu o que ele chamou de “barquinha à deriva”, que vinha sem estar com a vela montada.

Mesmo com os pescadores de Rio do Fogo já tendo conhecimento que submarinos alemães afundavam navios pelo mar afora de guerra, eles perceberam que os homens naquele pequeno barco necessitavam de ajuda e não tiveram receio em socorrê-los.

É certo que as três jangadas que ajudaram os náufragos do Ena de Larrinaga eram bastante similares as embarcações dessa foto, realizada na Praia do Pina, Recife, Pernambuco.

Francisco Rodrigues narrou ao seu filho que ele estava acompanhado de Júlio Lopes, o proprietário da jangada, e de um outro pescador de nome Lucas. No contato com os homens no barco salva-vidas eles viram muitos bastante queimados do sol, enquanto outros se protegiam embaixo de um pano desgastado, que poderia ter sido a vela original do barco salva-vidas.

A mímica foi utilizada para haver o entendimento. Logo os pescadores compreenderam que os náufragos estrangeiros queriam ir à terra. Os brasileiros então trataram de amarrar as três jangadas no barco pra rebocá-los até a beira-mar e sua vila, pois se eles continuassem à deriva iriam encalhar na altura da praia de Perobas, onde então viviam poucas pessoas em uma comunidade muito simples. Os pescadores armaram suas velas triangulares e, no dizer tradicional dos valorosos homens do mar das praias nordestinas, “abriram o pano” em direção à terra.

Uma baleeira de salvamento da época da Segunda Guerra Mundial.

Mas antes de percorrer as seis milhas náuticas, cerca de doze quilômetros, que separavam os recifes de corais da praia, os pescadores brasileiros distribuíram entre os náufragos suas cabaças de água e seus “ranchos”, ou seja, a comida que levavam para a pescaria. Segundo Seu Manoelzinho essa alimentação era basicamente composta de pão, bolachas e frutas. No barco dos estrangeiros havia muitos sorrisos de alegria e gestos de agradecimentos, pois para seu pai eles se mostraram debilitados e com bastante fome.

As três jangadas começaram a singrar, puxando aquele barco branco e pesado. Francisco Rodrigues comentou ao filho que o reboque levou cerca de uma hora e meia. Conforme se aproximavam da praia, começou a juntar gente vendo aquela cena pouco usual.

Náufragos do Ena de Larrinaga – Jornal Pequeno, Recife-PE, em 22-4-1941.

Por volta de dez da manhã, as jangadas chegaram com aqueles sofridos e estranhos homens. Alguns estavam visivelmente emocionados e passaram a beijar a areia da praia e a agradecer aos céus e aos pescadores pela salvação.

À frente da comunidade se apresentou Seu Miguel Elias, cujo nome era Miguel Gomes Ribeiro, liderança política local, que exercia a função de subdelegado em Rio do Fogo. Além de Miguel Elias, outra pessoa da comunidade que buscou ajudar os náufragos foi a professora Francisquinha Ribeiro, a única titular da então “Escola Rudimentar de Rio do Fogo” e filha de Eliseu Ribeiro. Considerada uma pessoa de muita fé e virtudes cristãs, era a professora Francisquinha que, além de ensinar o ABC aos mais jovens da comunidade, preparava-os para as aulas de primeira comunhão. De alguma forma a professora Francisquinha conseguiu manter um diálogo com algum dos estrangeiros. Acredito que tenha sido o tripulante de origem espanhola.

Entrevista com o Senhor Miguel Alves de Souza, nascido na comunidade de Rio do Fogo em 18 de setembro de 1921 e conhecido por todos como “Miguel de Doens”.

Outro dos moradores da pequena vila de Rio do Fogo que testemunharam a chegada dos náufragos foi o Senhor Miguel Alves de Souza. Nascido nessa comunidade em 18 de setembro de 1921 é conhecido por todos como “Miguel de Doens”. Ele relembrou a movimentação das pessoas da vila, que viram as jangadas que haviam partido pela manhã retornando cedo e trazendo a reboque um barco desconhecido. Praticamente toda Rio do Fogo estava na beira-mar querendo saber o que era aquilo.

Seu Miguel, além da tripulação da jangada de Júlio Lopes, lembrou que alguns dos pescadores que estavam nas outras jangadas eram Luiz Colaço, Chico de Cândico e recorda que também havia um conhecido como Chico Caetano. O nosso entrevistado percebeu que o estado geral de alguns náufragos ainda era bom, mas a maioria estava debilitada, bastante queimada do sol, desanimada; no entanto, viu que ainda havia alguma comida com eles. Para se ter uma ideia do estado desses náufragos, dias depois o Jornal Pequeno, de Recife, em sua edição de 22 de março de 1941, informou que dos náufragos, mesmo com todos os cuidados recebidos em Rio do Fogo, Touros e Natal, vários ainda inspiravam atenção. Principalmente o 2° oficial inglês Harold Greville Morgan, que se encontrava com os lábios em carne viva, e o malaio Abdul Bin Doolan, que quase havia morrido na travessia e não conseguia comer nada.

A Noite, de 20-4-1941- Rio de Janeiro-RJ.

Em Rio do Fogo quase ninguém entendeu patavina do que os náufragos falavam, mas ficaram impressionados com todo o acontecimento e com a altura daqueles marinheiros estrangeiros. Os habitantes da vila compreenderam pelos gestos que o navio tinha sido torpedeado por um submarino e que eles vinham de longe, de “bem lá dentro do mar”, segundo narrou Seu Miguel.

Enquanto a população fornecia água de coco e alguma comida para aqueles homens, ambos os entrevistados confirmaram que as lideranças locais, devido à inexistência de veículos e estradas transitáveis, logo começaram a organizar a preparação de outras jangadas para levar aquele povo para Touros, a maior cidade das redondezas. A rapidez se justificava, pois a navegação levava algumas horas entre Rio do Fogo e Touros e os pescadores não teriam condições de seguir à noite devido aos perigosos recifes de corais. Logo uma pequena flotilha de jangadas acomodou os dezenove estrangeiros e seguiram costeando pela beira-mar.

Antiga Sede da prefeitura de Touros – Fonte – Vila Praieira, via http://tourosemfoco.blogspot.com/2015/08/antigo-palacio-porto-filho-antiga-sede.html

Nesse tempo Touros possuía uma área territorial bem maior que a atual. Segundo o livro “Povoados do Rio Grande do Norte em 1943 e populações urbanas e rurais”, escrito por Anfilóquio Carlos Soares da Câmara e impresso em 1944 pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, esse município possuía mais de 1.780 km² de área e abrangia várias comunidades que se tornaram municípios autônomos, como Barra de Maxaranguape, Pureza, São Miguel do Gostoso e a própria Rio do Fogo. Já a população da cidade era inferior a 2.000 pessoas, enquanto em sua vasta zona rural viviam 87% da população de 16.777 habitantes.

Segundo Seu Miguel e Seu Manoelzinho, ninguém em Touros esperava a chegada daquele pessoal. Quem tomou a frente para apoiar os náufragos foi o Padre Bianor Aranha, então pároco da cidade, que conseguiu dialogar com alguns dos náufragos em língua estrangeira, provavelmente italiano ou francês. Outro que ajudou no apoio foi Júlio Lopes do Nascimento, então presidente da Colônia de Pescadores Z-2, que abrangia o município de Touros.

Um telegrama foi enviado da cidade para as autoridades em Natal. Através de um pedido do cônsul inglês ao então governador Rafael Fernandes, foi solicitado às lideranças em Touros que providenciassem a vinda dos náufragos para a capital o mais rápido possível. Logo um caminhão foi preparado e este trouxe os náufragos na carroceria, além de um motorista, o padre Bianor e o capitão do Ena de Larrinaga na cabine.

O que as pessoas em Rio do Fogo e em Touros não sabiam era que aqueles dezenove náufragos eram as primeiras vítimas de uma ação direta de combate na Segunda Guerra Mundial a chegarem ao Rio Grande do Norte.

Outras mais viriam no futuro!

Retorno

Diário da Noite, em 16-4-1941-Rio de Janeiro-RJ.

O comandante Craston e seus homens ficaram hospedados na “Pensão Familiar”, de Dona Maria Cabral, na subida para a Cidade Alta, na antiga Avenida Junqueira Aires, número 417, onde hoje se localiza o Solar Bela Vista. O vice-cônsul britânico em Natal, Mr. Willian F. Scotchbrook, proibiu terminantemente os dezenoves homens de manterem contato com pessoas da cidade. Certamente o vice-cônsul sabia da ação dos simpatizantes e espiões nazifascistas em Natal e quaisquer informações vazadas poderiam ser úteis aos inimigos.

A Polícia Marítima listou os seguintes membros da tripulação do Ena de Larrinaga que estiveram em Natal: comandante Reginald Sharpe Craston, 2° oficial Harold Greville Morgan, 1° telegrafista Maurice William Trevethick, 3° telegrafista George Henry Ellis, chefe de máquinas Richard McMillon, 2° maquinista James Alexander Walker, carpinteiro John Lorenz, faroleiro Osman Bin Usop, os marinheiros James Clemento, Abdul Bin Doolan, Richard Raffel, Charles Mizzi, moços de convés (profissão marítima) Albert Wilkinson, Seduz Olbert Hamilton e Joseph Albert Hood, foguistas Siduez Reginald Harold,  comissário Ignácio de Boatigui, 2° comissário Joseph Francis Vella e o ajudante de cozinha Thomaz Binsalch.

Placa com a relação dos mortos do Ena de Larrinaga, existente em Londres, um monumento aos mortos da marinha mercante britânica durante a Segunda Guerra Mundial.

Logo eles deixaram Natal no navio Brasil, com destino a Recife, onde toda a tripulação foi novamente reunida, ficando alguns dias regularizando documentação perdida e estadia por conta do Consulado Britânico. Uma semana depois partiu para os Estados Unidos no transatlântico brasileiro Buarque. Na saída do porto de Recife a tripulação do Ena de Larrinaga foi saudada pela tripulação e pela sirene do navio Brasil.

Após partirem de Nova Iorque, chegaram à Grã-Bretanha e cada um seguiu seu destino.

No final do ano de 1941, pelo seu profissionalismo, capacidade de superação e por haver conseguido salvar grande parte de sua tripulação, o comandante Reginald S. Craston foi condecorado com a medalha da Ordem do Império Britânico (Order of the British Empire, ou OBE) e a Medalha de Guerra Lloyd’s por bravura no mar. Ele voltaria a comandar outro navio mercante e novamente sua nave foi atingida por torpedos e afundou. O nome do navio era Ocean Venture, tinha sido colocado em condições de navegação em dezembro de 1941 e dois meses depois, em 8 de fevereiro de 1942, foi afundado pelo submarino alemão U-108, defronte ao Cabo Hatteras, na costa leste dos Estados Unidos. Dessa vez 31 tripulantes pereceram e o capitão Craston e mais treze tripulantes foram recolhidos pelo destroier da Marinha americana USS Roe, e desembarcados no porto de Norfolk, estado da Virgínia.

O comandante Reginald S. Craston faleceu de causas naturais em 1962.

Os náufragos do Ena de Larrinaga, em foto do Diário da Noite-15-4-1941-RJ.

Em 13 de junho de 1941, depois de passar 112 dias no mar, o capitão Georg Schewe trouxe seu U-105 e sua tripulação de volta ao porto francês de Lorient. Se até então Schewe só havia afundado três navios em várias patrulhas de combate, apenas nessa patrulha ele destruiu doze naves, que totalizaram 71.450 toneladas de navios Aliados perdidos, tornando aquela patrulha a terceira mais produtiva de todos os submarinos alemães em toda a Segunda Guerra Mundial. O capitão Schewe realizou mais duas patrulhas e afundaria apenas mais um navio inglês, alcançando a marca total em sua carreira de 16 navios inimigos destruídos, com 85.779 toneladas perdidas no fundo do mar e 175 tripulantes inimigos mortos.

Esse militar seria então removido para funções em terra, onde sobreviveu ao conflito, vindo a falecer em 1990 na cidade alemã de Hamburgo, aos 80 anos de idade.

Os Senhores Miguel Alves de Souza e Manoel Rodrigues Neto concordam que os acontecimentos envolvendo a chegada daqueles náufragos foi algo marcante para a história de Rio do Fogo e que os fatos ocorridos são um exemplo do que as pessoas do seu lugar têm de melhor: um forte espírito de solidariedade.

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Nota do autor: para realizar essa pesquisa, esteve ao meu lado na praia de Rio do Fogo o amigo German Zaunseder, nascido na Argentina, descendente de alemães que lutaram na Segunda Guerra Mundial, que há vários anos vive em Natal e é um grande pesquisador sobre temas da Segunda Guerra Mundial. Contei igualmente com o imprescindível apoio financeiro do empresário Luiz Augusto Maranhão Valle, grande batalhador pela história e cultura potiguar.

NOTAS ——————————————————————————

1 – O que Georg Schewe não sabia é que vinte dias depois o U-99 seria afundado a sudeste da Islândia e Otto Kretschmer seria capturado. No total esse submarinista afundou, ou danificou, 47 navios, perfazendo um total de 312.383 toneladas perdidas. Kretschmer passou seis anos preso e retornou à Alemanha em 1947, onde ingressaria na nova Marinha da Alemanha Ocidental. Chegou ao posto de almirante, ocupou altos cargos na OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte e faleceu em 1997, aos 86 anos de idade.

2 – Na atualidade, através do uso da internet, é possível realizar de maneira bastante razoável uma pesquisa sobre a trajetória de quaisquer submarinos alemães e de seus capitães que atuaram na Segunda Guerra Mundial, bem como de suas inúmeras vítimas. Os sites https://uboat.net e http://www.uboatarchive.net/ (língua inglesa), http://www.u-boot-archiv.de/ (língua alemã) e http://www.u-historia.com/ (língua espanhola) possuem muitas informações. Os dois primeiros aqui comentados são os melhores pela qualidade do material exposto, pois são baseados em documentos originais e em farta literatura.

3 – Não esquecer que o Japão e a Inglaterra só entrariam em guerra contra os britânicos em dezembro de 1941.

4 – Antes de retornarem para a Grã-Bretanha, o comandante Reginald Sharpe Craston e os outros sobreviventes do Ena de Larrinaga estiveram em Nova York, onde deram entrevistas à imprensa norte-americana narrando a sua luta pela sobrevivência no Atlântico Sul, sendo a principal para a revista The Lookout, da Seamen’s Church Institute of New York, volume XXXII, número 7, julho de 1941, páginas 7 e 8.

5 – Tasso Augusto Napoleão, além de capitão de navio mercante, foi político, tendo exercido o cargo de Intendente da cidade litorânea cearense de Camocim entre 1917 e 1918, cargo atualmente equivalente ao de prefeito municipal. Depois o comandante Tasso dedicou a vida a comandar navios, tendo passado muitos anos no comando do navio Almirante Alexandrino. Ver Folha doLitoral, Camocim, Ceará, edição de domingo, 29 de setembro de 1918, página 2.

OS PESCADORES NORDESTINOS QUE ENCONTRARAM UM SUBMARINO NAZISTA E SOBREVIVERAM PARA CONTAR A HISTÓRIA

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Tal como em 2020, o ano de 1942 foi bastante sombrio para o mundo e para o Brasil. Se no atual período, em pleno século XXI, uma pandemia vindo da China que apavora e mata, nos anos 40 do século passado eram submarinos nazifascistas que assolavam os oceanos, especialmente o Atlântico, com suas ações de combate que infligiram muitas mortes e destruição.

Tal como no início de 2020, quando as primeiras notícias da expansão do COVID-19 parecia algo distante e que não afetaria tanto o nosso dia a dia, algo semelhante ocorreu no Brasil durante os momentos iniciais da Segunda Guerra Mundial. Toda a problemática parecia distante, do tamanho do mar que separa nosso país da Europa. Em minha opinião isso durou até o momento da queda da França.

Soldados alemães desfilam no Champs Élysées em 14 de junho de 1940 (Bundesarchiv) – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Paris_in_World_War_II#/media/File:Bundesarchiv_Bild_146-1994-036-09A,_Paris,_Parade_auf_der_Champs_Elys%C3%A9e.jpg

Uma situação que realmente abalou a sociedade brasileira, até pela influência que a cultura francesa exercia em nosso país. Nessa época os alemães conquistaram vários portos franceses e passaram a utilizá-los com seus submarinos, ampliando a capacidade de ação dessas naves. Logo chegavam mais e mais notícias de ataques contra o transporte marítimo Aliado.

 O Oceano Atlântico se tornou um verdadeiro campo de lutas, que ficou marcado na História como a Batalha do Atlântico.

Foto de 1943, da ação da Marinha do Brasil na Batalha do Atlântico – Fonte – Marinha do Brasil.

Essa foi a mais longa campanha militar da guerra. Durou de setembro de 1939 até a derrota da Alemanha em maio de 1945 e durante esses seis anos navios e submarinos alemães – mais tarde com a participação de italianos – lançaram-se com eficiência e coragem para controlar as rotas marítimas e atacar os comboios aliados que transportavam equipamentos e suprimentos vitais.

A Guerra no Mar

No início os navios de guerra alemães realizaram uma série de incursões, mas tiveram sucesso limitado, levando à perda de grandes navios, incluindo os poderosos encouraçados de bolso Graf Spee e Bismarck. O foco da marinha alemã passou então a ser a escalada da guerra submarina, com a construção de várias unidades.

Os submarinistas alemães atacavam os navios mercantes inimigos de forma solitária ou em grupos, as chamadas “Alcateias de lobos”. Disparavam com destreza torpedos e tiros de canhões e depois submergiam para fugir dos contra-ataques dos navios escolta. Os alemães obtiveram muito sucesso nos primeiros anos da Guerra, chegando a afundar em 1941 um total de 875 navios Aliados. O entusiasmo dos germânicos era tão elevado, que eles classificaram esse período como “Tempos felizes”.

Mas os britânicos não fraquejaram. Eles conseguem algumas vitórias com o apoio dos canadenses e a ajuda dos Estados Unidos, através do envio de 50 destroieres seminovos, recebidos em troca do acesso a bases britânicas.

Um marinheiro mercante observa o destróier canadense HMCS Swansea em serviço de escolta no Atlântico Norte. Crédito da foto: Library Archives Canada PA-112995

Não podemos esquecer que a evolução tecnológica, trabalhou em favor dos Aliados, incluindo a colocação de radares em navios de escolta a partir de agosto de 1941. No entanto, os comboios eram ainda muito vulneráveis, principalmente em áreas onde a cobertura e a proteção oferecida pelos aviões antissubmarinos eram limitadas pelo alcance.

Em 1942 novos submarinos alemães entraram em serviço a uma taxa de vinte por mês. Embora a Marinha dos Estados Unidos tenha entrado na Batalha do Atlântico no final de 1941, estes foram incapazes de evitar o afundamento de quase 500 navios, entre janeiro e junho de 1942.

Primeiro Ministro Winston Churchill.

O caso era tão sério que o abastecimento de gasolina e comida para a Grã-Bretanha atingiu níveis criticamente baixos. Até mesmo o inquebrantável Primeiro Ministro Winston Churchill, comentou em suas memórias que durante a guerra seu maior medo em relação aos inimigos era a ação dos seus submarinos.

O Brasil no Caminho da Guerra

As primeiras notícias de algum navio brasileiro atacado pelos nazistas nada teve haver com a ação de um submarino no Oceano Atlântico, mas foi resultado de um ataque aéreo alemão no Mar Mediterrâneo.

Foi no dia 22 de março, em um trajeto entre a ilha de Chipre e a cidade egípcia de Alexandria, que o cargueiro Taubaté, de 5.099 toneladas, foi atacado com bombas e tiros de metralhadoras de um avião bimotor alemão. Nesse episódio o conferente José Francisco Fraga, quando tentava com outros colegas içar uma bandeira brasileira para que o avião cessasse o ataque a uma nave neutra, foi crivado de balas. Fraga se tornou o primeiro brasileiro morto por uma ação de combate realizada por forças nazistas. Mesmo danificado o Taubaté conseguiu chegar ao porto de Alexandria e entre os membros da tripulação que testemunharam o ataque estavam o foguista João Lins Filho, potiguar, e o 2º cozinheiro Teodoro da Silva Ramos, pernambucano. Ramos inclusive levou vários estilhaços nas costas, ocasionando feridas que deixaram grandes cicatrizes (Detalhes sobre esse ataque ver https://tokdehistoria.com.br/2018/02/01/1941-o-ataque-de-um-aviao-nazista-ao-cargueiro-taubate-e-o-primeiro-potiguar-a-testemunhar-o-horror-da-segunda-guerra/ ).

Esquadrão de caça e destruição de submarino VP-52, equipado com hidroaviões Catalina. Eles foram a primeira unidade militar dos Estados Unidos a chegar em Natal, Rio Grande do Norte, no dia 11 de dezembro de 1941. Depois se notabilizaram destruindo navios de cargas japoneses no teatro de guerra do Oceano Pacífico – Fonte – Coleção do autor.

Nesse meio tempo os brasileiros que viviam na porção nordeste do país começaram a perceber a chegada paulatina da guerra.

Em 18 de abril de 1941, uma sexta-feira, pescadores da bela praia potiguar de Rio do Fogo, ao norte de Natal, ajudaram no resgate de dezenove náufragos do cargueiro inglês Ena de Larrinaga, afundado próximo ao Arquipélago de São Pedro e São Paulo pelo submarino U-105. No dia 11 de dezembro chegava a Natal seis hidroaviões Catalina da esquadrilha VP-52, da Marinha dos Estados Unidos, que passaram a patrulhar o nosso litoral e o Atlântico Sul. No primeiro mês do novo ano de 1942, mais precisamente em 28 de janeiro, o Brasil decidiu romper relações com a Alemanha após a III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, realizado no palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro.

A partir desse acontecimento, a destruição de navios brasileiros por submarinos se tornou comum nos jornais. A primeira vítima ocorreu em fevereiro de 1942 e foi o navio de carga e passageiros Buarque, de 5.152 toneladas, que foi afundado na costa dos Estados Unidos no dia 12, com a morte de um tripulante. No mesmo mês se juntou ao Buarque no fundo do mar os cargueiros Olinda e o Cabedelo. O primeiro foi destruído, sem vítimas, pelo submarino alemão U-432. Já o Cabedelo desapareceu na segunda quinzena de fevereiro, sem deixar vestígios, em algum ponto do Oceano Atlântico, onde pereceu toda a tripulação. Acredita-se que esse afundamento foi uma ação do submarino italiano Da Vinci.

Lista de sobreviventes do navio de carga brasileiro Comandante Lira, transportados pelo cruzados USS Omaha, da Marinha dos Estados Unidos, após seu torpedeamento pelo submarino italiano Barbarigo, em 18 de maio de 1942.

Entre o final de fevereiro e o final de julho, outros onze barcos de bandeira brasileira foram atacados no Atlântico Norte, na costa norte-americana e no Mar do Caribe, totalizando 80 mortos e 51.728 toneladas perdidas. Somente o cargueiro Comandante Lira, danificado a 900 milhas náuticas de Natal, e o veleiro de transporte de cargas Paracury, com 265 toneladas é atingido por disparos ao sul da República Dominicana, conseguiram sobreviver para retornar ao serviço. Sobre esse último caso ver https://uboat.net/allies/merchants/ship/1745.html

Mas quando agosto chegou os alemães abriram as portas do inferno nas calientes águas do litoral nordestino.

O Submarino Alemão

Oficiais na torre do U-507.

O U-507 era um submarino do tipo IXC, comandado pelo Korvettenkapitän (capitão de corveta) Harro Schacht, um alemão de 35 anos de idade, originário de uma cidade portuária na Baixa Saxónia chamada Cuxhaven, localizada no norte daquele país. Até agosto de 1942 Schacht e seus 53 tripulantes haviam enviado para o fundo do mar nove navios mercantes e danificado um. Estas ações ocorreram em duas patrulhas de combate, ocasionando a morte de 98 pessoas e totalizando 51.543 toneladas de material flutuante perdido.

Símbolo da torre do U-507.

Segundo os dados existentes, a terceira patrulha de combate do U-507 começou no dia 4 de julho, quando os alemães partiram da cidade francesa de Lorient. Em 13 de julho Schacht passou a poucos quilômetros a leste da ilha da Ribeira Grande, no Arquipélago dos Açores, aparentemente sem chamar atenção das autoridades portuguesas. Depois seguiu em patrulha até o dia 25 de julho, onde realizou um encontro na região de Cabo Verde com o submarino U-116, para receber 28 mil litros de óleo combustível e suprimentos.

Entre 30 e 31 de julho, o U-507 se encontrava a norte/noroeste do Arquipélago de São Pedro e São Paulo e seguiu em direção a costa brasileira. Três dias depois informou que alcançou as coordenadas geográficas 03°, 27’ S 36°, 33’ W, um local a cerca de 90 a 100 milhas náuticas da costa do Ceará e do Rio Grande do Norte, algo entre 165 a 185 quilômetros de distância. Depois se afastou da costa nordestina, retornando em direção a São Pedro e São Paulo, onde no dia 8 de agosto passou ao norte desses isolados pontos rochosos. Depois manobrou em direção sudoeste, apontando novamente para a costa brasileira. Nesse trajeto esteve entre 11 e 12 de agosto a poucas milhas náuticas a noroeste de Fernando de Noronha e continuou se aproximando do nosso litoral de forma decidida. Dois dias depois estava na altura de Maceió.

Um hidroavião Consolidated PBY Catalina – Fonte – NARA. 

Aqui cabe abrir um parêntese para comentar que nessa época em Natal operava o esquadrão VP-83 da Marinha dos Estados Unidos, a US Navy, equipado com uma dezena de hidroaviões Catalina, que realizavam constantes patrulhas de vigilância nessa região. Essas aeronaves estrangeiras eram apoiadas por vários aviões e hidroaviões da Força Aérea Brasileira, que mesmo carente de materiais modernos, se desdobrava ao máximo para patrulhar o litoral. Além desse material aéreo, a US Navy, operava algumas unidades navais, onde se destacavam os cruzadores USS Omaha e USS Milwauke, além de alguns destroieres e navios de apoio. Essas naves eram subordinadas ao grupo de operações navais denominado Task Force Twenty Three (Força Tarefa 23), ou TF23, sob o comando do almirante Jonas Howard Ingram. A TF23, que futuramente se transformaria na Four Fleet, ou Quarta Frota, operava em conjunto com a Marinha do Brasil, que por sua vez se esforçava para cumprir suas missões com uma pequena e bastante envelhecida frota de navios.

Mas como ninguém se colocou na sua frente, Schacht continuou seguindo direto para o litoral brasileiro.

Inferno em Alto Mar

Segundo o interessante livro “Operação Brasil”, de Durval Lourenço Pereira, que trás informações do diário de bordo do U-571 e mostra a ação de forma intensa, às sete da noite de 15 de agosto começou o ataque do U-507 ao navio brasileiro Baependi.

O navio brasileiro Baependi – 270 pessoas mortas.

No primeiro momento dois torpedos são disparados, mas erram. Entretanto o navio segue lento e o alemão consegue reposicionar seu submarino, ultrapassando o barco brasileiro. As 19h12 abre fogo com outros dois torpedos e logo o navio vai para o fundo do mar.  Depois de tantos dias de navegação Schacht e seus homens exultam com a vitória. Já no Baependi sobrevivem apenas 36, dos seus 322 tripulantes e passageiros.

O navio brasileiro Araraquara – 131 pessoas mortas.

Logo após o ataque, Schacht segue atrás de outro alvo, que surge bastante iluminado. É o navio de passageiros Araraquara, construído na Itália em 1928 e considerado uma nave luxuosa. Pouco depois das nove da noite é disparado um torpedo que faz o Araraquara partir-se ao meio e afundar em cinco minutos. Salvam a vida apenas 11, dos seus 142 tripulantes e passageiros. Esses afundamentos, que ocorreram com uma diferença de menos de duas horas, foram em pontos defronte a divisa entre a Bahia e Sergipe.

O navio brasileiro Aníbal Benévolo – 150 pessoas mortas.

Depois, já na madrugada do dia 16, o U-507 se coloca em um setor mais ao sul da primeira carnificina, já no litoral norte da Bahia, onde um novo alvo é localizado. Depois de realizar certas manobras o alemão coloca seu submarino a apenas mil metros do novo ponto visado e as 04h13 ataca e afunda o navio de passageiros Aníbal Benévolo. O Suplício dessa nave foi extremamente rápido e extremo. Em poucos minutos ele desapareceu nas águas e das 154 pessoas a bordo, só se salvaram quatro tripulantes.

A ação do alemão foi tão contundente e destruiu seus alvos de forma tão avassaladora, que nenhum dos três navios afundados emitiu quaisquer sinais de socorro. O caçador alemão podia continuar agindo impunemente no litoral nordestino.

Farol da Barra e salvador antes da Segunda Guerra Mundial – Fonte – http://www.bahia-turismo.com/salvador/barra/barra-antiga.htm

Na sequência do dia 16 de agosto, o U-507 se aproxima de Salvador e às sete da noite Schacht avista os faróis de Itapuã e depois o de Santo Antônio da Barra, na entrada da baía de Todos os Santos, além das luzes de Salvador. Mas nada de navios.

O navio brasileiro Itagiba – 36 pessoas mortas.

Na manhã de 17 de agosto outro navio é avistado ao norte da ilha de Tinharé, próximo ao farol do Morro de São Paulo. Esse é o Itagiba, que vinha do Rio para Salvador e, quase as onze da manhã, é atingido por torpedo e afunda em 10 minutos. Morreram 36 pessoas e 145 sobrevivem pelo valoroso trabalho de resgate realizado pelo iate Aragipe, um barco costeiro de 300 toneladas, comandado por Manoel Balbino dos Santos, que passava pelas proximidades seguindo para Salvador, ou Ilhéus, segundo outras fontes.

O navio brasileiro Arará – 20 pessoas mortas.

Schacht tem tempo de observar pelo periscópio o trabalho de resgate realizado por Balbino e sua tripulação, mas logo avista outro navio, outro alvo. É o pequeno cargueiro brasileiro Arará, de apenas mil toneladas de deslocamento, que se aproxima para ajudar a recolher os náufragos. Durval Lourenço aponta corretamente que Schacht “mostrou total desprezo pela vida humana”, quando atacou um navio desarmado que recolhia náufragos e disparou sua carga de torpedos a menos de 500 metros do alvo. O ataque ao Arará ocorreu duas horas após o fundamento do Itagiba. O saldo trágico deste último afundamento foi de 20 mortos e 16 sobreviventes. Segundo uma notícia publicada em O Jornal, do Rio de Janeiro (21/08/1942, págs. 1 e 6), depois de recolher um grande número de náufragos do Itagiba o mestre do iate Aragipe, Manoel Balbino dos Santos, quis ir até o local do sinistro do Arará e ajudar os necessitados. Mas foi veementemente impedido pelos náufragos do Itagiba e seguiu para a cidade de Valença. Outras fontes apontam que na verdade o Aragipe estava mesmo era lotado e por isso teve de sair da área.

Pouco depois das cinco e meia da tarde o U-507 avista outro navio e parte para o ataque. Seria a sua terceira vitima do dia, mas dessa vez Schacht não obtém sucesso. O torpedo falhou e o navio, que seria de nacionalidade sueca, estava se movendo rápido demais para o U-507 pegá-lo antes de entrar na baía de Todos os Santos.

Catalina do VP-83, que atuou no Brasil.

Após o fracasso ele decide navegar para o sul da Bahia. No outro dia o U-507 está imóvel na superfície, com sua tripulação realizando o concerto de um tubo lança torpedo. Um serviço que deixa aquela nave de guerra vulnerável. É quase uma e vinte da tarde de 18 de agosto, quando o submarino é visto pela tripulação do Catalina do VP-83, pilotado pelo tenente John M. Lacey. Os americanos atacam com disparos de metralhadoras e o lançamento de cargas de profundidade. Após os impactos o piloto achou que havia afundado o submersível porque viu uma mancha de óleo e bolhas de ar na superfície, mas Schacht escapou com seu submarino.

Não consegui encontrar um foto identificando o Jacyra. Talvez ele fosse parecido com o barco da foto, certamente maior. Não houve mortos no afundamento do Jacyra – Fonte – TIME/LIFE

O capitão alemão continuou levando sua nave em direção sul, até as proximidades de Ilhéus. Na madrugada de 19 de agosto os alemães encontram um pequeno veleiro costeiro de transporte de mercadorias chamado Jacyra, que foi abordado. Os nazistas revistam o veleiro, mas não encontram nada de útil. A seguir ordenam a tripulação brasileira que sigam para a praia e o barco é dinamitado. Foi uma parada arriscada, realizada perto do litoral, para revistar e depois afundar um veleiro que nem ultrapassava as 100 toneladas. 

Todos esses barcos brasileiros foram atacados e afundados em posições que variam de 7 a 30 milhas náuticas de distância, algo entre 13 a 55 quilômetros das belas praias dos litorais da Bahia e Sergipe. No total morreram 607 pessoas, entre homens, mulheres e crianças e foram perdidos 14.911 toneladas em naves afundadas.

O navio sueco Hammaren – Seis pessoas mortas.

No dia seguinte após o afundamento do Jacyra, por volta do meio dia, o U-507 está novamente próximo da bela localidade de Morro de São Paulo e a noite avistam as luzes de Salvador. Schacht permanece com seu submarino na área da entrada da baía de Todos os Santos  por todo o dia 21, mas não visualizam nenhum alvo. Na madrugada do dia 22, na altura do farol de Itapuã, Schacht encontra o navio sueco Hammarem, que navega sem luzes. Mesmo trazendo no seu mastro a bandeira de um país neutro, o alemão ordena o lançamento de dois torpedos, com resultados negativos. Ele espera o dia amanhecer para disparar tiros de canhão. O Hammarem é atingido na proa e para as máquinas, Schacht então dispara seus torpedos para enviar o navio para o fundo. Seis tripulantes morrem na ação. Depois o alemão segue em direção norte. 

Guerra

Para o Brasil de 1942, aqueles afundamentos ocorridos em poucos dias foi um verdadeiro choque. Algo que abalou fortemente a população. Conforme os dias foram passando e fotos terrivelmente duras de cadáveres em decomposição nas praias sergipanas e baianas foram mostrados nos jornais e revistas, o povo brasileiro se encheu ainda mais de indignação, dor e raiva. Milhares de pessoas saíram espontaneamente às ruas de várias cidades pedindo a declaração de guerra contra a Alemanha. No entanto a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas levou alguns dias para assinar essa declaração, fato ocorrido em 22 de agosto. Isso tudo em meio a um forte clamor popular nas ruas do Rio, algo que Vargas não tinha muita prática e experiência de lidar.

Aquela atitude popular, considerada inusitada em meio a uma das ditaduras mais terríveis e nefastas da história do Brasil, para mim não é surpreendente. Naquele tempo viajar de navios era algo extremamente normal em todo planeta e também para os brasileiros. Estes últimos viviam em um país continental com muita agricultura e poucas indústrias, com uma malha ferroviária relativamente pequena para as suas necessidades, desprovido de boas estradas, sem uma indústria automotiva que suprisse a demanda e com um transporte aéreo destinado basicamente aos mais ricos. O transporte marítimo era muito popular, até mesmo para alguém que vivia com poucos recursos no Brasil. Navegar, mesmo mal acomodados na terceira classe dos barcos de cargas e passageiros, era a única opção para seguir para rincões mais longínquos.

Além do livro de Durval Lourenço, outra maneira de visualizar a rota do que o U-503 realizou para destruir sete barcos na costa brasileira, é através do interessante site https://uboat.net/ Seguramente o melhor existente na internet, com uma enorme gama de informações sobre a ação dos submarinos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Na imagem vemos o traçado em vermelho da rota da patrulha de combate do U-507 , que durou de 4 de julho até 12 de outubro de 1942. Na imagem, os pontos em laranja são os barcos afundados na costa brasileira – Fonte – https://uboat.net/boats/patrols/patrol_1099.html

Na página 177 do livro “Operação Brasil”, encontramos um interessante mapa que mostra a rota percorrida pelo U-507 no litoral brasileiro. Após o último ataque próximo a costa baiana, o submarino navegou várias milhas mar adentro e passou longe de Aracajú. Mas quando estava na altura de Maceió, o comandante alemão começou a retornar para perto da costa nordestina. Ele planejava realizar um ataque contra o porto de Recife, Pernambuco, então um dos mais movimentados no Brasil daquela época.

Os Quatro Pescadores do Pina

Provavelmente o comandante alemão desejava atacar disparando torpedos nos vapores ali ancorados, ou utilizando o canhão de 105 m.m. que existia em sua nave para destruir estruturas portuárias. Em 23 de agosto Schacht enviou uma mensagem ao B.d.U., ou Befehlshaber der Unterseeboote, o Comandante dos submarinos alemães, cargo exercido pelo almirante Karl Dönitz, informando sobre suas intenções. Apesar de ter liberdade de ação no litoral do Brasil, no outro dia Schacht  recebeu uma resposta proibindo esse tipo de ataque por razões políticas, mas ordenava que ele e sua nave continuassem avançando para o porto e esperasse por tráfego.

Almirante Karl Dönitz

Enquanto o U-507 se aproximava do litoral pernambucano, ao meio dia de 25 de agosto na praia do Pina, uma das mais tradicionais de Recife, um grupo de pescadores se preparava para o trabalho. Eles se chamavam Elviro Izidro de Miranda, João Francisco dos Santos, Manoel Alves do Nascimento e Francisco Bezerra da Silva e aparelhavam o bote Ivo para mais uma saída para o mar. Esse barco um barco limitado, que possuía pequenas dimensões, utilizava uma única vela triangular, ou “pano”, no dizer dos pescadores, e tinha um pequeno castelo de proa. Eles faziam parte da Colônia de Pescadores do Pina, a Z-1, que nessa época tinha sede na Rua da Cabanga.

Não consegui uma foto que apontasse com clareza como era estrutura de um bote em Recife no ano de 1942. Já em Natal, o que se conhece como bote são os barcos que aparecem nessa foto de Hart Preston, atracados no cais da Tavares de Lira, as margens do Rio Potengi. Essa foto foi realizada em Natal no ano de 1941 – Fonte – TIME/LIFE

Evidentemente, como trabalhadores do mar, aqueles homens já tinham conhecimento dos ataques realizados pelo U-507 entre Sergipe e a Bahia. Certamente estavam com raiva, como a maior parte dos brasileiros e muito mais preocupados do que a maioria, pois a sua labuta era justamente no mar, onde talvez encontrassem o inimigo. Inimigo esse que destruiu navios que vez por outra frequentavam o porto de Recife.

Segundo a cópia de um depoimento existente no Arquivo Nacional, aqueles homens informaram que o bote Ivo estava equipado com gelo, o que garantia condições de permanecer mais tempo no mar com o pescado conseguido. Eles iriam pescar a cerca de 30 milhas da costa, pouco mais de 55 quilômetros de distância. Por volta de meio dia zarparam.

No livro “A Marinha do Brasil na Segunda Guerra Mundial”, de Arthur Oscar Salgada da Gama, nas páginas 29 e 30, ele informa sobre um levantamento realizado pelo Adido Naval dos Estados Unidos, que concluiu existirem mais de 73.000 pescadores associados às muitas colônias de pescadores organizadas no litoral brasileiro. Outra coisa interessante estava no fato desses homens pescarem a distâncias que podiam chegar a 120 milhas náuticas da costa, onde  poderiam denunciar quaisquer ocorrências estranha as autoridades marítimas.

Ação dos pescadores no apoio a marinha do Brasil no Ceará.

Ainda segundo esse autor, no dia 14 de julho de 1942 o CEME – Comando do Estado Maior da Armada, emitiu uma Circular aos Comandantes Navais e aos Capitães dos Portos, orientando como arregimentar os pescadores para ajudar no esforço geral da Marinha em relação a proteção do litoral. Havia também orientações de como aqueles homens simples poderiam estabelecer ligações rápidas com os Comandos Navais.

Praia do Pina e suas jangadas. Pelo depoimento que consegui, tudo indica que os quatro pescadores não utilizaram esse tipo de barcos tradicionais.

Não sabemos se os quatro pescadores da Praia do Pina receberam informações sobre esse tipo de procedimento, mas no começo da noite de 25 de agosto eles chegaram ao ponto de pesca, sendo comandados por Elviro Izidro. Logo amarraram a vela ao mastro de madeira e baixaram a âncora do bote Ivo, ou fateixa. Segundo os pescadores a fateixa alcançou 29 braças de profundidade, ou 53 metros. Desse ponto não se avistava a terra e eles então trataram de pescar.

“-É um submarino”

Os quatro pescadores relataram que “reinava um bom tempo, apenas refrescado pelos ventos de quadrante sul”, que o período de lua cheia dava uma forte claridade. Uma condição muito perigosa para um submarino de ataque, pois aumentava a possibilidade dessas naves furtivas serem facilmente observadas.

Cópia do depoimento dos quatro pescadores.

Era por volta das nove da noite e foi o pescador João, que se achava no castelo da proa, quem primeiro viu uma embarcação estranha e disse “-Vem lá uma navegação!”. Suas palavras chamaram a atenção de Manoel, que estava sentado a meia nau. Manoel observou e, de fato, na direção Leste-Oeste, isto é, do mar para terra, navegava uma embarcação não muito alta, que, aos poucos, veio crescendo na direção do bote Ivo, até passar a cerca de 100 braças, pouco mais de 180 metros dos pescadores, pelo lado sul do seu pequeno barco. Manoel não teve duvidas e disse “-É um submarino”.

Notícia da visita dos submarinos brasileiros ao Recife em 1938.

Segundo a declaração prestada ao inspetor da Polícia Marítima e Aérea quando retornaram ao Recife, os quatro pescadores foram contundentes e convictos ao afirmarem ser aquele estranho barco era um submarino. Em 1938 eles tiveram oportunidade de ver de perto os três submarinos que o Brasil havia adquirido da Itália. Esses eram os submarinos da classe Perla, de 860 toneladas cada um, batizados como S-11 Tupy, S-12 Timbira e S-13 Tamoyo e que, conforme notícia que apresentamos, estiveram em Recife em 11 de fevereiro de 1938, quando realizaram uma parada para abastecimento antes de seguir para o Rio de Janeiro.

Em relação ao misterioso submarino observado na noite de 25 de agosto de 1942, os quatros pescadores da praia do Pina comentaram algo que considerei interessante e estranho – Eles afirmaram que o submarino trazia acessas duas lâmpadas em seus bordos, ou seja nas laterais, uma na cor vermelha e outra na cor verde. Como fossem luzes normais de navegação. Mas os pescadores comentaram admirados que essas luzes só se tornaram visíveis no momento que o submarino passou por eles e a ré da nave, ou popa, como é conhecida a parte traseira de uma embarcação, ficou inteiramente visível para os tripulantes do bote Ivo.

A silhueta mais característica dos submarinos alemães.

Estariam os alemães com essas luzes utilizando alguma espécie de ardil, se passando, atalvez, por um barco de pesca? Ou seriam essas luzes de algum instrumento de combate, ou de navegação do U-507?

Para os pescadores o submarino tinha um tamanho “comum” e comentaram que viram de maneira bem visível a torre e o periscópio, mas não divisaram os tripulantes. Perceberam que a nave seguia a boa velocidade, com o mar passando sobre o convés e a luz da lua refletindo sobre o casco. Os pescadores do Pina comentaram que se haviam tripulantes na torre do submarino (e certamente eles estava lá), estes provavelmente não viram o Ivo, pois o submarino seguiu em frente sem alterações. 

Navio da TF-23 da US Navy no porto de Recife. Foto de Hart Preston– Fonte – TIME/LIFE

Naturalmente os pescadores ficaram bastante assustados e depois do submarino desaparecer da vista deles, prontamente cortaram a corda da âncora, abriram a vela e trataram de retornar. Eles declararam que aproveitaram o vento que soprava e navegaram com o bote Ivo em direção a Olinda, pois o litoral nessa área possui pouca profundidade e recifes de coral, local impróprio para se colocar um submarino. Não sabemos o grau de instrução desses homens, mas pelo que ficou descrito no depoimento prestado por eles, em termos de conhecimentos marítimos e de navegação eles eram verdadeiros mestres.

Os pescadores nunca mais viram o submarino que, segundo o livro de Durval Lourenço, conseguiu chegar próximo do porto de Recife. Harro Schacht visualizou vários navios prontos para serem destruídos, mas não desobedeceu a ordem recebida. Em seu ótimo livro Durval comenta (pág. 178) que o alemão se aproveitou de uma situação natural para chegar próximo da entrada do porto em uma noite de lua cheia. Houve um eclipse lunar que literalmente “apagou” a lua!

Quando um submarino alemão retornava vitorioso a sua base francesa, era normal a tripulação colocar essas bandeiras triangulares, onde anotavam a tonelagem de cada navio afundado durante a patrulha. Nesta foto o submarino que retornou, que não era o U-507, afundou pelo menos dez navios inimigos. Certamente a tripulação do U-507 deve ter confeccionado as bandeirolas com as tonelagens dos navios que afundou na costa brasileira.

Se a ordem do B.d.U. para a realização de um ataque fosse positiva, as consequências para a história da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e de Recife teriam sido bem diferentes.

Quando o dia amanheceu os alemães viram aeronaves e, para evitar ser visto nas águas claras do mar nordestino, o comandante submergiu sua nave a cerca de 35 metros de profundidade e assim passou todo o dia. À noite, oito horas e trinta e seis minutos, Schacht volta até a superfície e vasculha com o periscópio o horizonte. Ele então viu um destroier iluminado pela lua, a três quilômetros de distância. Segundo Durval Lourenço o alemão não disparou devido à intensa claridade noturna, a pouca profundidade e a perda do elemento surpresa com essa ação, o que poderia lhe impedir de atacar outros navios mercantes mais ao norte.

Mas qual era esse destroier e o que ele estava fazendo fora do porto de Recife?

Talvez a resposta esteja na ação dos pescadores do bote Ivo!

Era o USS Winslow?

Na manhã de 26 de agosto, os quatro pescadores alcançaram a área do então povoado de Maria Farinha, hoje um bairro da cidade de Olinda, depois de navegarem por mais de seis horas. Depois seguiram bordejando o litoral em direção sul, até o meio-dia, quando adentarem o porto de Recife. Seguiram pelo quebra-mar, até ancorarem nas proximidades da centenária Torre Malakof, onde se localizava a sede da Capitania dos Portos. 

Torre Malakof, onde em 1942 se localizava a sede da Capitania dos Portos em Recife – Fonte – https://guia.melhoresdestinos.com.br/

Elviro Izidro de Miranda, João Francisco dos Santos, Manoel Alves do Nascimento e Francisco Bezerra da Silva prestaram depoimento ao capitão de mar e guerra Nelson Simas de Souza, então Capitão dos Portos de Pernambuco, cargo que assumiu em maio de 1942, no lugar do capitão de fragata Harold Reuben Cox.

Aparentemente o relato dos quatro pescadores chamou a atenção do capitão Simas, pois ele logo seguiu com esses homens para o gabinete do contra-almirante José Maria Neiva, na própria Torre Malakof. O almirante Neiva estava à frente do recém-criado (04/06/1942) Comando Naval de Pernambuco, que poucos dias depois seria transformado no Comando Naval do Nordeste, onde essa nova grande unidade seria o braço armado da Marinha do Brasil na defesa das águas nordestinas, em parceria com os americanos da TF-23.

O contra-almirante José Maria Neiva e Getúlio Vargas – Fonte – Arquivo Nacional.

Pelo depoimento sabemos que após a audiência com o almirante Neiva, os pescadores se dirigiram para a sede da Polícia Marítima e Aérea, localizado na  rua, atualmente avenida, Marquês de Olinda. Nessa repartição relataram o que viram para Renato Medeiros, inspetor chefe da repartição.

A partir desse ponto nada mais descobri sobre os quatro valorosos pescadores do Pina. As autoridades igualmente nada mais comentaram do caso. Nada existe nos jornais sobre o caso.

Entretanto, nos arquivos militares da Marinha dos Estados Unidos existe uma indicação de algo aconteceu no começo da noite do dia 26 de agosto e, aparentemente, o depoimento prestado pelos pescadores Elviro, João, Manoel e Francisco foi levado em consideração.

Às seis horas e sete minutos da noite zarpou do Atracadouro 5 do porto de Recife o destroier americano USS Winslow. Tinha a missão de patrulhar nas proximidades do porto e a ordem para a realização dessa missão foi transmitida verbalmente pelo comando da TF-23.

O USS Winslow nada encontrou naquela noite, mas continuou patrulhando nos dias posteriores.

Fim Trágico

Teria sido esse o navio visualizado pelo Korvettenkapitän Harro Schach no periscópio do U-507? E a ordem verbal de partida do USS Winslow, teria se originado nas informações transmitidas pelos quatro pescadores do Pina ao capitão Simas e o almirante Neiva e depois retransmitida para o almirante Ingram?   

Uss Winslow no porto do Rio de Janiro – Fonte – US Navy.

Realmente eu não tenho respostas para essas perguntas. Tudo pode ser uma coincidência. Mas o documento com o depoimento dos pescadores, que foi repassado a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, e o livro “Operação Brasil”, de Durval Lourenço Pereira, que considero um dos melhores já escritos sobre o tema, apontam que essa situação parece ter sido bem real.

Inclusive esse autor aponta, de maneira correta, que após os afundamentos das naves brasileiras no final de agosto de 1942, praticamente em todo nosso litoral foram relatados inúmeras visualizações de submarinos inimigos. Mas a maioria se mostrou erros gerados pelo clima tenso e o nervosismo que o povo vivia. Entretanto, eu acredito que o caso dos pescadores do bote Ivo é real!

Independente dessa questão, ao saírem da Torre Malakof os pescadores Elviro Izidro de Miranda, João Francisco dos Santos, Manoel Alves do Nascimento e Francisco Bezerra da Silva foram completamente esquecidos.

O U-507 sendo destruído em 13 de Janeiro de 1943, por um Catalina a noroeste de Fortaleza, Ceará- Fonte – NARA.

Já Harro Schacht, depois de visualizar o que parecia ser o USS Winslow sob a luz do luar, e nada poder fazer, mandou acelerar os motores e sair da área de Recife. No outro dia estava diante da cidade portuária de Cabedelo, na Paraíba. Olhou durante a noite para o porto, mas não viu nada de interessante. Depois mergulhou para evitar ser visto por aviões e logo partiu. Tempos depois o U-507 retornou ao litoral brasileiro. Mas desta vez seu capitão e sua tripulação, um total de 54 pessoas, foram atacados e destruídos em 13 de Janeiro de 1943, por um Catalina a noroeste de Fortaleza, Ceará, que utilizou cargas de profundidade nessa ação. Essa aeronave era do mesmo VP-83, que atacara esse submarino em 18 de agosto do ano anterior. Os restos do U-507 e dos seus tripulantes se encontram a grande profundidade.

OUTROS TEXTOS DO TOK DE HISTÓRIA SOBRE ESSA TEMÁTICA

O COMANDANTE DE UM SUBMARINO ALEMÃO DA SEGUNDA GUERRA QUE VIVEU NO BRASIL – https://tokdehistoria.com.br/2017/04/20/o-comandante-de-um-submarino-alemao-da-segunda-guerra-que-viveu-no-brasil/

HÁ 73 ANOS, O SUBMARINO ALEMÃO U-199 ERA AFUNDADO POR AERONAVE DA FABhttps://tokdehistoria.com.br/2016/08/11/ha-73-anos-o-submarino-alemao-u-199-era-afundado/

90 ANOS ATRÁS, JEAN MERMOZ DECOLOU DO SENEGAL PARA DOMAR O ATLÂNTICO SUL

Nos dias 12 e 13 de maio de 1930, às 21h, o aviador do lendário Aéropostale completou a primeira travessia aérea comercial para a América do Sul.

O hidroavião Latécoère Croix du Sud a bordo do qual Jean Mermoz (inserido) desapareceu em Dakar, em 7 de dezembro de 1936. AFP

Fonte – https://www.lemonde.fr/afrique/article/2020/05/11/il-y-a-90-ans-jean-mermoz-decollait-depuis-le-senegal-pour-dompter-l-atlantique-sud_6039293_3212.html

Um tremor final e as cinco toneladas e meia de metal pousam suavemente no Rio Potengi. Nos dias 12 e 13 de maio de 1930, em 9 horas e alguns minutos, Jean Mermoz completou o primeiro cruzamento aéreo comercial do Atlântico Sul, juntando-se às fileiras das figuras lendárias de Aéropostale.

Foi a bordo do hidroavião Laté 28-3, batizado de Conde de la Vaulx, que o aviador, assistido pelo navegador Jean Dabry e pela rádio Léopold Gimié, engoliu os 3.200 quilômetros que separam Saint-Louis do Senegal e Natal (Brasil), com 130 quilos de correspondência a bordo.

Hidroavião Laté 28-3.

Um ex-piloto da força aérea ansioso por aventura, Mermoz ingressou na empresa fundada em 1924 pelo industrial Pierre-Georges Latécoère. Este último estabeleceu ligações aéreas regulares entre França, Espanha, Marrocos e Senegal, que ele sonha em estender para a América do Sul.

Em 1930, Mermoz – apelidado de “o Arcanjo”  já teve várias façanhas em seu crédito pela Aéropostale, como os primeiros voos noturnos entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires e a travessia da perigosa cordilheira dos Andes. Mas entre a África e a América do Sul, o correio continua sendo transportado por barco em quatro dias.

“Um dia e uma noite”

Para grande exasperação dos pilotos, os regulamentos franceses proibiram o sobrevoo comercial do Atlântico por avião, por razões de segurança. Portanto, é necessário transformar o Latécoère 28 em um hidroavião, fornecendo-o flutuadores e motores reforçados.

Mermoz passou na licença de piloto de hidroavião e testou a aeronave decolando e pousando implacavelmente no Etang de Berre (sul da França). Como teste final, quebrou o recorde mundial de duração e distância em um hidroavião de circuito fechado.

Restrição final, a tripulação deve esperar a lua cheia tentar a travessia. “Neste vôo que duraria um dia e uma noite, a noite tinha que ser tão clara quanto o dia”, escreveu Joseph Kessel no livro Mermoz .

Em 12 de maio de 1930, uma grande multidão assistiu à decolagem do pesado hidroavião pintado em vermelho vivo, de uma lagoa no rio Senegal, perto de Saint-Louis. Dois avisos são publicados na rota da aeronave, para guiá-la com seus transmissores ou resgatá-la em caso de queda forçada.

Após várias horas de um voo pacífico, a cerca de 150 metros acima do oceano, o hidroavião encontra as famosas tempestades ao entardecer, uma zona formidável de convergência intertropical dos ventos alísios.

50 metros acima das ondas

“Todo o horizonte era preto, uma espécie de muro gigantesco parecia bloquear nosso caminho “, escreveu Mermoz. No meio desse ciclone, uma espécie de tornado sem vento, estava um calor sufocante. Não podíamos evitar grãos de violência incrível, que emitiam um calor ainda mais forte do que o dos banhos de vapor. De repente, sem que pudéssemos desconfiar de nós, nossa cabine, de frente para trás, foi banhada em água. Nós fomos inundados. “

O piloto foge com seu Latécoère em um corredor enquanto voa 50 metros acima das ondas. A travessia do equador é comemorada com “sanduíche, banana e champanhe”. Na manhã do dia 13, pouco mais de 21 horas após sua partida, Mermoz colocou delicadamente o hidroavião no Rio Potengi, perto de Natal.

Jornal francês noticiando a chegada do aviador Mermoz ao Rio Grande do Norte

A correspondência é transferida para outro dispositivo e segue para o Rio de Janeiro, Montevidéu, Buenos Aires e Santiago do Chile. “Banquetes, discursos, música, bailes e galas”, os três homens são celebrados por duas semanas nas capitais do Brasil, Uruguai e Argentina.

O retorno é mais trabalhoso. Entre 8 de junho e 9 de julho, Mermoz fez 52 tentativas de decolagem, frustradas pelos ventos. Na 53ª, ele finalmente voou. Mas uma falha de petróleo a 900 quilômetros da costa africana o forçou a pousar. O Aviso Phocée recupera a correspondência, resgata a tripulação e tenta rebocar o hidroavião, mas a aeronave afunda.

Como outros “pioneiros do céu” , seus amigos Antoine de Saint-Exupéry e Henri Guillaumet, Mermoz desaparecer no mar.

Em 7 de Dezembro de 1936, em sua 24 ª  travessia do Atlântico Sul, desta vez com o hidroavião Cruz do sul. O rádio cospe “Cupons do motor traseiro direito …” e para. “O acidente, para nós, seria morrer na cama”, disse Mermoz.

75 ANOS DO FIM DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NA EUROPA – COMO NATAL E MOSSORÓ RECEBERAM A NOTÍCIA

Rostand Medeiros – Escritor e Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

A partir de abril de 1945, Dez meses após o desembarque do Dia D, os Aliados invadiram a Alemanha e no dia 25 desse mês, perto da cidade de Torgau, as forças americanas e soviéticas se reuniram no Rio Elba.

Cinco dias depois Hitler se suicidou em seu bunker de Berlim, junto com seu cachorro e Eva Braun, sua nova esposa. Seu sucessor, o almirante Karl Doenitz, enviou o general Alfred Jodl ao Supremo Quartel-General aliado, na cidade francesa de Reims, para tratar da rendição junto ao general americano Dwight Eisenhower, comandante supremo das forças aliadas. Às duas horas e quarenta e um minutos do dia 7 de maio Jodl assinou a rendição incondicional das forças alemãs, que  entraria em vigor no dia 8 de maio de 1945, uma terça-feira.

Depois de seis anos e milhões de vidas perdidas, o flagelonazista foi esmagado e o 8 de maio entrou para a história como a data em que formalmente ocorreu o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa e o fim do Reich de Adolf Hitler.

Manchete de jornal destacando o fim da guerra. Fonte: Jornal natalense A Ordem, edição de terça-feira, 8 de maio de 1945.

Nessa data as celebrações eclodiram em todo o mundo ocidental. Em Londres, por exemplo, mais de um milhão de pessoas celebraram o fim da guerra europeia diante do Palácio de Buckingham, onde o rei George VI e a rainha Elizabeth, acompanhados pelo primeiro-ministro Winston Churchill, apareceram na sacada do palácio para aplaudir a multidão. Nos Estados Unidos, o presidente Harry Truman, que comemorou seu 61º aniversário no mesmo dia, dedicou a vitória a seu antecessor, Franklin Delano Roosevelt, que morreu de uma hemorragia cerebral no dia 12 de abril. Por outro lado, o líder soviético Joseph Stalin não aceitou a rendição assinada em Reims e insistiu que o tratado fosse ratificado no dia seguinte em Berlim. Desde então Moscou comemora o Dia da Vitória em 9 de maio, um dia depois do resto da Europa.

Comemorações em Londres.

Enquanto Stalin mantinha suas desconfianças, milhões de pessoas pelo mundo afora se alegraram com a notícia que a Alemanha havia se rendido, marcando a vitória com festas de rua, danças e cantorias. Todos se sentiram aliviados da grande tensão gerada pela guerra e felizes pela sangria ter finalmente acabado.

A notícia da rendição da Alemanha não foi surpreendente. O avanço das tropas Aliadas deixou pessoas de toda parte em prontidão para começar a celebrar o fim da guerra. E quando a notícia da rendição foi irradiada, se espalhou como fogo em toda parte.

E no Rio Grande do Norte, o estado brasileiro que mais intensamente viveu o período da Segunda Guerra Mundial, como foram as comemorações pelo fim do conflito?

Em todo o Brasil, como no caso dessa foto no Rio de Janeiro, as comemorações pelo final do conflito foram intensas.

Primeiras festas – morte de Hitler e a queda de Berlim

Quem hoje busca conhecer sobre os fatos ocorridos no Rio Grande do Norte durante a Segunda Guerra Mundial nos poucos e amarelados jornais existentes nas hemerotecas das instituições de preservação da memória potiguar, observa que desde o início de 1945 os habitantes da capital potiguar se deparavam com manchetes em letras garrafais que diziam: “A vitória total se aproxima”. Ou então “As forças de Hitler derrotadas”. Ou ainda “Fim da guerra é iminente”. Muitas eram as notícias do esgotamento do povo alemão, das derrotas dos exércitos nazistas e havia nas páginas desses jornais uma grande expectativa pelo fim do conflito.

Mas, contrariando todas as expectativas, a rendição alemã não acontecia. Aqui e acolá se pode ler em algumas poucas notícias aspectos da resistência alemã, principalmente na frente de combate contra os russos. Contudo, a onda do avanço Aliado começou a vergar as forças germânicas e logo passou a ser noticiado, principalmente a partir de abril, que a capacidade de defesa dos nazistas decrescia.

Para quem percorre com os olhos os jornais natalenses A Republica e A Ordem, publicados entre a última semana de abril e a primeira semana de maio, não deixa de perceber a tensão pela iminência do fim da guerra. Foi quando a notícia da morte do ditador alemão Adolf Hitler em 30 de abril e, principalmente, a queda de Berlim no dia 2 de maio, quarta–feira, detonou entre os natalenses o desejo de comemorar e de extravasar pela proximidade do fim de todo aquele pesadelo.

Quando a notícia da rendição da capital do Terceiro Reich se propagou, como era normal em Natal nesses momentos especiais, as escolas, as casas comerciais e as repartições públicas fecharam. As pessoas seguiram para a Praça 7 de setembro, no centro da cidade, onde o clima de alegria e patriotismo era intenso.

Nas manifestações pela vitória dos aliados na Europa, era comum os pedidos de retorno da democracia no cenário político brasileiro. No dia 29 de outubro de 1945 o ditador Getúlio Vargas, renunciou ante a iminência de ser deposto por um golpe militar.

Em uma cidade com o número limitado dos antigos e pesados rádios valvulados, concentrados nas mãos da elite local pelo alto preço de aquisição, só restava ao povão seguir para as redações dos jornais locais como A Ordem, na Rua Dr. Barata, 216, na Ribeira, ou do tradicionalíssimo jornal oficialista A República, na Avenida Junqueira Aires. Nas sedes desses periódicos os populares colavam os olhos nos “Placards”, uma espécie de mural onde se fixavam as mais novas e importantes notícias.

Toda essa alegria se espalhou pela cidade e isso ficou latente com a forte concentração de pessoas na principal praça da cidade na noite do dia 2 de maio.

Diante do Palácio do Governo foi organizado um comício pela LDN, a Liga de Defesa Nacional. Essa era uma entidade que seguia um forte ideário cívico-nacionalista, tendo sido criada no Rio de Janeiro em 1916 e que iniciou suas atividades no Rio Grande do Norte em 6 de agosto de 1936, tornando-se especialmente ativa com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Em 1945 a LDN era presidida pelo Monsenhor João da Mata Paiva e ele foi a primeira pessoa que discursou sobre a queda de Berlim para uma Praça 7 de Setembro lotada, sendo seguido por pessoas como os professores Francisco Ivo Cavalcanti e Clementino Câmara, o ex-deputado federal e futuro senador Kerginaldo Cavalcante de Albuquerque, o também ex-deputado federal Dioclecio Dantas Duarte (que naquele mesmo 1945 assumiria interinamente e apenas por poucos dias a interventoria do governo no Rio Grande do Norte), o acadêmico Luís Maranhão Filho e os estudantes Romildo Gurgel e José Bezerra Gomes.

Tanto em Natal como no resto do Brasil, foi normal nas comemorações a existência de retratos do presidente dos Estados Unidos Franklin Delano Roosevelt, que havia falecido em 12 de abril de 1945. Até hoje em muitas cidades brasileiras é comum a existência de avenidas, rua e logradouros batizadas co,m o nome desse presidente.

Um detalhe interessante é que estavam hasteadas destacadamente no Palácio do Governo as bandeiras do Brasil, dos Estados Unidos, da Inglaterra e, para surpresa de muitos presentes, da União Soviética.

Mesmo sabendo que os russos eram aliados, a apresentação pública da bandeira vermelha com a foice e o martelo dourados era uma situação interessante para uma cidade que vivenciou em 23 de novembro de 1935 a Intentona Comunista. Ao final dos comícios o povão se concentrou no Grande Ponto.

Um detalhe simples, mas extremamente significativo daquele momento: todas as ruas da cidade ficaram iluminadas, voltando um clima de normalidade que não existia desde a adoção da restrição de iluminação para não facilitar possíveis ataques inimigos, o famoso “Blackout”.

No outro dia, quinta-feira, logo às oito da manhã os proprietários de veículos, motoristas de praça e carros de repartições saíram da antiga sede do Sindicato dos Rodoviários, na Avenida Tavares de Lira, na Ribeira. Formaram um grande “Corso” (o que hoje chamamos carreata), seguindo pelas ruas realizando um forte buzinaço e levando as bandeiras dos países aliados.

Também nesse dia foi realizado outro comício na Praça 7 de setembro, que foi considerado “monstro”, tal a quantidade de gente que participou. Nesse comício foi grande a participação de escolares, escoteiros, membros de associações esportivas. A animação foi feita pelas bandas da Polícia Militar e da Força Aérea Brasileira. Uma situação comum foi que em todas as manifestações se tocava repetidamente o Hino Nacional.

Até o sábado, dia 5 de maio, ocorreram inúmeras manifestações, um verdadeiro carnaval fora de época, mas sempre com muitos discursos, muito patriotismo e alegria.

Comemorações pelo fim da guerra

Manchete de jornal sobre a rendição da Alemanha. Fonte: Jornal natalense A Republica, edição de 8 de maio de 1945.

Na terça-feira da semana seguinte, nas primeiras horas de 8 de maio, a notícia da assinatura da rendição pelo general Jodl foi captada pelos rádios valvulados existentes em Natal e logo começaram a estourar rojões, repicar de sinos das igrejas, com novo buzinaço dos veículos e as sirenes antiaéreas ecoando estridentemente.

A Agência Pernambucana, de Luiz Romão de Almeida, começou a detalhar o acontecimento nos seus mais de 20 alto-falantes espalhados pela cidade, informando que recebia notícias de grandes emissoras de rádio internacionais. Vários carros, além de pessoas a pé e de bicicleta, começaram a se concentrar nos locais onde ficavam os alto-falantes para não perder nada do que era noticiado. Foi anunciado que o ditador Getúlio Vargas havia decretado feriado nacional para as pessoas comemorarem o fim da Segunda Guerra. Não sei se fez muita diferença o anúncio de Vargas, pois igual quando foi noticiada a queda de Berlim e a morte de Hitler, Natal parou para comemorar.

Logo o general Antônio Fernandes Dantas, Interventor Federal no Rio Grande do Norte, convidou várias autoridades para o Palácio do Governo para comemorar a boa nova e organizar festejos para a população da capital potiguar. O Aeroclube anunciou a realização de uma festa dançante no sábado, 12 de maio, cobrando 50 cruzeiros por pessoa. O clube informou que aqueles que desejassem detalhes da festa poderiam ligar no número telefônico “1-2-0-4”.

Na mesma tarde do dia 8 os aviões da escola de pilotagem do Aeroclube sobrevoaram a cidade, soltando milhares de panfletos onde estava escrito:

“O Aeroclube do Rio Grande do Norte, primeira escola de aviação civil, saúda os heroicos aviadores nacionais que demostraram a sua coragem nas terras da Itália e homenageia os bravos soldados da FEB, que lutaram em prol da liberdade dos povos civilizados, esmagando o nazi fascismo.

Natal, 8 de maio de 1945”

À noite, milhares de pessoas se concentravam na Avenida Rio Branco e na Rua João Pessoa, bastante iluminadas, e a festa da vitória ficou mais bela com os potentes holofotes do 1° Grupo do 3° Regimento de Artilharia Antiaérea, ou 1/3° RAAAe, iluminando a noite natalense e deixando todos extasiados.

Do Alecrim e da Ribeira vieram duas passeatas populares para o Grande Ponto, onde a banda da Polícia Militar tocava marchas e dobrados. Deve ter sido prazeroso, mas igualmente extenuante, a participação dos policiais da banda da nossa Polícia Militar naqueles primeiros dias de maio de 1945, pois são inúmeras as referências da presença desses militares nos muitos festejos e desfiles acontecidos.

Mas indubitavelmente o mais importante evento das comemorações da vitória aliada foi o grande desfile escolar e militar que percorreu várias avenidas e ruas da cidade.

Convite publicado em jornal natalense para homenagem ao Dia da Vitória.

A concentração foi na Praça Pedro Velho, então bem maior do que é na atualidade, ocorrendo na tarde do dia 11 de maio, sexta-feira. Além das principais escolas da cidade, centenas de militares da Polícia Militar do Rio Grande do Norte, da Marinha do Brasil, do Exército e da Força Aérea Brasileira se posicionaram junto com militares da Marinha e do Exército dos Estados Unidos que estavam baseados em Natal desde dezembro de 1941. Essa é a primeira notícia que informa a participação dos militares estrangeiros naqueles festejos.

Além dos discursos das autoridades, da execução dos hinos nacionais do Brasil e dos Estados Unidos, o desfile percorreu a Avenida Deodoro até a Rua João Pessoa, passando pelo Grande Ponto e entrando na Avenida Rio Branco. Daí o grande desfile desceu a tradicional ladeira que liga a Cidade Alta à Ribeira, onde passaram na Praça José da Penha, contornando o Grande Hotel e seguindo pela Avenida Duque de Caxias, retornando para a Cidade Alta até a Praça 7 de Setembro. Ao logo do desfile milhares de natalenses se posicionaram nas calçadas, nas sacadas das casas, nos muros, nas árvores e aplaudiram entusiasticamente os participantes. Enquanto

esses militares percorreram mais de dois quilômetros e meio de ruas de paralelepípedos, nos céus dois grupos de aviões Curtiss P-40E-1 da FAB rugiram sobre a cidade.

E na Capital do Oeste

Basicamente as comemorações ocorridas em Mossoró repetiram muitos aspectos do que ocorreu em Natal, onde a população local primeiramente ficou de “orelha colada” nos alto-falantes da “Amplificadora” da cidade, que noticiou o fim da Segunda Guerra Mundial no dia 8 de maio.

Várias casas comerciais, mesmo fechadas para as comemorações, hastearam bandeiras brasileiras e durante a tarde foram realizados desfiles de estudantes, escoteiros e policiais. Os sinos das igrejas de Mossoró repicaram durante vários momentos daquele dia. À tarde os aviões do Aeroclube de Mossoró sobrevoaram a “Capital do Oeste” e lançaram várias bandeiras brasileiras.

Clube Ipiranga de Mossoró.

Mas o principal evento foi mesmo a festa noturna realizada na sede do Clube Ipiranga.

Mas é bom lembrar que aquela comemoração não significou totalmente o fim do conflito, nem foi o fim do impacto que a guerra teve sobre as pessoas. A guerra contra o Japão não terminou até agosto de 1945, e as repercussões políticas, sociais e econômicas da Segunda Guerra Mundial foram sentidas muito depois da rendição da Alemanha e do Japão.

Após as duas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki e a morte de dezenas de milhares de pessoas, o Japão se rendeu em 14 de agosto de 1945. O Dia da Vitória no Japão foi celebrado em 15 de agosto. Também é marcado em 2 de setembro, o dia em que o Japão assinou um cessar-fogo incondicional.

1913 – MONUMENTO A NÍSIA FLORESTA E O MONSENHOR ANTÔNIO XAVIER DE PAIVA

Rostand Medeiros – IHGRN

Aqui vemos uma interessante fotografia do monumento a Nísia Floresta, erguido no Sítio Floresta, na antiga Papary, atual município de Nísia Floresta, Rio Grande do Norte.

Um dos presentes na foto é o então padre Antônio Xavier de Paiva, vigário de São José de Mipibu, cidade vizinha a Papary.

Nasceu em 26 de maio de 1850, no povoado de Vera Cruz, hoje município autônomo. Estudou em Roma, onde se ordenou. Foi colega de estudos do Cardeal Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, mais conhecido como Cardeal Arcoverde, pernambucano da cidade de Cimbres e o primeiro cardeal da América Latina e do Brasil. O padre Antônio Xavier conservou até a morte do Cardeal Arcoverde uma fraterna amizade. Na década de 1920 foi ordenado Monsenhor.

Antônio Xavier foi nomeado pároco de São José de Mipibu em 1895, onde ficou até a sua morte em 6 de junho de 1930. Sobre sua morte, a edição de 7 de junho do jornal natalense A República informou que tudo aconteceu de maneira repentina e o religioso foi enterrado no cemitério local às oito da manhã do dia 7, em meio a muita consternação da população.

Ainda segundo o jornal um dos que se fizeram presentes ao sepultamento foi o governador Juvenal Lamartine de Faria, que veio de Natal de automóvel, provavelmente seguido por um grande número de amigos e correligionários. Vale ressaltar que além de religioso Monsenhor  Antônio Xavier era político, tendo sido Chefe da Intendência (cargo atualmente equivalente ao de prefeito) de São José de Mipibu e membro de destaque da Comissão Executiva do Partido Republicano Federal – PRF, onde sempre se fizera ouvir com respeito e atenção.

Sua família possuía muita tradição e força política na cidade e Monsenhor Antônio Xavier era, segundo o jornal A República, um dos principais líderes de sua comunidade. A nota jornalista deixa transparecer que, apesar da idade, ele se encontrava exercendo plenamente suas funções sacerdotais e politicas.

Sua atuação no PRF foi apontada como discreta e modesta, mas que isso realçava ainda mais sua liderança. Na época do seu falecimento os seus sobrinhos Áureo e Joaquim de Paiva eram respectivamente prefeitos de São José de Mipibu e Papary.

O túmulo de Nísia Floresta em dias atuais – Fonte – https://williams-rocha.blogspot.com/2016/12/tumulo-de-nisia-floresta.html

Em 1954 o monumento a Nísia Floresta foi ampliado, com o aumento do seu pináculo e a colocação de uma lápide que recebeu os restos mortais da ilustre potiguar.

NATAL E O RN NA PANDEMIA DA GRIPE ESPANHOLA DE 1918

Rostand Medeiros, escritor, pesquisador e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Gripe espanhola de 1918.

Primeiros Casos Relatados no Mundo

11 de março de 1918 – Um soldado do exército dos Estados Unidos, se reportou ao hospital de Fort Riley, Kansas, com estranhos sintomas envolvendo uma gripe muito forte. Logo, mais de 100 outros soldados relataram sintomas semelhantes, marcando o que se acredita serem os primeiros casos da pandemia histórica de influenza de 1918, mais tarde conhecida como gripe espanhola. Apesar do nome e do que aconteceu no Kansas, dados históricos e epidemiológicos não conseguem identificar a origem geográfica desta pandemia. Depois de observada no interior dos Estados Unidos, a doença avança pela Europa e em partes da Ásia, antes de se espalhar rapidamente pelo mundo. 

Espanhola?

Acredita-se que a origem do nome “gripe espanhola” deriva da propagação da pandemia da Espanha para a França em novembro de 1918. Nessa época a Espanha permaneceu neutra durante a Primeira Guerra Mundial e não impôs nenhuma censura em seus jornais sobre o avanço dessa doença naquele país, como ocorria em outras nações. Logo as histórias amplamente divulgadas, mostrando a Espanha especialmente atingida criou uma falsa impressão em outras partes do mundo que tudo teve origem nesse país.

Influenza espanhola nos Estados Unidos, outubro de 1918. (National Archives)

Avanço da doença no Mundo

A pandemia de gripe espanhola de 1918, a mais mortal da história, infectou cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo – um terço da população do planeta – e matou em torno de 20 a 50 milhões de vítimas. Alguns acreditam que chegou a 100 milhões. Na época não existiam terapias antivirais específicas. Hoje em dia, as coisas não mudaram muito, e a maioria dos tratamentos para a enfermidade se dirige a aliviar os sintomas, em vez de curar a doença.

Os cidadãos de alguns países em 1918 receberam ordens para usar máscaras. Dependendo da região do mundo escolas, teatros e empresas foram fechados e corpos empilhados em necrotérios improvisados ​​antes que o vírus encerrasse sua mortal marcha global. No Brasil, tal como agora, foram as cidades e os governos estaduais que decidiram suas ações, mediante o avanço da doença. Nem sequer existia Ministério da Saúde. Ele só foi criado doze anos depois do surto de gripe espanhola no Brasil, mas vinculado com a pasta da educação. De forma autônoma e independente o Ministério da Saúde só foi criado em 25 de julho de 1953.

Atendimento contra a gripe espanhola.

Em todas as partes no ano de 1918 a pandemia de gripe fez muitos temerem o fim da humanidade, além de alimentar por muito tempo a ideia de que se tratava de uma cepa viral particularmente letal. Entretanto, estudos mais recentes indicam que o vírus, embora mais mortífero que outras cepas, não era diferente dos vírus que causaram as epidemias de outros anos. Na Europa conflagrada a taxa de mortalidade pode ser atribuída em grande medida as aglomerações nos acampamentos militares e nos ambientes urbanos. Bem como à má qualidade da alimentação e às condições sanitárias precárias. Atualmente, acredita-se que muitas mortes de 1918 decorreram do desenvolvimento de pneumonias.

Mundialmente a onda inicial de mortes pela gripe, na primeira metade de 1918, foi relativamente pequena. Foi na segunda onda, de outubro a dezembro do mesmo ano, que se registrou a maior taxa de mortalidade. A terceira fase, no primeiro semestre de 1919, foi mais letal que a primeira, porém menos que a segunda.

Enfermeira contra a gripe espanhola.

Em todo o mundo os funcionários dos serviços públicos de saúde, a polícia e os políticos tinham motivos para minimizar a gravidade da gripe de 1918, o que fez com que ela atraísse menos à atenção da imprensa. Para quem participava da Guerra havia o temor de que divulgá-la abertamente encorajasse os inimigos em época de guerra, e além disso existia o interesse em preservar a ordem pública e evitar o pânico. Entretanto, as autoridades reagiram. No auge da pandemia, foram estabelecidas quarentenas em muitas cidades. Algumas foram obrigadas a restringir os serviços básicos, incluindo os da polícia e dos bombeiros.

Primeiras Notícias no Brasil – Primeira quinzena de julho de 1918

Utilizando modernas ferramentas de visualização digital de jornais antigos e lendo as páginas que fotografei do jornal natalense A República, pude perceber que nesse período surgem as primeiras notícias nos jornais brasileiros sobre casos a “Influenza Hespanhola” na Bélgica, Alemanha e Inglaterra. Mas não são notícias destacadas.

A Imprensa Brasileira Entre julho e setembro de 1918

Crzuzador Bahia, participante da Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG).

Devido ao afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães, o nosso país declarou guerra à Alemanha em 16 de novembro de 1917. Em janeiro de 1918 o governo brasileiro cria a Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG), uma esquadra da Marinha com oito navios, destinada ao patrulhamento contra a ação de submarinos alemães no Oceano Atlântico. Partiu do Rio em 14 de maio e, depois de passar por Salvador e Recife, chegaram a Natal no final de julho. A capital potiguar na época tinha cerca de 29.000 habitantes (equivalente hoje a população de Extremoz).

Nesse período os jornais não comentaram nada sobre prevenção e nem sobre algum tipo de preparação contra o vírus no Brasil. Acredito que as notícias da participação da DNOG na Primeira Guerra serviu como uma espécie de “cortina de fumaça”, que evitou uma informação mais intensa sobre a ação da gripe espanhola em outros países. Acredito que em 2020 o nosso carnaval, ocorrido no final de fevereiro, foi essa nova “cortina de fumaça”.

Primeiros Mortos Brasileiros – 23 de setembro de 1918

Nos dias atuais o COVID-19 só foi notícia mais ativa após o primeiro caso conhecido no país e após a primeira morte de um brasileiro em 27 de março de 2020. Já os jornais de 1918 só passaram a dar uma atenção maior ao tema depois que estourou a notícia que na Divisão Naval, que se encontrava ancorada na cidade de Dacar, na África Ocidental havia 55 mortos de gripe espanhola.

A Gripe Espanhola Chega ao Brasil – 24 de setembro de 1918

Acredita-se que essa seria a data mais correta para a chegada da gripe espanhola em nosso país, pois nesse dia atracou no porto de Santos, São Paulo, o vapor inglês Demerara, utilizado para o transporte de passageiros e cargas. Tal como agora, quando foi dito que no início do mês de março de 2020 não houve em aeroportos brasileiros nenhum tipo de inspeção dos passageiros que desembarcavam principalmente da Itália, em 1918 houve uma séria acusação aos funcionários da então chamada Polícia Sanitária daquele porto. Eles teriam sido negligentes por não realizarem a necessária inspeção de saúde dos passageiros daquele navio. Uma passageira da 2ª classe denunciou que o Demerara trazia mais de 40 enfermos e que em um único dia foram lançados ao mar (ou sepultados) cinco corpos de falecidos pela gripe espanhola.

Navio inglês Demerara – Fonte – https://uboat.net/

Tanto em 1918 e 2020 a gripe chegou ao Brasil vindo da Europa, trazida pelo principal meio de transporte que liga nosso país ao Velho Mundo em cada época. Hoje em aviões de carreira, em 1918 nos navios de passageiros e cargas. Mas vale ressaltar que no passado esses navios possuíam 1ª, 2ª e 3ª classes de passageiros e cada viagem, dependendo do tamanho do navio, trazia de 300 a 1.000 pessoas.

Naquele tempo como agora, o parlamento brasileiro criou novas leis após a eclosão da pandemia em território nacional.

Em 1918 os parlamentares apresentaram uma série de projetos de lei com o objetivo de, em diferentes frentes, combater a doença e amenizar seus efeitos. Uma das propostas determinou a aprovação automática de todos os estudantes brasileiros, sem a necessidade dos exames finais. Outro projeto de lei ampliou em 15 dias o prazo para o pagamento das dívidas que tinham o seu prazo final em plena epidemia.

A Gripe Espanhola Chega a Recife – 28 de setembro de 1918

Segundo o Jornal do Recife, nessa data duas pessoas a bordo do navio de passageiros brasileiro Tabatinga apresentaram o que parecia ser os mesmos sintomas de gripe espanhola. Não existiam exames específicos para diagnóstico dessa doença. Talvez por essa razão a “Inspectoria de Higyene” de Recife não achou que os dois enfermos pudessem ter contraído essa gripe. O que gerou uma forte querela entre os funcionários dessa repartição e os jornalistas, devido ao estado de saúde dos enfermos do Tabatinga.

Na verdade esse é um aspecto de uma situação comum a essa pandemia no Brasil: a negação e até mesmo ocultação de dados por parte das autoridade em 1918, fato que se repete em alguns países em 2020.

A Gripe Espanhola Chega a Natal – 3 de outubro de 1918

Essa questão de negação e até mesmo ocultação de dados sobre a gripe espanhola também ocorreu em Natal. Mas através de jornais de outros estados, principalmente os de Recife, que mantinha correspondentes em Natal, é possível ter uma ideia do que aconteceu na capital potiguar.

O Diário de Pernambuco, de 4 de outubro de 1918 informou através de um telegrama emitido pela Great Western, que o navio de passageiros brasileiro Itassucê aportou em Natal no dia anterior com seis enfermos de gripe espanhola.

A Primeira Vítima em Natal – 15 de outubro de 1918

Aparentemente, a primeira morte em decorrência da gripe espanhola ocorrida em Natal foi a do comerciante cearense Mozart Barroso, a bordo do navio Pará, que estava ancorado no porto da cidade. Em A República, na edição de 15 de outubro, informou que o falecimento ocorreu devido a uma “moléstia” contraída em Recife, vindo o comerciante a falecer em decorrência da viagem. Já o Diário de Pernambuco afirma que nesse mesmo navio vários outros passageiros e tripulantes, entre estes o médico de bordo, estavam com a gripe espanhola. O navio Pará ficou interditado em nosso porto por vários dias.

Mesmo sem A República esclarecer se Mozart Barroso morreu, ou não, de gripe espanhola, chama atenção que quatro dias depois da divulgação dessa notícia o respeitado médico Januário Cicco escreveu nesse mesmo jornal uma coluna visando “auxiliar na defesa da saúde pública contra a epidemia de influenza espanhola, que celeremente se disseminou por toda parte”. O Dr. Januário recomendava então o uso da “quinina”, muito utilizado contra a malária, informando ter distribuído pelas farmácias da cidade comprimidos deste produto. Este médico solicitava que “os poderes competentes”, ordenassem aos funcionários da Inspetoria de Higiene que fossem visitar as “choupanas dos mais pobres, distribuindo quinino, aconselhando a melhorar os aspectos de higiene, escolher uma alimentação sadia, beber água de procedência e evitar aglomerações”. Nada diferente de hoje.

Um fato especialmente destacável foi a predileção da doença por tirar a vida de jovens adultos saudáveis, e não de crianças e idosos. Algo bem diferente do COVID-19.

Engana-se quem pensa que a Gripe Espanhola atacou basicamente Natal. Conforme podemos ver na capa da edição do dia 7 de dezembro de 1918 do jornal O Município, de Jardim do Seridó, a peste também o interior potiguar.

Gripe Espanhola no Interior do RN – 15 de outubro de 1918

As Informações dão conta que o interior não se mostrava imune aos efeitos da pandemia.

De Areia Branca o Coronel Francisco Fausto, Presidente da Intendência (cargo que atualmente equivale ao de prefeito), informava que a gripe havia atacado a cidade, mas sem fornecer detalhes. Jornais de Recife informaram que em Macau haviam pessoas atingidas pela gripe espanhola. Já Jerônimo Rosado, intendente de Mossoró, informava que 38 pessoas haviam ali falecido. Fora do litoral veio a notícia que em Nova Cruz, cidade servida por um ramal ferroviário inaugurado em 1883, o Sr. Mario Manso, seu intendente, se recuperava da gripe.

Macau foi uma das cidades atingidas – Fonte – http://www.ibamendes.com/2020/01/fotos-antigas-de-macau-rio-grande-do.html

Fica evidente pelos noticiários que essa gripe de 1918 atacou primeiramente as cidades do Rio Grande do Norte que recebiam navios de carga e passageiros. Vale lembrar que o movimento dos portos de Macau e Areia Branca era muito maior do que nos dias atuais.

A gripe vai se interiorizando através da velocidade das poucas linhas de trens existentes, dos raros automóveis e, certamente com maior intensidade, através das patas dos cavalos e burros. Sabemos de casos ocorridos em dezembro de 1918 em Lajes, Jardim do Seridó e Acari. O interessante é que no sertão as notícias apontam para uma letalidade baixa.

Vista de Nata nos primeiros anos do Século XX, do alto da torre da Igreja Matriz, em foto do alemão – Fonte – Bruno Bougardhttps://hislucianocapistrano.blogspot.com/2017/07/natal-cidade-memoria.html

Remédios Para a Gripe Espanhola em Natal

Quem lê os jornais do período, percebe como aos poucos essa doença entra no cotidiano da população de Natal.

Os jornais estão repletos de anúncios de remédios milagrosos que se dizem capazes de prevenir e de curar a gripe. A oferta vai de água tônica de quinino a balas à base de ervas, de purgantes a fórmulas com canela. Surgem propagandas de remédios, tais como a “Kolyohimbina”, “Puritol”, ou o “Balsamo Philantropico”, que prometiam a “cura milagrosa contra o mal espanhol”.

Em meio à apreensão causada pelo alastramento da gripe, o comércio se adequava como podia a triste novidade. A farmácia Torres anunciava que por 1$800 (um mil e oitocentos réis) era vendido um preservativo que poderia ser utilizado no ato sexual em meio ao surto de gripe, “prevenindo pessoas que dele fazem uso com vantagem”. Para outras atividades a situação era mais complicada; a fábrica de gelo da Força e Luz, a única da cidade, parou suas atividades durante a ocorrência do surto.

Outros remédios vendidos em Natal, conforme podemos ver na propagandas divulgadas nos jornais locais foram a “Bromo quinina” e a “Toni Kina”, todos a base de quinino.

De Recife, com destino a Natal e Macau, partiu o navio Curupu com milhares de pílulas a base de quinino. Além disso, a Companhia Comércio e Navegação (CCN) doou dez contos de réis em medicamentos nos municípios de Macau e Areia Branca, para serem distribuídos com a população local.

Diante de uma doença mortal nova e da falta de informação, a população fica apavorada e acredita em qualquer promessa de salvação. Estamos observando que até hoje é assim.

Ações do Governo de Ferreira Chaves

O governo estadual não se pronunciava sobre muito sobre a crise. Apenas em 1º de novembro, o então governador potiguar, Joaquim Ferreira Chaves, anunciou através do jornal A República, que estava “agindo para acudir a pobreza desta cidade”, organizando na escola Frei Miguelinho uma comissão de apoio, que visava fornecer alimentação aos necessitados no bairro.

O governador potiguar, Joaquim Ferreira Chaves.

Este trabalho estava sob a batuta do Diretor da Inspetoria de Higiene, o Doutor José Calistrato Carrilho de Vasconcelos, com a participação do professor Luís Soares, então diretor da escola Frei Miguelinho e do padre Fernando Nolte. Outros que participaram foi o Dr. Antônio Soares, tenente João Bandeira e o Senhor Laurentino de Moraes, contando com o apoio dos escoteiros. Desta comissão o governo criou um Posto de Assistência do Alecrim, onde trabalhavam os médicos Varela Santiago e Marcio Lyra. A missão do Posto era fornecer remédios, alimentos e até mesmo querosene para iluminação.

Um indício de como estava à situação no bairro do Alecrim é apontada pela própria comissão, que em média atendia a um número superior de 350 pessoas por dia. Escoteiros percorreram diversas ruas do bairro para entregar alimentos e remédios nas casas dos que estavam tão atacados que não tinham sequer condições de se deslocarem para a escola Frei Miguelinho.

De barco seguiu com vários medicamentos para as praias de Muriú e Maracajaú o farmacêutico Floriano Pimentel, da Inspetoria de Higiene. As povoações  existentes Nessas praias nessa época eram prósperos entrepostos de comércio de pescado.

Outra notícia, sem detalhes estatísticos ou maiores referências, informa que o governador Ferreira Chaves buscava atender, com as mirradas condições do tesouro estadual, os inúmeros pedidos das cidades e vilas do interior para o combate a pandemia.

Mas se havia pouco dinheiro para ajudar os potiguares que viviam no interior, não faltou para outras coisas!

Em novembro de 1919, quando a gripe espanhola era motivo de péssimas lembranças em Natal, o governador Ferreira Chaves publicou a sua mensagem governamental no Congresso do Estado, atual Assembleia Legislativa, onde prestou contas de suas ações no ano anterior. Ele comentou que as despesas para fazer frente a gripe espanhola chegaram ao valor de 30:314$850 (trinta contos, trezentos e quatorze mil e oitocentos e cinquenta réis). O problema é que na mesma prestação de contas o governador Chaves informou que comprou 17 reprodutores de “gado indiano”, para entregar a somente sete criadores potiguares e por preço inferior ao custo. Com a justificativa de “auxiliar a pecuária”, receberam essa benesse do governo potiguar criadores como Juvenal Lamartine de Faria (recebeu dois exemplares), Francisco Justino Cascudo (dois exemplares), Ezequiel Mergelino de Souza (seis exemplares), Pompeu Jácome (dois exemplares) e outros.

Era uma verdadeira bênção, porque cada reprodutor custou para o erário público cerca de 1:783$000 (um conto e trezentos e oitenta e três mil réis) e esses abonados fazendeiros tiveram que pagar por cada exemplar apenas 600:000 (seiscentos mil réis). E nem precisaram pagar em dinheiro vivo de uma única vez. Os exemplares do “gado indiano” foram pagos em notas do Tesouro Estadual, com tranquilas prestações. O valor total da compra dos animais para o tesouro estadual foi de 16:150$000 (dezesseis contos e conto e cinquenta mil réis).

É inegável que esse tipo de ação governamental visava a melhoria do plantel bovino potiguar, isso tudo em uma época onde o Brasil tinha sua riqueza econômica ligada a agropecuária e sua população vivia em grande parte no meio rural. Mas, em um ano de terrível calamidade na saúde pública, em meio a mais mortal pandemia já experimentada pela humanidade, gastar mais da metade do que se gastou no combate à gripe espanhola com 17 touros, é no mínimo um acinte.

Ações Para Diminuir a Força da Gripe Espanhola em Natal

Percebe-se pelos jornais que setores da sociedade passaram a cobrar do governo uma maior atenção com as questões de higiene pública, onde surgem cobranças para a extinção de lamaçais existentes nas ruas da cidade, ou contra o abate de animais em residências, além da providência de se enterrar com urgência as carcaças.

Escolas alteraram suas rotinas. A diretoria do extinto Colégio da Conceição decidiu encerrar a 23 de outubro o ano letivo, “sem entrega de diplomas e sem festas devido à epidemia”.

Conforme o medo do alastramento da doença crescia, medidas profiláticas eram recomendadas. Mas algumas delas pareciam saídas de algum tratado de bruxaria; lavagens intestinais com água morna, chá de pimenta d’água com duas gotas de glicerina, ou tomar um vidro de magnésia fluida, com vinte gotas de “briônia” e dez gotas de “tintura de beladona”.

Em meio aos carcomidos exemplares que restam dos antigos jornais natalenses na atualidade, chama atenção um aviso publicado no início de dezembro de 1918 pela Inspetoria de Higiene. Intitulado “A influenza espanhola, conselhos ao povo”, onde entre outras coisas, solicitava “evitar aglomerações, não fazer visitas, evitar toda fadiga e excesso físico”. Mas eram tidos apenas como “conselhos”.

No Diário de Pernambuco, o seu correspondente em Natal informou que para evitar a propagação da gripe Fortunato Aranha, então presidente da intendência da capital, mandou cancelar os jogos de futebol e encerrar o campeonato estadual de 1918.

Foi informado que a partir do final de outubro o Governo Federal proibiu as aglomerações públicas. Os teatros e os cinemas, além de lacrados, deveriam ser lavados com desinfetante. Em Natal os cinemas Royal e Polytheama ficaram sem exibições cinematográficas desde outubro e foram rigorosamente desinfetados.

Ainda no Diário de Pernambuco foi descrito que a “Inspectoria de Hygiene” de Natal emitiu uma proibição para os comerciantes locais não utilizarem, como era comum na época, papéis de jornais para embalar os produtos vendidos.

O bispo de Natal em 1918 era Dom Antônio dos Santos Cabral, o segundo a ocupar esse cargo. Ele mandou então suspender o novenário e outras solenidades externas relativa as comemorações de 21 de novembro, dia de Nossa Senhora da Apresentação, padroeira de Natal. Uma das solenidades atingidas foi a tradicional procissão. Dom Antônio ordenou também que houvesse a desinfecção das igrejas, principalmente das pias de água benta. Pediu que os atos religiosos fossem realizados sempre pela manhã, de forma mais rápida possível e que os padres transmitissem ao maior número de participantes medidas de higiene para evitar a propagação do vírus, além de dar assistência aos necessitados. Como aconteceu nas Rocas, onde o bispo incentivou as “Damas de Caridade”, grupo ligado à Igreja Católica, a atuar nesta região no apoio principalmente às famílias dos pescadores.

Dom Antônio dos Santos Cabral nasceu em Propriá (SE), estudou no Seminário Santa Teresa, em Salvador (BA). Foi ordenado padre no dia 1º de novembro de 1907 e regressou a , sua cidade natal, onde trabalhou como coadjutor de 1907 a 1912. Tornou-se pároco em 1912 e exerceu esse ministério até 1918. Graças ao excelente trabalho realizado, Dom Cabral foi nomeado cônego capitular da Sé de Aracaju (SE) e recebeu do Papa Bento XV, em janeiro de 1914, o título de monsenhor. Pouco tempo depois, em 1º de outubro de 1917 foi publicada a bula do Sumo Pontífice Bento XV, que o nomeou bispo de Natal. A Sagração de Dom Cabral foi realizada na Catedral Metropolitana, em 14 de abril de 1918, antes da chegada da gripe espanhola em Natal. Segundo o site https://arquidiocesebh.org.br/arquidiocese/organizacao/governo/dom-antonio-dos-santos-cabral/ Dom Cabral criou dezenas de instituições católicas na capital do Rio Grande do Norte. Ordenou sacerdotes, iniciou a construção do Seminário e da nova catedral. Em 1922, a Santa Sé o transferiu para a recém criada Diocese de Belo Horizonte. Sua chegada à capital mineira aconteceu no dia 30 de abril.

Quando sabemos o grau de religiosidade católica existente na população brasileira da época, percebemos o quanto as ações de Dom Antônio se coadunavam com o momento complicado.

Doentes e Mortes

Igualmente no Diário de Pernambuco foi informado no início de novembro que em Natal haveria cerca de 2.000 pessoas atacadas pela gripe espanhola e que o número de mortos era considerado pequeno.

O principal jornal pernambucano comentou o estado de algumas pessoas ilustres que foram atacadas pela doença, entre elas estava Francisco Justino Cascudo, comerciante, que se recuperava. O interessante é que na mesma nota o filho de Francisco Cascudo, Luís, também estava enfermo, mas não é dito de forma taxativa que seria de gripe espanhola. Entretanto é algo provável, pois encontrei a informação que o advogado Bruno Pereira, então diretor do jornal A Imprensa, que pertencia a Francisco Cascudo e era muito frequentado pelo seu filho, estava acometido de gripe espanhola.

Mas discretamente, nas páginas diárias de A República, surgem diversas notas de falecimentos atribuindo abertamente a gripe espanhola à causa da morte de várias pessoas.

São inúmeros os informes, tais como o falecimento em 3 de novembro de Armando de Lamare, superintendente da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte. Ou dos dois filhos menores de José Calazans Carneiro, funcionário dessa ferrovia. Já o capitão da polícia Abdon Trigueiro, informava a morte do seu irmão, o sargento da polícia Othoniel Trigueiro. Ou o falecimento de Alfredo Costa, serralheiro da Ferrovia Great Western, que deixou numerosa família. Houve também a morte do comerciário da empresa A. dos Reis & Cia., Miguel Medeiros, que morreu nas dependências do hospital Jovino Barreto e foi enterrado no cemitério do Alecrim.

Historiadores apontam que as famílias ricas no Brasil de 1918 foram menos atingidas do que as famílias pobres porque se refugiaram em fazendas no interior do país, mantendo distância do vírus. No caso do Rio Grande do Norte, sem maiores dados é temerário afirmar se a classe mais abastarda de terras potiguares na época foi, ou não, muito atingida pela pandemia de gripe espanhola. Entretanto, entre os inúmeros necrológicos publicados no período temos o falecimento do desembargador Vicente Simões Pereira de Lemos, ou do comerciante Alexandre de Vasconcelos, ou do professor Tertuliano da Costa Pinheiro.

O Fim do Pesadelo. Ou Não?

No mês de dezembro de 1918, os jornais informam que da mesma forma abrupta que este pesadelo chegou a Natal, ele estava deixando a nossa terra. No dia 11 de dezembro, a Inspetoria de Higiene considerava praticamente extinta o surto de gripe espanhola em Natal.

Do interior do Rio Grande do Norte chegam notícias do declínio dos surtos. De Lajes o intendente Felix Teixeira informava o recuo da doença e agradecia o apoio do governador Ferreira Chaves.

No dia 15 de dezembro o governo decidiu encerrar as atividades do Posto de Assistência do Alecrim, o principal da cidade. Ao final houve homenagens, festas e comemorações para a Inspetoria de Higiene, aos que trabalharam e mantiveram ativo o Posto e aos escoteiros. Todos foram recebidos com honras pelo mandatário estadual no palácio do governo.

Segundo informou o professor Luís Soares, em trinta dias de atividades o Posto atendeu nada menos que 5.381 pessoas. das quais 8 morreram. Os escoteiros visitaram neste período 169 casas, atendendo 135 doentes mais atingidos.

Sede da Associação de Escoteiro do Alecrim.

Infelizmente os jornais da época não explicam com maiores detalhes estes dados estatísticos. Não sabemos se destas 5.381 pessoas todas estavam doentes, ou o grau de virulência a que foram submetidos e, principalmente, em nenhuma linha é divulgado quantos morreram neste período. Acredito que em Natal se repetiu o mesmo que ocorreu em outras partes do país; no momento da pandemia as autoridades deliberadamente escamotearam os dados sobre a doença para, talvez, evitar o pânico. Ou esconder suas incompetências!

Para uma cidade onde a população girava em torno de 29.000 pessoas, um surto epidêmico que leva ao atendimento de 10.814 habitantes mostra a dimensão do problema que foi a gripe espanhola.

Entretanto, como para estragar qualquer comemoração pelo fim do mal, as mortes em Natal e no interior potiguar não ficaram restritas a 1918.

Em 3 de janeiro de 1919 é publicado no Diário de Pernambuco o falecimento do juiz distrital Ponciano Barbosa. Lembrado hoje por ser o nome de uma rua no centro da cidade (atrás do Hospital Varela Santiago), em 1918 Ponciano era uma pessoa extremamente popular nos meios católicos de Natal. Além da magistratura, era o Presidente do Círculo de Operários Católicos, que naquele ano realizou um grande evento pelo aniversário do falecimento do padre João Maria. No dia 1º de novembro esse juiz teve a honra de receber em sua casa Dom Antônio dos Santos Cabral, para realizar a cerimônia de entronização da imagem do Sagrado Coração de Jesus. Pouco mais de dois meses depois Ponciano Barbosa faleceu em meio a uma grande comoção na cidade. Já em Assú, em 24 de janeiro, faleceu em decorrência da gripe o advogado Cândido Caldas, parente do famoso poeta assuense Renato Caldas.

Na verdade, como houve em todo mundo, uma nova manifestação da gripe espanhola atingiu o Rio Grande do Norte. Tanto que o diretor da Inspetoria de Higiene, o Doutor Calistrato Carrilho, reabriu um posto de atendimento na Repartição de Higiene. O Dr. Carrilho informou entretanto que o número de falecidos nesse segundo ataque foi pequeno. Esse novo momento da gripe marcou também a política nacional, pois em 16 de janeiro o vírus vitimou Francisco de Paula Rodrigues Alves, quinto presidente da República, no início de seu segundo mandato, onde ele não chegou sequer a tomar posse. Uma nova eleição fora de época é convocada e o eleito é o paraibano Epitácio Pessoa.

Mas enfim, qual foi o número de mortos de gripe espanhola no Rio Grande do Norte em 1918?

É na mensagem transmitida pelo governador Ferreira Chaves, publicada em novembro de 1919, que surge um dado oficial sobre o número de mortos.

O governador informou que no relatório preparado pela “Inspectoria de Hygiene” sobre as ações do governo na área de saúde pública entre outubro de 1918 e junho de 1919, período que o governo potiguar definiu como de duração da gripe espanhola, faleceram 187 pessoas em Natal, cujo pico ocorreu entre novembro e dezembro, com 125 mortos. Não existem números sobre o interior. Esse número de 187 pessoas falecidas, não chega a ser nem sequer 1% da população de Natal na época.

Já Luís da Câmara Cascudo, afirma em seu livro História da Cidade de Natal (1999, pág. 213), sem citar fontes, que morreram na cidade 1.086 pessoas, pouco menos de 4% da população. Cascudo informou que no ano anterior o obituário local chegou a 699 pessoas. 

Sem maiores dados eu não tenho como responder essa questão com exatidão. Entretanto, observando os jornais antigos onde temos a informação que no Posto de Assistência do Alecrim foram atendidos 10.814 habitantes e os esforçados escoteiros visitaram neste período 169 casas, atendendo 135 doentes mais atingidos, o número oficial de 187 pessoas falecidas parece ser uma fantasia!

Mas esse tema ligado a estatísticas controversas não se restringiu ao Rio Grande do Norte. Faltam dados confiáveis a respeito das vítimas dessa pandemia em todo Brasil. Mesmo assim, não há dúvidas de que essa doença foi avassaladora. Por exemplo, em um único dia de 1918 o Rio de Janeiro chega a registrar mais de mil mortes.

Tal como ocorre agora com o COVID-19, a grande maioria de pessoas que contraíram a gripe em 1918 sobreviveu. Em geral, as taxas nacionais de mortalidade dos infectados não superaram 20%. Entretanto, esses índices variavam de um grupo para outro. Evidentemente, mesmo uma taxa de mortalidade de 20% supera bastante a de uma gripe convencional, que mata menos de 1% dos infectados.

Quase 90 anos depois, em 2008, os pesquisadores anunciaram que haviam descoberto o que tornava a gripe de 1918 ser tão mortal: um grupo de três genes permitiu que o vírus enfraquecesse os tubos brônquicos e os pulmões de uma vítima e abrisse caminho para a pneumonia bacteriana.

QUANDO A GRIPE ASIÁTICA ATACOU NATAL

As crianças foram as mais atingidas pela gripe asiática.

A atual Pandemia de COVID-19, o novo coronavírus, não é a primeira situação do gênero que Natal e o Rio Grande do Norte enfrentam. Talvez poucos saibam, mas em 1957 houve uma pandemia que ficou conhecida como gripe asiática, que aqui chegou causando medo e confusão.  

Veículos das Pioneiras Sociais, utilizados contra a gripe asiática. Foi uma ação do governo Juscelino Kubitschek de Oliveira .

Autor – Rostand Medeiros – IHGRN

Esse novo vírus teria se desenvolvido no norte da China e nessa época o regime comunista local era extremamente autoritário e controlava a saída de praticamente todas as informações do país para o exterior. O mundo só tomou conhecimento com maiores detalhes desse surto quando esse vírus chegou a Cingapura, onde foi relatado pela primeira vez em fevereiro de 1957. O certo é que em abril do mesmo ano a gripe avançou de Cingapura para Hong Kong e no verão alcançou as cidades costeiras do oeste dos Estados Unidos, primeiramente na Califórnia. Logo atacou a Oceania, África e Europa.

Qual era o tipo de Vírus

Através de testes o vírus foi reconhecido como sendo do tipo Influenza A e que ele era diferente de qualquer outro encontrado anteriormente em humanos. Pesquisas posteriores apontaram que a gripe asiática foi resultado de um cruzamento entre um vírus encontrado em patos selvagens na China (H2N2) e de uma cepa de vírus da gripe humana (H1N1). Convencionou-se na época denominar esse vírus como H2N2, mas ela ficou conhecida mundialmente como gripe asiática.

Pedido para não beijar a criança da foto, durante a pandemia de 1918.

Depois da gripe espanhola de 1918, a pandemia de gripe asiática de 1957 foi a segunda maior pandemia a ocorrer no mundo durante o século XX. Quando esse surto surgiu, apenas pessoas com mais de 70 anos de idade possuíam lembranças claras da experiência ocorrida quase quarenta anos antes. Apesar das advertências dos mais velhos, muitos não acreditaram na letalidade da nova gripe. Logo ficou patente que os mais jovens estavam errados.

No Reino Unido os primeiros casos foram informados no final de junho, com um surto mais grave ocorrendo na população em geral em agosto. O País de Gales e a Escócia tiveram os primeiros casos em setembro e no início de 1958 estima-se que cerca de 9 milhões de súditos da rainha Elizabeth II havia contraído a gripe asiática. Destes, mais de 5,5 milhões foram atendidos por seus médicos e cerca de 14.000 pessoas morreram devido aos efeitos imediatos do ataque. 

Foi relatado no Reino Unido que os pacientes sentiram fortes calafrios, seguido de prostração, dor de garganta, nariz escorrendo e tosse. Na sequência os relatos apontaram para membros doloridos (adultos), cabeça (crianças), seguido de febre alta (ambos os casos). Crianças pequenas, principalmente meninos, sofreram sangramentos no nariz. Cientistas ingleses observaram que a gripe asiática tinha duas ou três fases, sendo a segunda a de natureza mais grave.

Os sintomas eram geralmente leves e a maioria dos pacientes normalmente se recuperava após um período na cama, com medidas antipiréticas simples. Houve complicações em 3% dos casos, com mortalidade de 0,3%. Pneumonia e bronquite foram responsáveis ​​por 50% dos óbitos, sendo o restante por agravamento de doenças cardiovasculares já existentes. Durante a pandemia aumentou bastante a incidência de pneumonia.

Houve uma falta de uniformidade no tratamento ao surto. Alguns médicos prescreveram antibióticos para todos os casos, até os menos complicados. Mais tarde, no entanto, observou-se que o uso indiscriminado de antibióticos não era benéfico.

Na época foi possível detectar o agente com rapidez e trabalhar em novas soluções. Uma vacina para a gripe asiática foi introduzida ainda em 1957 e a pandemia diminuiu. Ocorreu uma segunda onda dessa gripe em 1958 e ela passou a fazer parte daquilo que os cientistas classificam como gripes sazonais. Em 1968 foi comprovado que a gripe asiática H2N2 havia desaparecido na população humana e acredita-se que ela tenha sido extinta na natureza. 

Apesar de praticamente desconhecida nos dias atuais, essa doença matou entre 1,4 e 2 milhões de pessoas, sendo 116.000 nos Estados Unidos. Outros cientistas apontam que esse surtou ceifou muito mais gente. Colocando a cifra em 4 milhões de mortos, principalmente no continente de onde se originou, sendo as crianças suas vítimas preferenciais.

A Gripe Chega a Natal

Juscelino Kubitschek de Oliveira e Dinarte Mariz. Respectivamente presidente do Brasil e governador do Rio Grande do Norte em 1957.

Quem governava o Brasil na época era Juscelino Kubitschek e a gripe asiática aqui chegou entre julho e agosto de 1957, com um primeiro surto no Rio Grande do Sul. No início de setembro, sua presença foi identificada no Rio de Janeiro pelo Instituto Oswaldo Cruz e pelo Instituto de Microbiologia da Universidade do Brasil – hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pouco depois pandemia desembarcou em Belo Horizonte, Salvador e Belém, sempre com alta incidência em crianças.

Dinarte de Medeiros Mariz era o governador do Rio Grande do Norte em 1957 e o médico Dary de Assis Dantas o diretor do Departamento de Saúde Pública, atual SESAP – Secretaria de Estado de Saúde Pública do Rio Grande do Norte. Este último havia nascido na cidade de Serra Negra do Norte, mesmo local de nascimento do governador, se formou em medicina no Rio de Janeiro onde atuou na Santa Casa de Misericórdia e no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), quando foi convidado por Dinarte para assumir o cargo. Dary era pessoa de extrema confiança do governador e médico de sua família.

Eider Furtado, correspondente do Diário de Pernambuco em Natal naquela época, informou na edição de 15 de setembro daquele jornal (pág. 7) que na primeira quinzena de agosto Dary Dantas havia formado a Comissão Estadual de Defesa Contra a Gripe. Esse grupo começou a estudar medidas contra a doença que se avizinhava do Rio Grande do Norte. O diretor do Departamento de Saúde Pública também solicitou ao governador uma verba no valor de 500 mil cruzeiros para combater a gripe no estado.

Provavelmente a criação dessa comissão se deveu, ao menos em parte, a divulgação de um primeiro alarme da presença da gripe asiática entre os potiguares. Em agosto de 1957 surgiu a informação que cerca de “400 pessoas” teriam contraído a nova doença no município de Goianinha, 50 quilômetros ao sul da capital. O surto teria surgido na Usina Estivas, mas logo o caso foi negado e devidamente esclarecido pelo médico Luís Antônio dos Santos Lima. O que aconteceu foi que realmente havia naquele lugar um surto de gripe, mas de gripe sazonal. Além disso, nesse período a gripe asiática ainda se encontrava restrita ao sul do Brasil.

Após o susto inicial não demorou a surgir os primeiros casos comprovados da doença no Rio Grande do Norte, ou “Cingapura”, como a doença também ficou igualmente conhecida. NaTribuna do Norte, em O Poti e no Diário de Natal, os principais jornais que circulavam na capital potiguar na época, é possível conhecer detalhes desse acontecimento.

Em 25 de setembro de 1957, na página 6, o Diário de Natal estampou que em uma residência na Rua Apodi, na Cidade Alta, quatro pessoas estavam acamadas, com muita febre e forte gripe. Interessante comentar que esse jornal não informou a localização da casa e nem os nomes das pessoas doentes, mesmo sendo editado em uma cidade com cerca de 140.000 habitantes, onde praticamente todos se conheciam e sabiam do ocorrido.

Médicos da Saúde Pública estiveram presentes ao local. Eles aconselharam o isolamento e recolheram amostras dos pacientes, que foram enviados ao Rio de Janeiro por um avião da Força Aérea Brasileira para confirmação da doença. Esse exame ocorreu no Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, atual Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. O resultado foi divulgado dias depois e se confirmou a existência da gripe asiática em Natal.

Mortes no Tradicional Bairro do Alecrim e Cobranças

Após a chegada da confirmação do Rio de Janeiro, Dary Dantas e os membros da Comissão pediram calma a população e informaram que ainda “não estava formado um surto epidêmico em Natal”. Pouco mais de uma semana depois aconteceram as primeiras mortes!

Nessa época o bairro do Alecrim já era considerado o maior da cidade, possuindo um forte comércio, a maior feira de alimentos, concentrando uma grande parte da população de Natal e possuindo uma característica única e marcante – suas principais artérias eram conhecidas pelo povo através de uma antiga numeração. E foi nesse bairro de características tão peculiares e marcantes para os natalenses que em 5 de outubro de 1957 duas crianças faleceram de gripe asiática em suas casas, respectivamente nas antigas Avenidas 7 e 8[1].

Consideram que, apesar das crianças estarem acometidas de forte gripe, suas famílias não tomaram as “necessárias medidas preventivas”. Os jornais só não explicaram quais eram essas medidas. Somente próximo ao final do mês de outubro é que vamos encontrar nas páginas dos jornais algum tipo de material informativo oriundo do Departamento de Saúde Pública explicando o que a população deveria fazer. Aqui trago um exemplo.

Ainda em 18 de outubro, na página 6 do Diário de Natal, é relatado que seus repórteres realizaram um levantamento que, mesmo sem confirmação oficial, indicou que mais de 100 pessoas com sintomas da gripe asiática eram transportadas diariamente pelas ambulâncias Ford F-1 do SAMDU – Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência, para o Hospital Miguel Couto, atual Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL. Existiam casos graves no bairro das Rocas, mais precisamente na Rua Floresta, perto do Canto do Mangue, não muito distante do rio Potengi. Ali eram as crianças as mais atingidas, algumas com relatos de expectoração de sangue do trato respiratório.

O jornal Diário de Natal foi contundente na crítica a ação governamental: “Não obstante as reiteradas e solenes afirmações das nossas autoridades sanitárias, de que o assunto da gripe asiática em Natal era objeto apenas de informações alarmistas, aí está o surto da “Cingapura” tomando conta da cidade”.

Ambulâncias Ford F-1 do SAMDU – Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência, partindo do Hospital Miguel Couto, em Natal.

Apesar da gravidade do caso, não encontrei nos jornais referências sobre aplicação de métodos de isolamento social para a contenção desse surto.

Uma Criança Morre na Calçada

Igualmente não encontramos material oriundo do Departamento de Saúde Pública da Comissão Estadual de Defesa Contra a Gripe com estatísticas sobre o alcance da gripe asiática em Natal. Por isso não temos meios de afirmar se os jornais estavam corretos ao informarem no dia 22 de outubro, que o número de vitimas da doença era “de aproximadamente 6.000 pessoas”. Por outro lado encontramos registros que os profissionais da Saúde Pública já haviam visitado mais de 800 doentes em suas residências e que em um único dia ocorreu mais de 500 notificações de atingidos por essa gripe, apontando para uma provável estagnação na capacidade de atendimento do Hospital Miguel Couto, o principal da cidade. Noutra parte da reportagem informava que famílias inteiras estavam com a gripe em suas casas.

O Instituto Oswaldo Cruz começou a enviar vacinas para Natal, mas o número foi pequeno para a demanda. Não demorou e circulou a informação que o surto atingiu 10.000 natalenses, principalmente no bairro das Rocas.

Houve uma situação trágica, que chamou atenção na cidade e o combativo advogado e jornalista Luís Maranhão Filho registrou em sua coluna no Diário de Natal de 25 de outubro de 1957. No dia anterior, na calçada do Centro de Saúde da cidade, na Avenida Junqueira Aires, atual Câmara Cascudo, foi encontrada uma criança morta. Não existem maiores detalhes sobre seu falecimento, tendo sido creditado a gripe asiática. Luís Maranhão foi extremamente contundente em sua crítica ao descaso do poder público em relação à saúde do povo natalense.  Realmente as notícias envolvendo mortes trágicas de crianças em Natal, mesmo sendo as de origem mais humilde, eram estampadas com destaque nos jornais. Mas não nesse caso. Nem Luís Maranhão foi desmentido por algum dos periódicos locais.

Anúncio Precipitado do Fim da Pandemia

Cerca de trinta dias após a chegada dessa pandemia em Natal, os jornais de 26 de outubro destacam que o número de casos começou a declinar. Realmente alguns jornalistas comprovaram um declínio dos casos nos locais de atendimento na capital. Um dos membros da Comissão Estadual de Defesa Contra a Gripe atestou a redução dos casos, tranquilizando a população. Entretanto fez questão de apontar que “o maior número de gripados foi constatado em bairros afastados, entre a pobreza”.

Mas o anúncio foi precipitado, pois uma semana depois novos casos surgiram, com pessoas tendo febres de 40 graus, fortes calafrios e vômitos. Dessa vez o foco foi principalmente na região conhecida antigamente como Alto do Juruá, no atual bairro de Areia Preta. Nessa região, na Rua 2 de novembro, hoje Major Afonso Magalhães, famílias inteiras foram duramente atingidas, sendo necessário o apoio de vizinhos para solicitar socorro junto a Saúde Pública.

No dia 5 de novembro houve um caso que mereceu bastante destaque na imprensa natalense.

Nessa época existia o bar e restaurante Flórida, que ficava localizado na Avenida Duque de Caxias, nº 45, Ribeira. Ali trabalhava um garçom chamado Antônio Domingos Filho, que devido se encontrar com uma febre muito alta, pediu ajuda ao seu colega de trabalho Abel Gomes para levá-lo ao Hospital Miguel Couto para ser atendido. Eles foram, mas lá informaram que “ali não tratavam mais casos dessa natureza e que eles fossem pra o SAMDU”. Nesse local o garçom teve novamente negado qualquer tipo de atendimento. Sem jeito de resolver a situação, Abel então levou seu amigo Antônio Domingos até a sua residência, em uma humilde casa na Travessa Primeiro de Maio, bairro de Petrópolis. Segundo declarou Abel Gomes aos jornais, devido ao agravamento do quadro, de madrugada Antônio saiu pela rua gritando tresloucadamente em busca de socorro. Mas aí quem veio não foi a Saúde Pública, mas a Polícia Militar. O pobre garçom, tido como alterado, acabou no chão frio de uma cela na 2ª Delegacia de Polícia. O resultado foi que às seis da manhã ele foi encontrado morto.

Logo o caso repercutiu na Rádio Poti e outros meios de comunicação, mas nada foi feito. Não encontrei algum pedido de abertura de inquérito, ou alguma providência por parte do Ministério Público.

Enfim, ele era apenas um pobre garçom!

Até gostaria, mas certamente a atual pandemia de COVID-19 não será a última ocasião em que Natal vai testemunhar. Mas será muito interessante que na atual conjuntura as pessoas mais humildes e necessitadas, que é grande parcela da atual população potiguar, venha ater por parte das autoridades o devido apoio para enfrentar essa situação e que o caso do garçom Antônio Domingos Filho fique restrito a memória histórica dessa terra!

NOTA


[1] Muitos imaginam até hoje que essa situação é fruto da presença das tropas norte-americanas em Natal durante a Segunda Guerra Mundial, onde as autoridades locais teriam numerado as principais vias do Alecrim para facilitar a circulação dos militares estrangeiros na área. Nada disso! Oficialmente o bairro do Alecrim foi criado em 23 de outubro de 1911, mas existem informações que já em 1903, quando a região ainda era um amplo matagal pontilhado por alguns sítios, ali foi criado um traçado numerado de futuras avenidas e ruas. Mesmo sem existir uma documentação comprobatória, acredita-se que essa delimitação foi realizada pelo arquiteto italiano Antônio Polidrelli. Este havia sido contratado pelo poder municipal para desenvolver o traçado da área denominada Cidade Nova (atuais bairros de Petrópolis e Tirol) e a ideia de criar esse traçado no Alecrim tinha o objetivo de facilitar junto a Intendência Municipal de Natal o aforamento de terrenos dos futuros moradores. As antigas Avenidas 7 e 8 são atualmente as Ruas dos Caicos e dos Pajeús. Sobre a história relativa a questão das numerações das ruas do bairro do Alecrim, ver SOUZA, Itamar de. Nova História de Natal, 2008, 2ª Ed. págs. 522 a 524. Mesmo com as numerações das antigas avenidas e ruas do Alecrim tendo sido oficialmente abolidas em 1930, até hoje uma grande parcela dos natalenses continua a utilizar as velhas numerações para se localizar no bairro, inclusive o autor dessas linhas (antigo morador do bairro, na Rua Borborema).

SEGUNDA GUERRA – BRASIL TEVE CAPITÃO DO EXÉRCITO, FILHO DE CORONEL, CONDENADO POR ESPIONAGEM A SERVIÇO DOS NAZISTAS

Fonte – https://jornalismodeguerra.wordpress.com/2018/02/16/brasil-teve-capitao-filho-de-coronel-condenado-por-espionagem-a-servico-dos-nazistas/

Filho de Coronel, Capitão do Exército Brasileiro nos meses que antecediam a declaração de guerra contra Alemanha e Itália, piloto de avião, de família financeiramente estável, bem falado nos ciclos cariocas, porém dono de um gênio forte e agressivo. Assim poderia ser descrito Túlio Régis do Nascimento, um dos poucos espiões à serviço dos nazistas condenados no Brasil.

O Capitão Túlio militou no Movimento Integralista. Na foto uma propaganda integralista.

Primeiro ele foi integralista e pró-Eixo, falando abertamente para quem quisesse ouvir que a Alemanha ganharia a guerra. Hoje essa afirmação soa estranha, mas na época era uma aposta e tanto, principalmente antes de 1942.

Os contatos dele para montar o esquema de espionagem eram o embaixador alemão no Rio de Janeiro (então Capital Federal), Kurt Prüefer e o adido naval Almirante Hermann Bohny. Kurt, antes do rompimento de relações com o Brasil tentou convencer os brasileiros, especificamente Vargas a seguir na causa alemã.

Albrecht Gustav Engels

O começo dos serviços

Ele foi voluntário, começou com informações internas e foi crescendo no conceito alemão. Em uma dessas feitas, por conta do cargo, Túlio teve permissão para uma viagem aos Estados Unidos, em que conheceria a base Sperry para curso de aperfeiçoamento. O capitão correu para contar a novidade a um dos agentes alemães em solo nacional, Albrecht Gustav Engels, que transmitiria a novidade para Berlim. Autoridades brasileiras interceptaram a conversa e o chamaram para esclarecer o ocorrido. Porém, o chefe da de Polícia de Vargas, Filinto Müller apenas ouviu e soltou o acusado.

Filinto Strubing Müller foi um militar e político brasileiro. Participou dos levantes tenentistas entre 1922 e 1924. Durante o Governo Vargas, destacou-se por sua atuação como chefe da polícia política, e por diversas vezes foi acusado de promover prisões arbitrárias e a tortura de prisioneiros – Fonte – Arquivo Nacional.

Desconfiados, pero no mucho

O grupo estava mais cuidadoso, mas começou a ser mais vigiado pelas autoridades nacionais em conjunto com os Estados Unidos. Mesmo assim, partiram para outras missões, uma delas, conseguir informações das bases do Norte e Nordeste do país, com convite feito ao membro Raimundo Padilha, que recusou agir e  passou a missão para o jornalista Gerardo Mello Mourão, que atendeu o pedido.

Navio TS Windhukfazer um blog – Fonte – http://www.sixtant.net/2011/artigos.php?cat=the-saga-of-liner-windhuk&sub=voyage-to-captivity&tag=1)liner-windhuk

O terceiro ato era explodir o navio Winduck, apreendido da Alemanha e cedido pelo Brasil aos EUA. Nessa última missão quem foi acionado foi Álvaro da Costa e Souza, porém, ele se recusou e entregou os comparsas para a polícia, traindo o grupo. O navio não foi sabotado.

Dali em diante não tinha mais volta. Policiais fecharam o cerco e o grupo foi caindo um a um. Padilha contou das bases e Álvaro entregou do navio. Túlio foi preso e os delatores soltos por falta de provas.

O esquema era grande

Jornais da época falam em um esquema muito maior dentro do quartel em que servia Túlio, inclusive com o objetivo de sublevação de sargentos e que os dois principais auxiliares, Gerardo e Álvaro, envolviam outros civis, inclusive prostitutas para conseguir informações. A promessa era de 12 mil cruzeiros para quem entrasse para a organização. O dinheiro vinha da Alemanha. Heinz Ehlert facilitava o trâmite da grana e do fluxo de informações. Para despistar a polícia, Túlio usava o codinome “García”.

Floriano Peixoto Keller, em 1952, no posto de General de Brigada – Fonte – Arquivo Nacional.

No entanto, confrontado com as provas, Túlio confessou os crimes na presença de Tenente-coronel Floriano Peixoto Keller e do Capitão José Bretas Cupertino.

Na denúncia apareceram fatos chocantes, como o de que o grupo passava as movimentações de navios dos Estados Unidos e da Inglaterra no porto do Rio, além de fazer reuniões freqüentes com o almirante Bohny e com o conselheiro da Embaixada Alemã, Walter Becker, que por sua vez era auxiliado pelo médico Oswaldo Riffel França, encarregado do contato com a célula nazista de Bueno Aires.

Túlio morava em um apartamento em Copacabana em nome de Riffel, que aliás, foi quem pediu para Buenos Aires para enviar novos códigos cifrados, já que os brasileiros tinham descoberto os que vinham usando.

Mais denunciados

Quando as provas já eram consistentes, foram denunciados: Alexsander Konder, Heinz Ehlert, Valencio Wurch Duarte, Álvaro da Costa e Souza, Ernest Ramuz, Albert Gustav Engels, Heinz Otto Herman Lourenz, Gerardo Mello Mourão, Kurt Martins Weingartner, Otmar Gamilischig, Herbert Friederich Julius Von Heyer. Por lavarem o dinheiro para o grupo, foram denunciados Camilo Mendes Pimentel, Jefferson Dias e Vasco Paroline Pezzi, que eram sócios ocultos de Albert Angels.

Herbert Friedrich Julius von Heyer, ou Herbert von Heyer. Fonte – Livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, pág. 37.

O advogado de Túlio

Assim que foi preso, em 1943, Túlio chamou como advogado Evandro Lins e Silva. O defensor conta que o cliente estava bastante nervoso com a situação e que pensou em entregar seus superiores, dando a entender que havia gente maior do governo. Lins sugeriu duas saídas: denunciar os maiorais e tentar desviar dele as denúncias ou preservar os cabeças do esquema e se beneficiar do poder deles depois. Túlio escolheu a segunda opção e não entregou os cargos acima do dele.

Túlio era primo da esposa de Lins e o Konder era cunhado dele. Ou seja, dois da família estavam no rolo. Lins conta que ficou com medo que o matassem como queima de arquivo, porque Túlio lhe revelara o nome dos superiores. Por isso, deixou gente da confiança dele avisada caso lhe passasse algo, porém ficou vivo para contar a história.

Comandava o quartel em que Túlio ficou detido, o Coronel Nelson de Melo, o mesmo da rendição em Fornovo com a FEB na Itália, dois anos depois.

Na cadeia

Alberto Daflon Gomes era um soldado na Fortaleza de Santa Cruz, em que Túlio estava preso. Ali houve um desentendimento com o prisioneiro, que queria que lhe prestassem continência porque ele era Oficial do Exército. O recruta e o colega dele, Rubens, negaram, afinal ele tinha sido destituído do posto militar quando foi preso. Túlio partiu para cima dos guarda com um cinto na mão e a dupla ameaçou atirar nele. Assim ele foi contido. Com a barulheira, o Oficial responsável pela guarda apareceu e para evitar novos confrontos, disse para os soldados prestarem continência e não ficarem arrumando confusão.

Quando os últimos recursos de defesa se esgotaram, lá estavam os dois soldados assistindo a cerimônia de retirada das divisas de Túlio, realizada na frente de toda a tropa que aguardava em forma. Foi convertido em civil e transferido para outro presídio. Alberto foi servir na FEB e voltou com vida do conflito.

O pai tenta salvar o filho

O Coronel Flávio Queiroz do Nascimento era oficial da Reserva e para tentar impedir o processo do filho encaminhou pedido para o Governo Federal para que Túlio fosse internado em um sanatório para tratamento psiquiátrico, em julho de 1943. O pedido foi negado.

Cena obtida antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial – Loja com propaganda integralista – Fonte – Arquivo Nacional.

Penas gigantes, mas não cumpridas

Após a denúncia, vieram as prisões. Alguns foram liberados por falta de provas, no entanto, outros ficaram presos. Túlio e Gerardo pegaram 30 anos de cadeia e os informantes, todos integralistas, Valêncio Duarte, Álvaro da Costa e Souza e Oswaldo França foram condenados a 25 anos de reclusão. A maioria, entre eles o Gerardo Mello Mourão, saiu entre 1947 e 1950. No começo dos anos 50, apenas Túlio estava preso, tendo sido liberado de cumprir a pena somente em 1955, após recorrer ao Supremo Tribunal Federal.

Fonte – Biblioteca Nacional.

Acontece que durante o governo Dutra, Nereu Ramos, vice-presidente da República assumiu o cargo de chefe da nação por 21 dias em 1955. Nesses 21 dias libertou não só Túlio, como Margarida Hirschmann, locutora da Rádio Auriverde.

Margarida Hirschmann foi a locutora brasileira que travou guerra psicológica, quando militares alemães montaram uma rádio em solo italiano para tentar desmoralizar o pessoal da Força Expedicionária Brasileira – FEB. Chamava-se “Rádio Auriverde”, funcionava na Rádio Fino-Mônaco e tinha como comandante Anelmann Alta, além do italiano Felício Mastrangelo, que fora radialista no Brasil da década de 30 até 1942. Todos tinham morado no Brasil e sabiam como usar o rádio como arma psicológica. – Fonte – https://jornalismodeguerra.wordpress.com/2018/05/11/locutora-brasileira-que-travou-guerra-psicologica-contra-a-feb-foi-inocentada-no-brasil/

Outros envolvidos

O médico França, que também ficou preso, foi parar em Ilha Grande e mesmo livre morou lá até a morte, aos 81 anos de idade, depois de servir 48 anos como médico da comunidade. Está enterrado lá.

Gerardo Mello Mourão ocupou cargos políticos, foi escritor elogiado e negava que tivesse sido espião, se dizia apenas um integralista e nada mais. Nem nazista e nem fascista, só integralista. Faleceu no Rio de Janeiro em março de 2007.

Gerardo Mello Mourão – Font – Arquivo Nacional.

Vingança Integralista

Após terem sido liberados da cadeia, uma matéria na revista “O Cruzeiro” deixou Túlio, Konder e Gerardo Mourão nervosos. Túlio queria matar o repórter e Konder disse que matar não era o melhor caminho. Armaram um esquema para sequestrar o jornalista e o levaram até um restaurante português. Combinaram com o dono para que preparasse um prato cheio de bosta humana e obrigaram o jornalista a comer. Depois liberaram ele, dizendo que se contasse para alguém, o matariam.

Vai e volta

Em 1960 Túlio apareceu novamente, desta feita tentando no STF ser reincorporado ao Exército, o que lhe foi negado. Depois, novos registros dele na imprensa só aparecem de novo em 1966, quando queria que os ex-combatentes impedissem que Raimundo Padilha assumisse um segundo mandato como deputado federal. Aquele Padilha lá de trás, que entregou o pessoal, vinha ocupando cargos políticos desde 1945 e na época era um dos braços fortes do militares, como membro do partido deles, o Arena.

Confusão política

Havia segmentos dos Pracinhas que reclamavam, pois antigos integralistas, acusados de fascismo e de colaboração com o nazismo estavam livres, ocupando cargos no governo, se destacando na sociedade, enquanto outros colegas que haviam pego em armas com a FEB na Itália, como Gervásio Gomes de Azevedo, Salomão Malina e Aldo Ripassarti eram perseguidos acusados de serem comunistas. Isso sem contar que em 1948 o governo ainda discutia se pagaria e como pagaria as famílias dos náufragos mortos nos ataques alemães.

Em 1960, por exemplo, quando Gerardo Mello Mourão foi nomeado, pelo então presidente Juscelino Kubitschek, chefe de gabinete do Ministro da Agricultura, os veteranos fizeram um grande protesto e ele não assumiu o cargo. O governo mudou de estratégia e Mello Mourão pegou um cargo vitalício no Senado, inclusive com uma remuneração melhor que a primeira proposta.

A indignação foi tão grande que o ex-combatente do 1º Grupo de Caça, Neltair Pithan e Silva, devolveu a Medalha de Campanha na Itália (FAB) ao Presidente da República com uma carta revoltada. Em 1966, Raimundo foi chamado para líder do governo Castelo Branco no Congresso e causou nova revolta.

Como repúdio, Jamil Amiden (que também era deputado) e centenas de ex-combatentes devolveram suas Medalhas de Campanha em protesto. O ato fez barulho na imprensa, mas depois caiu no esquecimento.

Como nessa época as Associações de Ex-combatentes já estavam nas mãos de pessoas solidárias ao governo militar ou tinham pouco poder (20 anos depois da guerra), a libertação dos espiões ficou por isso mesmo e esquecida. Não há informações de Túlio nesse período pós 1966…

Fontes consultadas:

O SALÃO dos passos perdidos: depoimento aoCPDOC / [Entrevistas e notas: Marly Silva daMotta, Verena Alberti ; Edição de texto DoraRocha]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed.Fundação Getulio Vargas, 1997. 525p. il.

VENTO PASSADO – Memórias do Recruta 271. 2ª edição. Niterói, 2013, de Alberto Daflon e Fábio Daflon.

Diário do Congresso Nacional de 17 de março de 1966, Suplemento nº 30

Jornal O Estado, de Santa Catarina, de 31 de março de 1943

A Guerra que não acabou, de Francisco Ferraz

Documentos Digitalizados da FEB, do Arquivo Nacional

Correio da Manhã, 18 de agostode1960

Correio da manhã, 14 de agosto de 1952

A Noite, 14 de abril de 1960

Correio da Manhã, 11 de agosto de 1955

Correio da manhã, 01 de janeiro de 1956

Correio da Manhã, 25 de outubro de 1958

Petição de habeas-corpus nº 31552

A Notícia, 04 de abril de 1943 (Joinville) 

UM HOMEM DA METRÓPOLE NA ILHA DA MALDIÇÃO, de

WESLLEY HANNS CARVALHO MATOS, disponível em http://ilhagrandehumanidades.com.br/?q=sociaisehumanas/um-homem-da-metr%C3%B3pole-na-ilha-da-maldi%C3%A7%C3%A3o

Raimundo Padilha: O Espião de Ontem é o Espionado Hoje, por DIEGO DA SILVA RAMOS, disponível em http://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1502290774_ARQUIVO_TRABALHOCOMPLETO.pdf

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/kurt-prufer

https://perspectivaonline.com.br/2012/09/07/entrevista-com-gerardo-mello-mourao/

GRIPES HISTÓRICAS

Em 1918 uma pandemia de gripe varreu o mundo, infectando um terço da população mundial e matando pelo menos 50 milhões de pessoas – Fonte – https://blogs.cdc.gov/publichealthmatters/2018/05/1918-flu/

Por Álvaro Oppermann para a revista Aventuras na História (ed. 71 – junho de 2009) – https://historiablog.org/2009/09/04/gripes-historicas-a-historia-das-gripes/

VEJA TAMBÉM – https://tokdehistoria.com.br/2011/03/19/1918-quando-a-gripe-espanhola-atacou-natal/

Em setembro de 1918, o mundo descobriu, atemorizado, um inimigo mortífero. Já não bastassem os horrores da Primeira Guerra Mundial, milhões de pessoas foram dizimadas por outra causa. A humanidade estava sendo atacada pela gripe espanhola — pelo menos um quinto da população mundial contraiu a doença —, e não sabia como se defender. Os sintomas eram violentos. O doente sentia dor de cabeça e era tomado por calafrios tão intensos que os cobertores se tornavam inúteis. Depois começava a tossir sangue e os pés ficavam pretos. Quando os pulmões se enchiam de uma mistura de secreções, era o fim. E tudo isso ocorria com velocidade assustadora: da saúde ao óbito, passavam-se poucos dias, ou mesmo horas. “Pessoas saíam de manhã para trabalhar e não retornavam”, escreve a jornalista americana Gina Kolata em Gripe: a História da Pandemia de 1918. Sozinha, a gripe matou de 30 milhões a 100 milhões de pessoas. Mais que a Primeira Guerra, que deixou 10 milhões de vítimas fatais.

A cada nova pandemia o fantasma de 1918 retorna. E com bons motivos: os métodos de transmissão só foram identificados há poucas décadas. Mas a primeira referência à gripe na História foi feita por Hipócrates. O médico grego relatou em 412 a.C. que uma doença respiratória atacou de forma epidêmica a Grécia e em poucas semanas matou centenas. Foram os gregos que cunharam a palavra “epidemia” para as doenças infecciosas que se abatem sobre grande número de pessoas em uma localidade. A expressão vinha de epidemos, indivíduos que não moravam nas cidades. “O médico [Hipócrates] fez tal comparação porque as doenças infecciosas não eram da região e iam embora”, escreve o médico Stefan Cunha Ujvari em A História e suas Epidemias.

A epidemia de gripe só reapareceu em 1173 e o primeiro caso sério veio no século 16. Em 1580, uma pandemia se alastrou pela Europa a partir da Espanha. Os agentes do contágio teriam sido os soldados do rei Felipe II (1527-1598). No século 18, três novos grandes surtos provocaram o surgimento do termo “influenza”. Muitas teorias versam sobre a origem do nome, da influência dos astros à interferência do frio (já que a gripe é mais comum no inverno). Em 1837, a combinação de doença e baixas temperaturas foi tão séria em Berlim que, em janeiro, o número de mortos pela gripe excedeu o de recém-nascidos.

Fonte – https://www.smithsonianmag.com/history/how-1918-flu-pandemic-helped-advance-womens-rights-180968311/

As pandemias de gripe atravessaram o tempo, os vírus sofreram mutações e os tratamentos também mudaram muito desde a época de Hipócrates, que, no século 5, prescrevia sangrias. Adepto da teoria clássica dos humores (secreções do corpo), ele dizia que a sangria eliminaria o fluxo sanguíneo excessivo, o suposto causador da doença. Tal tratamento foi amplamente utilizado pelos médicos até o fim do século 19. Porém, ele nem de longe era o mais bizarro. No século 18, médicos franceses garantiam que a gripe era causada pelo excesso de relações sexuais e recomendavam a castidade. Em Londres, do fim do século 19 até a década de 1920, os banhos quentes e o vinho eram recomendados como tratamento certeiro. No Brasil, em 1918, ficou popular o uso do quinino e purgantes. Nem um nem outro tinham efeito algum sobre a doença. O quinino era usado para a malária, que, sabe-se hoje, é causada por protozoário, não por vírus. Os purgantes, por sua vez, só funcionavam para causar uma bela dor de barriga no doente, que já estava debilitado. A Diretoria Geral de Saúde Pública, em 1918, também indicava canja de galinha. Resultado: grandes armazéns no Rio de Janeiro e em São Paulo foram saqueados pela população em busca do frango salvador. A primeira vacina surgiria em 1945, nos Estados Unidos, feita de vírus mortos. As vacinas se popularizaram nos anos 1960, mas só em 2003 foi aprovado o uso de vírus vivos.

A descoberta do vírus

Graças ao microscópio, o estudo das causas e dos tratamentos só ganhou rigor científico no século 20. No século 19, já se conheciam as bactérias, mas o vírus da influenza A seria isolado apenas em 1933, pelos cientistas Wilson Smith, Christopher Andrews e Patrick Laidlaw. A versão B foi identificada em 1939, e a C em 1950. Essas letras, A, B e C, foram criadas nos anos 1950 para identificar os três tipos que existem: a C é a comum, a B é a típica gripe de inverno, que ataca especialmente as crianças, e a A é selvagem e perigosa — um verdadeiro peso-pesado.

O habitat natural do vírus A, causador das grandes pandemias, como a espanhola e a gripe atual, é o mesmo dos patos e de outras aves aquáticas. Ele também pode viver em mamíferos como porcos, cavalos, baleias e leões-marinhos. Isso explica por que se costuma dizer que uma gripe é “suína” ou “aviária”. O apelido indica a origem do vírus A.

Gripes do porco

Quando Smith isolou o microorganismo, na década de 1930, notou que ele tinha uma estrutura muito simples. “É constituído apenas do seu material genético, seja DNA, seja RNA. Ao contrário das bactérias, não tem o maquinário necessário para reprodução”, diz Stefan Cunha Ujvari. Por isso, precisa, necessariamente, viver dentro de um hospedeiro. Ele invade as células e lá dentro faz cópias exatas de si mesmo. É a forma de se replicar.

Os vírus têm extrema dificuldade de saltar de uma ave para um ser humano. Porém, conseguem fazer essa migração utilizando os porcos como “escala”. Foi isso que aconteceu em 1918, segundo a teoria de dois eminentes professores de virologia, Robert Webster e Kennedy Shortridge. O causador da gripe espanhola,  dizem eles, começou provavelmente em uma ave e foi transmitido a um porco, que por sua vez infectou pessoas — razão qual os sobreviventes da epidemia tinham anticorpos da gripe suína.

De acordo com Shortridge, foi na China, um milênio antes da era atual, que os plantadores de arroz começaram a criar porcos junto com patos. “Foi a oportunidade ideal para o vírus saltar para nós”, diz o cientista. Devemos ficar bravos com os porcos? Bem, se eles pudessem entender de virologia, também teriam motivo para ficar irritados conosco. Afinal, esses bichos também pegam gripe dos seres humanos. No início de maio de 2009, cientistas investigavam o caso de um fazendeiro de Alberta, no Canadá, que teria transmitido a gripe para sua criação de porcos: 200 animais foram contaminados após ele passar uma temporada no México, onde contraiu o vírus originado em outros porcos.

Vírus mortais – As cinco maiores epidemias de gripe da História

A Gripe Russa (1889-1890)

  • Sintomas: febre e pneumonia
  • Propagação: foi gcarregada pelo vento e pelas linhas de trens, como o Expresso Transiberiano. Em 15 dias atravessou aRússia inteira, da Sibéria a São Petersburgo. A epidemia atingiu toda a Europa, norte da África, a China, países do sudeste asiático, EUA, América Central e América do Sul.
  • Mortos: 1,5 milhão
  • Tratamentos usados na época: acreditava-se que banhos quentes e vinho eram remédios. Durante o surto, casas de banho ficaram populares em Londres.

A Gripe Espanhola (1918-1919)

  • Sintomas: pneumonia viral, sangramentos e calafrios
  • Propagação: a gripe atingiu todos os continentes
  • Mortes: 30 milhões a 100 milhões
  • Tratamentos: NA Europa, cidades inteiras ficaram de quarentena. No Brasil, receitava-se bromo-quinino, sulfato de quinino, limonada purgativa, chá de canela e canja de galinha.

A Gripe Asiática (1957-1958)

  • Sintomas: febre alta, dor de cabeça e cansaço
  • Propagação: alastrou-se devagar, principalmente por terra e por mar, com surtos localizados. Além da Ásia, atingiu também a Europa, a África, a Oceania e os EUA.
  • Mortos: 2 milhões
  • Tratamentos: a tecnologia da época possibilitou a fabricação de vacinas, porém em quantidade insuficiente.

A Gripe de Hong Kong (1968-1969)

  • Sintomas: febre alta, dor nas articulações e cansaço
  • Propagação: Pessoas infectadas espalharam a doença através de deslocamentos entre várias partes do mundo e a epidemia atingiu a Ásia, a Oceania, a Europa e os EUA.
  • Mortos: 1 milhão
  • Tratamentos: antibióticos e vacina

A Gripe Aviária  (1997-2004)

  • Sintomas: febre, tosse e dores na garganta
  • Propagação: em 1997, 18 pessoas foram infectadas por frangos. Depois o vírus ganhou uma mutação, o subtipo H9N2, e se espalhou através das aves. A epidemia atingiu o sudeste asiático, a Europa e a África.
  • Mortes: 300
  • Tratamentos: sacrifício de 1,5 milhões de aves em Hong Kong. O grupo farmacêutico Novartis tem um projeto de vacina contra o vírus.

UMA VIAGEM PELA CIDADE VELHA DE “GUERRA”

LUGARES CONHECIDOS, COMO A CASA DO ITALIANO LETTIERI, NA RIBEIRA, ONDE HOJE É O CONSULADO, E OUTROS CURIOSOS COMO O ESCRITÓRIO DO FRANCÊS MARCEL GIRARD, REPRESENTANTE DA AIR FRANCE EM NATAL, SÃO RECORTES DA HISTÓRIA QUE ROSTAND MEDEIROS ESMIÚÇA COM MUITA PAIXÃO.

Ramon Ribeiro – Repórter – Tribuna do Norte

Fonte – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/rostand-medeiros-em-uma-viagem-pela-natal-velha-de-guerra/466200

A curiosidade e a paixão pelo Rio Grande do Norte, fez de Rostand Medeiros um pesquisador insaciável pela história potiguar. Sua curtição é esmiuçar arquivos públicos, acervos privados, documentos oficiais, fotos antigas, é também conversar com velhas figuras guardiãs da memória coletiva do Estado. Dessas viagens no tempo que faz, ele retorna com material bruto que aos poucos transforma em livro. É de sua autoria, por exemplo, três biografias “João Rufino-Um visionário de fé” (2011), sobre o criador do grupo industrial 3 Corações, “Fernando Leitão de Morais-Da Serra dos Canaviais a Cidade do Sol” (2012) e “Eu não sou herói – A História de Emil Petr” (2012), este sobre um veterano da 2ª Guerra Mundial.

Por falar em 2ª Guerra, esse é um dos principais temas de Rostand, ao lado da história da aviação. Sobre aviação, ele foi coautor de “Os Cavaleiros do Céu: A Saga do voos de Ferrarin e Del Prete” (2009), que conta a história do primeiro voo sem escalas entre a Europa e a América Latina; e sobre a 2ª Guerra, lançou em 2019 “Sobrevoo: Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte”.

Mas agora, ao apagar das luzes de 2019, Rostand surge com novo livro, ainda dentro de seu tema predileto: “Lugares de Memória – Edificações e estruturas históricas utilizadas em Natal durante a Segunda Guerra Mundial”. A obra apresenta 27 locais referentes aquele tempo, a maioria na Ribeira, trazendo curiosidades quer ajudam a entender como era o dia a dia de Natal naqueles anos intensos.

O lançamento do livro será no dia 5 de dezembro, na Livraria Cooperativa Cultural, na UFRN, às 10 horas. A publicação sai pela Editora Caravela Selo Cultural e conta com o apoio do Fundo de Incentivo e Cultura de 2018, da Prefeitura de Natal. Sobre o livro e aquele período, Rostand Medeiros conversou com a TRIBUNA DO NORTE.

Parceria com o MPF_RN ajudou na criação desse livro.

Inventário

Essa pesquisa começou em 2015, quando a Promotoria de Justiça de Natal me solicitou a elaboração de um relatório sobre os locais utilizados pelas forças militares americanas em Natal durante a Segunda Guerra. Listamos 32 locais históricos entre Natal e Parnamirim. A ideia era incentivar ações de preservação. Mas naquele ano nada foi feito. Até que no início de 201, o Ministério Público Federal do RN, preocupado com a situação do Patrimônio Histórico de Natal, promove uma audiência sobre o tema. Informo sobre o relatório já feito e sou solicitado para aprofundar as pesquisas. O que fiz, mas focando apenas em Natal, fechando em 27 locais relacionados a 2ª Guerra. Agora, com a parceria da Editora Caravela, estou publicando o trabalho em livro.

Na casa com um amplo alpendre apresentada na foto, serviu de moradia para o comandante das tropas do exército americano em Natal durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje é a sede do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte.

Preservar é importante

O livro fala de locais que se não for feito nada, vão se perder em ruínas. Mesmo com grande parte dos locais deteriorados, é um material que aponta para existência de uma rota turística. De todos os meus livros, esse é o que mais me entusiasmou. Espero que essa publicação possa ser útil, derepente para ajudar na preservação dos prédios que cito.

Ribeira

Acho que a 2ª Guerra é um dos aspectos mais proeminentes da história do Rio Grande do Norte. E nisso está a Ribeira. O bairro já foi o centro de tudo no Rio Grande do Norte. Roosevelt e Churchill falam de Natal em suas biografias. Arrisco dizer que naqueles tempos, para os Aliados, referente à Segunda Guerra, Natal era a cidade mais importante da América do Sul. Você olha para a Ribeira hoje chega bate uma tristeza. É uma decadência que vem desde os anos 70. Recuperá-la pode dar um boom no turismo histórico.

Maternidade Januário Cicco, antigo Hospital Militar de Natal na ápoca da Segunda Guerra.

Descobertas

Muitos dos lugares são conhecidos. A casa do italiano Lettieri, na Ribeira, onde hoje é o Consulado, está bem preservada, assim como a Maternidade Januário Cicco, que era o Hospital Militar de Natal, e o Grande Hotel. Mas uma das minhas descobertas é o Rádio Farol, com as antenas enormes. Ficava na Praia da Limpa, um lugar entre a Fortaleza dos Reis Magos e o Rio Potengi.

Oleoduto

Uma estrutura com história interessante é o oleoduto Pipeline, que ia até a Base de Parnamirim. Sendo que nas Rocas há um trecho do encanamento que está visível. Descobri que em 1977 esse cano chegou a estourar e os moradores aproveitaram para encher tanques de combustível até secar. Outra coisa legal é que o Colégio 7 de setembro, na Rua Seridó, no tempo da Guerra era o Quartel dos Marines da Marinha Americana.

Antiga sede do Consulado d França em Natal na época da Segunda Guerra.

Dois espiões e um francês         

Em Natal tinha uma coisa muito curiosa nos tempos da Guerra. O francês Marcel Girard era representante da Air France em Natal. Seu escritório ficava na Rua Tavares de Lira. Perto dali, na Rua Chile, estava aloja de secos e molhados do alemão Ernst Luck, que ficava no térreo do Àrpege, e a casa do italiano Guglielmo Lettieri, comerciante conhecido na cidade. Cada um dos três atuava como representante diplomático de seus respectivos países em Natal. Imagine só! A Europa em guerra, a França invadida pelos alemães, e os três tendo de conviver na Ribeira. É provado que Luck espionou para a Alemanha e Lettieri para a Itália. Os dois foram condenados pelo Tribunal de Segurança Nacional e ficaram detidos na Colônia Agrícola de Jundiaí. Mas no fim da Guerra, ambos foram perdoados.

Jornal da BBC

A ação da Agência Pernambucana, importante veículo de comunicação em Natal durante a Guerra, é abordado no livro “Lugares de memória”.

Outra coisa que gostei muito de ter estudado foi sobre a Agência Pernambucana de Luiz Romão, com seus difusores espalhados pela cidade. Era algo formidável. Ele retransmitia a versão em português do jornal da BBC. Foi legal descobrir a importância da difusora dele. E é uma pena que hoje o local esteja em ruínas.

Grande Hotel

Mas para mim, não tem dúvidas, o Grande Hotel foi o principal lugar da 2ª Guerra em Natal. Era uma referência central por receber autoridades americanas. Além de ter a figura forte de Teodorico Bezerra como seu proprietário. Resgatei muitas histórias no livro.   

LEMBRANDO RIACHUELO: CONSULADO DOS EUA FAZ PARCERIA COM A CIDADE DE RIACHUELO EM HONRA À HISTÓRIA DA II GUERRA MUNDIAL ENTRE OS EUA E O BRASIL

FONTE DA MATÉRIA – https://br.usembassy.gov/pt/relembrando-riachuelo/

Em 10 de maio de 1944, no meio da Segunda Guerra Mundial, um avião anfíbio PBY-Catalina americano em um voo de rotina de Belém para Recife caiu do céu perto de um pequeno povoado no sertão do Rio Grande do Norte. Todos os dez membros da tripulação, marinheiros dos EUA ligados ao esquadrão de patrulha marítima da Marinha VP-45, morreram no acidente. Residentes locais na área – famílias simples, agricultores pobres e trabalhadores – testemunharam o acidente e foram os primeiros a responder à tragédia. Eles revistaram os destroços, pegaram os restos da tripulação, carregaram-nos de carroça puxada por cavalos e os enterraram no cemitério da cidade de Riachuelo.

Em 10 de maio de 2019 – setenta e cinco anos de hoje – o prefeito de Riachuelo convidou o cônsul geral John Barrett para a inauguração de uma placa no parque municipal para lembrar os nomes dos soldados americanos mortos e homenagear a comunidade que os visitava. ajuda, mesmo na morte. Centenas de residentes da Riachuelo, representantes do 3º Distrito Naval do Brasil e dignitários estaduais e locais ouviram as observações do Cônsul Geral: “Os Estados Unidos e o Brasil compartilham uma parceria robusta baseada em quatro pilares importantes: parceria econômica, segurança mútua e ideais e valores democráticos – os mesmos valores de humanidade compartilhada e generosidade que as pessoas dessa área demonstraram quando vieram em auxílio de uma aeronave caída dos EUA em 1944. ”

O evento também destaca os 204 anos de história compartilhada e estreita cooperação entre o Consulado Geral dos EUA em Recife e no Brasil. Hoje, como exemplificado pela visita do Presidente Jair Bolsonaro em março ao encontro do Presidente Trump em Washington D.C., a Missão dos EUA no Brasil está fortalecendo nossos laços já profundos, expandindo o comércio, o engajamento de pessoas e a cooperação policial e de segurança.

O movimento de solidariedade de Riachuelo com os Estados Unidos foi inspirado pelo trabalho do historiador de Natal Rostand Medeiros que descobriu novos detalhes do trágico acidente e histórias pessoais de moradores locais enquanto pesquisava um livro sobre o papel do Rio Grande do Norte na Segunda Guerra Mundial. Medeiros contou histórias de moradores como Seu Lourenço Filho, que aos 90 anos é o último testemunho vivo do acidente. Lourenço Filho falou com o Cônsul Geral com clareza sobre sua memória de ouvir o som estridente dos motores em perigo e ver a descida final do avião. Os líderes da cidade homenagearam Lourenço Filho com um lugar de honra na cerimônia cercada pela família.

Para enfatizar a importância de preservar nossa história compartilhada para as futuras gerações, o Cônsul Geral anunciou um concurso de redação, em colaboração com a Secretaria Municipal de Educação da Riachuelo, para alunos do ensino fundamental e médio sobre o tema da cerimônia e a rica história da Segunda Guerra Mundial. Os membros do consulado retornarão em agosto para entregar os prêmios aos vencedores.

De U.S. Mission Brazil | 10 Maio, 2019.

EVENTO DE LANÇAMENTO DO PROJETO DO SEBRAE – NATAL E PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

SITE DO PROJETO NATAL & PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA http://www.segundaguerra.com.br/

Foi uma noite memorável na Casa da Ribeira, principalmente para aquele que pensam e realizam projetos relativos ao conhecimento e democratização da informação histórica dos eventos ligados a Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte.

Como comentou o amigo Yves Bezerra, gestor desse projeto, a proposta busca apresentar em Natal e Parnamirim os pontos de interesse cultural e histórico das duas cidades, que até então têm sido pouco explorados e que estes possam ser trabalhados por empresas de receptivo para atrair mais turistas e interessados no assunto.

Um salto verdadeiramente interessante para o turismo potiguar. Esse projeto faz parte das ações do programa Investe Turismo, que é promovido pelo Sebrae, Ministério do Turismo, Embratur e Secretaria Estadual de Turismo (Setur).

Depois de dois anos de trabalho, foi hora do SEBRAE-RN apresentar Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra. E tudo foi muito bom!

Com Zeca Melo, Diretor Superintendente do SEBRAE-RN,

Como foi comentado anteriormente, a presença de milhares de soldados americanos no cotidiano de Natal mudou a cultura e os costumes da cidade, a população bem sabe. No entanto, nenhum desses argumentos foi relevante para o Rio Grande do Norte ter um roteiro turístico para explorar esse fato histórico. Agora chegou a hora!

Meus agradecimentos aos amigos da Art&C e ao SEBRAE-RN, especialmente ao superintendente Zeca Melo pela confiança e apoio.

Com o amigo Yves Guerra de Carvalho, Gestor do Projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra Investe Turismo RN.

SEBRAE MAPEIA PONTOS TURÍSTICOS DO RN DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra será lançado nesta quarta-feira, 9 de outubro de 2019.

Por Agência Sebrae de Notícias / 8 de outubro de 2019

Que o Rio Grande do Norte teve um papel relevante, e até mesmo decisivo, para a vitória dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, não restam dúvidas. Que Parnamirim abrigou a primeira base aérea dos Estados Unidos fora do território norte-americano, os livros de história dão conta muito bem. Que a presença de milhares de soldados americanos no cotidiano de Natal mudou a cultura e os costumes da cidade, a população bem sabe. No entanto, nenhum desses argumentos foi relevante para o Rio Grande do Norte ter um roteiro turístico para explorar esse fato histórico.

Parnamirim Field – Foto – Getty Image

O Sebrae no Rio Grande do Norte, entretanto, pretende virar essa página e abrir caminho para a implantação de uma nova rota turística no estado a partir desta quarta-feira (9), quando a instituição vai lançar o projeto Natal & Parnamirim Field na Segunda Guerra. O lançamento será em solenidade fechada para convidados na Casa da Ribeira, a partir das 19h. Durante a cerimônia, que terá espetáculos teatral e sinfônico, será apresentado o mapeamento feito pelo projeto com pontos de interesse histórico e cultural importantes da participação das duas cidades na segunda Grande Guerra.

Na esquerda da imagem está Rostand Medeiros, responsável pelo blog TOK DE HISTÓRIA e autor do livro SOBREVOO-EPISÓDIOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NO RIO GRANDE DO NORTE, junto com José Ferreira de Melo Neto, o Zeca Melo, Diretor Superintendente do SEBRAE-RN, além de Edwin Aldrin Januário da Silva, Gerente de Comunicação e Marketing SEBRAE-RN, Yves Guerra de Carvalho, Gestor do Investe Turismo RN do SEBRAE-RN, Lorena Roosevelt Lima , Gerente da Unidade de Desenvolvimento da Indústria do SEBRAERN, e Leonardo Dantas, da Fundação Rampa.

Todo o levantamento está reunido em um portal em quatro idiomas (Inglês, Francês, Espanhol e Português), que além do mapeamento dos pontos históricos, traz também personagens e fatos curiosos relacionados ao tema, como o caso do açúcar nos tanques de combustível, o rasante no desfile de 7 de setembro e do espião preso em Jacumã. Além desse levantamento, feito por historiadores da Fundação Rampa e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, o projeto criou governança ao chamar os principais interessados no tema para debater o assunto e desenvolveu os estudos de viabilidade técnica e econômica do aeroporto Augusto Severo, que será transformado em um Centro Cultural, e do Museu da Rampa.

Militares dos Estados Unidos no Grande Hotel, no bairro da Ribeira – Foto – Getty Image

Além disso, vai utilizar a tecnologia de realidade aumentada para criar mais atrativos nos principais equipamentos turísticos ligados à participação na Segunda Guerra. Monumentos, como a rampa, terão pontos de realidade aumentada em que o turista ao apontar a câmera do smartphone poderá fazer fotos em meio a jipe e soldados virtuais.

“A proposta do projeto é apresentar esses pontos de interesse cultural e histórico das duas cidades, que até então têm sido pouco explorados e passem a ser trabalhados por empresas de receptivo para atrair mais turistas e interessados no assunto”, explica o gestor do projeto, Yves Guerra. O Sebrae também inseriu a temática no edital de economia criativa, que apoiou financeiramente projetos culturais, como o espetáculo ‘Bye, Bye Natal’ e a coleção de três livros ‘A Participação do RN na Segunda Guerra Mundial‘, entre outras iniciativas.

Barracas dos militares dos Estados Unidos em Parnamirim Field – Foto – Getty Image

Diversificação

O projeto Natal & Parnamirim Field já vinha sendo trabalhado há cerca de dois anos e, atualmente, faz parte das ações do programa Investe Turismo, que é promovido pelo Sebrae, Ministério do Turismo, Embratur e Secretaria Estadual de Turismo (Setur). Um dos objetivos do programa é diversificar a oferta turística que vá além do turismo de mar. Por isso, o projeto tomou a participação do RN na Grande Guerra como forma de atrair turistas ao estimular entre o trade turísticos e entes governamentais a criação bem estruturada de um roteiro turístico histórico e cultural em volta da temática.

“Mesmo sendo um episódio histórico bastante conhecido, essa participação na Segunda Guerra nunca foi de fato transformada em oferta turística. Por isso, estamos dando esse primeiro passo para a criação de um roteiro”, ressalta Yves Guerra. Além do portal, o projeto também prevê a publicação de uma websérie de dez vídeos, envolvendo a relação entre o Rio Grande do Norte e a II Guerra Mundial. O primeiro já será apresentado no momento do lançamento do projeto, que terá inclusive a participação do cônsul dos Estados Unidos em Recife (PE), John Barrett.

NO PRÉDIO HISTÓRICO DA RAMPA COM O SR. WILLIAM POPP, EMBAIXADOR INTERINO DOS ESTADOS UNIDOS NO BRASIL

Foto – Ana Paula Andrade , SETUR

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

Através de um convite feito pela Secretaria de Turismo do Estado do Rio Grande do Norte – SETUR, eu estive hoje no prédio histórico da RAMPA para acompanhar a visita do Sr. Willian W. Popp, encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, o segundo no escalão dessa representação diplomática.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Como os Estados Unidos ainda não indicaram quem vai ser o titular do cargo de Embaixador em nosso país, o Sr. Popp é o atual responsável pelo comando do posto.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Estiveram acompanhando essa visita os membros do Consulado dos Estados Unidos em Recife o diplomata Daniel A. Stewart e Stuart Alan Beechler, funcionário desse consulado.

Com Daniel A. Stewart e Stuart Alan Beechler – Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Daniel e Stuart são dois bons amigos, que juntamente com o Cônsul Geral dos Estados Unidos em Recife, o Sr. John Barret, acompanham com atenção e possuem enorme interesse em nossa história comum.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Uma história que une durante a Segunda Guerra Mundial a antiga estação de hidroaviões da Rampa, juntamente com Parnamirim Field, Natal, o Rio Grande do Norte, o Brasil e os Estados Unidos.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Recentemente estive junto com Daniel, Stuart e o Sr. Barret no trabalho de resgate histórico e homenagens aos aviadores da Marinha dos Estados Unidos que pereceram em 10 de maio de 1944, na área rural do município potiguar de Riachuelo, em um acidente com um hidroavião Consolidated PBY-5A Catalina.

Mais detalhes sobre os eventos acontecidos em Riachuelo, veja esses links:

https://tokdehistoria.com.br/2019/03/30/membros-do-corpo-diplomatico-dos-estados-unidos-no-brasil-visitaram-a-cidade-de-riachuelo-p

A GUERRA CHEGA AO AGRESTE POTIGUAR – A QUEDA DE UM CATALINA EM RIACHUELO

SOBREVOOS E HISTÓRIAS VIVIDAS NA GUERRA

Carlos Ribeiro Dantas explicando o projeto – Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Coube ao arquiteto da SETUR Carlos Ribeiro Dantas, que trabalha com denodo e especial atenção na recuperação desse patrimônio histórico, conduzir os visitantes.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Carlos apresentou os serviços que estão sendo realizados e apontou as necessidades para a conclusão da obra. Posso testemunhar que os trabalhos estão sendo muito bem conduzidos e a entrega desse patrimônio ao povo potiguar se dará em breve.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Também esteve nessa visita Ana Paula Andrade, da comunicação da SETUR, bem como Hyvirng Ferreira, a Vivi, minha amiga da bela cidade de Patu e assessora técnica da EMPROTUR.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

A minha participação nessa visita foi apoiar, quando necessário, os visitantes e os membros da SETUR com informações históricas.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Nessa visita, que durou quase duas horas, muito me chamou a atenção o fato do Sr. Willian Popp buscar informações sempre detalhadas sobre os aspectos técnicos da obra. Ele igualmente buscou conhecer as informações de caráter histórico sobre a utilização do prédio da Rampa pela aviação comercial dos Estados Unidos antes da Segunda Guerra e pelos militares da marinha do seu país durante o conflito.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

O Sr. Popp comentou ser um fato que a existência do complexo militar americano no Rio Grande do Norte durante a Segunda Guerra é praticamente desconhecido nos Estados Unidos, bem como sobre os episódios aqui ocorridos. Mas informou que a história aqui existente é muito rica e interessante para o povo norte-americano e que a atuação conjunta da representação diplomática do seu país no Brasil e do Governo do Estado do Rio Grande do Norte pode ampliar essa informação e o conhecimento sobre Natal na Guerra.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Da minha parte recebi dos membros da SETUR total liberdade para expor ao Sr. Willian Popp meus pensamentos sobre esse período histórico.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Enalteci a importância histórica, social e cultural dos eventos aqui ocorridos, o fato dessa história comum ser algo que permeia todas as camadas da nossa sociedade, que em minha opinião os potiguares gostam e desejam aprender mais sobre esses fatos e outros aspectos que considerei pertinente.

Foto – Charles Franklin de Freitas Góis

Sob todos os aspectos foi um momento extremamente positivo e que possa gerar bons frutos para o turismo e para o conhecimento da história potiguar pelo seu povo.

Antes de chegar ao Brasil o diplomata William Popp foi conselheiro político da Embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi, no Quênia, e atuou ainda em missões na Colômbia, Angola e Nicarágua.

Possui mestrado em Estratégia de Segurança Nacional pela Escola Superior de Guerra dos Estados Unidos, em Washington, mestrado em Artes em Assuntos Internacionais, pela Universidade George Washington, e bacharelado em Estudos Internacionais e Ciências Políticas pelo Westminster College.

65 ANOS DA PRIMEIRA APRESENTAÇÃO DE LUIZ GONZAGA EM NATAL

Luiz Gonzaga e seu grupo.

O Grande Mestre da Música Nordestina Se Apresentou na Rádio Poti de Natal em 1956, Junto Com Seu Pai, O Velho Januário, Em Meio a Uma Tournée Pelo Nordeste.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN.

Em meio as lembranças pelos 30 anos da partida do Mestre Luiz Gonzaga, achei interessante apresentar um material que encontrei nos velhos jornais sobre a primeira apresentação dessa lenda da cultura nordestina na capital potiguar. E foi a primeira de muitas!

Em 1954 Luiz Gonzaga do Nascimento, pernambucano da cidade de Exu e se encontrava no auge da carreira. Ele, suas músicas, o seu chapéu de couro e sua sanfona eram apresentados com extrema assiduidade nas principais revistas dedicadas aos artistas do rádio. Os mesmos rádios, então o principal veículo de comunicação popular existente nos lares do país naquela época, onde os brasileiros ouviam e admiravam a sua potente voz.

Luiz Gonzaga e sua alegria, registrada na Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro de 1952.

Luiz Gonzaga foi o primeiro artista musical oriundo do Nordeste a ser um grande sucesso popular. Isso pode ser comprovado em junho de 1952, no Rio de Janeiro, quando ocorreu uma festa que reuniu 60.000 pessoas para escutar o Rei do Baião e dançar xaxado. Foi durante os festejos juninos realizados no bairro de São Cristóvão, mais precisamente no antigo Campo de São Cristóvão, onde até hoje acontece a famosa feira no atual Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. A festança foi promovida pelas Rádios Tamoio e Tupi, onde contou com ampla cobertura da Rede Tupi de Televisão, a primeira emissora de TV da América Latina e inaugurada apenas dois anos antes[1].

As câmeras da Rede Tupi de Televisão registrando a festa de 1952 em São Cristovão. Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro de 1952.

Segundo Dominique Dreyfus, escritora francesa que escreveu a biografia Vida de Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga, os anos de 1953 e 1954 foram de muitas viagens para realização de tournées pelo Brasil afora. Perto da metade do ano de 1954 teve início mais uma, com o patrocínio do Colírio Moura Brasil, onde o aclamado Rei do Baião percorreu várias cidades nordestinas.

Uma carioca de belas pernas, da equipe de dançarinas da TV Tupi, xaxando feito uma nordestina. Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro de 1952.

Pouco antes de iniciar a nova série de viagens, quando no dia 25 de maio realizou uma apresentação na Rádio Mayrink Veiga, Luiz Gonzaga recebeu um exemplar de uma asa branca em uma gaiola, ofertado pelo povo de Exu, que lhe foi entregue por Cândido Holanda Cavalcanti, oficial médico da Força Aérea Brasileira e seu conterrâneo[2].  

Na Estrada

Quando realizou uma apresentação na cidade baiana de Feira de Santana, no Campo do Gado, quem testemunhou o espetáculo foi o escritor, sociólogo e jornalista Muniz Sodré de Araújo Cabral, então com 12 anos de idade, que registrou “Era noite de céu brilhante. Enluarado, Gonzaga subiu ao palanque, com chapéu de couro cru e três estrelas na aba da frente, gibão de couro, alpercatas e sanfona prateada dependurada no pescoço. O grito de louvação do povo, longo, em uníssono, fez vibrar o madeirame do palco. Como esquecer?”[3].

Sabemos que nessa tournée Gonzaga esteve no Maranhão, no Piauí e em Campina Grande, na Paraíba. Nessa cidade fez uma apresentação na Rádio Borborema e esteve na sede do Partido Democrático Social, o PSD, uma das maiores agremiações políticas do Brasil na época, onde recebeu um abraço do então senador Rui Carneiro[4].

Luiz Gonzaga ao centro, com um grande lenço e Humberto Teixeira é o primeiro da direita para esquerda com chapéu de couro.

No Ceará também houve a mescla de show e política. Primeiramente Gonzaga realizou em Fortaleza uma apresentação no auditório da Rádio Clube do Ceará, na sequência cantou ao ar livre durante a Primeira Festa do Radialista, em evento transmitido pela Rádio Iracema[5]. Depois seguiu para apoiar politicamente o amigo Humberto Teixeira em sua terra natal, a cidade cearense de Iguatu. Formado em 1944 pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, Humberto Cavalcanti Teixeira ganhou fama como compositor em parceria com Luiz Gonzaga, principalmente a partir de 1945[6].

Logo Gonzaga, trazendo sua sanfona, apontou a bússola para a direção da capital potiguar. Segundo o jornal natalense O Poti, o Rei do Baião chegou acompanhado de uma figura ilustre; Januário José dos Santos, seu pai, o conhecido Velho Januário.

Luiz Gonzaga e seu pai, o Velho Januário, que na foto está com uma sanfona de 8 baixos – Fonte – https://fabiomota1977.wordpress.com/2006/11/21/seu-januario-o-mestre-dos-8-baixos/

Januário era da região do Pajeú, em Pernambuco, tendo nascido a 25 de setembro de 1888. Consta que premido pela estiagem chegou à Fazenda Caiçara, a doze quilômetros de Exu, acompanhado de seu irmão Pedro Anselmo, no ano de 1905. Lavrador e exímio sanfoneiro de oito baixos ficou conhecido por ser um homem dedicado à família e respeitado em toda a sua região pela sua arte. Foi casado primeiramente com Ana Batista de Jesus Gonzaga do Nascimento, a mãe de Luiz Gonzaga, conhecida na região por “Santana”, ou “Mãe Santana”, cuja união com Januário gerou nove filhos[7]. Em 1954 o Rei do Baião já havia levado seu pai para o Rio de Janeiro, mas ele decidiu voltar para Exu, próximo a Serra do Araripe. Não sei como ocorreram as circunstâncias e negociações para o Velho Januário acompanhar seu filho Luiz Gonzaga nessas apresentações pelo Nordeste há 65 anos, mas o certo é que os dois vieram juntos para Natal.

O Rei do Baião também veio acompanhado de Osvaldo Nunes Pereira, baiano de Jequié. Este era um jovem humilde, que era anão e tocava triângulo. Pela baixa estatura recebeu primeiramente o nome artístico de Anão do Xaxado e depois Salário Mínimo[8]. Além deste fazia parte do grupo que chegou a Natal o zabumbeiro conhecido como Aluízio.

Sobre esse último integrante temos um pequeno mistério!

Nas páginas 181 a 186 do livro de Dominique Dreyfus encontramos os detalhes sobre a saída do zabumbeiro Catamilho e do tocador de triângulo Zequinha como instrumentistas acompanhantes de Gonzaga em 1953. Bem como podemos ler sobre a entrada de Osvaldo Nunes Pereira e de um zabumbeiro piauiense chamado Juraci Miranda, conhecido como Cacau.

Dreyfus inclusive traz uma foto na página 187, onde Luiz Gonzaga se apresenta em um palco ao lado do Anão do Xaxado com o triângulo e de um zabumbeiro que é apontado como sendo Cacau. Ocorre que na página 29 do livro Forró – The Ecoding by Luiz Gonzaga, de autoria de Climério de Oliveira Santos e Tarcísio Soares Resende, publicado pela CEPE Editora em 2014, como parte da série Batuque Book, com edição bilíngue em português/inglês, é possível ver a mesma foto com a legenda (em inglês) que indica ser Salário Mínimo no triângulo e na zabumba o tocador era Aluízio. Como o jornal natalense O Poti também aponta que Aluízio esteve com o Rei do baião na capital potiguar, na sequência de suas apresentações em Fortaleza, creio que o trabalho de Santos e Resende parece está correto.

Independente desse pormenor, o certo é que em agosto de 1954 o Anão do Xaxado e Aluízio eram relativamente novos na parceria com Gonzaga.

No “Auditório B” da Rádio Poti de Natal

Luiz Gonzaga, seu pai e os dois tocadores que lhe acompanhavam a Natal iriam se apresentar nos auditórios da Rádio Poti.

Postal com o anteprojeto da Rádio Educadora de Natal, de autoria de Carlos Lamas e construção da empresa de Gentil Ferreira de Souza. O sonho de uma rádio em Natal se concretizava.

Essa rádio se originou a partir da Rádio Educadora de Natal – REN, a primeira emissora do Rio Grande do Norte e que entrou efetivamente no ar em 29 de novembro de 1941. Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, proprietário de um conglomerado midiático chamado Diários Associados, que nessa época abrangia jornais em várias cidades brasileiras, revistas e estações de rádio, compra m 1944 a REN e a transforma na Rádio Poti. A renovada emissora transmitia em AM (amplitude modulada), na frequência de 1.270 kHz e mantendo o tradicional prefixo da REN – ZYB-5.

Assis Chateaubriand discursando.

Essa rádio se torna um grande sucesso na cidade, pois através da ação dos Diários Associados o seu auditório passou a receber muitos cantores nacionalmente conhecidos. Um deles foi Sílvio Caldas, que ali se apresentou entre 25 e 27 de maio de 1948, sob o patrocínio do “Creme dental Nicotan”[9].

Logo Chateaubriand decidiu realizar alterações na rádio, sendo a principal ação a ampliação e modernização do chamado “palco-auditório”, na sede que a Rádio Poti possuía na Avenida Deodoro. Isso proporcionou uma maior e melhor capacidade de transmitir programas de auditório, humorísticos, jornalísticos, musicais, radionovelas e outros. A festa de inauguração do novo auditório, o conhecido “Auditório da Avenida Deodoro”, ocorreu em uma sexta-feira, 3 de novembro de 1950. O mestre da cerimônia foi o radialista Genar Wanderley e a principal atração foi uma bela e exuberante cantora de 21 anos de idade, nascida na cidade paulista de Taubaté e chamada Hebe Camargo[10].

Ao ler os jornais da época percebe-se nitidamente o estrondoso sucesso do novo “palco-auditório” da Rádio Poti, aonde as apresentações vão ocorrendo e movimentando intensamente a vida cultural de Natal.

Diante do sucesso dessas apresentações e buscando ampliar o público, a direção da Rádio Poti decidiu utilizar  o que passou a ser chamado de “Auditório B”. Este era um auditório amplo e confortável, que ficava na antiga sede do Alecrim Futebol Clube, na Avenida Presidente Bandeira, ou Avenida 2[11].

Antiga sede da Rádio Poty, a principal de Natal.

Esse era um local que, além das atividades próprias da administração dessa tradicional equipe de futebol natalense, também era um ponto de grande efervescência cultural. Ali ocorreram grandes bailes de carnaval, festas juninas, reuniões de partidos políticos, festas dançantes aos domingos e até peças de teatro. Em março de 1949, o renomado teatrólogo Inácio Meira Pires ali criou um núcleo de teatro amador chamado “Teatro do Bairro”, que utilizava o auditório do Alecrim Clube como local de apresentações[12]. Vale ressaltar que muitas dessas festas, reuniões políticas, peças de teatro e outros acontecimentos importantes eram transmitidos pela Rádio Poti.

No sábado, 31 de agosto de 1954, ocorreu a transmissão no palco do Alecrim Clube do programa “Vesperal dos Brotinhos”, sob o comando de Luiz Cordeiro e Rubens Cristino. No outro dia aconteceu no mesmo palco a comemoração do sexto aniversario do popular programa de auditório “Domingo Alegre”, apresentado por Genar Wanderley, sendo os ingressos vendidos por apenas CR$ 3,60 (três cruzeiros e sessenta centavos)[13].

Logo foi anunciada a apresentação de Luiz Gonzaga.

Sucesso em Natal

Certamente ser supersticioso era algo que o grande Luiz Gonzaga não era, pois sua primeira apresentação na capital do Rio Grande do Norte ocorreu em uma sexta-feira, dia 13, do mês de agosto. E foi um sucesso!

Sabemos que os ingressos foram vendidos ao preço de CR$ 10,00 (dez cruzeiros). Um valor não tão elevado em 1954, equivalente a uma corrida de taxi para o que era considerado naquele tempo o perímetro urbano de Natal. Pois fora dessa área tudo era mais caro. Uma corrida para a praia de Ponta Negra custava R$ 80,00 (oitenta cruzeiros). Já para o Aeroporto de Parnamirim o valor saltava para R$ 100,00 (cem cruzeiros)[14].

Luiz Gonzaga trouxe “um repertório inteiramente novo, suficiente para um espetáculo completo”. Se aconteceu como foi descrito no jornal natalense O Poti, certamente o Rei do Baião tocou no palco do Alecrim Clube os sucessos produzidos no primeiro semestre de 1954. Tais como “Feira do gado” (Luiz Gonzaga/Zé Dantas), “Velho novo Exu” (Luiz Gonzaga/Sylvio M. Araújo), “Olha a pisada” (Luiz Gonzaga/Zé Dantas) “Lascando o cano” (Luiz Gonzaga/Zé Dantas) e outros. A estes com certeza se juntaram aos sucessos criados do ano anterior, como a fantástica música “O xote das meninas”, a bela “Algodão” (ambas as composições fruto da parceria Luiz Gonzaga/Zé Dantas) e outros grandes sucessos. Os informes jornalísticos apontam que o auditório “superlotou” para assistir o Rei do Baião, sendo muito aplaudidas as apresentações musicais.

Da esquerda para direita vemos Aluízio, Luiz Gonzaga, o Velho Januário e o Anão do Xaxado, tal como se apresentaram em Natal – Fonte – http://www.forroemvinil.com/luiz-gonzaga-e-januario-em-fortaleza/

No sábado por volta das quatro da tarde, Luiz Gonzaga realizou aparentemente sozinho, uma entrevista na Rádio Poti. À noite, por volta das oito horas, nos estúdios da mesma rádio foi realizada uma nova apresentação musical com Luiz, seu pai e os instrumentistas, que O Poti informou ter sido transmitida em “ondas médias e curtas”.

Já no domingo a tarde, 15 de agosto, Luiz Gonzaga, o Velho Januário, Anão do Xaxado e Aluízio bisaram o show no palco do Alecrim Clube. Depois, às nove horas da noite, o grupo seguiu para o Auditório da Avenida Deodoro, que se encontrava completamente lotado para a despedida de Luiz Gonzaga de Natal. Eles tocaram no âmbito do programa “Domingo Alegre”, que contou com a apresentação do radialista Genar Wanderley. Na ocasião estava presente o jornalista Edilson Varela, representante dos Diários Associados no Rio Grande do Norte, o grupo de mídia e comunicação comandado por Assis Chateaubriand. Varela era também diretor dos jornais O Poti e Diário do Natal, além de responder administrativamente pela Rádio Poti.

Luiz Gonzaga diante do microfone de uma rádio.

Show em Currais Novos e Os Vários Retornos ao Rio Grande do Norte

Sabemos que provavelmente naquele agosto de 1954 o tocador Luiz Gonzaga, acompanhado de seu pai e seus instrumentistas, também estiveram na cidade potiguar de Currais Novos.

Segundo o blog “Pimenta com Mel”, do comunicador Felipe Félix, encontramos a informação transmitida por José Nobre de Medeiros, conhecido nessa cidade como Zénobre. Nascido em 1942 na zona rural currais-novense, no Sítio Saquinho da Malhada da Areia, Zénobre informou que viu Luiz Gonzaga em sua cidade em 1954, que assistiu a apresentação do pernambucano de Exu no coreto da Praça Cristo Rei e que o Rei do Baião foi patrocinado pela fábrica de bicicletas Monark[15].

Recebemos a informação do engenheiro civil Moacir Avelino Bezerra Junior e do seu irmão Haroldo Márcio Avelino Bezerra, Professor do IFRN de Mossoró, que nesse mesmo 1954, após uma possível apresentação em Mossoró, Luiz Gonzaga foi convidado pelo rico agropecuarista Francisco das Chagas Sousa, conhecido como Chico Sousa, para cantar na cidade de Afonso Bezerra. A apresentação para a população local foi realizada na carroceria de um caminhão.

Provavelmente nessa ocasião Luiz Gonzaga tocou em outras cidades potiguares, mas infelizmente não consegui dados sobre isso.

Perto do fim do mês Luiz Gonzaga está com o seu pai e seus dois instrumentistas em Recife, Pernambuco. Na noite de sábado, 21 de agosto, ele realizou uma apresentação no tradicional Clube Internacional, na Rua Benfica, no bairro da Madalena. Foi uma ação em prol da Sociedade Pernambucana de Proteção a Lepra, onde buscavam angariar fundos para a construção da Colônia de Férias de Olinda, destinada as crianças que sofriam dessa doença naquele estado[16].

Sobre as apresentações de Luiz Gonzaga no Rio Grande do Norte, percebemos que o sucesso foi total. Nove meses depois o tocador retornava para novos shows em Natal.

No início de maio de 1955 o pernambucano de Exu retornou para as novas apresentações junto aos auditórios da Rádio Poti sem trazer o Velho Januário. Estavam ao seu lado dois instrumentistas que não foram listados. O interessante é que dessa vez o patrocínio veio da empresa italiana de bebidas Martini & Rossi, que havia desembarcado no Brasil cinco anos antes e procurava se popularizar através do Rei do Baião[17].

O Rei do Baião era artista contratado da empresa RCA Victor, sendo um dos seus campeões de vendagem.

Como no ano anterior, as apresentações de Luiz Gonzaga em Natal foram cobertas de êxito.

Luiz Gonzaga Não Gostava de Natal e do Rio Grande do Norte?

E esse sucesso se repetiu ao longo dos anos, a cada nova apresentação desse incomparável sanfoneiro na capital potiguar.

Nota em jornal natalense para novas apresentações de Luiz Gonzaga na capital potiguar, após 1954.

Mas alguns pesquisadores afirmam que Luiz Gonzaga tinha uma relação negativa com Natal e o Rio Grande do Norte. Isso teria ocorrido em razão de alguns calotes que o mesmo teria levado de empresários de shows locais. Mas para quem pesquisa as páginas dos jornais antigos isso não fica aparente, pois são inúmeras as apresentações desse artista em Natal ao longo de décadas. Creio que dificilmente Rei do Baião retornaria a Natal para continuar sendo mal tratado e vilipendiado!

Propaganda das apresentações de Luiz Gonzaga em Natal no ano de 1956.

Além das apresentações de agosto de 1954 e de maio de 1955, ele retornou em dezembro de 1956 (quando se apresentou para o povão na Praça André de Albuquerque). Depois voltou em dezembro de 1960, no final de junho de 1961 e em fevereiro de 1962. Já no ano de 1975 esse artista esteve em Natal em duas ocasiões. A primeira no mês de março, no show de inauguração solene da Avenida Bernardo Vieira, quando estiveram no mesmo palco que cantou o Rei do Baião os potiguares Ademilde Fonseca, Trio Irakitan e Fernando Luís. A segunda em 9 de agosto, quando juntamente com o Trio Nordestino realizaram um show maravilhoso, para uma Praça Gentil Ferreira completamente lotada. Esse evento aconteceu no mesmo bairro do Alecrim onde Luiz Gonzaga tocou em Natal pela primeira vez no ano de 1954. Esses grandes músicos nordestinos participavam da chamada “Caravana do Sucesso”, uma série de shows por todo o Brasil, patrocinados por uma indústria de bebidas.

Luiz Gonzaga em Natal em agosto de 1975.

Desse momento posso comentar como testemunha ocular.

Garoto de oito anos de idade, assisti a esse show pendurado no pescoço, ou no cangote, do meu pai. Recordo dos potentes holofotes que iluminavam tudo, das milhares de pessoas que lotavam a principal praça do Alecrim e, principalmente, de Luiz Gonzaga com sua sanfona branca, seu chapéu de couro cintilando na mesma cor e de sua voz forte e marcante. Desse dia nunca esqueci que meu pai, Calabar Medeiros, me disse ao sairmos de nossa velha casa na Rua Borborema, no mesmo bairro do Alecrim, para ir assistir esse grande espetáculo – “Esse homem canta a alma da nossa terra, da nossa gente”.

Anos depois, no dia 23 de agosto de 1983, eu tive a oportunidade de assistir ao grande encontro de Luiz Gonzaga e do cantor Raimundo Fagner, além de outras grandes figuras da música nordestina. Foi no atualmente esquecido show “Canta Nordeste – Vozes contra seca”, no chamado movimento “SOS Seca”, que aconteceu no atualmente estádio de futebol Castelão de Natal, sendo uma iniciativa do Instituto Varela Barca. Foi verdadeiramente delirante se encontrar naquele local e acompanhar novamente Luiz Gonzaga, em uma interessante parceria com Fagner. Encontro que renderia três ótimos discos nos anos seguintes. Quis Deus que em 2010 eu conhecesse Raimundo Fagner e ele gentilmente realizasse o prefácio do meu segundo livro João Rufino – Um visionário de fé

Meu pai deixou esse plano no último dia 9 de julho de 2019 e, como meu pai me ensinou, eu jamais deixei de escutar as músicas de Luiz Gonzaga do Nascimento e de me emocionar com sua voz.

NOTAS


[1] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, ano XXIV, nº 39, ed. 12 de setembro de 1952, págs. 21 a 23.

[2] Ver Radiolândia, Rio de Janeiro – RJ, Rio Gráfica Editora, ed. da 1ª quinzena de junho de 1954, pág. 11.

[3] Ver Folha de São Paulo, São Paulo-SP, edição de domingo, 19 de dezembro de 2010, in https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il1912201007.htm  

[4] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de 25 de agosto de 1954, pág. 11.

[5] Ver Radiolândia, Rio de Janeiro-RJ, Rio Gráfica Editora, ed. 4 de setembro de 1954, pág. 18.

[6] No pleito de outubro de 1954, Humberto Teixeira candidatou-se a deputado federal pelo Ceará na legenda do Partido Social Progressista, mas obteve apenas uma suplência. Ao longo da legislatura 1955-1959, exerceu o mandato em quatro ocasiões. Como deputado federal, obteve a aprovação da chamada Lei Humberto Teixeira, que permitiu a realização de caravanas para a divulgação da música popular brasileira no exterior. Concorreu à reeleição em outubro de 1958, mas não foi bem sucedido.

[7] Em segundas núpcias Januário se uniu a Maria Raimunda de Jesus, em 5 de novembro de 1960. Detalhes sobre sua vida ver https://fabiomota1977.wordpress.com/2006/11/21/seu-januario-o-mestre-dos-8-baixos/

[8] Sobre a participação de Osvaldo Nunes Pereira ver DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Ed. 34, 1996, pags. 182 a 186.

[9] Sobre esse período áureo da Rádio Poti ver http://www2.carosouvintes.org.br/radio-poti-de-natal-narrando-as-primeiras-historias/. Sobre a apresentação de Sílvio Caldas ver jornal A Ordem, Natal-RN, ed. 21 de maio de 1948, pág. 7.

[10] Sobre essa festa ver o Diário de Natal, edição de 4 de novembro de 1950, pág. 6.

[11] O Alecrim Futebol Clube foi fundado no bairro do mesmo nome no ano de 1915 e o seu primeiro goleiro foi o futuro presidente da República do Brasil, João Café Filho. O Alecrim foi campeão de futebol potiguar nos anos de 1924, 1925, 1963, 1964, 1968 (Invicto), 1985 e 1986. Mais sobre esse tradicional clube ver https://www.campeoesdofutebol.com.br/alecrim_historia.html

[12] Sobre o Teatro do Bairro, ver Diário de Natal, edição de 9 de março de 1949, pág. 6.

[13] Ver jornal O Poti, Natal-RN, edição de 1º de agosto de 1954, pág. 8.

[14] Ver jornal O Poti, Natal-RN, edição de 7 de outubro de 1954, 1ª pág.

[15] Ver http://pimentacommelcn.blogspot.com/2012/01/o-rei-do-baiao-e-recordado-com-mais.html

[16] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de 21 de agosto de 1954, pág. 2.

[17] Ver jornal O Poti, Natal-RN, edição de 4 de maio de 1955, pág. 6.

A VIDA DE UM SOBREVIVENTE BRASILEIRO DO HOLOCAUSTO É LEMBRADA EM MÚSICA

Freddy Glatt, sobrevivente do Holocausto. Foto: UNIC Rio/Luise Martins

‘Essas músicas nos ajudam a entender um pouco do sofrimento’ – O conto angustiante de Freddy Glatt, que cruzou o continente europeu para escapar da máquina da morte nazista, é imortalizado em música e um videoclipe.

FONTE – https://www.timesofisrael.com/a-brazilian-holocaust-survivors-life-gets-memorialized-in-song/

RIO DE JANEIRO, Brasil (JTA) – Freddy tinha cinco anos quando viu uma pedra de pavimentação quebrar a fachada da loja de seu pai em Berlim.  “-Eu era muito jovem para lembrar com detalhes, mas lembro que meu pai disse ‘Corra por dentro!’ e então corremos. Eu me senti aterrorizado”, disse ele sobre o ataque à loja. Mais tarde, assistiu aterrorizado os nazistas espancaram seu pai. Em 1933, Adolf Hitler já havia tornado a vida insuportável para a família Glatts, forçando-os a fugir para a Bélgica.

Auschwitz.

Oitenta e cinco anos depois, Freddy Siegfried Glatt agora é presidente da Associação Brasileira de Sobreviventes do Holocausto no Rio de Janeiro. Sua história de vida acaba de se tornar uma música que foi composta e cantada pelo neto brasileiro de seu primo Max, que aos 71 anos imigrou do Rio para Israel.

Wall, à esquerda, escreveu uma canção para o sobrevivente do Holocausto Freddy Glatt. 
(Marcus Gilban)

“-Contar histórias de família sobre o nazismo é extremamente importante para garantir que o Holocausto nunca mais se repita, com ninguém”, disse Lazar Wall, pseudônimo de Luis Waldmann, que decidiu colocar a história de Glatt em uma música, quando seu idoso primo publicou suas memórias intitulada Eles roubaram minha infância.

Wall, um músico de 40 anos, passou a maior parte dos feriados judaicos e encontros familiares com Freddy Glatt, a quem ele chama de “tio”. Ele intitulou a música de “101 Jerusalém”, o endereço de um dos últimos esconderijos dos Glatts.

O livro ‘Roubaram minha infância’ traz a história verídica de um sobrevivente singular da II Guerra Mundial: um menino com alguma sorte e muitos sonhos. Apesar de toda a atrocidade contra os judeus durante o Holocausto, a infância de Freddy Siegfried Glatt é permeada por momentos poéticos, singelos e inesquecíveis.

“-Esta é a minha primeira música com tema judaico, que mostrei a Glatt quando estava pronta como uma surpresa”, disse Wall ao JTA. “-Para mim, representa a resistência e unidade do povo judeu, apesar do antissemitismo que persiste até hoje”.

Com a mudança para a Bélgica, Freddy Glatt foi matriculado em uma escola pública e se juntou ao movimento juvenil sionista Maccabi Hatzair. O menino de língua alemã aprendeu flamengo, hebraico, iídiche e francês. O antissemitismo existia na Bélgica, onde crianças muitas vezes eram juradas, cuspidas e espancadas.

Desfile alemão defronte ao Palácio Real de Bruxelas, Bélgica.

Quando o primeiro ataque aéreo alemão atingiu Antuérpia, em 1940, a Bélgica já não se sentia protegida da guerra. O avanço da Alemanha nazista pedia uma nova fuga e seu “opa” – vovô em alemão – Salomon reservou quatro vagas na traseira de um caminhão de lixo que seguia para a fronteira francesa. Os dois irmãos adolescentes de Glatt, Bubbi e Heinz, deveriam viajar de bicicleta e encontrá-los na fronteira.

“-Os milhares de refugiados ao longo do caminho pareciam os hebreus fugindo do Egito”, lembrou Glatt.

Pouco depois de cruzar a fronteira da França, a família embarcou em um trem que mais tarde foi alvo de dois aviões alemães de combate JU-87 Stukas. Estilhaços atingiram a perna de Glatt, ferimento que levou meses para cicatrizar. A família se estabeleceu perto de Toulouse, na França sob domínio do governo fantoche francês de Vichy, mas seus dois irmãos nunca apareceram. Naquela época, seus pais já haviam se divorciado e ele havia se mudado para o Brasil.

Junkers Ju-87 Stuka alemães.

“-Eles me disseram que havia cobras andando nas ruas no Brasil”, disse Glatt com uma risada alta.

Outros refugiados e um conhecido recém-chegado relataram que seus irmãos foram vistos dirigido um carro abandonado de volta para a Bélgica. Voltaram para a casa de sua família e reabriram a loja de seu avô, pois a perseguição aos judeus nesse país ainda não havia começado. Em êxtase com as notícias, Salomon desejava retornar para onde estavam seus netos. O plano era recuperar as economias de toda sua vida ainda escondidas em Antuérpia e tirar a família da Europa nazista.

Eles atravessaram a França ocupada pelos alemães inicialmente em uma limusine Minerva construída na Bélgica com a ajuda de um contrabandista de pessoas, depois a pé e de trem. A família se reuniu em Antuérpia. Salomon, cujas economias estavam intactas, começou a administrar seus negócios novamente. Mas logo eles seriam obrigados a usar a estrela de David amarela em suas roupas e o terror das perseguições recomeçou.

Cartaz em língua francesa com os detalhes das leis antijudeus aplicadas na Bélgica a partir de 28 de Outubro de 1940.

Um ano depois, os judeus de Antuérpia foram obrigados a se mudar para Heusden, uma aldeia perto da fronteira com a Alemanha e a Holanda. Sua deportação para os campos de extermínio foi interrompida, já que a Alemanha estava ocupada demais transportando milhões de judeus da Europa Oriental para a morte.

Aos 13 anos, como preconiza a tradição judaica, Glatt não poderia ter seu bar mitzvah. “-Não havia rabino, nem talit, nem tefilin ou Torá em Heusden”, disse Wall. Ele so realizaria seu bar mitzvah aos 85 anos de idade, na sinagoga de Copacabana, no Rio.”

Entrada ferroviária de Auschwitz – Fonte – en.auschwitz.org

Os alemães autorizaram a família Glatts a voltar a Antuérpia, com exceção dos meninos mais velhos: Bubbi e Heinz. Estes foram enviados para trabalhar em uma mina de carvão. Em 1942, ambos foram convocados para trabalhar na Muralha do Atlântico, uma fortificação destinada a conter o esperado avanço aliado. Uma vez no trem, eles foram levados para Auschwitz.

Enquanto isso, a Gestapo, ajudada por espiões locais, como a Juventude Hitlerista flamenga, caçava ativamente os judeus que permaneciam na Bélgica. Salomon e Chawa, os avós de Glatt, foram encontrados e deportados para Auschwitz. Décadas depois, Glatt soube que Salomon, Chawa, Bubbi e Heinz foram assassinados em Auschwitz em 1942.

Judeus seguindo para um Campo de concentração – Fonte – encyclopedia.ushmm.org

“-Em um novo esforço para se esconder dos nazistas, Freddy e sua mãe mudaram-se novamente, agora para um pequeno apartamento na 101, Jerusalem Street, no distrito Schaerbeek, Bruxelas”, disse Wall. “-O banheiro era minúsculo, o que significa que Freddy teve que usar um chuveiro público, cuidadosamente escondendo sua circuncisão.”

Aos 14 anos, Freddy Glatt começou a trabalhar como assistente do dono de uma banca de jornal. À noite, ele trabalhava em uma fábrica de baterias clandestinas e, entre turnos, produzia cartões com o tema Mickey Mouse para vender em uma papelaria. Ele também roubaria trilhos de trem e os venderia como sucata.

O dinheiro apurado permitia a ele e a sua mãe visitas raras ao cinema. Os filmes eram precedidos por noticiários produzido pelos nazistas mostrando bombas da Luftwaffe em Londres e a Operação Barbarossa esmagando a União Soviética. Glatt muitas vezes entrou na arena do Palais des Sports para assistir a lutas, boxe e outros eventos esportivos.

Rei Leopoldo III e a Rainha Elizabeth da Bélgica.

Com o prosseguimento da guerra, a perseguição e a escassez se agravaram, e a mãe de Glatt, Rozalia, pediu ao rabino-chefe da Bélgica que colocasse seu filho em um lugar seguro. Com o apoio da resistência belga e judaica, e da ajuda de Elisabeth, esposa do Rei Leopoldo III, da Bélgica – cujos esforços em favor de centenas de crianças judias lhe renderam uma designação para receber o título de “Justo Entre as Nações” – Glatt partiu para uma escola para meninos católicos.

Depois, do playground, ele viu várias vezes centenas de bombardeiros americanos B-17 seguindo para a Alemanha. Tempos depois, ele viu nazistas mutilados, atacados por soldados americanos e britânicos recém-chegados da Normandia, como outro bom presságio do fim do pesadelo.

Quando os Aliados finalmente libertaram a Bélgica em setembro de 1944, Glatt se reuniu com sua mãe e ambos começaram a procurar freneticamente os parentes desaparecidos, ainda inconscientes de seu destino. Em 1947, mãe e filho se mudaram para o Brasil. O pai de Glatt encontro a ex-esposa e o filho e se casaram novamente no Rio de Janeiro.

Glatt vive no Rio desde então. Ele se casou com, Betty, sua esposa desde 1954, e eles têm três filhos, seis netos e dois bisnetos.

A música de Wall, cantada em inglês, conta a história em imagens telegráficas ao longo de uma batida insistente e melancólica, terminando com um gostinho da liberdade de Glatt e um lembrete do destino sombrio de seus irmãos.

PARA VER E OUVIR A MÚSICA CLIQUE AQUI – https://www.timesofisrael.com/a-brazilian-holocaust-survivors-life-gets-memorialized-in-song/

“-A música de Wall sobre Glatt traduz a importância desse tipo de arte como veículo para transmitir períodos históricos autoritários e principalmente mostrar o que a intolerância, o racismo e o preconceito são capazes de gerar”, comentou ao JTA a historiadora Silvia Rosa Noserk Lerner.

Nascido no Rio de sobreviventes do Holocausto que fugiram da Alemanha no final da década de 1930, Silvia Lerner é autora de um livro em português intitulado Música como uma memória de um drama: o Holocausto, para o qual ela traduziu músicas compostas e cantadas nos guetos e campos de concentração. 

Ela disse que a música de Wall é na tradição de tais músicas.

Freddy Glatt  e sua esposa.

“-Eles compunham para ocupar seu tempo, para sublimar sentimentos que eles não conseguiam entender e nem conseguiam responder”, disse Lerner. “-Essas músicas nos ajudam a entender um pouco do sofrimento que os judeus passaram nestes anos de dominação alemã, mostrando fome, saudade, esperança por dias melhores, preocupação com o futuro de seus filhos e prova que, mesmo em tempos difíceis, pode-se produzir arte”.

“-A música tem o poder de unir sentimentos, rever emoções, lembrar histórias, coexistência, memórias e perdas, e traduzir expectativas e esperanças”, disse Lerner.

Wall espera que sua música faça jus ao seu louvor.

“-Se os jovens vierem a entender o que o Holocausto foi através desta música, nosso objetivo será alcançado”, disse ele.

NOVAS HISTÓRIAS SOBRE A SEGUNDA GUERRA

Documentos, fotos e novos capítulos sobre a participação do RN na história do conflito mundial estão em coleção de livros da Caravela Cultural. Uma dessas informações inéditas está em “Sobrevoo – Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte”, do historiador Rostand Medeiros, que resgata a história de uma queda de avião no Seridó. A série faz parte de edital lançado pelo SEBRAE

Yuno Silva – Repórter

Publicado no jornal Tribuna do Norte, edição de quartafeira, 27 de março de 2019, na primeira paginado Caderno Viver.

“A participação do Rio Grande do Norte na Segunda Guerra Mundial” ainda rende, e muito! A cada remexida em arquivos e documentos, surgem novas memórias, detalhes e curiosidades sobre esse período importante para a história mundial e que as cidades de Natal e Parnamirim ainda não souberam preservar e nem tiara nenhum proveito turístico e/ou museógrafo. Foi aqui, nessa esquina continental, no início da década de 1940, onde mascaram o primeiro chiclete, beberam o primeiro chope de máquina, vestiram a primeira caça jeans e jogaram a primeira partida de fliperama da América do Sul.  

Parnamirim, por sua vez, abrigou um dos maiores entrepostos comerciais do planeta na época do conflito; só aqui no RN era possível compara meia calça de nylon – no restante dos países, todo o estoque do tecido sintético criado em 1935 já tinha virado material para fabricação de paraquedas.

A Segunda Guerra se estendeu entre 1939 e 1945, o Brasil se envolveu oficialmente a partir de agosto de 1942, e perceber o que restou do legado norte-americano em terras potiguares exige um olhar atento.

É nesse momento, da necessidade do “olhar atento”, que entram em cena três novos motivos para revisitar aquele momento de efervescência urbana, cultural e social que sacudiram Natal e Parnamirim a editora Caravela Selo Cultural lança no próximo dia 2 de abril, às 11 horas, na sede do SEBRAE-RN, os três livros que integram a coleção “A participação do Rio Grande do Norte na Segunda Guerra Mundial”.

São três obras independentes, com abordagens diferentes, que se complementam e acrescentam mais “molho” no que já se sabe. “São livros diferentes sobre a mesma temática, e que trazem informações inéditas sobre o assunto”, assegurou o jornalista, engenheiro civil e pesquisador Leonardo Dantas de Oliveira, coautor do livro “A engenharia norte-americana em Natal na Segunda Guerra Mundial”, que ele assina junto com Osvaldo Pires de Souza e Giovanni Maciel de Araújo Silva.

Completam a coleção uma coletânea “Observações sobre a Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte”, reunindo artigos científicos e organizados pelo escritor e editor da Caravela José Correia Torres Neto; e o livro “Sobrevoo – Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte”, do pesquisador e historiador Rostand Medeiros.

A coletânea, explicou José Correia, reúne textos atuais produzidos por especialistas e estudiosos da UFRN e de outras universidades de outros estados. “Boa parte do material que estamos publicando já vinha sendo organizado e catalogado pelos autores, e quando decidi editar a coleção tivemos seis meses para deixar tudo pronto para impressão”, lembrou o editor, que aproveitou o edital Economia Criativa 2018 do SEBRAE-RN para viabilizar o projeto.

“O lançamento da coleção no SEBRAE-RN vai coincidir com o lançamento da edição 2019 do edital”, avisou Correia.

Papagaio de guerra

O volume da coletânea organizado pelo editor da Caravela Selo Cultural traz oito artigos científicos e pelos títulos percebe-se que as abordagens buscam ir além do lugar comum.

Entre os textos publicados destaque para “Cabarés de Natal: do esplendor do Cabaré de Maria Boa ao ostracismo do Beco da Quarentena (1942 – 1950)”, escrito por Jéssica Freire Dalcin, Monique Maia de Lima e Yasmênia Evelyn de Barros.

Outros artigos buscam ir mais fundo para instigar a reflexão, como “A busca de um tesouro perdido: o desejo das elites de Natal (RN) em torná-la uma cidade moderna no século 20”, de Giovana Paiva de Oliveira; e “Uma cidade marcada por perdas e sonhos: a Natal da Segunda Guerra Mundial”, de Giovana Paiva de Oliveira em parceria com Ângela Lúcia Ferreira e Yuri Simonini.

Documentos, fotos e novos capítulos sobre a participação do RN na história do conflito mundial estão em coleção de livros da Caravela Cultural. Uma dessas informações inéditas está em “Sobrevoo – Episódios da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte”, do historiador Rostand Medeiros, que resgata a história de uma queda de avião no Seridó. A série faz parte de edital lançado pelo SEBRAE

Já o livro de Rostand Medeiros faz, literalmente, um “sobrevoo” sobre o momento histórico com textos curtos recheados por curiosidades, detalhes e passagens que ainda não tinham sido revelados.

Relatos e depoimentos se misturam a uma narrativa alicerçada por documentos que comprovam cada afirmação. Medeiros aborda desde a “Influência das tripulações alemãs em Natal”; casos de espionagem; o resgate das primeiras vítimas da guerra em Rio do Fogo, litoral norte do RN, em 1941; e a presença de “Parnamirim Field” na imprensa internacional.

Os autores Leonardo Dantas, José Correia Torres Neto e Rostand Medeiros, junto ao jornalista Yuno Silva, da Tribuna do Norte.

No tocante às curiosidades, destaque para “A pitoresca história de um papagaio que voou em combate nos céus da Europa”; e a queda de um avião de guerra modelo Catalina na cidade de Riachuelo, agreste potiguar. O papagaio “Jock”, inclusive foi notícia em vários jornais e Rostand Medeiros comprova a história emplumada com fac-símile de uma manchete publicada no jornal carioca A Noite em 19 de janeiro de 1944 – naquele momento, de acordo com o jornal, “Jock” acumulava 50 horas de voo e havia sido indicado para receber medalha do Exército americano.

“Muitas das informações são inéditas, extraídas de documentos e diários que só foram liberados recentemente”, disse Leonardo Dantas, que buscou no diário de obras dos batalhões de engenharia notas sobre o legado deixado pelos norte-americanos na infraestrutura urbana: “Avenidas que hoje são importantes vias que cortam a capital do RN foram construídas naquela época. A primeira ‘pista’ de asfalto do Estado foi construída pelos soldados, e ia do Colégio Ateneu até a base de Parnamirim”.       

Nesses diários, também foram colhidos relatos sobre a alimentação e de como era a hora de descanso dos trabalhadores braçais que prestaram serviço para o Exército dos Estados Unidos. “Veio gente de outros estados para trabalhar, pois não tinham mais quem contratar aqui em Natal e Parnamirim para fazer o que eles precisavam”, completou Leonardo.

Coleção “A participação do Rio Grande do Norte na Segunda Guerra Mundial”

SERVIÇO

Lançamento da coleção “A participação do Rio Grande do Norte na Segunda Guerra Mundial”, dia 2 de abril, às 11 da manhã, na sede do SEBRAE-RN em Lagoa Nova. Após o dia de lançamento, os livros estarão disponíveis na livraria da Cooperativa Cultural da UFRN.

VIDA DE PILOTO – VOAR E MORRER EM NATAL!

Não foram poucos os aviadores estrangeiros que pereceram em voos durante a Segunda Guerra Mundial tendo Natal como destino ou ponto de partida. O caso de Kenneth Wayne Neese foi um desses.

Rostand Medeiros – Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

North American B-25 Mitchell – Fonte – NARA

E a lista é grande…

Houve o caso de um bombardeiro bimotor Martin B-26 Marauder que aterrissou em pane em uma praia potiguar e o que sobrou da carcaça foi dinamitada. Na metade desse mesmo ano foi a vez de um bimotor Lockheed A-29 Hudson que decolou de Parnamirim e caiu no mar, com alguns objetos sendo recolhidos por um pescador de uma praia do nosso litoral norte. Houve outro bimotor, dessa vez um modelo Martin A-30 Baltimore, que caiu em janeiro de 1943 perto da praia de Pirangí. Ficou famoso o caso de um bombardeiro quadrimotor B-17 que caiu logo após decolar e se espatifou no que hoje é a região periférica do município de Parnamirim. Nesse último caso, devido a enorme quantidade de combustível, o clarão de suas chamas foi percebido pelos natalenses e ficou gravado na memória de muitos.

Voar naqueles tempos cruzando o vasto Oceano Atlântico era algo que verdadeiramente deixava atentos e preocupados os aviadores que vinha e passavam por Natal. Quando entrevistei o segundo tenente Emil Anthony Petr, da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (USAAF – United States Army Air Forces), para a realização do meu quarto livro “Eu não sou herói – A história de Emil Petr”, hoje esgotado, ouvi em detalhes sobre a preocupação de uma tripulação de um bombardeiro quadrimotor B-24 sobre essa travessia. Emil era o navegador e sua aeronave seguiu com destino ao sul da Itália. Para ele e seus amigos o voo foi tranquilo.

Nota de um jornal norte-americano mostrando o problema que passou o major-general Patrick J. Hurley, representante pessoal do Presidente F. D. Roosevelt , cujo avião após passar por Natal em viagem ao Irã teve problemas no motor e quase que não conseguiu retornar a capital potiguar. Infelizmente esse tipo de situação não era rara em Natal durante a Segunda Guerra Mundial.

Ao menos quando uma aeronave caia no mar próximo a Natal e seus pedaços chegavam as nossas praias, ainda era possível saber (ou deduzir) o que aconteceu. Mas várias aeronaves e seus aviadores simplesmente sumiram, principalmente quando partiram de Natal em direção à África.

Assim foi o caso de um bimotor Douglas A-20B Havoc do 4th Ferrying Group que partiu de Natal em março de 1943 e antes de pousarem na ilha de Ascensão, ponto de parada e reabastecimento pertencente aos britânicos antes de chegarem ao continente africano, sumiu com seus três tripulantes para nunca mais serem vistos. Documentos mostram que após o desaparecimento de aeronaves em alto mar eram organizadas operações de buscas, as quais muitas tinham resultados totalmente negativos.

Essas travessias Atlânticas não era tarefa fácil, até mesmo para aviadores calejados e experientes, como foi o caso de Kenneth Wayne Neese.


Kenneth Wayne Neese .

Uma Vida Nos Céus

Esse piloto nasceu em 6 de dezembro de 1902 no Condado de Hamilton, estado de Iowa, no meio oeste dos Estados Unidos. Em 1922 sua família mudou-se para Fresno, Califórnia, onde Neese  conheceu e se apaixonou pela aviação e seu primeiro emprego nessa área foi como mecânico de aviões à noite. Embora esse não fosse um trabalho particularmente interessante, proporcionou a Neese  guardar dinheiro para comprar em 1924 a sua primeira aeronave, um biplano Curttis OX-5 Jenny. Isso lhe permitiu entrar no circuito de espetáculos dos circos voadores em todo o norte da Califórnia, onde aconteciam incríveis acrobacias aéreas e manobras espetaculares.

Carta transportada em avião pilotado por Kenneth Wayne Neese.

Logo para esse piloto voar não era a única preocupação, pois ele conheceu a jovem Mary Morford, que se tornou sua esposa em novembro de 1926. Um acréscimo à família veio no ano seguinte com a pequena Betty. Casado e com outras responsabilidades, em 1928 Neese tornou-se piloto chefe da empresa Consolidated Aircraft Corporation, em San Leandro, Califórnia, onde deu aulas de voo para estudantes em um avião biplano modelo Alexander EagleRock. Depois se tornou piloto de correio aéreo da empresa Varney Air Lines, antecessora da famosa United Airlines, percorrendo milhares de quilômetros em seus voos.

Licença de voo de Kenneth Neese.

Voar naquele trabalho implicava seguir à noite sobre áreas montanhosas, sem instrumentos e tudo era muito perigoso. Em 7 de novembro de 1929, enquanto percorria por uma dessas rotas, Neese se envolveu em um terrível acidente com seu avião que lhe queimou suas pernas, pescoço e rosto, deixando cicatrizes duradouras. Ele foi puxado da aeronave em chamas por um fazendeiro. Depois disso ele decidiu que o correio aéreo era muito perigoso e que ele tinha uma família para dar apoio. Mas estranhamente decidiu ser piloto de corridas aéreas!

Kenneth Neese, o primeiro a direita, e outros aviadores.

Esse tipo de atividade se tornou popular nos Estados Unidos, com corridas atravessando o país da costa leste para costa oeste. A ciência da aviação, a velocidade e a confiabilidade das aeronaves e motores cresceram rapidamente durante este período. Essas corridas aéreas eram tanto um campo de provas quanto uma vitrine para pilotos e aeronaves. Mas logo esse luxo de corridas ficou para trás devido ao triste e complicado período da grande depressão econômica ocorrida nos Estados Unidos, que se iniciou com a quebra da Bolsa de valores de Nova York em 1929. Diante da crise, com a Depressão em plena atividade, o frio estado do Alasca precisava de pilotos.


Kenneth Neese no Alasca.

Kenneth Neese chegou nessa gelada região em janeiro de 1933 e trazia apenas um terno, sapatos sociais e nenhuma roupa de inverno! Quando ele saiu do trem em Anchorage seguiu foi até o campo de pouso em Merrill onde conheceu parte de um grupo de pilotos que igualmente foram para o Alasca durante a crise econômica. Logo se tornou um dos mais respeitados aviadores atuando no Alasca ao voar para a empresa Star Airlines, onde registrou 9.302 horas em seu diário de bordo, mais do que qualquer outro piloto no território.

Profissionais de Diferentes Origens

No segundo semestre de 1941, antes mesmo dos Estados Unidos participarem oficialmente da Segunda Guerra Mundial, Kenneth Neese foi convidado a ser um dos pilotos da empresa Pan American Air Ferries Ltd., em um serviço destinado a transportar aviões bombardeiros de Miami para a África e o Oriente Médio. Ele topou a parada e sua família deixou o Alasca e se mudou para a ensolarada Flórida, onde Neese  treinou para poder pilotar aviões North American B-25 Mitchell, um bombardeiro médio bimotor, considerado um clássico da Segunda Guerra Mundial.


Bombardeiros bimotores North American B-25 Mitchell.

Em 1941 as coisas pareciam sombrias para os Aliados. Embora os Estados Unidos ainda não tivessem entrado na Guerra, seus líderes estavam ajudando principalmente os britânicos com a venda de aeronaves, no âmbito dos contratos chamados “Lend-Lease”. Os súditos do Rei Jorge VI haviam comprado todos os aviões em que puderam colocar as mãos. O grande problema era entregar essas aeronaves.

À Pan American foi ordenado levar aviões desde Miami até a Costa Oeste da África, via o norte e nordeste do Brasil e depois atravessando o Atlântico Sul. E esses pilotos tinham de agir sempre de maneira discreta, para evitar melindrar alemães e italianos e não gerar incidentes diplomáticos para os Estados Unidos, pois este país ainda era neutro.

Escola de pilotos da Pan American.

Além do transporte de aeronaves, coube a Pan American a construção ou melhoria dos aeroportos ainda bem primitivos existentes na rota da África, principalmente na Nigéria e no Sudão, bem como os campos ao longo da rota para Cairo e Teerã. Também realizaram, através de subsidiárias e o apoio do governo brasileiro, o Programa de Desenvolvimento Aeroportuário (com a sigla ADP em inglês) nos aeroportos de Belém, Fortaleza, Natal, Recife, Maceió, Salvador e outros.

Os tripulantes que participaram dos longos voos da Pan American durante os anos de 1941 e 1942 vivenciaram experiências incríveis. Havia alta aventura, altos salários e altos voos, além de uma chance de ajudar o esforço de guerra com o que eles poderiam fazer melhor – voar seus aviões.

Aparentemente nunca na história da aviação haviam reunido um monte de pilotos profissionais de tão diferentes origens. Entre eles estavam profissionais experientes de linhas comerciais, membros da reserva do exército, da reserva naval, aviadores que atuavam pulverizando áreas agrícolas, outros provenientes dos circos voadores e alguns tinham voando em várias partes da Terra, desde a China até Honduras. Além de gente que pilotava aviões em regiões bem inóspitas, como Kenneth Neese.

Rotas aéreas de transporte durante a Segunda Guerra.

Morrer em Natal

Sabemos que Neese esteve pela primeira vez em Natal, no Campo de Parnamirim, em 28 de outubro de 1941, como parte de um pequeno grupo de três aeronaves. As outras duas eram pilotadas por A. Inman e Alva R. DeGarmo, conhecido como Al DeGarmo, um veterano de 42 anos e que pilotava desde 1920. Tiveram como destino Acra, atualmente a capital e maior cidade de Gana, mas que na época era uma colônia britânica conhecida como Costa do Ouro. Existe outro registro da passagem de Neese por Natal em 17 de janeiro de 1942, quando os Estados Unidos já participavam oficialmente do conflito. Ele veio acompanhado novamente do piloto Al DeGarmo e o destino foi igualmente para Acra.

B-25 em voo.

Quase três meses depois, em meio a um crescente movimento aéreo sobre céus potiguares, Neese repete a parceria com Al DeGarmo e eles chegam a Natal em 12, ou 13, de março de 1942. O veterano piloto do Alasca está pilotando um North American B-25C-NA Mitchell, com a numeração de registro 41-12467. Junto com ele estão os tripulantes L. A. DeRosia, H. S. Jones e J. F. Anderson.

Não sei a razão, mas existe a informação que aquele deveria ser o ultimo voo de Neese, pois ele deveria assumir um trabalho no solo onde estaria encarregado de verificar a atuação de outros pilotos.

Foto da B-25 de registro 41-12711, pilotado por aviadores da Pan American Air Ferries em Parnamirim Field. A esquerda está o piloto Edgar J. Wynn, estando ao seu lado o copiloto Virgil Aldair. No dia 15 de maio de 1942, ao aterrissar essa aeronave ocorreu um acidente e a mesma não prosseguiu na sua rota para a União Soviética. Entre julho e novembro de 1942 o piloto Wynn esteve em quatro ocasiões no Campo de Parnamirim.

Em 14 de março o B-25, antes da decolagem, Neese jantou em Parnamirim com o coronel Jules Prevost e depois com seus homens decolou com sua B-25 de Natal em uma noite muito escura deixando. Esta decolagem noturna foi necessária devido às condições meteorológicas e de pouso no outro lado do Atlântico, mais especificamente na Libéria. No entanto não havia muitas luzes ao redor de Natal à noite para dar um horizonte visual e, imediatamente depois de passar a última luz da pista, Neese teve de voar por instrumentos. Existem registros que apontam, talvez por ainda não terem sido concluídas todas as obras no Campo de Parnamirim, sobre a periculosidade das decolagens noturnas em Natal, o que exigia um piloto bem treinado em voo por instrumentos.


Em 1944 o piloto Edgar J. Wynn lançou o livro “Bomber across”, um dos melhores sobre as rotas aéreas de transporte na Segunda Guerra Mundial, com várias citações sobre Natal e o Campo de Parnamirim.

O B-25C que Kenneth Neese pilotava se destinava a ser utilizado pela força aérea da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, também no âmbito dos contratos “Lend-Lease”. Mas Neese não deveria chegar a atual Rússia, seu ponto final era Teerã, capital do Irã, onde tripulações soviéticas assumiriam o avião e o levariam para combater as forças nazistas que haviam invadido aquele país.

Aviões B-25 utilizados pela União Soviética.

As entregas de empréstimos americanos à União Soviética incluíram aeronaves, caminhões, tanques, motocicletas, locomotivas e vagões ferroviários, canhões antiaéreos e metralhadoras, submetralhadoras, explosivos, rádios, sistemas de radar, bem como gêneros alimentícios, aço, produtos químicos, óleo e gasolina. A partir de março de 1942, 128 aviões bimotores B-25C partiram da Flórida para serem entregues por via aérea através do Caribe, Brasil, atravessando o Atlântico Sul, a África e chegando ao Irã. Apenas quatro foram perdidos no caminho, entre eles o de Neese.

Ficha original do piloto Kenneth Wayne Neese.

Sabemos por relatos da época que depois desse acidente, o coronel Prevost, que jantara apenas algumas horas antes com Neese, teve a desagradável tarefa de recolher seus restos mortais e de sua tripulação, sendo depois enterrados no Cemitério do Alecrim.

Passageiros desembarcando de um hidroavião Boeing 314 Clipper da Pan American no Rio Potengi, em Natal – Fonte – LIFE.

Sobre esse acidente existem informações contraditórias sobre a sua localização. Aparentemente foi próximo ao litoral e a aeronave teria batido em uma “colina” (Qual?), ou em uma posição a “cinco milhas a nordeste de Natal”, mas sem detalhamentos. Algumas fontes apontam que o avião caiu no mar, mas isso parece improvável, pois outras fontes informam que a tripulação foi enterrada no Alecrim e existe a notícia que o corpo de Neese foi transladado para os Estados Unidos depois da guerra e enterrado no Belmont Memorial Park, na cidade de Fresno, Califórnia.

FOTO HISTÓRICA DA SEMANA – BOB KENNEDY EM UM CANAVIAL DE CARPINA, PERNAMBUCO, EM NOVEMBRO DE 1965.

Robert Francis Kennedy, apelidado de Bobby, ou Bob, e também RFK, foi procurador-geral dos Estados Unidos de 1961 até 1964 tendo sido um dos primeiros a combater a Máfia, e Senador por Nova Iorque a partir de 1965. Ele foi um dos dois irmãos mais novos do presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, e também um dos seus mais confiáveis conselheiros, Robert Kennedy acompanhou ativamente com o presidente a crise dos mísseis cubanos e fez uma importante contribuição no movimento pelos direitos civis dos afro-americanos. Era católico como o irmão.

Segundo Vandek de Souza, do Diário de Pernambuco, em novembro de 1965 Bob Kennedy esteve no Nordeste do Brasil. Foi à Zona da Mata pernambucana, na cidade de Carpina, onde da janela da Cooperativa Mista de Trabalhadores Rurais fez um discurso defendendo “a urgente organização dos trabalhadores em sindicatos e associações” para “tornar possível a reforma agrária”. Caminhou pelos canaviais ao lado do padre Crespo. Conversou com camponeses, perguntando se eles recebiam o salário mínimo, e até repreendeu o proprietário José Jaime Coutinho, por interferir na conversa: “O diálogo é comigo”. Depois veio ao Recife, onde discursou no Centro da cidade e na SUDENE, nesta ordem. “O progresso de toda a América Latina repousa, em larga escala, no progresso do Brasil. E o futuro do Brasil, por seu turno, depende do Nordeste, que é um país dentro de um país”, afirmou na SUDENE.

Esteve em Natal, onde foi recebido pelo Governador Aluízio Alves. Circulou junto com sua esposa Ethel e Aluízio em um jipe pelas ruas da cidade, enquanto era acompanhado e ovacionado de maneira intensa pelos natalenses. Aqui inaugurou na Cidade Alta a praça que até hoje leva o nome do seu irmão, bem como o Instituto Presidente Kennedy. Na inauguração desse último local havia um palanque bem fraquinho e que não ajudaria a propagar seu discurso. Sem muitas delongas subiu junto com a esposa e Aluízio em um dos telhados do Instituto e de lá falou a vontade.

Três anos depois Robert Kennedy anunciou a sua campanha para ser nomeado candidato à presidência pelo Partido Democrata. Kennedy vence as primárias do estado da Califórnia e o sonho de ser Presidente dos Estados Unidos se tornava possível. Mas no dia 5 de junho de 1968, o senador e pai de 10 filhos (sua mulher Ethel estava grávida do 11º), foi gravemente ferido por dois disparos na cabeça em um hotel em Los Angeles, onde comemorava os resultados das eleições da prévia dos Democratas. O assassino era um palestino imigrante de nome Sirhan Bishara Sirhan. Bob Kennedy morreu no hospital na manhã do dia seguinte, 6 de Junho, estando sua esposa Ethel ao seu lado. Tinha apenas 42 anos.

JUDAÍSMO NO NORDESTE DO BRASIL – CONVERSOS SEFARDITAS REVIVEM A VIDA JUDAICA

 

A Estrela de Davi na mais antiga cópia completa sobrevivente do texto massorético, o Códice de Leningrado, datado de 1008 – Fonte – https://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/788679/jewish/Star-of-David-The-Mystical-Significance.htm

Inspirados pelas recém-descobertas raízes judaicas sefarditas, dezenas de judeus recém-convertidos no Nordeste do Brasil estão apagando o tabu que impediu que seus antepassados ​​proclamassem sua fé.

Autoria – Cnaan Liphshiz e JTA – Fonte – https://www.haaretz.com/world-news/americas/recent-sephardic-converts-revive-jewish-life-in-northern-brazil-1.6786362A

Preparando-se para deixar o principal centro comunitário judaico de Recife, Sabrina Scherb espreita para além do seu portão, numa rua tranquila repleta de ramos e frutos de manga triturados.

Os escombros, remanescentes de uma tempestade tropical durante a noite, não é o que está preocupando Scherb, um universitário de 22 anos e instrutor de dança voluntário.

“Eu estou olhando para ver se é seguro”, disse ela, andando rapidamente para o carro estacionado de um amigo depois de dar uma aula de dança folclórica israelense. “Eu tenho medo todo o tempo do roubo, ou pior. Eu planejo minha vida, então eu gasto a menor quantidade de tempo na rua. Todos nós fazemos”.

É um modo de vida que Scherb, cuja mãe foi roubada e já presenciou um assalto na rua, compartilha com muitos moradores dessa cidade. Recife, a quarta maior metrópole do Brasil, com uma população de cerca de 1,55 milhão, foi classificada neste ano como a 22ª cidade mais violenta do mundo. Tem uma taxa de homicídios 18 vezes maior que Nova York e o dobro de São Paulo.

Como muitos jovens judeus da comunidade judaica predominantemente asquenazita do Brasil, Scherb diz que “Não vê um futuro” para si mesma por causa do crime e dos efeitos da crise financeira de 2014 neste país sul-americano. Juntamente com corrupção do governo e instabilidade política, esses fatores estão levando um número recorde de judeus brasileiros a deixar o país.

Tais crises, juntamente com a assimilação, esgotaram muitas comunidades judaicas sul-americanas nos últimos anos – especialmente as menores, localizadas fora das principais capitais brasileiras.

No entanto, ao contrário de muitas comunidades judaicas pelo Brasil afora, a de Recife não está em declínio – em parte graças à adoção do judaísmo por centenas pessoas da cidade, cujos ancestrais sefarditas vieram séculos atrás de Portugal e da Espanha e em meio à perseguição antissemita nesses países.

Desde 2015, pelo menos 400 pessoas com ancestrais sefarditas passaram por conversões ortodoxas ao judaísmo no norte do Brasil – a área aonde seus ancestrais chegaram pela primeira vez da Europa. No estado de Pernambuco, cuja capital é Recife, esses indivíduos estabeleceram duas congregações judaicas que operam suas próprias sinagogas e apresentam eventos de férias, incluindo sedas de Páscoa.

Em 2015, um grupo de repatriados, a Associação Sefardita de Pernambuco, com sede em Recife, publicou sua própria Hagadá da Páscoa – um livro de 80 páginas com orações em hebraico e português. Sua capa apresenta uma ilustração de pessoas de várias raças que frequentam um Seder (Um serviço ritual e jantar cerimonial da primeira noite ou das duas primeiras noites do Pessach), algumas vestindo trajes tradicionais ameríndios.

“Há vinte anos, o retorno ao judaísmo foi um sonho. Agora é simplesmente a nossa realidade”, disse Jefferson Linconn Martins dos Santos, presidente da sinagoga Aboab da Fonseca, em Recife, uma das duas novas congregações. Na última década, mais de uma dúzia de congregações como essa foram estabelecidas em todo o norte do Brasil, cada uma com seu próprio líder espiritual e abatedor ritual produzindo carne kosher.

Este desenvolvimento está se desdobrando em paralelo aos altos níveis de imigração de judeus brasileiros para Israel. O número de imigrantes brasileiros mais que dobrou, passando de uma média de 249 por ano em 2005-2014, para 619 em cada um dos últimos quatro anos.

‘Filhos dos convertidos’

Os membros das novas comunidades se chamam “Bnei anusim” – hebraico para os “filhos dos convertidos à força”, do judaísmo para o cristianismo. É uma referência aos longos anos da Inquisição antissemita, que se espalhou por Portugal depois de sua adoção como política de Estado pela Espanha em 1492, e para as colônias desses países.

Pernambuco por um tempo tinha sido um refúgio para muitos judeus portugueses e espanhóis porque era controlado pelos holandeses relativamente tolerantes de 1630 a 1654. Mas quando os holandeses partiram, sua colônia foi tomada por Portugal, que impôs a Inquisição. Muitos judeus sefarditas fugiram com os holandeses para a Holanda.

Trouxeram até móveis da sinagoga de Recife, Kahal Zur – a mais antiga das Américas – que instalaram na Sinagoga Portuguesa de Amsterdã.

A presença judaica em Recife, uma extensa metrópole à beira-mar atravessada por canais de água salobra, é tão antiga que pode até ter dado à cidade o nome dela. 

De acordo com uma teoria, ela se origina em “Ratsif” – a palavra hebraica para cais. Recife possui cerca de 1.500 judeus, também possui a escola judaica mais antiga do Brasil, a Escola Moyses Chvarts, de 100 anos.

Rua dos Judeus e seu mercado de escravos. Quadro Rua dos Judeus – Slavenmarkt, de Zacharias Wagener – 1641 – Fonte – http://bairrodorecife.blogspot.com.br/2014/02/a-rua-do-bode-dos-judeus-da-cruz-e-do.html

Alguns dos judeus que fugiram de Recife chegaram à Nova Amsterdã, onde fundaram a primeira comunidade judaica do que mais tarde se tornaria a cidade de Nova York.

Enquanto muitos judeus foram embora do Brasil reconquistado pelos portugueses em 1655, muitos outros ficaram e se prepararam para a vida sob o jugo da Inquisição.

No início, aqueles que permaneceram continuaram a praticar o judaísmo em segredo, tornando-se cripto-judeus. Mas suas famílias se tornaram católicas com o passar dos séculos. Ainda assim, nas aldeias do norte do Brasil, alguns costumes judaicos prevaleceram.

Alguns bnei anusim foram instigados a investigar sua ascendência por causa desses costumes familiares peculiares. Outros, como Daury dos Santos Ximenes, presidente da Associação dos Judeus Sefarditas de Pernambuco, descobriram suas origens judaicas por meio de pesquisas genealógicas.

Muitas famílias no norte do Brasil há gerações sabem de suas raízes sefarditas, disse Haim Amsalem, um rabino ortodoxo e ex-membro do Knesset (Parlamento) de Israel que converteu muitos Bnei anusim. “Mas o advento da internet e das mídias sociais mudou tudo, levantou o tabu”.

Alguns, como Simone Azoubel, de 55 anos, souberam da ancestralidade judaica de um avô moribundo. Sua avó, Raquel, pediu em seu leito de morte em 1999 para ser enterrada com seus ancestrais em um cemitério judeu – revelando um segredo que ficou em segredo por duas gerações.

A Expulsão dos Judeus, de Roque Gameiro.

O funeral de sua avó no cemitério judeu do Recife levou à conversão de Azoubel. Azoubel diz que sua família fugiu de Portugal para a Turquia, chegando ao Brasil no século XIX. Ela e alguns de seus parentes são agora membros ativos da comunidade judaica do Recife.

Buscando reconhecimento

Desde 2016, Haim Amsalem, ex-líder do movimento ortodoxo Shas, viajou cinco vezes ao Brasil, convertendo cerca de 100 pessoas em cada visita. Os convertidos de Amsalem concluíram um processo de conversão no Brasil sob a supervisão de Gilberto Venturas, outro rabino ortodoxo. Muitos outros passaram por conversões de reforma ou conservadoras no norte do Brasil.

As conversões de Amsalem foram à primeira série de conversões em larga escala já realizadas no Brasil. Eles seguiram décadas de trabalho de divulgação do grupo Shavei Israel e de Isaac Essoudry, um judeu de Recife que morreu no ano passado e serviu como líder espiritual para muitos que buscavam se reconectar ao judaísmo.

No entanto, embora os convertidos tenham sido reconhecidos como judeus por Haim Amsalem, o Rabinato Chefe de Israel não os reconhece como tal porque ele “Não está na lista de juízes do Rabinato que pode presidir uma conversão”, disse um porta-voz à JTA.

Obra mostra cena de explusão de judeus da Espanha em 1492. Muitos deixaram o país, mas outros optaram por ficar e se onverter ao catolicismo. (Xilogravura, Michaly von Zichy, 1880, posteriormente colorizada)

Amsalem citou um precedente do Tribunal Superior de 2016 em Israel, que forçou o estado a naturalizar sob sua Lei de Retorno aqueles judeus cujas conversões não foram reconhecidas pelo Rabinato Chefe. “O reconhecimento deles não tem sentido”, disse Haim Amsalem sobre o Rabinato Chefe.

Mas até hoje nem Amsalem e nem o Rabinato Chefe tem conhecimento de qualquer um dos convertidos brasileiros buscou imigrar para Israel, disseram o rabino e o porta-voz.

O reconhecimento para os bnei anusim continua sendo um problema dentro das comunidades judaicas do Brasil também.

Os convertidos não vêm à sinagoga da Congregação Chabad, em Recife, localizada na Rua Jorge Couceiro Da Costa Eiras, 603, onde dizem que não se sentiriam bem-vindos. Nem se integram facilmente com outras comunidades judaicas.

O escritor Luís da Câmara Cascudo participou da festa do Yom Kippur junto aos judeus de Natal e descreveu a visita em um interessante artigo – Fonte – Jornal ” A República” 12/11/1933

“Geralmente estamos em uma fase em que muitos bnei anusim se sentem mais à vontade em comunidades formadas por pessoas como eles”, disse Daury dos dos Santos Ximenes, presidente da associação sefardita.

Jader Tachlitsky, porta-voz da Comunidade Judaica de Pernambuco e coordenador do Centro Judaico de Pernambuco, rabino reformista, confirmou que “A situação é complexa”.

“Vários rabinos estão convertendo bnei anusim e não temos certeza sobre todas as conversões, disse Tachlitsky.

Essas complicações e outras “São de se esperar dada a magnitude” do fenômeno Bnei anusim, disse Ashley Perry (Perez), presidente da organização Reconnectar, com sede em Israel, que visa ajudar as pessoas a se reconectarem com seus ancestrais judeus, o povo judeu e Israel.

Túmulo de Rosinha Palatnik no Cemitério Público do Alecrim – Foto do autor.

Apesar dos desafios, Perry disse que as populações de bnei anusim geralmente “E especialmente no norte do Brasil representam um desenvolvimento que pode alterar a história do povo judeu”.

Há muitos milhões de potenciais bnei anusim na América do Sul, afirmou Perry. Haim Amsalem coloca o número “Pelo menos algumas centenas de milhares”.

Fundos de Confronto

Mas o abismo que separa as congregações bnei anusim do Recife e suas Ashkenazi não se deve exclusivamente a razões religiosas.

A comunidade judaica Ashkenazi de Recife é formada predominantemente por empresários e profissionais bem-sucedidos. As comunidades de Bnei anusim são mais diversificadas em sentido socioeconômico.

Yosef Manuel, que completou sua conversão no início deste ano, administra uma pequena loja de pet food no bairro de Prazeres, um subúrbio pobre de Recife. Ele decorou com fotos de si mesmo em Jerusalém e uma grande bandeira de Israel, que ele traz regularmente para partidas de futebol – incluindo quando nenhum time é israelense.

Manuel disse que “Sempre soube que a família tinha uma identidade judaica”. Mas a necessidade de se converter surgiu há 10 anos, durante sua primeira visita a Israel e a Jerusalém. “Eu senti que sabia que tinha chegado em casa e precisava fazer algumas coisas para fazer na minha casa”, disse ele. Mas Manuel também disse que não tem planos imediatos de partir para Israel.

Entre os convidados da cerimônia que celebraram sua conversão ao judaísmo estava sua amiga Evania Margolis, uma empresária judia Ashkenazi local e membro da congregação Chabad. “Ele estava radiante. Foi tão comovente que me levou às lágrimas”, disse Margolis sobre a cerimônia.

“Eles dizem que são judeus”, disse ela sobre os Bnei anusim. “Eu não sou nem rabino nem genealogista, mas acho que devemos abraçar as pessoas que realmente querem pertencer ao nosso povo”.

Manuel e sua esposa se juntaram ao Centro Judaico de Pernambuco, onde participam de cultos e eventos regularmente, incluindo a comemoração anual do Yom Hashoah para as vítimas do Holocausto.

A comunidade realiza a comemoração e outros eventos especiais na histórica sinagoga Kahal Zur, que ironicamente está localizada na Rua do Bom Jesus. Outrora um grande estabelecimento ortodoxo, Kahal Zur desintegrou-se lentamente antes de ser restaurado em 2002 como um museu, que também contém uma pequena sinagoga igualitária.

Para todas as coisas que os diferenciam, as comunidades judaicas do Recife estão, no entanto, se aproximando ao longo do tempo, disse Sônia Sette, presidente da Federação Judaica de Pernambuco.

“Não sabemos as consequências desse fenômeno”, disse ela sobre o surgimento dos Bnei anusim, “Porque ainda estamos vendo isso acontecer”. Mas, em meio à assimilação, a emigração e a apatia de muitos judeus locais de comunidades brasileiras, “Eu não ficaria surpresa se no futuro, a maioria dos judeus aqui no Brasil seja composta de Bnei anusim”.

PINHEIRO MACHADO: O CHEFÃO SECRETO DA REPÚBLICA VELHA


José Gomes Pinheiro Machado

Eminência parda, mandarim e implacável, o senador, assassinado em 1915, mantém o título de homem mais poderoso da República.

Autora- Claudia Giudice

Fonte – https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/pinheiro-machado-historia.phtml?utm_source=facebook.com&utm_medium=facebook&utm_campaign=facebook&fbclid=IwAR1LJyh78P4OpXYgld65ZhH6-ruVIQVdzJSQn3gJvES0nAUGKRf2nWwfQP4

Francisco Manço de Paiva, 33 anos,entrou desapercebido pela porta da frente do Hotel dos Estrangeiros, localizadona Praça José de Alencar, Lapa, no Rio de Janeiro. Inaugurado em 1849, o hotel era considerado o melhor da cidade, logo, do Brasil. Foi um dos primeiros a ter banheiros com ducha, lavanderia, restaurante e telefone com linha exclusiva para os hóspedes ilustres. Rapidamente, se tornou ponto de encontro de empresários e políticos da capital federal. Por esse motivo, inclusive, Paiva estava lá, esperando. Escondido.

Naquela manhã de 8 de setembro, Pinheiro Machado não teve um dia bom. Estava frustrado porque não conseguiu quórum na sessão que confirmaria o ex-presidente Hermes da Fonseca, seu candidato, como senador pelo Rio Grande do Sul. Depois do almoço, deixou o Palácio do Conde dos Arcos, sede do Senado Federal, no Campo de Santana, para se reunir com o adversário político e ex-presidente paulista Albuquerque Lins. Às 16 horas e 30 minutos, conforme o combinado, chegou ao saguão do Hotel dos Estrangeiros fazendo barulho. Estava em casa. Lá era seu endereço preferido para encontros de política. Segurava o senador Rubião Júnior, do PRP (Partido Republicano Paulista) de São Paulo, pelo braço e era seguido de perto pelos deputados paulistas, Cardoso de Almeida e Bueno de Andrade. O vai e vem dos hóspedes parou quando ouviu-se o grito: “Ah, canalha. Fui apunhalado pelas costas”.

Outra imagem de Pinheiro Machado – Fonte –  Wikimedia Commons

A frase era literal. Aos 63 anos,conhecido por ser a eminência parda da República Velha e um dos mais poderosos políticos do país, o senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado foi ferido de morte pelo jovem Paiva, um padeiro desempregado, desertor do Exército e ex-cabo da polícia, natural do Rio Grande do Sul.

O assassino confesso não fugiu nem tentou se livrar da culpa. Entregou a faca suja de sangue nas mãos de Cardoso de Almeida e esperou a polícia. Foi condenado a 30 anos de prisão e indultado pelo presidente Getúlio Vargas em 1935. Até a morte, na década de 1960, declarou ter agido por conta própria, e não a mando de alguém.

O assassino justificou o crime como a“salvação do Brasil” e se disse inspirado pela leitura de um artigo publicado naquele dia no jornal Gazeta de Notícias. Nele, Pinheiro Machado era acusado deter “braço longo” e de querer mandar em todos os assuntos da República. O padeiro afirmou também que pretendia se vingar do fato de o senador ter sido responsável pela morte de um estudante em Porto Alegre que protestara contra a decisão dele, Machado, de eleger Hermes da Fonseca para o Senado.

Força de Pinheiro Machado – Constituição Brasileira de 1891, onde vemos na página da assinatura do documento a firma de José Gomes Pinheiro Machado (sexta assinatura). Acervo Arquivo Nacional.

Faz 103 anos que essa cena aconteceu. Faz 103 anos, também, que o advogado, general e senador previu a própria morte. Escreveu uma carta-testamento, entregue à sobrinha e afilhada Maria José Azambuja, na qual previa um fim trágico para si. Meses depois, declarou ao jornalista João do Rio, um dos mais influentes de sua época, a seguinte frase: “Morro na luta. Matam-me pelas costas, são uns pernas finas. Pena que não seja no Senado, como César”. Sim, ele era odiado por que tinha poder demais. Era famoso por fazer presidentes, realizar acordos de bastidores impublicáveis e por ser implacável com seus desafetos.

Desde a proclamação da República, nenhum outro senador ou deputado teve, por tanto tempo, igual domínio sobre a política brasileira. O ex-senador gaúcho e fundador do PMDB Pedro Simon, autor da coletânea Discursos de Pinheiro Machado, de 2005, da Editora do Senado, registra: “José Gomes Pinheiro Machado era um político afastado dos holofotes, mais voltado para a atividade de gabinete e totalmente interessado nas manobras de bastidores e na costura dos grandes acordos políticos. Era uma eminência parda. Ruy Barbosa foi o nosso grande patrono no Senado, mas como político foi um homem de derrotas. Perdeu duas vezes a eleição para presidente da República e não tinha influência no governo. Quem mandava e elegia presidentes era o Machado, um dos mais influentes políticos da República, de quem hoje ninguém fala.”


Manço, assassino de Pinheiro Machado – Fonte – Wikimedia Commons

Antes do crime que lhe tirou a vida, Machado foi alvo de protestos populares praticamente diários. O panelaço acontecia na frente do Palácio do Conde dos Arcos, prédio onde hoje funciona a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele era o tirano-mor da República, acusado de abuso de poder, de desvio de remessas do Exército para tropas sob seu comando, contrabando, fraudes e de até manipular o câmbio. Em um dia muito turbulento, seus assessores aconselharam-no a sair pela porta dos fundos. Fez o contrário. Desceu de cabeça erguida pela escadaria da frente e ordenou ao chofer do seu coche o seguinte: “Siga em uma velocidade nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça medo”.

Espada em punho

Pinheiro Machado era filho de um fazendeiro e deputado federal de Cruz Alta, RS. Truculento, cultivou desafetos vida afora e tinha orgulho dessa coleção. O perfil de homem sem limites, sem escrúpulos e de gigantesca força começou a ser desenhado na juventude.


Pinheiro Machado aos 15 anos, no Corpo de Voluntários da Pátria, como soldado do 4º Corpo de Caçadores a Cavalo, na luta às hordas paraguaias que haviam invadido o solo brasileiro.

O historiador Cyro Silva, autor da primeira biografia sobre o político, o descreve de modo quase mítico:“Desde a adolescência, deu inequívocas provas de seu mais puro amor à pátria. Aos 15 anos incompletos, aluno da Escola Preparatória, anexa à Escola Militar da Corte, abandonava seus estudos, sem consentimento das autoridades superiores e, com o desconhecimento dos seus pais, alistava-se no legendário Corpo de Voluntários da Pátria, como soldado do 4º Corpo de Caçadores a Cavalo, na luta às hordas paraguaias que haviam invadido o solo brasileiro. Durante quase três anos suportou as dificuldades de uma luta feroz, em clima insalubre,somente dela se retirando quando o seu organismo em formação não pôde resistir por mais tempo aos miasmas pestíferos dos pântanos paraguaios”.

Foi resgatado do pântano pelo pai. Depois de tratado, mudou-se para São Paulo para estudar direito no Largo de São Francisco. Lá, sucumbiu ao vírus da política, herança de família. Tornou-se fanático defensor do estabelecimento da República no país. Conquistou seu diploma em 1878 e casou-se com a paulista Benedita Brazilina da Silva Moniz, que seria sua companheira pela vida toda. Nos primeiros anos de casados, viveram no Rio Grande, onde Pinheiro Machado advogou e articulou sua futura carreira política ao lado de outros republicanos, como Venâncio Aires e Júlio Prates de Castilhos, este seu grande amigo.

O fim do Império coincidiu com sua primeira eleição para o Senado, em 1890. Nascia ali um articulador das oligarquias regionais com casaco de general. A República Velha, vale lembrar, é o período que começa com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, e termina com a Revolução de 1930. Ela teve 13 presidentes e é dividida pelos historiadores em dois períodos: República da Espada, dominado pelos setores mobilizados do Exército apoiados pelos republicanos, e República Oligárquica, quando o poder passou às mãos das elites regionais do Sul e Sudeste.


Hotel dos Estrangeiros, onde Pinheiro Machado foi morto – Fonte – Wikimedia Commons

Machado foi senador por 25 anos, com uma breve interrupção. Em 1893, deixou a cadeira para tomar a frente do comando da Divisão Norte e combater, em seu estado, a Revolução Federalista (1893-1895). De espada em punho, lutou pela recém-nascida República e derrotou os revolucionários monarquistas e separatistas comandados por Gumercindo Saraiva, na Batalha de Passo Fundo. Mereceu pela bravura a fama de degolador e a patente de general de brigada honorário, que lhe rendeu o título de condestável da República. Ele era da turma da espada. Tanto que em 1897 foi acusado de ordenar o atentado contra o então presidente Prudente de Morais, o primeiro civil eleito para governar o país. Ficou preso alguns dias,mas, por falta de provas, foi liberado. Nunca perdeu os modos de general de fronteira. Nas brigas com seus desafetos, era comum atiçá-los a resolver o assunto na mão, na espada ou na bala. Num desses duelos, feriu com um tiro o diretor do jornal Correio da Manhã, Edmundo Bittencourt .

O jornalista e historiador gaúcho Luiz Antônio Farias Duarte corrobora a visão do político todo-poderoso.Em sua tese de mestrado Imprensa e Poder no Brasil –1901-1915 – Estudo da Construção da Personagem Pinheiro Machado pelos Jornais Correio da Manhã (RJ) e A Federação (RS)analisa como o político foi protagonista na mídia durante os primeiros 15 anos do século passado. Por ter debutado jovem, em 1890, tem o crédito e a fama de ser um dos pais da República. A sua primeira articulação famosa foi com o presidente Deodoro da Fonseca.

A pedido de Júlio de Castilhos, Machado procurou o marechal para convencê-lo a moderar o relacionamento com os políticos, apelando em nome do Rio Grande para que não fechasse o Congresso Nacional. O diálogo não logrou sucesso, mas impressionou o então presidente. “Esse fato significou a sua emergência na vida nacional. Ele que havia lutado como voluntário da pátria aos 14 anos e quando estudante de direito fora um dos fundadores do Clube 20 de Setembro, inspirado nos ideais republicanos dos revolucionários farroupilhas de 1835-1845, iniciava no Rio de Janeiro uma influência política que se prolongaria por mais de duas décadas e meia”, descreve Farias Duarte. 

Ao se tornar vice-presidente do Senado em 1902, Pinheiro Machado descobriu sua vocação para eminência parda da República. Ele controlava a Comissão de Verificação de Poderes. A sua função era decidir quais candidatos eleitos pelo povo poderiam ou não tomar posse. Como um Nero, levantava ou abaixava o polegar para matar no berço novos mandatos parlamentares. Cultivou ódio e abusou do poder que possuía.


Marechal Deodoro da Fonseca – Fonte – Wikimedia Commons

No período da República oligárquica (1894-1930), o senador atingiu o ápice de seu poder. Ultra-articulado e visionário,em 1910 criou o Partido Republicano Conservador (PRC), que se destacou diante do Partido Republicano Paulista, o primeiro do Brasil, e do Partido Republicano Rio-Grandense, também fundado por ele, ambos com viés regionalista. Manobrava com maestria as leis, as verbas e os subsídios para acumular poder para si e enfraquecer as poderosas bancadas de São Paulo e Minas. Na época, as oligarquias dominantes eram desses dois estados, compondo a famosa política do café com leite, por causa da importância da produção de café paulista e do leite mineiro para a combalida economia agrícola e industrial da época.

Dos pampas ao Cariri

Esse poderio foi construído sempre do Senado. Pinheiro Machado investiu na constituição de uma bancada periférica que, sob sua permanente liderança, passou a ser crucial nas votações. Deu tão certo que ele estendeu a iniciativa à Câmara, o que lhe garantiu uma expressão política e um poder incomparáveis.

Outro exemplo emblemático da sua força política conecta o senador gaúcho ao Cariri de Padre Cícero Romão Batista. Líder inconteste da sua região, prefeito de Juazeiro e suspenso das ordens sacerdotais, Cícero foi aclamado pela convenção do PRC (Partido Republicano Conservador) como candidato à terceira vice-presidência do Ceará, cargo que aceitou de bom grado. As eleições aconteceriam em abril de 1912. No meio do caminho, o presidente do Ceará, seu padrinho político, Nogueira Accioly, também conhecido como Coronel Babaquara por sua fama de apalermado e roceiro, foi obrigado a renunciar por causa de um massacre de sua polícia contra uma passeata de mulheres e crianças. Parecia o fim. Não foi.

O escritor Lira Neto destaca o episódio na biografia Padre Cícero, Poder, Fé e Guerra no Sertão: “Por uma dessas circunstâncias que somente a política é capaz de explicar, um acordo de bastidores terminou por garantir a manutenção do nome de Cícero na terceira vice-presidência estadual. Foi um acerto de cúpula, firmado no Rio de Janeiro, com a bênção do chefe nacional do PRC, o senador Pinheiro Machado, considerado à época o homem mais poderoso da República e candidato declarado à sucessão de Hermes da Fonseca. Machado, que mantinha sua influência nacional à custa do apoio das oligarquias estaduais,providenciou em seu laboratório político o antídoto contra a derrocada de Accioly”. Na marra, Cícero ocupou uma das três vagas de vice-presidente doestado.

Pinheiro Machado X Ruy Barbosa

Sua influência no executivo cresceu em 1909, quando o vice Nilo Peçanha assumiu a presidência após a morte de Afonso Pena. Foi um período de conflitos e disputas. Ambos, no entanto, apoiaram a candidatura do marechal Hermes da Fonseca à Presidência da República contra o baiano Ruy Barbosa, em 1910.


Ruy Barbosa  – Fonte – Wikimedia Commons

Foi uma disputa desigual, que revelou a força do filho de Cruz Alta. Conhecido como o “Águia de Haia”, Ruy Barbosa era uma figura notável. Diplomata, jurista, jornalista, escritor, tradutor e espetacular orador, tinha tudo para ser eleito presidente não houvesse um Pinheiro Machado em seu caminho. Hermes recebeu 403 mil votos, enquanto Ruy mereceu 222 mil. Na época, essa diferença não era normal.

Quem estava na oposição recebia, no máximo, 20 mil votos. Na tribuna do Senado, as rusgas entre o Águia de Haia e o “quero-quero dos pampas”, apelido de Pinheiro Machado, eram exóticas e divertidas. Brigavam por causa do estouro do tempo das falas,trocavam ofensas infantis e se enfrentavam por causa até de conjugação verbal.Sempre que Machado atropelava o português em suas falas – como quando disse “Eu me defenderei enquanto vossa excelência se manter na tribuna” – Barbosa retrucava, professoral: “Perdão, enquanto eu me mantiver é o que o nobre senador quer dizer”.

Machado e Ruy Barbosa foram adversários notórios e permanentes. Tipo gato e cachorro, embora sempre unidos pela causa republicana. A briga, a propósito, é anterior à disputa eleitoral. Começou quando Barbosa, então ministro da Fazenda, exagerou na política de crédito em favor das elites regionais. A medida pressionou a dívida pública e gerou uma crise inflacionária. O presidente Campos Salles, quando assumiu, pediu ajuda de Machado para acalmar os descontentes com a nova política econômica de rédeas curtas.


Charge publicada pela revista O Gato Reprodução

Por essas e outras, o primeiro mandarim da república tornou-se uma figura legendária, influente e ao mesmo tempo alvo de todos os ódios e críticas. Ao assumir, o marechal Hermes da Fonseca achou que poderia livrar-se do padrinho político ao criar a política salvacionista, na qual por meio de intervenções militares cassava os governadores para nomear pessoas da sua confiança. Não deu certo. Recuou. A fraqueza do marechal, vale dizer, tinha também razões pessoais.

Em novembro de 1912, com a morte da primeira-dama, Orsina da Fonseca, Hermes passou a se mostrar alheio a questões políticas e administrativas. Apaixonado pela cantora e artista Nair de Tefé, com quem viria a se casar em 1913, encaminhou as atribuições do cargo a auxiliares diretos. O expediente burocrático ficou a cargo do mordomo oficial, Oscar Pires. Já o político caiu nas mãos de Machado. Um ano antes de passar a faixa presidencial para o mineiro Venceslau Brás, uma piada publicada pela revista O Gato resumiu e fez justiça ao poder do senador gaúcho. Na charge, Hermes da Fonseca diz ao sucessor: “Olha, Venceslau, o Pinheiro é tão bom amigo que chega a governar pela gente”.

MARY DEL PRIORE: ‘A FALTA DE PRESTÍGIO DA HISTÓRIA É HISTÓRICA NO BRASIL’

Image: Firefighters try to extinguish a fire at the National Museum of Brazil in Rio de Janeiro

Para historiadora, responsabilidade de incêndio no Museu Nacional é de toda a sociedade brasileira, que não valoriza sua memória

Fonte – http://port.pravda.ru/news/sociedade/05-09-2018/46236-mary_del_priore-0/

Fotos – Agências nacionais e internacionais.

A falta de interesse pela preservação da memória no Brasil, explícita no incêndio que atingiu o Museu Nacional na noite do domingo 2, é uma característica histórica e cultural da sociedade brasileira.

A analise é da historiadora, pesquisadora e professora Mary del Priore, que lista, entre tanto motivos, a falta de investimentos das autoridades públicas na manutenção e valorização do patrimônio, os maus professores de histórias que não transmitem a paixão sobre o passado para seus alunos, os pais que preferem levar seus filhos ao shopping e não a um museu.

A responsabilidade, diz a professora, é de toda a sociedade, que agora se sensibiliza ao ver um patrimônio depredado. “Todos nós temos que jogar as cinzas do Museu na nossa cabeça. Foi culpa nossa”, disse a Carta Capital nesta segunda-feira 3.

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“Nunca foi valorizado no Brasil o nosso passado, a nossa memória, a disciplina histórica. As faculdades de história, por exemplo, só começam no País no século XX. A falta de prestígio da história é histórica”, afirma.

O edifício que abriga o Museu Nacional e mais de 20 milhões de itens , agora carbonizados, foi palco de momentos cruciais na história do País. Para citar apenas dois, nele foi assinada a declaração da Independência do Brasil e, mais tarde, abrigou a reunião dos republicanos que definiram a primeira Constituição, de 1891. O lugar também guardam as histórias do dia-a-dia de dom João VI, Pedro I e Pedro II

Ainda que tamanho descaso esteja tão enraizada na cultura, Del Priore vê espaço para mudanças. Leia a entrevista a seguir.

Mary del Priore afirma que o descaso com a memória do País é cultural: Qual a dimensão do incêndio do Museu Nacional na sociedade?
Mary Del Priori: Venho batendo muito tempo nessa falta de total interesse pela preservação da memória, que não é uma característica do Rio, é do Brasil todo. A gente está cansado de saber que em Minas Gerais, por exemplo, destroem casarões do século XVIII para fazer estacionamento, fazer supermercado. Mas no Rio de Janeiro eu diria que isso é mais grave, porque obviamente temos uma política feita por canalhas, por ladrões. Se você imaginar que foi gasto fortunas para fazer o Museu do Amanhã quando havia necessidade de restaurar uma série de salas do Museu Nacional, aí você tem uma dimensão de que a preservação dos bens privados é sempre melhor do que dos públicos.

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Nós tivemos antecedentes: o incêndio do MAM [em 1978], que ficou na história; o incêndio da Capela Imperial, que não faz tanto tempo assim. Além disso, temos outros edifícios de patrimônio, como a Santa Casa de Misericórdia, que é um dos edifícios mais antigos da cidade e está totalmente abandonado. A primeira igreja positivista do Brasil, que está sem telhado… Enfim, é a história do descaso não só das autoridades que preferem meter a mão do bolso para roubar, mas sobretudo do cidadão que passa em frente a um monumento, vê o monumento pichado e não se sensibiliza; de roubarem o busto de bronze da praça e não se sensibilizar; de pais que levam os filhos para o shopping no final de semana em vez de fazer uma visita ao Museu. De professores de História – e falo como professora que eu sou – que não transmitem na sala de aula a paixão pela História, pelo passado, pela memória. Tudo isso faz um combustível bastante ruim. Não temos como alimentar a nossa paixão pelo passado.

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CC: Qual era a importância histórica do edifício que abrigava o Museu Nacional?
MP: O caso do Museu Nacional é dramático porque ele é um lugar de memória da história do Império brasileiro. Ele é dado como presente do dia 1º de janeiro de 1819 pelo comerciante Elias Antonio Lopes a dom João, que na época é regente. Mas ele não faz isso gratuitamente. Antonio Lopes, depois, vai receber uma série de títulos: se torna moço-fidalgo da Casa Real, alcaide-mor, também recebe dinheiro.

A partir daí esse espaço vai ter uma função importantíssima. É ali que dom João VI vai receber seus súditos, vai se aproximar de seus súditos brasileiros. Eles vão lá no beija-mão, pedir favores, conhecer aquele que depois será o futuro monarca quando ele ainda é regente. As primeiras transformações arquitetônicas vão sendo feitas também para o casamento do dom Pedro com a Leopoldina, que vai ter nove filhos. É o local onde ela morreu. Na janela desse palácio que dom Pedro vai olhar a casa da marquesa de Santos e vigiar sua amante. É nessa casa que ele vai mandar construir um chafariz enorme, que fosse visto da sala de jantar e também de seus aposentos.

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As maiores reformas são feitas em 1866 pelo dom Pedro II. Ele vai reformar os jardins e fazer uma alameda de sapucaia. Também vai repartir o lago em dois para dar um acesso mais imperial, fazendo uma estrada para os políticos que agora se reúnem com o imperador, na casa dele. É nesses jardins que brincaram a princesa Isabel e a princesa Leopoldina, no mesmo lugar que brincaram suas tias, a princesa Francisca, as princesas Paula e Januaria, catando conchas e fazendo, com cacos de louça, a ornamentação do chamado Jardins das Princesas.

Por tudo isso, é um espaço que não só tem muito da grande história – porque ali que vai ser assinada a declaração da Independência e depois, mais tarde, a reunião dos republicanos para definirem nossa primeira Constituição de 1891 -, mas também é o lugar da pequena história. Isso que é bacana.

Com o incêndio, também perdemos uma loucura de patrimônio. Inclusive o patrimônio que a Dona Tereza Cristina, quando casou com o imperador Dom Pedro II, trouxe que foram os famosos afrescos do Templo de Ísis, que são comentados até por Lord Byron em sua poesia.

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CCÉ possível identificar os responsáveis neste momento?
MP: Acho fácil a gente achar culpados. Espero realmente um laudo para poder dizer o que aconteceu. Dizer que a culpa é do governo federal e que a Cultura sangra no Brasil é fácil, porque não há dinheiro nem para a Saúde, nem para a Segurança. Para trazer dinheiro para a Cultura é preciso fazer reformas, e ninguém quer fazer reformas.

Atribuir [a culpa] só as autoridades é muito fácil. Eu conheço muito diretores de museus, todos eles se matam de trabalhar para conseguir verbas. Há um desinteresse profundo da sociedade civil, mesmo das pessoas que podem, e estou falando aqui nos empresários… Tirando a Fundação Roberto Marinho e o Carlos Lessa, quando presidiu o BNDES, a gente nunca viu dinheiro ser dado para patrimônio.

Nos países civilizados você pode contribuir para o museu com um centavo se você quiser para restauração de um quadro, para a restauração de uma sala. Aqui no Brasil falta a participação da comunidade, da vizinhança, das organizações não-governamentais e digo: dos professores, dos historiadores de todos nós, do cidadão comum.

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CC: A culpa é de todos?
MP: Eu acho. Todos nós temos que jogar as cinzas do Museu na nossa cabeça. Foi culpa nossa.

CC: O Museu está sob os cuidados da esfera federal
MP: O Ministério da Cultura não tem dinheiro e só terá dinheiro se forem feitas as reformas neste País. E antes da Cultura, vem a saúde dos brasileiros que é muito mais importante, obviamente também a questão da segurança. Para nós termos recursos do governo federal é preciso gastar…

CC: Ainda que não se saiba as causas que provocaram o incêndio, era um caso de fazer como o que foi feito no Museu do Ipiranga, em São Paulo? Fechar as portas para reforma?
MP: Sim. E até de chamar a comunidade para participar da restauração com doações, com movimentos. Sem dúvida, teria sido uma solução. A questão toda é que o Museu Nacional recebe uma infinidade. Ele tem toda parte de ciências naturais dentro do museu e ele tem milhares de pesquisadores que fazem tese em suas dependências.

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CC: Você fez críticas ao ensino de História na escolas. O que poderia ser feito para melhorar?
MP: O professor tem que transmitir compaixão à matéria que ele está lecionando. A História é uma matéria que necessita uma forma narrativa, um entusiasmo, passeios e visitas a museus e locais históricos. É preciso transmitir esse amor pela História aos alunos.

Eu digo sempre: o mau professor de história vai fazer um cidadão descomprometido, um cidadão inconsciente. É preciso que o professor de história tenha a consciência também do papel que ele tem na transmissão do conhecimento. Cabe a cada um ser criativo. Vamos inventar maneiras de transmitir o conhecimento histórico de forma séria, porém apaixonado.

CC: Acredita que o incêndio pode ser um divisor de águas nessas questões?
MP: Não acho que seja um divisor de águas. O brasileiro precisa ter mais consideração pelo seu passado, mais respeito pelo seu passado. Infelizmente a televisão transformam os personagens históricos em caricatura, isso também não ajuda. Mas eu acho que isso tem que vir realmente de baixo, não de cima. Porque só de cima e com dinheiro não vai resolver o problema, os museus vão continuar vazios. É preciso que as pessoas entendam que é indo ao museu que elas vão adquirir a cidadania, a memória, a história, o passado, valorizar o seu país. É muito importante que isso venha de baixo.

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CC: A que se deve essa desvalorização da memória no País?
MP: Sempre houve [essa desvalorização]. Nos anos 40, Gilberto Freyre e José Mariano fizeram uma campanha enorme para que houvesse a preservação da memória no momento em estava ocorrendo uma grande renovação em muitos bairros das grandes capitais brasileiras. Naquela ocasião começava-se a substituir bairros inteiros de casas e moradias antigas. Muitos bairros coloniais no Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram sendo transformados em bairros de cimento, em um edifício colado ao outro.

Eu, particularmente, acho que o brasileiro gosta do novo pelo novo. Eles querem sempre o novo. Então o velho tem que ser banido, tem que ser jogado fora, tem que ser destruído. Nunca foi valorizado no Brasil o nosso passado, a nossa memória, a disciplina histórica. As faculdades de história, por exemplo, só começam no País no século XX. A falta de prestígio da história é histórica.

CC: É um aspecto cultura?
MP: Sim, e econômico. O Brasil sempre foi um país paupérrimo e a essas de classe subalterna, entre ter uma casa antiga e que tivesse que ser preservada e dava muito trabalho, e uma casa nova, preferiam a última opção. A gente pode pensar nisso, no conforto, na chegada da água, da eletricidade e nessas transformações tecnológicas todas que fizeram com que essas pessoas que não tinham educação privilegiar o novo pelo novo.

CC: É possível mudar essa característica cultural do brasileiro?
MP: Todos nós somos criaturas de cultura, homens e mulheres, e a cultura é uma coisa transformável, não é fixa. Então eu acredito que é possível transformar com muita educação.

INCÊNDIO DO MUSEU NACIONAL NÃO É TRAGÉDIA, MAS FRUTO DE UM PROJETO DE PAÍS

Leonardo Sakamoto – https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2018/09/03/incendio-do-museu-nacional-nao-e-tragedia-mas-fruto-de-um-projeto-de-pais/

Fotos – theguardian.com, sputniknews.com, ccn.com, upi.com

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O incêndio que consumiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, não pode ser encarado como uma tragédia. Um foco de fogo que destruísse uma obra, mas fosse rapidamente debelado seria uma tragédia. A queima de uma instituição com 200 anos e um acervo de 20 milhões de itens, que não contava com estrutura adequada de prevenção a incêndios, não é um acidente, mas um empreendimento. Um projeto coletivo, pacientemente implementado ao longo do tempo por um Estado e uma sociedade que condenaram seu patrimônio histórico, natural, científico e cultural à inanição. O Brasil talvez acredite que uma instituição como essa diga respeito ao passado e não ao entendimento do presente e, portanto, à construção do futuro. Sua queima não é, consequentemente, apenas fruto das crises econômica e política que minguaram os repasses federais, mas faz parte de uma sistema que atua abertamente para que o país continue ignorante sobre si mesmo e suas possibilidades. Esse projeto coletivo não enxerga barreiras ideológicas e matizes políticos.

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Não começou neste governo (apesar dele ter se esforçado bastante nesse sentido) e nem irá terminar com ele (a PEC do Teto dos Gastos limitou o investimento em áreas como cultura por 20 anos). Pois não se trata apenas de recursos financeiros e vontade. Um fogo que consome um museu inteiro é paradigmático da ausência de um projeto nacional que veja esse patrimônio como subsídio fundamental para a construção de um país melhor. E que, portanto, precisaria ser protegido a qualquer custo. Se assim fosse, haveria recursos para monitorar, conservar e estudar nosso patrimônio da mesma forma que existe para garantir o funcionamento dos mais diversos palácios que hospedam os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pelo país. Até porque representantes políticos vêm e vão, mas nossa história fica. O povo seria o primeiro a ocupar palácios para pedir recursos a museus. Mas parte da população não se sente proprietária e corresponsável pela coisa pública pelos mais diferentes motivos. Empurrada para a franja da cidadania, uma parcela aprendeu que o patrimônio nacional não lhe diz respeito – uma falsa conclusão incutida em suas cabeças cuja reversão depende de um trabalho longo e demorado. 

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Em outro extremo, há quem conheça bem os museus na Europa e nos Estados Unidos, mas conta nos dedos de uma mão o número de instituições brasileiras que já visitou por falta de interesse ou preconceito. Há também os que celebram os estádios superfaturados, mas não perdem o sono se uma fração dos desvios teria trazido alívio à cultura. Desta vez, esse projeto coletivo destruiu o museu mais antigo do país. Mas, em maio de 2010, atingiu o maior e mais importante acervo de espécies de cobras tropicais do, com mais de um século de existência, quando o Instituto Butantan, em São Paulo, pegou fogo. A coleção contava com mais de 80 mil espécimes, além de aranhas e outros animais, muitos dos quais nem haviam sido registrados ainda. Um patrimônio que poderia trazer respostas à biologia e à medicina. Quando a notícia de 2010 correu o mundo, cientistas soaram o alarme – que hoje, assume-se, tinha caráter profético: ”tragédias” semelhantes aconteceriam em outras instituições dada a precariedade da manutenção desses espaços. Hoje, da mesma forma, sem medo de errar, podemos repetir: isso vai voltar a acontecer. 

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A história não se repete mais como farsa, mas como escárnio. Vivemos um momento em que pessoas, sem o mínimo pudor, celebram nas redes sociais a queima do acervo, pois ele contaria uma história mentirosa, que não se encaixa a certas visões de mundo. Claro que são apenas uma (barulhenta) minoria, mas a burrice violenta sempre assusta. Tal qual as pessoas que comemoraram as montanhas de livros queimadas nas praças de diversas cidades da Alemanha nazista em 10 de maio de 1933. Lembrando que burrice não é característica de quem separa sujeito e predicado por vírgula ou não sabe calcular uma raiz quadrada, mas de quem menospreza o conhecimento, chegando a odiar quem o detém ou quem busca seu aprendizado. O burro é aquele que tenta destruir o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ele próprio. Essas pessoas têm sido essenciais para esse projeto coletivo que destrói o passado para construir um futuro à sua imagem e semelhança. Nesse contexto, é irônico que o reluzente Museu do Amanhã tenha se tornado o centro das atenções da capital carioca – apesar de sua falta de importância relativa, enquanto o guardião da memória brasileira permanecia esquecido na Quinta da Boa Vista.

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Talvez o Museu Nacional, ao se deparar com o momento atual do país, em que o conhecimento científico parece valer menos que achismos e opiniões sem embasamento e no qual fatos históricos são tratados como ”notícias falsas” diante das certezas anônimas e absolutas das redes sociais, tenha simplesmente desistido de resistir. E queimado mais rápido, por conta do desgosto. O problema não resolvido é que, quando alheio à história de sua própria caminhada, o povo não é povo, mas gado. E, como gado, pode ser tocado por qualquer um. Ver esse prédio em chamas pela TV traz a sensação de que somos um amontoado de mugidos difusos que não tem ideia para onde está indo. Tampouco faz questão de saber.

MORRE O XERIFE MAURÍLIO PINTO DE MEDEIROS

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O ex-subsecretário de Segurança Pública do Rio Grande do Norte, delegado aposentado da Polícia Civil, Maurílio Pinto de Medeiros – Fonte – http://aluisiodutra.blogspot.com.br/2012/01/fotos-antigas-do-bumba.html

Rostand Medeiros – Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Faleceu ontem, sábado, 19 de maio de 2018, por volta das nove e meia da noite, aos 76 anos de idade, o ex-subsecretário de Segurança Pública do Rio Grande do Norte, delegado aposentado da Polícia Civil, Maurílio Pinto de Medeiros.

Maurílio estava internado, desde o dia 22 de março, por complicações do diabetes na UTI da Casa de Saúde São Lucas.

Segundo declarou a imprensa natalense Ana Cláudia Medeiros, filha mais velha de Maurílio, desde que seu pai se aposentou, em 2011, ele vinha mantendo uma rotina tranquila. “Devido à limitação de mobilidade, por conta do AVC, que comprometeu os movimentos do lado esquerdo, meu pai preferia ficar em casa, curtindo os filhos, netos e a bisneta. Sempre estava lendo alguma coisa em seu escritório, recebendo amigos e se atualizando nos fatos cotidianos. Nunca deixou de ajudar a quem lhe pedisse um favor”.

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Arquivo Tok de História

O delegado Maurílio Pinto de Medeiros seguramente ficará como a maior referência da Polícia Civil do Rio Grande do Norte. Quando era criança sonhava em ser aviador e chegou a servir Força Aérea Brasileira, mas logo cedo estava na luta contra a bandidagem, onde começou sua carreira policial em 1964, como motorista do seu pai, o acariense Bento Manoel de Medeiros, coronel da Polícia Militar.

Passou no vestibular de jornalismo em 1971, onde se formou em 1975, mas nunca atuou atrás das câmeras e microfones, só diante destes instrumentos onde realizou milhares de entrevistas ao longo de sua carreira.

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Arquivo Tok de História

Dentre as diversas funções que exerceu, destaca-se a de subsecretário e secretário adjunto de Segurança Pública do Estado. Após participar de um curso no estado do Texas, Estados Unidos, Maurílio Pinto recebeu o título de Xerife e por este nome passou a ser chamado pelos colegas de trabalho e pela imprensa especializada.

Maurilio dedicou 47 anos à Polícia Civil, onde deixa para seus pares e para a sociedade potiguar uma memória e um legado sempre marcado pelo êxito no seu trabalho de investigar e elucidar crimes diversos, desde assassinatos a sequestros. Comandou a Delegacia Especializada em Capturas e Polinter (DECAP) e também coordenou a Central de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Norte.

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Maurílio Pinto de Medeiros (de camisa clara, no centro da foto), em uma fazenda na zona rural entre as cidades de São Miguel (RN) e Pereiro (CE) em 1983, nas ações policiais contra pistoleiros do “Sindicato do Crime” na região.

Participou de ações que ficaram célebres na imprensa potiguar, levando à prisão, inúmeros criminosos de alta periculosidade. Como, por exemplo, em 1982, nas investigações do assassinato do médico Ovídio Fernandes, que movimentou intensamente a crônica policial potiguar. No ano seguinte atuou intensamente nas prisões de pistoleiros do “Sindicato do Crime”, na região entre as cidades de São Miguel (RN) e Pereiro (CE), cujo comando foi atribuído ao fazendeiro Mardônio Diógenes.

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Recebendo informações durante a ação contra os pistoleiros em 1983.

Inclusive em 2011 declarou aos jornalistas Thyago Macedo e Sérgio Costa que em sua opinião o criminoso mais perigoso que atuou no Rio Grande do Norte foi o pistoleiro cearense chamado Edmar Nunes Leitão, conhecido por “Antônio Letreiro”, ou “Tonho do Letreiro”, que tinha esse apelido porque atirava tão bem que diziam que ele escrevia o nome à bala. Além dele, Maurílio Pinto afirmou aos dois jornalistas que o pistoleiro Idelfonso Maia Cunha, o “Mainha”, oriundo da região Oeste do Estado, era igualmente perigoso. Diziam que a esse último tinham sido atribuídas mais de 100 mortes em todo Nordeste e chegou a ser capa da Revista IstoÉ.

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Diário de Natal, terça-feira, 23 de agosto de 1983

O jornal AgoraRN informou que em 2001, o ex-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte, Roberto de Oliveira Monte, já falecido, acusou Maurílio Pinto de chefiar um grupo de extermínio responsável por dezenas de mortes, entre as quais a do advogado Gilson Nogueira Carvalho, morto com 17 tiros no dia 20 de outubro de 2001, após denunciar assassinatos e torturas cometidas supostamente por agentes policiais.

Ainda segundo o  jornal AgoraRN,  a partir daí o Ministério Público criou uma comissão de investigação independente que, após ouvir mais de 100 testemunhas, teria concluído que “a Polícia Civil e funcionários da Secretaria de Segurança Pública haviam cometido os crimes investigados” e classificou os acusados como integrantes de um grupo de extermínio conhecido como “Meninos de Ouro”, comandado por Maurílio, na época secretário-adjunto de Segurança Pública.

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Declaração de Maurílio Pinto de Medeiros concedida a jornalistas natalenses em 1984 e infelizmente uma problemática bem atual.

Em 1997, o então ministro da justiça, Nelson Jobim, pediu ao governador Garibaldi Alves Filho, a exoneração de Maurílio da chefia da Polícia Civil. A solicitação foi atendida pelo chefe do Executivo.

O delegado admitiu alguns erros – “mesmo sem maldade” -, fazer escutas telefônicas sem autorização judicial, mas negou veementemente comandar o suposto grupo de extermínio, conhecido popularmente como “Mão Branca”.

Em 2014, ele foi inocentado da denúncia de improbidade administrativa em consequência dos grampos telefônicos.

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Afirmou sobre o caso que tinha a consciência tranquila, de ter agido no estrito cumprimento do dever, com o objetivo de ajudar a sociedade e que nunca levou nada para o lado pessoal.

Maurílio Pinto de Medeiros deixa mulher (Clarissa) e quatro filhos (Ana Cláudia, Adriana, Maurílio Júnior e Fabiana).

Fontes – http://agorarn.com.br/chamada/morre-aos-76-anos-o-delegado-maurilio-pinto-de-medeiros/

http://portalbo.com/materia/Maurilio-Pinto-sei-que-cometi-erros-mas-foram-sem-maldades/imprimir

A DESCOBERTA QUE PÕE FIM AO MISTÉRIO DE U-3523, O SUBMARINO LIGADO À FUGA DE LÍDERES NAZISTAS PARA A AMÉRICA DO SUL NO FINAL DA II GUERRA

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Provavelmente a última aparição pública de Adolf Hitler, no dia 20 de março, onde ele entregou medalhas aos membros da Juventude Hitlerista – Fonte – http://ww2today.com/20-april-1945-hitlers-birthday-as-red-army-guns-hit-berlin

Fonte – http://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-43825374?ocid=socialflow_facebook

A verdade sempre foi que Adolf Hitler cometeu suicídio, atirando em si mesmo no seu bunker nazista em Berlim, no dia 30 de abril de 1945.

Mas ao longo de décadas várias teorias apontam que ele morreu como um ancião e em diferentes partes do planeta.

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Portão de Brandemburgo, abril de 1945, na Batalha de Berlim – Fonte – https://owlcation.com/humanities/Berlin-April-1945-The-Cauldron

Muitas dessas declarações informais indicavam que Hitler e vários de seus colaboradores do Terceiro Reich vieram para a América Latina, especialmente na parte sul do continente, onde conseguiram passar incógnitos e viver o resto de seus dias em total tranquilidade.

E eles fizeram isso depois de cruzar o Oceano Atlântico e fugir dos extensos e rígidos controles das forças aliados graças a um poderoso submarino: o U-3523.

No entanto, um dos pilares dessa teoria desmoronou recentemente: em abril de 2018 o Museu da Guerra da Dinamarca, localizado em Copenhague, encontrou o famoso submarino nazista nas águas territoriais daquele país, a 123 metros de profundidade.

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O submarino foi encontrado a 123 metros de profundidade no Estreito de Skagerrak, no norte da Dinamarca.

“O museu localizou os restos do submarino alemão U-3523, que foi afundado no Estreito de Skagerrak por uma aeronave B-24 Liberator britânico (Esquadrão 226) em 6 de maio de 1945, as 18:39 horas”, diz um documento enviado pelo Museu da Guerra da Dinamarca à BBC World.

“Devido à sua capacidade de permanecer submerso por muito tempo, o U-3523 alimentou rumores de que ele havia sido o meio de transporte utilizado pela elite nazista fugir para a América do Sul”, acrescenta.

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Este é um modelo semelhante ao que foi encontrado na Dinamarca e que foi pensado para ter sido o meio de transporte com o qual os líderes nazistas fugiram para a América Latina.

O que é certo é que alguns personagens destacados entre os nazistas realmente fugiram para a América do Sul, como Adolf Eichmann, que terminou na Argentina, ou Josef Mengele, que atingiu a costa do Brasil.

Mas o submarino encontrado permite derrubar muitas versões e reescrever a história de uma parte do século XX.

O Achado

U-3523 era um submarino do Tipo XXI, considerado por muitos especialistas como o mais moderno da Kriegsmarine, a marinha nazista, e um dos últimos modelos a ser construído. “Este submarino foi projetado, diferentemente de seus antecessores, para permanecer realmente submerso por um longo tempo, o que significa que ele poderia viajar tranquilamente para a América do Sul”, diz o documento.

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O U-3008, capturado pelos ingleses após o fim do conflito – Fonte – https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6d/German_submarine_U_3008.jpg

No entanto, apesar do fato de 118 submarinos Tipo XXI haver sido construídos, apenas dois entraram em serviço – um deles U-3523, que era comandado pelo Oberleutnant zur See Willi Müller.

Embora houvesse indícios claros de que a Real Força Aérea Britânica havia afundado, a falta de evidências físicas alimentou o mistério e as teorias sobre a fuga nazista para a América do Sul.

Os pesquisadores do museu indicaram que estão trabalhando na busca pelos naufrágios deixados pela Segunda Guerra Mundial e que estão nas águas perto da Dinamarca.

“A descoberta foi feita enquanto estávamos escaneando uma área perto da cidade de Skagen, no norte da Dinamarca”, explicou o representante do Museu.

Como identificaram esse submarino?

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Este é o U-2540, o único modelo Tipo XXI sobrevivente.

Além dos dados históricos que indicavam que o U-3523 havia sido afundado naquela área, havia um modelo idêntico ainda preservado para ser comparado com os restos encontrados. O submarino sobrevivente do Tipo XXI da frota nazista se encontra na cidade alemã de Bremerhaven, no museu marítimo local.

“O engraçado é que, ao contrário de outros achados, os restos do U-3523 estão bem destacados no fundo do mar, o que tornou mais fácil identificá-lo.”

Por enquanto os restos do U-3523 permanecerão no fundo do mar até que uma expedição seja organizada para remover seus restos. Além disso todos os 58 tripulantes da nave pereceram neste local.

“É improvável que seja em breve devido ao fato de que está em uma grande profundidade e em uma área de difícil acesso”, concluiu o representante do museu.

NOTA DO TOK DE HISTÓRIA –

Um submarino do Tipo XXI, denominado U-2361, foi comandado por Heinz von Hennig, que em 1957 veio para o Brasil, conforme foi relatado por este blog no texto “O COMANDANTE DE UM SUBMARINO ALEMÃO DA SEGUNDA GUERRA QUE VIVEU NO BRASIL”.

Para conhecer essa história é só clicar no link abaixo.

https://tokdehistoria.com.br/2017/04/20/o-comandante-de-um-submarino-alemao-da-segunda-guerra-que-viveu-no-brasil/

COMO ERA A VIDA NA ARMADA DE PEDRO ÁLVARES CABRAL?

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Nada de glamour: marinheiros viviam na imundície, tinham pouca comida e dormiam ao relento.

Por Diogo Antonio Rodriguez

Fonte – https://mundoestranho.abril.com.br/historia/como-era-a-vida-na-armada-de-pedro-alvares-cabral/

FROTA DE RESPEITO

Em 9 de março de 1500, 13 navios da expedição de Pedro Álvares Cabral deixaram Lisboa, levando 1,5 mil homens. Eram três caravelas (naves menores e ágeis, com até 50 toneladas) e dez naus (com até 250 toneladas e capacidade para 200 pessoas). Além do tamanho, a principal diferença era o formato das velas. A caravela foi o trunfo que fez de Portugal uma potência marítima até o século 18. Ela era leve, mudava de direção com agilidade, navegava rápido contra o vento e chegava mais perto da costa do que navios maiores. Outro fator importante para o domínio naval português foi a utilização de caravelas armadas com canhões.

1) JOGO DA VIDA

Entediados pela viagem (cerca de um mês e meio até o Brasil), os marinheiros criavam passatempos. Os preferidos eram apostas, como jogos de cartas e dados. Os padres, responsáveis por manter a moral a bordo, monitoravam a jogatina, celebravam missas e cuidavam dos doentes, já que não havia médicos. Os barbeiros, que aparavam o cabelo e a barba dos marujos, auxiliavam os padres no atendimento aos enfermos.

2) CAMA PRA QUÊ?

Apenas os mais graduados tinham o luxo de um quarto e uma cama. Os marinheiros dormiam sob o castelo da popa, a estrutura mais alta do navio. Como não cabia muita gente ali, o jeito era dormir no convés, ao relento, em frágeis colchões de palha. Os porões eram reservados para guardar água, mantimentos e munição.

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Imagem Alexandre Jubran, via Mundo Estranho

3) DIETA FORÇADA

O cardápio era de matar. O principal item era biscoito água e sal duro (600 g diários). A ração ainda incluía 1,5 litro de água e 1,5 litro de vinho por dia e 15 kg de carne por mês. Calcula-se que seriam necessárias 5 mil calorias por dia nessas condições, mas a alimentação nos navios só fornecia 3,5 mil.

4) APOCALIPSE NAU

A sujeira reinava. Como não havia banheiros, as necessidades eram feitas no mar ou nos porões. Ratos infestavam os navios e transmitiam doenças. A falta de banho também contribuía para tornar a higiene a bordo calamitosa. Não à toa, das 1,5 mil pessoas que embarcaram, apenas 500 voltaram vivas a Portugal.

5) SAÚDE É O QUE INTERESSA

As condições de alimentação e higiene eram precárias e nocivas. A falta de vitamina C causava o escorbuto, doença que provoca perda de dentes, dificuldades de cicatrização, anemia e hemorragias. O contato com bichos a bordo causava diarreia e piolhos. Os males mais frequentes eram enjoos e vômitos. O castigo para quem não cumpria as regras nos navios era ficar no porão, tirando a água que entrava pelo fundo da embarcação.

6) LONGE DE TUDO

A viagem de Cabral foi a primeira a usar sistematicamente o astrolábio. Parecido com uma pequena roda, o aparelho mede a altura do Sol ao meio-dia, a das estrelas à noite e fornece a latitude (posição no eixo norte-sul da Terra). Por outro lado, a medição da longitude (posição no eixo leste-oeste) nunca foi precisa.

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Imagem Alexandre Jubran via Mundo Estranho

7) SOY CAPITÁN

Cabral era o capitão-mor da armada, mas cada navio tinha um comandante, que não precisava ser expert em navegação. Os capitães eram pessoas próximas da corte portuguesa e do rei, dom Manuel. A função era cerimonial e diplomática. Quem conduzia os navios eram os pilotos, que dominavam mapas, instrumentos de navegação e ventos. Além de marinheiros e nobres, havia escrivães, registrando tudo. O mais famoso, Pero Vaz de Caminha, relatou ao rei dom Manuel a descoberta do Brasil.

ORDEM NO CONVÉS

A hierarquia nos navios de Cabral

CAPITÃO – Autoridade máxima da embarcação.
PILOTO – Responsável de fato pela navegação. Sabia ler a bússola, as estrelas, os mapas náuticos e o astrolábio.
MESTRE – Dava ordens para marinheiros e grumetes e comandava o funcionamento geral da embarcação.
SOLDADO – Cuidava de armas e munição.
MARINHEIRO – Operário do mar. Fazia tudo no navio, de limpar a subir velas.
GRUMETE – Cumpria funções que os marinheiros não curtiam, como lavar o convés, limpar dejetos e costurar as velas.

FONTES: Sites Projeto Memória, Instituto Camões e VEJA na História, Centro de História Além-Mar (Universidade Nova de Lisboa) e livro Brasil: Terra à Vista, de Eduardo Bueno.

 

LONDRES VAI REVER EXPOSIÇÃO USADA COMO “ARMA” DIPLOMÁTICA PELO BRASIL EM PLENA SEGUNDA GUERRA

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A Rainha da Inglaterra , mãe da atual soberana daquela nação, visitando a exposição de arte brasileira – Fonte – http://theartofdiplomacy.com/about/

No meio da Segunda Guerra Mundial, o Brasil mandou de navio 168 pinturas e desenhos de 70 artistas modernistas, além de 162 fotografias para serem exibidas na Royal Academy, uma das mais tradicionais e conservadoras do Reino Unido.

Fonte – http://www.bbc.com/portuguese/geral-42010289

Aberta em 22 de novembro de 1944 na capital inglesa, a exposição exibiu trabalhos de artistas renomados como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Iberê Camargo, Cândido Portinari e Roberto Burle Marx. E surpreendeu os britânicos pelo estilo sofisticado das obras.

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Agora, Londres vai poder rever parte desse acervo que, em 1944, atraiu cerca de 100 mil pessoas – um recorde até mesmo para os padrões da época.

A Embaixada do Brasil em Londres vai anunciar oficialmente esta semana que está restaurando parte do acervo da exposição de 1944 e que pretende exibi-lo a partir de abril do próximo ano. Dos 168 quadros que vieram do Brasil, 25 estão em museus e galerias de arte do Reino Unido e a maioria jamais foi pendurada numa parede novamente.

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A exposição de 1944, em plena guerra, foi a primeira coletiva de arte brasileira na Europa | Foto: Divulgação

‘Soft power’

Nos anos 1940, no entanto, a exposição foi vista por ingleses e brasileiros como uma ferramenta diplomática.

À época, o diplomata britânico Victor Perowne, que era responsável por América Latina, escreveu num documento oficial que se tratava de um assunto “mais político que artístico”, conforme ofício dele encaminhado ao governo do Reino Unido.

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“Lucy with Flower”, de Lasar Segall, foi a escolhida a melhor obra da exposição de 1944 e volta a ser exibida em Londres no ano que vem | Foto: Divulgação/Scottish National Gallery of Modern Art

Do lado inglês, foi preciso intervenção política para convencer a Royal Academy, que inicialmente havia rejeitado as obras, a abrir três salas para a exibição. Do lado brasileiro, todos os artistas doaram suas obras, e se comprometeram a doar o dinheiro das possíveis vendas para a Força Aérea Britânica.

“A diplomacia cultural é instrumento da política externa”, explica Eduardo dos Santos embaixador brasileiro no Reino Unido. Ele diz que, no contexto da Segunda Guerra Mundial, a exposição serviu para estreitar as relações entre brasileiros e britânicos, além de ter sido uma forma de usar a cultura para fortalecer a imagem do Brasil no exterior.

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“Na época isso tinha todos os elementos de soft power.” A expressão foi cunhada pelo cientista político americano Joseph Nye em 2004 para se referir ao potencial de um país de influenciar outros por meio de seu poder de inspiração e atração, em contraposição ao poder “duro”, ou militar.

Se, no passado, a exposição foi vista como uma das primeiros estratégias de soft power de fôlego do Brasil na Europa, atualmente o país enfrenta dificuldades para impor seu poder de convencimento.

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Ministro Osvaldo Aranha na exposição de Londres – Fonte – http://theartofdiplomacy.com/about/

Relatório anual sobre o tema divulgado este ano pela consultoria britânica Portland mostra que o Brasil despencou no ranking internacional que mede soft power. O país é agora o 29º colocado no ranking, penúltimo da lista de 30 países.

Diante desse cenário, Eduardo Santos afirma que a volta da exposição “é um evento de importância histórica, cultural e diplomática em termos da relação Brasil-Reino Unido”.

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Embaixada do Brasil em Londres está restaurando 15 das 25 obras que serão expostas em abril de 2018 | Foto: Divulgação/Brighton and Hove Museums and Art Galleries

“É um passo a mais na afirmação dos nossos valores e do nosso estilo de diplomacia”, afirma.

O embaixador teve a oportunidade de contar um pouco da história do evento num jantar em abril com a rainha da Inglaterra, Elizabeth II, que, segundo ele, se interessou pela nova exibição. “Adoraríamos que ela fosse, mas não há nada confirmado nesse sentido.”

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Fonte – http://theartofdiplomacy.com/about/

A exposição de 1944 recebeu a visita da rainha Elizabeth (1900-2002), conhecida como rainha-mãe, ainda na primeira semana. Além de Londres, a montagem passou por outras sete cidades britânicas: Norwich, Reading, Manchester, Bristol, Glasgow, Edimburgo e Bath.

Foram vendidas 80 obras – 47 delas na primeira noite – e o dinheiro arrecadado foi, de fato, doado para a Força Aérea britânica, que combatia o exército de Hitler.

Sofisticação

Apesar do sucesso, especialistas dizem que a maioria das obras contrariaram as expectativas do público britânico que, pelas reações, esperavam algo “menos europeu”.

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Das 168 obras expostas em 1944, 25 foram localizadas em galerias e museus do Reino Unido | Foto: Divulgação/Plymouth Museums and Galleries

Para Adrian Locke, curador da nova exposição, o Reino Unido não estava aberto à ideia de que o Brasil poderia ser “uma nação sofisticada e culturalmente progressista”.

“Mas os brasileiros mostraram, de um modo geral, uma arte que fugia dos estereótipos e da sensualidade”, explica o chefe do setor cultural da Embaixada do Brasil em Londres e pesquisador do Brazil Institute, do King’s College London, Hayle Gadelha.

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É importante ressaltar que em novembro de 1944 Londres era um alvo dos foguetes V-2, cujo primeiro chegou a capital da Inglaterra no dia 2 de setembro daquele ano – Fonte – http://ww2today.com

Coube a ele fazer um trabalho de detetive para rastrear onde estavam as obras. Localizou metade delas, sendo que 25 estão em museus e galerias de arte do Reino Unido que cederam os quadros para a nova montagem, marcada para o dia 6 de abril.

Para Gadelha, que transformou o impacto da exibição de 1944 em tese de doutorado, a exposição foi um movimento diplomático que tinha, como pano de fundo, a busca do Brasil de se colocar como potência global a partir cultura. Mas acabou sendo uma iniciativa isolada.

“Houve uma descontinuidade, e algo do tipo demorou muito para se repetir”, explica.

1941 – O ATAQUE DE UM AVIÃO NAZISTA AO CARGUEIRO TAUBATÉ E O PRIMEIRO POTIGUAR A TESTEMUNHAR O HORROR DA SEGUNDA GUERRA

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Rara foto da Historic Images, do Ebay, mostrando o Taubaté danificado dia 22 de fevereiro de 1941. Foto provavelmente batida pelo hidroavião inglês que deu apoio ao navio brasileiro.

Rostand Medeiros – Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

Já faz muito tempo que a terra potiguar é um lugar complicado para quem nasceu por aqui sem um sobrenome familiar nobre, com a coloração mais escura na pele e principalmente sem dinheiro no bolso. Por isso era bem normal, na época em que o transporte marítimo era mais utilizado, que muitos jovens das camadas mais humildes de nossa população se concentrassem no Cais da Tavares de Lira. Local importante de Natal, ali atracavam os antigos navios mistos de passageiros e cargas conhecidos como paquetes, principalmente das empresas Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro e Companhia de Navegação Nacional. Estes jovens então tentavam ganhar alguns trocados carregando malas, transportando mercadorias, ou servindo como os primeiros Guias de Turismo da capital potiguar. Além do mais, está no ponto de embarque e desembarque mais importante da nossa cidade, era onde poderia surgir o que para muitos era uma verdadeira oportunidade de ouro – Se tornar um trabalhador embarcado em uma das naves que aqui passavam. Além de, obviamente conhecer o mundo, estes jovens tentavam conseguir novas opções longe desse belo lugar cheio de racismos e preconceitos.   

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Cais da Tavares de Lira, no bairro da Ribeira, em Natal. Uma provinciana capital do Nordeste do Brasil.

Mas para quem embarcava vindo de um porto nordestino, com poucos recursos e instrução quase zero, sobrava geralmente os locais mais sujos e escuros da embarcação, onde o trabalho principal era ser foguista. Como nessa época a maioria destes barcos não tinha motor a diesel, o foguista era aquele que colocava carvão nas caldeiras a vapor, para assim conseguir energia suficiente para o deslocamento do navio. Uma função importante, mas certamente uma das mais desprezadas.

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Porto de Natal no início do Século XX.

Não sei se João Lins Filho foi um dos que ficavam no Cais da Tavares de Lira batalhando uma vaga em alguns destes barcos, mas sei que era potiguar e que ele era um dos 58 tripulantes listados a bordo do navio Taubaté, para uma viagem a portos na África e no perigosíssimo Mar Mediterrâneo de 1940![1]

Internamento

O Taubaté era uma nave velha, construída em 1905 pelo estaleiro alemão Bremer Vulkan AG, da cidade de Bremen. Recebeu inicialmente o nome de Franken, que batizou toda uma classe de nove navios cargueiros e esta nave pertenceu inicialmente a empresa de navegação Norddeutscher Lloyd. Estes navios percorriam principalmente as rotas entre a Alemanha e a Austrália, além da América do Sul.  

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O Hessen, navio cargueiro alemão da classe Franken, a mesma do Taubaté.

Tanto o Franken como seus navios irmãos eram equipados com um motor a vapor de 3.200 HP, que lhe proporcionavam a velocidade máxima de 11,5 nós (cerca de 21 quilômetros por hora), possuíam em média 130 metros de comprimento e 16 metros de largura, deslocando 5.055 toneladas.

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Propaganda da Norddeutscher Lloyd no Brasil em 1911, mostrando que o Franken, futuro Taubaté, já frequentava o porto do Rio de Janeiro antes da eclosão da Primeira Guerra.

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial quase todos esses barcos foram capturados pelos Aliados, ou se internaram em portos neutros. O Franken, sob o comando do capitão H. Lindrob buscou o porto do Rio de Janeiro procedente da Austrália, transportando minério destinado ao porto de Antuérpia, Holanda [2]. Ele era um dos 49 navios espalhados em dez portos brasileiros, que aqui estavam em sistema de internamento[3].

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Com a deterioração das relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha os navios desta nação em nossos portos foram confiscados pelo nosso governo, sendo rebatizados e entregues a companhias de navegação nacionais. O Franken recebeu a denominação de Taubaté, e ficou sob a responsabilidade da empresa Lloyd Brasileiro. Logo estava navegando com uma carga de café para a Índia[4]. Desde 1917 este navio vinha ostentando a nossa bandeira verde e amarela e cumprindo o seu papel de transportar cargas pelos mares[5].

Navegando Para Onde Os Alemães Estão Combatendo!

No final do ano de 1940 o Taubaté era comandado pelo experiente capitão de longo curso Mario Fonseca Tinoco, um homem que possuía uma longa e respeitável carreira, mas talvez pelos seus posicionamentos políticos e um problema ocorrido quando estava no comando de um dos barcos do Lloyd Brasileiro, quase sempre foi designado para comandar navios velhos e pequenos.

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Capitão de longo curso Mario Fonseca Tinoco.

Mesmo assim o capitão Tinoco sabia conduzir seus comandados e seus barcos de maneira correta. E ele precisava exercer bem sua função em 1940, pois naquele tumultuoso período inicial da Segunda Guerra Mundial, quem estava a bordo do Taubaté e de outros navios sem dúvida realizava um trabalho bem arriscado[6].

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Outro navio irmão do Taubaté, o Westfalen – Fonte – passengersinhistory.sa.gov.au

E em novembro daquele ano o velho navio foi contratado por uma empresa exportadora do Rio de Janeiro para levar uma carga de 3.000 toneladas de café, acondicionadas em 110.000 sacas, até a beligerante área do Mar Mediterrâneo [7]. Esta carga foi anteriormente carregada no porto de Santos e eles partiram do porto do Rio em 14 de novembro. Como medida de precaução/ foram pintadas duas grandes bandeiras brasileiras nos costados do Taubaté para identificar a nação a qual a nave pertencia[8].

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Enquanto o navio brasileiro seguia sua viagem, os combates da Segunda Guerra cresciam em violência em várias partes do mundo.

Na Europa a Inglaterra ainda se defendia dos ataques dos aviões alemães na Batalha da Inglaterra e, apesar de sofrerem bombardeios em suas cidades principais, já haviam mostrado aos nazistas que pelo ar eles não conseguiram dobrar o Império e nem a intrépida RAF. No Extremo Oriente, antes do ataque a base naval americana de Pearl Harbor, os japoneses continuavam sua luta para aniquilar os chineses. Na Grécia os italianos sofriam para derrubar a resistência do exército grego e em dezembro de 1940 pediam ajuda aos alemães. No norte da África os italianos também viam sofrendo sistemáticas derrotas para os britânicos, principalmente após o início da Operação Compass, que objetivava a recuperação do oeste do Egito aos italianos e a captura da Cirenaica, uma possessão italiana no norte da África, na atual Líbia.

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Benito Mussolini e seu grande aliado.

Em janeiro de 1941 a ofensiva das forças Britânicas e da Commonwealth nesta região obteve muito sucesso e estes se aproximavam cada vez mais da cidade Líbia de Tobruk. É quando o ditador Benito Mussolini pede socorro a Adolf Hitler para salvar suas tropas e sua honra e o alemão concorda em fornecer ajuda. Mas antes mesmo que as tropas germânicas do chamado Afrika Korps ponham suas botas na África, comandados pelo competente general Erwin Rommel, a aviação militar alemã, a Luftwaffe, já está com suas asas sobre o Mar Mediterrâneo.

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JU 88 da X. Fliegerkorps – Fonte – worldwarphotos.info

Entre janeiro e fevereiro de 1941 a Luftflotte 2, uma das principais divisões da Luftwaffe, sob o comando do marechal Albert Kesselring, recebe ordens para se deslocar a sua X. Fliegerkorps (X. Fl. Kps.) da gélida Noruega até a caliente Itália. Este era um formidável corpo aéreo com mais de 250 aviões de combate de vários modelos e divididos em doze unidades aéreas.

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O encouraçado alemão KMS Gneisenau, sobrevoado por um Heinkel He 111.

Durante esses dois meses esse grande grupo de aviação vai utilizar as bases italianas de Catania, Comisso, Palermo, Trapani e Gela, todas localizadas na Sicília[9]. A ideia de Albert Kesselring de posicionar a X. Fliegerkorps nesta área era reprimir a interferência da Marinha Britânica, a Royal Navy, nas rotas de abastecimento marítimo para a Península Italiana e reduzir a capacidade estratégica da ilha de Malta como base militar.

E logo os aviadores alemães começam o seu “show” pelo Mediterrâneo![10]

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O porta aviões inglês HMS Illustrious sob ataque da Luftwaffe em 10 de janeiro de 1941 – Fonte – http://ww2today.com

Em 10 de janeiro de 1941 o porta-aviões inglês HMS Illustrious, que se dirige para a ilha de Malta, é atacado por bombardeiros de mergulho alemães Junkers JU 87 Stukas vindos da base de Trapani e fica seriamente avariado[11]. No outro dia, no início da tarde, doze Stukas afundam o cruzador HMS Southampton[12]. Esses ataques deixam claro que a Luftwaffe tem o comando do ar sobre o Mediterrâneo. Eles também apontam para a verdadeira agonia que a ilha de Malta vai sofrer nos próximos meses e criar uma das páginas mais intensas da História da Segunda Guerra Mundial.

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o Schleswig, outro navio irmão do Taubaté – Fonte – http://www.simplonpc.co.uk

Certamente os tripulantes do Taubaté ouviam nos rádios valvulados de ondas curtas o noticiário em português da rádio britânica BBC e sabiam o que ocorria na região[13].

Dando A Volta Na África

Do jeito que a coisa estava Mar Mediterrâneo e desejando evitar problemas, o Lloyd Brasileiro ordenou ao capitão Mario Fonseca Tinoco que atravessasse o Atlântico Sul até o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, contornasse esta perigosa área marítima e entrasse no Oceano Índico. Daí ele deveria acompanhar a costa leste africana até o Golfo de Áden, entre os atuais países do Iêmen e do Djibuti. Daí o Taubaté iria entrar no Mar Vermelho e seguir até o Canal de Suez, ultrapassá-lo para navegar pelo Mar Mediterrâneo e chegar a Port Said, no Egito, seu destino final. Realmente o foguista João Lins podia se um homem pobre e trabalhar em uma função muito humilde no Taubaté, mas certamente era um potiguar que conhecia muito mais do mundo do que a maioria dos seus conterrâneos daquela época.

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O Taubaté.

Esta era uma Viagem longa, com muitas milhas marítimas a serem percorridas, mas o Lloyd estava colocando na mesma época não apenas o Taubaté, mas outros navios nessa mesma rota. Como foi o caso dos vapores Juazeiro e Atlântico, que saíram dias depois do Rio de Janeiro e seguiam a esteira do Taubaté.[14]

A viagem foi tranquila até o porto da cidade iemenita de Áden, dali o barco brasileiro foi escoltado por destróieres ingleses até o Canal de Suez. Essa prevenção tinha sentido, pois ali perto, na Etiópia e outras áreas da África Oriental, estavam se desenrolando sérios combates entre britânicos e italianos pela conquista desta região[15].

O Taubaté então atravessou o Canal de Suez sem problemas e chegou a Port Said.

Um Novo E Perigoso Contrato

Após descarregar todo o café e ficar com porões vazios a espera da próxima carga, mais de quarenta dias se passam desde a chegada do Taubaté naquele porto. É quando surgem as empresas Société de d’Avances Commerciales, do Egito, e a Shalon Brothers, de Isaac Shalon, um judeu radicado na Turquia.

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Port Said – Fonte – servatius.blogspot.com.br

Ambas as empresas fecham um acordo com o representante do Lloyd Brasileiro, que talvez fosse o próprio capitão Tinoco, para realizar um fretamento do porto egípcio de Alexandria até o porto de Boston, Estados Unidos. Mas antes disso o navio teria de pegar cargas em portos na ilha Chipre e mais cargas em Port Sudan, principal porto marítimo sudanês, às margens do Mar Vermelho. Na sequência haveria paradas nos portos de Buenos Aires, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Nova York, Baltimore e finalmente Boston. O seguro da tripulação ficou a cargo dos contratantes estrangeiros.

Esse tipo de fretamento nada tinha de errado, o problema era percorrer a distância entre o Egito e o Chipre, uma ilha extremamente estratégica e colônia britânica no Mediterrâneo. Mesmo sendo apenas umas 200 milhas náuticas (380 quilômetros), quase nada em termos de distâncias marítimas, o que ocorria a volta de Chipre na época é que era o problema.

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Outra imagem do navio Schleswig, irmão gêmeo do Taubaté.

Acredito que, além de possíveis vantagens comerciais, o tempo de inatividade no Egito em meio a notícias dos combates cada vez mais intensos entre os britânicos e o Afrika Korps no vizinho deserto da Líbia, tenha feito com que o representante do Lloyd Brasileiro decidisse fechar o acordo com os contratantes da Société de d’Avances Commerciales e da Shalon Brothers. Mesmo com o risco, o Taubaté partiu para o Chipre. No futuro o Lloyd Brasileiro vai responder na justiça por liberar seu barco para percorrer esse trajeto[16].

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Porto de Limassol, Chipre, em 1941.

O navio brasileiro partiu e, segundo os jornais de época, esteve nos portos cipriotas de Limassol, Lanarca e finalmente Famagusta. Após o recolhimento de cargas, o Taubaté está de partida da ilha de Chipre para o Egito na manhã do dia 22 de fevereiro de 1941.

De Famagusta o conferente de cargas José Francisco Fraga, de 28 anos, que morava na Rua Souza Valente, n° 7, São Cristóvão, Rio de Janeiro, escreveu uma carta para sua família onde comentou que eles não “esperassem notícias dele nem tão cedo”[17].

Ele não tinha ideia de quanto tragicamente estava certo!

Alemães Ao Ataque

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O interessante livro do pesquisador inglês John Weal, JU 88 – Kampfgeschwader of north Africa and the Mediterranean (© 2009 Osprey Publishing Limired), aponta que entre janeiro e fevereiro de 1941, as três esquadrilhas de JU 88 A 4 que atuaram no X. Fliegerkorps tiveram uma vida bem movimentada naqueles dias.

John Weal é um autor especializado na história da Luftwaffe, com mais de 30 livros publicados sobre o tema e na sua obra afirma que estas aeronaves realizaram ataques aéreos a ilha de Malta, apoio as tropas do Afrika Korps que lutavam contra os britânicos, ataques a Benghazi e Tobruk na atual Líbia, ataques contra alvos no Egito, além de patrulhas marítimas e ataques a navios que seguiam em todo Mediterrâneo em comboios, ou solitários.

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Um Ju 88 do I. / LG 1, no Norte da África em 1942- Fonte – http://www.worldwarphotos.info

Isso é referente especificamente as missões dos JU 88 A 4. Fora estes aviões ainda estavam na região os formidáveis bombardeiros HE 111 H 3, os bombardeiros de mergulho Ju 87 R 1 Stukas, os caças bombardeiros BF 110 D 3 e outros mais. A Luftwaffe verdadeiramente malhava em ferro quente todo o Mar Mediterrâneo e o Norte da África[18].

Em 21 de fevereiro a Luftwaffe atacou o comboio AS.21, que seguia escoltado por três destróieres do porto de Piraeus, na Grécia, para Alexandria, Egito. Tudo começou com três JU 88 A 4 que caíram em cima dos treze navios do comboio quando estes navegavam no canal da ilha Citera, ao largo da extremidade sul da região do Peloponeso, a parte meridional da porção continental da Grécia. Os JU 88 atingiram o petroleiro dinamarquês, mas trabalhando para os ingleses, Marie Maersk, de 8.271 toneladas. Este foi rebocado para o porto de Piraeus bastante danificado, com seis tripulantes mortos, oito desaparecidos e quatro que foram capturados.

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Uma bela foto de um HE 111 do II. / KG 26, ainda em 1939 – Fonte -www.worldwarphotos.info

Após o amanhecer do dia 22 de março, quinze aeronaves alemãs novamente atacaram o comboio AS.21, desta vez a 22 milhas náuticas (35 quilômetros) ao sul da ilha de Gavdos, um pequeno promontório considerado um dos pontos mais extremos da Europa, a poucas milhas ao sul da ilha de Creta. Desta vez foi uma ação conjunta de bombardeiros Ju 88 A 4 e HE 111 H 3 que lançaram várias bombas e afundaram o mercante grego Embiricos Nicolaos (3.798 ton.) e o petroleiro norueguês Solheim (8.070 ton.)[19].

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Nariz de um HE 111. O metralhador disparava deitado – Fonte – http://www.theatlantic.com

Enquanto tudo isso ocorria, a quase 500 milhas náuticas de distância a leste dali (cerca de 930 quilômetros), por volta das cinco da manhã desse intenso dia 22 de março, o Taubaté deixava a ilha de Chipre[20].

Die Walküre

Sem maiores dados é impossível apontar se foi um Ju 88 A 4 ou um HE 111 H 3 alemão que atacou o navio brasileiro, bem como não sabemos de onde ele partiu e nem de qual esquadrilha fazia parte. Entretanto eu acredito que a ação ocorrida no começo da manhã contra o comboio AS.21, ao sul da ilha de Gavdos, pode ter feito com que outros bombardeiros nazistas continuassem a buscar o comboio para um novo ataque. Como os navios do AS.21 tentavam chegar a Alexandria, o mesmo destino do Taubaté, não é difícil supor que alguma destas aeronaves alcançou à área ao sul de Chipre e houve o encontro com o navio brasileiro[21].

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Representação artística de um JU 88 atacando um cargueiro. No caso do ataque ao navio brasileiro, sendo o atacante um avião deste modelo, essa bem poderia ser uma imagem próxima dos fatos.

Conjecturas a parte todas as informações apontam que por volta do meio dia, com o sol a pino, quando o navio estava a cerca de 100 milhas náuticas de Lanarca, surgiu um avião bimotor voando lento, baixo e ostentando a inconfundível suástica nazista na cauda, além de cruzes gamadas nas laterais e nas asas. Esses aviadores teutônicos não chegaram ao som do Ato terceiro da ópera Die Walküre, de Richard Wagner, mas ao som de potentes motores Jumo[22].

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Representação artística de um bombardeiro HE 111 atacando navio mercante. Imagem meramente ilustrativa.

A aeronave passou sobre o Taubaté e começou a realizar voltas. A tripulação ficou surpresa, mas tranquila, pois nos costados a bandeira brasileira estava nitidamente pintada e o Brasil ainda mantinha relações diplomáticas com a Alemanha Nazista. Entretanto, logo depois de dar algumas voltas o avião alemão começou a virar diretamente para o navio e veio em alta velocidade, foi quando a primeira de seis (algumas fontes apontam quatro) bombas foi lançada e uma coluna de água emergiu do Mediterrâneo. Imediatamente após o lançamento da primeira bomba começou as rajadas de metralhadoras do tipo MG[23].

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Metralhadora MG de um bombardeiro alemão em ação.

O capitão Mario Fonseca Tinoco contou que em um primeiro momento houve pânico a bordo. Certamente nessa hora o pessoal que não estava no convés, talvez por medo de alguma bomba atingir o casco e a nave afundar rapidamente, veio para fora da nave. Pode ser que nesse momento o potiguar João Lins tenha visto o avião atacante.

Os oficiais e os marujos mais experientes então transmitiram ordens e informações que conseguiram colocar a situação sob algum controle. O capitão Tinoco contou a um jornal de Recife que após a primeira bomba cair a sua ideia foi manter o curso do barco firme, permanecendo na mesma direção, sempre em frente. Não sei se essa era a melhor tática contra esse tipo de ataque, mas no caso do Taubaté deu certo[24].

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Imagem ilustrativa de um a bombardeiro alemão atacando um navio mercante com bombas.

O capitão tentou enviar toda sorte de sinais para o avião, mas a resposta eram mais disparos[25]. O avião nazista voltou e uma das bombas caiu muito perto do navio brasileiro, estremecendo tudo a bordo, varando o casco da embarcação com estilhaços, ferindo tripulantes e danificando o leme, que ficou inoperante. Os telegrafistas Américo Rodrigues da Silva, Josias Correia de Castro e Raimundo Evangelista Monteiro enviaram mensagens telegráficas sobre o ataque, mas seu posto de trabalho recebeu vários disparos e um deles foi ferido.

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Metralhador de bombardeiro alemão enquadrando um navio mercante com a sua MG. Imagem Meramente ilustrativa.

O capitão Tinoco mandou que içassem uma bandeira branca, mas nada disso demoveu os alemães do seu ataque. Ele também afirmou ao Diário de Notícias do Rio que algumas bombas eram pintadas de preto e uma de vermelho. Tripulantes comentaram que o avião passava muito baixo, “rente as antenas telegráficas” e chamou atenção dos brasileiros a insistência dos alemães em atirar com suas metralhadoras contra o navio e sua tripulação. Certamente aqueles aviadores queriam pintar na cauda de sua aeronave a silhueta do Taubaté, indicando seu afundamento.

Morto Agarrado à Bandeira do Brasil

Conforme o avião despejava bombas e balas, membros da tripulação eram feridos. O 2° cozinheiro Teodoro da Silva Ramos, morador da Rua Faria Braga, 34 A, morro de São Roque, São Cristóvão, Rio de Janeiro, levou vários estilhaços nas costas, ocasionando feridas que deixariam grandes cicatrizes. Outro ferido com gravidade foi Henrique Leandro da Silva, colega do potiguar João Lins Filho, que ficou com uma fratura no crânio. O maquinista Aníbal Landelino Borges levou tal quantidade de ferimentos, com alta gravidade, que ninguém a bordo acreditava na sua sobrevivência. Foi o valoroso trabalho do enfermeiro Emiliano Priamo da Silva que salvou sua vida e de mais outros doze feridos[26].

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Cargueiro debaixo de bombas.

Existe uma notícia coletada após o ataque, já em Alexandria, e transmitida inclusive por agências internacionais, que chamou muito a atenção do povo brasileiro – Um grupo de quatro tripulantes subiu em dos pontos mais altos do Taubaté levando uma grande bandeira do Brasil. Nesse local, em um intervalo dos disparos, cada um dos quatro homens segurou em uma das pontas do nosso pavilhão nacional para que pudesse ser visto e reconhecido pelo avião atacante. Mas se alguém no avião viu a bandeira verde e amarela foi para melhor fazer mira, pois o conferente José Francisco Fraga foi atravessado por vários tiros e morreu praticamente na hora. Dois dos seus colegas também ficaram feridos nesse momento.

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O carioca Fraga foi o primeiro brasileiro a perecer em decorrência de ação inimiga direta durante a Segunda Guerra Mundial[27].

Sem o leme o Taubaté então parou, o que o deixou completamente pronto para ser afundado. Neste ponto as narrativas são conflitantes, mas, ou por que a carga de bombas do avião havia encerrado, ou por imperícia dos aviadores em acertar o Taubaté, ele não foi atingido.

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Os aviadores nazistas até que tentaram, mas o Taubaté não foi fazer parte do desenho da cauda deste JU 88 baseado na Itália em 1941.

Mesmo assim o capitão deu ordens de abandonar o navio, mas os tripulantes do bombardeiro continuaram disparando suas M.G., frustrando as tentativas de fuga dos marinheiros e também atingindo, ou “picotando”, os barcos salva vidas. Foi neste momento que o foguista João Pereira da Silva, que segurava uma das cordas utilizadas para arriar uma das baleeiras do navio recebeu uma saraivada de estilhaços, caiu sobre o convés e desmaiou[28].

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Nesta foto de jornal vemos na extrema esquerda o conferente Fraga e o cachorro Taubaté, mascote do navio brasileiro.

A mastreação, a chaminé, o casco, tombadilho, ponte de comando, o camarote do capitão, a sala de radiotelegrafia ficaram crivados de disparos. As metralhadoras do avião varreram o convés de popa a proa. O mascote de bordo, um cachorro chamado Taubaté, foi ferido duas vezes, mas sobreviveu[29].

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HE 111 atacando nave mercante – Fonte – warfarehistorynetwork.com

O imediato Armando Viana comentou ao Diário de Pernambuco que o ataque só parou quando surgiu outro avião no horizonte. Alguns tripulantes ficaram assustados com o novo “visitante”, mas o bombardeiro nazista desapareceu “como por encanto”, pois a nova aeronave era inglesa. Para o imediato era um “Spitfire”, mas documentos oficiais do Almirantado, que aqui reproduzo abaixo, apontam que a aeronave salvadora era um hidroavião.

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Os informes que li afirmam que o ataque do avião alemão durou, dependendo da fonte, de 60 a 90 minutos[30].

Notícias no Brasil

O Taubaté consegue chegar a Alexandria, onde está atracado o vapor Juazeiro, que dá todo apoio ao pessoal do navio atacado, bem como as autoridades consulares brasileiras do Cairo, as autoridades britânicas e egípcias. Em meio a muito buraco de bala, pedaços de estilhaços e sangue, os tripulantes são removidos para o hospital.

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O conferente José Francisco Fraga é enterrado em cerimônia simples, mas carregada de muita emoção, no Cemitério Cristão de Alexandria. Ele morreu um dia antes de completar 29 anos e deixou no Rio a noiva Geraldina Gonçalves com o enxoval pronto para o casamento que iria se realizar no seu retorno. Mas o sonho foi desfeito.

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Pelos próximos dias do ditador Getúlio Vargas e seus Ministros, juntamente com o Lloyd Brasileiro, prometem apoio às famílias e especialmente atender o pedido de Dona Isabel Maria Fraga –  O de trazer o cadáver do conferente Fraga para ser enterrado no Rio[31]. Outra situação envolvendo a Senhora Isabel foi que ela declarou a imprensa que não dormiu direito na noite do dia 22 de março e sonhou com seu filho vestindo seu imaculado uniforme branco da Marinha Mercante, mas este estava manchado de sangue[32].

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No Brasil a notícia do ataque ao Taubaté causa surpresa e indignação, mas não ao ponto de gerar protestos públicos. O tema é notícia de primeira página em todos os jornais do país. Mas estranhamente em Natal, capital do Estado onde o foguista João Lins Filho é natural, os dois principais jornais locais, A República e A Ordem, pouco comentou sobre o ataque em si e apenas lançaram pequenas notas sobre a situação do conterrâneo. Mas temos a informação que seus familiares foram até a Delegacia de Ordem Política e Social – DOPS, na Ribeira, onde procuraram o Diretor José Gomes da Costa em busca de notícias junto ao Lloyd Brasileiro sobre o tripulante potiguar do Taubaté, que felizmente eram positivas.

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O Itamaraty emite uma nota de protesto para a Alemanha Nazista, cuja chancelaria respondeu cerca de oito dias depois informando que iria apurar o caso e punir quem tivesse cometido erros. Mas ficou só nisso[33].

Lento e Complicado Retorno

O navio atacado e sua tripulação permaneceram 47 dias no Egito, onde foram feitos reparos e os tripulantes feridos gradualmente se recuperavam. Foi classificado de verdadeiro milagre ter havido um único falecimento devido ao ataque aéreo. No dia 25 de março o foguista João Pereira da Silva é operado por hábeis médicos e enfermeiras ingleses do B.M.H. Alexandria (British Military Hospital Alexandria). Estes profissionais retiram do seu corpo quatro estilhaços de projetis de metralhadora da região frontal e dois estilhaços do braço. O foguista perdeu todos os dentes de sua arcada superior[34].

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O B.M.H. Alexandria (British Military Hospital Alexandria) – Fonte – http://www.mycommunity.org.sg

Durante este período a tripulação do Taubaté testemunhou alguns ataques aéreos germânicos, tanto de dia quanto a noite, bem como a ação defensiva britânica com o uso de canhões antiaéreos. Felizmente o navio não foi atingido[35].

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Porto de Alexandria, Egito.

Finalmente chegou o dia de partir. O navio estava extremamente carregado de algodão egípcio, couros, lã, goma arábica e outras cargas menores. Seguiu em direção sul, bordejando a costa leste africana, refazendo em sentido contrário seu caminho anterior. Houve escalas em Port Sudan, Áden e Lourenço Marques, capital do então o território da África Oriental Portuguesa (atual Maputo, capital de Moçambique).

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Nesta cidade as autoridades coloniais portuguesas realizaram uma recepção tão acolhedora que o capitão Tinoco considerou como uma verdadeira “homenagem”. Provavelmente foi neste porto que o comandante percebeu que a sua tripulação precisava de um descanso. Eles estavam longe de casa há vários meses e tendo passado por problemas complicados, vendo alguns companheiros feridos e um morto, em meio a uma situação inusitada. O capitão decidiu então refazer o roteiro e seguir para Recife. Ali seria feita a troca da tripulação, antes de ir para os Estados Unidos.

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Mas antes houve uma parada no porto de East London, uma cidade localizada na costa sudeste da África do Sul. Parada rápida, mas ao voltar ao alto mar em direção ao Brasil o Taubaté foi atingido por uma violenta tempestade, que no pensamento do imediato Armando Viana “Só não foi ao fundo porque estava bem carregado”. Mas essa tempestade marcou a tripulação já atingida, pois um dos seus membros foi simplesmente levado do convés pela força das águas e desapareceu.

O Taubaté segue então para a capital pernambucana atravessando o Oceano Atlântico com suas combalidas máquinas, conseguindo ridículos quatro nós de velocidade. Leva mais de um mês para conseguir esse feito.

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Ao entrar no porto, as cinco da tarde do dia 13 de agosto de 1941, a situação do navio era de tal penúria, que somente com o apoio do rebocador 4 de outubro é que ele entra no porto.

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Porto do Recife

Uma verdadeira multidão de pernambucanos vai ao cais do porto testemunhar a chegada do Taubaté, que ancora no Armazém 5, onde as autoridades portuárias, a imprensa e até mesmo alguns parentes do pernambucano Teodoro da Silva Ramos esperavam ansiosos para visitar o 2° cozinheiro ferido. Chama atenção de todos os furos dos projetis e estilhaços em vários locais do barco. Quando desembarcam um dos tripulantes mostra a imprensa uma caixa cheia de estilhaços que atingiu o barco Taubaté [36].

Finalizando

Após os reparos o Taubaté retornou as atividades de navegação comercial em meio a Segunda Guerra Mundial. Documentos apontam que esse navio participou de vários comboios entre o Brasil e a ilha de Trinidad, ou de Nova York para Guantánamo, Cuba, e de lá para a zona do Canal do Panamá. Em agosto de 1944, conforme podemos ver neste documento da US Navy, o Taubaté inclusive comandou um destes comboios.

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Mas em um sábado, 3 de julho de 1954, o velho navio com mais de cinquenta anos de mar encalhou na ponta do molhe do porto de Recife e ali encerrou a sua trajetória[37].

Provavelmente após a volta do Taubaté Dona Isabel Fraga, a mãe do falecido tripulante, soube dos detalhes do ocorrido e não se conformou. Certamente açodada pelo não cumprimento da promessa do retorno do corpo de seu filho de Alexandria para o Rio, ela abriu um processo contra o Lloyd Brasileiro perante a vara dos feitos da fazenda do Rio de Janeiro. Representada pelo advogado Alberto de Oliveira, a querelante reclamava do contrato firmado pelo Lloyd para ir ao Chipre, em meio a um conflito bélico e a revelia da tripulação. Ela pedia uma indenização de 100 contos de réis.  

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Mas parece que a opinião pública não compreendeu muito bem a busca de Dona Isabel por uma indenização. Ainda mais em uma época onde o que não faltava no Brasil eram famílias chorando o desaparecimento de seus entes queridos, em meio a dezenas de afundamentos de navios nacionais provocados por submarinos do Eixo. Dois anos depois mais de 25.000 homens seguiriam para a Itália com a missão de combater diretamente os nazistas e o caso de Dona Isabel cairia no esquecimento. Não descobri os desdobramentos do seu processo[38].

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Foto de jornal da tripulação do Taubaté.

Outro que sofreu no corpo foi o foguista João Pereira da Silva, que dois anos depois ainda sofria de terríveis dores físicas por causa de vários estilhaços no seu corpo. Em março de 1942 ele se encontrava internado no Hospital Gaffrée e Guinle, no Rio de Janeiro, para mais uma operação de retirada de estilhaços. Este era a décima “lembrança” daquele dia a ser retirado, desta vez na região temporal direita e ele seria operado pelo médico Armando Amaral. O foguista João Pereira da Silva se encontrava internado neste hospital através de ações do Instituto dos Marítimos, entidade que defendia sua classe. Mas Pereira estava sem receber um centavo de fonte alguma[39].

Nada mais encontrei sobre o discreto potiguar João Lins Filho, que aparentemente nunca se interessou de contar esse episódio fora de seu círculo mais próximo de parentes e amigos, sobre o seu destino. Talvez, como aconteceu com muitos potiguares humildes que conheciam outras terras naquele tempo, decidiu deixar para trás o Rio Grande do Norte.

Última questão – É possível que João Lins Filho não tenha sido o primeiro potiguar a testemunhar os horrores da Segunda Guerra Mundial?

Sim, é possível.

Mas até que alguém prove o contrário, pelo menos em termos documentais, ele foi dos nossos conterrâneos o que primeiro viu algo que nunca deveria ter acontecido.

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NOTAS

[1] A família Lins era muito numerosa na área do Engenho Cajupiranga, cujo dono na década de 1920 era o fazendeiro Virgílio Lins, senhor de largas faixas de terras e essas áreas são hoje parte da cidade potiguar de Parnamirim. Sei também que os Lins se espalharam pela região litorânea, na área da antiga cidade de Papary, hoje Nísia Floresta, e na área das praias de Pirangi e Tabatinga.

[2] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de quarta-feira, 7 de junho de 1917, pág. 3 e o jornal O Imparcial, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta-feira, 9 de agosto de 1917, pág. 6.

[3] Ver Relatório do Ministério da Marinha, Abril de 1916, Imprensa Naval, Rio de Janeiro, pág. 135

[4] Algumas fontes apontam que o Taubaté só teria sido adquirido pelo Lloyd Brasileiro em 1925. Mas os jornais de época apontam a versão que desde o seu confisco ele já passou para a responsabilidade desta empresa

[5] Ver jornal O Imparcial, Rio de Janeiro-RJ, edição de domingo, 7 de outubro de 1917, pág. 6.

[6] Mario Fonseca Tinoco foi imediato no vapor Acary durante a Primeira Guerra Mundial, quando este navio foi torpedeado em 3 de novembro de 1917 pelo submarino alemão U-151, próximo ao arquipélago de Cabo Verde, África. Logo foi promovido a comandante de navios, mas em 1932 Fonseca se aliou aos paulistas na Revolução Constitucionalista e foi por isso foi exilado em Portugal. Já em 1936 a situação dele ficou complicada no Lloyd Brasileiro, pois estava no comando do navio Una quando este afundou na costa catarinense em 26 de outubro de 1936. Sobre o afundamento do Acary, ver jornal A Razão, Rio de Janeiro-RJ, edição de domingo, 4 de dezembro de 1917, pág.1. Sobre a participação do capitão de longo curso Mario Fonseca Tinoco na Revolução Constitucionalista ver https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/108009/ISSN1808-1967-2007-3-1-108-123.pdf?sequence=1 Em relação ao afundamento do Una ver jornal A Razão, Rio de Janeiro-RJ, edição de terça feira, 27 de outubro de 1936, pág.5.

[7] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 4.

[8] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 1.

[9] As unidades, as bases e os aviões da X Fliegerkorps na Itália entre janeiro e fevereiro de 1941 foram os seguintes –

Unidade          Base         Avião

Stab / LG 1   Catania       Ju 88 A-4

  1. / LG 1 Catania        Ju 88 A-4

III. / LG 1      Catania      Ju 88 A-4

  1. / KG 26  Comiso      He 111 H-3
  2. / KG 4 Comiso         He 111 H-3

(F)/121          Catania        Ju 88 D-1

III. / ZG 26     Palermo    Bf 110 D-3

Stab / St.G 3  Trapani     Ju 87 R-1

I./ St.G 3       Trapani       Ju 87 R-1

  1. / St.G 3 Trapani     Ju 87 R-1
  2. / JG 26 Gela            Bf 109 E-7
  3. / NJG 3 Gela           Bf 110 E-3

[10] Sobre a Luftflotte 2 ver https://weltkrieg2.de/luftwaffe-2-september-1939/ . Sobre a X Fliegerkorps ver https://www.asisbiz.com/Luftwaffe/xfk.html e http://deacademic.com/dic.nsf/dewiki/2635768 . Sobre o marechal Albert Kesselring ver http://www.fliegerhorste.de/rothwesten.htm .

[11] Sobre o ataque ao HMS Illustrious ver http://ww2today.com/10th-january-1941-luftwaffe-planes-attack-hms-illustrious .

[12] Sobre o afundamento do HMS Southampton ver https://maltagc70.wordpress.com/tag/hms-southampton/ .

[13] As fontes aqui pesquisadas informam que o Taubaté possuía como sistema de comunicação apenas o posto telegráfico para emitir sinais em código Morse. Mas encontrei a informação que eles possuíam rádios de ondas curtas e certamente captavam o serviço em português da BBC, o principal meio que os brasileiros do início da década de 1940 utilizavam para conseguir notícias internacionais.

[14] . Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 5 de abril de 1941, pág. 1.

[15] Os combates na África Oriental, ocorridos entre 1940 e 1941 são episódios pouco conhecidos no âmbito da Segunda Guerra Mundial. Ver https://web.archive.org/web/19970121012937/http://gi.grolier.com/wwii/wwii_8.html e http://www.bbc.co.uk/history/ww2peopleswar/timeline/factfiles/nonflash/a1057547.shtml

[16] Toda a questão do trajeto deste navio, a questão do fretamento e outras considerações estão incluídas no processo aberto pela mãe de José Francisco Fraga, a Senhora Isabel Maria Fraga, que processou judicialmente o Lloyd Brasileiro em 1942 pela morte do seu filho. Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 13 de fevereiro de 1942, pág. 1.

[17] Ver Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 4 de abril de 1941, pág. 1.

[18] John Weal é escritor, artista gráfico, autor prolífico e bem estabelecido sobre assuntos ligados a aviação militar alemã na Segunda Guerra Mundial. Possui uma das maiores coleções privadas de literatura original de língua alemã sobre este conflito e sua pesquisa sobre a Luftwaffe está firmemente baseada neste enorme arquivo. Ele mora na histórica vila de Cookham, Berkshire, a oeste de Londres, Inglaterra.

[19] Sobre os ataques da Luftwaffe no Mar Mediterrâneo nos dias 21 e 22 de março de 1941, especialmente o ataque ao sul da ilha Gavdos ver http://www.warsailors.com/singleships/solheim.html  e http://www.naval-history.net/xDKWW2-4103-30MAR02.htm .

[20] O Chipre era na Segunda Guerra um local extremamente estratégico como importante base de fornecimento de materiais e treinamento, além de possuir uma estação naval.

[21] No processo aberto pela Senhora Isabel Maria Fraga contra o Lloyd Brasileiro em 1942, existe a ideia que a saída do Taubaté de Chipre tenha sido comunicada por espião nazista a Luftwaffe, que então enviou um avião para o ataque. Apesar de plausível, essa versão carece de maiores dados para sua corroboração. Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 13 de fevereiro de 1942, pág. 1.

[22] Segundo dados existentes, deferentes versões deste tipo de motor equipavam tanto o JU 88 A 4 como o HE 111 H 3 da LuftWaffe, então em ação naqueles dois primeiros meses de 1941 no mar Mediterrâneo e no Norte da África.

[23] As várias voltas do bombardeiro talvez possam indicar que a tripulação da aeronave viu a pintura da bandeira brasileira, sabidamente um país neutro. Mas era inegável para eles que a proa do navio apontava em direção ao Egito, local onde se encontravam seus inimigos. Aí fica mais fácil, embora sem justificativa, entender a razão do ataque pelos aviadores alemães.

[24] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de terça feira, 26 de agosto de 1941, pág. 5.

[25] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 5 de abril de 1941, pág. 1.

[26] O 2° cozinheiro Teodoro da Silva Ramos, também é apresentado por alguns jornais como Teodósio da Silva Ramos. Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 14 de agosto de 1941, pág. 5.

[27] Confesso que pensei não ser real a notícia envolvendo a morte do conferente Fraga segurando a nossa bandeira. Imaginei que poderia ser o tipo de notícia ufanista, típica da propaganda do governo Vargas. Uma “patriotada” como se diz hoje em dia. Mas tudo indica que a história é verídica, segundo notícias vinculadas na época pela própria BBC. Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 4 e o jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 5 de abril de 1941, págs. 1, 2 e 3.

[28] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 17 de março de 1942, pág. 2.

[29] Ver Diário da Noite, Rio de janeiro-RJ, edição de sexta-feira, 4 de abril de 1941, págs. 1 e 2. Os jornais cariocas basicamente reproduziram uma reportagem feita pelo jornal A Tarde, de Salvador, que deu o furo com as informações transmitidas pelo jornalista Larry Alena, da Associated Press, que realizou uma visita ao Taubaté em Alexandria após a sua chegada.

[30] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 27 de março de 1941, pág. 1.

[31] Mas essa situação só vai acontecer depois da deposição de Getulio Vargas. Somente em agosto de 1946, durante o governo de Gaspar Dutra, o navio “Camboinhas” chega ao Rio com os despojos de José Francisco Fraga.

[32] Ver Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 4 de abril de 1941, pág. 3.

[33] Ver jornal A Noite, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 3 de abril de 1941, pág. 1 e a edição de sábado, 12 de abril de 1941, pág. 3.

[34] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 17 de março de 1942, pág. 2.

[35] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 14 de agosto de 1941, pág. 5.

[36] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 14 de agosto de 1941, pág. 5.

[37] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de quinta feira, 8 de julho de 1954, pág. 3.

[38] Ver Diário de Notícias, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 13 de fevereiro de 1942, pág. 1.

[39] Ver o jornal O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de quinta feira, 17 de março de 1942, pág. 2.

UM NAUFRÁGIO NA COSTA BRANCA POTIGUAR – DESTAQUE NA INGLATERRA E AUSTRÁLIA

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The Illustrated London News, edição de 26 de março de 1853 – Fonte – Google Books

Rostand Medeiros – Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN

A internet é um incrível ambiente onde é possível encontrar interessantes informações de natureza histórica. Para isso basta procurar!

Por esses dias venho pesquisando o interessante material da revista The Illustrated London News, disponíveis para consulta online na Google Book. É um material maravilhoso, com incríveis desenhos da metade do século XIX e interessantes histórias.

Mas o que o The Illustrated London News tem haver com um desastre naval ocorrido no Rio Grande do Norte em 1852?

Imagens de um Desastre Naval em Uma Distante Praia Potiguar

Houve um tempo, ainda quando a fotografia era embrionária, que surgiu a ideia de unir de forma ampla textos e imagens. E tudo começou a partir de uma revolucionária revista semanal londrina. Assim foi criado o The Illustrated London News, sendo tão somente a primeira revista de notícias semanal ilustrada do mundo.

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Publicada primeiramente em um sábado, 14 de maio de 1842, esse semanário rapidamente conseguiu um imenso prestígio no Império Britânico e na Europa. Tudo que era ali publicado tinha imensa repercussão e ditou às regras de como seria o formato dos meios de comunicação impressos.

Percebi que o Império do Brasil raramente frequentava as páginas do The Illustrated London News. O que aparecia eram imagens da nossa luxuriante natureza, nossos conflitos internos e externos, da nossa infame escravidão e a curiosidade que despertava nos britânicos a família real brasileira. Onde vemos, por exemplo, a imagem dos jovens Dom Pedro II e da Imperatriz Tereza Cristina, publicado na edição desta revista de 11 de janeiro de 1845, na página 25.

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Fora destes temas eram raras as imagens do grande Brasil. Por isso a imagem que abre este artigo me chamou a atenção, até porque ela foi publicada com destaque.

Nela vemos um grupo de pessoas em meio a um tempo com pesadas nuvens, tentando salvar a carga de um barco encalhado em uma praia. A nave está sem os mastros e amarrada às árvores que estão na beira mar, mas dentro da linha d’água, sugerindo ser um manguezal. Neste resgate vemos típicas jangadas nordestinas, com vários homens negros e alguns poucos brancos com chapéus.

Existe uma explicação onde informa que a ilustração apresenta o desastre da barca inglesa Sir Fowell Buxton, na praia de “Capim Assú”, na costa nordeste do Brasil.

Mas onde seria “Capim Assú”?

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Detalhe de um dos mapas publicados pelo comandante Manuel Antônio Vital de Oliveira, mostrando a região da Ponta do Tubarão e a praia do Capim Assú.

Então me lembrei dos detalhados mapas publicados pelo comandante Manuel Antônio Vital de Oliveira.

Este foi um oficial da Marinha Imperial Brasileira, que no comando do iate Paraybano realizou entre 1857 a 1859 um extenso trabalho hidrográfico no trecho entre o rio Mossoró, no Rio Grande do Norte, e a foz do rio São Francisco, entre Sergipe e Alagoas[1].

Em um dos mapas existentes neste trabalho encontramos a imagem detalhada da conhecida Ponta do Tubarão, uma área que atualmente preservada e pertence aos municípios potiguares de Macau e Guamaré, onde está apontada uma praia chamada “Capim Assú”.

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A mesma área em foto de satélite.

Descobri então que este acidente, que tanto chamou a atenção no exterior, aconteceu na costa do Rio Grande do Norte.

Costa de Muitos Naufrágios 

Era um tempo onde os barcos a vela singravam e dominavam os mares e a costa potiguar tinha uma intensa movimentação de embarcações. Nesse tempo os portos de Macau e Areia Branca eram bem mais conhecidos dos capitães dos barcos estrangeiros do que nos dias atuais e, como a forma de navegação era bem mais rudimentar e a costa potiguar sempre foi difícil mesmo, o número de barcos que se acidentaram no mar do Rio Grande do Norte parece ser bem expressivo, segundo fontes no exterior.

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Imagem meramente ilustrativa – Fonte – https://artblart.com/2014/03/30/photographic-archive-the-gibson-archive-at-the-royal-museums-greenwich-rmg/

O interessante é que pesquisando nos jornais antigos publicados no Rio Grande do Norte, na maioria das vezes muitos destes acidentes mal foram comentados por aqui, ou se encontram totalmente desconhecidos.

Algumas vezes surgem pequenas peças, que trazem remotos ecos do passado e fazem parte de um quebra-cabeça bem complicado de se resolver.

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Crédito – Ana Sonehara Muller e Patrick Muller

Vejam esse exemplo – A garrafa verde das fotos é um modelo “Torpedo bottle” e as imagens me foram gentilmente cedidas pela amiga Ana Sonehara Muller. Ela e seu marido Patrick Muller comandam uma das mais bem sucedidas empresas nos ramos de turismo de mergulho no Brasil. Ana me contou que seu esposo realizou alguns mergulhos na costa potiguar, em frente à praia de Galinhos, mas em áreas onde não existem registros de naufrágios. Sem querer encontrou esta garrafa de vidro verde e fundo cônico como um torpedo. Certamente deve ser de algum outro navio, talvez inglês, que naufragou por lá. Mas qual e quando?

E vale frisar que casos como este que ocorreram com o amigo Patrick não são raros de acontecer na costa do Rio Grande do Norte.

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Crédito – Ana Sonehara Muller e Patrick Muller.

Já em relação ao caso da barca inglesa Sir Fowell Buxton, consegui algumas informações em arquivos no exterior.

Esta era uma nave nova, construída apenas dois anos antes, onde deslocava 450 toneladas, sendo registrado no porto de Londres e muito utilizado no transporte de imigrantes entre o Reino Unido e a Austrália.

O material do The Illustrated London News e outras fontes apontam que em 22 de outubro de 1852 o Sir Fowell Buxton partiu de Londres e seguiu para a cidade portuária de Plymonth, região de Devonshire. Logo, em 9 de novembro de 1852, uma terça feira, zarpou para aquela que seria sua última viagem.

Em Busca do Ouro

Os imigrantes que o Sir Fowell Buxton transportava para a Austrália eram pessoas que desejavam buscar novas oportunidades dentro daquilo que ficou conhecido como “Corrida do ouro australiana”.

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Típico barco de transporte de imigrantes para Austrália – Fonte – collections.rmg.co.uk

Em 1851 o minerador Edward Hargraves descobriu um “grão de ouro” em um poço de água perto de Bathurst, uma cidade no estado da Nova Gales do Sul, 200 km a Oeste de Sidney, a principal cidade australiana. Essa descoberta marcou o início da primeira corrida do ouro por lá e uma mudança radical no tecido econômico e social daquele país.

O local da descoberta de Hargraves recebeu mais de 1.000 garimpeiros em apenas quatro meses. Em um ano foram descobertos 26,4 toneladas (850,000 onças) de ouro no estado da Nova Gales do Sul. Mas isso foi só uma mera gota no oceano em comparação com o que se descobriu ouro no vizinho estado de Vitória.

Diante disso milhares imigrantes ingleses, escoceses, irlandeses, alemães, norte-americanos, chineses e de outras terras chegaram aos portos australianos na esperança de fazer uma fortuna com ouro, ou com novos negócios. 

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Partida de navio com imigrantes para a Austrália – Fonte – http://www.maritimetas.org/collection-displays/displays/over-seas-stories-tasmanian-migrants/journey-sailing-ship

Era um empreendimento pessoal muito arriscado, que muitas vezes só resultava em fracassos. Mas estes imigrantes aplicavam o que tinham nessa ideia, chegavam com toda sua vontade de trabalhar, com seus sonhos e acreditavam no sucesso. Somente em 1852, 370 mil imigrantes chegaram à Austrália e a economia da nação cresceu. A população total triplicou de 430 mil em 1851 para 1,7 milhões em 1871.

E como sempre aconteceu nestes casos na História mundial, quando a terra foi aberta para os novos colonos os povos indígenas acabaram sendo despojados de suas posses e removidos de suas terras ancestrais para reservas ou missões. Mas essa é outra história!

Desastre na Ponta do Tubarão 

No caso da barca inglesa Sir Fowell Buxton algumas fontes apontam que eram transportados um número de imigrantes que varia desde 230 a até 300 pessoas. Entretanto um documento oficial australiano mostra um número bem menor. Uma ata do Parlamento de Vitória, publicado em 1854, afirma que os sobreviventes que conseguiram chegar à Austrália eram 152, sendo 67 homens adultos, 31 mulheres e 54 crianças, isso sem contar a tripulação do barco acidentado.

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A partida e grande parte da viagem foram sem maiores alterações, sendo essa barca comandada pelo capitão George Woodcock. Mesmo sem maiores detalhes, sabemos que o Sir Fowell Buxton se aproximou da costa brasileira enfrentando uma séria tempestade, que aparentemente rasgou suas velas e ele seguiu vogando para o norte do Cabo de São Roque, já na costa potiguar.

Na noite de quinta feira, 16 de dezembro de 1852, o barco inglês atingiu os chamados “Bancos da Tapioca”, que segundo o material do comandante Vital de Oliveira era outra denominação para a Ponta do Tubarão.

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Região da Ponta do Tubarão nos dias atuais – Fonte – https://www.panoramio.com

No dia seguinte uma parte dos passageiros e da equipe de bordo desceu para as praias arenosas. Destes, por razões que não são explicadas, morreram três pessoas. Logo moradores da região vieram a bordo em jangadas, que são bem representadas no desenho que abre este artigo, e ofereceram ajuda. Os náufragos chamaram estes potiguares de “natives”.

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Vista do litoral a partir da Comunidade de Barreiras-RN – Crédito – Rostand Medeiros

Novamente recorro ao trabalho do comandante Vital de Oliveira, onde no detalhado mapa da área da Ponta do Tubarão é possível ver marcações apontando a existência de dois locais com habitações, Diogo Lopes e Barreiras. Estas são até hoje comunidades tradicionais de pescadores e certamente foram os antigos moradores destes locais que ajudaram os ingleses.

De alguma maneira foram desenvolvidas formas de comunicação entre os moradores da região e os sobreviventes, que então souberam o nome da praia onde estavam – Capim Assú.

No outro dia após o encalhe todos os passageiros e a tripulação deixou para trás o que sobrou do Sir Fowell Buxton, mas reclamaram nos seus relatos pela praia não possuir muitas árvores para proporcionar uma melhor proteção contra o sol forte. Certamente alguns abrigos rústicos foram criados para dar certo conforto as mais de 50 crianças e mais de 30 mulheres.

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Região da Ponta do Tubarão nos dias atuais – Fonte – https://www.panoramio.com

Os pescadores entregaram aos estrangeiros alguns frutos locais que eles classificaram como sendo “cacau” e “sementes de melão”. Infelizmente não tenho a mínima ideia quais seriam estas frutas. Os ingleses tinham alguns biscoitos e receberam também peixes que o pessoal da região lhes cedeu, ou venderam. 

Os ingleses permaneceram em Capim Assú por uma semana e três dias, onde durante esse tempo retiraram a bagagem e o pessoal da região ajudou. Algumas pessoas ficaram feridas nesta tarefa e os ingleses afirmaram que muitas caixas foram abertas no porão pelos nativos. Mas eles não falam em roubo e não se fala em conflitos e confrontos. Ao contrário, os náufragos comentam que o tratamento recebido destes potiguares foi “correto”.

Ingleses em Macau

Os relatos nada comentam sobre a situação do casco do Sir Fowell Buxton e nem o que foi feito dele. O que deixa a ideia que sofreu perda total. Mas as fontes históricas informam que os sobreviventes foram transferidos para Macau nas “canoas”, certamente jangadas, dos pescadores.

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Notícia do desastre em jornal inglês.

Macau era a cidade mais próxima e nesta comunidade os estrangeiros se alojaram em várias casas e foram alimentados com carne. Esse fato aponta que provavelmente começou a existir entre os moradores da pequena cidade e os ingleses uma forte aproximação, além de várias trocas comerciais de vários graus.

Durante mais de sessenta dias aquele numeroso grupo de estrangeiros vai viver em Macau. Esta era uma pequena comuna que 20 anos depois, segundo os dados do Censo de 1872, o primeiro realizado no Brasil, tinha meros 3.941 habitantes. O povo dessa cidade fez tudo que podia para apoiar e abrigar esses ingleses e eles recordaram disso imensamente agradecidos.

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Lista com alguns representantes estrangeiros no Brasil em 1851.

Foi em Macau que os sobreviventes escreveram para o cônsul inglês em Recife e certamente enviaram essa missiva através dos veleiros que seguiam até a capital pernambucana.

Mister Henry Augustus Cowper, o cônsul inglês em Pernambuco, chegou a Macau um mês e meio depois do acidente. Após se encontrar e conhecer a situação dos seus compatriotas, ele buscou reunir os mais de 150 estrangeiros e informou que eles deveriam ir com ele a Recife. Consta que ele buscou vários barcos que se encontravam em Macau para realizar o transporte, com as despesas pagas pelo governo de Sua Majestade.

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Quadro com Mister Henry Augustus Cowper, o cônsul inglês em Pernambuco que esteve em Macau em 1853. Este quadro estava sendo anunciado em um site de leilões de obras de arte na Europa. Dizia que Mr. Cowper estava “fantasiado” de mexicano, país onde trabalhou depois de sua passagem pelo Brasil. Estranhamente o seu punhal e partes de sua roupa se parecem com o punhal e as vestes tradicionais dos vaqueiros nordestinos – Fonte – http://www.bamfords-auctions.co.uk

Quando muitos dos ex-náufragos já estavam embarcados, entrou pela foz do Rio Piranhas-Açu um barco trazendo o cônsul inglês lotado na cidade da Parahyba do Norte, atual João Pessoa, Mister Bonamy Mansell Power. Quando este se encontrou com seu colega Cowper, ordenou que os barcos com os ingleses seguissem sob seus cuidados para a Parahyba do Norte. É possível que algum documento perdido em algum arquivo possa explicar a razão desta mudança e desse aparente litígio. Mas eu nada consegui esclarecer sobre isso.

O interessante dos relatos dos náufragos é a total ausência de referências a atuação de autoridades brasileiras. Se existe o elogio aos “natives”, nada temos sobre a presença de quaisquer autoridades locais. Aparentemente estes, enquanto ficavam a ver a situação, deixaram àquela bronca “Para inglês resolver”.

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Nota publicada em uma sexta feira, 6 de maio de 1853, no jornal Liberal Pernambucano.

Depois de dois meses e uma semana em Macau, os náufragos do Sir Fowell Buxton chegaram à Paraíba no dia 1 de março de 1853 em pequenas embarcações.

Enquanto isso, certamente através de cartas enviadas em algum barco que partiu de Macau, chegaram à Inglaterra as primeiras informações dos problemas do Sir Fowell Buxton e o que seus passageiros passavam na costa potiguar. Logo a sua saga estava nas páginas do The Illustrated London News, edição de 26 de março de 1853.

Mortos Pela Febre Amarela e o Fim Da Agonia

Aparentemente tudo se destinava a ter um final feliz para os náufragos.

Mas não foi bem assim!

Provavelmente Mister Bonamy Mansell Power não sabia, mas ele encaminhou seus compatriotas para a Paraíba, onde naquele momento se iniciava um forte surto de febre amarela. A mesma febre amarela que em pleno 2018 volta a assombrar os brasileiros.

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Quando Antônio Coelho de Sá e Albuquerque, Presidente da Província da Paraíba entre 3 de julho de 1851 a 29 de abril de 1853, entregou seu cargo ao vice-presidente Flavio Clementino da Silva Freire, prestou conta da sua administração. Informou que em maio do ano anterior um forte surto de febre amarela se abateu sobre a cidade de Campina Grande, “tendo ceifado não pequeno número de vidas”,conforme podemos ver no texto abaixo.

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Mas parece que a febre amarela não começou em maio de 1852, pois nada menos de treze dos ingleses desembarcados em 1 de março no porto de Cabedelo faleceram da doença. Estranhamente Antônio Coelho de Sá e Albuquerque não cita em seu relatório nada sobre essa febre amarela atacando em março e nem na área costeira, nem sequer uma única vírgula sobre a presença destes ingleses na Paraíba e muito menos sobre as mortes ocorridas com treze deles.

Sabemos que tantos ficaram doentes que um médico dinamarquês que morava por lá, Heinrich Krausse, tratou dos ingleses.  Com o passar do tempo e vivendo no Brasil, esse médico Krausse virou Henrique Krause e depois emigrou para Pernambuco.

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Barco chegando a Port Philip, Austrália – Fonte – ww-nla.gov.au

Enquanto alguns ingleses morriam, segundo os cronistas da época chegou a Parahyba do Norte um pequeno brigue inglês chamado Richard, que foi classificado pelas fontes antigas como “miserável”. Mesmo assim, aparentemente de forma emergencial, o cônsul Bonamy Mansell Power freta esse barco para levar os sobreviventes para a Austrália.

Os náufragos do Sir Fowell Buxton embarcaram no Richard em 1 de abril de 1853, quase quatro meses depois do desastre na praia de “Capim Assú”. Seguiram para Recife para o barco ser melhor preparado para a grande travessia.

Finalmente, depois de quase sete meses de agonia e ansiedade, aqueles imigrantes chegaram a Port Philip, Austrália, em uma terça feira, 5 de julho de 1853.

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Fonte – Rostand Medeiros.


NOTA

[1] Vital de Oliveira então publicou o livro de nome bem extenso denominado “Cartas da Costa do Brasil entre o rio Mossoró e o de S. Francisco do Nórte: levantadas por ordem do Governo Imperial sob a administração do Sr. Conselheiro José Maria da Silva Paranhos da Marinha nos annos de 1857 a 1859. Mandados publicar pelo Sr. Conselheiro Chefe de Esquadra Joaquim José Ignácio”. 

FONTES

http://oceans1.customer.netspace.net.au/austrun-wrecks.html

http://www.pbenyon.plus.com/Gazette/Gazette_Index.html
http://www.mareud.com/Timelines/1800-1899.htm
http://oceans1.customer.netspace.net.au/austrun-wrecks.html
http://ndpbeta.nla.gov.au/ndp/del/home
https://www.britannica.com/biography/Sir-Thomas-Fowell-Buxton-1st-Baronet

https://www.facebook.com/notes/ludovicus-instituto-c%C3%A2mara-cascudo/olhando-para-o-rio-potengi-c%C3%A2mara-cascudo/1143500852420568/

https://www.parliament.vic.gov.au/papers/govpub/VPARL1854-55NoA8.pdf

http://www.sunderlandships.com/view.php?a1PageSize=20&exact=1&year_built=&builder=&a1Order=Sorter_ship_list_bld_ref&a1Dir=DESC&a1Page=7&ref=158667&vessel=SIR+FOWELL+BUXTON

COMO O PARAGUAI PLANEJAVA LIQUIDAR O BRASIL

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A Batalha do Riachuelo, uma das mais importantes da Guerra do Paraguai | Crédito: Wikimedia Commons

Quando o ditador paraguaio declarou guerra a um país dez vezes maior, não foi loucura; ele tinha boas razões para acreditar na vitória

AUTOR – Fabio Marton

Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/ha-153-anos-solano-lopez-declarava-guerra-ao-brasil.phtml#.Wk63Ld-nHXN

Em 13 de dezembro de 1864, o Paraguai declarou guerra ao Brasil, iniciando o que seria o conflito mais sangrento da América Latina, em que mais de 300 mil vidas se perderiam dos dois lados, entre batalhas, fome e doenças. O Paraguai seria aniquilado na guerra: perdeu 75% de sua população adulta e reduziu seu papel geopolítico a pouco mais que um estado-tampão entre Argentina e Brasil, oscilando entre ser dominado politicamente por um ou outro.

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A batalha representada em obra de Pedro Américo

O ditador do Paraguai, Francisco Solano López, entrou na guerra conhecendo alguns fatos. A população do Brasil era dez vezes maior que a do Paraguai, cerca de 8 milhões de habitantes, contra 800 mil. A Argentina, forte aliada do Brasil, tinha cerca de 2,5 milhões. Ambos os países tinham acesso desimpedido ao Oceano Atlântico para comprar armas, navios e o que mais precisassem da Europa e dos Estados Unidos, enquanto o único acesso ao mar do Paraguai era por meio dos rios Paraná e Prata, cruzando o território argentino.

À primeira vista, e sabendo como a guerra terminou, López parece ter sido um louco suicida. Ele era impulsivo e autoritário. Mas suicida ele não era. E tinha um plano – ou pelo menos uma aposta. E, no seu jogo, conquistar acesso ao mar era fundamental.

Tríplice Aliança ao contrário

A primeira coisa sobre o plano de López é que ele não esperava ter de enfrentar Brasil, Uruguai e Argentina, situação que se consolidou com a criação da Tríplice Aliança, em 1º de maio de 1865. Ao contrário, esperava ter Uruguai e Argentina a seu lado e quem sabe unificar os 3 países ao fim da guerra e criar uma grande nação nas fronteiras do antigo vice-reino do Rio da Prata, do Peru à Patagônia. “López imaginava uma Tríplice Aliança ao contrário”, diz Francisco Doratioto, autor de Maldita Guerra e Osório.

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Francisco Solano López – Fonte – military.wikia.com

Os uruguaios eram aliados de López, e a guerra só começou, tecnicamente, porque o Brasil invadiu o Uruguai, em guerra civil desde 19 de março de 1863, em apoio ao ex-presidente Venâncio Flores e 1,5 mil voluntários do Partido Colorado, que desafiou o governo de Montevidéu, controlado pelo Partido Nacional (ou Blanco). Os brasileiros, que formavam um terço da população do Uruguai, apoiavam Flores e passaram a sofrer ataques dos partidários blancos. Em 30 de agosto de 1864, o Paraguai havia mandado um ultimato ao Brasil: invadir o Uruguai seria um ato de guerra.

O Brasil ignorou o ultimato e declarou guerra ao governo blanco em 10 de novembro de 1864, com o apoio tácito da Argentina. “Nem Argentina nem Brasil acreditavam que o Paraguai reagiria a um ataque ao Uruguai”, diz Moacir Assunção, autor de Nem Heróis, Nem Vilões: Curepas, Caboclos, Cambás, Macaquitos e Outras Revelações da Sangrenta Guerra do Paraguai. Mas López cumpriu a ameaça e atacou o Brasil. Não na fronteira com o Uruguai, mas em Mato Grosso, em dezembro de 1864.

López não contava só com o apoio dos blancos. Havia recebido promessas de Justo José Urquiza. Governador da província de Entre Rios, Urquiza era o maior proprietário rural da Argentina, presidente entre 1854 e 1860, e inimigo do presidente argentino, Bartolomé Mitre. O plano de López era invadir o país ao norte, juntar-se às forças de Urquiza ao sul e seguir para Buenos Aires. Se tudo funcionasse, os 3 aliados – Paraguai, Uruguai e Argentina – atacariam o Brasil.

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A Batalha de Riachuelo

A mão (invisível) do Tio Sam

Além de Urquiza e dos blancos uruguaios, havia outro personagem soprando confiança nos ouvidos de López. Ninguém menos que os Estados Unidos da América. Segundo o livro de Moacir Assunção, “no Paraguai, o cônsul americano Charles Ames Washburn ofereceu apoio ao país contra o Brasil ainda antes da guerra e chegou a instigá-lo a iniciar o conflito”.

Washburn era cônsul desde 1861, ainda no governo do pai de Solano, Carlos Lopes. E o que ele prometia não era completamente infundado: Brasil e EUA andavam às turras desde o início da Guerra de Secessão (1861-1865). Os americanos unionistas, do Norte, viam os brasileiros como uma monarquia europeia implantada na América e um país profundamente escravocrata, ambas verdades que os brasileiros não gostavam de ouvir. Artigos na imprensa durante a guerra eram principalmente antibrasileiros, quando não idealizando López como um libertador republicano contra uma monarquia de escravos.

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Militar brasileiro Francisco do Rego Barros – Fonte – http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=64329

Já os brasileiros não ocultavam suas simpatias pelos confederados do Sul, escravocratas, agrários e aristocráticos como eles. Isso levou a alguns incidentes, em que brasileiros recebiam calorosamente os navios confederados, que atacavam navios unionistas na costa brasileira impunemente, enquanto os navios unionistas eram quase proibidos de frequentar portos do Brasil. Em 1864, o ataque de um navio unionista a um confederado em águas brasileiras quase comprometeu as relações diplomáticas.

Em duas ocasiões, Washburn quase fez com que sua promessa a López fosse cumprida. Quando a guerra começou, o diplomata estava em férias no seu país. Em 1866, o navio americano Shamokin tentou furar o bloqueio da Marinha brasileira e levá-lo a Assunção. O comandante prometeu que só seria interrompido “por força maior”, o que fez os brasileiros cogitarem abrir fogo.

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O brasileiro Symphonio dos Santos uniformizado para combater na Guerra do Paraguai – Fonte –

Washburn caíria em desgraça e seria torturado pelas forças de López, que havia ficado paranoico com a possibilidade de conspiração. Em 1868, outro navio foi enviado para retirá-lo – e, desta vez, falaram abertamente em guerra com os brasileiros. Em ambas as situações, os brasileiros engoliram seu orgulho, evitando o pior.

Blitzkrieg paraguaia

A aposta paraguaia não era apenas diplomática. O Exército paraguaio era muito maior que o brasileiro no começo da guerra. Os paraguaios tinham uma força de 64 mil homens, e os preparativos para a guerra começaram meses antes da declaração, enquanto as tensões entre Brasil e Uruguai se acumulavam. O Exército brasileiro tinha 18 mil efetivos, mal-armados e malvestidos, informações que os blancos uruguaios fizeram questão de levar ao ditador paraguaio. Segundo Doratioto, López queria fazer uma blitzkrieg do século 19. “Ele tinha um plano inteligente e bem estruturado. Era um ataque-relâmpago, uma coisa à frente do seu tempo.”

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Retirada da Laguna – Fonte – http://datasefatoshistoricos.blogspot.com.br/search?q=retirada+da+laguna&x=11&y=13

A blitzkrieg paraguaia também contava com outra manobra inteligente: fazer os brasileiros acreditarem que os paraguaios atacariam por outra região, causando um imenso problema logístico. A ofensiva em Mato Grosso envolveu duas colunas e 9 mil homens, que conquistaram cidades como Albuquerque, Coxim e Corumbá até abril de 1865. Os brasileiros esperavam um ataque à capital da província, Cuiabá, que nunca aconteceu. Sem estradas que chegassem à região, a contraofensiva brasileira levou de abril a dezembro de 1865 para se mover de Minas Gerais ao Mato Grosso. Quando finalmente alcançaram a província, os paraguaios simplesmente se retiraram – exceto de Corumbá, onde resistiram até junho de 1867.

Enquanto os brasileiros se perdiam no próprio Brasil, López preparava seu verdadeiro ataque. O Paraguai declarou guerra à Argentina em 18 de março de 1865. Em 13 de abril, um contingente enorme de tropas paraguaias – 37 mil homens – invadiu a província de Corrientes pelo rio Paraná. Com Corrientes capturada quase sem resistência, em maio, as tropas se dividiram. Cerca de 12 mil ficaram na cidade e 25 mil rumaram para o Rio Grande do Sul, onde tomaram São Borja, em 12 de junho, e Uruguaiana, em 5 de agosto. Era o plano de López em ação.

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Antônio Carlos Mariz e Barros, comandante da corveta Belmonte em 1862, que visitou Natal e foi morto na Guerra do Paraguai.

Traição na Argentina

A primeira má notícia para López aconteceu no início da invasão à Argentina. Comandando as tropas para a retomada de Corrientes, apareceu ninguém menos que Justo José Urquiza. O caudilho havia feito promessas a López, mas havia recebido outra visita. O general e senador brasileiro Manuel Luís Osório, com quem teve uma conversa estratégica. “Os brasileiros compraram Urquiza”, diz Assunção.

Ele foi convencido por Osório de que lucraria muito mais apoiando Brasil e o governo argentino. Para a surpresa de López, o ex-presidente argentino conduziu suas tropas com rara ferocidade. A decisão de Urquiza também surpreendeu muitos argentinos, e vários desertaram a favor do Paraguai nos primeiros meses da campanha.

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Guerra do Paraguai – Imagem meramente ilustrativa

De forma que, em 25 de maio de 1865, quando uma tropa argentina conseguiu reconquistar a cidade de Corrientes, a glória durou menos de 24 horas: os argentinos recuaram, deixando a cidade pronta para ser reconquistada pelos paraguaios. Ainda assim, López destituiu do comando o general Resquín, líder da invasão, que seria executado em janeiro de 1866.

Baixas de uma ditadura

O plano de López começou a naufragar, literalmente, no arroio Riachuelo, em 11 de junho de 1865. A ideia era tomar a esquadra brasileira, de 9 vapores, atacando-os por meio de abordagem – os soldados saltam para dentro do navio inimigo de forma a capturá-lo intacto. A chave do ataque era o fato de os navios brasileiros serem a vapor.
À noite, apagavam-se as caldeiras, acesas novamente de manhã. Levava uns 20 minutos até a água ferver e o navio estar em condições de se mover. Assim, os navios paraguaios – também a vapor, e em mesmo número que os brasileiros – poderiam se aproximar da frota nacional.

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A guerra não era uma unanimidade no Brasil. Conflito armado entre militares e civis brasileiros, no período da Guerra do Paraguai.

Uma avaria, no entanto, atrasou o ataque. E aqui o autoritarismo político do Paraguai se mostrou uma desvantagem. “Ninguém ousava contrariar López, que havia ordenado um ataque para aquele dia”, diz Doratioto. Com medo do ditador, os paraguaios atacaram com dois navios a menos e só às 9h30, quando os barcos brasileiros estavam totalmente operantes. As abordagens foram repelidas a canhonaços. Ao fim do dia, a esquadra paraguaia jazia no fundo do rio Paraná. A Batalha de Riachuelo foi um desastre que isolou o país do resto do mundo.

Quando os paraguaios invadiram o Rio Grande do Sul, já era tarde para os blancos uruguaios. Em 20 de fevereiro de 1865, brasileiros e colorados haviam conquistado Montevidéu e Venancio Flores assumiu um governo pró-Brasil. Em 18 de agosto, duas semanas após tomar a cidade, os paraguaios se renderam em Uruguaiana, diante de dom Pedro II, Bartolomeu Mitre e Venâncio Flores.

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Coronel Joca Tavares (terceiro sentado, da esquerda para a direita) e seus auxiliares imediatos, incluindo José Francisco Lacerda, mais conhecido como “Chico Diabo” (terceiro em pé, da esquerda para a direita). Imagem: Wikipedia, Domínio Público. In: Salles, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003. ISBN 85-333-0264-9 (p.180)

Foi o fim da ofensiva do sul. Em 31 de outubro, as tropas paraguaias em Corrientes se retiraram. A partir daí, a guerra seria uma longa e agonizante defensiva para Solano López, culminando com a captura de Assunção, em 1º de janeiro de 1869. A fuga do ditador pelo interior do país acabou em 1º de março de 1870. Numa emboscada à última tropa paraguaia em Cerro Corá, o cabo brasileiro Chico Diabo atingiu o ditador com uma lança. Sem se render, López foi morto a balas ali mesmo.

O NAVIO PIRATA BRASILEIRO

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Combate no alto mar, em pintura do século XIX – Fonte – https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

A História do Navio Negreiro Brasileiro Defensor de Pedro Que Se Transformou Em Um Barco Pirata

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN 

Em 1827 o Império do Brasil era uma nação bem jovem, que apenas cinco anos antes havia deixado de ser colônia de Portugal. O país tinha Dom Pedro I como seu Imperador, que governava em uma época de instabilidades. Era um tempo em que o Brasil era majoritariamente agrário, onde utilizava e dependia da mão de obra escrava vinda da África e tinha no tráfico negreiro através do Atlântico Sul a principal maneira destes cativos chegarem a seus portos.

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Engenho de cana de açúcar na Paraíba na época da invasão holandesa

Mas nessa época a Inglaterra desejava à extinção do tráfico negreiro intercontinental para o Brasil, entretanto suas razões jamais foram por questões humanitárias. Estava no fato do açúcar produzido no Brasil, devido à mão de obra servil, ser bem mais barato do que o produzido nas colônias inglesas do Caribe. Além do que as áreas de plantação nestas colônias caribenhas eram pequenas comparadas com as brasileiras, havia um número de cativos baixo e a escravidão como força de trabalho nestas colônias estava em processo de extinção definitiva[1].

E para acabar com esse tráfico humano os ingleses estavam dispostos a utilizarem até mesmo os canhões de sua poderosa marinha de guerra, a Royal Navy. Dom Pedro I ratificou então um tratado em 13 de março de 1827, que definia um prazo de três anos para extinguir o tráfico de escravos para o Brasil. A partir desta data, quem fosse pego transportando seres humanos cativos no mar seria enquadrado como pirata e a punição básica existente nas leis inglesas para esse tipo de crime marítimo era a forca.

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Dama em liteira carregada por escravos e suas acompanhantes. A escravidão no Brasil foi um grave e grandiosos problema que até hoje se reflete no país de muitas maneiras – Foto Carlos Julião.

Essa situação de pressão estrangeira gerou um grande desconforto entre a elite política e agrária brasileira. Estes poderosos contestaram muito o Governo Imperial por ceder aos ingleses em algo que para eles “prejudicava o Brasil”. Até por que, antes mesmo do final do prazo de três anos, navios brasileiros que estavam vindos da África com escravos e não estavam com toda a parte burocrática em concordância com as regras impostas pelos ingleses, começaram a ser detidos pelas naves de guerra. Foram criadas duas comissões mistas com a finalidade de resolver estas questões de retenção e apresamento de navios. Uma das sedes destas comissões era no Rio de Janeiro e a outra na cidade de Freetown, na África Ocidental Inglesa, hoje capital de Serra Leoa[2].

O certo é que entre janeiro de 1827 e dezembro do ano seguinte, nada menos que doze navios negreiros, sendo nove brasileiros e três espanhóis, foram capturados apenas pela corveta inglesa HMS North Star, ocasionando a libertação de um número próximo a 2.000 escravos[3].

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Navio negreiro – Fonte – http://criticallegalthinking.com/2014/05/22/slave-ship-embodies-whole-story-slavery/

Realmente os dias do nefando tráfico de homens, mulheres e crianças negras vindos da África para o Brasil estava chegando ao seu final.

O Defensor de Pedro

Mas se o trafico negreiro estava com seus dias contados, não faltava no Brasil quem quisesse pagar por mão de obra escrava para tocar suas fazendas. Com a consequente diminuição do fluxo e do número de cativos vindos da África, o preço por cada escravo começou a subir. O que atiçou a cobiça dos proprietários de barcos negreiros e dos seus capitães a cruzarem o Atlântico Sul, mesmo sem toda a papelada burocrática e a presença vigilante e perigosa da Royal Navy.

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Rio de Janeiro, entrada da Barra perto do alto-mar, 1820 – Fonte – https://culturalrio.wordpress.com/2011/05/18/rio-ontem-e-hoje-bonito-por-natureza/

Não sei se o proprietário do barco brasileiro Defensor de Pedro havia cumprido todas as exigências da burocracia para satisfazer os ingleses, mas em novembro de 1827 este zarpou do Rio de Janeiro em busca de escravos na África[4]. 

O seu comandante era Pedro Maria de Souza Mariz Sarmento, mais conhecido como Pedro de Souza Mariz Sarmento, era um português de Lisboa, nascido em 1790 e que em 1808 fez parte da esquadra portuguesa que veio para o Brasil com Dom João VI. Na época Mariz Sarmento tinha o posto de primeiro tenente e seguiu para a grande colônia portuguesa a bordo da Nau Afonso de Albuquerque. Mas em 1827 sabemos que ele estava reformado na patente de capitão-tenente da Marinha Imperial do Brasil e sua única função naquele ano era o comando do navio negreiro Defensor de Pedro[5].

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Já em relação ao Defensor de Pedro as informações também são bem limitadas. Algumas fontes apontam que ele seria uma nave do tipo Brigue, que era um modelo de veleiro de dois mastros principais, muito utilizado no comércio e podendo carregar de doze a vinte canhões. Já outras fontes apontam que este barco seria do tipo Bergatin, também um veleiro com dois mastros principais, pequenos, que foram utilizados nos séculos XVIII e XIX para o comércio e transporte normalmente em rotas curtas. Os dois tipos de barcos são bastante similares em dimensões, onde as tonelagens são bem próximas e eram muito rápidos e manobráveis. Populares não apenas entre mercadores, mas também entre piratas[6].

Um Corsário Brasileiro 

No dia 22 de novembro de 1827 o Defensor de Pedro se fez ao mar com destino a Molembo, atualmente o município costeiro de Cacongo, no enclave de Cabinda, Angola.

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Descrição da carga do Defensor de Pedro antes de sair do Rio de janeiro.

A nave transportava várias toneladas de tecidos típicos daquela época, como zuarte e chita, além de caixas com 200 dúzias de lenços. Mas o Defensor de Pedro transportava itens mais explosivos. Tais como 100 barris de pólvora, 12 arrobas de balas de chumbo (equivalente a 180 quilos), 15 caixas com espingardas, 4.600 pederneiras para detonar as armas de fogo, 200 facas de cabo de ferro e 24 pipas (barris) de cachaça. Cada uma das pipas tinha capacidade para cerca de 500 litros, ou seja, aquele barco levava 12.000 litros da mais pura “branquinha” brasileira[7].

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Panorama circular do porto do Rio de Janeiro, 1827 (detalhe), pintado pelo artista inglês Emeric Essex Vidal – Fonte – https://culturalrio.wordpress.com/2011/05/18/rio-ontem-e-hoje-bonito-por-natureza/

Na nota existente no Jornal do Commercio do Rio, temos a informação que o capitão Pedro de Souza Mariz Sarmento tinha uma licença, ou carta, de corso, o que significava que para as autoridades brasileiras o Defensor de Pedro era um barco corsário.

No período inicial do Império do Brasil, assim como noutras nações, nosso país teve a sua marinha corsária e é importante aqui fazer a distinção entre corsário e pirata. Os piratas agiam ilegalmente em tempo de guerra e de paz, sem qualquer regra, sem pertencer a reis ou a qualquer governo. Ao contrário dos corsários, que agiam de acordo com seu soberano, exclusivamente em período de conflito, onde seus navios eram armados por particulares, que possuía licença do rei para combater os inimigos do Estado, visando interromper seu comércio e sua navegação. Além de ganhar dinheiro com o que fosse capturado.

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Rota do La Argentina ao redor do mundo – Fonte – http://grupolagazette.com/al/index.php?option=com_content&view=article&id=567:hyppolite-bouchard&catid=9&Itemid=109

A Argentina, por exemplo, possuiu uma frota corsária e um de seus navios realizou uma viagem de circunavegação pelo globo entre 1817 e 1819[8]. Mas essa não foi uma viagem de adestramento de Guardas Marinhas, foi uma viagem para atacar barcos e colônias espanholas. Chamado La Argentina, esta nave era comandada pelo francês Hippolyte de Bouchard, esteve em locais como Madagascar, Indonésia, Filipinas, Havaí, costa da Califórnia, negociando com barcos amigos e atacando impiedosamente os espanhóis. Nessa aventura Bouchard capturou 26 barcos, mas acabou preso no Chile pelo almirante inglês Thomas Alexander Cochrane, que na época servia junto à neófita marinha chilena e depois foi o primeiro almirante da Marinha do Brasil, onde combateu os portugueses na Bahia. Na época o cruzeiro do La Argentina se tornou um fato muito conhecido e comentado nos portos do Atlântico Sul[9].

Consta que o capitão Mariz Sarmento pretendia navegar levando toda essa mercadoria para ser trocada por escravos nos portos africanos. A ideia era trazer de 200 a 300 “Peças” de escravos, como se dizia na época. Mesmo com a mortandade média de uns 80 a 100 prisioneiros, era considerado um negócio lucrativo. 

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Comércio de escravos no Cais do Valongo, porto do Rio de Janeiro.

Para isso ele necessitava de uma tripulação experiente e foi no porto do Rio de Janeiro que o capitão arregimentou um grupo de 40 tripulantes onde constavam brasileiros, portugueses, franceses e espanhóis, a maioria deles renegados e fugitivos da justiça de suas nações.

Quando um dos 40 tripulantes soube da rota que o Defensor de Pedro iria seguir e viu o que aquele barco carregava, certamente começou a pensar diferente do seu capitão.

O Pirata Galego 

Benito Soto Aboal é considerado pelos espanhóis não o último pirata do Atlântico Sul, mas o último de todo Oceano Atlântico. 

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Benito Soto Aboal

Mais conhecido como Benito Soto nasceu na área do porto marítimo que deu origem ao atual município de Pontevedra, na Região Autônoma da Galícia, Espanha[10]Desde o século XII Pontevedra era uma das cidades mais importantes da Galícia e, graças ao comércio marítimo e seus estaleiros, um dos mais importantes portos do Atlântico Ocidental na Península Ibérica. Naquele distrito de marinheiros, Benito Soto nasceu em 22 de março de 1805. 

Segundo o pesquisador espanhol Marcos Iglesias, este jovem galego era o sétimo de uma prole de catorze filhos de um pescador e uma dona de casa. Marinheiro desde precoce idade, junto com seu pai e irmãos realizou vários trabalhos nas costas galegas, em diferentes funções, algumas delas de legalidade duvidosa. Tais atividades o levaram a ser respeitado entre os ambientes portuários e de contrabandistas. Então, por volta de 1822, Benito Soto embarca em direção a Havana, Cuba.

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Pontevedra no século XIX – Fonte – https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

De acordo com algumas fontes foi nessa ilha do Caribe que o espanhol se envolveu primeiramente com piratas e corsários, onde lutou a bordo de barcos cubanos ou colombianos. Segundo outros ele era um marinheiro honesto envolvido com tráfico de escravos, atividade que na época era considerada lícita em vários lugares. Talvez todas as versões mostrem alguma verdade, já que ele poderia estar a bordo de barcos, atacando navios escravos de outras nações para roubar suas mercadorias e suas “Peças” de cativos. E tudo isso sem ter atingido a idade de 20 anos.

Seja como for, segundo o pesquisador espanhol Marcos Iglesias, em 1823 Benito Soto viajou de Havana para o Rio de Janeiro, a bordo de um navio mercante espanhol. Mas este barco foi capturado na área costeira de Salvador, Bahia, pela marinha brasileira, que acreditou ser aquele barco uma nave pirata. Neste ponto o pesquisador Marcos Iglesias aponta no seu trabalho que o rastro deste marujo torna-se nublado e ele só volta a comentar sobre Benito Soto apenas quando este embarca no Defensor de Pedro, quatro anos depois do encontro com a nossa antiga Marinha Imperial[11].

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A Batalha de 4 de maio de 1823 foi o maior combate naval durante a Guerra de Independência do Brasil quando as frotas brasileiras e portuguesas se enfrentaram. A frota brasileira estava sob o comando do inglês Thomas Cochrane – Fonte – Wikipedia

Talvez Benito Soto e outros companheiros, certamente marujos com vasta experiência, tenham passado a atuar como mercenários contratados a bordo de alguma das naves de guerra da nossa recém-criada Força Naval. Não podemos esquecer que em 1823 nossos navios de guerra se bateram contra as naves lusitanas na costa baiana e na Baía de Todos os Santos, na luta pela consolidação de nossa Independência. Além disso, a maioria destes barcos brasileiros eram comandados por capitães oriundos principalmente da Inglaterra, sob o comando geral do inglês Thomas Alexander Cochrane. Então neste contexto, ter um espanhol a mais, ou a menos, não fazia muita diferença nos barcos brasileiros, contanto que ele fosse um bom marinheiro, soubesse usar com destreza a espada em uma das mãos e uma pistola de pederneira na outra.

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Quadro de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830)-‘Vista do Morro de Santo Antonio” – Museu Nacional de Belas Artes – Fonte – http://viticodevagamundo.blogspot.com.br/2013/03/rio-de-janeiro-by-nicolas-antoine-taunay.html

De toda forma pelos registros da época vamos encontrar Benito Soto como um homem livre no Rio de Janeiro em novembro de 1827 e pronto para zarpar. 

O Motim 

Para vários pesquisadores, talvez pela presença de patrulhas navais inglesas, ou por uma cobiça maior que a desejada, o capitão do Defensor de Pedro não seguiu para a costa do atual enclave de Cabinda, mas para o Golfo da Guiné, especificamente na atual Gana, aonde chegou em 3 de janeiro de 1828.

Para alguns pesquisadores o capitão Pedro de Souza Mariz Sarmento pode ter saído da área angolana para ultrapassar os limites do seu comércio e ganhar mais dinheiro. Ele seguiu para uma região onde provavelmente poderia comprar escravos a uma taxa muito menor do que seria a regular[12]. Sabemos que ele chegou a costa africana, conseguiu adquirir um número considerável de escravos, e, para completar a carga, baixou a terra para conseguir mais cativos. Foi aí o seu erro!

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Piratas levando barris rum para trocar por escravos. No caso do Defensores de Pedro os escravos seriam trocados por cachaça e outros produtos.

Benito Soto transmitiu a ideia de tomar pela força o Defensor de Pedro ao colega Miguel Ferreira e torná-lo um barco pirata. Ferreira, um natural da Galícia, não só concordou em se juntar ao seu conterrâneo, mas declarou que ele próprio estava pensando em uma empresa similar durante a viagem.

Sem o capitão a bordo Soto e Ferreira enfrentaram o resto da equipe com gritos de “Abaixo com os portugueses”. Eles, de forma incisiva deram cinco minutos para os membros da tripulação tomar uma decisão – ou se juntavam aos amotinados para assumir o navio, ou eles seriam colocados em um barco com um par de remos. Alguns membros da tripulação leais a Mariz Sarmento recusaram o convite e tiveram de remar por dez milhas náuticas (cerca de dezoito quilômetros e meio) até a costa africana. 

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Quandro que mostra uma típica luta no convés. No caso a cena mostra o combate no barco Triton pelo corsário francês Hasard (ex- Cartier ), sob o comando de Robert Surcouf . No caso do motim do Defensor de Pedro esse tipo de luta não foi necessário.

Defensor de Pedro foi então renomeado La Burla Negra, tendo sido pintado desta cor. Existem versões que falam de um triunvirato para gerenciar o motins, com Miguel Ferreira (Cognominado pelos tripulantes como o Mercúrio e que por alguma razão foi apontado inicialmente como líder), Benito Soto (O Barredo), e um certo Victor Saint-Cyr de Barbazan (O François)[13].

Logo Benito Soto começou a entender que para impor sua autoridade em meio à corja com que convivia, só sendo mais bruto que todos aqueles brutos. E logo alguém iria sentir a sua força.

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Miguel Ferreira, o Mercúrio, como chefe dos piratas passou a agir como verdadeiro tirano. O olho agudo de Soto viu que aquele que tinha adulações com ele no dia anterior, no dia seguinte o governaria com uma barra de ferro na mão. Ele não pensou duas vezes e quando Miguel estava em um forte sono inebriado pela cachaça, colocou uma pistola em sua cabeça e atirou nele.

Soto se desculpou com a tripulação, afirmando que aquela atitude era para sua proteção e fez uma promessa a todos; que como seu novo líder traria uma colheita de ouro nos seus futuros “trabalhos”, desde que obedecessem a ele. 

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Piratas montando um ardil para atacar um barco mercante em alto mar.
Soto foi unanimemente saudado pela equipe do barco como seu capitão e reivindicou a honra de ser o último pirata real do século XIX no Atlântico.

Mas logo também impôs mão de ferro entre os homens. Alguns dos franceses reclamaram que não podiam falar na língua deles. Consta que Soto entendia os marinheiros portugueses e brasileiros, mas não os franceses, que geraram ocasionais altercações. Desconfiava destes quando falavam em “Petit comité”.

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Fonte – http://www.aliexpress.com

O plano inicial foi cruzar o Atlântico para vender a carga de escravos no Caribe. Para este fim a pessoa necessária para o governo do barco era o brasileiro Manoel Antônio Rodrigues, que tinha prática de navegação e possuía a função de “piloto”[14]. Entretanto eu acredito que, se essa venda realmente aconteceu, o fato pode ter ocorrido na costa brasileira, mais precisamente em algum ponto na costa do Nordeste[15].

Independente desta questão, após o objetivo da venda dos escravos haver sido pretensamente alcançado, os piratas partiram para a região da Ilha de Ascensão, no meio do Atlântico Sul, abrindo a possibilidade de atacar navios que viam das ricas terras da Índia e dobravam o Cabo da Boa Esperança em direção a Europa.

Logo uma presa surgiu no horizonte.

As Chacinas e Crueldades no Morning Star 

De todos os ataques o mais conhecido e que ensejou uma forte perseguição ao La Burla Negra foi o ataque ao barco inglês Morning Star, o primeiro que Benito Soto realizou. 

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Major William Logie

Seu capitão se chamava Thos Gibbs e havia partido de Colombo, no Ceilão, atual Sri Lanka, em 13 de dezembro de 1827, com uma carga de café, canela e alguns passageiros. O principal destes era o Major William Logie, um Representante Militar de Sua Majestade Jorge IV na Ceilão. Logie estava acompanhado de sua família, além de terem a companhia de um cirurgião assistente, dois civis, cerca de vinte soldados inválidos e três ou quatro de suas esposas e filhas. 

O navio cruzou o Cabo da Boa Esperança em 28 de janeiro de 1828 e avistou a Ilha de Ascensão ao amanhecer do dia 19 de fevereiro. Quando estavam a três milhas náuticas a oeste desta ilha, às sete da manhã, os tripulantes do Morning Star viram surgir no horizonte uma estranha nave negra. 

[The Sea: its stirring story of adventure, peril & heroism.]
Desenho do ataque do La Burla Negra contra o barco inglês Morning Star
O barco estava a seis ou sete milhas a popa, mas era rápido e logo diminuiu a distância. Os tripulantes perceberam que a nave escura era bem armada e trazia as cores britânicas. Quando este chegou a menos de meio quilômetro do Morning Star abriu fogo com seus canhões, destruindo velas e ferindo alguns marujos. Ao cruzar com a proa do barco inglês, os do barco negro içaram a bandeira argentina.

Não é a toa que vários autores apontaram o La Burla Negra, antigo Defensor de Pedro, como sendo de origem argentina, bem como o seu nefasto capitão ser cidadão argentino. Mas eu acredito que a utilização daquela bandeira tinha mais haver com a fama na época do cruzeiro do corsário La Argentina e também servia para, no caso de alguém conseguir se salvar, informar erroneamente as autoridades a origem do barco pirata pela bandeira desfraldada.

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Foto do Morning Star no final de sua carreira – Fonte – http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

Logo ambos os veleiros ficaram a menos de cinquenta metros e os piratas jogaram ganchos com cordas e conseguiram emparelhar os barcos. As testemunhas sobreviventes narraram que os piratas eram homens atléticos e estavam todos armados. Cada um deles carregava pelo menos duas pistolas, facas e uma espada longa. Seu vestuário era composto de uma espécie de jaqueta de algodão grosseiro, camisas abertas até o peito, barretes de lã vermelha e cintos largos de lona, ​​nas quais estavam as pistolas e as facas.

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Desenho representando a morte do capitão Thos Gibbs, do Morning Star.

Na sequência mataram o capitão do barco inglês e Benito Soto ordenou ao francês Barbazan que pilhasse o que pudesse e exterminasse todos os tripulantes a bordo. Ato contínuo os ganchos foram retirados e os barcos ficaram afastados por cerca de 100 metros. Barbazan e seus piratas começaram a matança com pistolas e espadas, pois os ingleses, mesmo em maior número, estavam completamente desarmados. Foi quando os atacantes deram conta da existência de mulheres. Estas ficaram trancadas na cabine do capitão.

Depois de prostrarem várias pessoas no convés, eles levaram a maioria dos sobreviventes para o porão principal e reservaram alguns para ajudar suas operações de pilhagem. Começaram a saquear o navio levando as velas, cordas, caixa de remédios, todos os materiais de navegação, dinheiro, sete pacotes de joias valiosas que faziam parte da carga e toda a bebida a bordo. Os piratas também saquearam os passageiros da maior parte de suas roupas, todo seu dinheiro e artigos valiosos que poderam encontrar. Durante duas horas trabalharam no saque, levando o botim em baleeiras até o La Burla Negra.

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Desenho representando o ataque as mulheres no Morning Star.

Depois de muito trabalharem no transporte do material pilhado, enquanto seu capitão apreciava este material, Barbazan decidiu relaxar com seu grupo no Morning Star. Primeiramente obrigaram o mordomo a lhes servir vinhos e comestíveis, onde as testemunhas afirmaram que os Piratas se entregaram aos prazeres da garrafa por algum tempo. Depois Barbazan ordenou que seus companheiros “tratassem bem as mulheres”, então começou o terror para elas. Os gritos destas indefesas mulheres foram ouvidos durante horas por aqueles que estavam presos no porão.

Antes de voltar para o navio pirata, já de noite, depois de doze horas donos do Morning Star, Barbazan abriu buracos abaixo da linha d’água do veleiro, de modo que o barco afundaria e afogaria todos a bordo.

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Anne Smith Logie, uma das mulheres que foram atacadas no barco inglês.

No meio da madrugada as mulheres seviciadas conseguiram arrombar a porta da cabine do capitão e libertaram o resto da tripulação. Estes conseguiram parar o afundamento, retiraram depois de penosa atividade a água a bordo, montaram algumas poucas velas e foram se arrastando em direção a Inglaterra. Pensaram em se dirigir primeiramente até Recife, mas tiveram medo de cruzar com outros piratas.

Quase um mês depois, no dia 13 de março, eles encontraram o navio inglês Guildford retornando da China e receberam provisões, instrumentos de navegação e o seu capitão emprestou marinheiros experientes para ajudar. O Morning Star chegou a Londres em 18 de abril de 1828 e sua desgraça foi notícia em todo o Império Britânico.

Navio Pirata

O La Burla Negra se tornou famoso em toda parte do Oceano Atlântico e passou a ser caçado sem dó e nem piedade por todas as marinhas de guerra, principalmente a Royal Navy.

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Vida de pirata – O capitão pirata John Phillips obrigando um prisioneiro sob uma arma a beber álcool.

Mas se Benito Soto era muito cruel, verdadeiramente insano, também era muito inteligente. Pois após o ataque ao Morning Star ele e sua tripulação vão continuar atacando e destruindo barcos ingleses americanos, espanhóis e portugueses.

Sabe-se que Benito Soto destruiu quase uma dúzia de navios, incluindo a galera americana Topaz, que navegava de Calcutá, na Índia, para o porto americano de Boston. Benito Soto atacou, saqueou, tocou fogo no Topaz e não deixou sobreviventes. Foram atacados também os barcos Cassnock (Capitão Thompson), o New Prospect (Capitão Cleland), o Simbry  (Ou Sumbury) e o barco português Melinda, cujos sobreviventes da tripulação afirmaram conhecer alguns membros do La Burla Negra, quando este ainda era o Defensor de Pedro e estava ancorado no Rio de Janeiro em novembro de 1827[16].

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Fonte – https://br.pinterest.com/pin/263249540694857998/

Estes portugueses certamente foram uma rara exceção de sobrevivência, pois a ideia principal de Benito Soto para navegar por mais tempo era não deixar sobreviventes para narrar as autoridades os ataques. Inclusive quando Soto soube que Barbazan não obedeceu a sua ordem explícita para matar todos no Morning Star, preferindo se divertir com as mulheres e confiar que o barco inglês afundaria pelos furos provocados, recriminou duramente seu comandado e lhe disse um velho ditado pirata – “Os homens mortos não contam contos”.

Mas agora era tarde[17]!

O barco carregava os porões e bodegas cheias e Soto decidiu ir à Galícia para reparar o La Burla Negra e vender o saque.

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Luta em barco pirata – Fonte – http://www.rmg.co.uk/discover/explore/real-pirates-caribbean

Os piratas lidavam com a ideia de se aposentar, ou continuar com suas práticas. Em qualquer caso, qualquer decisão envolvia a venda dos bens. Assim, em 10 de abril de 1828, eles acabaram ancorando nas proximidades da praia de Beluso, perto de Pontevedra. Com a ajuda do tio materno de Soto, José Aboal, e pagando suborno, os piratas vendem grande parte do saque.

O movimento acabou levantando suspeitas, situação que lhes obrigou a deixar a região em direção ao porto de La Coruña. No caminho, em meio a uma situação particularmente desagradável, o La Burla Negra encontrou um pequeno barco que Soto saqueou e matou casualmente toda a tripulação – exceto por uma notável exceção: um indivíduo que havia dito a Soto que poderia encontrar o caminho mais rápido de volta a região de La Coruña, Espanha. Poucos dias depois, à vista da terra e depois de seguir o conselho desse homem, Soto, agradavelmente surpreendido, chamou-o para o olhar do Capitão:

“Amigo, esse é realmente o porto de La Coruña?”

“Sim, meu capitão”, respondeu o rapaz.

“Nesse caso”, Soto sorriu e disse, “você fez bem e agradeço seu serviço.”

Ele então atirou no homem morto e calmamente jogou seu corpo ao mar.

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Festa de piratas – Fonte – http://www.rmg.co.uk/discover/explore/real-pirates-caribbean

Seja esta história verdade, ou não, afirma-se que Benito Soto foi responsável por ferir e matar bem mais de 100 pessoas.

Mas em La Coruña as coisas também não correram positivamente. Mais subornos e mais obstáculos para se livrar do resto da mercadoria, para não mencionar os excessos cometidos por alguns marinheiros sob a influência do álcool, uma questão que resultou em algumas prisões. Eles então partiram para região de Gibraltar. 

O Fim Do Defensor de Pedro e Um Sortudo Pirata Brasileiro

Na noite de 9 de maio de 1828, Soto deu a ordem de encalhar propositalmente o La Burla Negra  ao sul da cidade de Cádiz, em uma praia chamada Santa Maria, na atual Comunidade Autónoma Andaluza, não muito longe de Gibraltar, até hoje uma colônia inglesa na entrada do Mar Mediterrâneo.

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Notícia de jornal carioca de 1828 informando a destruição do Defensor de Pedro na Espanha e a condenação de Benito Soto e seus asseclas.

Quatro meses depois do início desse frenesi de loucura, o antigo Defensor de Pedro, transformado em La Burla Negra, chegou ao seu fim.

Soto rapidamente organizou a dispensa do dinheiro para possíveis subornos e forneceu ordens aos marujos para que se misturassem entre as pessoas comuns sem atrair atenção. O capitão tentou se passar por um honesto navegador de um barco naufragado, junto com seus marinheiros. Sua história foi ouvida com simpatia e durante alguns dias tudo aconteceu conforme os planos.

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Desenho moderno representando Benito Soto sendo preso nas ruas de Gibraltar.

Mas a sorte desse grupo de piratas, com muito dinheiro para gastar nas bolsas, acabou. Os homens cometeram excessos e altercações de todos os tipos, foi quando surgiram suspeitas. Para completar a má sorte destes malfeitores, pesquisadores ingleses afirmam que, incrivelmente, um dos sobreviventes do Morning Star reconheceu um de seus algozes. A filosofia pirata de Benito Soto era, sob alguns aspectos, correta – Os homens mortos não contam histórias. Mas era impossível conseguir que uma pessoa que sobreviveu ao terrível assédio que foi vítima naquele barco inglês parasse de falar. Logo os tripulantes foram presos pelas autoridades espanholas.

Mas Soto e um membro da tripulação, que o pesquisador espanhol Marcos Iglesias aponta como sendo um brasileiro chamado “Dos Santos”, desapareceram instantaneamente de Cádiz[18].

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Gibraltar, quadro de 1836, de Thomas Roscoe – Fonte – http://gibraltar-intro.blogspot.com.br/2011/10/normal-0-false-false-false-en-gb-x-none_25.html

Conseguiram fugir para Gibraltar, onde finalmente os ingleses pegaram o pirata galego. Ainda segundo Marcos Iglesias o único que escapou foi o brasileiro “Dos Santos”, o único usuário do saque, até provar o contrário, que se aproveitou do butim. Já os ingleses afirmam que este fugitivo seria um francês[19].

Charles Ellms, um autor britânico da época, que escreveu vários livros sobre piratas, parece ter conhecido Benito Soto na sua prisão em Gibraltar e visitou-o várias vezes enquanto estava detido. Ellms nos diz que, ao longo de sua permanência na colônia o antigo capitão do La Burla Negra  se vestia com roupas caras, ostentando meias de seda, calças brancas e um vistoso casaco azul. Seu chapéu branco inglês, impecavelmente limpo e da melhor qualidade. Sua aparência, longe de ser a de um bandido, era muito mais a de um comerciante de Londres, dando a impressão de ser um homem agradável e honesto.

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General Sir George Don em 1830 – Fonte – http://gibraltar-intro.blogspot.com.br/2011/10/normal-0-false-false-false-en-gb-x-none_25.html

O antigo capitão foi julgado, considerado culpado de pirataria e condenado à morte. Enquanto ficou na prisão por um ano e meio, Benito Soto continuou a declarar sua inocência, reclamando constantemente sobre a injustiça que estava sendo vítima. Foi somente quando o governador de Gibraltar, o general Sir George Don, o sentenciou oficialmente a ser enforcado, esquartejado, sendo seus membros cortados e pendurados em ganchos, como aviso para todos os piratas da justiça que ali era feita. Só então Soto finalmente desistiu e admitiu sua culpa.

Ele fez uma confissão sem reservas de seus crimes e tornou-se verdadeiramente penitente. Soto entregou ao carcereiro a lâmina de uma navalha que ele escondeu entre as solas de seus sapatos para o propósito reconhecido de adicionar o suicídio como ato final de sua nojenta vida.

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Desenho representando o cadáver do famoso pirata capitão Kidd exibido após sua execução. No caso de Benito Soto o seu cadáver também foi exposto após ser enforcado, só que foi mostrado esquartejado.

Os que testemunharam sua execução no dia 25 de janeiro de 1830, entre eles Charles Ellms, parecem ter ficado impressionados com o seu comportamento, com sua calma e tranquilidade, enquanto ele avançava para facilitar as coisas para o carrasco. No final Soto parecia desejar o momento que seria colocado diante de seu Criador.

O pirata galego disse a plateia presente suas últimas palavras – Adeus, todos. Na época essas palavras criaram um grande debate em Gibraltar, pois foram ditas em bom português[20].

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Navio pirata perseguindo sua presa – Fonte – http://www.aliexpress.com

Apesar da região da Galícia fazer fronteira com o norte de Portugal e o idioma galego possuírem proximidade linguística com o português, as pessoas do lugar achavam difícil acreditar que um espanhol teria falado em português no momento da sua morte.

Mas os que eles não sabiam na época, ou não perceberam, era que talvez para o pirata Benito Soto àquelas palavras ditas na hora da morte não tivessem ligações com fatos ocorridos em terras Lusitanas, mas lhe traziam a memória algo importante que aconteceu em uma grande e ex-colônia de Portugal no Novo Mundo[21].


NOTAS

[1] Fato que efetivamente se consumou em 1834.

[2] Ver o livro O tráfico de escravos no Atlântico. Herbert S. Klein. FUNPEC Editora, 2004.

[3] Os espanhóis transportavam escravos para suas plantações de cana de açúcar em Cuba. Já a HMS North Star era uma corveta da Classe Atholl, construída pela Woolwich Dockyard  em 1824, com 28 bocas de fogo. Ver o site http://www.pbenyon.plus.com/18-1900/N/03276.html.

[4] Apesar de todas as buscas eu não consegui apurar o nome do proprietário do barco Defensor de Pedro. Já Pedro de Souza Mariz Sarmento é apontado em todas as fontes como o capitão do barco. Ele até pode ter sido o proprietário, mas sem confirmação.

[5] Mesmo sem conseguir encontrar qualquer informação que aponte, ou conteste, a razão desse pensamento, é provável que essa situação seja um indicativo que o capitão Mariz Sarmento não conseguiu uma projeção maior na Armada Nacional. Mas qual, ou quais, seriam a causa: Talvez a sua origem portuguesa de Pedro de Souza Mariz Sarmento não tenha lhe ajudado muito na nossa Marinha? Ou ocorreu algo na sua carreira naval que o marcou de forma negativa ao ponto de ser precocemente reformado? Ou porque para ele era bem mais lucrativo transportar escravos pelo Atlântico Sul, do que está a bordo de uma nave pertencente a uma força naval que lhe pagava pouco e da qual ele não tinha espaço para progredir?

[6] Algumas fontes apontam que o Defensor de Pedro era um barco argentino, o que é errado, já que sua denominação remete especificamente ao imperador Pedro I do Brasil.

[7] Sobre aspectos da partida e da carga do barco ver o jornal Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, edições de 20 (terça-feira) e 23 (sexta-feira) de novembro de 1827, respectivamente nas páginas 2 e 4. Já sobre os detalhes das negociações para a compra de escravos, ver o livro O tráfico de escravos no Atlântico. Herbert S. Klein. FUNPEC Editora, 2004.

[8] Esses corsários argentinos deram muito trabalho aos brasileiros durante a Guerra da Cisplatina.

[9] Aparentemente, conforme narro no texto, o cruzeiro do La Argentina teve uma tênue ligação com o caso do Defensor de Pedro, quando este se tornou um barco pirata. Ainda sobre o barco La Argentina ver Nuevos Documentos sobre el Crucero de La Argentina a través del Mundo, Volumen I. Autores: Rossi Belgrano, Alejandro y Mariana, Buenos Aires, 2016.

[10] Segundo as lendas antigas o herói troiano Teucer, filho de Telamon e meio-irmão do Ajax, fundador da cidade, chegou a Terra em Pontevedra. Já de acordo com a história, também foi nesse local onde os romanos fundaram o Ad duo ponte, o atual Pontevedra.

[11] Sobre o interessante texto de Marcos Iglesias, em espanhol, ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html.

[12] Para alguns pesquisadores, pelo número de armas e pelo tipo de gente que comandava, é possível que o capitão Pedro de Souza Mariz Sarmento pretendesse retirar pela força o máximo de cativos que pudesse.

[13] Barbazan seria oriundo de uma aristocrática família francesa, sobrinho do marechal Laurent de Gouvion Saint-Cyr, chefe militar dos exércitos napoleônicos. Ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html.

[14] No futuro este homem vai declarar que foi obrigado a permanecer com aquela súcia durante o tempo da viagem e pilhagens. E de alguma forma isso deve ter sido verdade, pois ele foi um dos poucos que foram capturados e não morreram na forca.

[15] Em minha opinião existe uma dúvida na história deste barco. Uma viagem entre a costa africana e o Caribe parece ser muito longa, principalmente quando sabemos que o tempo total de ação do La Burla Negra como nave pirata foi de apenas quatro meses. Apesar desta viagem não ser impossível e algumas fontes consultadas afirmarem que esta nave vendeu os escravos no Caribe, eu acredito que a venda se deu mesmo foi no Nordeste do Brasil. Pois, além de haverem brasileiros no La Burla Negra que certamente conheciam a costa nordestina, nesta região não faltavam quem quisesse comprar escravos africanos de forma rápida e discreta.

[16] Ver Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3.

[17] Existem vários relatos do cruel ataque de Benito Soto ao barco inglês Morning Star. Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3. É possível encontrar este jornal no endereço eletrônico https://books.google.com.br. Existem dois textos bem detalhados no jornal carioca  ver o jornal Diário Fluminense, Rio de Janeiro, edições de 15 (terça-feira) de julho de 1828, páginas 51 e 52 e do dia 10 (segunda-feira) de maio de 1830, nas páginas 411 e 412. Mas o primeiro destes textos erra o nome do barco atacado. Existem igualmente bons sites ingleses que trazem inclusive reprodução dos depoimentos dos sobreviventes – Ver http://www.scarboroughsmaritimeheritage.org.uk/article.php?article=297 e http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

[18] Ver https://infinda.blogspot.com.br/2013/11/benito-soto-fulgor-y-muerte-de-un.html

[19] Ver os sites http://www.scarboroughsmaritimeheritage.org.uk/article.php?article=297 e http://www.lineagekeeper.com/2009/05/pirate-attack-on-bark-star.html

[20] Ver o jornal A Gazeta de Lisboa, edição de sábado, 27 de fevereiro de 1830, pág. 3.

[21] Talvez o trabalho que reúne com mais precisão todos os eventos envolvendo Benito Soto foi escrito em 1892, pelo militar espanhol Joaquín Bautista Lazaga y Garay, que publicou o ensaio histórico intitulado “Los piratas del Defensor de Pedro. Extracto de las causas y proceso formados contra los piratas del bergantín brasileño Defensor de Pedro”.

HÁ 210 ANOS, A FAMÍLIA REAL PORTUGUESA EMBARCAVA EM UMA INFERNAL VIAGEM PARA O BRASIL – UM CAMINHO MARCADO POR MANTIMENTOS CONTAMINADOS E INFESTAÇÕES DE RATOS E PIOLHOS

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A saída da frota com a corte – Crédito – Reprodução – Geoff Hunt – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/purgatorio-em-alto-mar-a-transferencia-da-familia-real-portuguesa.phtml#.WiFs5kqnHXN

AUTOR – André Luis Mansur

FONTE – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/purgatorio-em-alto-mar-a-transferencia-da-familia-real-portuguesa.phtml#.WiFs5kqnHXN

A mudança da família real portuguesa e sua corte para o Brasil não foi uma atitude tomada às pressas. Os preparativos para a viagem ao Rio de Janeiro começaram já em agosto de 1807, após Napoleão exigir que Portugal rompesse laços com a Inglaterra.

Começou aí um jogo de dom João: enquanto tentava chegar a um acordo com a França, dizia aos ingleses que ficaria neutro no conflito entre os países. Mas, na surdina, mandava empacotar toda a riqueza da corte. Assim, durante quase quatro meses, camarotes foram sendo construídos em navios atracados em Lisboa, para onde eram transportados água e mantimentos.

A ordem para zarpar veio em 29 de novembro. Segundo o historiador Jurandir Malerba, autor de A Corte no Exílio, quando as tropas francesas cercaram Lisboa, o embarque teve de ser feito em algumas horas. O historiador inglês Kenneth Light, que estudou os diários de bordo da época, diz que cerca de 11500 pessoas viajaram.

Cena monumental 

Ainda naquele 29 de novembro, dia da partida de Lisboa, a esquadra portuguesa – composta por 19 navios – encontrou-se com a frota britânica que a escoltaria até o Brasil – outras 13 embarcações. Essa deve ter sido uma cena monumental, de ficar gravada para o resto da vida na memória de quem a testemunhou: 32 barcos de guerra, mais uns 30 navios mercantes, preparando-se para a travessia oceânica. 

As condições a bordo não eram nada agradáveis. A água era escassa, de má qualidade. E a comida não passava de carne salgada e biscoitos.

Em pouco tempo, o mantimento já estava contaminado por vermes. Animais vivos também foram embarcados, para garantir um pouco de leite, ovos e alguma carne fresca que pudesse ser servida aos passageiros mais chiques. Portanto, dá para supor que as condições de higiene estavam longe do aceitável.

Dom João e sua mãe, a rainha Maria I, estavam no navio Príncipe Real – acompanhados de Pedro e Miguel, os dois filhos do príncipe regente com Carlota. Quatro das seis filhas do casal viajavam com a mãe, no Alfonso de Albuquerque. E as outras duas filhas seguiam no Rainha de Portugal. Ainda havia uma tia e uma cunhada de dom João, embarcadas no navio Príncipe do Brasil.

No Afonso de Albuquerque, navio em que viajava Carlota Joaquina, uma infestação de piolhos obrigaria todas as mulheres – incluindo a princesa – a raspar o cabelo. Ratos eram abundantes nas embarcações, o que só aumentava o risco de uma epidemia. Por causa da alimentação precária, distúrbios intestinais tornaram-se comuns. Para os nobres portugueses em fuga, a situação não poderia ser mais constrangedora.

Às três horas da tarde, o comandante da Armada britânica, Sidney Smith, ordenou uma salva de 21 tiros de canhão. Estava marcado o início da penosa jornada da família real em direção à colônia.

Os franceses chegaram a Lisboa às 4h da manhã do dia 30 – e a corte já estava a caminho do Rio, onde chegou em 17 de janeiro. Dom João e a família, após ficarem presos em uma área sem vento, aportaram no dia 22 – e em Salvador. Ao Rio, só chegaram em 7 de março de 1808.

Correria 

Confira em imagens os detalhes da transferência

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A transferência

Transatlântico de guerra 

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A corte encheu nove embarcações de linha – navios de guerra de 2 mil toneladas e até 80 canhões. A “Príncipe Real” levou dom João, sua mãe, dona Maria I, os infantes Pedro e Miguel e outras pessoas. Navios mercantes, escunas e charruas também foram usadas.

Proteção britânica 

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A Inglaterra deslocou nove navios de linha para proteger a corte até a Ilha da Madeira – até onde Napoleão poderia chegar, já que a França não tinha grandes navios. De lá, cinco naus voltaram para bloquear o rio Tejo contra os franceses e as outras seguiram na escolta. 

Objetos valiosos 

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O clima era de medo – ninguém sabia quando as tropas francesas chegariam. Os nobres levaram tudo que podiam: documentos, prataria, mobília, livros, joias. Nem um pedaço de cristal que decorava o Gabinete de História Natural de Lisboa foi deixado para trás.

Maior contingente 

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Tinha mais tripulação do que tudo: cerca de 7 mil trabalhadores e 4500 passageiros. Como o navio não tinha motor, eram precisos pelo menos 600 homens para fazê-la navegar. Vieram marinheiros, carpinteiros, fuzileiros e cozinheiros, entre outros. 

Excesso de bagagem 

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Na bagagem da corte veio uma biblioteca inteira, além de um prelo e tipos para uma prensa. Uma fragata trouxe 19 carruagens e calcula-se ainda que a corte tenha trazido 80 milhões de cruzados em ouro e diamantes – metade do capital circulante no reino.

Quem embarcou 

Os principais personagens que vieram morar no Brasil

Dom João VI (1767-1826) 

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Filho de dona Maria I e de dom Pedro III, o segundo na linha sucessória ocupou o trono porque o primogênito, dom José, morreu. Foi coroado rei no Brasil, em 1818. Por ter fugido, divide opiniões. Para uns, foi um estadista. Para outros, um covarde.

Dona Maria I, a Louca (1734-1816) 

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Herdou o trono porque seu pai, dom José I, não teve filhos homens. Em 1760, casou-se com o tio, dom Pedro de Bragança. Dizem que perdeu o juízo ao ficar viúva e costumava ver assombrações. Declarada insana em 1792, foi substituída pelo filho, dom João.

Carlota Joaquina (1775-1830) 

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Nascida na Espanha, aos 10 anos casou-se com dom João e teve nove filhos. Em 1805, tramou para matar o marido, que foi viver em outro palácio. No Rio, também viveram separados. De volta a Portugal, em 1821, estimulou o filho dom Miguel a dar o golpe.

Dom Pedro I (1798-1834) 

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Deixou Portugal com 9 anos. Em 1821, virou príncipe regente no Brasil. Menos de um ano depois, as cortes de Lisboa tentaram destituí-lo e ele proclamou a independência. Em 1826, voltou a Portugal para tentar reaver o trono usurpado pelo irmão.

Dom Miguel (1802-1866) 

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Terceiro filho de dom João, viveu no Rio dos 5 aos 18 anos. Em Lisboa, tornou-se comandante do Exército e organizou uma insurreição. Virou regente em 1826 e rei de 1828 a 1834. A disputa pelo trono virou uma guerra civil e dom Miguel perdeu.

Sir Graham Moore (1764-1843) 

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Os britânicos ofereceram proteção a dom João para não se aliar a Napoleão. A chegada da família real a salvo aqui foi garantida pela escolta do capitão Graham Moore, que liderou quatro embarcações de linha britânicas – Marlborough, Monarch, Bedford e London.