LIVRO – A GUERRA TOTAL DE CANUDOS SOB UM OLHAR PERNAMBUCANO

O BLOG TOK DE HISTÓRIA RESGATA PARA SEUS LEITORES UMA INTERESSANTE REPORTAGEM DE 1997, ONDE O ESCRITOR FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO TROUXE MUITAS INFORMAÇÕES SOBRE A GUERRA DE CANUDOS, COM BASE EM EXTENSA UMA PESQUISA PARA UM LIVRO QUE FOI LANÇADO NAQUELE ANO.

Autor – Anco Márcio Tenório Vieira – Publicado orginalmente na Revista Suplemento Cultural, outubro/novembro de 1997, págs. 4 a 9.

Rostand Medeiros e Frederico Pernambucano de Mello.

Sendo reconhecidamente o maior especialista brasileiro em cangaço, com uma obra que se tornou leitura obrigatória para todos os que se dedicam ao tema, o historiador Frederico Pernambucano de Mello publica, aos 50 anos de idade, o seu sexto livro: Que foi a Guerra Total de Canudos (Editora Stahli). Se há surpresa para os que o tinham somente como um pesquisador do banditismo no Nordeste, maior ela será ao constatar que este livro de 317 páginas não é apenas mais um, entre centenas, a tratar de Canudos. Nele, vamos encontrar uma revisão crítica das muitas verdades difundidas e aceitas ainda hoje sobre o que foi a Guerra de Canudos, bem como dados até então inexplorados pelos especialistas da área. Um deles, a participação, em campo de batalha, dos soldados do Norte e do Nordeste, em particular, os de Pernambuco. 0 livro, que chegará às livrarias até meados de novembro, também reabilita alguns personagens e textos que estavam esquecidos pelos pesquisadores: a figura de Tereza Jardelina de Alencar (única mulher a compartilhar r do círculo íntimo do Conselheiro); o lado humano e romântico do general comandante da 4“ expedição, Artur Oscar; a obra do general e ex-governador de Pernambuco, Dantas Barreto; o livro de cabeceira do Conselheiro: A missão abreviada, do padre José Manuel Gonçalves Couto (obra muito aludida, mas até hoje pouco analisada); entre tantos outros detalhes esquecidos nas dezenas de relatos, documentos, atas e ofícios produzidos durante a Guerra. Apesar dos inúmeros convites que vem recebendo para participar de eventos alusivos ao centenário de Canudos, no Brasil e no exterior — artigos para jornais, palestras em universidades, conferências para os vários comandos militares do Exército, seminário em Colônia (Alemanha) — Frederico Pernambucano nos concedeu esta entrevista, realizada na sua sala de trabalho, no antigo sobrado que pertenceu a Delmiro Gouveia — localizado no tradicional bairro de Apipucos, no Recife — hoje, sede do Instituto de Documentação, da Fundação Joaquim Nabuco, onde exerce o cargo de Superintendente. Em sua sala, rodeado de retratos, quadros (entre eles, um Vicente do Rêgo Monteiro), peças e documentos que nos remetem ao ciclo do cangaço nordestino, ele discorreu sobre o que foi a Guerra Total de Canudos.

O livro Guerra Total de Canudos, de Frederico Pernambucano de Mello.

Suplemento Cultural — Poucos temas da nossa história republicana foram tão estudados como o da Guerra de Canudos. São centenas de ensaios, artigos e livros que tentam explicar o que de fato teria motivado a mais sangrenta guerra civil brasileira. Ante tudo o que já foi dito e publicado sobre o assunto, por que o senhor, que é um especialista em cangaço, decidiu escrever também sobre este tema?

Frederico Pernambucano de Mello — Em primeiro lugar, porque para ser, ou pretender ser, especialista em cangaço é preciso ter uma grande a finidade com o quadro geral da história regional do Nordeste. E aí entra, como ponto de prioridade, a história das vastidões rurais do Nordeste, sobretudo a história da região sertaneja. O conflito de Canudos, na minha visão, se coloca como o episódio máximo desse grande abismo gerador de exotismo em nossa história, que é o do desenvolvimento paralelo de culturas, de sociedades, e de homens litorâneo e sertanejo. A sociedade no litoral se desenvolvendo de maneira lenta (porém, constante), pelo aporte de inovações, de dados novos que chegavam pelos navios, vindas da Europa, e a partir de um determinado momento, pelos Estados Unidos, enquanto que o Sertão, desde a metade do século XVII, quando se inicia propriamente a sua colonização, com homens que estavam indo do litoral, mais propriamente do Recife, outros contingentes que vinham da Bahia, da Casa da Torre, muito rapidamente entraram em decadência. No caso do Recife, o exército de desempregados que resultou da vitória sobre os holandeses, em 1654. E como nós sabemos, esse exército de desempregados foi recompensado pela Coroa Portuguesa.

Tropas federais que participaram da Guerra de Canudos.

Não com dinheiro, que ela não tinha, mas com datações de sesmarias, no Agreste e no Sertão (na Mata os engenhos já tinham sua titulação de propriedade). Esses homens penetram o Sertão juntamente com baianos e com paulistas, da Vila de São Paulo (que era, na época, miserável, e não dava riqueza nenhuma, a não ser a preação de índios), e se fixam no Piauí e nas zonas mais a Oeste do Estado da Paraíba. Esses três contingentes, caracterizando uma forma de colonização dura, cruenta e que muito cedo, repito, entra em decadência, fazendo com que os valores sertanejos, que eram os valores do quinhentismo e do seiscentismo da cultura portuguesa, ficassem mumificados ali e jazessem intocáveis até eu diria, metade do século atual. Isso na língua, nos costumes, na moral — inclusive sexual — na condução patriarcal da família, na religiosidade, em todos os aspectos que caracterizam a cultura. Canudos é, portanto, o paroxismo dessas fricções que surgem entre duas culturas que não se encontravam, que não se reconheciam. O traço mais saliente disso nos é dado pelo tenente-coronel Dantas Barreto que, durante à noite, em Canudos, no meio da sua tropa, ele, na barraca, ficava ouvindo a conversa dos soldados — não por intuito negativo, mas para saber o que a sua tropa pensava — e ouvia estarrecido um soldado dizer para o outro: “quando eu voltar ao Brasil, vou fazer isso ou aquilo”.

Monumento de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos LUCIANO ANDRADE/

Tão estranhos eram a olhos litorâneos o homem do Sertão, com as suas barbas longas, sua roupa, hábitos e costumes originais, sua maneira de se conduzir. De passagem, lembro Kari Jaspers, no seu tratado de psiquiatria: “O estado de consciência do homem primitivo é alguma coisa inteiramente diversa da doença mental.” Nós não tínhamos, nos homens de Canudos, doença mental, mas um estado de consciência primitivo, mantido nas características primitivas da mumificação sertaneja. Fanatismo, banditismo, misticismo: todas essas peculiaridades do Nordeste que o fazem atraente para turistas, estudiosos, pesquisadores etc., e brotam dessa espécie de Fenda de Santo André, que é a dicotomia Litoral/Sertão.

Suplemento Cultural — Os Sertões, de Euclides da Cunha, tornou-se, ao longo dos últimos 95 anos, a obra de referência e a versão mais “balizada” sobre Canudos. A imagem que temos de Canudos é, de uma certa forma, a que foi fixada por Euclides da Cunha em sua obra. A nossa pergunta é: quais são, no seu entender, os principais equívocos cometidos por Euclides ao escrever sobre Canudos e que os seus contemporâneos (como Dantas Barreto, por exemplo) não cometeram, apesar de muitas dessas testemunhas oculares da Guerra terem tidos, nos últimos cem anos, suas obras relegadas?

Frederico Pernambucano de Mello — A impressão que eu sinto quando releio O5 Sertões (para minha felicidade eu tenho até uma primeira edição, de 1902, que Euclides não reconhecia muito como oficial, porque precisou corrigir lá uns advérbios, aperfeiçoamentos obsessivos de estilista que ele foi) é de quem, ao final, sai de uma peça de teatro, com muita grandeza, nobreza, profundidade, tragédia, que se assiste com a tentação de estar ajoelhado diante daquele drama.

Mas é evidente que as noções geográficas e físicas de Teodoro Sampaio, a ciência de Nina Rodrigues, os grandes inspiradores de Euclides no plano científico, especialmente os autores estrangeiros (que talvez ele não conhecesse tão bem para citá-los com a desenvoltura com que cita); toda essa ciência, realmente, está muito envelhecida. Ademais, Euclides ficou apenas cerca de dez dias no chamado teatro de operações. Ficou pouco tempo. Não se sentiu bem, não esteve à vontade, e a observação direta dele é pouca. Ele, então, teve que se valer de autores que já tinham produzido obra – especialmente Última expedição a Canudos, de Dantas Barreto – e comete erros, por conta disso, não só por não ter estado muito tempo no teatro de operações, mas por depender também de outros autores que estudaram o tema, e por ter fontes jornalísticas nem sempre confiáveis, vários deslizes ligados aos fatos da Guerra. Por conta dessas limitações na percepção — Afrânio Peixoto há muito já disse que Os Sertões não é o livro do que ficou nas vistas de Euclides, mas é o livro do impacto da Guerra na alma de Euclides, nas concepções que ele tinha — é um livro, de certo modo, personalíssimo, revelador do interior de Euclides. É o livro também da sua decepção com a República. Ele chega, no cenário dos combates, republicano, inflamado pela pregação jacobina, militarista, e sai de Canudos decepcionado com aquela perspectiva que se esboçava para uma nova ditadura militar no País. No entanto, o grande problema de Euclides foi a sua incapacidade de compreender a figura sertaneja do Conselheiro, de encadeá-lo num processo que vem desde quando começam as missões no Sertão, com capuchinhos, com oratorianos, com homens — no plano pessoal — de moral ilibada, que combatiam a igreja colonial brasileira (repleta de padres amancebados, funcionários públicos pagos pela Coroa, dentro da instituição do padroado real).

Antônio Conselheiro

E à margem dessa igreja colonial, que era o oficialismo do tempo, surgem vocações de missionários, como o capuchinho frei Vitale da Frecarolo, na passagem do século XVIII para o século XIX, que morre jovem, em 1820. O frei é uma figura mística que fascina o Sertão, pregando o maravilhoso, aquilo que fazia com que o sertanejo deixasse de ver tudo o que havia de limitado à sua volta — uma natureza maninha, uma dificuldade material imensa — para se empolgar com as realidades. as visões bíblicas, as passagens perenais que o misticismo podia proporcionar. Esse homem, como o quê, é seguido, a partir de 1853, por uma espécie de segundo segmento, representado pelo padre oratoriano José Antônio Pereira Ibiapina, que junta ao misticismo de frei Vitale o obreirismo. Porém, o obreirismo dele talvez fosse até maior. Há registros de repreensões dadas pelo padre Ibiapina aos seus beatos, porque eles estavam julgando que a sua missão estava feita apenas na oração. Ele dizia: “não”. Tem que ser na obra, na intervenção sobre a natureza, na caridade, na ajuda material ao próximo e nas obras pias, lembremo-nos que Antônio Conselheiro bebe dessas fontes. Não só o maravilhoso de frei Vitale como do obreirismo do padre Ibiapina, e junta a tudo isso um terceiro segmento estrangeiro – muito divulgado no Brasil, através de uma obra terrível, cheirando a enxofre, que era o livro Missão abreviada, do padre, também oratoriano de Goa, na índia, Manuel José Gonçalves Couto, que poderia ser resumida numa frase: “o mundo está podre, mas tão podre que já não há salvação”.

Ruínas em Canudos!

Euclides da Cunha não compreende Antônio Conselheiro; criado, moldado nesse ambiente secular, e parte para interpretá-lo de maneira fácil, a partir de questões psiquiátricas. De uma psiquiatria, ã época, muito presunçosa — lembremos que é desse período que data Lombroso, Erico Ferri e outros proponentes de esquemas simplórios, reducionistas de interpretação da conduta humana. E ele, então, com Riva, Maudsley pretende esclarecer tanto os casos individuais de patologia mental, quanto os casos coletivos. Nisso, de fato o seu livro hoje não tem mais o que nos dizer. Foi minha preocupação, nesse meu novo estudo, mostrar o Conselheiro, antes de tudo, como sertanejo e, como tal, um homem situado no seu chão, no seu tempo, e em volta dele, desse tempo, os homens que no plano místico, como frei Vitale, padre Ibiapina e Manuel Gonçalves Couto, lideram o misticismo maravilhoso, o ombreirismo impenitente e as escatologias de tragédias que são dadas pela Missão Abreviada.

Soldados do Exército Brasileiro ao final da Guerra.

Suplemento Cultural — Seguindo ainda essa trilha da religiosidade, gostaria que o senhor nos dissesse o que aqueles vinte e cinco m il sertanejos encontraram na figura do Conselheiro que os levaram a abandonar tudo e segui-lo, e também como se manifestava a autoridade religiosa do Conselheiro no dia-a-dia do Arraial?

Frederico Pernambucano de Mello — Antônio Conselheiro, cearense de Quixeramobim, pardo, bastardo, mas nascido numa família aguerrida, que era a família Maciel (em luta permanente contra a família Araújo), nasce com essas duas grandes desvantagens sociais. Ele é um homem que sai colecionando derrotas na sua vida, mas se recupera, para a produção de um conjunto de obras úteis para a sociedade em que vivia, através da pregação religiosa de frei Vitale, já morto, do testemunho vivo, ao seu tempo, do padre Ibiapina, parecendo até que o acesso a Missão abreviada só vem no momento seguinte — porque houve uma fase nele que era francamente de auxílio ao povo, à terra, sobretudo aos menos favorecidos. Curiosamente o Conselheiro nunca se disse um Deus. Pelo contrário, ele mandava que se levantasse da sua presença quem se ajoelhava e tentava beijar-lhe os pés ou as mãos, dizendo claramente: levante-se. Deus é outra pessoa. E quando perguntavam quem ele era, ele dizia: eu sou apenas um peregrino em busca dos mal-aventurados. Ele era um homem de definições absolutamente claras, ilibado nos seus costumes, pobre, que não amealhava valores, o que entrava por um bolso saía pelo outro para os pobres. Essa característica se choca, na visão do sertanejo, com o que era visto na igreja colonial brasileira: o padre com família constituída, às vezes morando na casa principal do vilarejo, apresentando publicamente a mulher, os filhos, entregues à simonia mais desenvolta, dominando o processo político (lembremos que, à época, as eleições eram feitas nas igrejas).

Canudos. Foto Flávio de Barros – http://www.passeiweb.com

Enfim, essa Igreja um tanto desmoralizada sofre um impacto com esses missionários que se apresentavam com a moral ilibada, desinteressados de valores e preocupados com o lado místico. É assim Conselheiro, e ninguém o incomoda enquanto assim foi; o peregrino que construía estradas — algumas das quais ainda existentes no Sertão -, capelas, igrejas, cemitérios, açudes, barreiros, inspirando a formação de ordens sacras. Só em 1892, quando ele se insurge, já no período republicano, contra a cobrança de impostos e, perseguido pela polícia e alvejado por alguns soldados da Bahia, foge com os seus seguidores para fundar o Arraial do Belo Monte de Canudos, que ficava arredado das zonas povoadas do Sertão, só então é que começa a se formar aceleradamente, alguém diria que até dentro de um processo de patologia social — não sei —, em quatro anos, o que viria a ser a segunda cidade da Bahia, a maior e a mais populosa depois de Salvador. Ela surge do nada, onde apenas existia um povoado de cinquenta choupanas em decadência, para a pujança de seis mil e quinhentos casebres, dos quais mil e seiscentas casas boas, com telhas e algumas até com piso de taco. Com uma economia pujante, feita à base de cultura de subsistência, onde estava presente o ofício da confecção do tecido, da rapadura, e da produção dos couros de bode e carneiro para exportação. Nesses quatro anos é que o Conselheiro se transforma num ímã social, porque ele cria um tipo de ajuntamento pio onde não era admitida a presença de delegado, promotor, juiz, prostitutas, bares abertos. alcoólatras.

Antônio Bruega, ex-combatente da Guerra de Canudos, clicado por Audálio Dantas em 1964.

Cria uma sociedade moralmente limpa, com um certo coletivismo dos meios de produção, afinado com o que ele tinha aprendido com a cultura indígena das tabas do Sertão. E mais: a capacidade que ele teve ao se tornar uma figura aguerrida em relação ao meio circundante, atraindo para si negros libertos de 1888, os decepcionados com a República, os caboclos do Sertão, os vários remanescentes de tribos indígenas – como os dos rodellas, kiriri, e várias outras que se associaram a ele no Arraial -, e ao manter o burgo de Canudos à margem da politicagem aldeã. Canudos é a soma desses fatores sociais e econômicos aos fatores físicos. Localizado num trecho do Vaza Barris, que era uma grande zona de drenagem das chuvas daquela zona sertaneja, com a possibilidade de se ter uma boa cultura de legumes, de cereais, Canudos era, como disseram várias testemunhas, uma vasta criação de boi, de bode, de cabra, etc. Todos esses fatores conspiraram para que o Conselheiro mostrasse o rumo de uma colonização diferente daquela que estava sendo levada a efeito pela Coroa, na fase Imperial, e pela República, nos anos mais recentes; um caminho novo de vida que, no entanto, paradoxalmente, era um caminho de passado, era um caminho de volta aos bons velhos tempos da vida arcaica, dos primórdios da colonização.

Canudos na década de 1940.

Suplemento Cultural — Há alguma relação entre a moral religiosa apregoada pelo Conselheiro, aceita sem nenhum questionamento pelos jagunços, e a forma como estes se comportavam frente ao inimigo? Lembro aqui, por exemplo, o fato (revelado em seu livro) dos jagunços só reagirem às investidas das tropas do Exército quando eram atacados.

Frederico Pernambucano de Mello — Canudos tem um período curto de vida. Evidente que nós estamos falando de um ajuntamento urbano que rapidamente cresce em complexidade. Muito cedo, uma liderança política baiana, sertaneja, como era o barão de Jeremoabo, começa a escrever artigos para a imprensa da Bahia, se queixar das lideranças políticas do Estado, de que não havia mais fazenda que pudesse ter a sua vida normal, uma vez que já não havia mais mão-de-obra, toda ela drenada pelo Conselheiro para o seu projeto de teocracia no Belo Monte. Era uma teocracia, efetivamente, o que havia no Belo Monte. Porém, nota-se claramente que o Conselheiro já não conseguia mais administrá-la. Primeiro, porque estava envelhecendo, achacado por doenças; segundo, porque já não era possível administrar sem delegar poderes, sem especializar tarefas e atribuí-las a pessoas de sua confiança. É quando se nota, que ele, fiel a uma velha tendência ainda dos tempos de peregrino (desde quando funda o Belo Monte que ele perde esse caráter de peregrino, ele fica sedentário, e ao optar por ser sedentário, assume uma postura de rei espanhol da antiguidade, aparecendo pouco ao seu povo, valorizando as suas aparições, que era sublinhada por foguetório imenso, emoções, desmaios, dobres de sinos etc.), se faz cercar das pessoas de sua confiança, os seus conterrâneos, os chamados cearenses.

Como se encontrava na década de 1940 o canhão inglês Withworth de 32 libras, a famosa “Matadeira”, utilizado pelo Exército em Canudos e destruído corajosamente pelos seguidores de Antônio Conselheiro.

Quando digo os chamados, é porque aí estavam os que nasceram no Ceará, como ele, mas também os tangidos, em geral, pela seca. Na época, para a imprensa do Centro-Sul, em particular a carioca, cearense era uma espécie de sinônimo de nordestino vítima da seca. Então ele cria, no seu projeto teocrático, uma estrutura de poder que repousava nos seus iguais, nos sofridos como ele, nos mal-aventurados como ele, e esses homens eram sempre os cearenses. Sempre ele tem um cearense como lugar-tenente. Cearense era a sua inspiração divina, o padre Ibiapina. Cearense foi a única mulher, Teresa Jardelina de Alencar, a mais bonita e a mais vaidosa do Arraial, conhecida como a “Pimpona” que – sustenta Dantas Barreto, tendo ouvido de jagunços lá em Canudos — privava não apenas do círculo íntimo do Conselheiro, mas também com quem o Conselheiro conversava, sofrendo dela alguma influência. E isso é estranho, principalmente quando sabemos que diante de qualquer mulher que aparecesse, a atitude do Conselheiro era sempre de permanecer de vistas baixas. Mas a autoridade do Conselheiro, em primeiro lugar, provinha da pureza da sua vida privada e da sua pregação, do desprendimento em face dos valores. Ele era um pregador insinuante, uma palavra persuasiva, um grande autor de catequese, um grande evangelizador, possuía todos os atributos que se espera de um místico para levar a sua pregação a um ponto de sucesso.

Oficiais do Exército Brasileiro e uma moradora de Canudos ferida em uma padiola.

A sua autoridade era uma autoridade indiscutível, teocrática, absoluta, lembrando a dos aiatolás mais recentes no Irã, cujas ordens ninguém discutia. E ele teve ocasião de manifestar essa sua autoridade de maneira drástica. Vou dar apenas aqui um registro. Quando ele chega a Canudos, encontra lá uma família grande de pequenos comerciantes: os Mota Coelho. Mas ele trazia consigo um cearense de sua confiança, uma grande vocação de comerciante, que era Antônio Vilanova. Por convite do Conselheiro, Vilanova começa a bancar o comércio no Arraial do Belo Monte. Muito cedo se choca com as pretensões mercantis dos Mota Coelho. Conselheiro, que sabia que o seu projeto de poder dependia da sua rede de cearenses, manda lentamente exterminar a família Mota Coelho. Só não morrem os que fogem, um dos quais assenta praça na polícia da Bahia, e dá entrevista para os jornais explicando toda essa tragédia que se abatera sobre sua família. Então, era uma autoridade incontrastável, que preenchia todos os vazios, mas era uma autoridade que começava a se esgotar diante do volume que o Arraial estava tomando. Então, grande parte do poder já tinha resvalado para o célebre João Abade, que era uma espécie de Ministro da Guerra; para o seu primeiro general, o pernambucano Pajeú, natural da Baixa Verde, que foi o seu grande cabo-de-guerra; e as funções de Casa da Moeda e Juiz de Paz atribuídas ao citado Antônio Vilanova.

Ruínas em Canudos.

Não obstante, o seu poder ainda era tão grande que, apesar de alguns dos seus guerreiros terem pretendido adotar uma estratégia ofensiva, quando viram que o Exército estava tropeçando nas próprias pernas, nada disso foi feito. Não porque faltasse ao sertanejo a intuição militar de fazê-lo. Pelo contrário. Essa intuição militar sobrava no sertanejo. O próprio exército admite isso. Acontece que o Conselheiro era radical na pregação de que o papel militar deles era de defender o Belo Monte. Não fazia parte da estratégia do Conselheiro derrotar o Exército. Fazia parte defender o mundo sertanejo que ele compreendia de uma concepção litorânea que lhe era completamente estranha. E em Canudos, o que há de mais dramático é que os litorâneos, em nenhum momento, compreenderam os sertanejos, e os sertanejos não tinham como compreender os litorâneos.

Foto de uma nota do jornal natalense A República de 1897, sobre o desenrolar da Guerra.

Suplemento Cultural — Como se dava a organização militar dos jagunços — suas táticas de guerra, seus armamentos etc. — para que eles pudessem enfrentar o Exército e saírem vitoriosos em três das batalhas? Ainda dentro da pergunta, quais foram as principais falhas táticas cometidas pelas expedições militares?

Frederico Pernambucano de Mello — O conhecimento militar dos jagunços claramente não eram alguma coisa que exultasse de uma verdade revelada. Quando acontece a 1ª Expedição Militar, do tenente Pires Ferreira, os jagunços, que se chocam com essa expedição no povoado baiano de Uauá, perdem uma quantidade enorme de adeptos. É verdade que conseguem colocar a tropa do Exército para correr, mas enquanto os militares perdem cerca de dez homens, os jagunços perdem cerca de cem ou mais. Eles ainda não conheciam bem o sistema de combate. A partir da 2ª Expedição, de Febrônio de Brito, eles começam a receber, de permeio com a população, cangaceiros famosos que vinham de Pernambuco, da Bahia, e começam também a aprender alguma coisa observando os próprios militares. O que é preciso lembrar, ao contrário do que dizia Euclides da Cunha, é que a 1ª Expedição Militar, a de 1896, já era equipada a fuzis Mannlicher, modelo 1888, e não a Comblain, que era um fuzil mais antiquado e não era uma arma de repetição. Os jagunços começam a aproveitar essas armas e aprendem a fazer uso delas maravilhosamente. É curioso assinalar que, apesar, de desde a 2ª Expedição, os jagunços disporem de fuzis do Exército, eles não abandonam os seus bacamartes.

Outro grupo de militares.

O bacamarte é uma arma que provocava um tiro fragmentário, com pregos, pelouros de chumbo, pequenas pedras de hematita, muito abundantes no local, enfim, que era usado muitas vezes para fazer uma varredura, ou manter uma posição. Os jagunços tinham uma consciência – que pode ser coisa arcaica, mas que na verdade é uma caraterística até de guerra moderna — de que o seu bacamarte tinha um uso militar. Eles combinam maravilhosamente o uso do bacamarte com o uso dos fuzis recolhidos do Exército. Atuavam numa ordem tática admirável. Com formação diluída, piquetes de 12 a 20 homens, manobrando em formação e desfazendo aquela formação rapidamente. Os que seriam comandantes de companhia, na linguagem militar, que eles chamavam de cabos de turma, usavam apitos para dar as vozes de comando. E nas distâncias maiores, em que o apito não era audível, eles usavam o bacamarte, com tiro de pólvora seca, para formar e desmanchar as linhas de atiradores, promover o ataque de flanco, promover a retaguarda, e fustigar, enfim, a tropa militar de todas as maneiras. Os remanescentes das 2ª e 3ª Expedições trouxeram para o litoral uma crônica sobre o modo de combater dos jagunços que era aterrorizadora, porque eles diziam o seguinte: nos comboios, os jagunços atiravam logo nos cavalos. Aí imobilizavam os comboios e, facilmente, não tinham mais pressa, a partir desse momento, de destruir os homens que seguiam juntos com aqueles comboios.

Jornal dos Estados Unidos comentando a vitória das forças legais em Canudos.

Chegavam ao requinte de retirar a farda dos soldados mortos, vestirem-se com essas fardas, penetrarem nas linhas do Exército, e disseminarem o pânico completo, atirando quase à queima roupa nos soldados que supunham estar sendo alvejados por seus próprios companheiros. Enfim, usavam de todas as velhacarias. Há um correspondente do Jornal do Brasil, na época, que diz: os jagunços se vestiam de folhas, traziam chocalhos ao pescoço, para mais insidiosamente penetrarem nas linhas dos soldados e poderem matá-los. E o que mais se vê da crônica militar é a consideração de que o jagunço era invisível. De fato, há aí um campo extraordinariamente rico. O jagunço, já em 1897 (sintonizado com uma virtude militar que só seria teorizada em termos finais, e colocada em prática, sistematicamente, em 1904, pelos japoneses, na Guerra Russo-Japonesa, mais especificamente na Campanha da Mandchuria), com a sua mescla azul desbotada e a sua túnica de algodãozinho, muitas vezes fiado nas rocas e nos fundos do próprio Arraial, ofereciam cores que, segundo os manuais militares, desaparecem da vista humana entre cento e cinquenta e duzentos e trinta metros. Enquanto isso, o nosso Exército, fazendo uso do azul ferrete, nas túnicas, e do vermelho escarlate, nas calças, se fazia visível ao jagunço em distâncias superiores aos setecentos e até compatíveis com os mil metros de afastamento do atirador.

Jornal “A Republica”, 10 de dezembro de 1897 – A tropa de potiguares do 34º Bataslhão que seguiu para Canudos retornou para Natal no vapor “Una”, o mesmo que os transportou oito meses antes. Às onze e meia da manhã, em torno de 4.000 pessoas aguardavam o desembarque, depois seguiram para a Matriz para uma missa, havendo uma quase interminável seção de discursos no quartel e finalmente os veteranos para as suas casas. Os jornais comentam, com uma sutileza típica da impressa na época, que muitos soldados voltaram “doentes e inutilizáveis”. No outro dia a tropa e a população da cidade inauguraram o monumento aos mortos da guerra no cemitério do Alecrim.

O Exército de homens do Norte e do Nordeste, e também de sulistas, era, basicamente, de litorâneos, salvo pelo Batalhão de Polícia da Bahia, composto por barranqueiros do São Francisco, homens que Euclides considerava ajagunçados. Esses eram diferentes, eram, inclusive, eficientes na guerra contra os homens de Conselheiro. Mas os litorâneos, ao chegarem ao Sertão, não viam como se apropriar das riquezas sertanejas, que não são à flor da pele. Quem chega na caatinga pensa que vai morrer de fome em pouco tempo, mas o catingueiro sabe que tem por si o mel de abelha, que lhe permite o suprimento calórico fabuloso, as várias formas alimentares, inclusive de fauna e de flora, que a olhos especializados se oferecem com facilidade. O Exército não enxergava nada disso, não conseguia tirar daquela terra as riquezas necessárias, e padece de fome grave. Houve um grande descuido, da parte dos comandantes militares, em todas as expedições, quanto ao aprovisionamento de munição, aquilo que hoje se chama de logística. No entanto, é imperdoável a ausência dessa logística, porque ela já era muito antiga, como imperativa a qualquer força expedicionária que vá combater território inóspito. Mas no Exército Brasileiro dessa época prevalecia a ideia de que toda força expedicionária teria que se valer dos recursos locais, e assim era, mesmo quando se tivesse a certeza de que esses recursos locais eram inexistentes.

Na edição de “A Republica” de 17 de julho, estão listados os nomes dos mortos, seus beneficiários e suas patentes. Ao ler a lista, salta aos olhos um fato interessante; dos 41 integrantes do 34º Batalhão de Infantaria listados pelo jornal como mortos no conflito, não há um único oficial. No total são 3 sargentos, 9 cabos, 3 anspeçadas (patente atualmente extinta), 3 músicos (corneteiros) e 23 soldados.

Outro problema do Exército era a excessiva liberdade que os chefes militares tinham de polemizar entre si. A Guerra de Canudos foi extremamente permeada por um número enorme de correspondentes de guerra dos jornais do Centro-Sul e da Bahia. Havia um deles, capitão honorário do Exército, José Benício, do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, que era com uma pena numa mão e, com a outra, um mosquetão. Como historiador, eu só encontro a Guerra do Vietnã, recentemente, para comparar com o que foi a presença íntima da imprensa nas linhas de fogo, mandando informes de Canudos a cada instante. Havia linha telegráfica de Monte Santo transmitindo esses artigos para Queimadas, de Queimadas para Salvador, e de Salvador para o Rio de Janeiro, e os chefes militares ficavam, através dos seus artigos, polemizando pela imprensa. Um caso dramático foi o do chefe supremo da 4ª Expedição, o general Artur Oscar, que manda dizer à imprensa do Rio que o inimigo era, no mínimo, de quatro mil combatentes, e o coronel Carlos Teles, comandante da 4ª Brigada de Infantaria, que escreve para o mesmo jornal, em desmentido, e afirma que os jagunços não passavam de seiscentos homens. Isso causa um impacto enorme na imprensa. Eram dois chefes militares, um subordinado ao outro, mas que abrem polêmica pela imprensa no momento mesmo em que os combates se feriam. A outro caso, o do tenente Marcos Pradel de Azambuja que responde ao tenente-coronel José de Siqueira Menezes, desmentindo, até de maneira dura, um artigo que tinha sido mandado por este. Era o tempo do chamado bacharel soldado. A Escola Militar tinha um curriculum enciclopédico, onde se discutiam os temas da Revolução Francesa, e ninguém discutia a matéria técnica conexa à arte militar. Então, essa ausência de ensinamento de técnicas militares vem também dificultar a aplicação das ordens de comando no campo de batalha.

Foi em Canudos que o gênio de Euclides da Cunha criou a frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. E é mesmo!

Suplemento Cultural — Existe um episódio em Canudos, praticamente desconhecido, que é o da participação dos soldados pernambucanos na Guerra de Canudos. Ressalta-se muito a participação dos gaúchos na 4’ Expedição, organizada pelo general Artur Oscar, mas se tem esquecido dos soldados nortistas e nordestinos. O senhor, de maneira pioneira, estuda essas participações. Comente um pouco a presença desses soldados no campo de batalha.

Frederico Pernambucano de Mello — Em cem anos de bibliografia sobre Canudos, o que se passou para o público foi a ideia de que, além de um conflito entre litoral e Sertão, teria havido, também, em Canudos, um conflito entre Norte e Sul. O Norte, termo genérico que englobava na época o Nordeste, representado pelos jagunços, e o Sul, representado pelo Exército. Então, eu pude verificar – e é um dos pontos de pioneirismo do estudo que estou apresentando – que as tropas que intervieram na fase mais penosa da Guerra, que é a fase inicial, a partir de 25 de junho, com os primeiros combates a 27 e 28 também de junho, são tropas do Norte e do Nordeste. Do Recife — que foi uma cidade particularmente lançada em todos os episódios da Guerra — parte, escolhido pelo presidente da República, o comandante supremo, o general Artur Oscar, para o teatro de operações, à frente de uma força expedicionária portentosa, tão logo corre a notícia, mais ou menos a 7 de março, da morte do coronel Moreira César (ele morrera a 3 de março, mas a notícia só chega à imprensa em tomo do dia 7).

Vista do mirante de Canudos, a estátua de Antônio Conselheiro, no Parque Estadual de Canudos, na Bahia LUCIANO ANDRADE/AE

O general era um carioca, agauchado pelo longo período de permanência na fronteira Sul do Brasil, e um herói de verdes anos da Guerra do Paraguai. Mas esse homem morava no Recife com a sua esposa, dona Maria Helena, figura marcante em todos os passos da sua vida. Artur Oscar parte do Recife com o 14º Batalhão de Infantaria, que era de Pernambuco, e o 27º Batalhão de Infantaria, da Paraíba. Poucos dias depois, recebe o aporte do 34° Batalhão, do Rio Grande do Norte; do 35º, do Piauí; do 2º, do Ceará; do 5°, do Maranhão; e do 40°, do Pará. Em seguida, o 26°, de Sergipe, e o 33°, de Alagoas. Ao lado de três batalhões gaúchos, é essa tropa, inicialmente, quase que esmagadoramente predominante de nordestinos e nortistas, que intervém na Guerra. Por Recife passam quantidades imensas de tropas. A cidade se alegra, se engalana, se prepara para receber maravilhosamente, ao longo dos meses de março e abril, essas tropas que passavam, e se converte no que, um pouco naquela ideia que foi desenvolvida com a Segunda Guerra Mundial, em relação a Natal, no Rio Grande do Norte, em uma espécie de trampolim da vitória da Guerra. No dia 15 de março sai daqui o comandante supremo, no mesmo navio, com tropas do Norte e do Nordeste. O engano de se supor que o exército era, todo ele, de sulistas, é que, na fase final da Guerra, muitos meses depois de iniciada a ação, as tropas vão sendo substituídas pelas tropas frescas vindas do Sul, e acontece que, em um determinado momento, já a seis dias do final da Guerra, esses sulistas estavam em bom contingente. Alguns, até chegados recentemente. E ao chegarem, com eles segue o fotógrafo Flávio de Barros, contratado pelo ministro da guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, para fazer a cobertura dos lances finais da Guerra. Assim, a iconografia da Guerra remete o historiador apressado à crença de que o Exército era todo aquele contingente de homens de bombachas, tomando chimarrão, com chinelas à beduíno, quando, na verdade, o grande suporte da Guerra é de nordestinos e de nortistas.

Suplemento Cultural — Estou lembrando que no livro No calor da hora; a Guerra de Canudos nos jornais, de Walnice Nogueira Galvão (1977), a pesquisa para nos jornais da Bahia. A autora deixa sem levantamento, assim, tudo o que também se publicara nos outros periódicos do Norte e Nordeste. Eu pergunto se há algo de exclusivo que os jornais pernambucanos registraram e que passou desapercebido pelos outros jornais da época.

Frederico Pernambucano de Mello – Há uma riqueza muito grande nos jornais pernambucanos por uma circunstância afortunada. É bem verdade que tanto os jornais do Sul quanto os de Pernambuco reproduzem bastante matérias transcritas dos jornais da* Bahia. Eram feridos que desciam para Salvador e eram ouvidos pelos repórteres, ou eram ouvidos em Queimadas, na ponta da linha do trem, ou até mesmo em Monte Santo. Mas no Recife aconteceu uma coisa curiosa. Dada a união romântica, muito bonita, do general Artur Oscar com a sua esposa, dona Maria Helena, ele se permitia mandar telegramas quase diários para ela, relatando cada passo dos combates. Consequentemente, muito cedo a imprensa de Pernambuco descobre que era na casa do general que estava uma das melhores fontes de notícias frescas sobre o teatro de operações. E aí há uma verdadeira orgia de informações patrocinadas pela esposa do general.

Ela recebia os telegramas, lia e passava para a imprensa, e essa imprensa muito frequentemente vinha a público agradecer a generosidade de dona Maria Helena, “sem cujo concurso a nossa redação estaria completamente à mingua de notícias”. Então, o diferencial positivo da imprensa do Recife é de natureza romântica e doméstica, porque passa pelo amor do general pela sua esposa, e pela generosidade dessa esposa em alimentar de informações a imprensa da cidade a que ela tanto amava. Eu tive o cuidado, no livro, de colocar uma grande quantidade desses telegramas, que começam sempre de maneira muito bonita: “Monte Santo, data tal, Maria Helena, saudades”, e aí segue seu relato. Essa fonte alternativa, romântica, muito simpática, e muito insuspeitada de informações, não há em nenhum outro ponto do Brasil, era privativa do Recife. Para esta cidade ele volta ao final da Guerra, desdenhando de ser recebido no Rio de Janeiro pelo presidente da República, o que causou um grande frisson. Ele vem de Salvador para o Recife, onde recebe as mais retumbantes homenagens que um chefe militar possa um dia sonhar em receber.

SC — Morre no Recife?

Frederico Pernambucano de Mello — Não, morre no Rio, mas já anos depois. Ele vai morrer em 1903, seis anos depois da Guerra, já reformado e morando no Rio de Janeiro.

SC — No apêndice do seu livro temos verbetes biográficos dos homens da Guerra. Traçando a trajetória de vida desses que foram os artífices da Guerra — militares e civis — o senhor encontrou algum dado revelador, até então desconhecido?

Ruínas da Guerra.

Frederico Pernambucano de Mello — O livro tem um apêndice com três contribuições que eu reputo de importância para a compreensão da Guerra. O primeiro é o memorial deixado pelo frei João Evangelista de Monte Marciano, um italiano chegado ao Brasil, em 1872, que esteve no Arraial, em 1895, tentando, através da pregação religiosa, dissolver o Arraial, que já era considerado pela Igreja Católica como uma força contrária ao ultramontanismo de Roma, porque se formava ali uma Igreja popular. Por exemplo, uma instituição de igreja popular era a “beija das imagens”. Isso vinha do padre Ibiapina. Terminada a solenidade, o Conselheiro ia beijando imagem por imagem. A Igreja Católica, na sua ortodoxia, não reconhecia esse ato como fazendo parte da liturgia. Também o papel da República se voltando contra aquele irredentismo de Canudos. Tudo isso está no relatório do frei Monte Marciano. Ao lado disso, eu tive o cuidado de, em mais de dois anos de investigação, purificar a informação sobre as armas empregadas na Guerra. Isso parece irrelevante, mas na verdade tem um grande papel, porque a bibliografia centenária da Guerra nos remete a uma grande confusão. Ainda recentemente, instituições sérias têm publicado verdadeiros disparates nesse campo, apontando armas que jamais foram utilizadas ali, ou enaltecendo o papel de canhões, como as baterias Canet, que morreram virgens, porque chegaram em Monte Santo e de Monte Santo não foram levadas para o teatro de operação, e, no entanto, são apontadas como sendo as grandes armas de importância em Canudos. Então houve essa preocupação de purificar a informação militar sobre os petrechos bélicos, e chegar a um grau de confiança que parece bastante aceitável. Por fim, uma biografia das figuras envolvidas na Guerra. E aí há revelações bem curiosas. Uma delas é a figura de Teresa Jardelina de Alencar de quem já falamos anteriormente. Foi possível também verificar, nesse cotejo das figuras da Guerra, que um nome avultava em meio a todos os demais: o do então tenente-coronel Dantas Barreto.

Antônio Conselheiro na Guerra de Canudos.

Pernambucano de Bom Conselho, herói da Guerra do Paraguai, para onde segue com 15 anos de idade, volta como alferes por bravura, e que na Guerra de Canudos, onde chega, a 25 de junho, comandando o 25° Batalhão de Infantaria, vindo do Rio Grande do Sul, em pouco tempo é elevado ao comando da 3° Brigada de Infantaria. É o idealizador do entrincheiramento mais importante, que teve o nome de Linha Negra, e fica por ser o expugnador da Igreja Nova, que era o baluarte máximo dos jagunços. Esse homem fica do primeiro ao último dia da Guerra, o que é uma raridade, em trincheiras insalubres, fétidas, atacadas pela varíola, infestadas de muquiranas e de piolhos, onde a desinteria grassava a cada instante e onde, muito frequentemente, os oficiais passavam apenas seis dias, porque caíam doentes. Dantas, por ser sertanejo e de origem humilde, fica do primeiro ao último dia da Guerra e pratica as façanhas mais importantes. No plano militar é, ao meu ver, o grande herói da Guerra. Também será esse homem que produzirá, entre os seus contemporâneos, a obra literária mais vasta sobre a Guerra de Canudos, embora inteiramente esquecida, apesar de a Última Expedição a Canudos, de 1898, ser o livro mais citado por Euclides da Cunha em Os Sertões. Mas o Dantas nos deixa também os livros Destruição de Canudos, de 1912, e Acidentes da Guerra, de 1914. Acidentes da Guerra é o primeiro romance histórico, escrito por militar, abordando aspectos da Guerra, inclusive o perfil mental do coronel Moreira César. É uma figura que compreendeu que o Conselheiro era um pregador persuasivo, era um homem, como ele dizia, de vistas superiores, um grande condutor da sua gente.

Imagem de Antônio Conselheiro em jornais da época – Fonte – http://culturapauferrense.blogspot.com.br

É a Dantas Barreto que nós devemos a convicção — e não a Euclides, jamais a Euclides — de que o Exército não se bateu em Canudos contra nenhum idiota, nem nenhum doente mental. Porque a ideia que se tem que Conselheiro seria um paranoico, um desequilibrado — como disse Euclides: um neurótico vulgar — é que o nosso Exército, que perde em Canudos cinco mil soldados, tinha tido um papel estranho de não conseguir vencer um homem com todas essas qualidades negativas. Na verdade, Dantas mostra claramente que o Conselheiro tinha virtudes de condottiere das massas.

SC — O seu livro também trata dos excessos da Guerra de Canudos. Quais foram esses excessos?

Frederico Pernambucano de Mello — Muito se fala sobre os excessos da Guerra de Canudos. De fato, é uma Guerra absolutamente sem quartel. Mas os excessos foram de parte a parte. Normalmente, nós vemos mais o excesso do Exército, ao não permitir prisioneiros masculinos, quase todos eles degolados ao final da Guerra; ao patrocinar uma diáspora de crianças, os chamados jaguncinhos, que eram doados pelo comandante supremo a quem os solicitasse. O próprio Euclides da Cunha levou um desses meninos, que viria a ser um professor primário em São Paulo. Outros deram a essas crianças destinos menos nobres. As mocinhas, às vezes de 12, 13 anos, eram estupradas impunemente pelos soldados. Formaram-se comitês de auxílio. Um deles, chefiado pelo jornalista Lelis Piedade, que encaminhou, em Salvador, algumas dessas crianças para um destino melhor, mas, no geral, órfãs, elas sofreram uma diáspora, foram espalhadas por todo o país.

Euclydes da Cunha – http://www.estadao.com.br

Os homens adultos, degolados, com as carótidas cortadas, ao estilo da fronteira, ao estilo uruguaio, da malagataria, e argentino, da província de Corriente, bebido no Rio Grande do Sul, desde o levante Federalista de 1893. Mas também do lado jagunço, o retalhamento a facão dos feridos da 1ª e 2ª Expedições, e da 3ª, do coronel Moreira César — o próprio Moreira César, juntamente com o capitão Salomão da Rocha e o coronel Tamarindo, foram retalhados a facão. Era uma guerra sem condescendência, de parte a parte. Com relação ao Exército, é interessante dizer, porque quase não há investigação nesse sentido, de que, já em 1900, o Exército assumia uma posição de censura aos excessos de conduta praticados por um de seus membros, o general Artur Oscar, na condução da Campanha de Canudos. Esse fato nos vem da seguinte revelação: nesse ano de 1900, o general Artur Oscar se dirige oficialmente ao Senado da República pedindo a instituição de uma comenda, com o que seriam galardoados os militares participantes da Campanha de Canudos. O Senado abre vistas do processo ao Exército, e o Exército envia o assunto ao Estado Maior. Presidia o Estado Maior o general João Tomás da Cantuária, considerado um militar brilhante na época. E o parecer do general é um primor de equilíbrio, ao dizer que o Exército Brasileiro, oficialmente declarado ao Senado da República, não era favorável a instituição de uma comenda, devido aos excessos praticados numa Guerra que, em final de contas, era um conflito de brasileiros contra brasileiros, realizado inteiramente no âmbito de um Estado da Federação.

Corpo de Antônio Conselheiro.

Então, o que se pode ver do episódio de Canudos é o Exército punindo e limitando o próprio Exército. E esse pequeno ponto de luz é sempre interessante que se tenha em vista, no momento em que, costumeiramente, o mais fácil, o mais sensacional, é apenas mostrar a sistematização da degola praticada pelos militares, em Canudos.

Suplemento Cultural – Euclides conclui Os Sertões dizendo que “ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas [do Conselheiro], as linhas essenciais do crime e da loucura…”. O senhor, de certa forma, conclui o seu livro discordando dessa assertiva, quando transcreve os resultados científicos que, em dezembro de 1897, o médico Nina Rodrigues revelou ao país. Para este, não havia “nenhum a anomalia que denunciasse traços de degenerescência” no Conselheiro. Porém, como fizera Euclides, antes, o senhor deixa o leitor mais uma vez curioso, pois fica sem saber qual foi a reação das autoridades e do povo brasileiros com o tão esperado laudo de Nina Rodrigues, depois de tudo, que se tinha dito e escrito na imprensa contra o Conselheiro.

Frederico Pernambucano de Mello — É verdade. Observe-se que Os Sertões é um livro que cria uma ideia de um Conselheiro monstruoso. E por conta talvez dessa crença que existia, e que Euclides captou e terminou por traduzir em seu livro, ao terminar a Guerra, no dia seguinte, 6 de outubro de 1897, foram feitas escavações numa área ao lado da Igreja Nova, e onde se sabia ter residido o Conselheiro até a sua morte. Rapidamente, foi encontrada uma área de areia fofa, onde se pôde exumar o cadáver de um homem de um metro e sessenta de altura, pardo, desprovido de dentes nas maxilas, vestido com uma batina de mescla azul, e envolto em lençóis brancos e esteiras de cera de carnaúba. Cabelos ainda fortemente escuros, negros, a barba apenas um pouco grisalha, o nariz já parcialmente comido pelos vermes, e que era Antônio Conselheiro.

Representação dos jornais brasileiros mostrando Antônio Conselheiro contra a República Brasileira.

Um médico da Expedição, chefe do corpo sanitário, que era lotado aqui, no Recife, e sai daqui junto com o general Artur Oscar, o major-médico José de Miranda Cúrio, que operava, fazia amputações, conversando o tempo todo com os amigos, contando piadas, e ali fazia 20, 30 amputações de pessoas que chegavam feridas ao Hospital de Sangue, entende de cortar a cabeça do Conselheiro. Remove a massa encefálica, coloca cal para conservação, encerra-a numa urna, e leva ele próprio para Salvador a cabeça do Conselheiro, para que ela fosse periciada pela grande sumidade da ciência nacional, Raimundo Nina Rodrigues. Este recebe o crânio e se permite trocar ideias com o maior psiquiatra brasileiro do seu tempo, Juliano Moreira. Eles analisam exaustivamente o crânio do Conselheiro do meado de outubro até o meado de novembro, quando, então, para surpresa geral, inicialmente deles próprios, depois da Nação, eles revelam que o crânio de Antônio Conselheiro não apresentava nenhuma anomalia que pudesse responder pela sua suposta criminalidade, pela sua violência, pela sua conduta irredenta. Ele tinha o crânio normal, tinha até traços superiores, porque era um dolicocéfalo, mesorrino. A partir dessa proclamação, que é feita com grande surpresa por Nina Rodrigues, inicia-se no país um grande complexo de culpa nacional, que só tem feito crescer, nesses cem anos passados, desde quando a Guerra terminou. Conselheiro não era um criminoso.

Cruzeiro de Canudos na década de 1940.

Conselheiro era apenas um homem diferente, o outro, uma concepção de vida sertaneja que estava inteiramente desconhecida e ignorada no litoral e que, graças a isso, a Guerra não teve por si nenhuma tentativa diplomática de acomodação, de diálogo, de entendimento, e foi até o fim, terminando apenas com o que Dantas Barreto chamou “superação absoluta de um contendor pelo outro”. Mas assim mesmo, o Exército que sai vitorioso da guerra, perde um 1/3 do seu efetivo no campo de batalha. O efetivo do Exército à época, nominal, por lei, era de vinte e dois mil homens, mas, na prática, esse efetivo nunca supera quinze mil. E mesmo esse contingente foi mesclado com forças policiais do Pará, do Amazonas, de São Paulo e da Bahia. Auxiliado também por tropas pernambucanas, que não combateram em Canudos, mas que receberam a missão de etiquetar toda margem esquerda do Rio São Francisco, para impedir um dos grandes perigos que o Exército considerava, que seria a adesão do outro grande arraial místico nordestino, que era Juazeiro do Norte, no Ceará, tendo à frente o padre Cícero, um homem tão poderoso que levantaria, estalando um dedo, oitocentos homens em armas, no momento em que desejasse. O Exército temia que esses jagunços do padre Cícero pudessem se deslocar para o Sul, atravessar o São Francisco e ganhar o Arraial do Belo Monte, se solidarizando com o Conselheiro. Coube ao Estado de Pernambuco criar, para isso, um corpo provisório de polícia, com cerca de trezentos homens, e tornar inviolável essa fronteira de Pernambuco para com a Bahia e Alagoas e impedir, portanto, a possibilidade de auxílio, em homens e em gêneros, para a luta que se feria no Belo Monte.

  • Anco Márcio Tenório Vieira é jornalista, em 1997 era doutorando em Literatura Brasileira na UFPB.

MARYSE BASTIÉ – A PIONEIRA DA AVIAÇÃO QUE PASSOU POR NATAL

MARYSE BASTIÉ – A PIONEIRA DA AVIAÇÃO QUE PASSOU POR NATAL Como uma Antiga Operária de uma Fábrica de Sapatos se Tornou a Mais Importante Aviadora da História da França – Voos Entre Glórias e Tristezas – Como Ela Conquistou o Atlântico Sul em Um Pequeno Avião – Quando Esteve em Natal? – Em Paris Junto ao Deputado Dioclécio Duarte e as Memórias de Natal – Nome de Rua na Capital Potiguar

Como uma Antiga Operária de uma Fábrica de Sapatos se Tornou a Mais Importante Aviadora da História da França – Voos Entre Glórias e Tristezas – Como Ela Conquistou o Atlântico Sul em Um Pequeno Avião – Quando Esteve em Natal? – Em Paris Junto ao Deputado Dioclécio Duarte e as Memórias de Natal – Nome de Rua na Capital Potiguar

Rostand Medeiros – Escritor e Pesquisador.

Na noite de segunda-feira, 23 de dezembro de 1935, rugiu sobre Natal e amerissou no Rio Potengi um grande hidroavião de desenho incomum. Tinha quatro motores colocados em uma asa que era sustentada por uma grossa estrutura onde ficava a cabine de comando, com três motores voltados para a dianteira da aeronave e um para a parte traseira. Aquele estranho pássaro metálico tinha sido construído pela empresa francesa Bleriot para transportar correio aéreo até a América do Sul e era batizado como Santos Dumont. A tripulação conseguiu atravessar o Atlântico Sul sem problemas, depois de partirem pela manhã da cidade de Dakar, a antiga capital da África Ocidental Francesa e hoje capital do Senegal.

A primeira vez que Maryse Bastié veio a Natal foi no Hidroavião Bleriot 5190 Santos Dumont.

Naquela semana de comemorações natalinas, a passagem dessas aeronaves já não era nenhuma novidade no Rio Grande do Norte, que desde 1927 recebia com crescente frequência variados tipos de aviões e hidroaviões. No começo a maioria delas se destinava a bater recordes, superar limites aéreos e transformar seus pilotos em figuras de destaque na mídia internacional, mas nos últimos anos Natal vinha assistindo um intenso tráfego de aeronaves que transportavam passageiros e, principalmente, o rentável transporte de cartas e encomendas. Na época esse era o principal negócio do avião comercial, pois vivia-se em um mundo que nem sequer imaginava algo como a internet e os e-mails.

Quem pilotava o Santos Dumont era o francês Jean Mermoz, um homem de 34 anos, alto, forte, com pinta de ator de cinema e que em 1935 era muito famoso pelos seus feitos no meio aéreo. Seguramente sua maior realização foi a primeira travessia comercial do Atlântico Sul, fato ocorrido entre os dias 12 e 13 de maio de 1930, quando Mermoz, acompanhado do copiloto Jean Dabry e do navegador Léopold Gimié, voaram os 3.200 km de distância entre Saint-Louis-du-Senegal e Natal, com 130 quilos de correspondência, em 21 horas e 30 minutos. Realizaram a proeza em um hidroavião monomotor Latécoère 28-3, pintado de vermelho, com a matrícula F-AJNQ.

Mesmo com todo esse movimento aéreo sobre os céus de Natal, que naquela época repercutia em todo o meio aeronáutico mundial, a verdade é que a chegada do hidroavião Santos Dumont, mesmo com seu piloto famoso, pouco chamou a atenção dos natalenses. A razão foi uma convulsão política que se iniciou na capital potiguar e mexeu com todo o Brasil.

Quartel da Força Policial, conhecido como “Quartel de Salgadeira”, em Natal, após ser metralhado durante a Intentona Comunista – Foto – toxina1.blogspot.com

Deflagrada exatamente um mês do Santos Dumont chegar a Natal, a chamada Intentona Comunista foi iniciada por militares do 21º Batalhão de Caçadores e deixou a comunidade local extremamente chocada com os saques, ataques, tiroteios e mortes. Depois de iniciada em Natal, os comunistas deflagraram outras ações no Recife e no Rio de Janeiro, mas todas foram controladas por forças federais legalistas em pouco tempo. Apesar da derrota dos comunistas, um mês depois as movimentações em decorrência dessa crise ainda ocorriam na cidade. No sábado e no domingo antes da chegada do hidroavião Santos Dumont, respectivamente deixaram Natal os militares do 20º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro e os membros do Regimento Policial da Paraíba (A República, Natal, 22/12/1935).

Apesar de toda essa situação, uma das pessoas transportadas pelo Santos Dumont chamou atenção da imprensa natalense e nacional quando desembarcou. Era uma mulher de baixa estatura, com 37 anos de idade, esbelta, de olhos vívidos e claros, com um sorriso franco e aberto. Era a aviadora francesa Maryse Bastié, que tal como Mermoz já era famosa no final de 1935 pelos seus inúmeros feitos aeronáuticos.

Notícia da primeira chegada de Maryse Bastié a Natal.

Mas o que Mademoiselle Bastié veio ver na pequena Natal, então com cerca de 40.000 habitantes, viajando com um dos pilotos mais famosos do mundo, através de uma rota longa e perigosa?

E o mais importante, quem era Maryse Bastié?

Outra nota da primeira chegada de Maryse Bastié a Natal.

A Operária Que se Tornou Aviadora

Atualmente Maryse Bastié é seguramente a mulher mais importante e famosa na história aeronáutica francesa, sendo muito lembrada como uma das mulheres mais arrojadas e destemidas pioneiras na área da aviação. Mas o início de sua vida não foi nada fácil e sua chegada ao comando de um avião foi uma luta constante e dura, principalmente quando compreendemos a situação das mulheres nas primeiras décadas do século XX.

Nascida Marie-Louise Bombec, no dia 27 de fevereiro de 1898, na cidade de Limoges, no centro-oeste da França, a jovem era oriunda de uma família muito humilde, mas que conseguiam sobreviver com algum conforto, pois seu pai, Joseph Bombec, era um operário especializado com a função de ferreiro (outros apontam que ele seria um moleiro). Já sua mãe, Céline Filholaud, era uma mulher amorosa, dona de casa e mãe de oito filhos.

Limoges cidade natal de Maryse Bastié no início do Século XX.

Infelizmente Marie-Louise ficou órfã de seu pai em 1908, que faleceu de tuberculose, sendo sua família obrigada a deixar casa paterna para viver em um pequeno ambiente na periferia de Limoges. A menina deixou a escola e começou a trabalhar aos 13 anos como uma modesta costureira de couro, em uma fábrica de calçados.

Ela detestava o trabalho repetitivo e realizado em condições complicadas. Buscou então refúgio nos livros, lendo tudo que aparecia na sua frente, principalmente clássicos e romances. Existe a informação que em 1914 Marie-Louise passou a trabalhar como costureira em uma fábrica de roupas militares. Ainda durante a Primeira Guerra houve outra perda para a jovem operária – em 1916 seu irmão Pierre Bombec é morto nas trincheiras.

Operárias francesas no início do Século XX.

Talvez em meio a todos esses momentos extremos foi que Marie-Louise, com apenas 16 ou 17 anos, mesmo contra os conselhos de sua mãe, casou-se com o pintor de porcelanas Jean Baptiste Gourinchas, de 18 anos. Dessa união nasce um filho chamado Germain. Em meio a muitas crises, em pouco tempo ela pediu o divórcio de Gourinchas.

A partir de 1919 Marie-Louise Gourinchas trabalhou como datilografa na Companhia de Eletricidade de Limoges. É provável que nesse ponto de sua vida, aquela jovem mãe divorciada poderia ter continuado sua existência marcada unicamente pela dura luta pela sobrevivência, em meio a fortes preconceitos pela sua situação, em uma França que se recuperava dos flagelos da Primeira Guerra Mundial. Mas a mudança em sua vida ocorreu quando Marie-Louise se uniu ao ex-piloto militar Louis Bastié, um amigo que ela conseguiu através de troca de correspondências no final da Primeira Guerra Mundial.

Foi ao lado desse veterano que ela descobriu a paixão pela aviação. Mas antes de alçar voo, Marie-Louise administrou uma loja de sapatos na cidade de Cognac, certamente utilizando a experiência adquirida na fábrica de sapatos. Mais tarde, seu marido retornou ao exército francês na função de instrutor de voo em Bordeaux-Mérignac, um dos mais antigos aeroportos em atividade na França. A convivência com Louis e o meio aéreo proporcionaram à jovem Marie-Louise Bastié vários voos como passageira em pequenos biplanos de instrução.

O ambiente de hangar, com aeronaves, mecânicos e pilotos, se tornou normal para Maryse Bastié na década de 1920.

O movimento aéreo de Bordeaux-Mérignac encantou Marie-Louise e a área se torna o seu “playground”, onde passeia entre os hangares, aviões em manutenção e motores sendo consertados pelos mecânicos. Não demorou e aprendeu a voar com o instrutor Guy Bart, amigo do seu marido, obtendo sua licença de voo em 29 de setembro de 1925.

Apenas uma semana depois de conseguir esse documento, ela elabora um plano para realizar sua primeira proeza aérea e assim mostrar suas habilidades, atrair a atenção de um possível empregador nessa área e também da mídia. Nos comandos de um frágil biplano Caudron G3, Marie-Louise conseguiu passar com essa aeronave abaixo dos cabos que ligavam as duas enormes pilastras de ferro de uma ponte inacabada em Bordeaux e chamada Pont Transbordeur de Bordeaux. A jovem aviadora realizou esse voo diante de uma multidão de curiosos, sobre o Rio Garonne.

O frágil biplano Caudron G3, Marie-Louise abaixo dos cabos que ligavam as duas enormes pilastras de ferro sobre o Rio Garonne.

Bem, quem olhar a foto acima pode até pensar que esse voo não foi lá essas proezas todas em termos de dificuldades. Mas não podemos esquecer que no comando da pequena aeronave estava uma mulher, que então vivia na moderna e tão decantada França, um país onde em 1925 as mulheres nem sequer votavam e só podiam abrir um negócio com o consentimento do marido. Logo, no dia 13 de novembro, essa mesma mulher voou de Bordeaux a Paris em seis etapas. Essa foi sua primeira viagem aérea.

No ano seguinte uma nova e trágica reviravolta ocorre na vida de Marie-Louise, pois seu companheiro Louis morreu diante de seus olhos no dia 15 de outubro de 1926, durante um voo de teste.

Longe de desanimar e para ganhar dinheiro ela realizou vários voos de publicidade, participou de um rally aéreo e realizou ousadas acrobacias diante de multidões em variados eventos. É nessa época, talvez motivada por questões comerciais, que ela deixou de lado seu nome de batismo e passou a assinar Maryse Bastié.

Voos Entre Glórias e Tristezas

Com o dinheiro arrecadado em seus trabalhos aéreos, mesmo em meio a muitos sacrifícios, Maryse conseguiu adquirir em 1929, por empréstimo, um Caudron C.109 de dois lugares. Era um avião utilitário leve, com pequeno motor Salmson de 40 hp, que ela batizou de “Trotinette” (Patinete).

O Caudron C.109 que Maryse Basté batizou de “Trotinette” (Patinete).

Apesar desse avião não ser mais que um simples “teco-teco”, Maryse conseguiu realizar um recorde de voo de larga duração para mulheres em 27 de julho de 1929. Em parceria e com o apoio financeiro fornecido pelo piloto Maurice Drouhin, ela decolou de Paris e chegou até a cidade alemã de Treptow-sur-Rega, na região da Pomerânia Ocidental, cobrindo a distância de 1.058 km em 26 horas e 47 minutos. Por esta conquista, Maryse e Drouhin receberam um total de 25.000 francos. Drouhin e um mecânico morreram pouco depois, em agosto de 1928, durante um voo de teste com um avião Couzinet 27, em Paris-Le Bourget.

Ainda em 1929, Maryse Bastié realizou um voo onde circulou o Aeroporto Le Bourget de Paris por longas 26 horas e 48 minutos, quebrando o recorde de duração de voo solo para mulheres.

Pouco tempo depois Lena Bernstein, uma descendente de russos nascida em Leipzig, Alemanha, e morando na França, ficou mais tempo voando em circuito fechado que Maryse. Em 30 de setembro de 1930 a francesa deu o troco, quando voou o seu avião leve Klemm L 25, de fabricação alemã, por 37 horas e 55 minutos, estabelecendo um novo recorde de duração de voo solo feminino. Ela lutou contra o frio, a falta de sono, fumaça do escapamento do motor e quase caiu exausta. Consta que nesse voo, para ficar desperta após mais de 24 horas no ar, ela borrifou água de colônia nos olhos, que arderam enormemente, mas o sono passou na hora. Uma multidão de parisienses lhe acolheu após o pouso.

Logo Maryse retorna as primeiras páginas dos jornais em todo mundo com um voo sensacional de longa distância, estabelecendo um novo recorde internacional de voo em linha reta para aviões monopostos, pilotado de forma solitária e por uma mulher. Entre os dias 28 e 29 de junho de 1931 Maryse decolou de Paris e seguiu até o centro da antiga União Soviética, mais precisamente na localidade de Yurino, perto da cidade de Nizhny Novgorod, onde percorreu 2.976 km, em mais de 30 horas de voo, a uma velocidade média de 97 km/h.

Por esse feito Maryse Bastié recebeu do governo francês a Cruz de Cavaleiro da Legião de Honra, foi agraciada pela International League of Airmen com o International Harmon Trophy como “a melhor aviadora do mundo” (atribuído pela primeira vez a uma francesa) e foi condecorada pelo governo soviético com a Ordem da Estrela Vermelha. 

Nada mal para uma mulher nascida em um lar humilde, que foi uma operária em uma fábrica de calçados, com várias perdas pessoais ao longo de sua vida, sem títulos acadêmicos, mas com muita coragem e determinação para seguir adiante.

A partir de então, ela conseguiu viver da renda que ganhava pilotando seu próprio avião e da publicidade.

Em 1934, seu compromisso tomou um rumo mais político e militante: Maryse uniu forças com as aviadoras Hélène Boucher e Adrienne Bolland e apoiaram a associação “La femme nouvelle” (A nova mulher). Fundada em 1934 pela política, feminista, escritora e jornalista Louise Weiss, essa entidade visava o sufrágio feminino e o fortalecimento do papel da mulher na vida pública francesa. Vale lembrar que a França foi um dos primeiros países no mundo a instaurar o sufrágio universal masculino, mas um dos últimos da Europa onde as mulheres puderam escolher livremente seus representantes políticos, fato que só aconteceu em outubro de 1945, após o fim da ocupação alemã.

O ano de 1935 para Maryse Bastié se iniciou promissor e com muitos planos. Ela e o amigo piloto Guy Bart fundaram uma escola de voo na área do Aeroporto de Orly, ao sul de Paris. É quando um duro golpe do destino lhe atingiu novamente – Em 6 de junho de 1935 faleceu no hospital de Bizerte, Tunísia, seu filho Germain, que estava a serviço da marinha francesa. Tinha apenas 20 anos de idade e morreu de febre tifóide. 

Provavelmente devido a toda essa situação, o desenvolvimento da escola durou pouco. Mas foi nessa ocasião, talvez buscando dar uma nova guinada em sua vida e fugir das tristezas, que Maryse Bastié começou a planejar seu voo que a traria a Natal e ao Brasil, superando para isso o temido Atlântico Sul.

Atravessando o Vasto Oceano

Outra imagem do hidroavião Santos Dumont.

Com a ajuda do amigo Jean Mermoz, a aviadora conseguiu em 23 de dezembro de 1935 uma vaga a bordo do hidroavião Bleriot 5190 Santos Dumont, onde realizou o voo completo e aprendeu todos os detalhes existentes sobre a rota do Atlântico Sul. Mermoz já havia realizado dezenas de vezes esse mesmo trajeto e disse a Maryse que naquela viagem ela era “o terceiro piloto” da aeronave. A aviadora permaneceu em Natal até os primeiros dias de 1936 e retornou a Paris pela Air France.

O interessante sobre esse voo preliminar de Maryse Bastié a Natal é que entre os vários aviadores famosos que utilizaram a capital potiguar durante o período clássico da aviação mundial, homens e mulheres de quase duas dezenas de nações, Bastié é um dos poucos aviadores que realizou um voo preliminar atravessando o Atlântico Sul, para só então realizar seu trajeto com maior segurança.

Avião Caudron Simoun, nesse caso um modelo C630, preservado na França.

Durante o ano de 1936 Maryse Bastié vai preparando detalhadamente o seu voo que a traria novamente a Natal. O avião escolhido foi o Caudron Simoun C635, uma aeronave monomotor para quatro passageiros, trem de pouso fixo, sendo o primeiro avião de sua categoria a voar a mais de 300 km/h. Foi um sucesso instantâneo de vendas e só a Força Aérea Francesa encomendou 490 aeronaves.

Foi o Governo da França, através do Ministério do Ar, cujo titular era Pierre Cot, quem lhe cedeu a aeronave, em meio a muita papelada e burocracia. No entanto, o ministro Cot nem sempre apreciou os serviços de Maryse Bastié. Quando essa aviadora, no auge de sua fama, pediu um emprego na aviação civil, Cot lhe disse que era muito cedo para “ver em larga escala conquistas iguais na aviação para homens e mulheres!”.

O avião Caudron Simoun C635 tinha basicamente 8,70 metros de comprimento, 10,40 m. de envergadura e 2,25 m. de altura. Em termos de extensão, era mais ou menos do tamanho de um micro-ônibus comum. Possuía um motor Renault Bengali 6Q de seis cilindros em linha, refrigerado a ar, com cerca de 160 kW (220 hp) de potência contínua. Maryse ainda realizou alguns voos de testes e tudo funcionou normalmente.

A aeronave não recebeu maiores alterações para o voo sobre o Atlântico Sul. A mais significativa foi buscar internamente mais espaço para acomodar um tanque de gasolina de 890 litros e ampliar a autonomia de voo. Aí foram retirados dois assentos cobertos de couro vermelho, dos quatro normalmente existentes. 

Quando os preparativos para o seu voo estavam na reta final, Maryse Bastié e a França foram atingidos por uma nova tragédia – Jean Mermoz desapareceu no Atlântico Sul.

Hidroavião quadrimotor Latécoère 300 que desapareceu com Jean Mermoz e toda tripulação em dezembro de 1936.

Em 7 de dezembro de 1936 Mermoz partiu de Dakar para Natal com outros quatro tripulantes em um hidroavião quadrimotor Latécoère 300, que possuía o registro F-AKGF, era batizado como Croix-du-Sud (Cruzeiro do Sul) e realizava seu 25º voo cruzando o Atlântico. Sabe-se que menos de uma hora depois de sair de Dakar, a tripulação confirmou por rádio que estavam enfrentando um problema técnico com o motor traseiro direito e que retornavam, onde amerissaram sem alterações. Vários controles foram feitos nesse motor, sendo detectado um vazamento de óleo e se concluiu que aquela máquina deveria ser trocada. Como não havia um motor sobressalente disponível, a tripulação fez uma limpeza completa e decolou novamente de Dakar.

Outra imagem do Latécoère 300 que desapareceu com Jean Mermoz.

Quatro horas depois a estação de rádio recebeu uma mensagem curta em código Morse, onde foi informado que Mermoz teve de cortar a energia do motor traseiro esquerdo da aeronave. A mensagem foi interrompida abruptamente e nada mais foi recebido. Apesar das buscas realizadas, o hidroavião e os tripulantes desapareceram e nenhum vestígio foi encontrado!

O desaparecimento de Jean Mermoz é vivido na França como um desastre nacional. Certamente chocada com toda situação, Maryse decidiu batizar de Jean Mermoz seu pequeno Caudron Simoun, como uma homenagem ao seu amigo e grande aviador. Um jornal carioca informou que ela só batizou a aeronave após pedir permissão à mãe de Mermoz e a pintura com o nome do finado aviador teria ocorrido em Natal (Correio da Manhã, Rio, 13/01/1937, P. 3).

Pintura do nome de Jean Mermoz no avião de Maryse Bastié, que teria sido feito em Natal.

Apesar de toda expectativa, Maryse avança no seu intento. Em 19 de dezembro de 1936 ela chegou a Dakar e começou a preparar sua travessia.

Existe uma informação, proveniente de um documentário francês sobre Maryse Bastié, afirmando que quando estava tudo pronto para o voo, a aviadora ficou aguardando em Dakar a chegada de um hidroavião da Air France proveniente de Natal, cuja tripulação lhe transmitiu informações de última hora sobre as condições do tempo ao longo do grande trajeto. Qual foi esse hidroavião e quem eram seus tripulantes?

Bem, olhando os jornais da época, sabemos que naquela última semana de 1936 estiveram entre Natal e Dakar duas aeronaves. Uma foi o avião Farman F 2200, matrícula francesa F-AOXE, batizado como Ville de Montevideo e pilotado por Henri Guillaumet, sendo ele o único tripulante informado pelos jornais. Guillaumet foi um grande amigo de Jean Mermoz e com esse mesmo avião realizou várias buscas quando o famoso piloto sumiu no Atlântico Sul (Jornal Pequeno, Recife, 22/12/1936, P. 2). A segunda aeronave foi outro Farman F 2200, com a matrícula francesa F-AOXF, batizado como Ville de Mendoza, sendo pilotado por Fernand Rouchon, tendo como copiloto Henri Delaunay, navegador Léopold Gimié, radiotelegrafista Paul Comet e o mecânico Pichard (A Ordem, Natal, 23/12/1936, P. 3).

Não sabemos qual desses aviões chegou a Dakar, mas certamente os tripulantes transmitiram à aviadora francesa que o Atlântico Sul estava tranquilo, calmo e que ela iria ter uma travessia exitosa. Pois foi exatamente isso que aconteceu!

O Caudron Simoun C635, a simples e prática aeronave utilizada pela aviadora Maryse Bastié no seu trajeto entre Dakar a Natal.

Voo Tranquilo, Onde Comeu Alguns Damascos

Na manhã de 31 de dezembro de 1936 ela decolou o Caudron Simoun C635 prateado e com detalhes em vermelho. Afora a partida de Dakar, quando voou através de neblina e nuvens de tempestade, e na chegada ao Brasil, quando ventos fortes provocaram uma pequena alteração de rumo, o voo foi uma tranquilidade só.

Mesmo com esse desvio no final, Maryse completou o trajeto através do Atlântico Sul em doze horas e cinco minutos, tendo percorrido 3.173 quilômetros, a uma velocidade média de 264 quilômetros por hora. Para navegar no seu minúsculo avião Maryse Bastié contava apenas com uma bússola e ela foi uma hora mais rápida que o voo da bela aviadora Jean Batten, da Nova Zelândia, recordista anterior nessa travessia.

O avião original de Maryse Bastié.

Eram depois das quatro da tarde quando o Caudron Simoun C635 chegou em Natal, vindo do litoral norte e não da direção leste, do meio do Atlântico.

Ao sobrevoar a capital dos potiguares Maryse realizou algumas evoluções durante vários minutos (Correio da Manhã. Rio, 31/12/1936, P1). Mas ela não estava interessada em proporcionar aos natalenses um pequeno espetáculo das capacidades de sua aeronave. Provavelmente Maryse se apresentava para seus amigos da Air France, que tinham escritório no Bairro da Ribeira, na Avenida Tavares de Lira, número 32, mostrando que a travessia havia sido um sucesso.

Propaganda com o endereço da Air France em Natal.

Outra possibilidade para essas evoluções seria a busca visual da linha ferroviária da Great Western, que seguia em direção sul. Aquela referência era crucial para a localização do Campo dos Franceses, também conhecido como Campo de Parnamirim, e local do pouso. Vale lembrar que na primeira ocasião que Maryse veio a Natal ela desembarcou em um hidroavião no Rio Potengi e não em Parnamirim.

Situação similar já havia acontecido em 5 de julho de 1928, quando os italianos Arturo Ferrarin e Carlo Del Prete pretendiam realizar um voo direto de Roma até o Rio de Janeiro, mas só deu para chegar ao Rio Grande do Norte. Ao sobrevoarem Natal, os dois italianos viram as pessoas acenando nas ruas, mas devido ao tempo nublado eles não conseguiram localizar a linha do trem para o sul. Com o combustível acabando e o céu fechado, a dupla decidiu procurar um local para aterrissar seu belo avião Savoia-Marchetti S-64. Só encontraram um ponto adequado perto da então vila de pescadores de Touros, a 70 km ao norte de Natal, bem onde o litoral do Brasil faz uma curva de quase 90º.

Mas provavelmente para Maryse Bastié os círculos realizados com sua aeronave sobre Natal deram certo, pois ela viu o que precisava ver e desapareceu rumo ao sul.

Segundo um jornal recifense (Jornal Pequeno, 05/01/1937, P. 1), que tinha na pista do Campo de Parnamirim um correspondente chamado Dória Correia, a primeira coisa que Marysé Bastié fez após pousar foi perguntar se teria “batido o recorde de Jean Batten? “. Ao ser informada que sim, as pessoas presentes gritaram “vivas” a ela e a França. Ela estava eufórica e comentaram o extremo carinho que Maryse demonstrava pela sua aeronave. Pouco tempo depois, ainda no campo de pouso, foi aberta uma champagne para comemorar seu voo, o novo recorde e antecipar a festa de comemoração da passagem de ano. Lhe perguntaram se durante o grande trajeto ela se alimentou e a sua resposta foi “Seulement Quelques abricots” (Apenas alguns damascos).

Ao correspondente Dória ela afirmou que durante a finalização do voo, devido aos fortes ventos, ela desviou a rota entre 96 a 100 milhas para o norte, visualizando o primeiro ponto do litoral potiguar na altura do Cabo de São Roque, atualmente parte do município de Maxaranguape, 40 km ao norte de Natal. Essa situação causada pelo vento deve ter relação com as chuvas que caiam nos estados nordestinos naquele fim de 1936, pronunciando que o novo ano seria de boas chuvas. Por essa razão ela chegou à cidade vindo do litoral norte.

Maryse Bastié então passou onze dias na capital potiguar, aguardando novas ordens do Ministério do Ar da França e saber os desdobramentos sobre a sua viagem. Nessa espera, sabemos, mesmo sem maiores detalhes, que Maryse Bastié foi extremamente bem recebida e chegou a ir até as praias da cidade, onde se encantou com os coqueirais que existiam.  

Outra notícia que foi divulgada enquanto a aviadora se encontrava em terras potiguares foi que ela teria recebido ordens de “retornar a França” e que um “alto commerciante” de Natal compraria o avião.

Mas quem seria esse abonado natalense?

Bem, Manoel Machado e Fernando Pedroza (um grande amante da aviação), já tinham falecido anos antes e foram os homens daquele tempo que tinham muito dinheiro no Rio Grande do Norte. Não foi esclarecido pelos jornais quem poderia ser o nababo que pretensamente iria adquirir o Caudron Simoun C635. Pessoalmente acredito que no final das contas essa notícia era falsa. Nota especulativa para vender jornal. Um “fake”, como se diz hoje em dia.

Uma outra notícia, veiculada em um jornal carioca, mostra algo curioso e um tanto inusitado durante o período que Maryse Bastié ficou em Natal.

Quando alguns dias depois que ela desembarcou no Rio, os jornalistas notaram que seu capacete branco, no tradicional estilo colonial francês e muito utilizado naquela época pelos gauleses na África e na Ásia, se encontrava faltando um botão de metal grosso e estava cheio de buracos de balas de pequeno calibre, acompanhados de assinaturas e setas desenhadas marcando esses buracos. Evidentemente que essa situação chamou a atenção dos jornalistas cariocas, que lhe cobriram de perguntas. A resposta da aviadora foi que um dia os seus amigos da Air France em Natal resolveram utilizar seu capacete como alvo para “tiros de carabina”. Quem abria um buraco no chapéu fazia uma seta e assinava o nome, mostrando quem realizou o disparo. Como o chefe da Air France não acertou o alvo, arrancou o grosso botão que ficava no alto do capacete.

Apesar da ida às praias, da falsa notícia da venda do avião e do “tiro ao alvo no capacete”, olhando os jornais natalenses não encontramos maiores informações sobre a presença de Maryse Bastié na cidade. Isso pode caracterizar um extremo isolamento quando ela aqui esteve, talvez preocupada em se expor enquanto o governo de sua nação decidia o que fazer com ela e com o avião, em meio a um Brasil cheio de problemas políticos.

Não podemos esquecer que em 21 de março de 1936 o Presidente Getúlio Vargas havia assinado o Decreto nº 702, que colocou todo o país em “Estado de Guerra”, que conferia ao chefe de Estado poderes extraordinários, só concedidos em tempo de guerra, e que normalmente seriam prerrogativas do Legislativo. Inicialmente essa situação tinha vigência inicial de 90 dias, mas se estendeu até meados de junho de 1937.   

Autorização para o voo de Maryse Bastié, mas sem máquina fotográfica.

Certamente após acertos entre os diplomatas do seu país e o governo brasileiro, Maryse Bastié foi autorizada a seguir viagem. O governo tupiniquim liberou para que a aviadora francesa pudesse voar sobre nosso litoral, entre Natal e o Rio de Janeiro, realizando uma parada para reabastecimento e descanso em Caravelas, na Bahia, mas exigiu que ela não levasse nenhum “apparelho photographico”. E essa ordem veio diretamente do poderoso Ministério da Guerra, cujo ministro era o general Eurico Gaspar Dutra, futuro Presidente do Brasil.

Maryse Bastié no Rio.

Maryse Bastié deixou Natal em direção ao Rio no dia 11 de janeiro de 1937, decolando por volta das cinco e meia da manhã. As oito e quinze estava sobrevoando Recife e as onze e meia se encontrava sobre a cidade baiana de Caravelas, onde aterrissou e pernoitou. No dia 12, pelas seis da manhã ela decolou e seguiu direto para o Rio de Janeiro, pousando no mítico Campo dos Afonsos às nove e meia, onde foi festivamente recebida e passou vários dias na então Capital Federal.

O voo de Maryse Bastié no pequeno Caudron Simoun C635 foi um sucesso!

Maryse no Rio.

Memórias de Natal Junto Com o Deputado Dioclécio Duarte

Maryse Bastié retornou à França a bordo de uma aeronave da Air France, sendo triunfantemente recebida em casa. Ainda em 1937 ela recebeu do governo do seu país o grau de “Oficial da Legião de Honra”. Pelo governo brasileiro a aviadora recebeu a Ordem do Cruzeiro do Sul, a maior honraria concedida pelo nosso país. Maryse recebeu a medalha brasileira na antiga sede da Embaixada do Brasil na França, na Avenue Montaigne, 45, das mãos do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas. O mesmo Souza Dantas que se notabilizaria tempos depois, durante a Segunda Guerra, por ter concedido centenas de vistos diplomáticos que salvaram a vida de inúmeros fugitivos dos nazistas, principalmente judeus, mesmo contrariando ordens do Governo Brasileiro.   

O colar que Maryse Bastie utiliza, com uma grande estrela, é a Ordem do Cruzeiro do Sul, que essa aviadora fazia questão de utilizar.

Mas voltando a Maryse Bastié, a simpática piloto não se acomodou no seu retorno à França. Logo conseguiu do governo do seu país o apoio para realizar, entre novembro de 1937 até março de 1938, uma turnê de palestras em vários países da América do Sul, utilizando um avião como meio de transporte.

Existe a informação que ela quis realizar esses voos com o mesmo avião com que conseguiu atravessar o Atlântico Sul, mas apuramos que esse valente aviãozinho deixou Natal em uma data indeterminada e seguiu provavelmente para o Rio de Janeiro, onde ficava a sede da Air France no Brasil e a Embaixada da França. De lá, por razões desconhecidas, seguiu para Montevidéu, capital do Uruguai. Consta que Maryse Bastié foi atrás da aeronave em um aeroporto uruguaio, mas o encontrou bastante deteriorado, sem condições de utilização e daí fez uso de outro avião. 

Após o seu retorno à França, as nuvens negras da Segunda Guerra Mundial surgiram no horizonte e em 1 de setembro de 1939 o conflito teve início.

Nazistas em Paris.

Maryse e outras três mulheres pilotos foram voluntárias da Força Aérea Francesa, realizando voos para levar aviões para a frente de combate, mas sem reconhecimento oficial. Somente oito meses depois, em 27 de maio de 1940, foi quando surgiu um decreto que autorizou a criação de um corpo feminino de pilotos auxiliares e Maryse recebeu a patente de segundo tenente. Mas a sua designação hierárquica na força aérea do seu país teve vida muito efêmera, pois menos de um mês depois, em 22 de junho, a França se rendeu oficialmente a Alemanha Nazista.

Na sequência Maryse ofereceu seus serviços à Cruz Vermelha, em particular aos prisioneiros franceses agrupados no Campo de Deportação de Drancy, um infame campo de concentração temporário a poucos quilômetros ao norte de Paris. Junto com suas atividades na Cruz Vermelha, ela coletava informações das atividades dos inimigos para a Resistência Francesa que lutava contra a ocupação nazista. Ainda em Drancy, em uma ocasião que um trem partiu para a Alemanha, ela é brutalmente empurrada por uma sentinela inimiga e fratura o cotovelo direito, que lhe deixou com uma deficiência permanente e Maryse não conseguiu mais pilotar.

Libertação de Paris pelas forças Aliadas.

Após a libertação de Paris em 1944, ela se juntou ao Corpo Auxiliar Feminino da Força Aérea e voltou a ocupar o posto de tenente. Em 1947 tornou-se a primeira mulher a receber o posto de Comandante da Legião de Honra e a partir de 1951, ela trabalhou para o departamento de relações públicas de um centro de voo de testes.

No sábado, 28 de junho de 1952, Maryse Bastié se reencontrou com o Brasil e, através da presença de um natalense ilustre, certamente com as memórias da sua visita a Natal e ao Rio Grande do Norte.

Nessa data, segundo uma reportagem publicada na revista O Cruzeiro (edição 09/08/1954, P. 61 a 63) ocorreram em Paris vários eventos que celebravam a figura do brasileiro Alberto Santos Dumont. Entre os eventos houve um jantar no restaurante La Coupole, no bairro de Montparnasse, um local fundado em 1927, muito popular na capital francesa e até hoje em funcionamento. O jantar foi organizado pelo governo francês e contou com a ilustre presença de Vicent Auriol, então Presidente da França, além de vários ministros, muitas autoridades e celebridades, entre elas a aviadora Maryse Bastié.

Da parte do Brasil muitas autoridades estavam presentes, entre eles o brigadeiro Nero Moura, então Ministro da Aeronáutica. Outro que estava lá era o deputado federal pelo Rio Grande do Norte Dioclécio Dantas Duarte, do Partido Social Democrático (PSD), que inclusive foi condecorado pelo Presidente Vicent Auriol com a Ordem Nacional da Legião de Honra da França.

Então, entre as fotos publicadas pela revista O Cruzeiro, vemos Maryse Bastié em um animado papo com o deputado Dioclécio Duarte, que era fluente em francês (além de inglês, alemão e italiano). A aviadora trazia ao pescoço a sua Medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul.

Sobre o que falaram? Não sei! Mas provavelmente lembraram a passagem de Maryse por Natal entre o final de 1936 e o início de 1937, quando aqui ficou onze dias. Talvez o deputado tenha comentado como Natal havia mudado depois da presença das tropas americanas durante a Segunda Guerra, ou outros temas quaisquer. Talvez tenha sido uma noite com ótimos e interessantes momentos de memórias e recordações!

Apenas oito dias depois desse encontro, Maryse Bastié morreu carbonizada em um trágico acidente aéreo.

Ela que já havia voado milhares de quilômetros sem acidentes graves, perdeu a vida em 6 de julho de 1952, aos 54 anos, em voo no aeroporto de Lyon-Bron. Ela morreu após a queda de uma aeronave de transporte de dois motores Nord 2501 Noratlas, da Força Aérea Francesa. O avião caiu de uma altura de cerca de 200 metros e toda a tripulação de cinco pessoas também pereceu.

A famosa aviadora foi enterrada em Paris, no Cemitério de Montparnasse, onde seu túmulo permanece até hoje. Na França, muitas escolas – por exemplo, em sua cidade natal Limoges, levam o nome de Maryse Bastié. Em 1955 ela foi homenageada com seu retrato em um selo postal francês.

Natal não esqueceu de Maryse Bastié. Em janeiro de 1972 o engenheiro Ubiratan Pereira Galvão, então Prefeito de Natal, acatando um pedido do vereador Antônio Félix, que na época era o Presidente da Câmara de Vereadores de Natal, solicitou que uma rua ainda pouco habitada do bairro de Lagoa Nova se chamasse Maryse Bastié. E assim foi feito. Atualmente essa é uma das principais artérias desse bairro, um dos mais valorizados da capital potiguar.

TEMPOS MARCANTES – O ESPERADO LIVRO DE MANOEL DE BRITTO VAI SER LANÇADO

Tempos Marcantes

Após uma longa espera dos amigos que insistiram com a elaboração do livro, finalmente será lançada a primeira obra do norte-rio-grandense Manoel de Medeiros Britto.

Com o título TEMPOS MARCANTES, Manoel relata os mais de 60 anos de atividade pública e privada, sob a perspectiva histórica de um seridoense pobre de Jardim do Seridó, que, após muito trabalho, foi deputado estadual, auxiliar e secretário de Estado em vários governos, Ministro do Tribunal de Contas do Estado (hoje o cargo é de Conselheiro), bem assim atua na presidência de duas renomadas instituições na Capital do Estado: a Liga de Ensino do RN (mantenedora do Complexo Noilde Ramalho – ED / HC e do Centro Universitário do RN – UNIRN) e o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio Grande do Norte – IPAI (mantenedor do Hospital Varela Santiago).

Prefaciada pelo imortal Cassiano Arruda Câmara, o exemplar é permeado de minuciosas descrições dos inúmeros eventos da política estadual e nacional dos últimos anos. Sem dúvidas servirá de documento histórico às novas gerações, eis que foi preparado por quem viveu os episódios ou testemunhou os acontecimentos, sempre com discrição e eficiência no trato com a coisa pública.

O Livro foi impresso pela Gráfica Diplomata (Denise Lins Convites), e será lançado no dia 2 de agosto de 2022, às 18h, no Complexo Noilde Ramalho – Unidade Escola Doméstica.

CLAUS VON STAUFFENBERG – O HOMEM QUE TENTOU MATAR HITLER

Enfurecido com o atentado contra sua vida, Hitler insistiu que o próprio nome ‘Stauffenberg’ fosse apagado da história.

Autor – Nigel Jones – https://www.historynet.com/claus-von-stauffenberg-the-man-who-tried-to-kill-hitler/

Em 20 de julho de 1944, a família Stauffenberg estava reunida, como havia feito tantos verões antes, em sua casa de campo, conhecido como Schloss Stauffenberg (Castelo Stauffenberg), na aldeia de Lautlingen, nos ondulantes Alpes Suábios do sul da Alemanha, a nordeste da cidade de Bamberg. 

Com a Segunda Guerra Mundial em seu quinto ano e tomando um rumo cada vez mais ameaçador para a Alemanha Nazista, a maioria dos membros adultos do sexo masculino do clã católico aristocrático dos Stauffenbergs — os gêmeos Alexander e Berthold, e seu brilhante irmão mais novo Claus — estavam ausentes. 

Presidindo a casa de seis crianças turbulentas estavam a esposa de Claus, Nina; a avó das crianças, Caroline, e sua tia-avó Alexandrine; e seu tio-avô Nikolaus Üxküll, conhecido por todos como “Tio Nux”. Só ele sabia que suas vidas estavam prestes a ser destruídas.

“A essa altura, a guerra estava se aproximando desconfortavelmente”, lembrou o filho mais velho de Claus, Berthold, em uma entrevista recente – o que tornou a fuga de sua casa, a cerca de 130 milhas (210 quilômetros) de Bamberg, especialmente bem-vinda. 

“Mesmo naquele remanso provincial havia constantes ataques aéreos e alarmes de ataque, e eu tive que fazer meus exames escolares em um abrigo subterrâneo. Os contínuos serviços memoriais para aqueles que haviam caído no front – no qual muitas vezes servi como coroinha católico – foram outra lembrança sombria da guerra. No entanto, o controle nazista ainda era absoluto. Fomos alimentados com uma dieta constante de propaganda prometendo-nos Endsieg, ou ‘vitória final’, na imprensa e rádio controladas pelo Estado, que eu naturalmente acreditei.”

Trompetistas da fanfarra da Deutsches Jungvolk em um comício nazista na cidade de Worms em 1933 – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Deutsches_Jungvolk#/media/File:Bundesarchiv_Bild_133-151,_Worms,_Fanfarenkorps_des_Jungvolkes.jpg.

Nessa época Berthold era um entusiasmado jovem nazista de 10 anos de idade, que ficou amargamente desapontado por ser apenas três dias mais jovem para se juntar naquele ano aos Deutsches Jungvolk, o ramo júnior da patética Juventude Hitlerista, ou Hitlerjugend. “Meu maior desejo era marchar por Bamberg carregando uma bandeira nazista à frente de um desfile de jovens”, disse. “Felizmente, minha mãe, que, sem que eu soubesse, compartilhava as opiniões antinazistas de meu pai, impediu isso.”

O pai de Berthold, Claus Philipp Maria Schenk Graf von Stauffenberg, Conde von Stauffenberg — um homem religioso com inclinação filosófica, um cavaleiro talentoso e um amante da poesia — estava prestes a se tornar mundialmente famoso por essas visões antinazistas. 

Foto do Coronel Claus von Stauffenberg, conspirador do atentado a Hitler, em 20 julho 1944 – Fonte – https://www.defesanet.com.br/ghbr/noticia/26076/EDITORIAL—Sindrome-von-Stauffenberg/

Mais ou menos ao mesmo tempo em que sua família estava sentada para almoçar em Lautlingen naquele sufocante dia de julho, Stauffenberg estava colocando uma bomba, escondida dentro de sua maleta, sob uma mesa de conferência em Wolfschanze (“Covil do Lobo”), o quartel-general de Hitler na Prússia Oriental, em uma tentativa de assassinar o Führer (líder) e derrubar seu regime. 

Stauffenberg estava a um passo de atingir seu objetivo quando a bomba explodiu aproximadamente às 12h40, demolindo a sala e matando três oficiais e um secretário. Mas Hitler foi apenas ferido – e foi a família Stauffenberg que foi dilacerada após a tentativa de golpe.

CRIANÇA DO NAZISMO

Foto de von Stauffenberg antes dos seus ferimentos – Fonte – dw.com

O jovem Berthold não via muito seu pai desde o início da guerra. O coronel von Stauffenberg, de 36 anos, era um soldado de carreira popular e capaz, escolhido por seus superiores para um futuro brilhante. Ele havia servido como oficial de estado-maior na conquista da Polônia em 1939, na invasão da França em 1940 e na campanha contra a Rússia em 1941.

Inicialmente Stauffenberg deu ao regime de Hitler do pré-guerra o benefício da dúvida. Mas de 1942 em diante, isso mudou drasticamente. Enjoado pelo assassinato em massa de judeus e o tratamento de populações civis na frente oriental, e pelo apetite insaciável de Hitler pela guerra e sua incompetência militar imprudente, Stauffenberg juntou-se a outros oficiais na conspiração ativa contra o domínio nazista.

No início de 1943, Stauffenberg foi enviado para a Tunísia como oficial sênior da 10ª Divisão Panzer para os últimos dias da campanha norte-africana. O outrora alardeado Afrika Korps do general Erwin Rommel estava agora encurralado contra o mar pelos americanos e britânicos. 

A luta foi intensa e em abril Stauffenberg foi gravemente ferido quando um avião americano metralhou seu carro-chefe do tipo Horch 108. Um oficial no banco de trás foi morto e Stauffenberg, cujo corpo foi atingido por estilhaços, perdeu o olho esquerdo, a mão direita e dois dedos da mão esquerda. 

Evacuado para Munique, surpreendeu os médicos com a rapidez de sua recuperação. Em semanas ele aprendeu a se vestir usando os dentes e os três dedos restantes.

No verão de 1943, Stauffenberg se juntou à família em Lautlingen para uma convalescença prolongada. Assim que ele voltou às suas funções naquele outono, a conspiração ganhou impulso quando seus colegas de complô o colocaram em um cargo de estado-maior no Ersatzheer, ou Exército de Substituição, com sede em Berlim. Lá, ele dirigiu revisões às ordens de mobilização do Exército de Substituição, codinome “Valquíria”, como cobertura para um golpe militar que usaria suas tropas para derrubar o regime na confusão após o assassinato bem-sucedido de Hitler.

DECIDI MATAR HITLER

A decisão de derrubar Hitler pesou muito sobre Stauffenberg. Ele comentou a um parente em meados de 1943 se “era certo sacrificar a salvação da própria alma se assim pudesse salvar milhares de vidas?”

Hitler no juramento da SS no Congresso do Partido do Reich – Fonte – http://www.jornalciencia.com/fascinio-e-terror-colorem-fotos-raras-da-alemanha-nazista/

Ele concluiu que não era apenas certo, mas imperativo. Na mesma época, ele disse a várias pessoas, incluindo Margarethe von Oven, uma secretária do Exército de Substituição que digitou as ordens que redigiu, que estava conscientemente “cometendo alta traição”. Ele acrescentou que, diante de um regime tão perverso, ele teve que escolher entre ação e inação, e como um cristão ativo só poderia haver uma decisão.

Em junho de 1944, Stauffenberg foi nomeado chefe do Estado-Maior do Exército de Substituição. Este era um posto-chave, dando-lhe acesso regular a Hitler nas conferências militares. 

Um exemplo da derrota dos alemães na Segunda Guerra – Militar alemão detido por brasileiros da FEB na Itália – Fonte Arquivo Nacional.

À medida que a situação militar da Alemanha piorava constantemente, Stauffenberg trabalhou para aperfeiçoar a trama e derrubar o regime a tempo de impedir uma invasão soviética da Alemanha. Capaz, enérgico e carismático, ele se tornou a cabeça, o coração e a mão orientadora da conspiração.

Berthold viu seu pai apenas três vezes depois que ele se juntou ao Exército de Substituição: por dois dias no Natal de 1943; em janeiro, no funeral do avô materno de Berthold; e por uma semana de licença em junho de 1944, que coincidiu com a invasão aliada da Normandia.

Apesar da posição cada vez mais precária da Alemanha, Berthold manteve sua crença infantil na vitória final – depositando sua fé nas bombas voadoras V-1 e nos foguetes V-2 projetados por Wernher von Braun e chovendo sobre a Grã-Bretanha mesmo quando os exércitos aliados se aproximavam da Alemanha.

Nina e Claus, a Condessa e o Conde von Stauffenberg – Fonte – https://www3.livrariacultura.com.br/claus-und-nina-von-stauffenberg-2012374110/p

“Naturalmente”, Berthold lembrou recentemente, “eu não tinha a menor ideia do que meu pai estava planejando e preparando, nem sabia o quanto minha mãe sabia de seus pontos de vista”. Por razões de segurança, nem ela nem ninguém da família, exceto o tio Nux e um irmão de Stauffenberg que participava da trama — estavam cientes dos planos precisos de Stauffenberg para matar Hitler. 

Mas a Condessa Nina von Stauffenberg sabia e compartilhava o desgosto de seu marido com o regime nazista cada vez mais criminoso, e teve que esconder cuidadosamente suas opiniões. “Os jornais estavam cheios do terrível destino daqueles que ouviam estações de rádio estrangeiras, negociavam no mercado negro ou espalhavam rumores derrotistas”, disse Berthold. “Esses casos geralmente terminavam em sentença de morte.”

LOTE DE BOMBA

Em meados de 1944, a situação parecia cada vez mais sombria e, em meados de julho, Stauffenberg estava a caminho de Wolfschanze. Em sua maleta ele carregava uma bomba composta de alto explosivo de plástico, que ele havia decidido – apesar de seus ferimentos incapacitantes – preparar e detonar na primeira oportunidade. 

Stauffenberg (à esquerda) em Rastenburg em 15 de julho de 1944. No centro Adolf Hitler. Stauffenberg já levava as bombas consigo. Mas decidiu não detoná-las naquele momento. Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Claus_Schenk_Graf_von_Stauffenberg#/media/Ficheiro:Bundesarchiv_Bild_146-1984-079-02,_F%C3%BChrerhauptquartier,_Stauffenberg,_Hitler,_Keitel.jpg.

Apenas seus confederados mais próximos na conspiração sabiam disso. Ele havia pedido a Nina que atrasasse sua partida para Lautlingen para que ele pudesse falar com ela primeiro, provavelmente pela última vez. Mas ele não pôde revelar o motivo, e ela já havia providenciado a viagem, então, em 18 de julho, ela e as crianças partiram de Bamberg para Lautlingen.

Houve uma grande reunião naquele verão na antiga sede da família, onde Claus e seus irmãos passaram férias idílicas na infância antes da Primeira Guerra Mundial. Em 1944 foi a vez dos quatro filhos de Claus — Berthold e seus três irmãos mais novos: os irmãos Heimaren e Franz-Ludwig, de oito e seis anos, e a irmã Valerie, de três anos — aproveitavam o espaço do Schloss Stauffenberg, junto com seus primos e tios.

O filho mais velho de Claus recordou, com clareza precisa, como soube do evento que destruiu a vida de sua família. “Em 21 de julho, ouvi uma reportagem de rádio sobre um ataque criminoso ao Führer”, disse Berthold. “Mas minhas perguntas sobre isso foram evitadas, e os adultos tentaram manter eu e meu próximo irmão mais novo, Heimaren, longe do rádio.

“Em vez disso, nós, crianças, fomos levados para uma longa caminhada pelo campo por nosso tio-avô Nux – um ex-oficial do Estado-Maior do Exército Imperial Austríaco – que nos manteve entretidos com histórias de suas aventuras juvenis como caçador de grandes animais na África”, disse Berthold. 

“Naturalmente, nenhum de nós sabia que ele também era membro da conspiração contra Hitler. Hoje, ainda me pergunto quais pensamentos passaram pela cabeça dele durante aquela caminhada”. Tio Nux seria julgado e enforcado algumas semanas depois por sua participação na trama.

Local do atentado contra Hitler em 20 de julho de 1944, onde estiveram no local Martin Bormann e Hermann Göring, grandes líderes nazistas – Fonte – Bundesarchiv Bild

No dia seguinte Nina chamou seus dois filhos mais velhos de lado e gentilmente disse a eles que era o pai deles que havia tentado assassinar Hitler. Ela também revelou que Claus havia sido executado por um pelotão de fuzilamento no final do mesmo dia, após o fracasso de suas tentativas desesperadas de lançar o golpe Valkyrie na sequência do atentado. 

Por fim, como se tudo isso não bastasse, ela disse aos meninos que estava esperando seu quinto filho.

“Nosso mundo se separou de uma vez”, disse Berthold. “Quando perguntei perplexo por que meu pai queria matar o Führer, minha mãe respondeu que ele acreditava que tinha que fazer isso pelo bem da Alemanha.

“A notícia do ataque a bomba veio como um raio. Não apenas amávamos nosso pai sempre alegre acima de todas as coisas; ele também era a autoridade absoluta sobre nossas vidas — mesmo que muitas vezes estivesse ausente como soldado. O choque foi tão profundo que acredito ter sido incapaz de pensar com clareza em qualquer coisa desde aquele momento até o fim da guerra. Na verdade, não havia tempo para pensar, porque a partir de então os golpes começaram a cair sobre nós com força e rapidez.”

PUNINDO A FAMÍLIA STAUFFENBERG

Naquela noite a Gestapo, abreviatura de Geheime Staatspolizei (Polícia Secreta do Estado), prendeu Nina e tio Nux e os levou para Berlim. Na noite seguinte, a mãe idosa de Claus e a tia Alexandrine, uma funcionária da Cruz Vermelha Alemã, foram presas. 

Os nazistas estavam executando o brutal decreto Sippenhaft (“detenção de parentes”), segundo o qual não apenas os conspiradores, mas toda a sua família, crianças e idosos incluídos, deveriam ser presos e punidos. No momento, as crianças, confusas e com medo, permaneceram em Lautlingen sob os cuidados de uma babá e da governanta de sua avó – e sob o olhar atento de dois funcionários da Gestapo alojados na casa.

Outra visão do local do atentado – Fonte – https://www.dw.com/en/remembering-the-german-resistance/a-49630374

“Isolados como estávamos – até mesmo de nossos companheiros na aldeia – nos sentíamos como párias da sociedade”, lembrou Berthold. “Nunca vou esquecer esse sentimento. A única pessoa que pudemos ver foi o padre da aldeia, que nos deu sua bênção e nos avisou que tempos difíceis poderiam vir para nós. No entanto, ele nos disse acima de tudo para nunca esquecermos a razão da morte do nosso pai. Só hoje percebo como foi corajoso da parte dele dizer isso.”

Em 17 de agosto de 1944, os quatro filhos de Claus von Stauffenberg e dois sobrinhos foram retirados de sua casa e colocados em um trem. O destino deles era Bad Sachsa, um orfanato nazista perto de Nordhausen, situado entre as montanhas Harz, na parte central da Alemanha. Aqui eles foram separados de acordo com sua idade e sexo e alojados em chalés. Nas semanas seguintes, os filhos de outros conspiradores se juntaram a eles. 

Uma das casas do orfanato de Bad Sachsa na época da Segunda Guerra – Fonte – https://de.wikipedia.org/wiki/Kinderheim_im_Borntal#/media/Datei:Kinderheim_Borntal_Bad_Sachsa-1003047_cropped.jpg

Berthold foi mantido em um chalé com cerca de nove outros meninos mais ou menos de sua idade. Seu confinamento não foi rigoroso. Apesar da diretora da casa, Fraulein Kohler, fosse uma nazista rígida e autoritária que ostentava orgulhosamente seu distintivo do partido, sua vice, Fraulein Verch, e os outros funcionários tratavam os filhos dos “traidores” com gentileza. Ao contrário de muitos outros alemães nos dias finais da guerra, eles foram bem alimentados, embora esparsamente,

“Nossa maior privação foi não ter notícias do mundo exterior”, disse Berthold. “Não havia rádio nem jornais e até o Natal de 1944 não tínhamos ideia se nossa mãe estava viva ou morta”. Durante o Natal, no entanto, um presente surpresa surgiu de forma inesperada e que eles não ousaram esperar: uma visita inesperada de sua tia Melitta, a esposa do irmão de Claus, Alexandre, que – em parte porque ele foi enviado para a Grécia ocupada e em parte por causa de sua natureza sonhadora e não mundana — não tinha sido informado da trama por seus dois irmãos.

QUEBRANDO AS REGRAS

Melitta Schenk Gräfin von Stauffenberg forjou uma carreira de sucesso como projetista de aeronaves e piloto de testes na Luftwaffe, alcançando o posto de Flugkapitän (capitão de voo) e recebendo a Cruz de Ferro. Seus talentos eram tão extraordinários – ela se especializou em bombardeiros de mergulho e fez mais de 2.000 voos de teste – que os nazistas ignoraram voluntariamente tanto seu gênero quanto sua herança judaica. 

Embora tivesse sido presa junto com Alexander sob o decreto de Sippenhaft, Melitta, com incrível ousadia, não apenas persuadiu os nazistas a libertá-la, mas também insistiu, como o preço de seu trabalho contínuo como piloto de testes, que ela fosse autorizada a visitar o marido, a cunhada Nina e os filhos. Surpreendentemente, os nazistas concordam com esses termos.

Melitta von Stauffenberg na cabine de um bombardeio de mergulho Junkers Ju 87 Stuka – Fonte – https://www.passionmilitaria.com/t40416-melitta-comptesse-von-stauffenberg-arien-d-honneur-et-ekii

Como resultado, ela chegou em Bad Sachsa no Natal com muitos presentes e a notícia de que Nina, embora detida, ainda estava viva. “Esse foi o melhor presente de Natal que poderíamos ter desejado”, lembrou Berthold. 

Um mês depois, a simpática Fräulein Verch disse às crianças que sua mãe havia dado à luz uma filha. Ela nasceu no mesmo dia, 27 de janeiro de 1945, em que o Exército Vermelho ocupou tanto Auschwitz quanto o quartel-general de Hitler em Wolfschanze — a cena do bombardeio abortado de Stauffenberg.

VINDO PARA BUCHENWALD

Mesmo quando a guerra se aproximava do fim, no entanto, as perspectivas para as crianças eram sombrias. 

Enfurecido com o atentado contra sua vida, Hitler insistiu que o próprio nome “Stauffenberg” fosse apagado da história. A decisão foi tomada para renomear as crianças “Meister” e adotá-las por uma família nazista leal – possivelmente até mesmo pertencentes as temidas SS – abreviatura de Schutzstaffel (tropas de assalto) – para serem criadas de acordo com o regime nazista. 

O primeiro passo foi removê-los de seus alojamentos relativamente confortáveis ​​em Bad Sachsa e enviá-los para o notório campo de concentração de Buchenwald, no leste da Alemanha. Apenas uma reviravolta milagrosa do destino impediu isso.

As crianças Stauffenberg partiram para Buchenwald na Páscoa de 1945, viajando em um caminhão do exército para a estação ferroviária da cidade de Nordhausen para embarcar em um trem para o campo. Eles estavam nos subúrbios da cidade quando um ataque aéreo aliado atingiu a cidade. “Destruiu todo o bairro ao redor da estação, incluindo a própria estação”, lembrou Berthold. “Os nazistas não tiveram outra opção a não ser nos levar de volta a Bad Sachsa, para nosso alívio.”

Poucos dias depois, em 11 de abril, a 104ª Divisão de Infantaria americana, conhecida como “Divisão Timberwolf”, chegou a Nordhausen. Mas a resistência alemã nas colinas e bosques ao redor da cidade era teimosa, e o Exército dos Estados Unidos teve que ameaçar destruir as partes da cidade que ainda estavam de pé antes que seus moradores se rendessem. “Tínhamos uma visão de arquibancada dos combates, com aviões P-51 Mustangs e P-38 Lightnings dos americanos rugindo no céu”, lembrou Berthold. 

Um tanque americano M-4 Sherman passa ao lado de um Panzer  tanque Tiger I na cidade alemã de Nordhausen em 1945 – Fonte – https://warfarehistorynetwork.com/article/the-liberation-of-nordhausen-concentration-camp/

“A vez que a guerra chegou perto demais para o nosso conforto foi quando o canteiro de morangos do jardim do chalé foi atingido por balas”. Soldados americanos revistaram o chalé e depois o prefeito de Nordhausen chegou para dizer a seus ocupantes que eles estavam livres. Embora duas enfermeiras tenham ficado para trás para cuidar das crianças, elas foram deixadas em grande parte sozinhas, por conta própria, e passaram o tempo vagando pela floresta local em busca de munição gasta e outros despojos de guerra.

REUNIDOS

Então, como num passe de mágica, outra tia veio em socorro dos pequenos Stauffenbergs. 

Em 11 de junho, a tia-avó das crianças, Alexandrine, chegou em um ônibus da Cruz Vermelha. Ela tinha vindo para levá-los para casa em Lautlingen, onde seu mundo havia desmoronado quase um ano antes. 

De volta a Lautlingen, Berthold e seus irmãos lamentaram a morte de seu pai, seu tio Berthold e seu tio-avô Nux – todos executados pelos nazistas – e de sua avó materna, que sucumbiu ao tifo em um campo de prisioneiros da SS. 

Avião Bücker Bü 181 Bestmann – Fonte – https://es.wikipedia.org/

Sua corajosa tia Melitta também havia morrido. Nos últimos dias da guerra, quando pilotava um avião Bücker Bü 181 Bestmann, uma aeronave de treinamento desarmada, foi metralhado por um caça americano. Embora ela tenha conseguido pousar, sua perna foi cortada e ela sangrou até a morte. Pior ainda para as crianças, sua mãe estava desaparecida.

Dentro de alguns dias, no entanto, a Condessa Nina também chegou milagrosamente a Lautlingen – embalando sua nova filha Konstanze. Ela preencheu a história dos meses perdidos: após sua prisão, ela foi levada para a sede da Gestapo em Berlim e intensamente interrogada sobre seu marido. De lá, ela foi transferida para o campo de concentração feminino em Ravensbrück e, mais tarde, para uma maternidade para dar à luz; então mãe e bebê foram evacuados às pressas de trem à frente do avanço do Exército Vermelho. Eles pegaram uma infecção no trem superlotado e foram tratados em um hospital em Potsdam antes de serem confiados a um único policial. “Ele deveria levá-los para Schonberg, onde outros prisioneiros de Sippenhaft foram mantidos, mas a guerra estava quase acabando e seu único desejo era voltar para casa”, disse Berthold. “Antes de abandoná-los ao seu destino, ele pediu para minha mãe escrever um certificado dizendo que ele havia cumprido seu dever na medida do possível – tão alemão!” 

Deixados perto da cidade de Hof, Nina e o bebê Konstanze se tornaram os primeiros prisioneiros de Sippenhaft a serem libertados pelo Exército dos Estados Unidos.

Nina Schenk, Condessa von Staufenberg e seus filhos – Fonte – http://prosimetron.blogspot.com/2008/08/nina-schenk-condessa-de-stauffenberg.html

“Não que alguém se sentisse muito livre no estado devastado que era a Alemanha”, disse Berthold. A casa em Lautlingen tornou-se um santuário para os aldeões assustados depois que as tropas marroquinas francesas que ocupavam a aldeia enlouqueceram, saquearam e estupraram. Os refugiados na casa também incluíam brevemente as famílias dos funcionários da Gestapo que haviam sido alojados lá. 

Na estação ferroviária, Berthold assistiu aos infelizes remanescentes do Exército Vlasov – uma força de renegados russos que havia lutado ao lado dos alemães contra seus compatriotas comunistas e que, ironicamente, seu pai havia ajudado a criar e equipar – sendo arrebanhados em trens para repatriação forçada “às ternas misericórdias de Stalin”.

JUNTANDO AS PEÇAS

Finalmente, porém, os Stauffenbergs sobreviventes começaram a juntar os cacos de suas vidas. 

O processo de recuperação foi longo. Sua casa em Bamberg, por exemplo – que havia sido usada pelo Corpo de Inteligência dos Estados Unidos e estava muito danificada – não foi devolvida a eles até 1953, e eles tiveram que travar uma longa batalha legal para recuperar grande parte da propriedade da família.

Cerimônia em memória ao coronel Claus von Stauffenberg no local do seu fuzilamento em Berlin em 2019, com a presença da então chanceler alemã Angela Merkel. Stauffenberg é o único militar alemão que atuou na Segunda Guerra a receber homenagens oficiais do governo da República Federal da Alemanha – Fonte – https://www.dw.com/en/germany-merkel-commemorates-hitler-assassination-plot-75-years-after-operation-valkyrie/a-49660510

Berthold eventualmente escolheu seguir os passos de seu pai, tornando-se um soldado na Bundeswehr, o novo exército da Alemanha Ocidental. Mas as circunstâncias ditaram uma carreira militar muito diferente da de seu pai. O major-general Berthold Schenk, atual Conde von Stauffenberg, agora com 74 anos, passou a maior parte de seus anos de serviço na Guerra Fria, preparando-se para outra guerra contra a União Soviética que nunca aconteceu, e nunca ouviu um tiro disparado de raiva. Berthold foi para a reserva em 1994.

Inevitavelmente, porém, ele viveu sua vida sob a longa sombra de seu pai. “Nos meus primeiros dias no exército, quando havia muitos oficiais superiores que conheciam meu pai, sempre me perguntavam: “Você é filho do Conde von Stauffenberg?”

“O que, afinal, se pode responder a essa pergunta? Estou orgulhoso dele, é claro, pois o que ele fez foi um dever moral. Gosto de pensar que eu, e toda a minha família também, teríamos feito o mesmo”.

CASO RAMPA – MP COMPROVA DIRECIONAMENTO E QUER SUSPENSÃO IMEDIATA DE CONTRATO MILIONÁRIO DO GOVERNO POTIGUAR COM A CASA DA RIBEIRA

O buraco está cada vez mais fundo no poço de irregularidades que parecem ter marcado o processo que levou o Governo do RN, por meio da Secretaria Estadual de Turismo, a contratar por R$ 6 milhões a Casa da Ribeira para manter o Complexo Cultural da Rampa. E quem aponta isso é o Ministério Público do RN, que esta quarta-feira (8) expediu uma recomendação para o Governo suspender imediatamente a execução do Plano de Trabalho do Acordo de Cooperação celebrado entre as duas partes.

O motivo dessa recomendação foi que, com menos de dois meses de investigação (o inquérito foi aberto no dia 1º de abril) já foram encontradas e comprovadas uma série de irregularidades ou suspeitas que tornaram o processo ainda mais grave.

Embarque e desembarque na área da Rampa, provavelmente em 1941, em um hidroavião Boeing 314 Clipper da empresa aérea Pan American Airways. A Rampa é um dos principais marcos históricos existentes do período da aviação mundial e se encontra em Natal mas a maioria da sua população não sabe disso.

Dentre elas, olhe só: “a eventual falsificação do memorando que inaugura o processo de contratação – a ser investigada em sede de inquérito policial – e define a CASA DA RIBEIRA como entidade dotada de notoriedade para o objeto da contratação, com aposição de assinatura digital da Coordenadora de Articulação e Ordenamento da Secretaria de Turismo, servidora que alega que não praticou o ato, não conhece a CASA DA RIBEIRA, desconhece a sua notoriedade para o que se propunha, e não tem conhecimento sequer deste processo de contratação específico“.

Isso porque, de acordo com o processo de contratação da Casa da Ribeira, ela foi escolhida pelo Governo do RN, supostamente, por ter “notorio saber” na manutenção de museus e espaços como aquele. E mais: o promotor Afonso de Ligório, responsável pelo caso, apontou também que foi possível perceber em depoimentos e e-mails institucionais que já relatavam e orientavam a contratação da Casa da Ribeira antes mesmo da deflagração do processo de contratação. “Conforme testemunho colhido nos autos, houve ordens diretas da Chefia da Secretaria Estadual de Turismo para a inserção dos documentos da CASA DA RIBEIRA nos autos do processo de contratação“, acrescentou o promotor. 

Um hidro Martin PBM-3 Mariner sendo colocado no Rio Potengi através da Rampa.

Um dos e-mails colhidos pelo MP na investigação, inclusive, dizia o seguinte:

Pessoal, esse é o novo TDR que Day construiu para a contratação do Projeto Museológico que provavelmente será com a Casa da Ribeira, dei uma lida agora, mas Aninha (secretaria de turismo) pediu para que @Solange desse uma revisada também por sua experiência na construção desses documentos, então, Sol, se vc puder dar uma lida para que Day tramite o processo, agradecemos. Só para todos ficarem cientes, a parte jurídica será resolvida no próximo dia 27 (inicialmente estava marcada para hoje, mas a Procuradora do Estado, Dra. Ana Gabriela Brito, que foi designada, pediu que remarcássemos pro dia 27 por indisponibilidade de agenda). A parte financeira, remanejamos uma Emenda estadual da EMPROTUR para a SETUR (já foi devidamente autorizada pelo secretário da SEPLAN e está pendente de publicação no Diário Oficial – Proc 00210006.003466/2019-78 e já combinei com Priscila UIFPSETUR sobre o Empenho após a publicação), além de que Aninha solicitou tramitação prioritária ao Dep. Mineiro. Então, após Solange dar o OK no TDR, Day instrui o processo e ficamos aguardando o retorno da reunião do jurídico.

Desembarque do pessoal da US Navy na Rampa. Esse local foi intensamente utilizado por esquadrilhas de hidroaviões americanos que caçavam e destruiam submarinos alemães no Atlântico Sul.

COMPROVAÇÃO 

Por tudo isso, antes de pedir a suspensão, o MP aponta que “se encontra comprovado nos autos o direcionamento prévio da contratação direta, por inexigibilidade de licitação, da entidade ESPAÇO CULTURAL CASA DA RIBEIRA pela Secretaria Estadual de Turismo, como empresa especializada, para elaboração do Plano Museológico e Expográfico do Complexo Cultural Rampa, bem como para elaborar o desenho e respectivo enquadramento em Leis de Incentivo à Cultura, nas esferas federal e estadual para o Centro Cultural Rampa, mediante as seguintes provas, entre outras, amealhadas nos autos do inquérito civil“.

Um hidro Martin PBM-3 Mariner, visto pelos arcos da Rampa, no Rio Potengi.

SUSPENSÃO

Diante das irregularidades praticadas pelo Governo do RN e pela casa da Ribeira, o MP recomendou o seguinte:

a) para evitar maior dano ao patrimônio Público, suspendam imediatamente a execução do Plano de Trabalho do Acordo de Cooperação celebrado com a entidade ESPAÇO CULTURAL CASA DA RIBEIRA para implantação do Museu da Rampa e complexo cultural correlato, antes que se implementem os efeitos financeiros dos editais em curso e se realizem novas despesas à custa do acordo, interrompendo ainda qualquer pagamento à entidade contratada no prazo de 48 (quarenta e oito) horas;

b) promovam a rescisão do acordo de cooperação e assumam o objeto pactuado em relação às parcelas adimplidas e já pagas pelo Poder Público, inclusive zelando pela manutenção dos bens eventualmente entregues à custa dos recursos públicos oriundos de incentivos fiscais,;

Pátio da Rampa e seus hidroaviões

c) a deflagração de um certame público e impessoal para a formulação de um Plano Museológico respeitante da legislação e sua implementação, para o Museu da Rampa, com ampla possibilidade de participação de todo e qualquer interessado do setor cultural do Estado e do país, em respeito ao princípio da impessoalidade;.

d) a assunção pelo Estado da administração do equipamento público designado Complexo Cultural da Rampa, sito na na Rua Cel. Flamínio, 1 – Santos Reis, Natal/RN, 59037-155, inclusive para fins de manutenção, até que seja definida, por meio de certame público cabível, a pessoa jurídica responsável pela administração do espaço.

Natal em uma das principais rotas aéreas durante a Segunda Guerra Mundial e a Rampa era um dos principais locais no esforço de guerra na capital potiguar.

E mais: o promotor Afonso de Ligório ainda determinou que “a presente recomendação seja entregue em mãos das autoridades recomendadas” e que seja enviada essa recomendação para o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte, com cópia integral dos autos, para que esta Egrégia Corte de Contas tome conhecimento das irregularidades já detectadas pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte e adote as providências que entender cabíveis à espécie, inclusive decidir sobre auditoria dos valores contemplados no plano de trabalho.

NÃO FALTOU AVISO

Não é de hoje que o Blog do Gustavo Negreirose a Rádio 96 fm acompanham o caso. O assunto, inclusive, começou aqui, em julho do ano passado, com esta matéria: 

Governo do RN dispensa Fundação Rampa e agora pagará R$ 6 milhões para reunir acervo para museu

Quase um ano depois, outra bomba: MP aponta contradições e vai investigar contratação da Casa da Ribeira para gerir Complexo da Rampa

E, ontem, o negócio apertou ainda mais, quando o MP divulgou uma audiência pública para discutir a manutenção do Complexo Cultural da Rampa. Agora, com a publicação dessa recomendação, ficou claro que a audiência já deve discutir como o espaço será mantido sem a Casa da Ribeira. 

Fonte: Blog do Gustavo Negreiros


ANTIGAS PUBLICAÇÕES DO BLOG TOK DE HISTÓRIA SOBRE O COMPLEXO DA RAMPA

A RAMPA E O RIO POTENGI EM FOTOS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

RAMPA – A ANTIGA BASE DE HIDROAVIÕES DE NATAL

NO PRÉDIO HISTÓRICO DA RAMPA COM O SR. WILLIAM POPP, EMBAIXADOR INTERINO DOS ESTADOS UNIDOS NO BRASIL

VISITA DO HISTORIADOR FRANK D. McCANN A NATAL

A IMPORTÂNCIA DO SÍTIO HISTÓRICO DA RAMPA PARA A AVIAÇÃO BRASILEIRA E SUA SITUAÇÃO ATUAL

A ESPIONAGEM EM NATAL E PARNAMIRIM FIELD NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL – O CASO DO ENGENHEIRO PERNAMBUCANO QUE TRABALHOU PARA OS NAZISTAS

Rostand Medeiros – Escritor e membro do IHGRN

Muitos hoje desconhecem a importância estratégica do Brasil durante o maior conflito bélico da humanidade. Além de grande fornecedor de matérias primas e materiais de alto valor estratégico o Brasil possuía alguns locais de extrema importância geográfica para uso da aviação e das forças navais, caso principalmente de Natal e Recife. 

Não é surpresa que antes mesmo da entrada do Brasil na conflagração, os nazistas já tinham olhos postos e muito atentos sobre o território nacional. Foi o Abwehr, uma organização de inteligência militar alemã que existiu entre 1920 a 1945, que cumpriu esta missão. O objetivo inicial da Abwehr era a defesa contra a espionagem estrangeira – um papel organizacional que mais tarde evoluiu consideravelmente, principalmente após a ascensão dos nazistas ao poder em 1933. Esta organização sempre esteve muito próxima ao Comando Supremo das Forças Armadas (Oberkommando der Wehrmacht – OKW) e do próprio Adolf Hitler, com seu quartel general em Berlim, adjacente aos escritórios do OKW.

Vice-almirante Wilhem Canaris, chefe do Abwehr.

Quem comandou por nove anos a Abwehr foi o vice-almirante Wilhem Franz Canaris. Considerado até os dias atuais como uma verdadeira lenda e um dos indivíduos mais interessantes e misteriosos da história da Segunda Guerra Mundial. Canaris nasceu em 1 de janeiro de 1887 em Aplerbek, Alemanha.

Jovem ainda começou a carreira naval e tornou-se oficial da Marinha. Era considerado como um homem inteligente, dinâmico, que havia viajado muito e conhecia seis línguas, inclusive o português. Foi comandante de submarinos na Primeira Guerra Mundial e, apesar da rivalidade entre as duas nações, tinha grande respeito pela Marinha Real da Grã-Bretanha, a Royal Navy.

Sob a direção de Canaris a Abwehr se tornou uma vasta organização de informações que incluía uma grande rede de espionagem em numerosos países estrangeiros, utilizando extensamente as missões diplomáticas alemãs. Essa rede foi primeiramente organizada em países que eram considerados os prováveis adversários da Alemanha do novo conflito que surgia no horizonte, principalmente a Grã-Bretanha. Depois a rede foi implantada em locais de forte significação estratégica no Hemisfério Ocidental.

A grande base de Parnamirim Field durante a Segunda Guerra Mundial.

Apesar do maior país da América do Sul ser considerado pela Alemanha nazista um país amigo do ponto de vista político, logo que a Guerra iniciou em 1939 o Abwehr  agiu para organizar um amplo serviço de informações em nosso país[1].

Suástica Sobre o Brasil

A espionagem alemã no Brasil esteve principalmente sob o comando de Albrecht Gustav Engels, um engenheiro que vivia no Brasil desde 1923, fugindo da crise que se abateu no seu país após a Primeira Guerra Mundial. Aqui Engels trabalhou na empresa Siemens, na Companhia Siderúrgica Brasileira e depois foi gerente da Companhia Sul-americana de Eletricidade em Belo Horizonte, sucursal da empresa alemã Allgemeine-Elektrizitäts Gesellschaft (AEG), onde alcançaria cargo de direção na América do Sul. Casou com a alemã Klara Pickardt em 1927, onde nasceu seu único filho e três anos depois se mudou para o Rio de Janeiro, a então Capital Federal.

Antes do início da guerra Engels foi com a família para três meses de férias a Alemanha e outros países europeus. Nesta viagem reencontrou em Gênova, cidade portuária italiana, um velho amigo chamado Jobst Raven, então capitão da Wehrmacht, o exército alemão, e que trabalhava na seção econômica do Abwehr. Deste contato Engels se tornou espião e passou a enviar inúmeros relatórios sobre a situação econômica, industrial e militar dos países sul-americanos e Estados Unidos. Com o início da Guerra este trabalho se ampliou bastante.

Engels (cujo codinome era “Alfredo”), com a colaboração de importantes membros da colônia alemã, que tinham cargos chaves em fortes empresas comerciais no país, começou a recrutar alemães natos, ou nascidos no Brasil, e estabeleceu se grupo de espionagem.

A organização de Engels não foi a única que operava no país, mas foi a maior e mais bem organizada. Esta rede de espionagem buscava informações variadas sobre o país, incluindo aspectos da política interna, sobre pontos estratégicos, a geografia litorânea e sobre a movimentação dos transportes. Para enviar suas informações a Abwehr sem serem descobertos os espiões germânicos em terras tupiniquins empregavam diversos recursos, tais como tinta invisível, pseudônimos, símbolos nos passaportes, códigos telegráficos, correspondência para endereços disfarçados, microfotografias e mensagens enviadas de estações de rádios clandestinas[2].

A movimentação nos portos brasileiros, como o de Santos (foto), eram alvos prioritários dos espiões nazistas no Brasil – Fonte – http://www.navioseportos.com.br/site/index.php/historia/historia-da-mm/195-a-expansao-1941-a-1989

Os melhores relatórios dos espiões de Engels tinham foco em inteligência naval e questões relativas ao tráfego marítimo. As informações vinham de tripulantes e funcionários que trabalhavam em navios e escritórios de terra das companhias marítimas nos principais portos brasileiros e incluíam vitais informações estratégicas. Graças a estes relatórios, a Kriegsmarine, a Marinha alemã, pode planejar interceptações de uma enorme quantidade de navios mercantes aliados que partiam da América do Sul.

É verdade que uma parte do serviço de espionagem de Engels era formada por espiões que estavam ligados a uma organização com algum nível de estrutura e financiadas pelo Abwehr, mas também havia muitas pessoas comuns, que atuavam de forma amadora e independente, querendo de alguma maneira ajudar a pátria distante.

Foto de várias pessoas acusadas de espionagem nazista no Brasil e publicadas no jornal Diário Carioca, de 2 de março de 1943. Entre eles temos brasileiros natos e naturalizados e cidadãos alemães. Tipos comuns, distante da ideia dos espiões criada pelo cinema.

Apesar de problemas que existiram devido ao amadorismo de vários espiões e informantes, é fato que graças às comunicações das redes de Engels, os relatórios obtidos pelos agentes nazistas na Argentina, Estados Unidos, México, Equador e Chile foram enviados para a Alemanha através de estações de rádios clandestinas brasileiras. Esta extensa rede conseguiu durante algum tempo enganar muito bem os serviços de contraespionagem britânica e norte-americana. 

O Nordeste Como Alvo 

Entre os homens que Engels conhecia com perfil para trabalharem como espiões estava Herbert Friedrich Julius von Heyer, ou Herbert von Heyer. Este era um filho de alemães nascido no Brasil em 1901, na cidade paulista de Santos, que aos quatro anos von Heyer seguiu com a família para Alemanha e chegou a lutar na Frente Russa durante a Primeira Guerra Mundial. Deu baixa do serviço militar como sargento em 1919, retornando ao Brasil quatro anos depois e desde 1938 trabalhava na sede carioca da empresa de navegação Theodor Wille & Cia.

Herbert Friedrich Julius von Heyer, ou Herbert von Heyer. Fonte – Livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, pág. 37.

Quando von Heyer esteve na Alemanha no outono de 1941, Engels avisou ao capitão Jobst Raven para encontrar, contatar e cooptar o antigo sargento para a causa. O que aconteceu sem maiores problemas e von Heyer passou a utilizar o codinome “Humberto Heyer”.

Engels e o novo colaborador começaram a trabalhar juntos no Rio, em dois escritórios conjugados de um edifício localizado na Rua Buenos Aires, 140, no Centro. Em julho daquele ano Engels informou a Berlim que von Heyer se deslocaria a Recife para recrutar possíveis colaboradores na capital pernambucana e saber das atividades dos norte-americanos na região.

Ele chegou à cidade faltando dez minutos para as cinco da tarde do dia 4 de julho de 1941, uma sexta-feira. Desembarcou do hidroavião “Caiçara”, da empresa Syndicato Condor no chamado “Aeroporto de Santa Rita”, onde então amerissavam os hidroaviões de passageiro na Bacia do Pina-Santa Rita[3].

Hidroavião em Recife – Fonte – http://www.fotolog.comtc211078575

Apesar de não possuir dados comprobatórios sobre isso, provavelmente quando o “Caiçara” sobrevoou a região do Porto de Recife, o espião Humberto deve ter visto atracados quatro belonaves de guerra da marinha dos Estados Unidos, a US Navy. Eram os cruzadores Memphis (CL 13), Cincinnati (CL 6) e os destroieres Davis (DD 395) e Warrington (DD 383) e certamente Von Heyer se questionou o que aquelas naves de guerra faziam ali. Mas aquela não seria sua única e desagradável surpresa no Nordeste do Brasil[4].

Logo o espião hospedou-se no tradicional Grande Hotel e manteve um primeiro contato com Hans Heinrich Sievert.

O Grande Hotel de Recife – Fonte – http://www.fernandomachado.blog.br/novo/?p=88384

Von Heyer passou oito dias em Recife e através do apoio de Sievert realizou várias reuniões na tentativa de angariar novos adeptos para a causa. Algumas foram produtivas e outras nem tanto. Entre estes manteve contato com o engenheiro elétrico alemão Walter Grapentin para a instalação de uma estação de rádio de ondas curtas, mas este recusou o trabalho[5].

Certamente o melhor elemento contatado por von Heyer foi Hans Sievert. Este era um alemão naturalizado brasileiro, tinha 37 anos, havia chegado ao Brasil em 1924, era casado com a alemã Wilma Korr, sendo membro destacado da tradicional comunidade germânica na capital pernambucana, além de gerente e sócio da antiga e conceituada firma Herm Stoltz & Cia. Sievert onde teve uma ascensão muito positiva na Herm Stoltz, saindo do posto de simples empregado, passando a ser gerente e finalmente sócio. Estava tão bem financeiramente que em 1932 retornou da Alemanha para o Recife no dirigível Graf Zeppelin[6].

A Herm Stoltz & Cia. era muito conceituada em todo país e muito conhecida particularmente em Pernambuco, onde eram os agentes da empresa aérea teuto-brasileira Syndicato Condor.

O Serviço em Natal

Segundo o brasilianista Stanley E. Hilton, em seu livro ““Suástica sobre o Brasil : a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944”, nesta viagem a Recife o espião von Heyer já estava sendo vigiado pelo pessoal do Federal Bureau of Investigation – FBI, a mítica unidade de polícia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Consta que o homem a serviço do Abwehr teria deixado Recife para uma rápida viagem a Natal, provavelmente em algum avião de carreira do Syndicato Condor[7].

Natal, metade da década de 1930.

Na capital potiguar ele teria se encontrado com os alemães Ernest Walter Luck, seu cunhado Hans Werbling e Richard Burgers. É provável que este encontro tenha ocorrido na casa de Luck, que servia de cônsul alemão na cidade, na Rua Trairi, 368, no bairro de Petrópolis. Todos esses alemães já eram radicados há vários anos na capital potiguar, partidários e propagandistas de primeira linha da causa nazista. Mas certamente o que deve ter impressionado o espião von Heyer em Natal foi o acentuado movimento de aviões norte-americanos, a presença de tropas brasileiras nas ruas e o imenso volume das obras desenvolvidas na construção da base aérea em Parnamirim e das bases de hidroaviões e de navios de guerra nas margens do Rio Potengi.

Aquilo era muito grave e von Heyer nem esperou seu retorno para o Rio. Antes de seguir para Fortaleza e Belém, destino final de sua viagem, ele enviou uma carta, certamente feita à base de tinta invisível, contando as preocupantes novidades ao seu chefe Engels.

Abastecimento de um C-87 em Parnamirim Field – Livro-Trampolim para a vitória, pág 129, de Clyde Smith Junior, 1993.

O que estava acontecendo em Recife e Natal, em uma das áreas mais estratégicas de todo Oceano Atlântico, certamente tinha de ser mais bem avaliado para ser informado ao Abwehr. Mas como isso poderia ser feito sem chamar atenção dos americanos?

A solução veio através de Hans Sievert, que conhecia um pernambucano com sólida formação como engenheiro, oriundo de família tradicional, com muitos contatos proveitosos e que poderia ampliar as informações do que acontecia na capital potiguar.

O escolhido foi Luiz Eugênio Lacerda de Almeida. Era filho do desembargador Luiz Cavalcanti Lacerda de Almeida e de Dona Maria Elisa. Tinha 46 anos, havia estudado no tradicional Ginásio Porto Carreiro, casou em 1922 com Maria Cândida Pereira Carneiro, tinha três filhos e residia na Avenida Beira Mar, número 3.000, em Recife. Na época ele trabalhava na Destilaria Central Presidente Vargas, pertencente ao Instituto do Açúcar e do Álcool e localizada no município do Cabo, atual Cabo de Santo Agostinho.

O engenheiro e sua esposa eram muito bem situados na sociedade pernambucana, possuindo parentesco com as tradicionais famílias Brennand e Burle, além do conde Ernesto Pereira Carneiro, empresário, político, jornalista e proprietário do respeitado Jornal do Brasil, com sede no Rio de Janeiro.

Jornais de várias partes do país também enalteceram a ligação do engenheiro pernambucano com o Integralismo, como o Diário da Tarde, de Curitiba-PR, na sua edição de terça feira, 30 de junho de 1942, pág. 1.

Segundo o jornal O Radical, do Rio, Eugênio Lacerda de Almeida havia sido Integralista e ideologicamente tinha um posicionamento favorável em relação ao Terceiro Reich de Adolf Hitler. Provavelmente isso explica a sua amizade com Hans Sievert[8].

Não existe uma comprovação da data que Eugênio Lacerda de Almeida chegou a Natal, mas se sabe que desembarcou em um voo da Panair do Brasil, pago pela Herm Stoltz & Cia. O fato deste engenheiro pernambucano haver chegado a Natal através de um voo desta empresa aérea pode explicar muito sobre sua infiltração nas obras de Parnamirim.

Ceremônia em Parnamirim Field – https://catracalivre.com.br

Em 1941 o Brasil ainda era um país neutro na Segunda Guerra e não queria de modo algum comprometer sua neutralidade. Oscilando ora para o lado do Eixo, ora com acenos aos Aliados, o regime ditatorial de Getúlio Vargas tolerou tanto as atividades dos nazistas no Brasil, quanto à construção de vários aeroportos pelos americanos. Estes aeroportos, cujos principais eram os de Belém e Natal, jamais poderiam ser construídos por militares estadunidenses. A solução encontrada pelo governo americano foi colocar em campo a Panair do Brasil, que nada mais era do que uma subsidiária da empresa aérea americana Pan American Airways, com recursos para tocar as obras vindas do ADP (Airport Development Program – Programa de Desenvolvimento de Aeroportos). Então teve início a construção das instalações destinadas a servirem como principais bases de transporte e transbordo ao longo da rota do Atlântico Sul.

Na foto vemos um Douglas C-47 Dakota em Parnamirim Field.

Evidentemente que muito dinheiro forte estava circulando em Natal, fato este que tanto atraía prostitutas, malandros e ladrões, quanto pedreiros, mestres de obras e engenheiros. Pernambuco já possuía há décadas uma escola de engenharia e alguns engenheiros ali formados convergiram para a capital potiguar atrás de dólares. Certamente a chegada de Eugênio Lacerda de Almeida a Parnamirim, vindo em um avião da Panair do Brasil, possivelmente bem trajado e distribuindo simpatia, não deve ter alertado as autoridades.

Trabalhos de construção em Parnamirim Field – Hart Preston-Time & Imagens de Vida / Getty Images.

Aliado a isso temos que pensar que ele talvez conhecesse alguém na área das obras para apresentar o trabalho que ali era realizado. Esse pretenso contato, de forma inadvertida, ou em estreita cooperação, lhe apresentou o engenheiro encarregado das obras, que lhe trouxe então as plantas da construção das pistas de aterrissagem e dos muitos locais administrativos que seriam utilizados por americanos e brasileiros. Ardilosamente Eugênio Lacerda de Almeida guardou na memória o que viu nas plantas da grande base e depois, reservadamente, desenhou um croqui com detalhes do projeto.

Foto atual da Base Naval de Natal, que teria sido espionada pelo engenheiro Eugênio – Fonte – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/portoes-abertos-base-naval-de-natal-realiza-exposicao/205460

Existe a informação que além de “visitar” as obras da base de Parnamirim, o engenheiro teria igualmente visto as obras da futura Base Naval de Natal[9]. À noite, hospedado em um hotel, ao entabular conversas com pessoas que trabalhavam nas obras em Natal, soube de detalhes dos projetos de ampliação do porto da cidade. No outro dia ele voltou a Recife a bordo do navio Cantuária[10].

Na capital pernambucana, ao se encontrar com Hans Sievert, o engenheiro Eugênio Lacerda de Almeida quis lhe reportar o que viu, mas o alemão exigiu um relatório por escrito, mas afirmou que depois o destruiria. 

Capturando Os Vermes!

Em muito pouco tempo a situação virou completamente.

Os afundamentos e os chocantes relatos dos sobreviventes levaram a um clima de intensa animosidade com a Alemanha, com manifestações em todo o país, algumas violentas, com a depredação de bens ligados a alemães, e onde se exigia que o Brasil declarasse guerra ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão), o que foi feito pelo presidente Vargas em agosto de 1942.

O afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães alterou a participação do Brasil no conflito. Foto meramente ilustrativa – Fonte – http://www.navioseportos.com.br/site/index.php/historia/historia-da-mm/195-a-expansao-1941-a-1989

Mesmo tendo vários navios afundados por submarinos alemães e com muitos de seus cidadãos mortos, O Brasil era um país que teimava em ficar em cima do muro, sem se comprometer demasiadamente na Guerra e tentava tirar vantagens dos dois lados da contenda. Mas conforme cresciam os ataques dos submarinos alemães aos navios de carga brasileiros, a revolta da população aflorou intensamente e a boa vida dos espiões alemães acabou completamente em terras tupiniquins[11].

O desmantelamento das redes de espionagem deu um enorme trabalho para o governo Vargas, que levou algum tempo para conseguir este objetivo. Mas em 25 de fevereiro de 1942 os alemães Hans Sievert e Walter Grapentin prestaram depoimentos ao então Secretário de Segurança de Pernambuco, o Dr. Etelvino Lins de Albuquerque, e ao delegado Fabio Correia de Oliveira Andrade, nas dependências da Delegacia de Ordem Política e Social, o DOPS, em Recife e eles entregaram tudo mundo[12].

Logo, para surpresa geral na capital pernambucana, um dos chamados a depor foi Luiz Eugênio Lacerda de Almeida.

Sievert confirmou que o engenheiro foi a Natal por conta da empresa Herm Stoltz & Cia, que o enviou para conhecer a obra para a empresa alemã melhor se preparar para “candidatar-se as concorrências que existiam em Parnamirim”. Uma situação completamente ilógica e ridícula diante do estado de extrema desconfiança e quase beligerância entre alemães e americanos na época.

Já Eugênio Lacerda de Almeida informou que passou apenas um dia em Natal e negou a autoria do croqui produzido sobre a base de Parnamirim. Entretanto, talvez por receio de uma acareação, se retraiu ao ser confrontado com o material e confirmou que foi ele que produziu os desenhos. Afirmou que primeiramente negou o fato por medo de se prejudicar, pois havia recebido de Hans Sievert a garantia que o material havia sido destruído. Eugênio Lacerda de Almeida comentou também que na época da feitura dos desenhos, quando o Brasil ainda se encontrava neutro, ele havia se tornado “admirador das vitórias alemãs” e na sua concepção ele não estava prejudicando o Brasil.

As estratégicas bases aéreas em Natal e Belém foram importantes na engrenagem de guerra doa Aliados no Brasil. Na foto vemos um Douglas C-47 e um Consolidated B-24 Liberator.

A situação do engenheiro foi cada vez mais se complicando, principalmente quando ele teve de explicar a origem de 50 contos de réis (50.000$000) que recebeu de Hans Sievert. Até então a ida de Eugênio Lacerda de Almeida a Natal teria sido, por assim dizer, voluntária. Mas surgiu um depósito em sua conta corrente do Banco do Povo neste valor, creditado no dia 23 de dezembro de 1941. Aparentemente um gordo presente de natal!

Espiões Nazistas que agiam em Santos, São Paulo – Fonte – http://atdigital.com.br/historiasdesantos/?p=94

Mas o dinheiro ficou depositado por seis meses, em uma espécie de conta de renda fixa que existia na época. Sievert afirmou em depoimento que entregou aquele dinheiro ao engenheiro pernambucano em confiança, sem documento comprobatório, para atender as necessidades de sua família no caso de surgirem “imprevistos contra a sua pessoa”[13].

O engenheiro Eugênio Lacerda de Almeida foi identificado, sujou os dedos quando fez sua ficha datiloscópica, fez retratos de frente e de perfil e depois saiu andando tranquilamente pela porta da rua!

Lei Frouxa! 

Ficou a cargo do Dr. José Maria Mac Dowell da Costa, Procurador do Tribunal de Segurança Nacional (TSN), analisar as provas contidas nos autos contra as pessoas acusadas de espionagem, ou de facilitação desta atividade, os chamados “Agentes do Eixo”[14].

Dr. José Maria Mac Dowell da Costa, Procurador do Tribunal de Segurança Nacional (TSN)

O Dr. Mac Dowell da Costa prometia através da imprensa que “seria inflexível no cumprimento do dever” e se algum daqueles 128 homens e mulheres pronunciados estivesse seriamente implicado nos artigos no Decreto Lei Nº 4.766, de 1º de outubro de 1942, que definia os crimes militares e contra a segurança do Estado, ele não hesitaria em aplicar a pena máxima existente – A pena de morte![15]

O nobre engenheiro Luiz Eugênio Lacerda de Almeida sofreu por parte da imprensa carioca, especialmente dos jornais Diário Carioca e O Radical, uma intensa pressão para que fosse condenado e recebesse uma punição exemplar[16]. Eugênio Lacerda de Almeida compareceu ao TSN no Rio e foi indiciado com base no Decreto Lei 431, de 18 de maio de 1938, Artigo 3º, no seu 16º inciso.

Houve forte indignação com a liberdade do engenheiro pernambucano. Manchete do jornal O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, pág. 1.

Notem os leitores que de saída o engenheiro pernambucano não foi indiciado na chamada “Lei de Guerra”, que era o Decreto Nº 4.766, de 1º de outubro de 1942, uma lei bem mais dura, mas no Decreto Lei 431, de 1938. Este na sua parte inicial era definido como “Crimes contra a personalidade internacional, a Estrutura e a segurança do Estado e contra a ordem social”. E trazia no texto do seu inciso 16º o seguinte teor “Incitar ou preparar atentado contra pessoa, ou bens, por motivos doutrinários, políticos ou religiosos; Pena – 2 a 5 anos de prisão; se o atentado se verificar, a pena do crime incitado, ou preparado”[17]. Além disso, trazendo como verdadeiro “abre alas” de sua defesa, havia dezenas de cartas de autoridades e pessoas gradas, atestando a sua conduta e de como ele era uma pessoa ilibada[18].

Quase no fim do ano de 1943, sob a presidência do ministro Frederico de Barros Barreto, natural de Recife, o TSN promulgou várias sentenças contra os acusados de espionagem e vários deles foram condenados a pena de morte, entre eles Albrecht Gustav Engels.

Aparelho achado no Rio servia para mandar informações a nazistas.

Mas para desgosto de muita gente, sedenta de sangue para vingar os mais de 1.081 mortos, em mais de 34 navios brasileiros afundados por submarinos do Eixo, nenhum dos acusados de espionagem foi parar diante de algum pelotão de fuzilamento. O Dr. Mac Dowell da Costa afirmou a um periódico mineiro que os casos que estavam chegando ao TSN eram anteriores ao reconhecimento da declaração de guerra, sendo impossível aplicar a pena de morte[19].

Esses condenados a morte tiveram a pena alteradas para 30 anos de prisão, mas muitos não cumpriram sequer dez anos pelos seus atos. O grande chefe Engels logo saiu da cadeia e foi ser funcionário, logicamente, de uma empresa alemã. No caso a Telefunken do Brasil, aonde chegou a presidência da mesma[20]. Hans Heirich Sievert e Herbert von Heyer foram condenados a 25 anos de prisão cada um. Sievert logo deixou a cadeia e aparentemente foi morar em Petrópolis, Rio de Janeiro, onde faleceu em 17 de novembro de 1979[21].

Já von Heyer penou um pouco mais. Em 1952 vamos encontrá-lo encarcerado no mítico e tenebroso presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde era considerado um preso de bom comportamento e dava aulas de inglês para o comandante da instituição prisional[22].

Não consegui apurar, mas acredito que o engenheiro Luiz Eugênio Lacerda de Almeida não passou um dia sequer na cadeia. Ele faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 1975[23].

Final Infeliz

Não causa nenhuma surpresa que a maioria dos espiões nazistas que operaram no Brasil não quis retornar para sua tão amada nação de origem após o fim da guerra. Simplesmente após o fim do conflito ninguém no Brasil se importou muito com essa gente e represálias, até onde sei, nunca aconteceram. O tempo apagou quase tudo sobre esses casos!

Já nos Estados Unidos, por exemplo, a coisa foi bem diferente. Começa que o Presidente Franklin D. Roosevelt, temeroso que um tribunal civil fosse demasiado indulgente com espiões nazistas, criou um tribunal militar especial para esse tipo de caso. Isso levou a execução na cadeira elétrica de seis espiões nazistas[24].

Já na Inglaterra foi criada a “Lei da Traição”, que após passar pelo parlamento e receber o assentimento real, tinha apenas uma sentença prioritária: a morte. Lá, Entre 1940 e 1946, dezenove espiões e sabotadores foram processados sob a Lei da Traição e executados. Um vigésimo espião – um jovem diplomata português – foi condenado à morte, mas a sua pena foi comutada para prisão perpétua após a intervenção do governo português[25].

Texto publicado originalmente no blog Papo de Cultura, do jornalista Sérgio Vilar – http://papocultura.com.br/nazista-em-natal/


NOTAS

[1] Ver os livros Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 17 a 19 e O Brasil na mira de Hitler, Roberto SANDER. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, págs. 23 a 33.

[2] Ver os livros Hitler’s Spy Chief: The Wilhelm Canaris Mystery. New York, NY, EUA: Pegasus Books, 212, págs, 23 a 45. Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 20 a 24.

[3] Ver Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de sábado, 5 de julho de 1941, pág. 2. O interessante foi que von Heyer desembarcou utilizando seu nome verdadeiro e este antigo ponto de embarque e desembarque de hidroaviões em Recife ficava localizado onde atualmente existem duas grandes torres de apartamentos, construídas pela empresa Moura Dubeux, as margens do Rio Capibaribe. Estas torres são dois edifícios de luxo de 42 andares, construídos no Cais de Santa Rita, no bairro de São José e conhecidas popularmente como as “Torres Gêmeas”. A construção das torres começou em 2005 e foi concluída em 2009, após batalha judicial com o Ministério Público Federal, que apontava irregularidades na obra. Com sua excessiva proximidade com o mar e grande altura, os prédios diferem radicalmente do entorno do bairro histórico. Sobre esse assunto ver – https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/01/obra-em-bairro-historico-inflama-debate-sobre-verticalizacao-do-recife.htm

[4] Aquelas naves em Recife estavam sob o comando do vice-almirante Jonas H. Ingran, como parte da Task Force 3, que futuramente, com a ampliação das ações de combate da US Navy no Atlântico Sul, seria designada como Fourth Fleet (Quarta Frota).

[5] Sobre o encontro entre Grapentin e von Heyer ver as declarações do primeiro para a polícia pernambucana, reproduzidas no Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de domingo, 29 de março de 1942, pág. 4 e no livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, de S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, pág. 40.

[6] A Herm Stoltz & Cia. foi uma empresa fundada em 1863, muito conceituada em todo país no transporte marítimo, com matriz no Rio e filial até na Alemanha. Era muito conhecida particularmente em Pernambuco, onde eram os agentes da empresa aérea teuto-brasileira Syndicato Condor. Já sobre as declarações de Hans Sievert para a polícia pernambucana, reproduzidas no Diário de Pernambuco, Recife-PE, edição de domingo, 29 de março de 1942, pág. 4. Já sobre a viagem no dirigível Graf Zeppelin, ver o Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de quinta feira, 13 de outubro de 1932, pág. 1.

[7] Segundo Stanley E. Hilton a informação da presença do espião von Heyer em Natal está inserida no relatório do FBI intitulado “Totalitarian activities – Brazil Today”, produzido em dezembro de 1942, mas sem referência de páginas. Afora isso não existe nenhum documento comprovatório da passagem deste espião por Natal. Entretanto é bastante crível sua presença na capital potiguar diante do que os americanos desenvolviam aqui em julho de 1941 . Ver o livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 40 e 41.

[8] Sobre os vários detalhes da vida de Luiz Eugênio Lacerda de Almeida ver o Jornal Pequeno, Recife-PE, edição de segunda feira, 20 de fevereiro de 1922, pág. 1 e O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4.

[9] Ver Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 29 de maio de 1942, páginas 1 e 5.

[10] Eugênio Lacerda de Almeida não informou em qual hotel ficou em Natal e nem se manteve contato com os alemães residentes na cidade. Ver seu depoimento reproduzido no jornal O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4 e no Diário Carioca, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta feira, 29 de maio de 1942, páginas 1 e 5.

[11] Sobre a derrocada dos espiões nazistas no Brasil, ver o livro Suástica sobre o Brasil: a história da espionagem alemã no Brasil, 1939-1944, S. E. Hilton. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, págs. 235 a 296.

[12] Etelvino Lins de Albuquerque foi Governador de Pernambuco entre 1952 e 1955, senador constituinte, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) e deputado federal em duas legislaturas.

[13] Ver O Radical, Rio de Janeiro, edição de domingo, 13 de junho de 1943, págs. 1 e 4.

[14] O Tribunal de Segurança Nacional (TSN) foi uma corte de exceção, instituída em setembro de 1936, primeiramente subordinada à Justiça Militar e criada diante dos traumas provocados no poder pela Intentona Comunista de novembro de 1935. Era composto por juízes civis e militares escolhidos diretamente pelo presidente da República e deveria ser ativado sempre que o país estivesse sob o estado de guerra. Com a implantação da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937, o TSN passou a desfrutar de uma jurisdição especial autônoma e tornou-se um órgão permanente. Nesse período passou a julgar não só comunistas e militantes de esquerda, mas também integralistas e políticos liberais que se opunham ao governo. Entre setembro de 1936 e dezembro de 1937, 1.420 pessoas foram por ele sentenciadas. O TSN foi extinto após a queda do Estado Novo, em outubro de 1945.

[15] Dos 128 implicados 77 eram estrangeiros, 40 brasileiros natos e 11 brasileiros naturalizados. Já os processos eram originários do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo. Ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edição de sábado, 2 de outubro de 1943, pág. 5. Sobre o Decreto Lei 4.766, de 1 de outubro de 1942, ver http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4766-1-outubro-1942-414873-publicacaooriginal-1-pe.html

[16] Ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edições de domingo, 30 de junho e 17 de julho de 1942, respectivamente nas páginas 1 e 3.

[17] Sobre o Decreto Lei 431, de 18 de maio de 1938, ver http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-431-18-maio-1938-350768-publicacaooriginal-1-pe.html

[18] Sobre esta questão ver O Radical, Rio de Janeiro-RJ, edições de domingo, 8 de junho de 1943, nas páginas 1 e 2.

[19] Sobre as declarações do Dr. Mac Dowell da Costa ver o Correio de Uberlândia, Minas Gerais-MG, edição de quinta feira, 25 de fevereiro de 1943, pág. 1.

[20] Ver o livro O Brasil na mira de Hitler, Roberto SANDER. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, págs. 106 e 119.

[21] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro-RJ, edição de domingo, 17 de novembro de 1979, pág. 38, 1º Caderno.

[22] Ver Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro-RJ, edição de segunda feira, 4 de fevereiro de 1952, pág. 7.

[23] Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro-RJ, edição de quarta feita, 3 de dezembro de 1975, pág. 24, 1º Caderno.

[24] Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Operation_Pastorius

[25] Ver https://www.theguardian.com/world/2016/aug/28/britain-nazi-spies-mi5-second-world-war-german-executed

100 ANOS DA REVOLTA DOS 18 DO FORTE DE COPACABANA E A LIDERANÇA DE SIQUEIRA CAMPOS

Rostand Medeiros

Em 5 de Julho de 2022 Será o Centenário de Um Dos Momentos Mais Dramáticos e Intensos da História do Brasil no Século XX, Quando Se Iniciou Uma Rebelião Contra a Situação Política Nacional, Que Colocou um Pequeno Grupo de Jovens Militares e Civis Idealistas Para Enfrentarem Abertamente o Governo Brasileiro na Praia de Copacabana. Inicialmente Eles Utilizaram a Mais Poderosa Fortaleza do Brasil na Época Para Mostrar Suas Insatisfações e Depois Lutaram Corajosamente nas Areis da Praia Contra Uma Tropa Bem Mais Numerosa. Nesse Trágico Episódio se Destacou a Figura do Tenente Siqueira Campos, Um Homem de Pensamento Firme e Família de Origens Nordestinas.

Ele foi um dos principais personagens do Tenentismo, movimento de contestação política marcado pela rebelião militar entre as décadas de 1920 e 1930. Antônio de Siqueira Campos nasceu em Rio Claro, São Paulo, em 18 de maio de 1898, vinha da parte menos abastada de uma poderosa família ruralista.

O bisavô que emigrou de Portugal para o Brasil e foi trabalhar como agricultor na cidade de Flores, na Região do Pajeú, no interior do estado de Pernambuco, onde se casou com uma moça da família Siqueira, grande proprietária de terras da região e forte poder político no Nordeste.

Antônio de Siqueira Campos.

Seu avô, Pedro Pessoa de Siqueira Campos, foi condecorado por Dom Pedro II durante a Guerra do Paraguai por atos de bravura e se tornou coronel honorário do Exército. Já seu pai, Raimundo Pessoa de Siqueira Campos nasceu em Pernambuco e casou com Luísa Freitas de Siqueira Campos. Tempos depois Raimundo e seus familiares passaram a viver no interior estado de São Paulo, onde administrava uma das fazendas de um irmão chamado Manuel de Siqueira Campos, que além de rico proprietário de terras, foi presidente da Câmara da cidade de Rio Claro e em 1891 recebeu a nomeação de chefe de polícia de São Paulo, no governo de Américo Brasiliense de Almeida Melo.

A família do jovem Siqueira Campos se mudou para a capital paulista em 1904, onde o pai ocupou o cargo de almoxarife do Departamento de Águas e recebia “o excelente salário de setecentos mil-réis”. Na capital o jovem filho de Raimundo fez o curso primário no Grupo Escolar Sul da Sé de 1904 a 1907 e o secundário no Ginásio do Estado de São Paulo, formando-se em 1914 com “grande distinção”.

Anos depois da Revolta do Forte de Copacabana Siqueira Campos (esquerda), ao lado de Orlando Leite.

O São-carlense pretendia continuar os estudos, mas a situação da família mudou radicalmente. Sua mãe morreu vítima de um acidente e logo seu pai resolveu casar-se novamente. Siqueira Campos tinha na época 16 anos e sua madrasta era mais jovem do que ele. Na pressa de construir um novo lar, seu pai mergulhou a família em dificuldades financeiras e pessoais.

Siqueira Campos viu frustrados seus planos de cursar engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Ao mesmo tempo em que se deterioravam suas relações com o pai, os irmãos mais velhos, Raimundo e Ananias, saíram de casa. Pouco tempo depois Siqueira Campos seguiu o exemplo dos irmãos e mudou-se para o Rio. Sem maiores perspectivas ele escolheu a carreira militar e assim seguiu o exemplo de vários filhos de famílias pobres que desejavam prosseguir os estudos. Em dezembro de 1915 ele ingressou na Escola Prática do Exército e no ano seguinte iniciou o curso na Escola Militar do Realengo.

Militares do Exército Brasileiro no Forte de Copacabana.

Aos dezoito anos, é descrito nos registros militares como um jovem voluntarioso de “1,68 de altura, pouca barba, boca regular, cabelos castanhos, pele branca, nariz afilado, olhos esverdeados e rosto oval”.

Um Oficial em Formação 

As preferências de Siqueira Campos entre as matérias do currículo, dividiram-se entre balística e a matemática, o que o levaria mais tarde à escolha da arma de artilharia. O ensino dentro da escola primava pelo “respeito à ordem constituída”. Embora fosse “quase proibido pensar”, a disciplina não impedia que Siqueira Campos e seus colegas discutissem exaustivamente os problemas brasileiros. Já nessa época ele usava frequentemente a expressão “Brasil Novo” para definir sua esperança de uma mudança no regime político e social que caracterizava a República Velha. 

Dois amigos se destacaram do círculo de colegas de Siqueira Campos. O fechado e religioso Eduardo Gomes — conhecido como “frei Eduardo” —, e Estênio Caio de Albuquerque Lima. Esses alunos alugaram uma casa em Realengo a fim de estudarem de madrugada. A casa recebeu o nome de “Tugúrio da morte” e passou a abrigar inquilinos bastante estudiosos e esfomeados. Esta última característica foi a responsável pelo desaparecimento de várias galinhas das casas vizinhas. 

Exército Brasileiro em movimentações.

Nessa turma privilegiada, de onde sairiam os líderes de acontecimentos que iriam mudar a face da República, Siqueira Campos era amigo de todos, mas admirava especialmente Luís Carlos Prestes.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) dava assunto para várias discussões entre os cadetes: além das posições opostas sobre o pangermanismo e a Revolução Russa de 1917, o tema que inflamava os ânimos era o da entrada do Brasil na contenda. Maurício de Lacerda, então deputado federal, não se cansava de pedir a entrada do Brasil no conflito: apresentou um projeto que foi derrotado em terceira discussão da Câmara, e, durante sua pregação, chegou a procurar os alunos da Escola Militar do Realengo. Siqueira Campos, um dos mais entusiasmados por lutar no exterior, fez parte da guarda-de-honra na homenagem prestada ao poeta Olavo Bilac, outro defensor da participação no conflito, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. 

No Brasil, o período 1917-1920 foi marcado também por agitações sociais. Os operários da Fábrica Bangu entraram em greve reivindicando melhores salários e condições de trabalho. A polícia foi enviada pelo governo contra os grevistas e no choque alguns operários foram mortos. O governo recuou, retirou a polícia e em seu lugar enviou os cadetes da Escola Militar, que foram bem recebidos pelos trabalhadores. Entre os jovens militares que patrulharam a via férrea entre Bangu e o Realengo estava Siqueira Campos. Mais tarde, comentando esse incidente, ele disse que os cadetes que se julgavam politizados naquela época, não tinham a menor consciência dos problemas sociais. 

Um único incidente marcou a vida escolar de Siqueira Campos: em 1918, ainda cadete, agrediu um delegado de polícia que o destratara a chicotadas, no meio da rua . No julgamento, seus bons antecedentes e sua aplicação nos estudos pesaram a seu favor, mas, mesmo assim, foi condenado a 15 dias de prisão no Forte de Santa Cruz por “desacato a autoridade civil”. 

Siqueira Campos.

A turma de Siqueira Campos, da qual faziam parte, além dos já citados, Frederico Cristiano Buys, Ciro do Espírito Santo Cardoso, Paulo Kruger da Cunha Cruz, Honorato Pradel, José Bina Machado e Carlos da Costa Leite, entre outros, terminou o curso da Escola Militar em 1918. Nesse mesmo ano Siqueira Campos matriculou-se no Curso Especial de Artilharia, sendo declarado artilheiro em 30 de dezembro de 1919. Promovido a segundo-tenente em 2 de janeiro de 1920, foi classificado na 1ª Bateria de Costa, sediada no Forte de Copacabana, onde se apresentou no dia 19 do mesmo mês. 

Nas Muralhas

Forte de Copacabana, década de 1960.

Inaugurado em setembro de 1914, o Forte de Copacabana fazia parte de um conjunto de seis fortalezas responsáveis pela defesa do Rio, e era comandado pelo capitão Euclides Hermes da Fonseca, filho do ex-presidente da República, marechal Hermes da Fonseca e sobrinho do marechal Deodoro da Fonseca..

Campos foi promovido a juiz do Conselho de Guerra Permanente do 1° Distrito de Artilharia da Costa. Depois, em janeiro de 1921, torna-se primeiro-tenente e é nomeado comandante interino da cúpula de canhões das guarnições de 190 milímetros, além de ajudante secretário da unidade e auxiliar do comando, estabelecendo uma relação direta com o capitão Euclides Hermes.

Até meados da década de 1920, os registros do Forte classificam a conduta de Siqueira Campos como exemplar, ressaltando seu zelo, inteligência e dedicação ao serviço e seu alto grau de ilustração militar. Apesar de ser considerado um oficial inflexível com a disciplina, ele gozava de grande prestígio no meio da tropa por seu senso de justiça e sua preocupação com as condições de vida dos soldados.

Euclides Hermes da Fonseca – Fonte – https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:EuclidesHermes.jpg

Em janeiro de 1922, durante as férias do comandante Euclides Hermes, respondeu interinamente pelo comando do Forte. Além do trabalho e do estudo, Siqueira Campos dedicava-se também ao esporte. Seus subordinados contam que, para relaxar o corpo após um dia de trabalho, costumava convidá-los a atravessar a nado do Forte de Copacabana à Ponta do Leme. 

Seguindo o exemplo de Eduardo Gomes, o jovem Siqueira Campos conseguiu autorização para submeter-se aos exames da Escola de Aviação Militar em fevereiro de 1922. Entretanto, julgado incapaz no exame de vista, voltou ao Forte de Copacabana, reassumindo suas funções de ajudante-secretário e, no mês seguinte, o comando da cúpula de 190 milímetros.

Para se ter uma ideia do poderio do canhões do Forte de Copacabana, nessa foto da década de 1950 vemos vidraças quebradas pela força expansiva dos disparos dos canhões de 305 em edifícios localizados à beira mar.

Mas as circunstâncias políticas e sociais da conflituosa década de 1920 estabeleceram fortes mudanças que envolveram setores do Exército e transformaram a vida do jovem tenente.

Preparativos do Drama

Já nos primeiros anos do século XX decaía no Brasil os ideais de um sistema político controlado pelas elites estaduais que, pela violência e corrupção, dominavam as eleições, os partidos e os juízes. O próprio Governo recorria à fraude eleitoral, criando os mais ardilosos dispositivos para impedir a vitória de oposicionistas. As relações entre o Governo Federal e os estaduais, e entre estes e os municipais, tinham em sua base uma política de favores e privilégios, numa espécie de círculo fechado no qual inexistia a preocupação com os interesses nacionais.

A guerra nas trincheiras, verdadeiro moedor de carne humana, foi uma das situações marcantes da Primeira Guerra Mundial, cujos reflexos chegariam ao Brasil – Fonte – http://www.sahistory.org.za/article/world-war-ihttp://www.sahistory.org.za/sites/default/files/article_image/worldwar1somme-tl.jpg

A Primeira Guerra Mundial proporcionou a oportunidade de novos empreendimentos industriais, o que gerou o aumento da população urbana. Surgiram assim setores sociais – a classe média e o operariado – que reivindicavam representação política própria.

O operariado, alimentando-se dos ideais anarco-sindicalistas, passou a lutar por melhores condições de vida e trabalho, realizando sucessivas greves e, em 1922, organizando-se politicamente com a fundação do Partido Comunista Brasileiro. Outro fator que iria desestabilizar o controle político das elites foi o aparecimento de dissidências em outras regiões, contrárias ao predomínio político dos grupos dominantes de São Paulo e Minas Gerais.

Os eventos desencadeadores das rebeliões que seriam denominadas “Tenentista”, ou “Movimento tenentista”, ocorreram no período do governo do Presidente Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa, que se iniciou em 28 de julho de 1919.

Esse período se caracterizou pela desarticulação do regime político oligárquico e pelas tensões criadas com os militares em decorrência da nomeação dos civis João Pandiá Calógeras e João Pedro da Veiga Miranda, respectivamente, para os ministérios da Guerra e da Marinha.

Ministro Pandiá Calógeras – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Pandi%C3%A1_Cal%C3%B3geras

O desprestígio de Epitácio cresce com o desenrolar de sua administração, marcada por orgia financeira, empréstimos provenientes do exterior vinculados à política de valorização do café, por inflação, aumento do custo de vida, intensa repressão aos movimentos sociais e radical recusa em conceder melhorias salariais, inclusive para o soldo militar.

Desde 1921, Artur Bernardes, o governante do estado de Minas Gerais, era o candidato oficial à sucessão de Epitácio Pessoa na Presidência da República, o que, segundo a tradição, constituía uma garantia de vitória. No entanto, a candidatura concorrente de Nilo Peçanha, na legenda da Reação Republicana, granjeou também um apoio considerável.

Episódio das cartas falsas.

As desavenças entre as duas correntes políticas penetraram no seio do Exército através de uma série de incidentes, entre os quais se destacou a publicação, em outubro de 1921, pelo Correio da Manhã, das chamadas “Caso das Cartas Falsas”, atribuídas a Bernardes e cujo teor provocou escândalo nas forças armadas: nelas o marechal Hermes era chamado de “sargentão” e um banquete do Clube Militar era qualificado de “orgia”. 

O Estopim Ligado

Apesar da oposição militar, das muitas acusações de corrupção eleitoral, Bernardes foi eleito em 1º de março de 1922, derrotando Nilo Peçanha e assumindo o cargo em 15 de novembro.

Arthur Bernardes

A essa altura, oficiais do Exército conspiravam abertamente e o Correio da Manhã os incitava à rebelião. Enquanto isso, Epitácio Pessoa fazia feroz perseguição aos militares contrários ao político mineiro, promovendo transferências em massa de oficiais que serviam no Rio de Janeiro para guarnições distantes e com isso formou um amplo movimento contra a posse de Bernardes. 

Os incidentes com o governo federal tiveram prosseguimento pouco depois com a acusação a Epitácio Pessoa, que ele determinava a intervenção violenta de guarnições federais nas campanhas políticas nos estados, com o intuito de favorecer determinados candidatos, neutralizar as oposições políticas regionais, como ocorreu em Pernambuco.

Marechal Hermes da Fonseca.

No dia 29 de junho de 1922, o marechal Hermes da Fonseca telegrafou ao comandante da 7ª Região Militar, sediada em Recife, concitando-o a não compactuar com as ameaças do governo federal à autonomia do estado, advertindo-o para que o Exército não se tornasse “o algoz do povo pernambucano”.

Severamente repreendido pelo Presidente da República através do ministro da Guerra, João Pandiá Calógeras, o marechal Hermes enviou a Epitácio Pessoa, no dia 2 de julho, um ofício em que reafirmava o conteúdo de seu telegrama ao comandante da 7ª Região Militar, o qual havia sido aprovado pela direção do Clube Militar. Declarava, ainda, não poder “aceitar a injusta e ilegal pena” de repreensão severa que lhe havia sido imposta.

Considerando essa atitude do marechal Hermes uma reiteração da sua indisciplina, Epitácio Pessoa ordenou sua prisão. Ao mesmo tempo foi decretado o fechamento do Clube Militar por seis meses.

Desfile militar no Realengo.

Era iminente a ruptura entre oficiais legalistas e oficiais descontentes. Para os jovens oficiais, a prisão de Hermes agrediu de tal forma os brios militares, que a oposição ao governo dentro da ordem institucional vigente era incompatível com a sua concepção sobre o papel político arbitrário da organização militar. Tornava-se impossível a sujeição do Exército ao poder político civil estabelecido. A baixa oficialidade, composta em sua maioria de tenentes, identificou-se como legítima representante da instituição castrense, assumindo para si todos os riscos de uma atuação política autônoma.

Então, contra o regime corrupto e opressor, escolheram o caminho da revolta militar os integrantes da Escola Militar do Realengo, da Escola de Aviação do Exército, do Forte de Copacabana, membros da 9ª Companhia do 1° Regimento de Infantaria, além de guarnições do Mato Grosso.

Começa a Rebelião

Em 3 de julho, o comandante do Forte de Copacabana, o capitão Euclides Hermes da Fonseca enviou a seu pai uma mensagem na qual informava que a sua guarnição decidira revoltar-se em protesto contra a sua prisão e contra a atuação do Governo Federal. A ligação do pessoal do Forte com o marechal Hermes era discretamente feita através do tenente Eduardo Gomes.

Guarnição do Forte de Copacabana na época da revolta.

Mas devido à indecisão do marechal Hermes, seu filho Euclides resolveu, com o apoio dos tenentes Antônio de Siqueira Campos e Delso Mendes da Fonseca, protelar o levante para o dia 5.

Mas antes de estourar a revolta o Governo Federal e o Exército tinham determinado nível de ciência do que acontecia e da rebelião que se formava. Segundo relatou Siqueira Campos, na reportagem publicada pelo jornal carioca A Noite, em 3 de setembro de 1923, que na noite de 4 de julho de 1922 chegou à guarnição o general Bonifácio Gomes da Costa, comandante do 1º Distrito de Artilharia.

O segundo a direita é o general Bonifácio Gomes da Costa, comandante do 1º Distrito de Artilharia, após a sua libertação do Forte de Copacabana.

Este por sua vez havia recebido ordens do general Manuel Lopes Carneiro da Fontoura, comandante da 1ª Região Militar, para dirigir-se ao Forte de Copacabana, sondar as intenções dos revoltosos e passar o comando da unidade ao capitão José da Silva Barbosa, que o acompanhava.

Após chegarem ao Forte eles foram direto ao gabinete do capitão Euclides e transmitiram suas ordens. Houve um diálogo entre o general Bonifácio e o capitão extremamente carregado de emoção, pois o general era muito amigo da família de Euclides e não aceitou os argumentos do capitão para a rebelião. Bonifácio era tão próximo a Euclides, que na reunião o chamou de “Xiru”, um apelido de família. Nisso surge Siqueira Campos, que com autoridade e sem perda de tempo, deu a ordem de prisão ao general Bonifácio e ao capitão Barbosa, que foram mantidos encarcerados até o fim da revolta. 

Sob estado de alerta, a tropa cavou trincheiras, estendeu redes de arame farpado, enquanto o tenente Newton Prado superintendeu os depósitos de armazenamento de alimentos com víveres suficientes para um mês e preparou a artilharia.

Em razão do seu valor tático e poderio bélico, o Forte de Copacabana se tornou o depositário das esperanças revolucionárias. A poderosa fortaleza recebeu adesões de oficiais e soldados lotados em outras guarnições, além de voluntários civis. Com essas adesões o total de revoltosos na primeira fase da insurreição chegou a 301. Um dos grupos que aderiu chegou ao Forte no bonde do Leme!

Antiga entrda do Forte da Ponta da Vigia, cuja a área no entorno foi atingida por disparos do Forte de Copacabana – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Forte_da_Ponta_da_Vigia

No Forte da Ponta da Vigia, no morro do Leme, o primeiro-tenente Fernando Bruce conseguiu a adesão do segundo-tenente intendente Rubens de Azevedo Guimarães, do aspirante Romulo Fabrizzi e de outros militares, totalizando mais 54 revoltosos ao contingente do Forte de Copacabana, que chegaram na praça de guerra rebelada com armas e munições. Inclusive eles comunicaram a extremada decisão ao comandante da guarnição do Leme, o capitão Maximiliano Fernandes da Silva, que tentou até convencê-los do contrário, mas de nada adiantou.

Só que para percorrerem o caminho até Copacabana, os militares do Leme tomaram de assalto um bonde da empresa Light, baixaram as cortinas do veículo, desligaram as luzes e o aspirante Fabrizzi colocou uma pistola na cabeça do motorneiro, obrigando-o a fazer o trajeto.

Forte de Copacabana em 1922.

Teve ainda o caso do capitão Libânio da Cunha Mattos, do 3º Regimento de Infantaria, que saiu do quartel da Praia Vermelha com uma companhia formada de oficiais e praças e foi até o Forte de Copacabana para dialogar com seu colega Euclides Hermes e “lhe chamar a razão”.

A conversa foi tranquila, clara e sincera, como deve ser entre dois amigos, mas o capitão Euclides não se dobrou aos argumentos de Cunha Mattos. Então, na hora de ir embora do Forte, o capitão do 3º Regimento deu de cara com o segundo-tenente Mário Tamarindo Carpenter, seu comandado, que aderira a revolta. Outros dizem que na hora de partir, o tenente Carpenter, que teria vindo junto com o grupo que saiu da Praia Vermelha, bateu continência para Cunha Mattos, deu meia volta e aderiu a revolta.

Na madrugada de 5 de julho não havia nada mais o que esperar e os revoltosos entraram em ação!

Siqueira Campos e seus comandados dispararam as 01:20 da manhã contra a Ilha de Cotunduba (dois disparos), contra o Forte da Ponta do Vigia e o 3º Regimento de Infantaria, que recebeu disparos como protesto por ter esta unidade recebido o marechal Hermes preso. Também visaram o Ministério da Guerra.

A sombra que surge nessa foto de baixa qualidade é o resultado dos disparos dos canhões do Forte de Copacabana.

Consta que o capitão Euclides desejava acertar nesse último local a sala do ministro Pandiá Calógeras, onde foi assinado o ato de prisão do seu pai, mas errou o tiro e acertou o prédio da Litgh, a companhia de energia elétrica e bondes da cidade, matando três pessoas. O ministro então ligou para o Forte, protestando asperamente contra o disparo. Foi aí que Euclides percebeu que errou o alvo. Calibrou o canhão para um novo tiro e mandou bala. Dessa vez acertou o prédio na ala esquerda e depois mais dois disparos tiveram o mesmo destino. Infelizmente nesses ataques três militares do Exército faleceram e dois ficaram feridos.

Com outros disparos, outras residências e áreas comerciais foram atingidas, como um prédio na Rua São Pedro e outro na Rua Marechal Floriano. A população desesperada refugiava-se nos morros, serras e nos subúrbios. O abastecimento de água e luz do Forte foi cortado, menos a telefonia.

Notícia da revolta nos Estados Unidos, onde o jornalista Charles Lucas sofre forte censura, mas conseguiu enviar as notícias dos episódios no Rio.

Chegou-se a falar em armistício, mas Epitácio Pessoa só aceitava a rendição dos rebeldes, sob pena de serem atacados por todas as forças governamentais de terra, mar e ar. Logo, mais de 4.000 homens das forças regulares cercavam a região do Forte de Copacabana.

Do lado de fora, na cidade, multiplicaram-se os boatos sobre os presídios estarem superlotados de rebeldes, seus apoiadores e familiares. Falavam que os mortos pelos bombardeios chegavam aos milhares, que ocorriam enterros em massa e os corpos eram jogados em vala comum. Mas, apesar da destruição de alguns prédios e da morte de alguns militares e populares, o que havia de verdade era que os pontos estratégicos da cidade permaneceram nas mãos das forças governistas.

Região do Forte de Copacabana cercado por tropas legalistas.

Nesse mesmo dia 5 de julho, após o início da rebelião, tropas legalistas e os efetivos da Polícia Militar rapidamente subjugaram os cadetes da Escola Militar e da Escola de Aviação. No Campo dos Afonsos os sargentos do general Carneiro da Fontoura tiveram vital importância, onde ficaram encarregados de controlar os oficiais nos corpos de tropa e de sabotar os aviões, impedindo-os de levantar voo.

Apesar dessa pequena vitória, só restou ao governo dominar os revoltosos entrincheirados no Forte de Copacabana.

Canhões Disparam na Baía da Guanabara

Às quatro horas da madrugada do dia 6, o capitão Euclides Hermes reúne todos os oficiais que participavam da defesa do Forte e expõe claramente a situação vivida e informa que o Forte de Copacabana era a única unidade que se mantinha rebelada e estava completamente isolado. Poderia resistir por mais tempo, em virtude do seu imenso poder de fogo, mas as chances de vitória eram inteiramente nulas!

Forte de Dom Pedro II de Imbuí, bairro de Jurujuba, Niterói, que não aderiu a revolta de 5 de julho.

Ciente da gravidade da situação, o capitão Euclides facultou a cada um a livre opção pela resistência ou retirada. O próprio Siqueira Campos incitou os que eram arrimos de família a abandonarem o local e exigiu que a permissão à desistência fosse estendida aos soldados.

O Forte, que abrigava 301 revoltosos, fica com apenas 29: cinco oficiais — o comandante Euclides, Siqueira Campos, Eduardo Gomes, Mário Carpenter e Newton Prado —, dois sargentos, um cabo, dezesseis praças e cinco voluntários civis. Os demais deixaram as armas e se retiraram.

Essa foto, da década de 1950, mostra as proporções dos canhões de 350 milímetros do Forte de Copacabana.

Foi quando o governo deu o próximo passo.

Por volta da 07:35 da manhã de 6 de julho os encouraçados São Paulo e Minas Gerais, cruzaram a barra,escoltados pelo destroier Paraná, onde se encontrava o almirante Max Fernando de Frontin, Chefe do Estado Maior da Armada e comandante daquela operação naval. Os poderosos encouraçados eram imponentes máquinas de destruição, com seis canhões de 305 milímetros em cada navio, enquanto os canhões mais poderosos do Forte de Copacabana eram apenas dois, do mesmo calibre das naves de guerra, mas que poderiam atingir alvos a 23 quilômetros de distância, 1.500 metros a mais que os disparados pelos canhões do São Paulo e Minas Gerais.

No instante que os navios transpuseram a barra, os revolucionários abriram fogo, mas não contra os navios. Mostrando toda sua competência e capacidade de combate, realizaram mais de dez disparos com os canhões de 190 milímetros contra postos-chave da cidade, como a Ilha das Cobras, o Palácio do Catete, o Corpo de Bombeiros e o Arsenal da Marinha. No Batalhão Naval dos Fuzileiros Navais morreram três militares atingidos por estilhaços.

Salva dos poderosos canhões do Minas Gerais, navio irmão do São Paulo.

Na sequência o Forte de Copacabana foi atacado a uma distância de 6.000 metros pelo fogo dos canhões do São Paulo, o único dos navios a disparar, cujos estampidos ressoaram de forma poderosa por toda a Baía da Guanabara.

O tempo estava firme e o mar calmo e efetivamente os canhões do navio dispararam vinte vezes. O impacto das granadas navais chegou até mesmo a estremecer o solo quando duas delas, as únicas, atingiram a muralha do Forte. O resto dos disparos caíram no mar.

Aquilo foi uma demonstração pífia da capacidade de combate de uma nave de guerra que possuía muito mais canhões do que a fortaleza rebelada, que estava a uma distância relativamente curta para a efetiva utilização desse tipo de armamento, além de ser um dia claro e de mar calmo.

Canhões de 305 milímetros disparando no Forte de Copacabana na década de 1950. Essa cena não ocorreu em 1922.

Alguns autores apontam que os artilheiros do Forte preparavam a reação com os dois canhões de 305 milímetros, quando um enguiço no motor a diesel do sistema hidráulico que movimentava a cúpula das armas impediu a ação. Os revoltosos alegaram que o enguiço foi resultado de sabotagem. Então, manobrando no braço os canhões de 190 milímetros, a guarnição respondeu ao fogo do navio de guerra. O São Paulo teria sido atingido na torre de comando, tendo a esquadra recuado para uma distância segura e não voltado a entrar em ação.

Sobre a questão dos disparos do encouraçado São Paulo e do Forte de Copacabana, é bom os leitores observarem a nota que segue abaixo, publicada na edição dominical do jornal carioca Correio da Manhã, 5 de julho de 1959. É um trecho da entrevista concedida pelo então general da reserva Euclides Hermes da Fonseca, no seu apartamento da Rua Toneleros, ao jornalista (e futuro deputado federal) Márcio Moreira Alves.

Os historiadores navais nunca corroboraram essas informações de impacto e afirmaram que os navios manobraram não em busca de uma distância segura, mas apenas para se “recolocarem no cenário”. E mais – Os historiadores navais comentaram que do Forte subiu uma bandeira com a letra “P”, indicativo de parada dos disparos de artilharia e que no mastro principal da unidade sublevada subiu uma bandeira branca, mostrando que os disparos navais foram a causa da “rendição do Forte”.

E essa ideia perdurou (ou perdura) no meio naval. Mas apenas no meio naval.

Para a maioria dos que se debruçaram sobre o tema, o que aconteceu foi que apesar dos desfalques no lado dos revolucionários, do barulho dos ineficientes disparos do São Paulo e do impasse existente, tudo apontava que o combate podia prolongar-se. O ministro Pandiá Calógeras, sensível às 72 toneladas de granadas de artilharia que abarrotavam os paióis da fortaleza e a possível perda dos meios navais mais poderosos existentes no Brasil, propôs uma conversação de paz, aceita pelos insurretos. E foi aí que a bandeira branca subiu no mastro!

Newton Prado no Forte de Copacabana, atrás de uma barricada, aguardando seu destino. Foto Brício de Abreu.

O major Egídio Moreira de Castro Silva e o tenente-aviador Pacheco Chaves são então enviados pelo governo para conversar. Mas no momento em que o tenente Newton Prado cruza o portão para recebê-los, um hidroavião da Marinha (alguns afirmam que foram dois) sobrevoo o Forte e lançou bombas que, tal como a maior parte dos disparos feitos pelos seus colegas no encouraçado Minas Gerais, só acertaram a água.

Se os aviadores navais erraram feio no seu bombardeio, acabaram foi com a tal “missão de paz”, que degenerou em conflito verbal e físico entre os embaixadores. O major Egídio e o tenente Pacheco tentaram prender o tenente Newton Prado, que resistiu, mas acabou sendo jogado para o lado de fora da muralha, se ferindo, enquanto os dois oficiais, que em nada lembravam homens honrados, fugiram em desabalada carreira.

Tropas legalistas aguardando desfecho dos revoltosos do Forte de Copacabana.

Indignado, o capitão Euclides Hermes toma o telefone e protesta. Calógeras desculpa-se por medo de levar um novo bombardeio. Argumenta que foi um engano: a Marinha não foi devidamente informada sobre a trégua. Lembrando as relações cordiais que mantinham até o início do levante, propõe um encontro pessoal entre ambos. A oferta é aceita pelos revolucionários.

Os oficiais no Forte reuniram-se e decidiram enviar ao ministro da Guerra, através do capitão Euclides, os termos da rendição. O tenente Siqueira Campos, comandante moral da rebelião, redige as cláusulas da desistência. Por elas, os oficiais rebeldes terão a vida respeitada e receberão baixa do Exército, para se exilar em seguida. O capitão Euclides Hermes pegou um automóvel de praça no Posto Seis, de placa 1.231, para tentar entregar o documento de desistência às autoridades.

O cidadão marcado com uma cruz é Euclides Hermes da Fonseca, quando ficou preso na Ilha Grande, Rio de Janeiro.

Segundo os jornais ele passou primeiro na residência de seu pai, em Botafogo, no número 60 da Rua Guanabara, atual Pinheiro Machado. De lá telefonou para Calógeras, que pede para aguardá-lo. Mas quem compareceu foi o capitão Marcolino Fagundes, acompanhado de um sargento e de um cabo, todos do 3º Regimento de Infantaria. Euclides foi preso por ordem do presidente e levado para o Palácio do Catete.

Esse militar ficaria na cadeia até o fim do governo seguinte, o de Artur Bernardes.

A Marcha dos Valentes

No palácio, visivelmente embaraçado diante do capitão Euclides, Calógeras explica que: por decisão posterior do Presidente da República era forçado a prendê-lo, devendo também o Forte se render incondicionalmente.

Ao meio dia e meia Euclides, por telefone, comunica a Siqueira Campos o resultado da missão de paz: Estou preso, Siqueira. Eles traíram a palavra de honra dada… Eles querem que os oficiais se rendam, que deixem o forte, marchando desarmados, um a um, até se entregarem às tropas legais. Consta que também houve a ameaça de fuzilarem o capitão Euclides se os rebelados não se rendessem.

Foto atual da área de entrada do Forte de Copacabana.

Reinava então uma paz temporária, pois o dispositivo legal recebera ordens de aguardar a rendição.

Sabendo da traição, os militares no Forte decidem pensar de novo sobre o desfecho do conflito. Na sala de comando reúnem-se os quatro últimos oficiais que se mantinham rebelados. Todos eram tenentes. Nenhum tinha mais de 25 anos. Dois eram membros da guarnição original do Forte de Copacabana: Siqueira Campos e Newton Prado. Outros dois haviam se juntado a ela no momento da sublevação: Mário Carpenter e Eduardo Gomes.

Siqueira Campos faz uma proposta extremada: explodir o paiol de pólvora, morrendo a guarnição em seus postos. A sugestão não foi aceita. Propôs então uma outra: os navios estavam fora do alcance dos canhões de 190 milímetros, mas o Forte podia continuar bombardeando objetivos militares na cidade. Eduardo Gomes alegou que esta solução oferecia o risco de atingir ainda mais a população civil.

Foto de jornal que mostra parte dos soldados do 3º Regimento de Infantaria que enfrentaram os rebeldes do Forte de Copacabana.

Eles sabiam que as tropas federais estavam estacionadas na Praça Serzedelo Correia, a um quilômetro e meio do forte, e superavam o efetivo rebelde na proporção de 142 para 1. Estes números mostravam que o Governo Federal pretendia liquidar a fatura com uma lição exemplar e definitiva aos militares que não acatassem suas ordens. Em troca de suas vidas, à guarnição da fortaleza rebelada não bastaria render-se. A humilhação era o preço a ser pago por haverem levado a luta até aquele ponto.

Certamente diante dessa situação foi que o tenente Eduardo Gomes sugeriu que ele e seus companheiros abandonassem o Forte, saíssem armados e seguissem em direção ao Palácio do Catete, enfrentando às tropas do governo em um combate corpo a corpo, em plena rua, de peito aberto, na frente do povo. Valentemente eles concordaram com a sugestão!

Os momentos seguintes são de grande e intensa emoção. Siqueira mandou trazer a bandeira brasileira, mandou cortá-la em 29 pedaços irregulares e distribuiu um pedaço a cada soldado e oficial. Todos se municiaram, até mesmo com granadas, e guardaram o 29º pedaço do pavilhão nacional para entregar ao capitão Euclides.

Na década de 1950 um oficial do Forte de Copacabana mostra o pedaço da bandeira brasileira utilizado por Siqueira Campos, preservada nessa unidade militar e, segundo foi comentado na época da foto, manchada de sangue.

Era uma e meia da tarde quando os revoltosos saltaram uma barricada que eles criaram na entrada da fortaleza.

Sob o comando de Siqueira Campos, seguiram pela Avenida Atlântica, que margeia a Praia de Copacabana, em direção ao Leme, encontrando alguns populares que tentaram desencorajá-los daquela loucura. Falavam aos moradores sobre seus motivos e lenços brancos eram acenados das janelas. Seguiram assim até a chamada “London House”, que tempos depois seria o Hotel Londres, onde pararam e beberam água em uma casa de família. As mulheres que os atenderam estavam visivelmente emocionadas. Já haviam percorrido mais de um quilômetro.

Ao reiniciar a marcha, Siqueira verifica que alguns rebelados haviam desistido. Mas isso já não tinha importância. Eles continuam numa tensa caminhada rumo às tropas legalistas. Siqueira puxou gritos de vivas ao Exército, ao marechal Hermes e aos defensores do Forte.

Nas imediações da praia, as tropas legalistas tomam posição.

Eduardo Gomes era o oficial que estava mais bem trajado e ainda conservava a sua gravata. Já Mário Carpenter seguiu na avenida com cabelos desgrenhados e com parte da sua túnica aberta. Newton Prado, mais corpulento, não trazia uma das polainas, perdida na briga com o major Egídio Moreira de Castro e o tenente-aviador Pacheco Chaves. Já os sargentos e soldados seguem mais bem equipados e garbosamente vestidos que os oficiais. Todos estão de armas na mão e vários fuzis estão com suas baionetas. Alguns fumam.

Antes de atingirem a Rua Barroso, hoje Siqueira Campos, o civil Otávio Correia, um jovem engenheiro gaúcho de 36 anos se integra ao grupo. Ele era conhecido de Siqueira Campos, a quem havia sido apresentado na casa da escritora Rosalina Coelho Lisboa. Otávio vem bem vestido com seu paletó claro, bem talhado para seu corpo alto e magro, além de trazer um chapéu de massa. O engenheiro então recebeu o pedaço da bandeira destinado ao capitão Euclides e o fuzil Mauser de Newton Prado, que ficou na mão com uma pistola ou um revólver.

Rebelados seguem pela Avenida Atlântica.

O fotógrafo Zenóbio Couto, da importante revista O Malho, imortalizou os instantes finais da marcha com uma chapa fotográfica antológica. Um documento de extrema importância para a história iconográfica brasileira. Por ironia não aparece na imagem a figura de Siqueira Campos – ele tinha recuado momentaneamente até a retaguarda para convencer alguns soldados a não abandonarem a empreitada. Então, numa das esquinas da Avenida Atlântica, a marcha encontrou as tropas governistas.

Enquanto os rebeldes caminhavam na avenida a beira mar, o tenente legalista João de Segadas Viana, comandante de um dos três pelotões da 6ª Companhia do 3º Regimento de Infantaria, havia recebido ordens de preparar-se para deter a marcha dos revolucionários, enquanto se providenciavam mais reforços. Seu comandante, o capitão Pedro Crisol Fernandes Brasil, dispôs então um pelotão na Rua Barroso, comandado pelo tenente Segadas; outro na rua seguinte, Hilário de Gouveia, chefiado pelo tenente Miquelina; e o terceiro manteve na praça, sob comando do tenente João Francisco Sawen.

Algum tempo depois, o tenente Segadas recebeu ordem de descer pela rua Barroso, em direção à praia, para observar a progressão dos revoltosos. Tendo atrás de si, a uns 30 metros, seu pelotão. Logo que chegou na esquina deparou-se com os rebelados.

Ao verem o tenente legalista, três soldados do Forte tentaram dominá-lo. Ele sacou a sua arma, mas o tenente revolucionário Mário Carpenter, seu colega no 3º Regimento, ordenou aos praças que se detivessem. Enquanto isso, os cerca de 40 membros do pelotão de Segadas apontavam suas armas contra os revoltosos e vice-versa.

Segadas tentou dissuadi-los do combate e por sua vez Siqueira e Carpenter exortavam o legalista a acompanhá-los na rebeldia. Segundo reportagem do periódico carioca O Jornal, Segadas Viana chegou até Siqueira Campos e teria dito “O que é isso companheiro?”. Siqueira Campos reagiu arrancando os botões de sua túnica e proclamando que não mais pertencia ao Exército.

Esgotados os argumentos, o destacamento revolucionário retomou a marcha, mas surge o capitão Brasil vindo da Rua Hilário de Gouveia, que vendo a situação acaba dando a ordem de “fogo” ao pelotão do tenente Segadas. Consta que apenas um soldado obedeceu e disparou. O tiro matou pelas costas o soldado Pedro Ferreira de Melo. O tenente Siqueira Campos virou-se e devolveu o tiro e o combate começou.

Na área do Palácio do Catete, tropas legalistas tomam posição.

Morte nas Areias de Copacabana

Depois de sustentarem o tiroteio por alguns minutos em pé, em plena avenida, os revolucionários pulam para a areia e se abrigam por trás do paredão da calçada. Só levantavam a cabeça dessa proteção para abrir fogo. Embora a desproporção entre as forças fosse esmagadora, o paredão representava excepcional proteção aos rebeldes. E a motivação com que pelejavam dava às suas ações a objetividade que faltava às forças governistas.

Em meio a muitos tiros, alguns jornais da época afirmam que os homens que deixaram as muralhas do Forte de Copacabana “lutavam feito loucos na areia da praia”, de “maneira superior aos seus inimigos” e que suas ações “perturbaram as forças legalistas”, impressionadas diante de tamanha coragem insana e suicida. Os pelotões do tenente Segadas e Miquelina sofrem imediatamente várias baixas, inclusive seis mortes.

As forças legalistas acorrem em massa à praça Serzedelo Correia, em socorro aos pelotões do 3º Regimento de Infantaria. Até mesmo a tropa de guarda do Palácio do Catete foi deslocada para essa finalidade.

Tropas legalistas se aproximam da Praia de Copacabana para combater os revoltosos.

O voluntário rebelde Joaquim Maria Pereira Júnior, que sobreviveu ao combate, relatou: “O tiroteio foi renhido, mas atirávamos com calma e precisamente… As forças do governo avançavam lentamente”.

Considerando a dificuldade de sufocar os revoltosos, foi cogitada a carga de baionetas. Os oficiais, no entanto, recusaram-se a empregá-la contra aqueles que, mesmo na condição de inimigos, lutavam tão corajosamente. Que se rendessem ou fossem mortos a tiros, nunca estripados.

A luta prosseguiu, até que a munição dos rebeldes se esgotou. Eduardo Gomes foi ferido na coxa esquerda e foi o primeiro revolucionário atingido pela fuzilaria. Depois caíram o sargento José Pinto de Oliveira, com uma bala na fronte, estavam feridos os praças Hildebrando da Silva Nunes e Manoel Antônio dos Reis – corneteiro, cujos toques de clarim vibravam duros golpes no moral das tropas governistas. Mário Carpenter, de apenas 23 anos de idade, recebeu um disparo no abdômen e mergulhara na inconsciência. Já o engenheiro Correia perdeu a vida com um balaço no peito. Siqueira Campos – com um ferimento na mão esquerda – e o tenente Newton Prado – baleado no abdome e na perna – ainda guardavam a última bala em suas armas. Aos demais combatentes já não restava nenhuma.

Tropas legalistas se posicionam na área da Avenida Atlântica.

O tenente Siqueira Campos ordena, então, aos praças e voluntários civis, que cada qual tome um rumo, mas não se deixem prender e não se deixassem ser feridos pelos legalistas. Por incrível que possa parecer, dois conseguem cumprir essas ordens com êxito.

O soldado 108, Manoel Ananias dos Santos, respirou fundo, saltou para cima do paredão e desviando-se das balas atravessou a avenida em busca de abrigo. “Os legalistas deram uma rajada contra mim, mas não acertaram”, contou ele 42 anos mais tarde ao jornalista Glauco Carneiro, da revista O Cruzeiro. “Consegui alcançar e pular o muro de uma casa… Havia no jardim uma corda estendida com vários calções de banho.” Disfarçado de banhista, ele conseguiu atravessar o túnel, por volta das 16:30, chegando em seguida à residência de um sargento, na Rua Mena Barreto, em Botafogo. Já o voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior escapou pelo mar: “Esgotada a minha munição, ordenou o tenente Siqueira Campos que eu me retirasse… Atirei o meu fuzil ao mar e logo adiante nadei até um lugar abrigado, onde alguns operários humanitários me vestiram à paisana”.

Preso ao tentar romper o cerco João Anastácio Falcão de Mello, ex-soldado e que em 1922 era funcionário civil da Intendência de Guerra, fez um significativo relato do acontecimento: “Quando não tinha mais munição fui avançando, com um bruto ferimento na perna, mas com um punhal na mão. Me pegaram logo adiante e um oficial legalista me chamou de bandido. Aquilo moeu-me a alma. Lutara de peito descoberto contra gente armada em número muito superior e aquele homem a chamar-me de bandido!”. Consta que Falcão já havia trabalhado para a família do capitão Euclides Hermes da Fonseca, que o protegia e o ajudava e que teria ido ao Forte de Copacabana saber notícias do capitão a pedido de sua esposa, Leonila Ovalle da Fonseca. Nisso acabou aderindo ao movimento rebelde, foi preso e depois de algum tempo libertado.

Logo após o final do combate, nessa foto vemos no chão o corpo do engenheiro Otávio Correia e de costas, sendo apoiado pelos inimigos, o tenente Newron Prado, que depois morreria em decorrência dos ferimentos no Hospital Central do Exército.

Ao final do combate na Praia de Copacabana, como os revolucionários não respondiam mais aos disparos, o capitão Brasil e o tenente Segadas Viana suspenderam o fogo e iniciaram um avanço lento e cuidadoso em sua direção. Já tinham caminhado cerca de vinte metros quando, repentinamente, um contingente de 100 homens do 3º Batalhão de Infantaria da Policia Militar, sob o comando do coronel Tertuliano Potiguara, sai da Rua Barroso, em veículos de transporte apelidados de viuvinhas. Em alta velocidade, chegam ao local onde se encontram Siqueira Campos e seus companheiros. “Calar baioneta! Avançar!” Foi a ordem de Potiguara.

Debaixo de uma gritaria infernal os atacantes se precipitam contra uma fortaleza sem muralhas guarnecida por mortos e feridos. Mas a surpresa ainda os espera.

A última bala do tenente Newton Prado é certeira, derrubando para sempre o atacante mais afoito. Siqueira aguarda até o último instante para disparar a sua, atingindo na boca o sargento Lindolfo Garcia Godinho, que lhe enterrara a baioneta no fígado.

O Governo Federal em 1922 triunfou sobre os rebelados. Oito anos depois essa ordem vigente seria derrotada pelo Golpe de 1930.

Levantem os vivos! Os vivos levantem! – uivam os comandados de Potiguara, tomados de histérico frenesi. Não há quem os possa atender.

O combate teria durado de uma hora a uma hora e meia. Outras fontes afirmam que a refrega foi bem mais rápida, de apenas “onze minutos”. Independente do tempo, o certo foi que os rebeldes não abriram mão de lutar!

Junto ao corpo inerte do tenente Mário Carpenter jaz o seu quinhão da bandeira do Forte. Nele está escrito: “Forte Copacabana – 6 de julho de 1922 – Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia… Minha vida”.

Outras Lutas de Siqueira Campos

Marcada pelo voluntarismo, essa fase inicial do tenentismo não existia uma definição ideológica claramente expressa pelo movimento, não carrega um projeto para a sociedade brasileira e nem se identifica como porta-voz de grupos sociais que não sejam o próprio Exército.

Epitácio Pessoa, numa tentativa de apaziguamento dos ânimos, visitou os feridos no Hospital Central do Exército e a iniciativa foi amplamente divulgada pela imprensa. Siqueira Campos reagiu com altivez e frieza à tentativa de diálogo do Presidente da República.

O líder revoltoso só receberia alta em dezembro de 1922, sendo então preso. Eduardo Gomes também sobreviveria.

Em 14 de agosto, Campos prestou depoimento no inquérito presidido pelo general Augusto Tasso Fragoso. No início de setembro, foi transferido para o 3º Regimento de Artilharia Montada, no interior do país, onde ficou até o início de outubro, quando lhe foram concedidos mais 60 dias para tratamento de saúde no Hospital Central do Exército. Ao ter alta foi recolhido preso à Escola de Comando e Estado-Maior, na Tijuca.

Apesar da expectativa contrária do recém iniciado governo Artur Bernardes, a Justiça Federal concedeu habeas corpus aos rebeldes sobreviventes em janeiro de 1923.

Siqueira Campos saiu da prisão com habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Logo solicitou baixa do Exército em 7 de janeiro de 1923, mas, ao ver seu pedido recusado, resolveu exilar-se no Uruguai. Não demorou e foi denunciado pelo promotor criminal da República.

Siqueira Campos (direita), ao lado do tenente revolucionário Juarez do Nascimento fernandes Távora, de jaguaribe, Ceará. Foto feita provavelmente na Argentina.

Associado com seu colega da primeira fase da insurreição do forte de Copacabana, o ex-aspirante Manuel Augusto de Araújo Góis, fundou uma firma de representações “Araújo, Campos & Cia.”, dedicada à importação e venda de produtos primários brasileiros. Depois, nos primeiros meses de 1924, abriu em Buenos Aires a casa comercial “Araújo, Siqueira & Cia. Importación-Exportación”, numa tentativa de vender café.

Siqueira Campos voltou clandestinamente ao Brasil em 1924 e em 5 de julho desse ano, exatamente dois anos após a Revolta de Copacabana, rebeldes liderados pelo general aposentado Isidoro Dias Lopes lançaram outra revolta. Inspirada na luta de Copacabana de 1922, e novamente com o objetivo de derrubar a Primeira República. Embora essa revolta tenha conseguido tomar São Paulo temporariamente, no final de julho, eles estavam enfrentando a perspectiva muito real o governo exterminá-los completamente após um cerco. 

Como resultado, sob a cobertura da escuridão, 3.000 rebeldes escaparam da capital paulista nos dias 27 e 28 de julho, escapando até mesmo das forças do governo sitiantes. 

Na sequência, os rebeldes, agora liderados por Luís Carlos Prestes, formaram efetivamente uma força de guerrilha que seguiu combatendo no interior do país. O grupo, conhecido como Coluna Prestes, manteve-se em constante movimento, sofrendo perdas, mas evitando o extermínio total pelas mãos do governo. Quando eles escaparam para a Bolívia em 1927, haviam percorrido mais de 25.000 quilômetros no interior do Brasil. Siqueira Campos juntou-se à Coluna, tornando-se líder de um dos quatro destacamentos que tentavam escapar da captura e marchavam pelo interior do país.

Siqueira Capos no exílio.

Enquanto a Coluna Prestes se dirigia à Bolívia, Siqueira Campos acabou primeiro em Buenos Aires, onde continuou os esforços para organizar os brasileiros que se opunham à Primeira República e estavam exilados no Uruguai e na Argentina. 

Em 1929, à medida que o descontentamento com o governo brasileiro crescia e os rebeldes militares e dissidentes políticos formavam a Aliança Liberal, Siqueira Campos foi escolhido para liderar um levante em São Paulo. No entanto, antes que a revolta pudesse acontecer, a trama se tornou conhecida e o rebelde mais uma vez fugiu para o exílio. No entanto, os dias da Primeira República estavam contados.

Telegrama para a escritora Rosalina Coelho Lisboa, informando sobre a morte de Siqueira Campos. Foi enviado por Luís Carlos Prestes no exílio.

Finalmente, em outubro de 1930, o governo Artur Bernardes caiu, sendo substituído pelo movimento revolucionário que levou Getúlio Vargas ao poder.

Apesar de todos os seus esforços para acabar com a Primeira República, Siqueira Campos não veria os frutos de seus esforços. Ele morreu quando o avião em que viajava do Uruguai para o Brasil caiu no Rio da Prata em 10 de maio. Após vários dias de buscas, seu corpo foi encontrado e enterrado no Rio. Ele ganhou uma série de homenagens póstumas.

Chegada do caixão de Siqueira Campos no Rio.

Embora Antônio de Siqueira Campos não tenha vivido para ver o fim da Primeira República, sua liderança e sacrifício na Revolta do Forte de Copacabana e suas ações subsequentes, desempenharam um papel importante para minar ainda mais a legitimidade do regime.

UM POUCO DA HISTÓRIA DO BRASIL NAS COPAS DO MUNDO

Ruas enfeitadas, festas por todos os lados, emoção à flor da pele, demonstrações de “patriotismo”: no Brasil e em muitos países, a cada quatro anos, vemos repetir-se a força de mobilização de uma Copa do Mundo de Futebol, cujas finais, que atualmente contam com 32 seleções nacionais, envolvem mais público, movimentam mais recursos e angariam mais prestígio do que os Jogos Olímpicos, outro grande evento esportivo que reúne mais de 20 modalidades.

As primeiras ideias de organizar uma competição mundial de futebol surgiram em 1905, em um cenário em que havia muitas iniciativas de criação de movimentos internacionais (escotismo, esperanto, Cruz Vermelha, jogos olímpicos, entre outros). As iniciativas, todavia, não chegaram a se concretizar por questões operacionais ou políticas, como a Primeira Guerra Mundial.

O 4º gol da seleção Uruguai x Argentina marcado por Héctor Castro – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/1930_fifa_world_cup_final#/media/file:uruguay_goal_v_argentina_1930.jpg

Somente a partir da década de 1920, quando a FIFA (Federação Internacional de Futebol Association, órgão máximo da modalidade, criada em 1904) era dirigida por Jules Rimet, houve esforços mais sistemáticos no sentido de operacionalizar a proposta, que culminaram com a organização da primeira Copa do Mundo, em 1930, no Uruguai, graças em grande parte ao desempenho da diplomacia do país-sede.

Ao contrário dos Jogos Olímpicos, organizados por cidades, as Copas do Mundo sempre foram promovidas por países. Do primeiro torneio, apenas 14 equipes nacionais participaram, sendo nove do continente americano e cinco do europeu.

Naquela ocasião, provavelmente não se imaginava que a competição iria crescer de tal forma que envolveria praticamente todos os países do mundo. Vale citar que a FIFA possui mais associados do que a Organização das Nações Unidas (ONU). Também no Brasil, essa primeira edição não teve grande impacto, inclusive pelo fato de a equipe representativa ser fruto de uma cisão entre paulistas e cariocas.

A seleção brasileira obteve um modesto sexto lugar. O Uruguai foi o campeão, o que não surpreendeu por sua condição de bicampeão olímpico (1924 e 1928) e país-sede. 

Jogadores da Alemanha Nazista realizando a sua saudação tradicional na Copa do Mundo de 1938 – Fonte – https://www.history.com/news/world-cup-nazi-germany-forced-austrian-players-lost

A segunda edição do evento foi realizada em 1934, na Itália. A competição começava a tornar-se mais popular, tendo sido inscritas 32 seleções para 16 vagas, tornando necessária a organização de eliminatórias. Tal Copa coincide com o avanço do fascismo na Itália, bem como de regimes autoritários na Alemanha, na Espanha e Portugal.  Foi concebida por Mussolini como uma forma de provar ossupostos avanços possibilitados pelo novo regime. Até mesmo facilitou-se a naturalização de estrangeiros, a fim de fortalecer a seleção italiana. Curiosamente, um brasileiro, Anfilogino Guarisi, foi campeão jogando pela equipe da casa.

Os torcedores brasileiros somente se empolgaram com a Copa do Mundo a partir de 1938, realizada na França. Com os problemas de organização no futebol nacional bastante amenizados, em função da intervenção governamental (já em pleno Estado Novo), enviou-se uma equipe forte, que contou com grande apoio popular. O Brasil conquistou o terceiro lugar, tendo uma participação bastante destacada: perdeu a semifinal para a Itália, um jogo bastante controverso por problemas de arbitragem. Leônidas da Silva foi o artilheiro da competição.

Selo comemorativo da Copa do Mundo de 1950 no BHr5asil – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/1950_FIFA_World_Cup

Deve-se ter em conta que, no cenário brasileiro, o futebol começava a ser mais comumente mobilizado como elemento discursivo na construção de uma identidade nacional, inclusive por uma reabilitação dos fenômenos culturais considerados mestiços, momento que tem como uma importante marca a difusão das ideias de Gilberto Freyre.

Algo que contribuiu e foi mesmo fundamental para o crescimento da popularidade do futebol e das Copas foi a atuação dos meios de comunicação. No Brasil, se em 1930 os torcedores tinham de esperar pelas notícias nas redações dos jornais, em 1938 já era possível acompanhar os jogos pelo rádio e também se podia assistir posteriormente às partidas nos cinemas.

Waldir Pereira, o Didi, bicampeão mundial de futebol em 1958 e 1962, apertando a mão do Presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1958, os jogos já podiam ser acompanhados pela televisão, sempre alguns dias depois de sua realização. Ao vivo, isso somente se tornou possível a partir da Copa de 1970. Nessa ocasião, fora introduzido o recurso do replay e, no decorrer do tempo, cada vez mais inovações tecnológicas marcariam as coberturas esportivas. A transmissão dos jogos tornou-se um verdadeiro espetáculo, transmitido por muitas emissoras de todo o mundo, que pagam direitos caríssimos e buscam a todo custo conquistar o público.

A Copa do Mundo é o evento líder mundial de audiência televisiva. Na última edição do evento, realizada no Brasil, em 2014, estima-se que houve cerca de 4,5 milhões de espectadores por partida, média superior à obtida na África do Sul.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, conversando com Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha – Fonte – Arquivo Nacional.

Vários recordes mundiais foram também quebrados nos outros meios de comunicação, inclusive na internet.

Aproximadamente 1 bilhão de torcedores acompanharam on-line os jogos pelo site da FIFA No Brasil, se em 1938 o interesse foi grande, a Copa do Mundo tornou-se mesmo uma febre quando o país organizou a edição de 1950, construindo para tal o que na época seria o maior estádio do mundo e que ainda hoje, já bastante modificado por reformas recentes é uma das grandes referências do futebol mundial: o Maracanã.

O Preseidente da República João Melchior Marques Goulart abraçando o goleiro bicampeão mundial Gilmar dos Santos Neves – Fonte – Arquivo Nacional.

Depois de duas goleadas na fase final, ninguém esperava que o Uruguai fosse sair vitorioso na partida decisiva contra a seleção brasileira. A derrota por 2 × 1 foi uma das maiores tristezas do esporte brasileiro, para alguns foi mesmo encarada como uma marca das debilidades da nação.

Na ocasião, a competição era retomada depois do fim da Segunda Grande Guerra, e o Brasil, com a organização do evento, vislumbrava demonstrar seu protagonismo no novo tabuleiro internacional. Essa postura tornou-se comum no decorrer do século, inclusive em função da Guerra Fria: os blocos socialista e capitalista transferiram parte de seus conflitos e enfrentamentos para as instalações e competições esportivas.

O general Castelo Branco apertando a mão de Garrincha. Ao lado do militar vemos o então presidente da Confederação Brasilira de Desportos, CBD, Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange – Fonte – Arquivo Nacional.

Depois do fracasso na Copa de 1950, repetido na edição de 1954, realizada na Suíça, o país finalmente sagrou-se campeão em 1958, na Suécia, em um torneio que ficou marcado pela aparição internacional de uma das maiores estrelas da história do futebol e do esporte do século: Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, na época com 17 anos.

A seleção brasileira voltaria a se sagrar campeã em 1962, na Copa do Chile, onde o grande destaque foi Garrincha, não se saindo bem em 1966, na Inglaterra, uma edição marcada pela violência e pela benevolência dos árbitros com a equipe da casa, que se sagrou vitoriosa em uma final extremamente polêmica com o time nacional da Alemanha.

Pelé – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1970, no México, a equipe nacional tornou-se a primeira tricampeã da competição, após uma fase da preparação marcada por conflitos internos, com o técnico João Saldanha sendo substituído por Zagalo, mas também por grandes investimentos no treinamento. Nunca antes uma seleção brasileira fora tão bem preparada, com tanta antecedência.

Muitos autores sugerem que esses investimentos estariam ligados à vontade dos militares, que comandavam o regime de exceção em vigor no país, de provarem o quanto eram adequadas suas propostas para o país. Além disso, estariam relacionados com uma estratégia de dispersão e distração da população brasileira. Tais hipóteses têm sido muito contestadas. Independentemente das polêmicas, não se pode negar a ampliação da atenção ao esporte a partir de então, bem como o forte clima de patriotismo que cercou a participação da seleção brasileira no México.

A Seleção Brasileira de Futebol que participou da Copa do Mundo de 1974, na Alemanha Ocidental. Ao centro da foto, de paletó preto, está o general Ernesto Geisel, tendo ao seu lado esquerdo o potiguar Francisco das Chagas Marinho, o Marinhgo Chagas – Fonte – Arquivo Nacional.

As Copas de 1974 (Alemanha), 1978 (Argentina, uma edição muito polêmica em função de o país-sede viver um período ditatorial, liderado por militares, que cometiam constantes desrespeitos aos direitos humanos), e 1982 (ao contrário da anterior, marcada pelo processo de redemocratização da Espanha) foram marcadas por muitas mudanças, uma tentativa de a FIFA se sintonizar com o novo cenário internacional, algo que imediatamente repercutiu no aumento do número de participantes nas finais do evento e numa maior atenção para as equipes asiáticas e africanas.

Além disso, melhor se estruturavam as estratégias de negócios ao redor do futebol. Em 1982, pela primeira vez foi introduzido o conceito de “patrocinador oficial”. Se as primeiras propagandas apareceram de forma muito embrionária já na Copa de 1934, a partir da Espanha essa relação comercial tornou-se cada vez mais intensa. Basta lembrar que, no Brasil, o personagem “Pacheco”, parte da propaganda de uma empresa de lâmina de barbear, tornou-se um dos mais populares até hoje.

Arthur Antunes Coimbra, o Zico- Fonte – Arquivo Nacional.

Por trás dessas mudanças, deve-se citar o nome de João Havelange, que desde 1974 assumira a FIFA e veio a tornando uma das mais poderosas instituições do mundo. O dirigente tornou o futebol em um grande negócio global. As Copas do Mundo passaram a ser um dos principais palcos de lançamento de novidades, de estratégias comerciais e de badalação, a faceta mais conhecida de um dos esportes mais influentes e populares.

Se essas mudanças definitivamente projetaram o futebol, também trouxeram muitos problemas. Muitas têm sido as denúncias de que o aspecto esportivo está sendo abandonado em função dos lucros e do benefício dos investidores, para além de problemas de falcatruas financeiras diversas.

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, o Dr. Sócrates – Arquivo Nacional.

A Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil, foi o momento auge desses problemas, uma expressão das ambiguidades que cercam o evento. Se de um lado alcançou popularidade e impacto jamais visto, foi marcada também por manifestações e insatisfação da população com os gastos públicos excessivos e com a interferência da FIFA na governança nacional. Se de um lado, observou-se um dos melhores resultados técnicos, foram também descobertas ilegalidades nos negócios que cercam a competição.

Somente no futuro será possível melhor precisar o impacto dessas ocorrências, mas provavelmente durante muitos anos ainda persistirá a articulação entre governos instituídos e mercado na promoção das Copas do Mundo. As próximas edições já têm sido marcadas por polêmicas em função das características autoritárias do governo de Putin, cuja Copa de 2018 ocorreu na Rússia e da compra de votos na escolha da sede de 2022 (Qatar), denúncia ainda não confirmada, que está sendo apreciada pela FIFA, que
também tem sido compelida a adotar posturas mais transparentes em função de escândalos financeiros que cercam o mundo futebolístico.

Neymar da Silva Santos Júnior, considerado por muitos o maior craque da atual Seleção Brasileira de Futebol- Fonte – https://esportes.r7.com/prisma/copa-2018/cosme-rimoli/o-mal-que-neymar-faz-para-a-selecao-brasileira-10072018 – REUTERS/DAVID GRAY – 02.JUL.2018

Fonte

Livro – Enciclopédia de guerras e revolução, Volume 1, 1901 a 1919, páginas 338 a 342. Organizadores – FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA, SABRINA EVANGELISTA MEDEIROS e ALEXANDER MARTINS VIANNA.

Referências

HELAL, Ronaldo, CABO, Álvaro do. Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol. Rio de Janeiro: EdUerj, 2014.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MELO, Victor Andrade de (orgs.). O esporte na imprensa e a imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

MASCARENHAS, Gilmar, BIENENSTEIN, Glauco, SANCHEZ, Fernanda (orgs.). O jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Rio de Janeiro: EdUerj, 2011.

PRIORE, Mary Del; MELO, Victor Andrade de (orgs.). História do Esporte no Brasil: da colônia aos dias atuais. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

A HISTÓRIA DO BRASIL PELA ARTE DE DEBRET

Detalhes do cotidiano brasileiro situados nas primeiras décadas do Século XIX teriam sido varridos pelo tempo não fosse o trabalho paciente do pintor, desenhista e gravador Jean-Baptiste Debret, um francês que integrou a missão de artistas do seu país no Brasil, que viveu em um estado de paixão por nossa terra, nossa gente e nossa história.

A Caminho do Brasil

Debret nasceu em Paris no dia 18 de abril de 1768, foi aluno da Ecole des Beaux-Arts e teve uma forte formação clássica. Primo de Jacques-Louis David, ele era especialista em pintura histórica e recebeu o Prix de Rome em 1791, além de encomendas de retratos e pinturas históricas de reis e nobres. Em 1798 passou a colaborar na decoração de edifícios públicos e residências particulares. Nesse mesmo ano expôs a tela Aristodemo liberto por uma moça, que recebeu Segundo Prêmio de pintura e lhe valeu muitos elogios. 

Rodolfo Amoedo – Retrato do pintor Jean Baptiste Debret.

Participou do Salão de Paris até 1814, mas a queda de Napoleão no ano seguinte, que lhe tirou o principal pilar que lhe sustentava – financeira e ideologicamente – na França, somado à morte de seu único filho, levaram Debret a paralisar suas atividades.

Em 1816, Debret recebeu duas propostas de retornar à vida artística. Uma delas veio da fria Rússia, diretamente do czar Alexandre I, que desejava levar um pintor e um arquiteto franceses para São Petersburgo. Foram respectivamente escolhidos Debret e Grandjean de Montigny. A outra proposta foi feita por Joachim Lebreton e tinha como destino o desconhecido e exótico Brasil. Debret declinou do frio russo e escolheu vir para a grande colônia portuguesa dos trópicos. 

Jean Baptiste DebretPartida de Carlota Joaquina do Brasil.

Quando a Corte portuguesa se mudou para o Rio de Janeiro em 1808, a expressão artística brasileira era essencialmente voltada para o domínio religioso e ainda se vivia sob o regime das corporações de artesãos.

Dom João então tinha o desejo de estabelecer uma Escola de Belas Artes na antiga colônia, agora elevada à categoria de reino, a par de Portugal e dos Algarves. Mas seu sonho só começou a tomar forma quando foi restabelecida a estabilidade política na Europa, após os sangrentos conflitos napoleônicos.

Jean Baptiste DebretFuncionário Público Saindo casa com a família e seus escravos.

O Conde de la Barca, solicitou em nome do príncipe regente Dom João VI que o Marquês de Marialva, seu representante em Paris, conseguisse reunir artistas franceses para vir ao Brasil. É importante lembrar que Portugal não tinha tais instituições na Europa, mas a presença desses artistas no Brasil permitiria ajudar a desenvolver uma cultura visual impregnada da tradição clássica europeia, com repertórios iconográficos imperiais, em pleno coração dos trópicos.

Jean Baptiste DebretAlimentos levado aos prisioneiros.

Na França, com a ajuda de Joachim Lebreton, secretário da Academia de Belas Artes daquele país, recentemente demitido por questões políticas, foi possível reunir em um mesmo grupo o pintor acadêmico Nicolas-Antoine Taunay, seu irmão escultor Auguste, o pintor Jean Baptiste Debret, o arquiteto Auguste-Henri-Victor Grandjean de Montigny, o gravador Charles Simon Pradier, acompanhado por engenheiros, técnicos e artesãos, entre eles Pierre Dillon, futuro braço direito de Lebreton para a futura Escola de Belas Artes, François Ovide (artes mecânicas), Charles Levavasseur, assistentes Louis Meunier e François Bonrepos.

Jean Baptiste DebretNegros serradores.

Tendo viajado por conta própria, ao que parece ajudado pelo comerciante carioca Fernando Carneiro Leão, o grupo de artistas desembarcou no Rio em 26 de março de 1816. Em 12 de agosto, foram assinados os contratos oficiais de pensão e a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, ao qual se juntarão também alguns recém-chegados, como o músico Sigismund Neukomm, e os escultores Marc e Zéphyrin Ferrez.

Esses artistas, em meio a muitas intrigas da Corte, conseguiram definir aos poucos os contornos de um projeto de criação de uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. 

Jean Baptiste Debret – Os refrescos da tarde no largo do palácio.

Se o prédio da Academia foi erguido em 1822 (projetada por Grandjean de Montigny), sua inauguração só ocorreu em 1826, dez anos após a chegada do grupo. Naquela época, Jean-Baptiste Debret ocupou a cátedra de pintura histórica e o cargo de diretor da instituição de 1828 a 1831.

Muitos acreditam que para o desenvolvimento do ensino muito contribuiu o esforço corajoso e sistemático de Debret, trabalhando e organizando exposições de obras dos alunos, reclamando local para as aulas e exigindo condições regulamentares adequadas.

No final das contas, aquele centro de desenvolvimento artístico ficou com o nome de Academia Imperial de Belas Artes, título claramente distinto do projeto da escola de artes e ofícios inicialmente previstos

Cena de Carnaval

Jean Baptiste Debret – Aclamação de Dom João VI no Rio de Janeiro.

No Rio, Debret foi um dos artistas encarregados da ornamentação da cidade para os festejos da aclamação de Dom João VI, onde elaborou imagens e símbolos destinados a atestar a legitimidade da monarquia e afirmar politicamente a nação. Também se dedicou à pintura de cenas urbanas do Rio de Janeiro. 

O artista produziu uma grande série de imagens que tratam do cotidiano da capital. Relações de poder, trabalho, presença essencial de escravos africanos e comunidades indígenas são alguns dos grandes conjuntos de ilustrações que ele faz.

Jean Baptiste DebretCortejo de batismo da da Princesa Real Dona Maria da Glória.

Esses pequenos formatos que mal ultrapassavam os trinta centímetros de largura eram, para ele, a oportunidade de aplicar as técnicas do desenho e da aquarela para conseguir transpor em forma de histórias o cotidiano desta parte dos trópicos.

Cronologicamente, coube a Debret a primeira fixação gráfica do antigo entrudo, o nosso atual carnaval.

Jean Baptiste Debret – Cena de Carnaval.

É bem conhecida a sua Cena de Carnaval, que reproduz um episódio de rua, à porta de uma venda, instalada como de costume numa esquina. Uma negra sacrifica tudo ao equilíbrio de seu cesto, já repleto de provisões para seus senhores, enquanto um moleque, de seringa de lata na mão, joga contra ela um jato de água, que a inunda. Sentada à porta da venda, uma negra mais velha, vendedora de limões e polvilho, já lambuzada, com seu tabuleiro nos joelhos, segura o dinheiro que recebeu adiantadamente pela venda dos limões, que estão sendo escolhidos por um campeão entusiasta das lutas em perspectivas, um negrinho, tatuado voluntariamente com barro amarelo. Perto deste e da porta pequena da venda, outro negro, orgulhoso da linha vermelha que exibe traçada na testa, adquire um pacote de polvilho e um pequeno vendedor de nove a dez anos; uma negra, à esquerda, dispõe-se a arremessar um limão contra quem lhe recobriu a face e parte do olho com um punhado de polvilho; ao lado da porta, outro negro, grotescamente tatuado, está de tocaia. O vendedor, tendo retirado precipitadamente todos os comestíveis que de costume expunha à sua porta, deixou apenas garrafas cobertas de palha trançada, abanadores e vassouras. No fundo do quadro, é possível visualizar famílias tomadas da loucura do momento, uma vendedora de limões, negros lutando, e um pacífico cidadão, escondido atrás de seu guarda-chuva aberto, a circular entre restos de limões-de-cheiro. Só o toque da Ave-Maria imporia uma trégua a tão violenta brincadeira, e a paz só se implantaria com a presença de policiais de ronda.

Jean Baptiste DebretExploração de uma pedrira de granito.

A Viagem pitoresca e histórica ao Brasil

Debret também viajou pelo país. Em 1825 vamos encontrá-lo em Pelotas, Rio Grande do Sul, grande centro produtor de carne de charque e onde viviam milhares de escravos negros vindos da África. Presenciou e deixou registrado o trabalho e os castigos sofridos por homens e animais. Em uma de suas aquarelas mostrou como um cavaleiro desjarretava o boi, ou seja, seccionou o tendão do animal com a alabarda, uma lança com a lâmina em forma de meia-lua na ponta. Quando a rês ia caindo, aparecia um escravo de faca em punho e lhe perfura a jugular.

Jean Baptiste DebretCharqueada em Pelotas, Rio Grande do Sul.

No Rio, Debret inclui quatro aspectos do Palácio de São Cristóvão, numa análise de sua transformação de simples casa de campo em mansão imperial. Segundo seu depoimento, o Príncipe Regente e sua filha mais velha, Maria Teresa, preferiam aí residir, incumbindo-se um arquiteto inglês de construir novos aposentos destinados ao futuro Rei.

Jean Baptiste DebretPalácio de São Cristovão.

Entre os melhoramentos, projeta a edificação de quatro grandes pavilhões, em estilo gótico, um em cada canto do prédio. Na época da sua chegada ao Rio de Janeiro, afirma Debret que já encontrara concluído o primeiro pavilhão, com o profissional britânico de partida, interrompendo desta forma seu plano de trabalhos para a Casa Real.

Na década seguinte, em 1829, realizou a primeira exposição de arte do país com trabalhos de professores e alunos da Academia Imperial de Belas Artes.

Jean Baptiste Debret – Loja de Sapateiro.

Em 1831, depois de organizar mais uma exposição, voltou a Paris, onde publicou, em três volumes, uma edição limitada a 200 exemplares de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Nesta edição foram publicadas 153 de suas aquarelas e as transformou em litografias, cuidando da operação técnica. Foram apresentadas reproduções de personalidades, paisagens, cenas populares e históricas presenciadas por ele naqueles quinze anos.

Aquelas eram imagens de um Brasil em plena expansão e em adequação com a presença da corte portuguesa, e as relacionadas com um imaginário revelador de um território selvagem e virgem. Jean-Baptiste Debret também foi responsável pela análise textual da sociedade brasileira. Não foi uma viagem qualquer, mas uma viagem que, contada pelas suas próprias palavras, assumiu um tom pitoresco e histórico: manteve-se o contraste entre Europa e América, sublinhando particularismos locais dignos de “pintar”.

Jean Baptiste DebretEscravo sofrendo castigo.

Quando deixou o Brasil em 1831, saiu de um país que tinha um império independente do governo português, chefiado por Dom Pedro I, então pronto para retornar a Portugal e abdicar em favor de seu filho, Pedro II. 

Nesses quinze anos, a política brasileira nasceu sob o olhar do pintor, ansioso por observar o desenvolvimento de uma civilização. Em seu livro, Jean-Baptiste Debret tenta dar conta de um processo de “ocidentalização” do Brasil. Como qualquer tentativa, era impossível não sublinhar, ou mesmo demonstrar por imagem, os aspectos que não se enquadravam no modelo de sociedade civilizada, tal como ele a conhecia na França.

Jean Baptiste Debret – Desembargadores Chegando ao Palácio da Justiça.

Em 1837 o governo brasileiro lhe concedeu uma pensão em reconhecimento dos serviços prestados. Morreu em Paris em 28 de junho de 1848.

Legado

Se ainda há discussões hoje no Brasil contestando o status de “missão” para esse grupo de artistas franceses, ou lamentando a orientação neoclássica que deram à arte oficial da fase imperial, não há como negar que sua permanência acabará impondo sua marca em vários aspectos.

Jean Baptiste DebretOficial da Corte chegando ao palácio.

Além disso, muitos desses artistas e artesãos acabaram se estabelecendo no Brasil ou deixaram descendentes ou discípulos por aqui.

É o caso da família Taunay, cujo Adrien, depois de se juntar à equipe comandada por Louis de Freycinet como desenhista, morrerá nas águas do Guaporé durante a expedição de Langsdorff em 1828. Seu irmão Félix Émile seria tutor do futuro Dom Pedro II, antes de ser nomeado diretor da Academia Brasileira de 1843 a 1851. Seu filho era Alfredo d’Escragnolle Taunay – que participou da campanha militar contra o Paraguai e ficou famoso como escritor: A Retirada da Laguna (1871), Inocência (1872).

Jean Baptiste DebretVendedor de tabaco.

Para o neto Afonso d’Escragnolle Taunay caberá a função de biógrafo de seu bisavô e historiador da missão dos artistas franceses. Já Marc Ferrez, filho de Zéphyrin, se destaca como fotógrafo, arte pela qual o imperador demonstrou grande interesse. Finalmente, o grande discípulo de Debret, Manuel de Araújo Porto Alegre, assumiu as rédeas da Academia de 1854 a 1857 e forneceu, em sintonia com seus mestres, uma ampla e decisiva contribuição para a vida cultural brasileira desse período.

QUANDO O EXÉRCITO BRASILEIRO FOI DERROTADO NO SERTÃO NORDESTINO

Em 1955 Um Oficial do Exército Brasileiro Escreveu em Uma Revista Ligada ao Meio Militar um Contundente Texto Sobre a Dura Realidade das Derrotas Sofridas Pelo Exército Brasileiro em Momentos da Guerra de Canudos. Esse Texto Foi em Parte Baseado Nas Experiências e Memórias do Pai do Autor, o General Leandro José da Costa, Ex-Combatente Daquele Cruel Conflito.

A EPOPEIA DE CANUDOS

Autor – Major Orosimbo Costa

Fonte – Revista do Clube Militar, Nº 135, Janeiro/Fevereiro de 1955, Págs. 33 a 39.

Segundo uma reportagem da revista O Cruzeiro, de 5 de dezembro de 1953, pretende o Serviço de Obras Contra as Secas transformar, dentro de pouco tempo, o antigo arraial de Canudos, em um açude.

“Um desaparecimento que não há de ser muito sentido”. “Canudos indo, vai fazendo pouca falta, ninguém há de chorar”. Assim se expressa o repórter.

Palpita-nos não ser este o sentir de muitos brasileiros, que considerarão tal ato, caso se execute e sejam quais forem as razões de ordem técnica invocadas pelos engenheiros encarregados dessa tarefa, como mais um atentado ao nosso já precário patrimônio histórico.

A Campanha de Canudos, como muitos outros episódios da nossa história, é desconhecida da maioria dos brasileiros. (1)

Razão teve o sr. Viriato Corrêa quando disse que “a não ser a tão falada viagem de Cabral, a restauração pernambucana, o martírio de Tiradentes, a transmigração da família real portuguesa, o 7 de setembro, a Guerra do Paraguai, o 13 de maio, a Proclamação da República, mais uma ou outra data culminante, e isso mesmo mal e muito mal, tudo mais se desconhece, quando não seja totalmente, de tal maneira que é o mesmo que desconhecer” (2).

Entretanto, essa memorável Campanha ainda não foi definitivamente escrita nem está instalada no lugar de realce que merece na História. Mais de meio século faz que teve fim tão cruenta luta, já sendo possível, portanto, imparcialmente, estabelecer a sua verdadeira significação. Ainda há (em 1955) remanescentes, integrantes das tropas do governo (3), cujos depoimentos poderiam ser aproveitados para a total reconstituição dessa guerra horrenda. das mais ferozes que se tem notícia, sendo impossível determinar de que lado havia mais intrepidez e energia: se o jagunço obstinado, fanático, indiferente à sua sorte, ou a soldadesca desvairada, infrene, com um só pensamento: matar, destruir aquele reduto sinistro!

Euclides da Cunha assim retratou o defensor do arraial (Canudos — Diário de uma expedição — pág. 95): “Tem a mais sólida, a mais robusta têmpera essa gente indomável! Os prisioneiros feitos revelam-na de uma maneira expressiva.

Ainda não consegui lobrigar a mais breve sombra do desânimo em seus rostos, onde se desenham privações de toda a sorte, a miséria mais funda; não tremem, não se acobardam e não negam as crenças mantidas pelo evangelizador fatal e sinistro (4) que os arrastou a uma desgraça incalculável.

Mulheres aprisionadas na ocasião em que os maridos caíam mortos na refrega e a prole espavorida desaparecia na fuga, aqui têm chegado — numa transição brusca do lar mais ou menos feliz para uma praça de guerra, perdendo tudo numa hora — e não lhes diviso no olhar o mais leve espanto e em algumas mesmo o rosto bronzeado de linhas firmes é iluminado por um olhar de altivez estranha e quase ameaçadora”. (5)

As dúvidas e enigmas dessa Campanha, precisam ser elucidados.

O fracasso da expedição Moreira César repercutiu em todo o Brasil como um desastre nacional. Divulgou-se insistente boato de que Antônio Conselheiro era um insurreto político monarquista. Espíritos exaltados depredaram a redação dos jornais restauradores e assassinaram o proprietário de um deles, o coronel Gentil de Castro.

Enquanto tais rumores eram propalados pela nação, no teatro de operações considerava o citado escritor (6): “Não é possível que a munição de guerra daquela gente seja só devida à deixada pelas expedições anteriores. A nossa esgota-se todos os dias; todos os dias entram comboios carregados e, no entanto, já nos falta às vezes.

Como explicar essa prodigalidade enorme dos jagunços?

Não nos iludamos. Há em toda esta luta uma feição misteriosa que deve ser desvendada”.

E mais adiante (pág. 101):

“O general Artur Oscar, restabelecido agora de ligeira enfermidade, acaba de mostrar-me alguns tipos de balas caídas nos tiroteios da noite. São de aço, semelhantes às das Manulicher, algumas, outras completamente desconhecidas. São inegavelmente projetis de armas modernas que não possuímos. Como as possuem os ” jagunços “?

Mas, o que mais espanta e impressiona, é o elevado grau de instrução militar que possuíam aqueles sertanejos. A disciplina era rígida, utilizavam com perícia as suas armas, eram mestres na camuflagem, sabiam aproveitar o terreno para observar e atirar seus movimentos eram coordenados, construíam abrigos que cercavam com obstáculos (7), e também empregaram minas!

O arraial surpreendeu ao observador esteta (8):

“Nada que recorde o mais breve, o mais simples plano na sucessão de humílimos e desajeitados casebres. Ausência quase completa de ruas, em grande parte substituídas por um dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal permitindo, muitos, a passagem de um homem. As vezes cinco ou seis casas alinham-se como que numa tentativa de arruamento, mas logo adiante em ângulo reto com direção daquelas, alinham-se outras, formando martelo e dando ao conjunto uma feição indefinível… “

Poucas ruas e estreitíssimas, simples passagens muitas vezes sem saída, casas sem alinhamento, quintais de umas confinando com frentes de outras, cumieiras para todas as direções, um verdadeiro labirinto. Dava a impressão de que os casebres haviam sido construídos ao acaso, segundo a fantasia de cada um.

Fatal engano! Nos primeiros assaltos à cidadela, os invasores foram exterminados. Desnorteados naquele estranho dédalo, eram inexoravelmente eliminados, sem que o defensor se expusesse.

E então compreendeu-se o porquê de tão fantástico traçado: obedecia a um meticuloso plano de defesa. Cada casa era um reduto. Cavada no interior desta e junto à parede, a moderníssima “toca de raposa”; rente ao chão, uma seteira facilitava ao ocupante da “toca ” tiros precisos. Os tetos eram uma maciça camada de cerca de 20 centímetros de argila e ramos de icó, à prova de estilhaços e talvez tiros de pequeno calibre de artilharia.

Nas elevações que circundavam o arraial, um traçado de trincheiras com excelentes posições para atiradores, enfiavam as vias de acesso.

Um sistema de postos avançados bem organizados, constante movimento de patrulhas e eficiente serviço de espionagem, completam o quadro de conhecimentos que possuíam os jagunços.

Simplesmente espantoso!

Mas, perguntamos nós, quem os instruiu?

Quem os ensinou a utilizar o armamento de repetição (Comblains e Manulichers) abandonado pela expedição Moreira César e que não lhes era familiar? (9) Quem os adestrou nos exercícios de maneabilidade, no aproveitamento do terreno, na ocupação de uma posição e seu abandono no momento preciso, na organização de um plano de fogos? Monarquistas, como se propalou? Militares egressos das Forças Armadas, como alguns alvitram? Estrangeiros? Ou os próprios chefes jagunços? (10)

Estes eram muitos, notáveis, e com funções bem definidas: João Abade, comandante em chefe; Pajeú, subcomandante; Chico Ema, chefe do serviço de espionagem; Macambira, especialista em emboscadas; Joaquim Tranca pés, mestre em golpes de mão; Chiquinho, João da Mota, Pedrão, Estevão, comandantes de setores de vigilância: e mais, Vilanova, Joaquim .Macambira, Manoel Quadrado, José Felix, José Venâncio, Lalau, Raimundo Boca-Torta, Norberto, Quimquim de Coiqui, Antônio Fogueteiro, José Gamo, Fabricio de Cocobocó (ou Cocorobó), António Beato (11).

Enquanto aqueles rudes sertanejos revelavam modelar organização, o que constitui mistério profundo, as forças regulares, em deplorável contraste, demonstravam evidente incapacidade para fazer a campanha.

Uma lástima: quadros sem preparação profissional, tropa completamente bisonha, ausência absoluta do que hoje chamamos apoio logístico.

A organização militar no Brasil era, na época, deficientíssima.

Canhão Whitworth 32 ou “Matadeira”, como se encontrava na região de Canudos na décxada de 1940.

Aliás, para sermos mais precisos, as Forças Armadas do país nunca mereceram, no passado, a devida atenção dos governos. As nossas guerras externas foram feitas com Exércitos improvisados. Assim foi em 1851 contra Oribe e Rosas, em 1864 contra o Uruguai e em 1865 contra o Paraguai.

Após esta última campanha, as Forças Armadas caíram em franca depressão e profunda apatia. Tudo foi feito liara se esquecer aqueles anos de sofrimento.

A época da proclamação da República, o efetivo do Exército era de pouco mais de 12.000 homens!

 Com o advento das ideias positivistas, o ensino militar tornou-se científico-filosófico. Foi a época dos oficiais “bacharéis em ciência”.

Floriano Peixoto, para enfrentar a revolta de Custódio de Melo, em 1893, viu-se na contingência de organizar os célebres “batalhões patrióticos”.

É fácil, pois, imaginarmos a constituição das expedições que foram lançadas contra Canudos.

O comandante da quarta expedição, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, ainda considerava ato vergonhoso o combater-se abrigado (12).

No terreno da tática foi um desastre: operações sem planejamento, marchas desordenadas, sem segurança e informações, processos antiquados de combate.

Habitante de Canudos na década de 1940.

No terreno dos serviços, uma miséria; tudo faltou: víveres, munições, transportes. O estado de penúria chegou a tal ponto que foram obrigados a abater os bois de tração de um célebre canhão Calibre 32 (material de artilharia de costa), inútil trambolho. Certo dia só havia farinha e sal, para os doentes. Ficou estabelecida a “defesa individual”: penetravam os soldados na caatinga à procura da caça exígua e raízes dos vegetais da região. “Uma raiz de umbu era um regalo raro, de epicurista”. E para completar tal quadro, até água faltou.

Entretanto, o comandante Artur Oscar estabeleceu postos de suprimentos em Queimadas, Monte Santo, mas os comboios chegavam com irregularidade e reduzidíssimo e as rações, muitas vezes, não deram nem para um dia. Eram os jagunços os responsáveis… (13)

Quanto aos feridos, não sendo possível mantê-los na frente, urgia evacuá-los; mas, como? De que jeito transportá-los?

Defensor de Canudos, capturado por soldados.

Seguiram de qualquer maneira para Monte Santo e desta localidade para Queimadas, ponto terminal da estrada de ferro. Uns, montados em muares ou cavalos, outros, os mais graves, conduzidos em redes, a maioria a pé, arrastando-se miseravelmente pela estrada.

Era um desfile macabro; cada um por si, nada de cooperação; se algum infeliz caía extenuado, ali ficava, estirado na margem do caminho implorando, em vão, por auxílio; e ali morria, ficando insepulto.

E essas levas se transformavam em feras odiosas: maculavam a água das cacimbas que seria forçosamente utilizada por outros companheiros, atacavam sertanejos indefesos, saqueavam e destruíam os miseráveis casebres.

Região de Canudos na década de 1940.

Para completar este quadro moral, verificaram-se vários pedidos de reforma, e Unidades chegavam desfalcadas, bem desfalcadas, na Zona de operações, Brigada Girard. por exemplo, que iria reforçar as tropas de Artur Oscar, chegou em Canudos sob o comando de um major! (14)

Finalmente, no setor técnico, a mesma deficiência: o general Artur Oscar foi obrigado a organizar, em Queimadas e Monte Santo, campos de instrução, linhas de tiro, para instruir os seus soldados, em sua quase sua totalidade, recrutas. Mas, foi mesmo em Canudos, no duro embate com os jagunços, que eles se adestraram, apreenderam os duros processos do combate que, afinal, eram certos.

Quando se resolveu atacar o arraial de Canudos, comandava o 3° distrito militar (Salvador), o General Frederico Sólon. Tendo recebido ordem do governo central para auxiliar o governador do Estado naquela empresa, propôs a este, doutor Luiz Viana, após cuidadoso exame da situação, que se enviasse a Canudos uma forte expedição O governador discordou; considerava o movimento um simples motim, facilmente sufocável por qualquer elemento armado. (15)

É provável que tenha havido entre as duas autoridades acalorada discursão; o fato é que o general Sólon, pouco tempo depois, era transferido…

A política, pois, saiu vencedora dessa polêmica e, sem mais delonga, tratou-se de enviar ao arraial sublevado, um destacamento de 100 homens que, sob o comando do tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, partiu de Juazeiro na noite de 12 de novembro de 1896; mas não passaram de Uauá, vilarejo distante de Canudos cerca de 40 quilômetros, onde na madrugada de 21 foram atacados.

Protegidos pelas casas, os soldados resistiram; seu armamento mais moderno, enquanto os jagunços utilizavam armas antiquadas de carregar pela boca, que logo abandonaram, preferindo a arma branca.

Após quatro horas de luta, os jagunços abandonaram o arraial.

Artilharia na Guerra de Canudos.

Fosse seguido o alvitre do general Sólon e a história de Canudos se encerraria com esta expedição. Os jagunços estavam praticamente desarmados e não resistiriam à perseguição que o tenente não pôde realizar, por falta de homens e meios, sendo obrigado a retroceder para Juazeiro, onde chegou após quatro dias de marchas forçadas.

Nova expedição foi organizada; compõe se de 560 homens, inclusive 14 oficiais e 3 médicos. Seu comando foi confiado ao major Febrônio de Brito e, além do armamento individual, conduziram duas metralhadoras Nordenfelt e dois canhões Krupp.

Febrônio de Brito seguiu pelo eixo Queimadas — Monte Santo — Estrada do Cambaio, lutando com toda sorte de dificuldades.

Região de Canudos na década de 1940.

Na travessia do Cambaio tiveram o primeiro combate com os jagunços. Vencedores, progrediram até às orlas de Canudos, onde estacionaram extenuados. Ao amanhecer do dia seguinte, 19 de janeiro de 1897, foram violentamente atacados pelos conselheiristas que, à noite, sorrateiramente, haviam ocupado suas posições. Na primeira trégua o comandante Brito examinou a situação e concluiu não poder prosseguir na luta por falta de munição. Dada a precariedade de transporte, deixara em Queimadas e Monte Santo, grande parte dela.

Exposta a situação aos oficiais, decidiu-se pela retirada, mas em boa ordem. Não a conseguiram. Obrigados a atravessar uma garganta, aí foram intensamente hostilizados com pedras! E durante quase todo o percurso a Monte Santo, sofreram pertinaz perseguição do inimigo.

Tal remate aguçou a cólera das autoridades. Ninguém acreditava que umas duas dezenas de miseráveis jagunços pudessem derrotar uma tropa federal. Consequência: Febrônio de Brito foi submetido a Conselho de Guerra e condenado (16).

Ruínas da igreja de Canudos em 1893 – Fonte – http://osertanejosdecanudos.blogspot.com.br

Uma terceira expedição foi organizada: quatro batalhões de infantaria, uma bateria de artilharia, um esquadrão de cavalaria e um contingente da polícia baiana, num total de 1.500 homens aproximadamente, bem armados e municiados. Escolheu-se para comandá-la, o nome militar mais em evidência na época: o coronel António Moreira César, uma figura que, no governo de Floriano Peixoto se notabilizara pelas mais condenáveis e odiosas violências contra mulheres, crianças c cidadãos indefesos.

Este comandante escolheu o itinerário Queimadas — Monte Santo — Cumbe — Rosário — Rancho do Vigário — Angico — Morro da Favela. Estabeleceu-se em Queimadas a primeira base de operações e em Monte Santo, a segunda, sob o comando do coronel Souza Meneses.

Sem um reajustamento, sem um plano, sem uma ideia, e após marchas forçadas, Moreira César lançou toda a sua infantaria contra Canudos, atacando por dois lados opostos. Os batalhões se defrontaram no arraial e então foi a confusão, a balbúrdia, o pandemônio. O comandante tentou retomar sua tropa e expondo-se foi ferido, vindo a falecer no dia seguinte. Seu substituto, o coronel Tamarindo, tentou executar uma retirada, mas foi mal sucedido. Ninguém obedecia mais. A soldadesca estava alucinada, apavorada!

Antigo cruzeiro de Canudos na década de 1940.

Foi uma fuga desordenada. Abandonaram tudo; armamento, material, munições, feridos, até o cadáver do comandante!

Os que chegaram em Monte Santo, não encontraram ninguém; todos havia fugido, abandonando o posto. O sargento auxiliar não pudera reter ninguém para ajudá-lo a transportar os mantimentos para um local seguro. O farmacêutico da povoação, um civil, foi quem destruiu parte da munição, deixando alguma, para não despertar suspeita aos jagunços.

Assim, esta terceira expedição só teve um fito: armar e municiar o inimigo.

Cerimônia na Canudos de 1940.

Sob o comando do general Artur Oscar de Andrade Guimarães foi, finalmente, organizada uma expedição poderosa; chegou a ter efetivo de 10.000 homens, e dela participaram quatro generais, 20 batalhões de infantaria, 1 regimento e 2 destacamentos de artilharia 1 regimento e parte de outro de cavalaria, além de elementos das policias da Bahia, São Paulo, Pará e Amazonas.

Não cabe aqui a descrição das ações desta expedição, feita com todos os detalhes por Euclides da Cunha, que a acompanhou como repórter de um jornal paulista.

No dia 5 de outubro de 1897, após quase um ano de lutas, caiu a cidadela de Canudos cujos defensores resistiram “até o esgotamento completo”, “Fato raro na História: o reduto de Canudos não se rendeu”.

A antiga Canudos.

O aspecto atual de Canudos é contristador — miséria e desolação completas. E naquela cidadela, palco de um drama de extraordinário heroísmo, naquele chão, muda testemunha de um poema de bravura que estarrece, de uma insana resistência que nos deixa atônitos, naquele pedaço de terra brasileira onde foi vivido o trágico episódio que ” é a afirmação eloquente da prodigiosa energia da nossa raça”, nem um monumento, nem um bronze comemorativo, nem mesmo uma simples placa a lembrar a ocorrência. E, dentro de pouco, um lençol de água cobrirá os vestígios — se os houver — do famoso arraial, e depois — o esquecimento. Breves referências ficarão nos livros escolares — e nada mais.

Enquanto os brasileiros demonstram essa indiferença pelo seu passado, os americanos, num excesso de senso histórico, transformaram a casa do assassino de um chefe de Estado em museu (17).

A guerra de Canudos teve a feição de um cataclisma nacional; movimentou tropas de norte a sul do país, e na última expedição estiveram empenhados dez mil homens, talvez mais.

É um episódio que deverá ser colocado no devido plano; seus despojos, se ainda houver, deverão ir para os mostruários dos nossos museus; o local onde outrora se erigiu o célebre arraial, deverá merecer a atenção da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atualmente empenhada num plano de restauração, conservação e proteção do seu acervo.

NOTAS

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(1) Entretanto, teve um cronista do quilate de um Euclides da Cunha, cujo livro “Os Sertões”, já na sua 22ª edição (em 1955), foi traduzido para o espanhol, para o alemão, para o sueco e para o dinamarquês. É, pois, uma obra de repercussão internacional e ocupa limar de destaque em todas as bibliotecas públicas e particulares, mas que, acreditamos, muito pouca gente leu.

(2) Balaiada.

(3) Um deles é o meu pai, o general reformado Leandro José da Costa, possivelmente o único sobrevivente do 16º Batalhão de Infantaria, que me relatou passagens inéditas da expedição Artur Oscar.

(4) Refere-se a Antônio Conselheiro.

(5) Observação registrada nove dias antes do aniquilamento total do arraial, após quase um ano de luta!

(6) Obra citada — pág. 98.

(7) A falta de arame farpado, utilizavam material muito melhor e abundante na região: xique-xique, mandacarus, juremas, palmatória, macambiras, etc., que transformavam numa espécie de redes extensíveis.

(8) Obra citada – pág. 107.

(9) As suspeitas do gen. Artur Oscar eram infundadas; nenhum armamento especial foi encontrado em poder dos conselheiristas: na verdade, antes da apreensão do material de Moreira César, eles utilizavam velhas espingardas, bacamartes, garruchas, clavinas, armas brancas, e mesmo bestas. Quem os armou foi mesmo o governo, por intermédio do cel. Moreira César.  

(10) Essa Informação e quo os supostos ex-jagunços Ciriaco e Pedrão deviam fornecer ao autor da reportagem a que aludimos no começo destas linhas.

(11) “Os Sertões” — 22. ª edição — pág. 177.

(12) Chegamos à Favela a 27 do mês de junho, tendo antes, no lugar Pitombas, sofrido dos jagunços cobardes que nunca souberam se bater a peito nus como os soldados leais… (Parte do gen. Artur Oscar ao ministro da guerra).

(13) Chegou a tais extremos essa situação que o ministro da guerra, marechal Carlos machado Bittencourt decidiu pessoalmente dirigir esses serviços, seguindo para a zona de guerra.

(14) Na Campanha do Contestado observou-se o mesmo “fenômeno”. Conta-nos Crivelaro Marcial o caso de um Regimento que em vez de um coronel era comandado por um major, cujo batalhão fora conduzido por um tenente.

(15) Uma das curiosas características desse episódio da nossa História éque do começo no fim da Campanha não se deu ao jagunço o seu devido valor; sempre o subestimaram.

(16) Só em revisão de processo da 3.ª expedição é que consegui ser absolvido.

WHISKY EM NATAL

Quando Essa Bebida Chegou ao Brasil – Chegou Com os Britânicos – As Primeiras Informações do Whisky em Natal – Vendas em Recife – Marcas Vendidas – Famosos e o Whisky

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Basicamente o whisky é um licor alcoólico destilado de um mosto fermentado de grãos, como cevada, centeio ou milho, geralmente contendo de 43 a 50 % de álcool. Mas independente do que ele é, ou de suas regras de produção, se você bebe whisky, seja muito ou pouco, então você está na companhia de algumas das melhores mentes e personagens do mundo. Gente importante e influente que admirava a bebida, ou desfrutou de um trago ao longo de suas vidas e não tiveram reservas em falar publicamente sobre o assunto.

Mas antes de comentar sobre quando o whisky e Natal interagem, é interessante saber desde quando essa bebida chega ao Brasil…

Chegou No Brasil Com os Britânicos

Basta pesquisar na internet para logo encontrar a informação que foi em 1850 que pela primeira vez alguém bebeu whisky em terras tupiniquins e o felizardo foi ninguém menos que o Imperador Pedro II.

Isso é pura lorota!

Vai ver que quem criou essa afirmação já tinha passado da oitava dose, ou não sabe pesquisar, ou apenas quis dar um ar de “superioridade” a essa bebida, colocando o primeiro copo de whisky nos nobres lábios de Sua Alteza Real.

Provavelmente essa história começa 42 anos antes, mais precisamente na cidade de Salvador, Bahia, no dia 28 de janeiro de 1808.

Em quadro de 1802, de Domingos Sequeira, vemos Dom João de Bragança, futuro Dom João VI – Fonte – https://readtiger.com/wkp/en/John_VI_of_Portugal

Nessa data o príncipe regente de Portugal, Dom João de Bragança, futuro rei Dom João VI, assinou o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, que literalmente abriu a grande colônia portuguesa do Brasil para o comércio exterior. Mas a verdade é que esse comércio ficou basicamente restrito aos britânicos e houve uma forte razão para isso. Apenas oito dias antes de assinar esse documento, praticamente toda a corte portuguesa havia desembarcado na capital baiana, fugindo das tropas francesas de Napoleão Bonaparte, que em 19 de novembro do ano anterior haviam invadido Portugal. E foram os britânicos que apoiaram a fuga dos nobres portugueses para sua enorme colônia. Após a entrada dos franceses em território luso, Dom João de Bragança assinou uma convenção secreta com os britãnicos, onde ficou estabelecido que esse país recorreria a ação da Royal Navy, a Marinha Real Britânica, para a Família Real e membros do governo português chegarem sãos e salvos no Brasil. O Reino de Portugal por sua vez “compensaria” largamente os britânicos com a abertura do comércio no Brasil.

E o que tem isso com o whisky?

Como os britânicos estavam com passe livre em terras brasileiras, é difícil de acreditar que já no primeiro dia que eles aqui desembarcaram, não trouxeram seus barris e garrafas de gim, brandy, whisky ou outra bebida qualquer.

Se apenas temos uma ideia de quando se iniciou o consumo de whisky no Brasil, na Hemeroteca da Biblioteca Nacional encontramos um interessante registro do comércio e do consumo dessa bebida.

Na segunda página do exemplar do Jornal do Commércio publicado no Rio de Janeiro, edição de sexta-feira, 21 de agosto de 1835 (15 anos antes de 1850), podemos ler na coluna intitulada “Parte Comercial”, que no dia 17 daquele mês um cidadão estrangeiro chamado “Diego Birckhead”, manifestou oficialmente junto a Alfândega do Rio que a galera norte-americana “Nova Orleans”, registrada no porto de Nova York, trazia várias mercadorias em seus porões, entre estas “145 barris de whisky”.

Mesmo sem termos a ideia do tamanho e de quantos litros caberia nesses barris, evidentemente que ninguém desembarcaria tal quantidade de bebidas em algum lugar que não tivesse quem as consumisse. 

“Minha Esperança”  

Eu não consegui descobrir quando o whisky chegou em Natal. Mas ao menos descobri uma notícia de quem aparentemente foi o primeiro vendedor dessa bebida por aqui, ou pelo menos quem primeiro anunciou sua venda para os papudinhos da capital potiguar.

Antiga Rua 13 de maio, atual Frei Miguelinho – Fonte – Coleção Eduardo Alexandre Garcia

No tradicional bairro da Ribeira existe a Rua Frei Miguelinho, paralela à Rua Chile, sendo uma das mais antigas ruas do mais tradicional bairro de Natal. No ano de 1891 essa rua se chamava 13 de maio, em homenagem a data que a princesa Isabel assinou a lei Áurea que aboliu a escravidão no Brasil, e no número 26 existiu uma loja chamada “Minha Esperança”.

Para os olhos de hoje podemos dizer que esse estabelecimento comercial tem algo que mistura aquelas bodegas do interior que vendem todo tipo de bugigangas, misturado com muitos produtos importados de qualidade e materiais importantes para a realização de uma boa festa – instrumentos musicais e bebidas. 

Para facilitar para você leitor, coloco aqui alguns anúncios da loja “Minha Esperança” e assim vocês poderão conhecer a variedade de produtos que ali eram comercializados em 1891. 

Temos um outro anúncio que é bem específico sobre as bebidas vendidas nesta loja, onde podemos ver que a rapaziada de Natal apreciava produtos de primeira qualidade.

De saída vemos que a “Minha Esperança” tinha garrafas de Fernet Branca. Esse é um aperitivo amargo e aromático, feito com mais de 40 ervas e especiarias, incluindo mirra, ruibarbo, camomila, cardamomo e açafrão, com uma base de álcool de uva. A receita é um segredo e foi criada como um remédio no ano de 1845, na cidade italiana de Milão. A Fernet Branca ainda é produzida em Milão pela empresa Fratelli Branca, que atribuiu a invenção ao farmacêutico Bernardino Branca e ao seu colaborador, um médico sueco chamado Fernet e cujos sobrenomes batizaram a bebida. Ela é geralmente servida como digestivo após uma refeição, mas também pode ser degustada com café, ou puro à temperatura ambiente e ainda com gelo. É muito popular na Argentina, onde eles bebem com Coca-Cola e é uma das bebidas mais apreciadas pelos nossos vizinhos.

Outras bebidas que se encontravam na “Minha Esperança” eram vermutes, vinhos da região francesa de Bordeaux, o fortíssimo absinto, conhaques, os “vinhos de cheiro de uva pura” e whisky. Talvez em razão do nosso clima eu não vi entre as bebidas a cerveja. Em todo caso a rapaziada de Natal naquele final de Século XIX estava até que bem equipada para cair na farra.

Apesar da simplicidade da urbe natalense, os jornais daquele período trazem várias referências de festas, soirées, quermesses, eventos de sociedades organizadas, grêmios literários e clubes de encontros sociais, entre eles o “Club dos Quatorze”, “Club Carlos Gomes, o “26 de maio”, ou o “Grêmio Literário Le Monde Marche”. Ou seja, não faltavam locais organizados para deleitar a elite local, nem momentos para que esses natalenses adquirissem as bebidas oferecidas pela loja “Minha Esperança” e certamente “encherem o caneco”.

Podemos vislumbrar um exemplo desses momentos na primeira página do semanário O Santelmo, que nas edições de 14 e 30 de junho de 1891 informavam que na sede social do “Club dos Quatorze” ocorreu a sua “4ª soirée” na tarde de 23 de junho, uma terça-feira, véspera de São João.

Em resumo houve muita animação e tudo começou com a queima de fogos dos tipos “chineses, de bengala, electricos & Sorvête”. muita música tocada por uma orquestra, onde as principais serviram para animar as quadrilhas juninas no salão. O curioso é que a maioria dessas músicas possuíam títulos em francês.

Também dançaram valsas como “Ondas do Danúbio”, do romeno Ivan Ivanovici, além de polcas como “Cecy”, de Chiquinha Gonzaga, e “Brilhantina”, de Anacleto de Medeiros. Alguns sócios do “Club” formaram um grupo de piano, flauta, violão e violino e tocaram uma cavatina chamada “Sonâmbula”, que creio ser da ópera italiana “La Sonnambula”, de Vincenzo Bellini. Executarem também uma parte da ópera “O Trovador”, que certamente é “Il Trovatore”, de Giuseppe Verdi, cujo momento principal foi tocado por um músico chamado de “A. Barbosa”, que foi muito aplaudido e recebeu um buquê de flores de uma jovem sócia da agremiação, algo que chamou bastante atenção.

Não foi informado a que horas iniciou o arrasta-pé, mas ele terminou às cinco da manhã do dia seguinte, com a última quadrilha sendo animada pela música “Riso d’alvorada”. 

Mesmo sem a nota de O Santelmo comentar sobre o consumo de bebidas na festa, fica difícil de acreditar que em um evento com tanta dança e que durou tanto tempo, não tenha sido consumido bebidas e, talvez, um uisquinho. Até porque o lugar para comprar existia!

Deixados na Alfândega 

O tempo vai passando na pequena e provinciana Natal, onde reinava a tranquilidade para os seus pouco mais de 20.000 habitantes. Então, em uma quinta-feira, 11 de março de 1909, um navio cargueiro inglês adentra o tranquilo Rio Potengi.

SS Orator em 1912.

Esse era o “Orator”, da Harrison Line and Steamers, que em Natal era representada pela firma de importação e exportação de Julius Von Söhsten. Aquela era uma nave de 3.563 toneladas, construída apenas quatro anos antes, que procedia da cidade inglesa de Liverpool. Após atracar foram descarregados no cais do porto 3.825 volumes com produtos diversos, que serviriam para abastecer o comércio natalense, sempre carente de produtos manufaturados. Vale recordar que a industrialização em massa no Brasil ainda era um sonho distante e muito do que nossos antepassados consumiam vinha do exterior. Além desses volumes, o “Orator” também trouxe para Natal 700 toneladas de carvão inglês, destinado a movimentar as locomotivas da Estrada de Ferro Central. No outro dia o navio de cargas partiu com peles de gado e peles de animais da fauna selvagem potiguar, além de fardos de borracha de maniçoba.

Antiga Alfândega de Natal – Fonte – Coleção de Eduardo Alexandre Garcia

Mesmo não havendo maiores restrições à importação de produtos manufaturados, evidentemente que o Governo Federal cobrava impostos pela sua entrada em território nacional. Então, todas as mercadorias foram levadas para o prédio antigo da Alfândega, para que seus proprietários pagassem os impostos e retirassem os produtos.

Os jornais da época mostram que quando chegava um desses navios de carga, sempre havia uma certa movimentação no cais do porto, principalmente dos comerciantes, carroceiros e carregadores que eram contratados para levar os produtos. Logo as dependências da Alfândega foram se esvaziando, mas em um canto permaneceram sem serem retiradas quinze caixas de whisky escocês da marca J & B, a mesma que se pode comprar hoje em dia em supermercados de Natal, com a diferença do estilo das garrafas e rótulos. Então só voltamos a ter notícias sobre essas quinze caixas de whisky J & B quase seis meses depois.

No jornal natalense A República, edição de 10 de dezembro de 1909, na sua segunda página, encontramos a publicação de uma nota assinada por José A. de Viveiros, segundo escriturário da Alfândega de Natal, que informava ao cidadão que havia importado as quinze caixas que ele viesse pagar os impostos devidos para retirar as bebidas, ou em trinta dias elas seriam vendidas pela repartição em hasta pública. Procurei bastante nos jornais natalenses de 1909 para saber se os impostos foram pagos e quem desfrutou dessa bebida em Natal, mas nada encontrei. Em um exemplar de A República de 28 de janeiro de 1902, na segunda página, encontrei um edital oriundo da mesma Alfândega de Natal, onde um importador tinha de pagar $480 (quatrocentos e oitenta réis) por cada litro de whisky vindo da Escócia. Mas eu fiquei sem saber se o valor desse imposto ainda era o mesmo em 1909.

Antigas garrafas de whisky J & B.

O whisky J & B foi criado em Londres, destilado na Escócia, sendo o resultado original da mistura de 42 dos melhores whiskies produzidos pelos escoceses desde 1749. E essa marca tem a orgulhosa distinção de receber uma autorização real desde o rei George III, em 1761.

Trazido e Comercializado por Diplomatas

Se nada sei do estoque que ficou na Alfândega de Natal naquele distante ano de 1909, descobri quem provavelmente poderia fornecer boas garrafas de whisky para o comércio natalense.

Naquele tempo o principal entreposto comercial do Nordeste do Brasil era a cidade de Recife e ao observar nos velhos jornais o seu movimento comercial, vi que as vendas dessa bebida na capital pernambucana eram feitas por comerciantes estrangeiros, que também atuavam como representantes diplomáticos de suas nações e eram pessoas muito respeitadas na sociedade local.

Rua do Apolo, em Recife – Fonte – http://www.pernambuco.com

Um deles foi a empresa Griffith Williams & Johnson, comandadas pelos britânicos Arthur Llewellyn Griffith Williams e M. Johnson, cuja sede ficava na antiga Rua Visconde de Itaparica, número 1, atual Rua do Apolo, provavelmente na esquina com a Avenida Rio Branco, no Bairro do Recife.

A empresa foi organizada em 1904, onde atuavam como agentes das firmas de navegação da Royal Mail & Pacific Steam Navigation Co. e da Houston Line. Esses investidores também possuíam serviços de estiva, uma frota de 22 saveiros e um rebocador. Entre as empresas com as quais eles tinham contrato para a prestação de serviços estavam a Great Western of Brazil Railway Co. Ltd., a Companhia das Obras do Porto e a Repartição de Esgotos. Para completar o quadro Mister A. L. Griffith Williams era o Vice-cônsul britânico em Pernambuco.  

Certamente que para aliviar a pressão na luta para ganhar dinheiro e resolver pendências diplomáticas, só tomando umas boas doses do bom e velho néctar dos deuses das Highlands escocesas. E talvez esses dois súditos de Sua Majestade, cuja a colônia de estrangeiros era na época uma das maiores e mais influentes em Recife, podem ter sabiamente pensado “porque não vender whisky para os brasileiros?”

Não sei se para essa empresa a venda desse produto funcionou, mas justamente no ano de 1909 eu encontrei nos jornais que Griffith Williams & Johnson realizaram uma forte campanha entre os jornalistas recifenses para chamar atenção sobre a bebida. Esses profissionais, que sempre adoraram mimos, receberam nas suas redações algumas garrafas de um whisky chamado The Gaelic Old Smuggler, cuja mistura original data de 1835, sendo fabricado até nossos dias com a denominação simplificada para Old Smuggler.

O whisky The Gaelic Old Sumggler, em uma garrafa do início do Século XX.

Pesquisando mais a fundo nos jornais, acho que os jornalistas que provaram o The Gaelic Old Smuggler detestaram o gosto, pois não publicaram mais uma linha sequer sobre essa bebida…

Outro que trabalhava com a importação de whisky em Recife em 1909 era o Senhor Constantino Barza, um comerciante oriundo do finado Império Austro-húngaro, que representava diplomaticamente seu país na capital pernambucana e se dedicava com afinco ao ramo da fotografia.

Sua empresa, a Barza & Companhia, ficava na Avenida Marquês de Olinda, número 2, a poucas quadras da sede da Griffith Williams & Johnson, o que facilitava para os papudinhos de plantão a aquisição de diferentes tipos de whisky. Só que no caso de Barza ele trabalhava com o conhecido Black & White, aquele que traz no rótulo dois cachorrinhos.

Barza, sua esposa Helena Cristiane e filhos – Fonte – digitalizacao.fundaj.gov.br

O Black & White é uma bebida muito popular em vários países do mundo, devido à sua qualidade robusta e preços competitivos, dois fatores que combinam e ajudam a marca a conquistar a lealdade dos bebedores de uísque. Tal é a longevidade e popularidade da mistura, que o Black & White foi referenciado muitas vezes na cultura popular. Conta a lenda que James Buchanan, proprietário da James Buchanan & Co Ltd, visitou uma exposição de cães e teve a ideia de utilizar a imagem de um West Highland Terrier branco e de um Scottish Terrier preto como mascotes em suas garrafas. Obviamente que esses dois animaizinhos são originários da Escócia.

O whisky Black & White, em uma garrafa do início do Século XX.

Sobre o Constantino Barza, sua loja e a venda de whisky Black & White, eu não consegui muitas informações. Só posso comentar que ele chegou ao Brasil com dez anos de idade e aqui viveu até seu falecimento em 4 de março de 1934, aos 74 anos. Em nosso país ele se casou com a Senhora Helena Cristiane Barza, que teve vários filhos e, conforme comentei anteriormente, sua memória é muito mais importante no contexto do desenvolvimento da fotografia no Brasil, sendo ele considerado um dos pioneiros estrangeiros que ajudaram a desenvolver essa atividade em nosso país.

Na Companhia de Algumas das Melhores Mentes e Personagens do Mundo  

Ainda sobre essa complexa, sofisticada e aromática bebida, lembram que no começo desse texto eu escrevi que gente importante e influente admirava esse típico produto escocês? Agora vamos conhecer o que muitos deles comentaram sobre o whisky.

Até hoje não se sabe se Abraham Lincoln, o 16º presidente dos Estados Unidos, gostava de whisky, mas quando ele descobriu que o seu bem sucedido general Ulysses S. Grant, grande vencedor da União na Guerra Civil Americana, era um entusiasmado bebedor de whisky, Lincoln teria dito: “Você pode me dizer onde ele consegue seu whisky? Porque, se eu descobrir, enviarei um barril dessa bebida maravilhosa para todos os generais do nosso exército”.

Winston Churchill – Fonte – https://pt.wikipedia.org

O Primeiro Ministro britânico Winston Churchill, o homem que fez sua nação suportar os momentos mais complicados durante a Segunda Guerra Mundial, comentou que: “A água não era própria para beber. Para torná-lo palatável, tivemos que adicionar uísque. Com esforço diligente, aprendi a gostar.”

O dramaturgo irlandês George Bernard Shaw afirmou: “Whisky é sol líquido”.

William Faulkner, renomado escritor nascido no sul dos Estados Unidos, assim comentou sobre essa bebida: “Minha própria experiência diz que as ferramentas de que preciso para o meu ofício são papel, tabaco, comida e um pouco de whisky”.

Alexander Fleming, o descobridor da penicilina, que era escocês e sabia apreciar a bebida que tornou ainda mais famosa a sua região de nascimento, disse certa vez: “Um bom gole de uísque quente na hora de dormir – não é muito científico, mas ajuda.” 

Humphrey Bogart – Fonte -https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Humphrey_Bogart_1940.jpg

Os atores de Hollywood adoravam whisky. Um que comentou sobre essa bebida foi Errol Flynn, que afirmou: “Gosto do meu whisky velho e das minhas mulheres jovens”. 

Dizem que as últimas palavras de Humphrey Bogart, outro astro hollywoodiano, foram de um profundo arrependimento: “Eu nunca deveria ter trocado de whisky por Martini”.

Já Ava Gardner, colega de profissão de Flynn e Bogart, teria dito:” Quero viver até os 150 anos, mas no dia em que morrer, desejo que seja com um cigarro em uma mão e um copo de whisky na outra”.

O whisky para o estrategista de comunicações americano-israelense Joel C. Rosenberg é o seguinte: “Sou um homem simples. Tudo o que quero é dormir o suficiente para dois homens normais, whisky suficiente para três e mulheres suficientes para quatro.

Já o apresentador de TV americano Johnny Carson comentou assim sobre a bebida: “Felicidade é ter um bife mal passado, uma garrafa de whisky e um cachorro para comer o bife”.

Salute!!!

QUEM FOI MANOEL DUARTE MACHADO?  

Manuel Duarte Machado

Lembrado Basicamente Como Um Rico Comerciante e o Marido da “Viúva Machado”, Esse Imigrante Português Marcou a História do Rio Grande do Norte. Em 1927 Ele Quando Doou Um Pequeno Terreno Perto de Um Rio Chamado Parnamirim, Para a Construção de Um Campo de Pouso. Durante a Segunda Guerra Mundial Esse Local Se Transformou em Uma Das Maiores Bases Aéreas do Mundo.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte 

Em Natal se fala muito na famosa “Viúva Machado”, bem como do seu belo palacete localizado próximo à Igreja do Rosário, na parte antiga da cidade. Mas a Senhora Machado era viúva de quem? 

Apenas aqueles mais informados sobre temas históricos, sabem que seu esposo era um português chamado Manuel Duarte Machado, certamente um dos maiores empreendedores que o Rio Grande do Norte conheceu na primeira metade do século XX. 

Segundo um texto de Orlando Correia, escrito na época do falecimento de Manuel Machado, ele nasceu em Santarém, Portugal, em 21 de junho de 1881, em uma década onde o seu país viveu um período de relativa tranquilidade política, mas a industrialização, a modernização da agricultura e a ampliação da educação da população eram situações que em Portugal seguiram de forma muito mais lenta do que em qualquer outro país na Europa Ocidental. 

Talvez isso possa explicar porque Manuel Machado veio muito jovem para Natal, onde se tornou empregado no comércio de um tio chamado José Maria Machado, que por aqui vivia e, aparentemente, já tinha uma certa idade. Consta que o jovem Manuel trabalhou nesse comércio durante algum tempo, mas logo compreendeu as limitações de como seu tio tocava o negócio e ele decidiu buscar novos horizontes. 

Sabemos que em 1906 Manuel Machado adquiriu um comércio de um cidadão chamado José Chaves e que este ficava na Ribeira. Segundo a propaganda acima, esse negócio nada mais era que uma mercearia e ele a chamou de “A Despensa Natalense”. 

Essas mesmas propagandas mostram que ele não perdeu todos seus vínculos com a “Terrinha”, pois sua loja trabalhava bastante com produtos recebidos de Portugal. Tudo indica que esse caminho de importação de produtos portugueses pode ter diferenciado seu trabalho em relação a outros vendedores na cidade. 

Uma situação que não descobri foi se o seu irmão Cláudio Duarte Machado chegou a Natal nesse período, ou se veio junto com Manuel. O certo é que vamos encontrar informações que eles trabalhavam juntos. E trabalharam bastante, pois é muito claro nos jornais natalenses o progresso daqueles portugueses no comércio da cidade. Uma situação que parece mostrar a prosperidade dos irmãos está no jornal A República (Ed. 17/01/1917-Pág. 2), quando vemos o nome de Manuel D. Machado como um dos sócios fundadores do Sport Club Natalense, uma agremiação social e esportiva, junto com figuras como Juvenal Lamartine, Alberto Maranhão, os irmãos Henrique e Elói de Souza e outros. 

Orlando Correia deixou registrado que em determinado momento de sua vida Machado conheceu Antônio Loureiro, dono de uma das mais importantes firmas comerciais de Recife. Esse encontro se deu em uma ocasião que Loureiro veio a Natal, a negócios de sua casa comercial. Machado aproximou-se dele e falou de seus propósitos de negociar mais amplamente. O senhor Loureiro ouviu atentamente, certificou-se de suas aptidões e como um homem de negócio experiente, estava habituado a ajuizar o valor dos indivíduos com quem tratava. Logo ao primeiro contato Loureiro convenceu-se de que Manoel Machado possuía as grandes qualidades que asseguraram a mais completa vitória na área do comércio local e lhe deu a mão. Essa ajuda foi fundamental para Manoel e Cláudio Machado progredirem mais e mais. 

Os dois irmãos, muito amigos e sócios, delimitaram as respectivas atribuições no negócio. A Manuel Machado coube a chefia da empresa, onde exercia as suas atividades no escritório. Já Cláudio ficava na gerência autônoma do grande armazém de estivas, que chegou mais tarde a ser nesse ramo o maior estabelecimento de Natal e talvez do Rio Grande do Norte. Várias fontes apontam de maneira repetitiva que Machado e seu irmão não davam trégua à morosidade e eram verdadeiros abnegados do trabalho. Talvez eles seriam vistos hoje como “workaholics”. 

Logo nos primeiros anos atingiram um tal grau de prosperidade, que no primeiro balanço regular realizado eles se surpreenderam com os recursos que já possuíam. Diante dessa situação ampliaram mais o campo de ação, fazendo com que sua empresa passasse a realizar operações de maior vulto no alto comércio de importação e exportação, adicionando sessões de representações, comissões e consignações. Machado passou a atuar junto às repartições públicas para fornecimento de materiais necessários para construção de estradas de ferro, obras contra o flagelo da seca, a ampliação do porto de Natal e outras. Consta que apesar do prejuízo de centenas de contos de réis junto a governos mal pagadores, a empresa pôde vencer as dificuldades resultantes. Seus principais empregados eram Hermínio Fernandes e Aníbal Correia.

Em Natal o luso Manoel Machado casou com uma mulher de origem simples, cujo nome após o matrimônio ficou registrado como Amélia Duarte Machado. 

Amélia Duarte Machado, a “Viúva Machado”.

Amélia, que ficou conhecida como Dona Amelinha, mas que hoje em dia é lembrada apenas e tão somente como a “Viúva Machado”, nasceu em Mossoró, sendo filha do agricultor Ovídio Benevides de Melo e de Maria Benevides. Buscando novas perspectivas seus pais vão para Fortaleza, Ceará, onde a jovem estuda em um colégio local. Depois seguem para a cidade litorânea potiguar de Areia Branca, onde a família montou uma pensão. Provavelmente fruto de certa prosperidade dessa atividade empresarial, Ovídio desembarca com sua família em Natal para montar uma nova pensão no bairro da Ribeira, na Rua das Virgens, atual Câmara Cascudo.

Não demorou para Ovídio se entrosar com os comerciantes locais e foi através da amizade do seu pai com o lusitano de Santarém que começou o namoro dele com a jovem Amélia. O casório ocorreu na Igreja Bom Jesus das Dores, em 22 de outubro de 1903. Depois da cerimônia, os nubentes e os convidados seguiram a pé para a casa do pai da noiva e certamente festejaram com um bom vinho do Porto. 

Apesar de muitas tentativas, a união do português com a mossoroense não gerou filhos e nem isso aparentemente criou qualquer tipo de rompimento do casal e eles continuaram juntos até a morte de Manuel. 

A casa de Manuel e Amelinha Duarte – Foto – Rostand Medeiros.

Em 1920 o português e Amelinha se mudaram da Ribeira para um palacete na Cidade Alta, construído dez anos antes por Jorge Barreto de Albuquerque Maranhão, considerado um dos mais ricos da cidade e sobrinho do governador Alberto Maranhão. Jorge vendeu o belo imóvel ao casal quando se mudou para o Rio de Janeiro, onde faleceu em 1946. 

Dada a prosperidade dos negócios de Manoel e Cláudio Machado, eles passaram a adquirir propriedades não muito distantes de Natal, como a fazenda Pitimbu, na qual introduziram grandes melhoramentos agrícolas, ou a Salina Carnaubinha, que na década de 1930 era a maior e mais bem aparelhada das que existiam nas margens do Rio Potengi. Além das fazendas Guarapes, Peixe-boi, Ferreiro Torto (onde existe um histórico casarão) e Queimadas, essa última para exploração de gado.  

Em relação à questão se as empresas e as terras eram divididas igualitariamente entre os irmãos Manuel e Cláudio Duarte Machado eu realmente nada sei. Mas sabemos também que eles desenvolveram uma fábrica de bebidas na Rua Chile e que a “Despensa Natalense” se tornou a grande mercearia que atendia aos moradores da Ribeira e arredores. 

Em 4 de maio de 1928 a empresa M. Machado e Cia. perdeu um dos seus sócios, quando faleceu Cláudio Duarte Machado. Além do óbvio, não temos informações de como essa notícia repercutiu junto a Manuel, mas em relação aos negócios seu irmão liquidou a M. Machado e Cia., assumindo a responsabilidade pelo ativo e o passivo da firma extinta. Passou então a negociar sozinho com a razão M. Machado e os negócios continuaram a prosperar consideravelmente. 

Sabemos que os efeitos da grande crise mundial ocasionada pelo Crash da Bolsa de Nova York de 1929, bem como as secas periódicas que assolaram o Rio Grande do Norte entre as décadas de 1920 e 1930, atingiram o comércio de  Manuel Machado, mas ele continuou progredindo.  

Machado possuiu importantes armazéns situados no cais do porto de Natal, várias casas e muitos terrenos, alguns de grande valor nos bairros da pequena capital Potiguar. Uma das áreas que ele possuía, devido a quantidade de árvores existentes, ficou conhecido como a “Mata de Manuel Machado”, ou “Mata de Petrópolis”, devido a sua localização. Essa área verde, onde predominava o pau-ferro, praticamente deixou de existir com a expansão do bairro após a Segunda Guerra e grande parte da madeira serviu para abastecer os fornos dos motores que geravam energia elétrica da empresa Força e Luz. 

O Dornier DO-X.

Ele nunca esqueceu as suas origens portuguesas e quando podia fazia questão de lembrar aos natalenses os grandes feitos dos portugueses. Uma maneira de lembrar isso ocorreu em 5 de junho de 1931, quando amerissou nas tranquilas águas do rio Potengi o maior hidroavião do mundo naquela época. Era o monstruoso Dornier DO-X, sendo esse “X” indicativo do décimo número do alfabeto romano. Mas aqui em Natal essa máquina com doze motores ficou mesmo conhecido como “DOX”. Esse monstrengo da engenharia alemã chamou a atenção de Manuel Machado não pelo seu país de origem, mas por um passageiro que seguia a bordo. Era o aviador português Carlos Viegas Gago Coutinho, seguramente a figura mais emblemática da história da aviação de Portugal, cujo o início do corajoso voo de Lisboa ao Rio de Janeiro, atravessando pioneiramente o Atlântico Sul na companhia de Sacadura Cabral, completou 100 anos em 5 de abril de 2022. Consta que Manuel Machado recebeu em seu palacete com toda pompa e circunstância Gago Coutinho e a tripulação do “DOX”. (Ver – https://tokdehistoria.com.br/2013/08/20/1931-o-grande-hidroaviao-do-x-em-natal/ ).

No momento em que suas empresas estavam no auge, Manuel Machado foi acometido de um câncer na boca. Ele se transferiu para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de tratamento, onde ficou internado na Casa de Saúde Dr. Eiras, no bairro de Botafogo. Faleceu no dia 20 de novembro de 1934, aos 53 anos de idade. Seu corpo foi enterrado primeiramente no cemitério São João Batista e depois transladado para Natal de navio, onde repousa no tradicional Cemitério do Alecrim. 

Justamente em uma de suas propriedades adquiridas, a Pitimbu, Manoel Duarte Machado realizou aquilo que eu considero seu grande e mais marcante feito protagonizado em sua vida. E esse feito não foi a compra de um maravilhoso carro importado, ou de um potente avião, ou a construção de um palácio suntuoso, ou ainda a criação de uma grande indústria que o deixaria muito mais rico do que era e que mataria de inveja a pobre e burra elite que existia (existia?) em Natal. Para mim seu grande feito foi uma doação! 

Em 1927, devido a sua privilegiada posição estratégica, Natal entrou definitivamente na mira dos aviadores em todo o mundo e dos governos dos países que ajudavam a expansão da sua aviação comercial. Através de representantes na cidade, a empresa aérea francesa Aéropostale buscou Manuel Machado para construir em uma faixa de 1.000 por 1.000 metros, um campo de pouso na área da fazenda Pitimbu. O Lugar ficava perto de um rio chamado Parnamirim, a dezoito quilômetros do centro de Natal e possuía as características ideais para o pouso e decolagem de aviões.

Bem, Manuel Machado poderia ter dado a resposta que quisesse, pois a terra era sua, mas ele decidiu doar o terreno aos franceses. Mesmo compreendendo que nessa doação certamente estava embutida, pelo menos a curto prazo, a ideia de valorizar os terrenos que o proprietário tinha na região, creio que Manuel Machado também compreendeu o que significava o desenvolvimento da aviação em solo potiguar, ligado a questão da sua privilegiada posição estratégica e de como isso poderia ser bom para seus negócios e para a região de uma maneira geral. 

A base de apoio dos aviadores franceses no Campo de Parnamirim.

Manuel Machado não viveu para ver o que aquela faixa de terra doada se transformou. Na Segunda Guerra Mundial o lugar ficou conhecido como Parnamirim Field, sendo uma das maiores bases aéreas do hemisfério sul e importante ferramenta da máquina da vitória dos Aliados naquele conflito. E não foi só a terra de Manuel Machado que ajudou no desenvolvimento daquela base. Em um texto escrito em 1945 por Orlando Correia, para rememorar a vida de Manuel Machado, ele afirmou que foi da pedreira que fazia parte do antigo terreno do Ferreiro Torto, tida com a maior e mais próxima de Natal, de onde saiu muita pedra para ajudar na construção daquele imenso complexo aeronáutico. 

Detalhe da casa de Manuel Duarte e Amelinha – Foto – Rostand Medeiros.

O interessante foi que com o passar do tempo, de forma gradativa, a sua figura foi sendo eclipsada pela da esposa Amélia Duarte, que faleceu discretamente em 17 de outubro de 1981, aos 99 anos de idade, no casarão adquirido pelo seu esposo em 1920 e que continua até hoje altivo e marcando a paisagem do centro da cidade.

Ainda sobre esse patrimônio, vale comentar que com o passar do tempo e diante da ferocidade das construtoras e do meio imobiliário na capital potiguar, cada vez mais essa residência se torna uma das mais raras e interessantes edificações privadas do século XX preservadas em Natal.

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O MOTIM DO NAVIO BOUNTY

Em 28 de abril de 1789, os homens a bordo do Bounty, um navio da marinha britânica comandado pelo tenente William Bligh, realizaram um lendário motim. Depois de passar vários meses idílicos na ilha do Taiti, esses homens queriam estabelecer uma colônia no Pacífico Sul.

Rostand Medeiros – IHGRN 

A cerca de 2.000 km a sudeste da paradisíaca Taiti existe uma ilha vulcânica onde vivem menos de 50 habitantes, com eletricidade limitada, um barco que quatro vezes por ano liga essa ilha a Nova Zelândia. Nesse isolado lugar, seus habitantes comem frutas, legumes plantados por eles mesmo e frutos do mar pescados ao redor da ilha. Suas casas não têm portas de entrada e todas estão cobertas de árvores e plantas e até existe uma escola para alunos até os 12 anos de idade, que em 2021 tinha três alunos matriculados. Não há eletricidade na ilha das dez da noite às seis da manhã, quando o único gerador é desligado para economizar diesel. O serviço Wi-Fi e celular só recentemente se tornou disponível, mas os moradores sempre se comunicaram entre si e com o mundo exterior via rádio VHF. Os raríssimos visitantes devem ficar nas casas das famílias locais, pois não há resorts, hotéis, restaurantes ou bares.

A Ilha Pitcairn atualmente.

Apesar de todas as limitações para os mais exigentes, esse lugar possui uma história notável. Estou falando da Ilha Pitcairn, uma pequena possessão inglesa na parte sul do Oceano Pacifico, cujos habitantes são principalmente descendentes diretos dos notórios amotinados que em 1789 assumiram o comando do navio de guerra britânico Bounty.

Viagem ao Paraíso

O navio deixou a Grã-Bretanha em 23 de dezembro de 1787, sendo comandado por William Bligh, um tenente da Royal Navy (Marinha Real Britânica) com larga experiência em navegação. Nessa Jornada o Bounty seguiu sem a proteção de outro navio britânico, até mesmo porque sua missão era pacífica – coletar fruta-pão em uma ilha no Oceano Pacífico. 

Uma réplica do Bounty.

Essa era uma fruta tropical com sabor de figo, nutritiva, saborosa e a Coroa britânica viu na fruta-pão uma ração barata para suprir os seus escravos nas plantações de cana-de-açúcar nas Índias Ocidentais Britânicas, região também conhecida como Antilhas Britânicas.

A bordo da embarcação seguiram quarenta e seis homens, incluindo dois botânicos, e a viagem foi bastante complicada. Após fracassar em tentar cruzar a ponta sul da América do Sul, no terrível Cabo Horn, Bligh decidiu seguir navegando até a África, passando pelo Cabo da Boa Esperança, o que estendeu bastante o trajeto. A tripulação sofreu na luta contra o mar agitado e ventos contrários, enquanto sobrevivia de biscoitos cobertos de larvas e carne salgada. Finalmente, em 26 de outubro de 1788, o Bounty chegou ao Taiti e o impacto entre a marujada foi total. 

A ilha era tão celestial quanto a tripulação imaginava e eles aproveitaram ao máximo. Os britânicos foram recebidos de maneira amigável pelos taitianos, recebendo frutas deliciosas, negociando com eles e até sendo convidados para ir às suas casas. Não demorou e os marinheiros logo estabeleceram vínculos com as belas mulheres da ilha, trocando com elas favores sexuais por determinados objetos, onde o principal eram pregos e ferramentas feitas de ferro.

Consta que em uma ocasião Bligh colocou diante de um nativo vários objetos, de diferentes materiais, inclusive moedas de ouro e prata. Então os britânicos se espantaram com os olhos cobiçosos do haitiano em um prego de ferro. Para os nativos o ouro e a prata nada significavam, mas ferramentas feitas de ferro era algo inexistente no seu belo paraíso, sendo altamente necessário e extremamente valioso, pois com essas ferramentas eles poderiam construir com mais facilidade, por exemplo, barcos para pescar. E não havia nenhum problema de preconceito que suas mulheres se entregassem aos estrangeiros em troca desses artefatos.

Transporte de fruta-pão.

Como o navio estava atrasado em sua viagem, eles chegaram ao Taiti em um momento que as plantas de fruta-pão não estavam prontas para serem cultivadas, obrigando a permanência dos estrangeiros por quase seis meses. Mas os marinheiros não reclamaram!

Durante o dia, a tripulação colhia a fruta-pão e cuidava das plantas em uma área de plantação especial, preparando-as para a viagem. Já a noite eles se divertiam, com a farra correndo frouxa. Vale ressaltar que o pessoal do Bounty não foram os primeiros a se “deliciarem” com aquele paraíso e sofreram as consequências. Mais de 40% dos tripulantes foram tratados contra moléstias sexualmente transmissíveis, introduzidas no Taiti por exploradores britânicos e franceses anos antes.

A beleza e a alegria do povo taitiano.

Os britânicos rapidamente se tornaram “nativos”, fazendo tatuagens, brincando e dançando. Apenas Bligh, determinado a enviar sua carga para as Antilhas Britânicas o mais rápido possível, não foi seduzido. 

O Motim

O tenente Bligh era bastante conhecido por ser um disciplinador ferrenho, que tinha fama de intimidar seus homens e frequentemente, por qualquer pequena falha, mandava baixar o chicote no lombo da rapaziada. Ele foi ficando cada vez mais chateado com a falta de disciplina de sua tripulação e os excessos de liberdades. Que eram aproveitados até por outros superiores, como o imediato Fletcher Christian.

Uma parte preservada de Moorland Close, onde nasceu Fletcher Christian.

Este era um jovem de 23 anos, originário do noroeste da Inglaterra, vindo de uma família de passado nobre, com muitas terras, mas que se encontrava no final da década de 1780 completamente falida. Fletcher havia entrado na marinha com 17 anos, onde serviu em dois navios de guerra, tendo viajado até a Índia. Depois ele decidiu se juntar à frota mercante britânica e solicitou uma vaga a bordo do navio Britannia, cujo comandante era William Bligh, que havia sido dispensado da Marinha Real e era agora um capitão mercante. Fletcher serviu de forma satisfatória sob as ordens de Bligh em duas viagens, quando este foi reincorporado a Royal Navy e informado da missão do Bounty. Bligh então convidou Fletcher para ir na viagem.

De volta ao Taiti – Como tudo que é bom dura pouco, em 4 de abril de 1789, o Bounty partiu para as Antilhas Britânicas.

Deixar o Taiti foi muito doloroso para a maioria dos marinheiros, que mais uma vez precisaram conviver e enfrentar um Bligh autoritário. E nesse recomeço de navegação o comandante parecia que queria descontar os meses de idílio da tripulação na base do chicote e do cacete. As punições eram mais severas do que haviam sido antes e ocorrendo por faltas ridiculamente simples.

O Bounty.

Parecia que Bligh tinha um prazer especial em humilhar os oficiais que aproveitaram os prazeres do Taiti, principalmente Fletcher. A situação foi seguindo para um ponto bastante complicado e em ebulição permanente.

Três semanas depois de deixar o Taiti, o comandante acusa Fletcher de ter roubado cocos do suprimento do navio. Para dar o exemplo, Bligh fez de seu imediato um bode expiatório, punindo-o na frente de toda a tripulação. Embora a verdadeira causa do motim ainda seja debatida pelos historiadores, parece claro que essa acusação foi o golpe final, a gota d’água que faz o vaso transbordar. Para um Fletcher cansado de ser menosprezado e massacrado pelo seu comandante, o caminho a seguir era o da radicalização.  

O motim do Bounty e Bligh preso. Gravura de Hablot Knight Browne – Fonte – https://voyage.aprr.fr/autoroute-info/la-mutinerie-de-la-bounty.

Durante as primeiras horas de 28 de abril de 1789, o imediato e uma parte dos homens agiram. Fletcher e outros membros da tripulação se armaram com mosquetes e invadiram a cabine do comandante. Após o acordaram aos tapas e o prenderam com cordas, Fletcher teria dito a Bligh “Estou no inferno com você há meses”. O motim aconteceu muito rapidamente e aparentemente sem aviso prévio e, embora houvesse um núcleo duro de amotinados centrado em Fletcher, outros simplesmente se viram involuntariamente envolvidos pelos eventos.

Então veio o caos. A tripulação do navio se dividiu em duas facções: uma leal a Bligh, a outra determinada a desertar. Os vinte e três amotinados isolaram o capitão e dezoito outros homens em um barco a remo, mas equipado com duas pequenas velas, algumas rações, um cronômetro e um sextante para ajudar na navegação. Logo as duas embarcações se afastaram definitivamente. 

Um motim é algo muito sério no meio naval, mas Fletcher conseguiu adeptos que não tiveram medo de ir adiante na ação. Porque isso aconteceu?

Maus tratos e castigos físicos pesados, além da indiferença dos oficiais pelos subalternos era algo muito comum em navios da armada britânica. Os homens tinham de aguentar a rígida disciplina, pois as implicações de uma deserção individual, ou de um motim coletivo, eram bastante complicadas. Depois de tomar o Bounty, voltar ao país natal era a certeza de ter um encontro com o carrasco e à forca. Mesmo com essas implicações, eles foram em frente.

Talvez esse rompimento total com a Grã-Bretanha possa ser melhor compreendido no que significava ser um marinheiro nessa nação e nesse período. 

Imagem do Século XIX mostrando o mitim do Bounty.

Provavelmente a única vantagem em ser um “homem do mar” era poder conhecer um mundo diferente e deixar para trás um império onde os menos favorecidos eram tidos como algo próximo do nada. As condições de vida nas ilhas britânicas para os mais pobres eram aterradoras. Havia uma realeza distante do povo, com uma casta de nobres que tratava os menos abonados da mesma maneira como havia acontecido no período medieval. A educação e o atendimento médico, salvo raras exceções, só existia para aqueles que podiam pagar. Não podemos esquecer que o espectro terrível da fome pairava sobre a cabeça dos britânicos pobres e praticamente não existia nenhuma perspectiva de mudança para essa gente. E os marinheiros estavam incluídos entre eles.

O Bounty e o pequeno barco de Bligh se afstam. Pintura de Peter jackson – Fonte – https://fineartamerica.com/featured/mutiny-on-the-bounty-peter-jackson.html

Mas quando esses mesmos marinheiros encontraram uma realidade bem diferente, onde a natureza exuberante oferecia de graça iguarias que nutriam facilmente suas necessidades alimentares, em meio a um clima fantástico, onde poderiam ter um pedaço de terra para viver sem dever a ninguém e, como ponto fundamental, existirem belas e exóticas mulheres totalmente disponíveis, tomar o Bounty talvez valesse o risco. 

Em Busca de Uma Ilha

Fletcher e sua tripulação, que incluía alguns reféns ainda leais a Bligh, desejavam estabelecer uma colônia. 

Nosso conhecimento desta parte da história é baseado no relato escrito pelo amotinado James Morrison, companheiro do imediato do Bounty e um escritor atento e capaz. Examinando os livros de Bligh deixados a bordo, Fletcher encontrou uma referência a uma descoberta ocorrida anos antes, quando o capitão inglês James Cook esteve na ilha de Tubuai, cerca de 640 quilômetros ao sul do Taiti.

Vista atual da Ilha de Tubuai, na Polínésia Francesa. Foto realizada de uma ilha vizinha – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/Tubuai

Demorou um mês para os rebelados chegarem a essa ilha e ao aportarem encontraram um grupo de nativos hostis. Houve conflito e os locais levaram a pior. Apesar disso, Fletcher achou que Tubuai era um local adequado para estabelecer um assentamento permanente. Ele determinou que, após uma breve estada, eles navegariam para o Taiti para obter animais e suprimentos e trazer seus ex-parceiros e amigos polinésios de volta à ilha.

Os rebeldes encobriram seu motim e mentiram sobre sua missão porque tinham certeza de que os líderes taitianos, que tinham boas relações com a Grã-Bretanha, se recusariam a ajudá-los ao saber o que havia acontecido. Os britânicos então retornaram a Tubuai com trinta taitianos. 

O Bounty no Taiti. Quadro de Harry Scott Tuke – Fonte – https://www.mutualart.com/Artwork/HMS-Bounty-off-Tahiti/37F3361B96E62572DC0F1855683BDCC1

Mas os rebelados não eram figuras fáceis de serem conduzidos naquela nova situação, principalmente em meio a uma vida em um local isolado, com uma selva infestada de piolhos e mosquitos e com guerreiros empunhando lanças nas proximidades. Além disso, a preguiça e indolência de muitos dos amotinados não ajudava em nada a coletividade. Hostilidades com os taitianos e as divisões dentro da tripulação pioravam dia a dia. A tentativa de se estabelecer em Tubuai durou apenas dois meses e meio e fracassou.

Quando voltaram ao Taiti, Fletcher e seu grupo descobriram que sua mentira havia sido descoberta. Cientes de que corriam o risco de serem pegos pelos tribunais britânicos se ficassem parados, Fletcher então decidiu seguir viagem. Uma proporção das armas, munições e outros suprimentos foram divididos entre os britânicos que ficaram na ilha e os que deixaram o Taiti.

Zarparam no Bounty nove amotinados (Fletcher Christian, Edward Young, John Mills, Isaac Martin, William Brown, William McCoy, John Adams e John Williams), cinco homens polinésios, um menino, doze mulheres e uma menina.

Com a partida do navio, todos os vestígios de Fletcher Christian e seus seguidores desapareceram.

A Caixa de Pandora

Enquanto isso, Bligh e seus seguidores continuaram sua jornada frenética pela salvação. 

Primeiro eles foram para outra ilha em Tonga, onde rapidamente a deixaram após o encontro hostil com seus ocupantes, que apedrejaram e mataram o contramestre do navio. No retorno da navegação descobriram que as rações estavam diminuindo. A tripulação então decidiu seguir para uma colônia holandesa em Timor, a mais de 6.700 quilômetros de distância. Depois de uma viagem tumultuada de quarenta e sete dias, eles desembarcaram no assentamento holandês de Coupang, na ilha de Timor, e expuseram o motim à Coroa.

Comandante Willian Bligh.

Aquele foi um feito notável de marinharia, que até hoje é tido como uma das mais incríveis navegações a vela já registradas, onde Bligh mostrou suas habilidades de comando, impondo uma extrema disciplina em relação ao racionamento de mantimentos e a conduta do grupo. Após aportarem, mesmo com a ótima acolhida por parte dos holandeses, alguns marinheiros morreram. Os que sobreviveram seguiram tempos depois para Batávia (atual Jacarta) e depois chegaram à Grã-Bretanha em 14 de março de 1790.

“Perdi o Bounty”, escreveu Bligh à esposa. E completou: “Minha conduta foi exemplar e mostrei a todos que, devoto como era, desafiei todos os inimigos que queriam me prejudicar.” Como seria normal nessas circunstâncias, o antigo comandante do Bounty foi levado à corte marcial por ter abandonado seu navio. Após um julgamento que chamou bastante atenção no Reino Unido, William Bligh foi absolvido das acusações e reincorporado às suas funções.

Uma réplica do barco que salvou William Bligh e seus seguidores – Fonte – https://www.classicboat.co.uk/articles/captain-bligh-replicas-race-head-to-head/

A Royal Navy decidiu então partir para dar o troco nos amotinados. Em 7 de novembro de 1790 é enviada ao Pacífico Sul a fragata Pandora, armada com 24 canhões e sob o comando do capitão Edwards, um carniceiro muito pior do que Bligh. Sua missão era simples – capturar os amotinados e enviá-los para serem julgados.

Doze dos amotinados, juntamente com quatro tripulantes que permaneceram leais a Bligh, estavam no Taiti, muitos deles tendo filhos com mulheres locais. Apenas dois deles haviam morrido na bela ilha. Charles Churchill foi assassinado em uma briga com Matthew Thompson, que por sua vez foi morto pelos polinésios, que consideravam Churchill seu rei.

O Pandora chegou ao Taiti em 23 de março de 1791 e logo três amotinados se renderam sem problemas. Edwards então despachou equipes de busca para reunir o restante. A essa altura, alertados sobre a presença dos militares, os outros homens do Bounty, fugiram para as montanhas, mas em duas semanas todos foram capturados. Esses catorze homens foram trancados em uma cela de prisão improvisada, medindo 3,5 por 4,5 metros, que ficou conhecida como “Caixa de Pandora”. Certamente nessa hora muitos deles se arrependeram de não terem seguido com Fletcher, mesmo que fosse para o fim do mundo, pois literalmente estavam no inferno.

Em 8 de maio de 1791, o Pandora deixou o Taiti e, posteriormente, passou três meses visitando ilhas no Sudoeste do Pacífico em busca do Bounty e dos amotinados restantes. Consta que, além de alguns mastros descobertos na Ilha de Palmerston, nenhum vestígio do navio rebelde foi encontrado.

No seu caminho para Europa, em 29 de agosto de 1791, o Pandora afundou na Grande Barreira de Corais, ceifando a vida de 35 homens de sua tripulação e quatro prisioneiros, que se afogaram algemados. Salvaram-se 89 tripulantes e dez dos detidos, que foram retirados da “Caixa de Pandora” nos momentos cruciais do naufrágio por pena dos marujos do navio, mas não do comandante Edwards, que se recusou a ordenar a libertação dos prisioneiros. O certo é que esse grupo de náufragos se reuniu em uma pequena ilhota de areia e sem árvores, junto com quatro barcos salva vidas. Eventualmente 78 homens que estavam a bordo do Pandora voltaram para casa e setembro de 1792. O capitão Edwards e seus oficiais foram exonerados de suas funções militares, mas depois foram reincorporados e eventualmente ele chegou ao posto de almirante.

Já os dez prisioneiros que voltaram foram julgados em meio a uma forte atenção da imprensa e do povo britânico. Quatro dos amotinados foram absolvidos e outros seis condenados à morte por enforcamento. Na sequência, três dos seis condenados receberam o perdão do rei e os três restantes, Thomas Burkett, John Millward e Thomas Ellison, foram enforcados em 29 de outubro de 1794. Dos homens que receberam o perdão do rei, o aspirante Peter Heywood se beneficiou muito de suas influentes conexões familiares. 

Os membros da tripulação do Bounty foram enforcados nos mastros de navios, como mostra a gravura acima – Fonte – https://www.history.com/news/navy-bread-and-water-ban-sailor-punishment

Em um primeiro momento a opinião pública britânica tratou William Bligh como herói, sendo ele sempre ovacionado nas ruas e salões. Logo foi promovido pela Marinha. Mas em pouco tempo, quando a família de Fletcher Christian começou a agir, isso começou a mudar.

Embora incapazes de negar o papel de Fletcher como instigador do motim a bordo do Bounty, seus parentes trabalharam duro para sugerir que o abuso constante de Bligh aos oficiais e a tripulação acabou levando ao motim. Edward Christian, irmão mais velho de Fletcher e um inteligente advogado, fez isso publicando as atas dos procedimentos da corte marcial, com um apêndice contendo ‘Um relato completo das verdadeiras causas e circunstâncias dessa situação infeliz”. 

Na época da corte marcial dos amotinados do Bounty na Grã-Bretanha, o comandante Bligh estava no mar, dirigindo uma segunda expedição para trazer fruta-pão para as Índias Ocidentais e, portanto, não conseguiu se defender dos ataques de Edward Christian e do dano que isso causou à sua reputação. Ele provavelmente recebeu informes sobre o caso, mas só quando voltou para ao seu país Bligh avaliou completamente o estrago feito a sua reputação e o quanto o sentimento público havia mudado contra ele.

O almirante William Bligh em 1814, pintura de Alexander Huey – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Bligh#/media/Ficheiro:WilliamBligh.jpeg

Ao longo da segunda metade de 1794, Bligh reuniu material, testemunhas e em dezembro publicou sua refutação das acusações de Edward Christian em “Resposta a certas afirmações”. Mesmo se esforçando bastante para lavar sua honra, mesmo tendo conseguido chegar a almirante, Bligh entrou para a História como um despótico comandante de embarcação, cuja ação foi decisiva para a deflagração do motim do Bounty, sendo ele retratado como um total canalha.

E assim continua até hoje!

Pitcairn

Quando o Bounty partiu do Taiti pela última vez em setembro de 1789, ele navegou para o sudeste, longe do principal grupo das Ilhas da Sociedade para encontrar uma ilha remota e desabitada para estabelecer um assentamento. Após um período de buscas sem sucesso – durante o qual navegaram até o arquipélago tonganês – mais uma vez, os livros deixados a bordo forneceram um possível local para procurar. 

Pitcairn retratada no Século XIX.

Em um relato da viagem de 1767, feito pelo comandante britânico Philip Carteret, que navegou ao redor do mundo no navio de guerra Swallow, Fletcher encontrou uma referência a uma ilha que Carteret chamou de Pitcairn. A referência era que a posição da ilha havia sido identificada incorretamente por meio de um erro de navegação, pois o experiente e competente capitão James Cook não conseguiu encontrá-la em suas viagens.

Fletcher raciocinou que Carteret havia cometido um erro ao calcular a longitude da ilha, mas que a latitude que ele registrou para Pitcairn provavelmente estava correta. Ele decidiu navegar para leste seguindo exclusivamente essa latitude, até que finalmente avistou a ilha em 23 de janeiro de 1790. 

Como Carteret havia pensado, não havia um ancoradouro seguro em Pitcairn. Após um desembarque cauteloso, o grupo realizou uma busca no lugar. As investigações mostraram que era realmente desabitado, tinha água fresca, solo bom e vegetação exuberante. Muito em breve os amotinados começaram a levar para terra tudo que eles achavam que poderiam precisar. 

Em 1940, o infame motim inspirou Charles Nordhoff e James Norman a escrever o romance Bounty Trilogy , ilustrado por NC Wyeth. A cena acima é do momento que o navio é queimado.

Na sequência, para esconder todas as evidências de sua existência na ilha, atearam fogo no navio. Ele logo afundou no que hoje é conhecido como “BountyBay”. Da mesma forma, ao construir suas casas, eles as localizaram em um setor com densa vegetação e assim torná-las invisíveis para qualquer navio que pudesse se aproximar da ilha. Além disso, confiaram na costa escarpada para dissuadir uma investigação mais detalhada.

Embora há muito desabitada, havia amplos sinais de que antigos polinésios viveram na ilha. Os novos colonos descobriram gravuras rupestres e um local onde a pedra para ferramentas havia sido extraída, bem como muitas plantas alimentícias tipicamente cultivadas pelos polinésios.

Ao estabelecer o assentamento, os amotinados dividiram a ilha entre si e cada europeu tinha uma mulher para morar. Esse arranjo deixou apenas três mulheres polinésias como parceiras para os seis homens taitianos, levando a ciúmes violentos que logo foram exacerbados pela morte da parceira do amotinado John Williams, os taitianos culpavam os britânicos por terem abusado das mulheres, a quem tratavam como objetos sexuais.

Quando Williams tirou outra mulher daqueles que viviam com os taitianos, estes decidiram matar os europeus e se livrar de sua servidão. Infelizmente para eles, as mulheres avisaram os amotinados e dois dos homens foram mortos, estabelecendo assim o fim da violência. Em 1793, no entanto – apenas três anos depois de se estabelecerem na ilha – cinco dos amotinados, incluindo o líder Fletcher Christian, foram mortos quando os taitianos restantes se levantaram novamente. Mas sua vitória durou pouco e eles, por sua vez, foram mortos pelas mulheres em vingança pela morte de seus maridos britânicos.

Após esses assassinatos, a vida na ilha permaneceu relativamente estável até 1799, quando o amotinado William McCoy se suicidou pulando no mar de um penhasco. Ainda naquele mesmo ano, Edward Young e John Adams mataram Matthew Quintal depois que ele os ameaçou e suas famílias. É provável que o isolamento tenha gerado entre esses homens episódios prolongados de paranoia.

Quando Edward Young sucumbiu a um ataque de asma em 1800, o amotinado John Adams foi deixado como o último homem de pé, para se tornar o improvável patriarca de um assentamento de mulheres e crianças. Adams havia sido listado no Bounty como Alexander Smith (um ardil comum de marinheiros que já haviam desertado).

A âncora do Bounty, recuperada na década de 1960.

Após a violência da primeira década de colonização e agora encontrando-se responsável pela comunidade, Adams voltou-se para a religião. Entre os livros que foram trazidos para a ilha, ele encontrou um livro de orações, que usou para incutir pelo menos os princípios básicos do cristianismo na pequena comunidade.

Dezoito anos após a chegada do Bounty em Pitcairn, em 6 de fevereiro de 1808, o isolamento do grupo foi finalmente rompido quando o baleeiro americano Topaz parou por dez horas na ilha. Consciente de seu status de amotinado, Adams permaneceu em terra, mas a tripulação do Topaz ficou surpresa quando uma canoa remou da costa carregando vários jovens e ficou maravilhada quando eles saudaram o navio em inglês. Muito em breve, o capitão do Topaz , Mayhew Folger, percebeu que havia descoberto a casa dos amotinados do Bounty e finalmente resolveu o mistério do que aconteceu com Fletcher Christian e seu navio. 

Seis anos depois, em 17 de setembro de 1814, navios de guerra britânicos Briton e Tagus, comandados por Sir Thomas Staines e Philip Pipon, chegaram inesperadamente à ilha Pitcairn. 

Encontro de Sir Thomas Staines e Philip Pipon com John Adams e outros moradores de Pitcairn em 1814.

Um homem velho e alquebrado, embora orgulhoso de sua comunidade, veio até eles. Era John Adams, o único inglês sobrevivente do motim do Bounty a estar vivo em Pitcairn. Junto a ele estava o filho de Fletcher, a primeira criança a nascer na ilha, que em 1814 tinha 25 anos de idade. Staines e Pipon ficaram igualmente impressionados com o estado da comunidade, com a influência religiosa que Adams exercia sobre o grupo de pouco mais de 40 pessoas e com a maneira tranquila e inteligente de agir do velho patriarca. Staines, ao relatar a visita ao Almirantado britânico, recomendou que Adams permanecesse em Pitcairn para o bem das pessoas sob seus cuidados. Adams faleceu em 1829.

Jornal carioca O Cruzeiro, edição de 30 de outubro de 1889, informando sobre o centenário da revolta do Bounty.

A Ilha Hoje

Navios de guerra britânicos tornaram-se visitantes regulares e, com o tempo, os Pitcairners recorreram aos comandantes visitantes para governar as disputas locais, levando Pitcairn a se tornar um Protetorado da Grã-Bretanha em 1838. Hoje essa isolada ilha é um território britânico ultramarino.

Em meados do século XIX, com uma população com cerca de 200 habitantes e após uma série de secas que arruinaram as colheitas, os líderes da ilha começaram a procurar um local maior para reassentamento da comunidade. Após discussões com as autoridades britânicas, em 1856 toda a população foi removida para a Ilha Norfolk.

Desde seus primeiros dias, Norfolk tinha sido um assentamento de condenados e, embora todos os prisioneiros tivessem sido removidos antes da chegada dos Pitcairners, a infraestrutura da prisão e outros edifícios permaneceram totalmente intactos e alguns deles logo foram ocupados por famílias Pitcairner. Hoje, uma grande porcentagem da população da Ilha Norfolk ainda traça sua história até Pitcairn.

E o que aconteceu com a Ilha Pitcairn? 

Alguns anos após a mudança para a Ilha Norfolk, várias famílias optaram por retornar ao antigo lar, estabelecendo a base da população que continua a viver por lá. 

O filho de Fletcher, a primeira criança nascida na ilha.

Em 1998 Pitcairn voltou às manchetes no mundo todo. Um clérigo visitante acusou Shawn Christian, de 19 anos – filho de Steve e Olive, e descendente da 8ª geração de Fletcher, por abusar sexualmente de sua filha de 11 anos. Shawn não negou as acusações, em vez disso, afirmou que ele e a menina estavam “apaixonados”. Eventualmente, um processo foi aberto acusando treze homens de abuso infantil, assédio sexual, agressão e estupro, seis dos quais acabaram presos.

Após o escândalo, os moradores de Pitcairn não estavam particularmente arrependidos. Eles, mesmo para repúdio de milhares de pessoas pelo mundo afora, acham o que aconteceu entre Shaw e sua filha algo “normal”. O escândalo confirmou a muitos moradores que eles não queriam ser incomodados pelo mundo exterior. 

Localização da Ilha de Pitcairn.

Nos dias atuais Pitcairn enfrenta os problemas de uma população pequena e envelhecida, com um número cada vez menor de ilhéus disponíveis para realizar o trabalho rotineiro e pesado de viver em uma ilha remota no Pacífico. Só o tempo dirá se eles são capazes de mudar as coisas, mas o futuro certamente está cheio de desafios.

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FONTES

https://www.nationalgeographic.fr/histoire/la-veritable-histoire-des-revoltes-du-bounty

https://voyage.aprr.fr/autoroute-info/la-mutinerie-de-la-bounty

http://whalesite.org/pitcairn/1815

https://en.wikipedia.org/wiki/Mayhew_Folger

https://archival.sl.nsw.gov.au/

http://www.sea.museum/2019/06/14/a-mutiny-and-a-mystery-what-happened-to-fletcher-christian-and-the-bounty-mutineers

100 ANOS DO VOO DOS PORTUGUESES GAGO COUTINHO E SACADURA CABRAL

FOI A PRIMEIRA TRAVESSIA AÉREA DO ATLÂNTICO SUL E A EXPECTATIVA EM NATAL PELA PASSAGEM DA AERONAVE 

Rostand Medeiros – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Amigos leitores deste simples blog que busca divulgar um pouco de história, vamos puxar um pouco pela imaginação para contar uma incrível façanha.

Sacadura Cabral e Gago Coutinho em seu hidroavião – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

Imagine se você fosse convidado a ir para Portugal para participar de uma aventura aérea.

Aparentemente parece um interessante convite. Mas imagine que quem lhe chamou para esta empreitada lhe informe que a viagem aérea será em direção ao Brasil, atravessando o Oceano Atlântico em um hidroavião monomotor, onde além de você seguiria apenas mais uma pessoa.

A aeronave em questão seria construída principalmente de madeira e coberta com lona. Vocês iriam viajar sem GPS, sem radiocomunicação e sistemas de navegação modernos.

Hidroavião monomotor FAIREY F III-D MKII – Coleção do autor

Para não se perderem na imensidão do mar, o principal instrumento seriam réguas de navegação, que são utilizadas pelos homens do mar desde não sei quando. Afora isso, o instrumento mais sofisticado seria um sextante de navegação adaptado para ser usado em uma aeronave.

Para ajudar haveria apenas a certeza que no meio de um dos maiores e mais poderosos oceanos da Terra, haveria três navios ao longo do caminho para dar uma força.

Detalhe, a máquina alada desenvolveria uma velocidade de cruzeiro de “estonteantes” 115 quilômetros por hora (Meu carro 1.0 faz mais do que isso brincando, sem forçar o motor).

E aí, você toparia essa parada?

Sacadura Cabral – Coleção do autor

Eu acho que não!

Mas em 1922, dois portugueses de fibra e coragem toparam encarar o desafio e conseguiram vencer esta dura empreitada.

Gago Coutinho – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

Em 30 de Março de 1922, o hidroavião monomotor FAIREY F III-D MKII, de 350cv, com Artur de Sacadura Freire Cabral (1869 – 1959) como piloto e Carlos Viegas Gago Coutinho (1881 – 1924) nas funções de navegador, decolou do Rio Tejo, em Lisboa, com destino ao Rio de Janeiro.

Foi uma empreitada duramente planejada. Gago Coutinho inclusive havia criado, e empregaria durante a viagem, um instrumento chamado horizonte artificial, que era utilizado em conjunto com um sextante de navegação, para determinar o ângulo ou a inclinação de um corpo em relação ao horizonte. Com isto era estabelecido com uma linha, ou plano paralelo, a altura dos astros. Era uma invenção que revolucionou a navegação aérea à época. Realmente Gago Coutinho e Sacadura Cabral formaram uma dupla muito especial e altamente criativa.

Manchete do “Diário de Pernambuco, edição de 31 de março de 1922, informando sobre a decolagem do avião de Cabral e Coutinho – Fonte – Coleção do autor

Cinco dias antes (a 25 de março) zarparam da capital portuguesa os navios de guerra “República”, “Cinco de Outubro” e “Bengo”, que iriam prestar assistência ao voo. Finalmente, na manhã do dia 30 de março de 1922, depois de uma corrida de 15 segundos sobre as águas do Rio Tejo, em frente à histórica Torre de Belém, em Lisboa, a dupla de valorosos aeronautas decola com o hidroavião “Lusitânia”.

Tinha início a Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul e tanto em Portugal, como no Brasil, o início daquela pioneira travessia foi impactante e gerou um clima de grande expectativa. Vale ressaltar que no final de março de 1922, poucas viagens dessa magnitude, sobre o mar, haviam sido realizadas e das quais os lusos pudessem conseguir informações sobre procedimentos e questões de navegação. Era tudo muito pioneiro!

A travessia realizou-se em várias fases, no intervalo das quais os hidroaviões eram assistidos. Contudo, consideram-se quatro etapas na viagem, devido a problemas mecânicos, condições naturais adversas e foram utilizados três hidroaviões.

A primeira etapa da viagem decorreu sem maiores percalços, durante 8 horas e 17 minutos de Lisboa até Las Palmas de Gran-Canaria, embora tenha sido notado pelos tripulantes um excessivo consumo de combustível. Das Canárias os dois aeronautas portugueses voaram para Guando, a fim de conseguirem melhores condições de descolagem. Todavia o traçado do percurso teve ainda de ser revisto porque a quantidade de combustível não seria suficiente para um voo sem escala de Cabo Verde a Fernando Noronha.

A segunda etapa teve início na madrugada de 5 de abril, da ilha de Guando, alcançando São Vicente de Cabo Verde após 10 horas e 43 minutos, amerissando em mar calmo e sem dificuldades. Apesar do sucesso destas duas primeiras fases de voo do avião batizado como “Lusitânia”, perceberam os tripulantes ser praticamente impossível um voo direto entre São Vicente e o Arquipélago de Fernando de Noronha, devido aos elevados consumos de combustível. Perante a vontade de continuar a viagem e provar a precisão do voo aéreo, bem como a cientificidade dos instrumentos utilizados, Gago Coutinho e Sacadura Cabral decidiram fazer escala no Arquipélago de São Pedro e São Paulo, onde o “República”, cruzador da marinha portuguesa, lhes prestaria assistência.

Acidente no Arquipélago de São Pedro e São Paulo – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

Na terceira etapa da viagem, cuja partida ocorreu em 18 de abril, persistem as dificuldades a nível do combustível e o vento não ajudava numa decolagem mais rápida do avião. Apesar disto, o voo ocorreu sem maiores problemas e a precisão dos cálculos de Gago Coutinho permitiu que o avião iniciasse a sua descida até São Pedro e São Paulo quando apenas restavam dois a três litros no tanque.

Foi realizado um pouso forçado sobre um mar com muitas ondas e um dos flutuadores foi arrancado no choque. Na sequência o hidroavião se inclinou para bombordo e começou a afundar. Os tripulantes do cruzador “República” socorreram os aviadores, salvando também livros, o sextante, o cronómetro e outros instrumentos. Em seguida Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram levados para Fernando Noronha.

Como foi retratado por uma revista o que ocorreu em São Pedro e São Paulo – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

Para perpetuar o ocorrido, os aviadores deixaram o Arquipélago de São Pedro e São Paulo uma placa de chapa de ferro, onde está gravado a letra de latão: “Hidroavião Lusitânia – Cruzador República”.

A Nação portuguesa entrou em delírio e o clima emocional levou o Governo a enviar outro avião, oferecido pelo Ministério da Marinha.

Durante estes contratempos, os dois heróis ficaram ancorados em Fernando de Noronha, a bordo do “República”, onde decidiram que a nova etapa não devia iniciar naquela ilha, sendo preciso voltar atrás e sobrevoar São Pedro e São Paulo e depois seguir o rumo ao Brasil.

Cruzador português “República” – Fonte – Coleção do autor

O novo Fairey, levantou voo da ilha de Fernando Noronha, na manhã de 11 de maio.

O voo prosseguiu sem maiores problemas, mas, após sobrevoar o Arquipélago de São Pedro e São Paulo e já em direção ao Brasil, o motor parou. Eles então realizaram uma amerissagem de emergência.

Voo dos portugueses sobre os Penedos de São Pedro e São Paulo – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

Embora esta tenha sido perfeita e em mar calmo, a longa espera por auxílio teve como consequência uma situação mais complicada, na qual entrou bastante água em um dos flutuadores, fazendo o aparelho afundar lentamente O comandante do “República” solicita que o cargueiro britânico “Paris-City”, da empresa Reardon Smith Line e comandado pelo capitão Albert Edward Tamlyn, em rota de Cardiff, Escócia, para o Rio de Janeiro, que socorra os aviadores.

Cargueiro inglês Paris-City – Fonte – http://www.photoship.co.uk

Mais uma vez os pilotos foram resgatados e, consequentemente, louvados na sua pátria. Diante da situação, o Governo Português foi novamente procurado para enviar outro avião e não teve como negar, pois os dois aviadores haviam se tornado heróis nacionais.

A quarta e última etapa teve início com o envio do Fairey batizado na sua esquadrilha com o número 17, o único de que dispunha a Aviação Naval Portuguesa. Era uma aeronave com uma autonomia mais reduzida do que os outros, mas considerado suficiente para que a viagem prosseguisse até ao Rio de Janeiro.

Homenagem prestada ao capitão Albert Edward Tamlyn, do “Paris-City – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

No dia 5 de junho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho levantaram voo de Fernando de Noronha e iniciaram o final desta histórica e gloriosa viagem, já sem quaisquer problemas ou incidentes mecânicos. Logo os aviadores chegariam a Recife.

Enquanto os heróis lusitanos seguiam em sua viagem épica, a pequenina Natal, capital potiguar que à época não tinha sequer 35.000 habitantes, acalentava o sonho de ser pela primeira vez sobrevoada por uma máquina “mais pesada do que o ar”, como eram descritos os aviões no começo do século XX.

Mas Natal não teve este privilégio. Entretanto, a sua população não deixou de comemorar.

Edição de sexta feira, 9 de junho de 1922, do jornal recifense “Diário de Pernambuco”, sobre as comemorações em Natal – Fonte – Coleção do autor

Segundo a edição de sexta-feira, 9 de junho de 1922, do jornal recifense “Diário de Pernambuco”, segundo informações transmitidas pelo seu “Correspondente Especial”, comentou que após a cidade saber que os portugueses haviam chegado ao Recife por volta do meio dia de 5 de junho, os escoteiros do bairro do Alecrim, sob o comando do professor Luís Soares, saíram às ruas da cidade para convidar a população para uma “Passeata Cívica” a ser realizada naquela noite.

Na hora acertada os escoteiros, acompanhados dos alunos da Escola de Aprendizes de Marinheiros e estudantes de outras escolas locais saíram às ruas em direção ao bairro da Ribeira, mais precisamente até a estátua do aeronauta potiguar Augusto Severo, onde houve grande concentração popular. No local ocorreram vários discursos e representando a colônia portuguesa falou o advogado, futuro deputado federal e senador Kerginaldo Cavalcanti.

Quartel do Exército Brasileiro em Natal nas primeiras décadas do século XX – Fonte – http://mediocridade-plural.blogspot.com/

Após a parte oficial, os escoteiros, os aprendizes de marinheiro, estudantes e o povo em geral saíram pelas ruas da cidade acompanhados das bandas da Polícia Militar e do 29º Batalhão de Caçadores, a unidade do Exército Brasileiro que existia em Natal naquela época.  Um carro foi conseguido, sendo totalmente enfeitado. Duas jovens natalenses desfilaram no automóvel representando Portugal e o Brasil.

Mesmo sendo o dia 5 de junho, uma segunda-feira, que tinha tudo para ser normalmente modorrenta, a chegada dos aviadores lusos a Recife fez a capital potiguar se agitar como não seria normal para aquele dia. O cortejo seguiu até a casa do representante diplomático de Portugal em Natal, o Sr. Antônio Martins e depois foram se concentrar na Praça 7 de Setembro, defronte ao Palácio do Governo. Consta que a festa se prolongou até tarde da noite.

Poema de Palmyra Wanderley aos aviadores lusos – Fonte – Coleção do autor

No dia 18 de junho, o jornal natalense “A República” estampava na sua primeira página, um belo poema intitulado “Aviador”, produzido por uma das mais importantes poetisas que o Rio Grande do Norte já conheceu, Palmyra Wanderley.

Depois do descanso na capital pernambucana, Sacadura Cabral e Gago Coutinho seguiram para Salvador, Porto Seguro, Vitória, e, finalmente, Rio de Janeiro, onde o Fairey, batizado de “Santa Cruz”, desce no começo da tarde de 17 de junho na Baía da Guanabara, levando os portugueses e brasileiros a bater palmas alvoroçadamente e em uníssono.

Trajeto do épico voo de 1922 – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

O sextante original utilizado por Gago Coutinho nos voos históricos com Sacadura Cabral em 1921, de Lisboa ao Funchal, e, em 1922, na Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul, é hoje uma das mais valiosas relíquias do Museu de Marinha em Portugal, estando em exposição juntamente com o “Corretor de Rumos”, próximo do hidroavião Santa Cruz, que finalizou a histórica Travessia Aérea.


CARACTERISTICAS DO HIDROAVIÃO FAIREY F III-D MKII

  • Material: madeira, revestida em tela
  • Comprimento: 10,92 metros
  • Envergadura: 14,05 metros
  • Altura: 3,70 metros
  • Peso vazio: 1800 quilogramas
  • Peso equipado: 2500 quilogramas
  • Velocidade de cruzeiro: 115 quilômetros/hora
Homenagem do presidente de Potugal a Gago Coutinho e Sacadura Cabral – Fonte – http://gagocoutinho.wordpress.com/

NUMEROS FINAIS DO “RAID”

LocaisDataPartidaChegadaDuraçãoDistânciaVel. média
Lisboa-Las Palmas30 de Março7h00m15h37m8h37m703 milhas náuticas62m/ph
Las Palmas- Gando2 de Abril11h13m11h34m0h21m15 milhas náuticas
Gando – S. Vicente5 de Abril8h35m19h18m10h43m849 milhas náuticas79m/ph
São Vicente-São Tiago17 de Abril17h35m19h50m2h15m170 milhas náuticas77m/ph
São Tiago-S. Pedro e S. Paulo18 de Abril7h55m19h16m11h21m908 milhas náuticas80m/ph
Fernando de Noronha- Mar11 de Maio11h01m17h35m6h34m480 milhas náuticas72m/ph
Fernando de Noronha-Recife5 de junho10h48m15h20m4h32m300 milhas náuticas67m/ph
Recife-Salvador8 de Junho11h05m16h35m5h30m380 milhas náuticas69m/ph
Salvador-Porto Seguro13 de Junho10h30m14h33m4h03m212 milhas náuticas52m/ph
Porto Seguro-Vitória15 de junho10h55m14h35m3h40m260 milhas náuticas71m/ph
Vitória-Rio de Janeiro17 de Junho12h42m17h32m4h50m250 milhas náuticas52m/ph
O hidroavião FAIREY F III-D MKII, preservado em Portugal. É o único exemplar dessa aeronave no mundo.

O MECANISMO RUSSO DE GENOCÍDIO SE REPETE DESDE O MASSACRE DE KATYN

Na primeira semana de abril de 2022 o Mundo tomou conhecimento que tropas russas perpetraram assassinatos de civis na região da cidade de Bucha, na periferia de Kiev, capital da Ucrânia, como parte do ataque “Especial” executado por forças russas do Ditador Vladimir Putin contra aquele país. Infelizmente essa história não é inédita. Em 1940 os russos, que na época eram conhecidos como soviéticos, fizeram algo muito pior!

Baseado no texto de Katarzyna Utracka, disponível em – https://warsawinstitute.review/issue-2020/the-katyn-massacre-mechanisms-of-genocide/

Poucos dias antes do início da Segunda Guerra Mundial, em 23 de agosto de 1939, Joachim von Ribbentrop, Ministro das Relações Exteriores da Alemanha Nazista, veio a Moscou. Juntamente com Vyacheslav Molotov, Comissário do Povo para as Relações Exteriores da União Soviética, eles assinaram um pacto bilateral de não agressão. 

Vyacheslav Molotov, Comissário do Povo para as Relações Exteriores da União Soviética, assina o pacto bilateral de não agressão entre a Alemanha Nazista e a União Sovietica. Logo atrás dele vemos, de paletó escuro, Joachim von Ribbentrop, ministro de Relações Exteriores da Alemanha Nazista entre 1938 e 1945, que tem ao seu lado esquerdo Josef Stalin, o todo poderoso Secretário Geral do Partido Comunista de 1922 a 1952 – Fonte – Wikipédia.

Até aí tudo bem. Uma situação normal entre países que mantem boas relações diplomáticas. O problema foi que um protocolo secreto foi anexado a este documento, onde se incluía um plano para a divisão da Polônia pela Alemanha Nazista e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS, atual Federação Russa. 

Com isso, para os poloneses os piores temores se tornaram realidade – os vizinhos orientais e ocidentais da Polônia decidiram tirar a liberdade daquela nação. Pelo preço de benefícios territoriais aparentemente menores, Hitler recebeu a garantia da neutralidade de Moscou no próximo conflito militar com o Ocidente.

Tropas nazistas na invasão da Polônia, em setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.

Em 17 de setembro de 1939, apenas cerca de duas semanas após o Terceiro Reich atacar a Polônia, o Exército Vermelho, a força armada dos soviéticos, o famoso Exército Vermelho, atacou a Polônia pelo leste, implementando o pacto Ribbentrop-Molotov.

Em setembro de 1939 os soviéticos encontraram pouca resistência das unidades do Corpo de Proteção de Fronteiras e poucas unidades militares, ocupou cada vez mais cidades em ritmo acelerado. 

Por causa da “punhalada pelas costas” com falta de apoio dos aliados, foi tomada a decisão de evacuar as mais altas autoridades da República da Polônia para o exterior. Ao mesmo tempo, o exército polaco participou de batalhas desiguais contra o agressor – mas dada a enorme desproporção, o desastre foi inevitável. O estado polonês independente havia sido eliminado.

O valente, mas limitado, exército polones não foi adversário para os nazistas – Fonte – Wikipédia.

No Cativeiro Soviético

Após a agressão à Polônia, os soviéticos capturaram ou prenderam de 240 a 250 mil poloneses, incluindo cerca de 10 mil oficiais do exército polonês. Ao contrário de todas as convenções internacionais, eles entregaram prisioneiros aos serviços de segurança da temida NKVD, sigla que em português significa Comissariado do Povo para Assuntos Internos.

Três campos especiais foram montados: em Starobielsk (na atual Ucrânia) e Kozielsk (no território da Federação Russa) e destinados a oficiais, altos funcionários do estado e militares. O último campo foi em Ostashkow (Federação Russa), para soldados do Corpo de Proteção de Fronteiras e oficiais da Polícia Estadual, inteligência e contrainteligência, Guarda Prisional e Guarda de fronteira. 

No final de novembro de 1939, um total de mais de 14,5 mil prisioneiros de guerra poloneses estavam nesses campos. 

Poloneses prisioneiros dos soviéticos em 1939 – Fonte – Wikipédia.

As condições eram difíceis – superlotação, falta de água e comida. Cada um dos prisioneiros foi questionado sobre suas opiniões políticas, posição profissional, ativos, até mesmo associações com países estrangeiros e habilidades em línguas estrangeiras. A rede de informantes forneceu informações sobre a vida no campo. Muitos meses de interrogatório e doutrinação dos prisioneiros trouxeram pouco efeito. Apenas alguns quebraram. A grande maioria não,

Nas últimas semanas de 1939, os oficiais do NKVD aceleraram a investigação. Seus arquivos foram encaminhados ao Conselho Especial, cuja tarefa era decidir sobre o destino daqueles prisioneiros de guerra.

Sentença de Morte

Lavrentiy Beria – Fonte – Wikipédia.

Josef Stalin decidiu pessoalmente assassinar prisioneiros de guerra poloneses, a pedido do Comissário Popular de Assuntos Internos da União Soviética e chefe da NKVD, Lavrentiy Beria. 

Em extensa nota de 5 de março de 1940, Beria pediu que o caso fosse considerado “em um procedimento especial e dando-lhes a pena máxima – execução” (Interessante notar que em 2022 a Federação Russa utiliza o termo “Operação Especial” para a sangrenta invasão da Ucrânia).

Documento que autorizou o massacre de mais de 20.000 poloneses em Katyn – Fonte – Wikipédia.

Segundo o livro de Andrzej Krzysztof Kunert, Katyn, Ocalona Pamięć (em português “Katyn, Memória Salva, Varsóvia 2010, p. 130), Beria também solicitou que “os casos sejam tratados sem chamar os presos e sem apresentar acusações, decisão de encerrar a investigação e acusação”. O veredicto foi assinado por membros do Politburo do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, Kliment Voroshilov, Vyacheslav Molotov e Anastas Mikoyan. A aceitação de Mikhail Kalinin e Lazar Kaganovich também foi confirmada ao adicionar seus nomes à margem do documento. No mesmo dia, o Politburo aceitou formalmente a proposta de Beria.

Reuniões discutindo o assunto foram realizadas em Moscou nos dias seguintes e, em 14 de março de 1940, os chefes das direções regionais das regiões de Smolensk (Rússia), Kalinin (atual Tver, na Rússia) e Kharkiv (Ucrânia) e os comandantes militares das direções regionais do NKVD foram ordenados a assassinar prisioneiros de guerra poloneses. 

 Assistindo a um desfile comum da Wehrmacht e do Exército Vermelho no final da invasão da Polônia. Vemos ao centro o major-general Heinz Guderian e a sua esquerda o brigadeiro Semyon Krivoshein – Fonte – Arquivo:Bundesarchiv

Uma semana depois, Beria emitiu uma ordem “Sobre o descarregamento das prisões do NKVD ”, que realmente se traduziu em assassinar poloneses detidos em prisões do NKVD na área das províncias orientais da Polônia antes da guerra. Entre eles estavam oficiais aposentados, pessoas envolvidas no serviço estatal, funcionários do governo, funcionários do governo local, promotores, juízes, ativistas políticos, proprietários de terras e outros de posição semelhante.

Estratégia Assassina

A implementação do plano para assassinar prisioneiros de guerra poloneses foi realizada de acordo com instruções detalhadas do NKVD. Os soviéticos queriam que toda a ação fosse realizada de forma rápida e eficiente – para que o menor número possível de pessoas soubesse disso. A máquina de matar começou com ímpeto. 

Em 16 de março de 1940, as unidades de investigação do NKVD começaram a preencher os documentos das futuras vítimas. Enquanto isso, com medo da rebelião dos prisioneiros, o aparato de segurança do campo se concentrava em enganá-los. Uma campanha de desinformação em massa e bem pensada teve o efeito esperado. Os prisioneiros não estavam cientes de seu destino até o último momento. Eles aprenderam a terrível verdade apenas na Floresta Katyn ou nas celas da prisão do NKVD. 

Desfile soviético em uma cidade polonesa em setembro de 1939, após a rendição – Fonte – Wikipédia.

Um dos sobreviventes do campo de Starobielsk, Józef Czapski, lembrou: “Não havia como descobrir quais eram os critérios de seleção para os grupos dos prisioneiros enviados para fora do campo. Sua idade, anos de nascimento, posições, profissões, origens sociais, crenças políticas eram todos misturados. Cada lote subsequente era outra contradição às nossas suposições. Todos nós combinamos apenas em uma coisa: cada um de nós esperou febrilmente pela hora em que eles anunciaram uma nova lista dos que partiriam. Talvez desta vez fosse finalmente a nossa vez de estar na lista […]. De pé na grande escadaria da igreja, o comandante despediu-se dos grupos dos que partiam com um sorriso cheio de promessas. Você vai lá fora, ele disse a um de nós, onde eu adoraria ir. Cada lote subsequente era outra contradição às nossas suposições. Todos nós combinamos apenas em uma coisa: cada um de nós esperou febrilmente pela hora em que eles anunciaram uma nova lista dos que partiriam. Talvez desta vez fosse finalmente a nossa vez de estar na lista […]. De pé na grande escadaria da igreja, o comandante despediu-se dos grupos dos que partiam com um sorriso cheio de promessas. Você vai lá fora, ele disse a um de nós, onde eu adoraria ir. Cada lote subsequente era outra contradição às nossas suposições. Todos nós combinamos apenas em uma coisa: cada um de nós esperou febrilmente pela hora em que eles anunciaram uma nova lista dos que partiriam. Talvez desta vez fosse finalmente a nossa vez de estar na lista […]. De pé na grande escadaria da igreja, o comandante despediu-se dos grupos dos que partiam com um sorriso cheio de promessas. Você vai lá fora, ele disse a um de nós, onde eu adoraria ir (Józef Czapski,Wspomnienia starobielskie “Memórias de Starobielsk”, Roma 1945, p. 45).

Os prisioneiros foram transportados dos campos para os locais de execução – os prisioneiros de Kozielsk foram transportados por comboios para Smolensk, de Starobielsk para Kharkiv, de Ostashkow para Kalinin (agora Tver). 

Soldado sovietico de guarda junto a um avião de treinamento polonês PWS-26, abatido na parte ocupada pelos soviética na Polônia, em 18 de setembro de 1939 – Fonte – Wikipédia.

Foi assim que Zdzisław Peszkowski, um sobrevivente de Starobielsk, que mais tarde se tornou capelão. Ele relembrou sua saída do campo: “Eles nos revistaram minuciosamente e tiraram de nós quaisquer ferramentas afiadas como facas, tesouras, lâminas de barbear que tínhamos. Nossas fotografias foram verificadas e fomos conduzidos para fora do portão do acampamento em grupos de dois. Fomos colocados nos vagões da prisão que já estavam esperando por nós. Eles empacotaram todos, oito homens em cada compartimento. Eles trancaram as portas trancadas do corredor com fechaduras especiais. Soldados do NKVD estavam guardando do corredor. Éramos como animais selvagens em jaulas…” (Sprawa Katynia “O Caso Katyn”, ed. Krzysztof Komorowski, Varsóvia 2010, p. 44).

Ao mesmo tempo, foi preparada a ação de “descarregar” as prisões da chamada Bielorrússia Ocidental e Ucrânia Ocidental. Os detidos foram transportados para prisões em Kiev, Kharkiv, Minsk e Kherson. O Conselho Especial do NKVD elaborou “listas de morte” – ordens de tiro, que foram então aprovadas pela chamada “tróica do NKVD”: Vsevolod Merkulov, Bogdan Kobulov e Leonid Bashtakov. Carrascos foram treinados para matar pessoas com um tiro na parte de trás da cabeça. Moscou também nomeou pessoas para supervisionar seu trabalho.

Tropas do Exército Vermelho, durante a invasão soviética da Polônia, 1939 – Fonte – Wikipédia.

O Massacre

As primeiras “cartas de morte” chegaram aos campos de Kozelsk, Starobielsk e Ostashkow no início de abril e às prisões de Minsk, Kiev, Kharkiv e Kherson por volta de 20 de abril de 1940. O mesmo procedimento ocorreu em casas de tortura em Kharkiv e Kalinin. 

Oficiais do NKVD que participaram das execuções mencionaram seus detalhes nos depoimentos. As execuções eram realizadas apenas à noite, em estrito sigilo. Os prisioneiros foram levados para os porões, onde, em uma sala solitária e silenciosa, foram assassinados com um tiro na nuca. Os que resistiram foram amarrados. O revólver Nagant foi inicialmente usado para realizar as execuções. Mais tarde, os executores passaram a utilizar a pistola alemã Walther P38, devido à sua confiabilidade e alto desempenho. Os disparos mortais terminava ao amanhecer. 

Pistola Walther P38, a preferida dos soviéticos para matar – Fonte – Wikipédia.

O chefe do Conselho Distrital do NKVD em Kalinin, O major Dmitry Stepanovich Tokarev, lembrou anos depois: “Já foi no primeiro dia. Então nós fomos. E então eu vi todo esse horror. Nós fomos lá. Depois de alguns minutos, Blokhin [um dos oficiais do NKVD que veio de Moscou] vestiu sua roupa especial: um gorro de couro marrom, um avental longo de couro marrom, luvas de couro marrom com punhos acima dos cotovelos. Isso me causou uma grande impressão – eu vi o carrasco! Depois de ser arrastada para a cela, a vítima foi imediatamente morta por um tiro na nuca” (Sprawa Katynia … , p. 50). 

Pela manhã, os cadáveres dos assassinados foram transportados em caminhões para lugares solitários com covas já cavadas. Os coveiros foram substituídos por escavadeiras que nivelaram o terreno. Os locais de sepultamento das vítimas foram durante anos inacessíveis até mesmo para os moradores locais.

Vítimas de Katyn.

Sabemos muito menos sobre a execução em Katyn – neste caso, nosso conhecimento vem principalmente das exumações. Os estojos dos projetis utilizados nas sangre-as tarefas e encontradas acima das covas, indicam que as execuções ocorreram diretamente ali. 

Sabe-se também que os prisioneiros que morreram em Katyn foram levados de suas prisões para o local da execução em veículos sem janelas. Os que resistiram estavam com as mãos amarradas. Alguns deles tinham casacos amarrados na cabeça com uma corda, cuja extremidade estava presa com um nó nas mãos. 

Uma vítima – Aqui vemos o capitão Józef Baran-Bilewski, oficial de artilharia do Exército Polonês. Antes da guerra ele participou dos Jogos Olímpicos de Amsterdã e Los Angeles, competindo no lançamento de disco.

Vários documentos soviéticos dão números diferentes de pessoas mortas, embora as diferenças sejam pequenas. De acordo com a nota de 3 de março de 1959, emitida pelo chefe da KGB Alexander Shelepin para Nikita Khrushchev, um total de 21.857 prisioneiros de guerra e prisioneiros poloneses foram fuzilados, incluindo 7.305 pessoas detidas em prisões. Alguns pesquisadores acreditam que os números são subestimados. Apenas 395 prisioneiros escaparam do assassinato em massa – de três campos especiais eles foram levados para o campo de Yukhnov (Rússia).

O resultado do terror em Katyn.

Motivos do crime

A razão para assassinar bestialmente oficiais poloneses pode ter sido o desejo de se vingar da derrota que os soviéticos sofreram na guerra polaco-soviética de 1920.

Entretanto na atual Polônia acredita-se que o motivo mais provável foi a ideia de privar a nação atacada de seus líderes e elite intelectual. Na opinião das autoridades soviéticas, os prisioneiros de guerra poloneses, que manifestavam seu patriotismo, eram “inimigos irredimíveis das autoridades soviéticas e não devem melhorar”. Por esta razão, eles deveriam ser assassinados. As autoridades soviéticas decidiram que este movimento facilitaria o futuro governo da República Polaco-Soviética. 

O carrasco – Duas fotos do major-general Piotr Soprunenko, Chefe do Departamento de Prisioneiros e Internos do NKVD. De acordo com as ordens de Beria e Merkulov, ele preparou um plano e controlou operacionalmente a execução de 15.000 prisioneiros poloneses.

Alguns pesquisadores acreditam que a decisão de “resolver finalmente” o caso dos prisioneiros de guerra poloneses foi tomado em nome da cooperação declarada dos serviços de segurança alemães e soviéticos na luta contra as aspirações de independência da Polônia. A coincidência temporal com a AB-Aktion (Operação Extraordinária de Pacificação) conduzida pelos nazistas e dirigida à intelectualidade polonesa não parece ser involuntária.

Não é à toa que no atual conflito da Ucrânia, uma das primeiras notícias vinculadas, vista com certo exagero por determinados meios, é que haveria uma “lista” de pessoas a serem executadas pelas forças russas de Putin na Ucrânia, para melhor dominação do país. Bem, se é verdade se haveria a tal lista, ou não, eu não sei. Mas a História de Katyn mostra bem o que os soviéticos fizeram em 1940.   

As vítimas de Katyn em 1943.

Vítimas e Executores

Em 1940, entre os prisioneiros de guerra poloneses mantidos em campos especiais estavam oficiais profissionais do Exército e da Polícia do Estado poloneses, bem como reservistas. Em “transportes da morte” para Smolensk e Kharkiv estavam: 12 generais, 1 contra-almirante, 77 coronéis, 197 tenentes-coronéis, 541 majores, 1.441 capitães, 6.061 tenentes, segundos-tenentes, comandantes de cavalaria e subtenentes e 18 capelães e outros clérigos. 

Segundo historiadores poloneses, metade do então corpo de oficiais do exército polonês foi morto. Nas prisões do NKVD da chamada Bielorrússia Ocidental e Ucrânia Ocidental, os soviéticos detiveram oficiais que não foram mobilizados em setembro de 1939, funcionários públicos e funcionários do governo local. Muitos dos assassinados eram especialistas de alto nível em vários campos, entre eles professores universitários, engenheiros, padres, médicos, advogados e outros.

Muitos funcionários do aparato central e diretorias regionais do NKVD, participaram do genocídio de Katyn. Os perpetradores eram os torturadores mais experientes da temida prisão moscovita de Lubyanka e das prisões locais do NKVD, treinados em matar com apenas um tiro. 

Restos humanos em Katyn.

Alguns deles são conhecidos pelo nome. Um dos documentos que não foram destruídos foi a ordem de Lavrentiy Beria, divulgada em 26 de outubro de 1940, premiando 125 pessoas “pelo bom desempenho de tarefas especiais”. Essas pessoas incluíam todas as patentes, desde generais até os oficiais mais baixos do NKVD. Os torturadores permaneceram em silêncio por muitos anos, escondendo cuidadosamente o segredo. Alguns conseguiram fazer carreira, mas muitos começaram a beber e morreram, um a um, poucos anos depois do crime. Alguns deles cometeram suicídio.

Consciência pesa!

Uma coisa é matar um outro ser humano que está armado, no meio de um combate, com tiros sendo disparados. Mas tirar a vida de centenas de pessoas com um tiro na nuca, sendo que essas pessoas se encontravam totalmente subjugadas, seguramente amarradas, transidas de medo, tremendo, além de alguns certamente se encontrarem urinados, ou tendo defecado pelo medo, aí só com muita vodca para aliviar as memórias.  

Restos humanos do Massacre de Katyn.

Descoberta de Sepulturas e Brincando com Katyn

No verão de 1941, Smolensk e seus arredores foram ocupados pelo exército alemão. A primeira informação sobre as valas comuns de oficiais poloneses na floresta de Katyn foi dada aos alemães logo depois, mas eles não fizeram nenhuma tentativa de verificá-la. 

Em 1943 os nazistas fizeram um verdadeiro “Circo de mídia” em Katyn para mostrar o que os soviéticos fizeram aos militares poloneses em 1940. Cinicamente, nessa mesma época os campos de extermínio dos nazistas funcionavam a todo vapor.

Na primavera de 1942, trabalhadores forçados poloneses descobriram a execução de poloneses da população local. Em abril eles começaram a procurar na floresta por conta própria. Em um dos lugares sugeridos, eles descobriram um cadáver em uniformes do Exército polonês. Eles construíram uma cruz de bétula e notificaram as autoridades alemãs da descoberta, mas estas não mostraram nenhum interesse no caso. 

Foi somente em fevereiro de 1943 que a polícia secreta alemã iniciou uma investigação eficiente. Em 18 de fevereiro, a área indicada pelos poloneses foi parcialmente desenterrada e várias valas comuns foram identificadas.

Cartaz nazista de propaganda contra os soviéticos, mostrando o Massacre de Katyn.

Os alemães revelaram o massacre de Katyn após a derrota em Stalingrado. Eles acreditavam que a descoberta desses túmulos seria uma excelente oportunidade para dividir os Aliados. 

O anúncio da agência de notícias alemã sobre a descoberta das sepulturas deu origem a uma propaganda massiva. Com a ordem de Hitler, este caso ganhou publicidade internacional. Por toda a Europa, as estações de rádio controladas pelos alemães noticiaram a descoberta das sepulturas. A exumação contou com a presença de jornalistas, uma delegação da Cruz Vermelha polonesa e um comitê internacional de patologistas. 

Como em 1943 os nazistas já haviam assassinado dezena de milhares de pessoas com tiros na nuca, ficou fácil reproduzir no papel o que os soviéticos fizeram com os militares polacos em Katyn.

Seis dias após o anúncio do Transocean News Service, Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich da Alemanha nazista observou: “Todo o problema de Katyn se tornou um grande assunto político que ainda pode ter uma ressonância significativa. É por isso que fazemos uso dele de acordo com o estado da arte. Uma vez que esses 10.000 a 12.000 oficiais poloneses já perderam suas vidas – talvez não por culpa própria, já que uma vez instigaram a guerra, seu destino deve agora servir às nações da Europa para abrir os olhos para o perigo do bolchevismo” (Eugeniusz Cezary Król,Polska i Polacy w propagandzie narodowego socjalizmu w Niemczech 1919-1945 “Polônia e os poloneses na propaganda do nacional-socialismo na Alemanha 1919-1945”], Varsóvia 2006, p. 430).

Logo após a descoberta das sepulturas em Katyn, o governo polonês pediu uma investigação. O desaparecimento de oficiais poloneses foi motivo de preocupação para as autoridades polonesas – elas também perguntaram repetidamente ao Kremlin sobre seu destino. A descoberta fez o governo polonês exigir que os soviéticos explicassem o que aconteceu durante o genocídio. 

Em abril de 1943, os nazistas alemães iniciam a propaganda anti-soviética sobre o assassinato em massa na floresta de Katyn. Na foto membro do governo francês pró Alemanha Nazista visitam o local.

Tal como acontece em 2022, onde os russos juram de pés juntos que nada fizeram de errado e que os mortos da cidade de Bucha é uma “encenação dos ucranianos”, durante a Segunda Guerra os líderes em Moscou reagiram com uma falsa acusação de que os poloneses estavam encobrindo o crime alemão e cooperando com os nazistas. 

Sob pressão de Stalin, o ministro das Relações Exteriores britânico exigiu a retirada imediata do apelo e o anúncio público de que o massacre de Katyn foi uma “invenção” alemã. A censura britânica parou os despachos de rádio poloneses e confiscou textos destinados à impressão. Os Aliados temiam que a posição da Polônia complicasse os contatos soviético-britânicos. Embora os poloneses tenham retirado seu apelo, os soviéticos romperam relações diplomáticas com o governo polonês no exílio. 

Stalin triunfou – o caso Katyn prejudicou a posição da Polônia na arena internacional. 

Falsificação da História

Após a divulgação da agência de notícias alemã, o rádio e a imprensa de Moscou estavam divulgando a posição do Kremlin, culpando os alemães pelo massacre de Katyn. Além disso, o jornal “Pravda” de Moscou concluiu o apelo do governo polonês à Cruz Vermelha Internacional para explicar a situação com um artigo acusatório “Os colaboradores poloneses de Hitler”.

Poloneses capturados em 1939.

Os soviéticos, tendo rompido relações diplomáticas com o governo polonês menos de uma semana depois, e após a ocupação de Smolensk pelo Exército Vermelho, os oficiais da NKVD foram imediatamente a Katyn para falsificar provas de um crime. 

Em janeiro de 1944, uma comissão especial chefiada por Nikolay Burdenko que investigou o massacre de Katyn informou que os alemães eram responsáveis ​​pelos crimes. Após a guerra, o caso de Katyn foi levado ao Tribunal de Nuremberg. No entanto, não foi a julgamento, pois a culpa dos alemães não pôde ser provada. 

Nas décadas seguintes, os soviéticos tentaram apagar a memória do massacre de Katyn. Uma ferramenta usada na disseminação de desinformação foi a divulgação do crime alemão cometido contra os moradores da vila bielorrussa de Khatyn, localizada perto do local do massacre.

Exumações

As exumações em Katyn começaram no final de fevereiro de 1943 – então os alemães descobriram oito valas comuns. De sete deles, eles extraíram mais de 4.000 corpos, dos quais quase 2.800 foram identificados. Após a entrada do Exército Vermelho, a comissão soviética concluiu que os crimes foram cometidos pelos alemães no verão de 1941. O reconhecimento oficial da culpa da URSS por Mikhail Gorbachev em 1990 permitiu retomar a exploração. Como resultado, em 1991, foi possível localizar locais de sepultamento para prisioneiros: de Starobielsk em Piatichatki e de Ostashkow em Miednoje. As sepulturas restantes foram encontradas durante os estudos subsequentes em 1994 e 1995. Outras sepulturas polonesas foram descobertas em Bykivnia, nos subúrbios de Kiev. Durante os trabalhos de exumação realizados em 2011,

Monumento na região de Katyn – Fonte – Wikipédia.

As Investigações de Katyn

A investigação polonesa sob a supervisão do promotor Jerzy Sawicki começou na primavera de 1945 e foi interrompida em 1946. No mesmo ano, o procurador-geral soviético Rudenko apresentou uma acusação ao Tribunal de Nuremberg contra os alemães pelo assassinato de oficiais poloneses. 

Em 1950, como resultado dos esforços do Congresso americano polonês, o massacre de Katyn foi tratado por um Comitê do Congresso dos Estados Unidos. Em seu relatório, recomendou que o caso fosse encaminhado à ONU e que a URSS fosse processada perante a Corte Internacional de Justiça em Haia. 

Evidentemente, essa decisão desencadeou numerosos protestos das autoridades da URSS e da República Popular da Polónia. Em 1959, o caso Katyn foi retomado pelo então chefe da KGB. Em uma nota para Khrushchev, ele sugeriu destruir os arquivos pessoais das vítimas e preservar apenas os documentos principais. A partir de então, os arquivos-chave estavam disponíveis apenas para o Secretário-Geral do PCUS.

A revisão do caso Katyn só foi possível a partir de 1989. Em 1990, a Procuradoria-Geral da URSS abriu uma investigação conduzida até 2004, quando foi cancelada devido à morte dos culpados. A ordem de cancelamento e sua justificativa foram mantidas em segredo. Ao mesmo tempo, o Massacre de Katyn foi classificado como crime comum, sujeito a prescrição. No mesmo ano, o Instituto de Memória Nacional decidiu lançar uma investigação polonesa sobre o caso Katyn.

Cruz na floresta de Katyn – Fonte – Wikipédia.

Confissão

Na URSS, revelar a verdade sobre Katyn só foi possível pela Perestroika. 

Em 1987, um comitê conjunto de historiadores foi formado para explicar os “pontos em branco” na história das relações mútuas. O avanço foi quando pesquisadores russos – Natalia Lebedeva, Vladimir Volkov, Yuri Zoria e Valentina Parsadanova, encontraram os documentos do NKVD e os compararam com listas de exumações alemãs. Jornalistas e ativistas do “Memorial”, uma ONG russa que defende os direitos humanos e documenta os crimes stalinistas, também defenderam a verdade.

Em 13 de abril de 1990, a agência russa TASS publicou um anúncio oficial afirmando que o NKVD, e Beria e Merkulov pessoalmente, são responsáveis ​​pelo assassinato de poloneses. No mesmo dia, a Polônia recebeu várias centenas de cópias de documentos relativos aos prisioneiros de Kozelsk, Starobielsk e Ostashkow. Em 14 de outubro de 1992, um enviado especial do presidente Boris Yeltsin apresentou solenemente ao presidente Lech Wałęsa uma cópia do famoso Pacote nº 1, incluindo uma carta de Beria a Stalin e um extrato das atas do Politburo da URSS. Uma nova etapa na pesquisa sobre o Massacre de Katyn havia começado.

O Museu de Katyn, em Varsóvia.

Necrópoles de Katyn

No início da década de 1990, os poloneses fizeram esforços para construir um grande cemitério, túmulos em massa, ossuários ou necrópoles honorárias para as vítimas do Massacre de Katyn. 

O primeiro cemitério polonês onde estão enterrados os restos mortais das vítimas do genocídio soviético foi inaugurado em junho de 2000 em Kharkiv-Piatichatki. Os restos mortais de soldados e civis poloneses, mas também de moradores de Kharkiv, vítimas do terror stalinista, foram enterrados no cemitério. 

Nos meses seguintes, cerimônias semelhantes foram realizadas em Katyn e Miednoje. Esses cemitérios se tornaram o local de descanso final dos oficiais poloneses do campo de Kozelsk e Ostashkow. Em 2012, um cemitério de guerra polonês foi inaugurado em Kiev-Bykivnia, onde foram enterrados os restos mortais das vítimas da chamada lista Katyn ucraniana.

Em 29 de abril de 1991 Piotr Soprunenko deu um depoimento sobre Katyn. Ele nunca foi formalmente acusado de nenhum crime. De acordo com a posição oficial russa, os militares do Exército Vermelho nunca cometeram nenhum ato de genocídio, eles estavam apenas envolvidos em crimes regulares, que de acordo com as leis russas em 1991 não eram mais puníveis.

Muitas questões relacionadas ao Massacre de Katyn permanecem sem solução. 

O que torna ainda mais difícil é que parte dos volumes dos arquivos da investigação conduzida pelos russos entre 1990 e 2004 não estão disponíveis. A Rússia se recusa a divulgá-los, justificando sua decisão com a cláusula de sigilo. Além disso, a Rússia não tomou uma decisão final sobre a classificação legal do crime. A Procuradoria da Rússia considerou o crime comum sem revelar os fundamentos legais. Os nomes das vítimas na chamada lista Katyn bielorrussa, ainda não encontrada, ainda são desconhecidos. Também não se sabe onde essas pessoas foram enterradas. No caso da chamada lista Katyn ucraniana, foi encontrado o local onde um pequeno número de vítimas está enterrado. 

O objetivo da investigação polonesa conduzida pelo Instituto de Memória Nacional, que considera o assassinato de Katyn um crime de guerra e um crime contra a humanidade em sua forma mais grave – ou seja, genocídio – é explicar todas as circunstâncias desse crime atroz. O objetivo é descobrir os nomes de todas as vítimas do Massacre de Katyn, bem como os locais onde foram executadas e enterradas. Os investigadores do Instituto da Memória Nacional também procuram identificar os nomes de todos os autores do crime e determinar a responsabilidade de cada um deles.

Hipocrisia

Bucha, Ucrânia, abril de 2022.

A guerra é a bestialidade humana no mais alto grau. Ela não tem nada de bonita, de maravilhosa e de glamurosa. Não é ascética como em um jogo de videogame. É suja, cheira a podre e é doentia. O que está acontecendo na Ucrânia é prova disso!

Mas eu seria hipócrita se ficasse descrito nesse texto que só os soviéticos/russos tem “culpa no cartório”. Todos que participam desse tipo de situação, em maior ou menor grau, seja qual for a justificativa para os engajamentos, tem esqueletos guardados nos armários.

Um exemplo – Eximir os brasileiros dos muitos massacres praticados contra a população paraguaia na Guerra da Tríplice Aliança é ridículo. Mas “limpar a barra” para o que os paraguaios fizeram com a população do Mato Grosso em 1864 é no mínimo uma piada.

No resto do mundo não faltam exemplos e em muitos momentos da História!

My Lai, Vietnã, 16 de março de 1968. Esta foto tirada pelo soldado do Exército dos Estados Unidos e integrante da Companhia Charlie, Ronald Haeberle, após o massacre na aldeia de My Lai, mostrando principalmente mulheres e crianças mortas em uma estrada, foi divulgada na imprensa de todo mundo em 1969, causando comoção internacional. Entre 347 e 504 pessoas foram mortas pelo exército dos Estados Unidos – Fonte – Wikipédia.

Na Europa o holocausto perpetrado pela Alemanha Nazista na Segunda Guerra, com seus mais de 6 milhões de mortos, é bem conhecido. Na África do Norte são bem conhecidas as ações dos franceses na Guerra da Argélia (1954-1962), onde para os argelinos mais de um milhão e meio de seus compatriotas morreram, muitas delas torturadas. Os britânicos, durante seu colonialismo doentio, perpetraram toda sorte de crimes e massacres que marcam até hoje muitos dos povos por eles dominados. Já com os norte-americanos a história não perdoa casos como o Massacre de My Lai (16 de março de 1968), ocorrido durante a Guerra do Vietnã, até as mortes de prisioneiros em Dasht-e-Leili, na Guerra do Afeganistão (dezembro de 2001), ou os assassinatos de civis em Haditha, durante a Guerra do Iraque (19 de novembro de 2005).

Bucha, Ucrânia, abril de 2022.

Mas talvez a sutil diferença dessas situações e os casos de Katyn e Bucha, seja a forma como os discursos produzidos pelos soviéticos/russos para explicar os acontecimentos sejam carregados na desinformação, negacionismo e o uso sem limites da mais pura e deslavada mentira. Não que outras nações que perpetraram seus massacres não façam o mesmo, mas os que praticaram as mortes em Katyn e Bucha parecem exímios nesse mister.

Infelizmente a Guerra na Ucrânia continua e cada vez mais cruel. Mesmo desejando que isso não aconteça, acredito que os acontecimentos da cidade de Bucha poderão não ser únicos nesse conflito.

Mas a sombra de Katyn estará sempre pairando sobre os russos!

“DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APRENDE A LER” – CONHEÇA A MAIS INTENSA E REVOLUCIONÁRIA EXPERIÊNCIA EDUCACIONAL REALIZADA NO BRASIL – E ELA ACONTECEU EM NATAL!

FONTE – DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APRENDE A LER- Uma Experiência revolucionária – Boletim da VIII SESAC – Semana de Estudos da Semana Comunitária, Natal-RN, abril de 1981, págs. 37 a 39.

NOTA – Esse texto é dedicado a Professora Claudete Lourenço Alves, que trabalhou nesse projeto, me comentou anos atrás sobre sua participação com muito orgulho e lembrava principalmente do progresso que conseguia junto as crianças com o método. Infelizmente Clau, como a minha família carinhosamente lhe chamava, não está mais nesse plano, mas jamais esqueci seu relato.

Durante três anos — de fevereiro de 1961 a abril de 1964 — Natal viveu uma das experiências mais importantes na História do Brasil em termos de educação popular. Foi a campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, iniciativa do prefeito Djalma Maranhão, o líder que morreu de saudade, exilado em Montevidéu, e cujos restos mortais estão depositados hoje no tradicional Cemitério do Alecrim.

O prefeito Djalma Maranhão discursando em novembro de 1960. A sua esquerda, posicionado um pouco mais atrás, está Miguel Arraes, então governador de Pernambuco. Também se encontram na foto Moacyr de Góes, Roberto Furtado e Aldo Tinoco. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

O principal assessor de Djalma na área educacional — Moacyr de Góes — que era Secretário Municipal de Educação, Cultura e Saúde, esteve à frente dessa experiência que chegou a movimentar cerca de 17 mil alunos nos bairros natalenses,não só com aulas, mas também com debates e outras atividades culturais. A dura repressão desencadeada em 1964 conseguiu paralisar “De pé no chão também se aprende a ler”, mas não impediu que a memória daquela mobilização popular ficasse na consciência de todos os que a viveram.

A Natal dos anos de 1960 era uma cidade de 160 mil habitantes. dos quais 36 mil eleitores. O seu líder popular mais expressivo — Djalma Maranhão lá havia sido prefeito nomeado de 1956 a 1959, quando a capital era considerada “cidade base”, de acordo com a Constituição de 1946, e não podia eleger diretamente seu prefeito.

Djalma Maranhão

Em 1960. Djalma foi eleito com 66% dos votos e seu Partido – o Partido Trabalhista Nacional, PTN – fez aliança com a dissidência da UDN (União Democrática Nacional), representada por Aluízio Alves, candidato a governador: e com o PSD (Partido Social Democrático) que apresentou como candidato a vice-governador monsenhor Walfredo Gurgel. Já no plano nacional, Djalma e Luiz Gonzaga dos Santos, seu candidato a vice, deram apoio à chapa do marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, do PSD.

Foi neste contexto político que a Secretaria de Educação do município começou a campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, com dois objetivos básicos: a erradicação do analfabetismo e a execução de uma política de educação e cultura popular, definida a nível de unia proposta das classes subalternas.

Entre 1960/1964, estas classes estavam organizadas em Comités Nacionalistas ou Comités de Ruas, que se reuniam regularmente para a discussão de temas políticos — tais como o latifúndio, o imperialismo — e temas específicos dos bairros e ruas, como água, luz, esgoto e outros equipamentos comunitários.

Destes comités surgiram as convenções de bairros (uma das mais dinâmicas funcionou no Alecrim), visando fazer uma listagem dos problemas comunitários, incluindo propostas de solução. Este trabalho de base levou à convocação de uma convenção municipal, de onde foi tirada a plataforma de Djalma Maranhão.

O ponto número um nas reivindicações populares de Natal, segundo Moacyr de Góes, foi o de escola para todos. Com base neste pedido, aSecretaria de Educação partiu para a primeira fase da Campanha, com o funcionamento das escolinhas que eram, simplesmente, salas cedidas à Prefeitura para o funcionamento declasses. Eram salas de sindicatos, casas populares, clubes, associações diversas. A prefeitura entrava com as carteiras, a monitora, material escolar e merenda. No final de 1961, realizou-se uma importante reunião no Comité Nacionalista do Bairro das Rocas, importante bairro proletário da capital potiguar, cujo presidente era o pastor José Fernandes Machado, funcionário dos Correios e Telégrafos. O principal resultado do debate foi a decisão de construir acampamentos escolares, já que não havia condições financeiras para a construção de grupos de alvenaria. Em fevereiro daquele ano já estava construído o primeiro acampamento nas Rocas: era um conjunto de quatro galpões, sem paredes. cobertos com palha de coqueiro. As divisórias eram quadros murais e de giz; cada galpão tinha quatro salas de aulas e o chão era de barro batido. Ao lado dos galpões escolares, havia um outro, redondo, para as festas e debates comunitários. O conjunto também incluía horta e aviários, para enriquecimento da merenda escolar.

Salas de aula do projeto “De pé no chão também se aprende a ler”. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

Enquanto as escolinhas eram organizadas nos bairros mais populares da cidade, e o primeiro acampamento começava a funcionar nas Rocas, a campanha “De pé no chão também se aprende a ler” iniciava mais uma etapa: a do ensino mútuo, com a primeira experiência também nas Rocas. O método Paulo Freire ainda não chegara ao Rio Grande do Norte e cerca de vinte secundaristas engajavam-se na tarefa de alfabetizar adultos em suas próprias casas. O coordenador da experiência foi o professor Antônio Campos e Silva. Este mesmo educador coordenava a equipe que fazia a identificação das manchas de analfabetismo na cidade de Natal pesquisando também as causas da evasão escolar.

PRAÇAS DE CULTURA

Sob a influência direta do Movimento de Cultura Popular MCP — de Recife (criado no governo de Miguel Arraes), a Prefeitura de Natal, através de sua Secretaria de Educação, partiu, em seguida, para uma nova etapa na campanha através das Praças de Cultura.

A Campanha de Pé no Chão frontalizou, politicamente, o projeto americano “Aliança para o Progresso”, financiadora do sistema educacional do Governador Aluízio Alves. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

As duas maiores foram instaladas no bairro das Quintas e nas Rocas, com quadra esportiva, arquibancada de cimento, parque infantil e uma pequena biblioteca. A Praça servia tanto para jogos quanto para teatro e outros espetáculos populares, além de debates. Somente com quadra e parque, chegaram a ser implantadas dez praças. Na Praça André de Albuquerque, chamada de “Praça da Cultura”, havia também uma concha acústica, uma biblioteca, galeria de arte e um local para danças, onde o professor Gracio Barbalho fez muitas palestras sobre a música popular brasileira. “A Praça André de Albuquerque era um verdadeiro fórum aberto e democrático, de onde todos se aproximavam para participar dos debates e usufruir da cultura, lembrou anos depois Moacyr de Góes.

O POVO TECE SUA HISTÓRIA

Paralelamente, a expansão da campanha exigia a preparação do pessoal técnico e, por isso, a Secretaria decidiu criar o Centro de Formação de Professores – CFP, ligado ao Grupo de Educação Popular e à Coordenadoria Técnico-Pedagógica da instituição. A responsável pelo Centro foi Margarida de Jesus Cortez, que fizera curso, promovido nos anos de 1950, em São Paulo, pela UNESCO, sobre uma nova educação para os pises subdesenvolvidos.

Aula no projeto “De pé no chão também se aprende a ler”. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

Moacyr lembrou que Margarida Cortez inovou a pedagogia do Rio Grande do Norte, com a criação de unidades de trabalho na experiência de educação popular. Eram textos mimeografados, com o objetivo de integrar conhecimentos, e distribuídas nos vários níveis da campanha.

O Centro oferecia treinamentos de três meses para os futuros monitores e também cursos de reciclagem durante as férias, além de cuidar da supervisão da campanha e manter uma escola experimental. Ele representava o grande laboratório da revolucionária experiência.

NOVA CAMPANHA

A partir da realidade básica do trabalho, os responsáveis pela campanha “De pé no chão também se aprende a ler” resolveram partir para mais uma etapa, implantando a campanha – “De pé no chão também se aprende uma profissão”.

Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

Em fevereiro de 1963, já funcionavam oito cursos nas Rocas: corte e costura, enfermagem de urgência, sapataria, marcenaria, barbearia, datilografia, artesanato e encadernação. Em setembro, a campanha já oferecia dezessete cursos nas regiões das Rocas, no Carrasco, Nova Descoberta, Bairro Nordeste e Quintas, atingindo a jovens e adultos.

A experiência de Paulo Freire uniu-se à de Natal em 1963 e, segundo Moacyr, chegaram a funcionar em Natal de dez a doze Círculos de Cultura, debatendo a passagem da consciência ingénua para a consciência crítica e os passos necessários para a construção de uma sociedade democrática. O próprio Paulo Freire veio a Natal preparar os monitores. Nesta fase, a campanha “De pé no chão também se aprende a ler” ampliou a sua interiorização, com a vinda de professores leigos para cursos em Natal, assinatura de convênios com instituições das cidades potiguares de São Tomé, São Paulo do Potengi, Afonso Bezerra, Assú, Currais Novos, São Gonçalo e Macau (principalmente sindicatos), além de uma importante reunião na capital com quarenta prefeitos.

Paulo Freire fala numa Praça de Cultura da Prefeitura de Natal. No palanque, entre outros, da esquerda para a direita, na primeira fila: Grimaldi Ribeiro (Secretário de Educação do Estado), Monsenhor Walfredo Gurgel (Vice-Governador do Estado), Agnelo Alves (representando o Governador Aluízio Alves), Luiz da Câmara Cascudo (Presidente da Associação Brasileira de Folclore) e o jornalista Marcelo Fernandes (em pé). Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

Neste encontro os prefeitos chegaram a fundar a Frente de Educação Popular do Rio Grande do Norte, que não chegou a se consolidar por causa do Golpe de 1964.

A nova fase da campanha de Djalma para que todos tivessem acesso bens culturais foi a de “uma escola brasileira construída comdinheiro brasileiro”. E a escolha deste sloganestava intimamente ligado ao quadro político estadual da época, a aliança de 1960 já estava rompida e Djalma Maranhão estava em um campo oposto ao do governador Aluízio Alves. O pomo central da discórdia era o papel do programa “Aliança para o Progresso” no Rio Grandedo Norte e no Nordeste.

A professora Vanilda Pereira Paiva contou essa história em seu livro – Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista” (Civilização Brasileira, 1950. páginas 22 e 23): “Devemos lembrar aqui que a criação da Aliança Pelo Progresso em 1961 muito deveu à situação política vivida no campo nordestino no período, especialmente à multiplicação das Ligas Camponesas. Não por casualidade que no Brasil o escritório da USAID – United States Agency of International Development (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) foi montado na cidade de Recife, logo após a criação da Aliança para o Progresso.

A merenda escolar – muitas vezes, a principal refeição do dia. Na falta de copos, as crianças se apresentavam com pequenas latas. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

E sua política de “ajuda ao desenvolvimento” deixou ver, em seguida, a sua verdadeira face de “programas de impacto”, entrando o novo organismo em conflito com a SUDENE – Superintendência Para o Desenvolvimento do Nordeste, por realizar convênios diretamente com os governos estaduais considerados “receptivos” e aplicando seus recursos com base em critérios essencialmente políticos.

Segundo Riordan Roett, que trabalhou como membro da equipe da missão Aid no Nordeste, os “Estados Unidos viam a região como, um problema de segurança internacional e a assistência econômica externa como uma arma contra uma ameaça que o Brasil não reconhecia unanimemente”. Por isso, os planos de ajuda eram, em primeiro lugar, adaptados às “exigências da segurança dos Estados Unidos”, a fim de “derrotar a ameaça comunista” e, em abril de 1962, os Estados Unidos consideravam que a situação nordestina já ultrapassava o estado de que motivou a decisão inicial de oferecer ajuda econômica.

Consta que cada galpão de aulas se dividia em quatro salas. Nos turnos da manhã e da tarde estudam adolescentes e crianças. À noite a frequência era de adultos. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

Do ponto de vista de Washington — dia Roett — o Problema não era mais o desenvolvimento econômico e social, mas a sobrevivência política imediata deuma sociedade não comunista no Nordeste. Ora, não apenas as Ligas Camponesas eram vistas corno ameaçadoras. Também a vitória eleitoral das Frentes com participação de forças de esquerda não somente revelava a radicalização da vida política da região, como contribuía para levá-la mais longe.

Assim, preocupava a conquista das prefeituras de Recife e Natal, mas especialmente a possibilidade dos prefeitos daquelas cidades chegarem e governos dos respectivos Estados; um dos problemas dos norte-americanos era corno contribuir para evitá-lo. A interferência nas eleições através do financiamento dos candidatos antinacionalistas não era suficiente; havia que fortalecer os políticos “receptivos”.

A Biblioteca Popular Monteiro Lobato, no bairro das Rocas. Ess pequena biblioteca e uma outra denominada e Castro Alves emprestaram, em menos de seis meses de atuação, quase 80.000 volumes. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

Aluízio Alves — antigo quadro (leia LDN — não só era “receptivo”. como conjugava características ideais, por um lado ele era capaz de controlar os impulsos da radicalização das classes populares, através da prática de urna política ultramanipulatória e suficientemente ambicioso e conservador para não representar um perigo potencial de evolução para a esquerda. Por outro lado, embora aliado a algumas oligarquias tradicionais, ele representava a vitória deuma política de incentivo à industrialização no seu Estado. Tratava-se. pois, de ajudar a um governador “favorável ao progresso”.

As negociações entre Alves e a USAID começaram em agosto de 1962, mas devemos lembrar que logo que foi eleito, ele visitou Kennedy, em Washington, a convite do Departamento de Estado norte-americano, e recebeu promessa de ajuda. Esta era essencial para Alves, pois, representando a vitória de um espírito “desenvolvimentista” e travando uma dura luta contra as oligarquias udenistas, seu fortalecimento político e a realização de suas ambições ao nível federal estavam ligados à transformação económica do Estado eaos programas que ele conseguisse realizar na sua gestão.

Informação sobre o avanço do projeto no bairro das Rocas. Ai fundo podemos ver a Igreja Matriz da Sagrada Família. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

A obtenção de recursos parece ter sido facilitadapela aceitação, por parte do governador, de pressões norte-americanas para que entregasse a Secretaria de Educação ao jornalista Calazans Fernandes. Os interesses ianques e os de Alves acoplaram-se bem no que concerne ao tipo de programa aser lançado: os “programas de impacto” que deixam de lado projetos de ajuda propriamente económica e se concentram emáreas “visíveis” como saúde e educação (principalmente a construção de prédios escolares), serviam para assegurar à população ointeresse norte-americano e do governo do Estado pelo seu bem-estar.

O complemento para o programa de construções escolares era urna campanha de alfabetização que aumentasse o eleitorado sob controle do líder populista, fortalecendo suas bases eleitorais e diminuindo as chances de uma futura vitória do então prefeito de Natal.

Bambelô Aza Branca (Coco de roda) – O folclore era um dos focos da política cultural da Prefeitura de Natal na época. Realmente esse tipo de ação foi bastanter negligenciada em Natal nas últimas décadas. Fonte – Livro – De pé no chão também se aprende a ler (1961 – 1964) – Uma escola democrática – de Moacyr de Góes, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980.

Djalma Maranhão nunca deixou de denunciar esta ação da Aliança para oProgresso e, segundo Moacyr de Góes, propôs “uma escola brasileira com dinheiro brasileiro”. Em vez dos dólares, ele recebeu 50 mil cruzeiros do então Ministro da Educação, Paulo de Tarso, e com esse dinheiro foram construídos o Centro de Treinamento de Professores, na região do Baldo, e algumas poucas escolas de alvenaria nos bairros.

A REPRESSÃO

Toda essarica experiência de educação c de participação popular em Natal foi interrompida pelo golpe de 31 de março de 1964. Djalma foi pressionado pela repressão para renunciar, mas não o fez. A Prefeitura foi invadida e o prefeito preso. No quadro estadual, houve centenas de prisões na área rural (sindicatos c Ligas Camponesas), Correios, estrada de ferro, meio estudantil, sindicatos urbanos e na Prefeitura natalense. Nesta última, osetor mais atingido foi a Secretaria de Educação. Entre março e abril, foram presos o secretário Moacyr de Góes, o diretor de ensino Omar Fernandes Pimenta, a chefe de documentação Mailde Ferreira de Almeida, a diretora do CFP Margarida de Jesus Cortez, o diretor do Colégio Estadual Genilberto Paiva Campos, a vice-diretora do CFP, Maria Diva da Salete Lucena, o chefe de gabinete e ex-presidente da CFP, Francisco Floripes Ginani, o responsável pela interiorização da campanha, Josemá Azevedo, opresidente do Comitê Nacionalista das Rocas e responsável pelo sistema Paulo Freire na Colónia dos Pescadores, José Fernandes Machado, oprofessor do CFP e Presidente da União Estadual dos Estudantes – UEE, João Faustino Ferreira Neto.

Muitos outros colaboradores da Campanha também foram presos: Luiz Maranhão Filho, Aldo da Fonseca Tinoco, Luiz Gonzaga dos Santos, Hélio Xavier de Vasconcelos, Evlin Medeiros, Carlos Alberto de Lima, Maria Lali Carneiro, Nei Leandro de Castro, José Arruda Fialho, Paulo Frassinetti de Oliveira, Eurico Reis, Guaracy Queiroz de Oliveira, entre outros.

Outro importante educador, Marcos José de Castro Guerra, responsável na área do Estado pela experiência Paulo Freire em Angicos, foi preso nada menos de oito vezes, entre abril e dezembro de 1964.

O interrogatório dos presos — e a investigação de “comunismo” — foram feitos por dois policiais pernambucanos, Carlos Moura de Moraes Veras e José Domingos da Silva — nomeados pelo governador Aluízio Alves, através do decreto publicado em 17 de abril de 1964, no Diário Oficial e republicado no dia 29. Segundo constava na época, os policiais haviam feito curso nos Estados Unidos no FBI, o Federal Bureau of Investigation, ou Departamento Federal de Investigação.

Com o Golpe Militar de 1964, todas as atividades da Campanha foram encerradas. Com a deposição e prisão de Djalma Maranhão, assumiu como prefeito de Natal Tertius César Pires de Lima Rebelo, um oficial da Marinha do Brasil. Na sequência foram criadas várias comissões de inquérito especificas para a Secretaria de Educação.

Outros inquéritos civis e militares foram iniciados, os líderes da Campanha indiciados e presos, e seus materiais, documentos e parte da infraestrutura foram destruídos. Desse modo, teve fim uma das mais importantes propostas de democratização da Educação formal durante o século XX em Natal. Ao ser destruída pelo Golpe Militar, a Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler já tinha alfabetizado vinte e cinco mil crianças somente em Natal.

MAIS SOBRE A CAMPANHA “DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APRENDE A LER” VEJA NO TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.com.br/2013/04/21/de-pe-no-chao-tambem-se-aprende-a-ler/

O PAI DE ARIANO SUASSUNA – QUEM FOI JOÃO SUASSUNA, COMO SE DEU A SUA MORTE E COMO ESTE FATO INFLUENCIOU A VIDA E A OBRA DO SEU FILHO ARIANO

Rostand Medeiros – Escritor e pesquisador

Quando o escritor Ariano Suassuna faleceu em 23 de julho de 2014, muito de sua vida foi trazida ao conhecimento de milhares de brasileiros. Entre os muitos aspectos da biografia deste paraibano que marcou a história do Nordeste, um dos principais pontos abordados foi a importância da figura de seu pai, João Suassuna, em sua vida.

João Suassuna, pai de Ariano

Em inúmeros textos foi comentado, normalmente de maneira bem básica, que João Suassuna havia sido governador da Paraíba e que ele foi assassinado no ano de 1930, em meio às repercussões ocasionadas pela morte de João Pessoa e os acontecimentos políticos daquele período tumultuado da história do Brasil. Mas ao observamos com mais detalhes a figura do pai do grande escritor, que morreu quando Ariano tinha apenas três anos de idade, descobrimos uma história muito intensa, interessante e trágica!

Ariano Suassuna 1927 – 2014

O BACHAREL SERTANEJO

Há dez anos eu dei início a uma inacabada pesquisa por quatro estados nordestinos sobre a vida e morte do cangaceiro paraibano Chico Pereira. Esta motivação vinha do fato de ser imputado a este cangaceiro e seu bando, em fevereiro de 1927, o assalto a fazenda Rajada, em Acari, na região do Seridó Potiguar. Na época esta fazenda pertencia a Joaquim Paulino de Medeiros, meu bisavô e durante grande parte da minha juventude escutei inúmeras vezes os relatos deste episódio através de vários parentes queridos.

Fazenda Volta, zona rural de Catolé do Rocha, lugar onde viveram os primeiros membros da família Suassuna.

No desenrolar das pesquisas vi que a história de Francisco Pereira Dantas, o verdadeiro nome de Chico Pereira, possuía ligações com a trajetória política de João Suassuna. Até mesmo a sua morte, ocorrida em 1928 na zona rural de Currais Novos, em um rumoroso caso de violência estatal, que manchou a biografia do então governador potiguar Juvenal Lamartine de Farias, também possui ligações com o pai de Ariano.

Mas de maneira totalmente independente do fato de João Suassuna ser pai do autor de “Auto da Compadecida”, busquei conhecer mais sobre sua vida.

João Suassuna no início de sua carreira

Nascido João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, veio ao mundo em Catolé do Rocha, Paraíba, no dia 16 de janeiro de 1886. Anos depois estudou na conceituada e tradicional Faculdade de Direito de Recife, onde se bacharelou em 1909. O início de sua carreira como advogado foi em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Depois João Suassuna assumiu o posto de juiz nas cidades de Umbuzeiro e Campina Grande, ambas na Paraíba. Na sequência foi Procurador da Fazenda Nacional no seu estado natal.

Em 1 de dezembro de 1913, quando tinha 27 anos, casou com Rita de Cássia Vilar Suassuna, então com 17 anos, a quem chamava carinhosamente de Ritinha. Quando Castro Pinto esteve a frente do executivo paraibano (1912-1915), João Suassuna assumiu cargos de importância na máquina governamental.

Casa onde nasceu João Suassuna em Catolé do Rocha, que na época da foto era o Grupo Escolar Antônio Soares. Atualmente essa antiga casa não existe mais, foi demolida para a construção da nova sede da prefeitura dessa cidade paraibana.

Em 1917, após este período de governo, voltou a ser juiz, desta vez na cidade de Monteiro (PB). Foi nesta época que João Suassuna adquiriu uma propriedade chamada “Malhada da onça”, pra onde seguia ocasionalmente. A fazenda ficava em Desterro, local de nascimento de sua mulher, na época uma comunidade pertencente à cidade paraibana de Teixeira. Em 1919 deixou a magistratura e foi trabalhar no antigo Instituto Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS e nesta época adquiriu a Fazenda Acauã, na época localizada na zona rural de cidade de Sousa[1].

Fazenda Acauã na atualidade – Fonte – http://artenapedrapolida.blogspot.com.br/

No começo da década de 1920, João Suassuna foi convidado pelo então governador Sólon de Lucena para assumir a Inspetoria do Tesouro do Estado, depois foi eleito deputado federal. Estava no exercício do mandato parlamentar no Rio de Janeiro, então Capital Federal, quando foi eleito “Presidente da Parahyba”, o que corresponde hoje ao cargo de governador.

O mandato de João Suassuna se caracterizou em grande parte por uma valorização das ações desenvolvidas pelos grandes latifundiários de terras do interior, possuidores de grandes riquezas baseadas no cultivo do algodão e na pecuária. Estes “coronéis” atuavam através de uma estrutura política arcaica, que se valia entre outras coisas do mandonismo, da utilização de grupo de jagunços armados, da conivência com grupos de cangaceiros e outras ações.

Foi nesta época, no palácio do governo da Paraíba, que servia de residência oficial do chefe do executivo daquele estado, mais precisamente no dia 16 de junho de 1927, que nasceu um dos nove filhos do casal João e Rita. Foi batizado como Ariano.

João Pessoa

João Suassuna entregou o cargo em 22 de outubro de 1928 a João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque e assumiu novamente uma das vagas de deputado federal pela Paraíba.

PROBLEMAS À VISTA!

João Pessoa discordava da forma como o grupo político que o elegera conduzia a política do seu estado e logo surgiram sérias divergências com os latifundiários. Um dos maiores embates estava na cobrança de taxas de exportação do algodão. Por esta época os coronéis exportavam o produto principalmente através do porto de Recife, provocando enormes perdas de divisas tributárias para a Paraíba. Procurando evitar esta sangria financeira e efetivamente cobrar os coronéis, João Pessoa implantou diversos postos de fiscalização nas fronteiras da Paraíba, irritando de tal forma estes caudilhos, que pejorativamente passaram a chamar o governador de “João Cancela”.

Os embates políticos entre o governador e os coronéis foram crescendo. A maior liderança entre estes poderosos foi sem dúvida o coronel José Pereira Lima. Verdadeiro imperador da região oeste da Paraíba, na área da fronteira com Pernambuco, tendo como base, a cidade de Princesa e este discordava com veemência das ações de João Pessoa. Do embate entre estes dois homens, resultou um dos maiores conflitos armados do Brasil Republicano.

Foto de 1930 – Sentado vemos Marcolino Florentino Diniz (conhecido como Marcolino Pereira Diniz, um dos líderes de Princesa, que era sobrinho e cunhado do coronel José Pereira. Em pé, da esquerda para direita, temos Pedro Inácio (proprietário de terras em Pernambuco), João Pereira e Pacífico Lopes (proprietários rurais), Joaquim Inácio (grande proprietário de terras no município pernambucano de Triunfo) e Chôcho (proprietário rural na localidade de Irerê, município de Princesa). Agradeço a atenção e participação de Natércia Suassuna Dutra, sobrinha-neta de João Suassuna, que enviou as informações aqui colocadas.

A contenda teve início em 28 de fevereiro de 1930, quando ocorreu a invasão da cidade de Teixeira por parte da polícia paraibana, com o aprisionamento dos membros da conceituada família Dantas, ligada por profundos laços de parentescos e interesses ao coronel José Pereira. Apesar de governador João Pessoa não contar com o apoio do Palácio do Catete, onde o titular, Washington Luís não viabilizou uma efetiva ajuda às forças policiais paraibanas, o governador paraibano foi à luta.

Em meio aos conflitos da chamada “Guerra de Princesa”, no dia 26 de julho de 1930, um sábado, João Pessoa estava na Confeitaria Glória, em Recife, quando foi atingido por dois disparos desfechados pelo advogado paraibano João Duarte Dantas.

Da mesma família Dantas da região de Teixeira, consta que após realizar uma viagem João Dantas encontrou seu escritório na capital paraibana violado. Entre os objetos roubados estavam cartas e poemas eróticos, além de fotografias sensuais, trocados com a sua amante, a poetisa Anayde Beiriz. Estes materiais teriam sido roubados por membros da polícia paraibana, sob as ordens de João Pessoa, sendo publicados e colocados em locais públicos. Diante dessa exibição João Dantas foi à confeitaria vingar a sua privacidade violada[2].

João Duarte Dantas

Após o crime, João Pessoa se tornou um grande herói para o povo paraibano e seu assassinato foi o estopim da conhecida Revolução de 1930. Neste meio tempo cresceu descontroladamente o radicalismo na Paraíba e muito sangue correu[3].

A PARTIDA

Por ser João Suassuna casado com uma prima de João Dantas, ter sido eleito deputado federal com o apoio dos Dantas da cidade de Teixeira e do coronel José Pereira, o pai de Ariano ficou na mira dos familiares, amigos e correligionários do falecido João Pessoa.

No dia da morte do então governador paraibano na Confeitaria Gloria, João Suassuna se encontrava no Recife. Já sua família, inclusive o menino Ariano de três anos, estava na capital paraibana, em uma casa alugada ao Dr. Mariano Falcão, na Rua das Trincheiras. Diante do aumento da tensão na capital, Rita Suassuna e seus nove filhos vão se refugiar no 22º Batalhão de Caçadores, ou 22º BC, atual 15º Batalhão de Infantaria Motorizada. Em pouco tempo João Suassuna conseguiu apoio do rico empresário Frederico João Lundgren e consegue apoio do Exército para trazer sua família para uma casa mobiliada, pertencente a este empresário e localizada na cidade pernambucana de Paulista. Um dado interessante foi que a escolta da família Suassuna era comandada pelo tenente Agildo Barata[4].  

João Pessoa morto

O deputado João Suassuna recebeu a comunicação que havia sido denunciado como cúmplice no assassinato de João Pessoa e teria que ir ao Rio de Janeiro para se defender na Câmara dos Deputados. No Porto do Recife ele embarcou no paquete “Zelândia” e lá estava toda a sua família para as despedidas. Mesmo tendo naquela ocasião apenas três anos de idade, Ariano Vilar Suassuna sempre relatou ao longo de sua vida que jamais esqueceu a partida do seu pai para a Capital Federal, pois aquela foi a última ocasião que o viu com vida. 

João Suassuna chegou a Capital Federal no dia 22 de outubro de 1930, se apresentou a Câmara Federal. Lá soube que tramitava na comissão de constituição e justiça um pedido do deputado pernambucano João Paes de Carvalho Barros, para que fosse concedida uma licença para abrir uma investigação sobre a participação de Suassuna como cúmplice no assassinato de João Pessoa. Logo o pedido foi indeferido pelo presidente da casa, o deputado federal João Santos[5].

TEMPO DE REVOLTA

Não tarda e a convulsão política eclode. A conhecida Revolução de 1930 teve seu início em 03 de outubro de 1930, uma sexta feira, com movimentos sincronizados que foram levados a efeito no Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais e Paraíba.

João Suassuna (com papéis e na mão), tendo ao seu lado esquerdo Washington Luís no Porto de Cabedelo, Paraíba.

Mesmo diante desta situação, o deputado João Suassuna se coloca ao lado do presidente Washington Luís, junto com mais de uma centena de políticos. Todos se encontraram na tarde do dia 4 de outubro no Palácio da Guanabara, atual sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro, onde morava o mandatário que em breve seria deposto[6].

Os dias seguiam com mais notícias preocupantes vindas da Paraíba e de Pernambuco. Na capital paraibana, na madrugada do dia 4 de outubro, poucas horas após o movimento ter-se iniciado, os revolucionários atacaram o 22º BC e ali morreu o general legalista Alberto Lavenère Wanderley, comandante da 7ª Região Militar. Já o 23º BC da cidade de Sousa, opôs resistência aos revolucionários. Logo em seguida sublevaram-se o 25º BC de Teresina, o 24º BC de São Luís e o 29º BC de Natal.

Revolucionários de 1930 – Fonte – ultimosegundo.ig.com.br

Em Recife o movimento encontrou uma resistência maior por parte das forças legalistas, que haviam se colocado de prontidão ao surgirem notícias da revolução. A vitória dos revolucionários, contudo, foi garantida pelo apoio popular à insurreição, tendo ocorrido, inclusive, distribuição de armas aos populares. Já na manhã do dia 5 de outubro, o movimento havia triunfado em Pernambuco, antes mesmo que os reforços provenientes da Paraíba chegassem a Recife. No dia seguinte a posição dos revoltosos se consolidou quando o presidente do estado, Estácio Coimbra, abandonou o governo[7].

TIRO MORTAL

Enquanto as notícias das sublevações e lutas pelo Brasil afora preocupavam os cariocas e o governo Washington Luís seguia para seus últimos dias, João Suassuna se dividia entre saber notícias de sua família e a atividade parlamentar.

Nesta época o deputado paraibano morava no quarto 63, do Novo Hotel Belo Horizonte, localizado na Rua Riachuelo, 130, no bairro da Lapa.

Rua Riachuelo, em Botafogo, Rio de Janeiro – Fonte – http://www.rioquepassou.com.br

Suassuna tinha o hábito de sempre descer ao “hall” principal para ler os jornais ainda pela manhã. Naquela quinta feira, 9 de outubro de 1930, ele estava nesta atividade quando apareceu uma visita. Era o farmacêutico paraibano Caio Gusmão, que há quatro meses residia no Rio. Eram cerca de oito e quarenta da manhã, quando o deputado decidiu seguir junto com seu visitante para o Palácio Tiradentes, sede da Câmara Federal. Estava vestido de paletó de casimira cinza e sapatos pretos.

Os dois caminharam um bom trecho pela Rua Riachuelo, quando Suassuna  olhou para o céu e comentou…

 – Parece que vai chover e vou buscar minha capa no hotel!

Deu meia volta, avançou alguns passos, mas nesse momento foi atingido por um disparo de arma de fogo. Suassuna tentou sacar um revólver “Colt” que conduzia, mas caiu no chão já morto por apenas aquele único tiro. O fato ocorreu na altura do número 111, próximo a esquina com a Rua dos Inválidos[9].

Caio Gusmão nada pode fazer, o corpo ficou em decúbito dorsal, com o revólver do falecido ao lado e a sua mão manchada de sangue[10].

Logo encheu de gente. Rapidinho se espalhou a notícia sobre quem havia sofrido aquele atentado e o espanto dos transeuntes foi geral. Populares chamaram a “Assistência”, o SAMU da época, que logo chegou, mas nada puderam fazer em favor de João Suassuna.

Em pouco tempo o delegado do 12º Distrito Policial, o Dr. Eunápio Hardman Castello Branco, em companhia do comissário Antônio Pizarro de Morais, chegou ao local e depois vieram várias outras autoridades policiais. Das primeiras investigações descobriram que o assassino fugiu pela Rua Paula Matos, em direção ao Morro de Santa Tereza. Foi comentado aos policiais que o atirador possuía estatura mediana, vestia paletó branco, usava boné de casimira negra e calçava “tennis”[11].

Desde os primeiros momentos que os jornais cariocas apontavam que a razão do assassinato de João Suassuna era vingança pela morte de Joao Pessoa e mesmo com revoltas pipocando no país, os revolucionários de 1930 ainda não tinham conquistado a Capital Federal. Começou então a caçada ao assassino.

Inicialmente em uma vila, um policial encontrou um revólver de grosso calibre do tipo “buldogue” e uma pistola modelo “Liberty”. Além de toda a roupa utilizada pelo pistoleiro na hora do crime. Logo os investigadores perceberam pelas pistas deixadas que um cúmplice estava dando apoio ao matador.

Fosse pela importância de João Suassuna, ou por eficiência (ou uma soma destes dois fatores), o certo é que ás onze e meia da noite do dia 9 de outubro, policiais da 2ª Delegacia Auxiliar capturaram o assassino.

Este se chamava Miguel Alves de Souza e havia sido preso no grande sobrado que pertencia ao engenheiro Joaquim de Souza Leão, localizado na Rua São Clemente, 261, bairro de Botafogo, a poucos metros da tradicional Igreja e Colégio Santo Inácio. Assim foi preso Miguel Alves confessou o crime[12].

Este era paraibano de Alagoa Grande, tinha 30 anos, havia chegado ao Rio pelo vapor “Itapuy” no dia 18 de julho de 1929, trabalhava como tratador de cavalos de cavalos e depois se tornou empregado do engenheiro Joaquim de Souza Leão.

Em uma entrevista concedida ao jornalista Ricardo Farias, publicada no caderno especial do jornal paraibano “A União”, edição de 12 de fevereiro de 2013, página 3, Ariano Suassuna comentou que o assassino de seu pai foi preso na casa do concunhado de João Pessoa[13].

Provavelmente os algozes de João Suassuna tinham a ideia que a polícia carioca jamais concluiria que na casa de gente tão graúda, como a Dr. Joaquim de Souza Leão, encontrariam um elemento que havia matado covardemente um homem pelas costas.

TRAMA ASSASSINA

No dia 10 de outubro, enquanto as autoridades “apertavam” Miguel para ele dar conta do assassinato, no Senado Federal, para onde seguiu o corpo de João Suassuna, ocorreram várias homenagens.

O ex-governador potiguar, então senador, José Augusto Bezerra de Medeiros, proferiu um interessante discurso sobre a vida do falecido político paraibano. Houve uma missa de corpo presente, várias autoridades estiveram no velório e foram colocadas muitas coroas de flores. João Suassuna foi enterrado no túmulo número 611, no cemitério São João Batista, em Botafogo. Mas nem sua mulher e nenhum de seus nove filhos estiveram presentes!

Enquanto isso na delegacia, Miguel Alves de Souza confessou que recebeu o apoio de outro paraibano chamado Antônio Granjeiro. Este era carteiro dos Correios e Telégrafos no Rio, lhe forneceu as armas e apoiou na sua fuga. Granjeiro foi logo preso[14].

Os dois comparsas entregaram então Otacílio de Lucena Montenegro, um funcionário do Tribunal de Contas, como a pessoa que procurou Granjeiro, lhe deu o dinheiro para a compra das armas do crime e a ordem para procurar alguém disposto a apertar o gatilho.

E quem era Otacílio de Lucena Montenegro?

Na mesma entrevista concedida ao jornalista Ricardo Farias, do jornal paraibano “A União”, em fevereiro de 2013, Ariano Suassuna comentou que foi Otacílio quem intermediou junto a Granjeiro o assassinato de seu pai e que Otacílio era sobrinho do então coronel do Exército Aristarco Pessoa, irmão de João Pessoa[15].

Demorou mais alguns dias para prenderem Otacílio, mas ele foi finalmente detido na Tijuca. Para dirimir dúvidas, o investigador Silvio Terra fez uma acareação na 2ª Delegacia Auxiliar entre Otacílio, Granjeiro e Miguel Alves e para o policial ficou patente a participação de Otacílio. Mas este negou peremptoriamente quaqlquer envolvimento.

Para os policiais Antônio Granjeiro, homem pobre e com numerosa família (tinha onze filhos), era considerado “doentio e muito sugestionável” e as preleções de Otacílio, que entre outras coisas dizia “-Será que não existe um paraibano que seja capaz de vingar a morte de João Pessoa?” surtiram efeito desejado. Granjeiro foi atrás de Miguel e o crime ocorreu.

Entre outras acusações Granjeiro foi apontado como o homem que seguiu João Suassuna, conheceu sua rotina, comprou as duas armas usadas no crime e chegou a enviá-las para um armeiro quando foram detectadas defeitos nelas. Foi ele quem adquiriu a munição e no dia 7 de outubro, dois dias antes do crime, foi com Miguel Alves praticar tiro ao alvo nas margens da hoje superpovoada lagoa Rodrigo de Freitas, próximo ao Jóquei Clube do Rio.

Os três acusados, entre estes um carteiro e um tratador de animais, foram defendidos pelo ninguém menos que advogado Clóvis Dunshee de Abranches, considerado um dos maiores criminalistas do Brasil na época e famoso pelo rumoroso caso Sylvia Seraphin Thibau[16].

Mas nesta época nem foi tão necessário a participação de um jurista tão renomado para defender estes homens, pois logo os revolucionários chegaram ao Rio de Janeiro, depuseram o presidente e assumiram o poder. No vácuo institucional, em meio às alegrias da vitória, os três homens responsáveis pela morte de João Suassuna foram soltos[17].

EM BUSCA DE JUSTIÇA

Foi Rita Suassuna que não deixou a morte de seu marido cair no esquecimento.

Tempos depois ela enviou uma carta extremamente intensa e emocionada ao então Presidente Getúlio Vargas e este mandou reabrir o caso. Em pouco tempo a morte de João Suassuna voltou às páginas dos periódicos cariocas.

Antônio Granjeiro, esposa e filhos em 1933.

Foram decretadas as prisões de Antônio Granjeiro e Miguel Alves. O primeiro foi preso em casa, no Rio. O segundo foi capturado na Paraíba e recambiado de navio para a Capital Federal[18].

Já os autos do processo simplesmente haviam sumido. Para completar o quadro os jornais noticiaram que novos depoimentos alteraram a situação de Octacílio de Lucena Montenegro e ele sequer prestou mais algum depoimento[19].

O promotor Francisco Belizário Velloso Rabello se preparou para o julgamento acusando os réus de “assassinato premeditado e sem direito a defesa”. Apoiando a promotoria, a pedido de Rita Suassuna, estava o advogado e ex-senador paraibano José Gaudêncio[20].

Já o advogado Clóvis Dunshee de Abranches apresentou em favor dos réus a alegação que o crime por eles cometido “ocorreu em um período de intensa perturbação política devido à morte de João Pessoa” e isso gerou nos assassinos de João Suassuna “uma forte perturbação dos sentidos e da inteligência”[21].

O advogado Clovis Dunshee de Abranches.

Visando reforçar a defesa, o advogado Dunshee de Abranches conseguiu do “Centro Paraybano” no Rio de Janeiro, entidade de apoio aos paraibanos que viviam na Capital Federal, mas também servia de local de encontros políticos, uma carta em defesa dos réus. Produzida por Arthur Victor, presidente da instituição, a carta é uma longa peça acusatória contra João Suassuna, que mostra bem os processos da política radical daqueles tempos.

Entre outras coisas está descrito que Irineu José do Nascimento, padrasto de Miguel Alves, e um 1º sargento reformado da polícia paraibana, havia sido fuzilado “por ordem de João Suassuna”, deixando sua mãe e três irmãos no desamparo. Sua família foi obrigada a fugir para Pernambuco, onde sofreram “sérias perseguições” por parte de Estácio Coimbra, então governador daquele estado.

Já Antônio Granjeiro nasceu em 1888, chegou ao Rio em 1912, entrou nos Correios e Telégrafos e foi transferido para Diamantina (MG). Depois de retornar para o Rio começou a participar das atividades do “Centro Paraybano” e na época que iniciou os movimentos políticos contra o governo Washington Luís, o destemido Granjeiro era uma espécie de segurança e forte entusiasta pela causa liberal.

A carta do presidente do “Centro Paraybano” menciona um episódio envolvendo Granjeiro, na época que o corpo de João Pessoa chegou para ser enterrado ao Rio de Janeiro. Quando da passagem do féretro por uma grande avenida, em meio à multidão, o carteiro gritou a pleno pulmões um “De joelhos!” e docilmente se ajoelhou diante do caixão do governador assassinado e seu gesto seguido por muitos presentes. Aparentemente isso o tornou uma figura de destaque do “Centro Paraybano”[22].

O julgamento começou ao meio dia de uma quarta feira, 18 de novembro de 1931, sob a presidência do juiz Nelson Hungria. O corpo de jurados era formado por sete homens e, apesar da atenção que aquele júri despertava entre os cariocas, tudo ocorreu de forma rápida e os dois réus foram absolvidos por 5 a 2 e a promotoria recorreu[23].

NOVO JULGAMENTO

Em 8 de janeiro de 1933 houve um novo julgamento, desta vez sendo presidido pelo juiz Antônio Eugênio Magarinos Torres, tendo como promotor Rufino de Loy e novamente a frente da defesa o competente Clóvis Dunshee de Abranches. Percebemos que, tal como o julgamento ocorrido em 1931, este segundo embate jurídico atraiu a atenção dos cariocas, sendo francamente noticiado na imprensa local.

O juiz Arthur Eugênio Magarinos Torres Filho. Nasceu em Campos (RJ) em 16 de janeiro de 1889 e faleceu em 8 de julho de 1960 – Fonte – http://autorescampistas.blogspot.com.br/

O promotor Rufino fez uma longa acusação. Já o advogado de defesa, com enorme desenvoltura, busca destruir todos os argumentos da promotoria. Mostrou com extrema eloquência a sofrida história de vida dos réus, apontando-os como “nordestinos pobres”. Trás para o tribunal o clima de revolta e instabilidade política de outubro de 1930, torna a ler a carta do “Centro Paraybano” e coloca os réus fora da classe dos “criminosos vulgares”. Cita vários juristas, psiquiatras e médicos para explicar como as emoções políticas tinha haver com o assassinato de João Suassuna. Ele relembrou a epopeia dos “18 do Forte”, fazendo uma relação deste caso para justificar o clima emocional dos réus diante da morte de João Pessoa[24].

Dunshee de Abranches fez até mesmo considerações para o crime de regicídio. Em determinada hora, como era praxe no tribunal no Rio, houve a parada para o “chá”[25].

Depois do retorno e finalização dos debates, os jurados se recolheram para decidir o futuro dos réus. Em 30 minutos trouxeram para o juiz Magarinos Torres o “Veredictum”, condenando Miguel Aves de Souza há seis anos e Antônio Granjeiro a quatro anos de detenção[26].

O julgamento teve outros desdobramentos. A família Pessoa, através do filho de João Pessoa, o jornalista Epitácio Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, abriu fogo com suas baterias jurídicas, processando o promotor Rufino de Loy. Entre outras coisas consideradas um acinte pela família e ditas pelo promotor na tribuna, estava que os réus “eram conhecidos da família Pessoa”. Não sei o resultado deste processo.

A TROCA

Evidentemente que para Rita Suassuna o resultado do julgamento foi decepcionante, uma verdadeira lástima. Mas o pior foi a viúva de João Suassuna saber que Antônio Granjeiro passou pouco mais de um ano na cadeia e ainda conseguiu que os seus “serviços” pela causa liberal fossem “plenamente recompensados” com a sua liberdade. Mesmo condenado no tribunal, este verdadeiro “alpinista político”, que queria ascensão com o sangue alheio, foi reincorporado aos Correios e Telégrafos em junho de 1934 e voltou a sua primitiva função de carteiro no Rio de Janeiro.

Já o assassino Miguel Alves de Souza se perdeu no “oco do mundo”!

Na época a família Pessoa foi muito eficaz em criar em torno da morte de João Pessoa, toda uma condição de perpetuação da memória desta família na Paraíba. Começa que a atual denominação da capital paraibana é “João Pessoa”, fato único entre as capitais estaduais brasileiras. Depois basta fazer uma pequena pesquisa no Google e se percebe o alto número de ruas e logradouros com nomes e sobrenomes ligados a família do governador morto na Confeitaria Glória.

Foto provavelmente da década de 1960, onde mostr Rita Suassuna e seus filhos, da esquerda para direita, Ariano, Saulo, João, Lucas e Marcos.

Já Rita Suassuna, depois de várias mudanças e provações, levou seus filhos para a cidade de Taperoá, no sertão paraibano. Ali, em uma região onde isso era a praxe, lutou para que seus cinco filhos homens jamais partissem para vingar a morte do pai. Entretanto a família de João Suassuna sempre perpetuou a sua memória e isso se incorporou no jovem Ariano, mesmo com tão pouca idade na ocasião da morte de seu pai.

Mesmo sem saber mensurar o quanto o peso da morte de João Suassuna contribuiu para moldar o Ariano Suassuna escritor, eu creio que de certa maneira ele realizou a sua “vingança” através dos seus escritos.

Se a família Pessoa buscou se perpetuar em nomes de ruas e logradouros na Paraíba, certamente Ariano se imortalizou na mente e nos corações de milhões de paraibanos, nordestinos e brasileiros com as suas obras. O autor deste trabalho acredita que por muitas décadas e séculos no futuro, o nome e as obras de Ariano Suassuna serão obrigatórios para o entendimento do Nordeste.

Contudo, eu tenho certeza que ele, Ariano Vilar Suassuna, trocaria tudo o que conseguiu com as letras para ter tido a oportunidade de ter visto seu pai conhecer seus filhos, ter acompanhado a sua vida e estar ao lado de João Suassuna no dia de sua morte. 

VEJA NO TOK DE HISTÓRIA OUTRAS HISTÓRIAS SOBRE A PARAÍBA DAS DÉCADAS DE 1920 E 1930 

A REPERCUSSÃO DOS ATAQUES DO CANGACEIRO SINHÔ PEREIRA A PARAÍBA E A INFORMAÇÃO SE LAMPIÃO ESTEVE EM TERRAS POTIGUARES EM 1922 – https://tokdehistoria.com.br/2013/03/15/noticia-ruim-chega-ligeiro/

A HISTÓRIA DO TIROTEIO NO SÍTIO TATAÍRA E A INCRÍVEL RESISTÊNCIA DO CANGACEIRO MEIA-NOITE –https://tokdehistoria.com.br/2013/08/14/a-historia-do-tiroteio-no-sitio-tataira-e-a-incrivel-resistencia-do-cangaceiro-meia-noite/

A BATALHA DO CASARÃO DOS PATOS – https://tokdehistoria.com.br/2011/06/07/a-batalha-do-casarao-dos-patos/

BENTO QUIRINO, A VIOLÊNCIA NO SERTÃO DE OUTRORA E A BUSCA PELA HISTÓRIA

NOTAS  

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[1] Em 1945 o antigo IFOCS passou a se chamar Departamento Nacional de Obras Contras as Secas – DNOCS. A Fazenda Acauã é um importante patrimônio histórico rural paraibano. Com 300 anos de história, é a mais antiga fazenda de gado e algodão do Sertão da Paraíba. Está localizado a 409 quilômetros da capital, atualmente se localiza na zona rural da cidade de Aparecida. Ariano Suassuna morou no casarão, durante parte de sua infância, e se inspirou em Acauã para escrever suas obras. Ver http://sednemmendes.blogspot.com.br/2013/05/visitando-o-sitio-historico-da-fazenda.html

[2] Segundo material existente no site www.http//pb1.com.br , o vereador Fernando Milanez, sobrinho-neto de João Pessoa, afirmou que a versão de que o assassinato teria sido um crime passional é um “absurdo”, porque, segundo ele, João Pessoa nem conhecia João Duarte Dantas. Para a família de João Pessoa, o ex-presidente foi vítima de ambição e mentira, e a causa do assassinato teria sido política. Independente do motivo, João Dantas, junto ao seu cunhado, Augusto Caldas, que não havia participado do crime, foram presos na Casa de Detenção do Recife. Em 6 de outubro de 1930, nos primeiros dias da Revolução de 1930, os dois teriam sido assassinados. A versão oficial indicou suicídio. Ver – http://pb1.com.br/noticias_dentro.php?pt1=898

[3] No início de 1929 ainda estava em vigência a conhecida “política do café com leite”, em que políticos de Minas Gerais e de São Paulo se alternavam na presidência da república. O então Presidente Washington Luís, indicou o governador São Paulo, Júlio Prestes, como seu sucessor. Apenas três estados negaram o apoio a Prestes: Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Os três se uniram a políticos de oposição de diversos estados e formaram, em agosto de 1929, um grupo de oposição denominado Aliança Liberal. No dia 20 de setembro do mesmo ano foram anunciados os candidatos oposicionistas às eleições presidenciais. Getúlio Vargas seria candidato a Presidente do Brasil e João Pessoa seria o candidato a vice-presidente. Após perder as eleições, que foram realizadas em março de 1930, a Aliança Liberal alegou que a vitória de Prestes era decorrente de fraudes. Ver – http://pb1.com.br/noticias_dentro.php?pt1=898

[4] O empresário pernambucano Frederico João Lundgren (1879-1946) foi uma espécie de desbravador em seu tempo. Tratado como coronel, gerou 22 filhos, teve várias mulheres e se tornou uma espécie de lenda do comércio ao levar tecidos e outras mercadorias a dezenas de pequenas cidades do interior do país. Herdeiro de uma tecelagem, Lundgren teve, em 1908, a ideia de criar uma cadeia de varejo pela qual pudesse vender seus produtos. Era o começo das conhecidas Casas Pernambucanas. Ver – http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0726/noticias/a-sobrevivente-m0053283 e https://tokdehistoria.com.br/2014/05/12/oxente-hitler-arquivos-e-documentos-mostram-que-os-nazistas-estiveram-na-paraiba/

[5] Ver jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 4 de outubro de 1930, página 4.

[6] Ver jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 5 de outubro de 1930, na 1ª página. Apesar do Palácio do Catete ser a antiga residência dos Presidentes da República, quando tomou posse Washington Luís decidiu residir no Palácio da Guanabara.

[7] Ver – http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_1930

[9] Este local fica bem próximo a atual sede da renomada Editora Folha Dirigida.

[10] Os jornais listam que além de sua aliança, de 200 mil réis em dinheiro, um relógio e abotoaduras de ouro, João Suassuna levava a licença para portar sua arma e alguns papéis. Entre estes uma carta fechada para a esposa.

[11] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 9 de outubro de 1930, 1ª página e o jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 10 de outubro de 1930, página 2. Desde os primeiros momentos as investigações ficaram a cargo do investigador Silvio Terra, figura lendária da polícia investigativa carioca, cujo nome atualmente batiza a Academia de Polícia Civil do Rio de Janeiro.

[12] Joaquim Souza Leão era um puro exemplo de um membro oriundo da mais alta elite agrária açucareira pernambucana. Era sobrinho de desembargador, de senador do Império, do Visconde de Campo Alegre e filho de Antônio de Souza Leão, rico fazendeiro pernambucano da região de Moreno e que havia recebido do Imperador Pedro II o título de Barão de Morenos. Um de seus filhos foi embaixador. Ver – http://morenoengenho.blogspot.com.br/

[13] Ver – http://issuu.com/auniao/docs/caderno_especial_parte_1

[14] Ver o jornal “O Paiz”, Rio de Janeiro, edição de 11 de outubro de 1930, página 2 e o jornal “Diário carioca”, Rio de Janeiro, edição de 7 de janeiro de 1933, 1ª página.

[15] Segundo Ariano Suassuna, na década de 1950, quando ele entrou na Faculdade de Direito de Recife, conheceu o filho do Joaquim Pessoa Cavalcante de Albuquerque, irmão de João Pessoa, que isentou o pai da morte de João Suassuna. Mas não o tio Aristarco Pessoa e nem a participação de Octacílio de Lucena Montenegro no crime. Ver – http://issuu.com/auniao/docs/caderno_especial_parte_1

[16] Sylvia Seraphin Thibau era uma jornalista, escritora e poetisa, era casada com o médico João Thibau Júnior e mãe de dois filhos. Sylvia foi acusada pelo jornal carioca “A Crítica” de ter traído o marido, mantendo um caso com o também médico Manuel Dias de Abreu, mais tarde inventor da abreugrafia. Irritada, ela foi à redação do jornal armada, para matar o editor, Mario Rodrigues, no dia 26 de novembro de 1929. Como Mário não estava no jornal, Sylvia acabou atirando no filho dele, o também jornalista Roberto. No local, assistindo ao crime, estava o irmão da vítima, Nelson Rodrigues, então com 17 anos. O processo criminal foi acompanhado por uma feroz campanha promovida pelo jornal, que chamava a ré de “literata do Mangue” e “cadela das pernas felpudas”. Seu julgamento foi o primeiro no Brasil a ser transmitido ao vivo pelo rádio. O advogado Clovis Dunshee de Abranches alegou que Sylvia havia se descontrolado por ter sido caluniada e conseguiu a sua absolvição. Ela suicidou-se em 1936, depois de abandonada por um tenente-aviador por quem havia se apaixonado. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADlvia_Serafim_Thibau

[17] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 4 de novembro de 1930, página 9. Neste jornal temos uma longa declaração de Silvio Terra, se defendendo de acusações feitas por Octacílio de Lucena Montenegro através dos jornais. As acusações de Octávio apontam que este havia sido torturado pelos policiais para confessar sua participação na morte de Ariano Suassuna. Não encontrei a edição de jornal com a publicação de Octávio contra Silvio Terra. Mas encontrei a carta de defesa do investigador aos seus superiores e publicada nos jornais do Rio. Este investigador é muito claro, direto e contundente em suas afirmativas, além de negar veementemente o uso de tortura contra os detidos. O então coronel Bertoldo Klinger, líder revolucionário, elogiou o posicionamento do policial. Ver também “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de julho de 1931, página 3.

[18] Miguel Alves estava incluso no crime previsto no Artigo 294, parágrafo 1º, com agravantes do Artigo 39, parágrafos 2º, 7º, 8º e 13º. Já Granjeiro era acusado nos mesmos artigos, acrescentando o artigo 18, parágrafo 3º. Lembrar que estas acusações faziam parte Código Penal anterior ao que atualmente está em vigência. Ver jornal “Diário de Notícias”, Rio de Janeiro, edição de 7 de janeiro de 1933, 1ª página.

[19] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de julho de 1931, página 3. Os jornais da época não informam quem, quando e onde ocorreram estes depoimentos que livraram Octacílio de Lucena Montenegro deste processo. Nem comentam nada mais sobre o sumiço dos autos e sequer é mais comentado por qualquer razão o nome do Joaquim de Souza Leão como presumidamente envolvido no crime. Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de julho de 1931, página 3.

[20] Ver jornal “A Esquerda”, Rio de Janeiro, edição de 21 de setembro de 1931, página 4.

[21] Ver jornal “Diário de Notícias”, Rio de Janeiro, edição de 19 de agosto de 1931, página 2.

[22] Ver jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de 11 de setembro de 1931, página 3. Por mais estranha que esta história de ficar de joelhos diante do caixão de João Pessoa possa parecer, naquela época, naquelas circunstâncias, isso aconteceu de verdade. Na capital paraibana o nível de fanatismo em 1930 era tal, que se alguém tocasse em um local público uma certa música criada para homenagear o morto ilustre, e alguém gritasse um sonoro “De joelhos!”, aí de quem não cumprisse a ordem. Ou era surrado, ou preso! Em outros estados também ocorreram muitas manifestações radicais. No Rio Grande do Norte, como consequência direta das mudanças das mudanças políticas da Revolução de 1930, a campanha estadual de 1934 foi uma das mais violentas da história política potiguar, com vários mortos em meio a inúmeras arbitrariedades.

[23] Ver jornal “Diário Carioca”, Rio de Janeiro, edição de 19 de novembro de 1931, página 3. É interessante comentar sobre o juiz Nelson Hungria Hoffbauer. Este nasceu em Além Paraíba, Minas Gerais, em 1891, iniciou sua vida pública como promotor de Rio Pomba, em seu estado natal. Nomeado juiz em 1924, foi magistrado por 46 anos, tendo sido nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal em 1951, do qual chegou à presidência e se aposentou em 1961. Hungria é tido como um dos luminares de nossa cultura jurídico-penal, onde deixou escrito 17 obras e 150 monografias. Foi considerado o líder intelectual da redação do Código Penal de 1940, além de ter participado da elaboração do Código de Processo Penal, da Lei de Contravenções Penais e ainda da Lei de Economia Popular. Seus Comentários ao Código Penal (8 volumes) influenciaram gerações de juristas brasileiros e constituíram referência obrigatória para a compreensão de nosso sistema jurídico penal. Ver –  http://www.memorial.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=114

[24] A Revolta dos 18 do Forte de Copacabana foi uma revolta tenentista ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 5 de julho de 1922. Foi a primeira revolta tenentista da República Velha. Teve a participação de 17 militares e um civil. Suas causas principais estão no descontentamento dos tenentes com o monopólio político do poder no Brasil por parte das oligarquias (principalmente ricos fazendeiros) de Minas Gerais e São Paulo. Embora o movimento tivesse sido planejado em várias unidades militares, somente o Forte de Copacabana e a Escola Militar se levantaram no dia 5 de julho de 1922. O forte foi bombardeado e a rendição dos rebeldes foi exigida.  O tenente Siqueira Campos e um grupo de militares rebeldes pegaram armas e marcharam pelas ruas em direção ao Palácio do Catete (sede do governo federal na época). Durante a marcha alguns militares desistiram, ficando apenas 17 que receberam o apoio na rua de um civil, totalizando 18. Os rebeldes foram cercados pela tropa do Governo Federal. Após forte tiroteio em frente ao posto 3 da praia de Copacabana, somente Siqueira Campos e Eduardo Gomes sobreviveram e foram presos. Os outros dezesseis integrantes do movimento foram mortos no combate.

[25] Regicídio é o assassinato de um rei, seu consorte, de um príncipe herdeiro ou de outras formas de regentes, como presidentes e primeiro ministros. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Regic%C3%ADdio

[26] Ver o periódico “Diário de Notícias”, Rio de Janeiro, nas edições de 7 e 8 de janeiro de 1933, sempre nas 1ª páginas. Igualmente ver o jornal “Diário Carioca”, Rio de Janeiro, edição de 7 de janeiro de 1933, 1ª e 5º páginas.

RAMPA – A ANTIGA BASE DE HIDROAVIÕES DE NATAL

Hoje Realizei Uma Entrevista Sobre Esse Local de Tanta Importância Histórica Para Natal e O Rio Grande do Norte – Está Recuperada e Tudo Ficou Muito Bonito – Agora é Aguardar a Inauguração.

Rostand Medeiros – Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte  

Hoje eu tive a oportunidade de retornar ao prédio histórico da Rampa, às margens do rio Potengi, um local cheio de belezas e de muitas histórias, principalmente sobre aviação e a presença das tropas americanas em Natal durante a Segunda Guerra Mundial.

Essa reportagem foi produzida pela TV Tropical de Natal, que retransmite o sinal da TV Record para todo o Rio Grande do Norte e foca em aspectos ligados à questão do turismo histórico na capital potiguar. Este trabalho está recebendo o apoio da Secretaria Municipal de Turismo, através do competente Secretário Fernando Fernandes. Já o contato com a TV Tropical foi organizado por Kelly Barros e conduzida de forma muito positiva pela jornalista Mara Godeiro. Eu aproveito e agradeço a todos pela atenção a mim dispensada nessa atividade. 

Na oportunidade eu falei sobre os aspectos históricos que envolvem esse local, tais como a passagem dos grandes hidroaviões da empresa aérea Pan American Airways, dos Estados Unidos, e da sua subsidiária brasileira, a Panair. Comentei igualmente sobre a presença dos presidentes Roosevelt e Vargas naquele local em janeiro de 1943, quando ambos realizaram a chamada “Conferência do Potengi” e visitaram o prédio com arcos da Rampa. Também comentei sobre a utilização do local como base de hidroaviões pela Marinha dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.

Realmente a recuperação do prédio, conduzida pela Secretaria Estadual de Turismo, que deu todo apoio para a realização dessa entrevista, ficou muito bem feita e o prédio histórico da Rampa e o seu entorno está realmente muito bonito. Está como se diz por aqui – “Estalando de novo”.

Esperamos ansiosos pela inauguração deste espaço, onde desejamos que ele seja um marco de mudanças positivas nos processos de ampliação da democratização e também de valorização da informação histórica sobre esse período tão intenso e interessante de Natal e do Rio Grande do Norte.

FOI REDESCOBERTO PELO EXÉRCITO BRASILEIRO NO AMAPÁ, UM AVIÃO AMERICANO B-26 PERDIDO NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Na última semana membros do Exército Brasileiro redescobriram o local da queda de um avião de bombardeiro americano B-26 Marauder, que caiu em 1945 no Amapá. Essa aeronave já havia sido encontrada por indígenas da região do Oiapoque em 1946 e os militares mortos foram recolhidos por soldados americanos. Os corpos dos cinco tripulantes estão enterrados nos Estados Unidos.

Autor – Rostand Medeiros – INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE – IHGRN

Revisão – German Zaunseder.

Fonte – O Viajante – Facebook.

Na última semana um grupo de militares do Exército Brasileiro, pertencentes ao 34° Batalhão de Infantaria de Selva, com auxílio de três indígenas que moram na região, reencontraram uma velha aeronave no meio da sela no Amapá. Consta através da página do Facebook “O Viajante”, que os militares sabiam da existência da aeronave sinistrada e em 2012 e até tentaram chegar a ela nessa época, mas não conseguiram.

Martin B-26 Marauder.

Os destroços se encontram na região da Aldeia Santa Isabel, próxima ao Oiapoque, extremo norte do Amapá. Informações apontam que a área possui uma selva alagada e o grupo de militares, cujos nomes não foram revelados, era formado por um tenente, três sargentos, quatro cabos e três soldados, tendo levado três dias para chegar até os destroços. Consta que o local do acidente não foi divulgado, para evitar depredação do local. Uma atitude reconhecidamente muito positiva. 

Fonte – O Viajante – Facebook.

Os militares brasileiros fotografaram parte da cauda, de uma das asas, além dos restos de uma metralhadora Browning calibre .50, a mesma que até hoje é utilizada pelas Forças Armadas Brasileiras. Os militares e indígenas encontraram também nos destroços um dos dois motores radiais Pratt & Whitney Wasp R-2800.

Qual Avião?

Os destroços pertencem a um Martin B-26G Marauder, cujo número de registro na Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (United States Army Air Force) era 44-68105, fazendo parte do 387º Grupo de Bombardeio (387Th Bomb Group). O desastre ocorreu, conforme mostram documentos da época, em 25 de janeiro de 1945, durante um voo de traslado desde os Estados Unidos ao front de guerra.

Relatório original da queda do B-26 do Amapá.

A rota dessas aeronaves passava pelo Caribe e, no caso especifico do 44-68105, ele pousou em Atkinson Field, na antiga colônia inglesa da Guiana (atual República Cooperativa da Guiana). Depois, como era normal para essas aeronaves, sua rota seguiria para Belém do Pará e depois para a Base de Parnamirim, em Natal, Rio grande do Norte. Na sequência esse avião deveria cruzar o Atlântico Sul em direção a África Ocidental e depois seguir para a linha de frente na Europa, ao qual havia sido designado. No caso desse avião seria Inglaterra. Existe a informação no relatório dos americanos que o B-26 44-68105 decolou de Atkinson Field pelas 07:18 horas da manhã (10:18 Zulu).

Fonte – O Viajante – Facebook.

Esse bombardeiro B-26 Marauder fazia parte de um grupo de dezenove aviões. Consta no relatório de perda dessa aeronave, do qual possuo uma cópia, que eles encontraram uma forte tempestade e a tripulação chegou a enviar uma última comunicação por rádio, em uma posição a meio caminho entre a Guiana Inglesa e Belém. Tempos depois, com o sumiço do B-26, a tripulação foi declarada morta.

Fonte – O Viajante – Facebook.

Um ano e meio após o acidente, em junho de 1946, indígenas trouxeram a informação de terem encontrado um avião na região do Oiapoque. A informação foi repassada para os militares da antiga estação do Exército dos Estados Unidos em Belém. A partir daí os militares americanos realizaram 565 horas de buscas por ar e terra do que sobrou da aeronave e os restos mortais dos tripulantes.

Fonte – O Viajante – Facebook.

Encontrando a Tripulação

Após encontrarem a aeronave durante as pesquisas realizadas em 1946, os militares descobriram que um corpo havia sido atirado (ou se atirou) para fora dos destroços e foi identificado como sendo o sargento Wesley W. Fulton, de Norfolk, Nebraska. O desastre foi tão intenso que um outro corpo não foi identificado em um primeiro momento. Apenas através de sua placa de identificação (Dog Tag), foi possível saber de quem eram os restos mortais.

Os cadáveres foram levados para a Base de Val de Cans, em Belém, e enterrados com honras militares no lote nº 2 do Exército dos Estados Unidos, provavelmente no Cemitério Nossa senhora da Soledade, um dos mais antigos e tradicionais da capital paraense.

Lápide onde estão enterrados os restos mortais dos tripulantes do B-26 Marauder 44-68105, recentemente redescoberto por membros do Exército Brasileiro – Fonte – https://pt.findagrave.com/memorial/3300083/theodore-thomas-handley

Somente no ano seguinte, 1947, os restos dos tripulantes do B-26 foram exumados e enviados primeiramente para o Post Cemetery, em Fort Buchanan, Porto Rico. Depois eles foram levados para os Estados Unidos e foram enterrados no dia 7 de maio de 1948 no Cemitério Nacional Zachory Taylor, em Louisville, no estado do Kentucky. A tripulação era composta pelo primeiro tenente Theodore T. Handley (piloto), o segundo tenente Raymond J. Carson (copiloto), o oficial de voo James E. Johnson Jr. (navegador), sargento Wesley W. Fulton (engenheiro de voo e atirador) e o cabo George M. Bodin (operador de radar e atirador).

O militar da foto é o oficial James E Johnson Jr., que pereceu nesse acidente – Fonte – https://www.honorstates.org/index.php?id=589284

O 387º Grupo de Bombardeio havia sido criado em 25 de novembro de 1942 e ativado em 1º de dezembro na Base de MacDill, em Tampa Bay, Flórida. Depois foi enviado para a Inglaterra, onde seus membros e suas aeronaves participaram de várias batalhas na Europa ocupada pelos nazistas. Ao final do conflito o 387º Grupo de Bombardeiro passou 21 meses em ação, executando 396 missões de combate, onde lançaram 16.280 toneladas de bombas contra alvos inimigos, estabelecendo no processo um excelente recorde de precisão de bombardeio. Quase 100 das aeronaves do grupo foram derrubadas ou danificadas. Infelizmente mais de 300 aviadores foram mortos ou dados como desaparecidos em ação e outros 217 ficaram feridos.

Relação original dos tripulantes da aeronave.

O B-26 Marauder reencontrado agora pelo Exército Brasileiro no Amapá, certamente seguia para recomplementação de unidades perdidas. Mas eles não chegaram lá!

B-26 na Segunda Guerra

A Companhia Glenn L. Martin, de Baltimore, Maryland, desenvolveu o B-26 em resposta a uma especificação emitida pela Força Aérea do Exército dos Estados Unidos em 25 de janeiro de 1939. Devido ao ritmo acelerado de desenvolvimento, o primeiro exemplo de produção do B-26 Marauder voou em 25 de novembro de 1940. As primeiras aeronaves Marauder voaram em missões de combate no Teatro de Operações do Pacífico, logo após a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

Esse B-26 Marauder pertencia ao 387º Grupo de Bombardeiros, o mesmo do avião perdido nas selvas do Amapá – Fonte – NARA.

Entretanto, um crônico problema de mau funcionamento do motor e da hélice, uma inadequada preparação da tripulação e as características e exigentes maneiras de voar o B-26, levaram a uma alta taxa de acidentes em treinamento e logo a aeronave foi apelidada de “Widow Maker” (Fabricante de Viúvas). Sua reputação ficou marcadamente manchada, ao ponto da produção ter sido quase interrompida em várias ocasiões.

Entretanto, com os devidos reparos e apesar de toda a má-fama, o B-26 deu a volta por cima e se tornou um ótimo avião combate dos americanos durante a Segunda Guerra Mundial.

Agradecimentos aos amigos Edér José Barosh, de Altamira, Pará, e José Henrique de Almeida Braga, de Fortaleza, Ceará, pela informação sobre essa redescoberta.

1976 – O INCRÍVEL RESGATE DOS REFÉNS ISRAELENSE EM ENTEBE

Terror no A300

A crise de Entebe começou em 29 de junho de 1976, quando um avião de passageiros Airbus A300 da Air France foi sequestrado. Esse era o voo 139, que partiu de Tel Aviv para Paris, mas realizou uma parada em Atenas. Havia doze tripulantes e uma boa parte dos 254 passageiros e tripulantes eram judeus israelenses. Depois de decolar da capital grega por volta do meio dia, o avião foi tomado por três homens e uma mulher, armados de pistolas e granadas.

O Aibus A300, matrícula F-BVGG, da Air France, sequestrado em 1976 e levado para Entebe.

O grupo que dominou o A300 representava a ponta afiada de uma estrutura complexa. Incluídos nesse nexo estavam os principais grupos militantes palestinos, organizações radicais de esquerda da antiga Alemanha Ocidental que aterrorizavam aquele país no início da década de 1970 e, por trás deles, o apoio logístico e material da extinta União Soviética e de vários estados árabes.

Os palestinos Jayel-al-Arja (E) e Fayez Abdul-Rahim al-Jaber (D), membros do FPLP-OE, que sequestraram o avião da Air France e foram mortos pelos israelenses. Eles são considerados mártires da causa palestina na luta contra Israel. Algumas fontes apontam que o nome de Jayel-al-Arja, seria na verdade Jayel Naji al-Arjam. Apontam também que ele havia, como antigo representante da FPLP-OE para a América do Sul, foi quem conseguiu dois passaportes de países dessa região para os alemãesn entrar no avião em Atenas.

A equipe atacante estava oficialmente alinhada com uma organização que se autodenominava Frente Popular de Libertação da Palestina – Operações Externas (FPLP-EO). Os atacantes eram dois homens árabes palestinos e um casal de alemães. Os palestinos, Jayel-al-Arja e Fayez Abdul-Rahim al-Jaber, eram agentes seniores da FPLP-OE.

Os alemães eram um ex-dono de livraria de Frankfurt am Main, chamado Wilfried Bonifatius “Boni” Böse, nascido em Bamberg, estado da Baviera, tido como muito inteligente e articulado. Além dele fazia parte do grupo uma educadora da cidade de Hannover, de nome Brigitte Kuhlmann, que entrou no avião frances utilizando o nome falso de “Halima”. Esses alemães eram membros de uma rede paramilitar de extrema esquerda, conhecida como Células Revolucionárias, ou em alemão Revolutionäre Zellen (RZ). Uma organização extremamente atuante, na qual são atribuidos 186 ataques terroristas, de alto e baixo impacto, na Alemanha Ocidental.

Brigitte Kuhlmann

Durante o ataque Kuhlmann assumiu o controle da cabine de primeira classe e os passageiros reticentes levaram coronhadas de sua pistola. O A300 foi então redirecionado para a Líbia sob o sinal de chamada “Haifa One”. Depois de aterrissar para se reabastecerem no Aeroporto de Benina, em Benghazi, alguns passageiros foram libertados, dentre eles uma mulher grávida. Era Patricia Martel, nascida na Grã-Bretanha, que emigrou para Israel, mas na verdade fingiu uma gravidez e um aborto para ser libertada pelos sequestradores.

Então o piloto francês Michael Bacos foi orientado a seguir para a cidade de Entebe, na Uganda, um pequeno e pobre país do centro da África, que na época era dominado por um ditador histriônico e violento chamado Idi Amim Dadá. Durante o voo de cinco horas, Kuhlmann abusou verbalmente de passageiros com críticas antissemitas. Ela foi referida pelos reféns como a “terrorista nazista”.

A rota até Uganda.

Quando chegaram ao Aeroporto Internacional Entebe, os quatro militantes que tomaram o avião foram reforçados por mais seis agentes da FPLP-OE, incluindo um homem identificado pela imprensa como Anton Degas Bouvier, mas provavelmente era Fouad Awad. Os outros seriam Abdel al-Latif, Abu Ali, Khaled Muhammad Khalil, Ali Fadl Miari e Abu al-Darda al-Iraqi.

Ao desembarcarem naquela noite em Entebe, as margens do Lago Vitoria, os passageiros foram levados para o antigo terminal do aeroporto, sob a guarda dos oito palestinos e alemães, além do reforço de 50 a 100 militares ugandenses pesadamente armados e que ali se encontravam para “proteger” os prisioneiros.  

Idi Amim Dadá

Durante a aparentemente interminável semana que os passageiros passaram como “convidados” do ditador Idi Amin. Os sequestradores transferiram os prisioneiros para o saguão de trânsito do antigo terminal aeroportuário abandonado, onde os mantiveram sob vigilância pelos dias seguintes. Amin vinha visitar os reféns quase diariamente, atualizando-os sobre os desenvolvimentos diplomáticos e prometendo usar seus esforços para liberta-los por meio de negociações. Consta que o ditador estava adorando a visibilidade junto a mídia internacional.  

Em 28 de junho, um sequestrador da FPLP-EO emitiu uma declaração e formulou suas demandas: Além de um resgate de US$ 5 milhões pela liberação do avião, eles exigiram a libertação de 53 militantes palestinos e pró-palestinos, onde cerca de 40 eram prisioneiros em Israel.

O aeroporto de Entebe na época dos acontecimentos.

Na terça-feira, 29 de junho de 1976, pouco antes das 19h, o “combatente anti-imperialista” Wilfried Böse começou a primeira seleção alemã de judeus depois de 1945. Ele disse a Wilfried Angry, uma mulher israelense com um número tatuado no braço desde a época da Segunda Guerra Mundial – “Quando você ouvir seu nome, levante-se e vá para a sala ao lado”. Böse estava em uma mesa, com os passaportes dos passageiros à sua frente. Wilfried começou a chorar quando nomes judeus foram lidos por aquele homem com sotaque alemão. Enquanto isso Brigitte Kuhlmann, estava friamente na entrada da sala ao lado, armada com um granada de mão. A separação dos reféns judeus, não apenas dos israelenses, desencadeou uma tempestade de indignação em Israel e no mundo contra aqueles terroristas. O caso foi tão complicado, que não só ali, o antissemitismo desses terroristas de esquerda também foi abordado dentro da própria esquerda, pois levou muito mais tarde na Alemanha Ocidental a ocorrer um debate mais amplo sobre a relação da esquerda naquele país na década de 1970.

O piloto francês Michael Bacos. Por sua atitude em ficar com os reféns em Entebe, juntamente com a sua tripulação, ele foi condecorado na França e em Israel.

Indepemdente dessa questão, no outro dia, 30 de junho, os sequestradores libertaram 48 reféns, formado basicamente por não-israelenses, principalmente passageiros idosos, doentes e mães com filhos. Em 1º de julho, depois que o governo israelense transmitiu seu acordo às negociações, os sequestradores estenderam o prazo para o meio-dia de 4 de julho e libertaram outro grupo com cerca de 100 prisioneiros não israelenses, que novamente foram levados para Paris algumas horas depois. Entre os 105 reféns que ficaram no aeroporto de Entebe com seus captores, estavam os doze membros da tripulação da Air France, tendo à frente o comandante Bacos, que se recusou a partir.

Como era impensável para o governo israelense aceitar às exigências dos palestinos e alemães, só sobrava duas alternativas – 1ª Deixar os reféns serem assassinados. 2ª Libertar os que ficaram através de uma ação de resgate.

Secretamente começou a ser planejada e desenvolvida uma operação militar para libertar os prisioneiros.

Missão Complicada

Aparentemente essa última escolha teria sido impossível para quase todos os governos no mundo, pois, além dos reféns estarem sob a guarda dos palestinos e dos alemães, havia o pessoal do Exército de Uganda e Entebe se localiza a mais de 3.500 quilômetros de Israel.

O brigadeiro general Dan Shomron

Mas o chefe de gabinete tenente general Mordechai “Motta” Gur, ele mesmo um veterano paraquedista, tinha confiança em seus homens. Gur delegou o planejamento do papel das forças terrestres na ação a um jovem e enérgico oficial, o brigadeiro general Dan Shomron, um veterano de muitas batalhas sangrentas, que tinha ao seu lado o major-general Benjamin “Benny” Peled, da Força Aérea Israelense, cujo trabalho era planejar a parte aérea da missão.

Uma vez que ficou claro que os esforços da diplomacia não iriam resolver a crise, decidiu-se avançar com a ação militar. O plano final foi aprovado pelo gabinete de Israel no último momento possível, no dia 3 de julho, as 18:00, onde envolveria uma equipe de paraquedistas e comandos escolhidos a dedo para serem levados a Entebe.

O “espetáculo” dos israelenses deveria seguir esse “programa”, cujo o elemento surpresa era um fator chave….

Lockheed C-130 Hércules, do Esquadrão 131, da Força Aérea Israelense.

Eles seriam levados em quatro aviões de transporte quadrimotores Lockheed C-130 Hércules, que percorreriam toda a distância entre Israel e Uganda sem escolta, para aterrissar na pista de um aeroporto cercados de inimigos armados e, para piorar a situação, o pouso seria à noite. As tropas israelenses então deveriam agir de forma rápida para invadir o antigo terminal, apoiados primeiramente por uma limusine civil e alguns veículos militares leves e, só depois que os outros C-130 pousassem, os atacantes receberiam apoio de alguns veículos blindados de transporte de pessoal (sigla em inglês APC). Eles então teriam de atacar cirurgicamente seus inimigos na área do aeroporto e evitar atingir os reféns. Depois a ordem era escoltar os judeus e a tripulação francesa para o último Hércules a pousar, recolher veículos, armas, mortos e feridos nos outros C-130. Depois deveriam seguir para um ponto de reabastecimento conseguido por pressão diplomática, quando então todos retornariam para Israel.

Se no papel a coisa toda parecia nem um pouco fácil, na prática para realizar essa missão só com um pessoal muito preparado, treinado, motivado, equipado, corajoso e decidido….

O tenente-coronel Yonathan “Yonni” Netanyahu

Para liderar a equipe de ataque foi escolhido o tenente-coronel Yonathan “Yonni” Netanyahu, um homem que era uma estranha mistura de intelecto e coragem. Havia sido criado em Nova York por pais sionistas e ao completar 18 anos foi para Israel para se juntar a uma das unidades de elite das IDF – Israel Defense Forces (Forças de Defesa de Israel).

Ascendeu rapidamente na carreira por ter se distinguido na Guerra dos Seis Dias de 1967 e novamente nos combates nas Colinas de Golã durante a Guerra de Outubro de 1973. Em uma ousada operação Yonni resgatou seu melhor amigo, um comandante de batalhão blindado que havia sido ferido pelos sírios, mas foi gravemente atingido no processo. Acabou dispensado das IDF com 30 por cento de incapacidade física.

O militar com a roupa camuflada é o vice comandante da força israelense no ataque de Entebe, o major Muki Betser.

Mesmo assim ele conseguiu retornar para os quartéis. Foram várias operações médicas excruciantes, até convencer o chefe de gabinete do exército israelense quele estava apto a comandar a sua antiga unidade. E é bom ressaltar que essa era uma força de comandos do Sayerat Maktal (Forças Especiais Israelenses), altamente preparada e operacional.

Agora, na tarde de 3 de julho de 1976, Yonni Netanyahu estava no compartimento de carga de um barulhento C-130 Hércules, espremido no banco da frente de uma Mercedes-Benz preta, enfrentando a missão mais difícil de sua vida. Estava no primeiro avião a decolar do Aeroporto de Ofira, perto de Sharm el-Sheikh, na Península do Sinai, uma região egípcia então ocupada militarmente por Israel

Em tempo – O tenente-coronel Yonathan “Yonni” Netanyahu era um irmão mais velho de Benjamin “Bibi” Netanyahu, que também foi membro de uma unidade de forças especiais do Exército de Israel, esteve em combate em várias ocasiões e que décadas depois seria primeiro ministro de seu país entre 2009 a 2021.

Planejamento

O C-130 Hércules eram todos do Esquadrão 131 e o avião líder era pilotado pelo tenente-coronel Joshua “Shiki” Shani, o líder do esquadrão. Nas Logo as aeronaves bastante carregadas, os cerca de 100 homens de Yonni se acomodaram dentro dos quadrimotores para a longa jornada em seus assentos, no piso da aeronave, nos bancos dos Land Rovers de ataque, armados com metralhadoras pesadas ponto cinquenta, além dos APCs, que se posicionariam ao redor do aeroporto para protegerem a área.

Jipe Land Rover utilizado pelos israelenses.

Enquanto planejavam o ataque, as forças israelenses tiveram que buscar alternativas para reabastecer os C-130. Os israelenses não tinham capacidade logística para voar com aquelas quatro aeronaves carregadíssimas, para tão longe do espaço aéreo israelense. Embora várias nações da África Oriental, incluindo a escolha logisticamente preferida do Quênia, fossem simpáticas a causa de Israel, nenhuma desejava incorrer na ira do maluco do Idi Amin, ou dos palestinos, permitindo que os israelenses pousassem suas aeronaves dentro de suas fronteiras.

Mas o ataque não poderia prosseguir sem a assistência de pelo menos um governo da África Oriental. Após ingerências diplomáticas, os israelenses garantiram a permissão do Quênia para a força-tarefa IDF cruzar o seu espaço aéreo e reabastecer no aeroporto de Nairobi, capital do país. Mas até o momento do ataque, dentro dos C-130, reinava a incerteza desse apoio.

Soldados israelenses desembarcando da rampa de um quadrimotor C-130.

O comandante das forças de assalto havia treinado ao máximo: Nos últimos dias, uma e outra vez, eles correram equipados e armados em um centro de treinamento improvisado, percorrendo a mesma distância entre o local de parada dos C-130 e o terminal de Entebe, até que eles conseguissem terminar o sprint em menos de 120 segundos.

Mas houve outros planejamentos e treinamentos.

Através dos reféns libertados em Paris o Serviço Secreto de Israel, o Mossad, construiu uma imagem precisa do paradeiro dos reféns, o número de sequestradores e o envolvimento das tropas ugandenses. Um passageiro franco-judeu que tinha antecedentes militares e uma memória fenomenal, forneceu informações detalhadas sobre o número de armas transportadas pelos sequestradores. Além disso, uma empresa israelense chamada Solel Boneh estivera envolvida em projetos de construção na África durante as décadas de 1960 e 1970 e construiu o terminal onde os reféns foram mantidos. O exército israelense consultou os engenheiros dessa empresa e ergueram uma réplica parcial do terminal do aeroporto para treinar o ataque.

C-130 de Israel alinhados e recebendo tropas.

30 Segundos de Atraso

Após a decolagem da região de Sharm el-Sheikh, os quatro Hércules seguiram para quase oito horas de voo, começando pelo Golfo de Eilat. Eles tomaram as medidas evasivas necessárias para evitar os radares de vigilância do Egito, Sudão e Arábia Saudita, voando a uma altura não superior a 30 m (100 pés) e seguindo uma rota que os levaria profundamente na África. Eles mantinham estrita formação de voo, total silêncio em seus rádios e, para saber se estava tudo bem com os outros Hércules, de vez em quando os outros pilotos emparelhavam suas aeronaves com a cabine do tenente-coronel Shani e se “mostravam”, deixando claro que seguiam tranquilos. Perto da saída sul do Mar Vermelho, os C-130 viraram e passaram sobre Djibuti. De lá, eles foram para um ponto a nordeste de Nairóbi, no Quênia.

Em vermelho a rota do A300 sequestrado e em azul as dos C-130 Hércules utilizados no ataque.

Dois jatos Boeing 707 seguiram os C-130. O primeiro Boeing continha instalações médicas e pousou no Aeroporto Internacional Jomo Kenyatta, em Nairobi. O segundo seria um centro de comunicações, controle e comando, que ficou circulando sobre o Aeroporto de Entebe durante o ataque. O major-general Peled estava nele.

O tenente-coronel Shani seguia ouvindo o rádio, cada vez mais tenso ao escutar as últimas notícias sobre o tempo, pois nuvens e trovoadas estavam sobre o espaço aéreo africano. Isso poderia trazer riscos para toda a missão. Logo o céu ficou completamente encoberto, levando a chuva aos para-brisas. A monótona varredura dos limpadores, alternada com o balanço do avião na turbulência, em meio aos flashes sobrenaturais de relâmpagos iluminando o céu negro, com trovões disputando com o barulho dos motores, criava um quadro complicado.

Os pilotos lutavam com os controles e as sacolejadas. Nos compartimentos de carga estava muito desagradável para os soldados. Apesar da noite, estava bem quente dentro dos Hércules. Vários militares vomitaram e ninguém estava preso a nada. Era uma bagunça total. Então, olhando de volta para a cabine, Shani viu a calma dedicada nos rostos dos paraquedistas e foi o calejado piloto que se tranquilizou.

Dentro dos C-130, a caminho de Uganda.

Ao se aproximarem do alvo, Yonni desceu do luxuoso Mercedes e se juntou ao piloto líder na cabine por um momento. Uma reconfortante mão no ombro, uma piscadela confiante e o jovem comandante voltou ao seu posto para preparar seus homens para a ação.

Logo estavam sobre o Lago Vitoria, que divide territorialmente Tanzânia, Uganda e Quênia, sendo um dos Grandes Lagos Africanos, localizado num planalto elevado na parte ocidental do vale do Rift, na África Oriental. Nesse ponto a formação aérea se dividiu, cada piloto tomando seu posto para o pouso de acordo com o planejamento. O primeiro C-130 deveria pousar no aeródromo, enquanto os outros deveriam circular sobre o Lago Vitória e descer sequencialmente. Assim que a primeira aeronave pousasse, primeiramente sairia dela a falsa limusine, liderado por Netanyahu, depois os Land Rovers e todos acelerariam para o terminal.

Aviadores do Esquadrão 131, da Força Aérea de Israel, que participaram da ação em 1976.

Os céus de Entebe estavam nublados, com chuva leve caindo, mas surpreendentemente, para a sorte dos israelenses, a pista do aeroporto de Entebe estava totalmente iluminada e o pouso foi facilitado. A aeronave líder entrou cautelosamente na etapa final da abordagem, deslizou silenciosamente para a pista e parou precisamente no local que a inteligência havia planejado. Apesar dessa situação positiva, durante o taxiamento o primeiro C-130 a pousar quase caiu em uma vala.

As primeiras forças israelenses aterrissaram em Entebe em 3 de julho, às 23:00. Incrivelmente todo o trajeto de voo gerou um atraso de apenas míseros 30 segundos em relação ao planejamento. Uma conquista raramente igualada, até mesmo por pilotos de linha aérea veteranos que voavam a anos na África.

O “show” ia começar!

Ataque Cirúrgico

Mercedes-Benz preta, modelo 600 Pullman W100.

Yonni e seus homens desceram a rampa da primeira aeronave na Mercedes preta, seguido por dois Land Rovers sem marcações na carroceria e dirigiram os veículos para o prédio do terminal.

Relatórios de inteligência israelense identificaram o carro oficial de Idi Amin como sendo uma Mercedes-Benz preta, modelo 600 Pullman W100, que circulou naqueles dias no aeroporto de Entebe, na companhia de terroristas palestinos em Land Rovers. O que os israelenses não sabiam foi que Amin havia comprado recentemente uma Mercedes branca. Então duas sentinelas ugandenses ordenaram que os veículos parassem. Yonni Netanyahu ordenou que os comandos atirassem nas sentinelas usando pistolas com silenciadores, mas eles não os mataram. Enquanto os homens da Mercedes se afastavam, os israelenses que vinham em uma Land Rover os eliminaram com disparos de um fuzil sem silenciador.

Temendo que os sequestradores fossem alertados prematuramente, a equipe de assalto rapidamente se aproximou do terminal para surpreender os terroristas antes que eles pudessem atirar. Os militares israelenses conseguiram se aproximar a uma velocidade fantástica e com surpresa quase total, arrombando simultaneamente todas as entradas e chegando aos reféns.

Dan Shomron, o comandante da operação, que estava no avião C-130 do tenente-coronel Joshua Shani, podia olhar pelas janelas e verificar o correto desenvolvimento da operação correta. Shomron foi capaz de dizer a si mesmo o que ele havia dito ao ministro da defesa três dias antes – se o primeiro avião conseguisse fazer um pouso inocente, sem chamar atenção, a operação seria um sucesso. O avião realmente chegou ao local designado, e os pilotos afirmaram que nunca viram uma força de desembarque agir tão rapidamente. Em dezenas de segundos, os soldados israelenses estavam do lado de fora e imediatamente movendo-se em direção ao alvo.

Como havia brasileiros entre os reféns em Entebe, o governo do general Ernesto Geisel foi informado pelo governo israelense sobre os acontecimentos.

Os reféns estavam no prédio logo ao lado da pista. Os atacantes adentraram no terminal, gritando em megafones em hebraico e inglês para que os reféns se abaixassem. Então começou o tiroteio. O primeiro terrorista que apareceu foi morto pelo vice comandante da força israelense, o major Muki Betser.

Infelizmente Jean-Jacques Mimouni, um imigrante francês de 19 anos que morava em Israel, levantou-se e foi morto quando o confundiram com um sequestrador. Outro refém, Pasco Cohen, 52 anos, também foi ferido fatalmente por tiros dos comandos. Além disso, uma terceira refém, Ida Borochovitch, de 56 anos, uma judia russa que havia emigrado para Israel, foi morta por um sequestrador no fogo cruzado.

De acordo com o que se soube depois, quatro terroristas foram mortos em menos de um minuto. Dois estavam imediatamente à esquerda da porta de entrada. Outro estava cerca de 10 metros após os reféns e um disparo o pegou no meio do corpo. Um quarto terrorista estava no outro lado da sala e foi atingido. Ele caiu, depois tentou se levantar e foi baleado novamente. A certa altura, um comando israelense gritou em hebraico: “Onde estão os demais?” referindo-se aos sequestradores. Os reféns apontaram para uma porta de ligação do saguão principal do aeroporto, na qual os comandos jogaram várias granadas de mão. Então, eles entraram na sala e mataram a tiros três sequestradores, encerrando o ataque. Foram mortos os quatro sequestradores que tomaram o Airbus, além de cinco, dos que se juntaram a eles em Entebe. Alguns deles morreram sem disparar um tiro.

Dois momentos da vida de e Brigitte Kuhlmann, antes de se radicalizar e se tornar terrortista. A esquerda ela assiste um seminário de sociologia em 1968, tendo ao seu lado o então namorado Heiner Menzel, com quem romperia logo depois. A direita, em 1969, ela como trabalhadora de uma colheita em Lindwedel, na região da Baixa Saxônia.

Sobre os terroristas alemães, consta através dos depoimentos das testemunhas, que a conduta de Brigitte Kuhlmann foi bastante violenta com os judeus. A ex-educadora formada em Hannover, que trabalhava como voluntária junto a crianças em situações especiais no seu tempo livre, ficou universalmente lembrada por sua extrema crueldade e fúria durante o sequestro e no subsequente encarceramento dos reféns.

O terrorista alemão Wilfried Bonifatius “Boni” Böse, das Células Revolucionárias, ou em alemão Revolutionäre Zellen.

Já em relação a Wilfried Böse, o seu comportamento foi menos radical. Durante o sequestro um passageiro judeu lhe mostrou a tatuagem que recebeu no campo de extermínio de Auschwitz e Böse teria dito: “Não sou nazista! … Sou um idealista”. Jacques Lemoine, engenheiro de voo do avião sequestrado, comentou anos depois que “foi Böse quem tomou a decisão de não matar todos os reféns quando os militares israelenses invadiram o terminal”. Essa versão foi corroborada por Ilan Hartuv, que viu Wilfried Böse ser o único sequestrador que, após o início da operação apontou seu fuzil Kalashnikov para os cativos, mas “imediatamente caiu em si” e ordenou que eles se abrigassem no banheiro, antes de ser morto pelos comandos. De acordo com Hartuv, os disparos de Böse foram para os soldados israelenses e não contra os reféns.

Reação dos Ugandenses

Na sequência uma bazuca destruiu o holofote da torre de controle. Sob uma parcial cobertura da escuridão, os israelenses começaram a reunir os reféns para a viagem de volta.

Mapa do seroporto de Entebe.

Sete minutos após a aeronave de Shani ter pousado, os outros três C-130 começaram a aterrissar e as tropas foram se posicionando. Enquanto o Hércules nº 3 se aproximava, os ugandenses cortaram as luzes da pista, mas ele pousou em segurança. O último C-130, cuja função era recolher os reféns, desembarcou com o auxílio da iluminação dos paraquedistas e taxiou próximo ao antigo prédio do terminal. Foi quando soldados ugandenses abriram fogo da torre de controle do aeroporto.

Os homens de Yonni revidaram com disparos de metralhadoras leves e uma granada propelida por foguete, suprimindo o fogo dos ugandenses. Mas durante este breve, mas intenso tiroteio, pelo menos cinco comandos ficaram feridos e o comandante da unidade israelense Yonatan Netanyahu foi morto. De acordo com um dos filhos de Idi Amin, o soldado que atirou no comandante israelense, um primo da família Amin, foi morto no tiroteio. Cerca de vinte soldados ugandenses perderam a vida, mas algumas fontes apontam que o número de mortos foi mais que o dobro.

A torre de controle no aeroporto de Entebbe na década de 2000, onde é possível ver as marcas do combate de 1976.

Os israelenses terminaram de evacuar os reféns, carregaram o corpo de Yonni Netanyahu em um dos aviões e começaram a deixar o aeroporto. Toda a operação durou 53 minutos – dos quais o assalto durou apenas 30 minutos.

O sargento Sorin Hershko foi um dos israelenses atingidos no tiroteio da torre de controle de Entebe. Ele sobreviveu, mas ficou tetraplégico em uma cadeira de rodas. É um cultuado herói nacionel em Israel

Os C-130 agora rolavam devagar pela pista, devido ao peso, quando todo o aeroporto foi subitamente iluminado por uma vasta exibição de “fogos de artifício”. Uma equipe especial de demolição do Sayeret Matkal, liderada pelo major Shaul Mofaz, futuro ministro da defesa de seu país, destruiu sete aviões de caça MiG-21 e quatro MiG-17, que constituíam a força de aviões de combate de Uganda. Agora os israelenses estavam seguros para voar sem possíveis perseguições.

O retorno para casa.

Dos 105 reféns, três foram mortos e aproximadamente 10 ficaram feridos. Já a refém Dora Bloch, de 74 anos, ficou para trás. Ela havia sido levada enferma para um hospital antes do ataque por ter se engasgado com um osso de carne um dia e meio antes do ataque. Os terroristas permitiram que ela fosse ao hospital em Kampala para que fosse removido de sua garganta. Bloch recuperou-se rapidamente, mas o ministro da Saúde do governo de Idi Amin foi solidário com ela e achou que ela estaria mais segura no hospital do que no complexo do aeroporto, então permitiu que ela ficasse lá. No entanto, quando o ataque foi realizado com sucesso e Amin percebeu o que havia acontecido, ele enviou sua polícia secreta para o hospital e ela foi covardemente morta por membros da elite de segurança de Uganda. Seus restos foram recuperados perto de uma plantação de açúcar a 32 quilômetros a leste de Kampala, capital do país, em 1979, depois que a guerra entre Uganda e a Tanzânia acabou com o governo de Amin. Como retaliação à assistência do Quênia a Israel no ataque, Amin ordenou a morte de centenas de quenianos que viviam em Uganda.

Desembarque dos reféns no Aeroporto ben Gurion.

Graças aos esforços dos soldados de elite israelenses, 102 reféns foram resgatados vivos. Havia entre os sequestrados quatro judeus brasileiros, que também foram resgatados.

Alegria e Silêncio

Enquanto as aeronaves retornavam para Israel, ainda próximo de nações que na época eram consideradas inimigas, rádio internacionais de alcance mundial, como a BBC britânica e algumas rádios francesas, já anunciavam o ataque e o resultado positivo para Israel. Isso gerou um certo stress, mas horas depois, na manhã de 4 de julho de 1976, por coincidência no mesmo dia do 200º aniversário da independência dos Estados Unidos da América, as quatro aeronaves C-130 Hércules sobrevoaram as vilas e cidades do sul de Israel escoltados por caças F-4 Phantom.

Três C-130 pousaram na Base Aérea de Tel Nof e o Hércules número 4, seguiu para o Aeroporto Ben Gurion, perto de Tel Aviv.

Uma alegria sem paralelo na história de Israel surgiu e continuou crescendo, conforme a notícia do resgate se espalhava pela nação. Os israelenses empolgados, literalmente explodiram de alegria. Multidões dançaram horas no asfalto. Flores e champanhe foram regados sobre os vencedores. Parecia que toda à nação entrou em um grande carnaval, ou haviam ganho uma Copa do Mundo de Futebol. Uma situação muito difícil de acontecer nesse país, que até hoje só participou da Copa de 1970, no México, e não passaram da primeira fase.

Enquanto a nação israelense se esbaldava de justa alegria, com multidões jubilosas percorrendo as ruas, um grupo severo e triste de homens cansados ​​saia pela lateral da festa em incongruente silêncio. Em seus ombros eles carregavam o corpo sem vida de seu comandante Yonni Netanyahu, o único militar de Israel perdido no ataque.

Yonni Netanyahu.

A morte sacrificial de Netanyahu e a ação heróica da unidade de elite em Entebe tornaram-se tão proeminentes que quase ninguém em Israel se atreve a arranhar o status heróico de Netanyahu, que certamente ajudou na ascensão política de seu irmão mais novo, Benjamin. Ironicamente, Moshe “Muki” Betzer, que assumiu o comando de Entebbe após a morte de Netanyahu, o culpa pelo início do tiroteio. Quando os israelenses se dirigiram até o terminal no Mercedes preto, eles passaram por dois guardas ugandenses. e um deles ergueu o rifle e fez um gesto ameaçador. Betzer, que já havia trabalhado em Uganda como instrutor militar, disse a Netanyahu que era apenas um ato de rotina. Mas ele deu ordem para atirar nos guardas com pistolas silenciadas. Mas como um dos dois ainda estava se movendo, os soldados na Land Rover terminaram o serviço com um fuzil. O estrondo, diz Betzer, alarmou os soldados ugandenses e anulou parcialmente o efeito surpresa, além de custar a vida de Yonni Netanyahu. 

O VOO DO “PLUS ULTRA” E A ATRIBULADA VIDA DO PILOTO RAMON FRANCO

O Dornier Do J Wal “Plus Ultra” em Buenos Aires, no fim da longa viagem

Autor – Rostand Medeiros – IHGRN

A Espanha havia sido um grande império colonial, entretanto, no fim do século XIX, o império espanhol acumulava derrotas, humilhações e um quadro social dos mais terríveis.

A partir de 1902, com o reinado personalista de Afonso XIII, a própria monarquia encontrava-se em uma posição muito delicada. Ocorrem conspirações, forte crise econômica, social e intenso fortalecimento do regionalismo Catalão e Basco, que sonhavam com suas respectivas autonomias. Ocorrem igualmente fortes distúrbios sociais, fortalecidos pelo crescimento dos movimentos socialistas e anarquistas, principalmente na Catalunha. Devido a toda esta crise, desencadeia-se uma forte imigração espanhola para outros países. Entre os anos de 1904 e 1913, por exemplo, serão 224.672 espanhóis que emigram para o Brasil.

Ramon Franco – Fonte – http://en.wikipedia.org/

Diante desta situação tumultuada e visando manter sua sobrevivência política, o Rei Afonso XIII encoraja o golpe militar do general Miguel Primo de Rivera y Orbajena, que no dia 13 de setembro de 1923, dissolve as Cortes (Parlamento) e estabelece a ditadura. Com o apoio de uma junta militar, implanta a censura e uma forte perseguição política.

Em meio a estes acontecimentos um grupo de jovens oficiais das Forças Armadas Espanholas, entusiastas da aviação, decidem organizar um voo transoceânico, ligando a Espanha e a Argentina, passando pelo Brasil. À frente deste planejamento, estava o comandante de infantaria do exército espanhol Ramón Franco y Bahamonde Salgado Pardo de Andrade, natural de El Ferrol, na província de La Corunã. 

Dornier Do J Wal   

Ramon Franco utilizou os seguintes argumentos como justificativa para este voo – Mostrar em meio a um tumultuado momento o valor da aviação espanhola, buscar propaganda positiva no exterior para o país, utilizar este projeto para conhecer as características de um voo de longo alcance com uma aeronave melhor equipado e preparado, visando à abertura de futuras linhas aéreas e utilizar a repercussão do voo para estreitar os laços diplomáticos com os países da América do Sul, principalmente os de língua espanhola. Além de mostrar para os espanhóis emigrados que um novo e moderno país se fazia presente no cenário mundial.

Ramon Franco entrega então um plano detalhado ao diretor da aeronáutica militar, que vislumbra uma ótima oportunidade de promoção do regime e aprova o vôo em 1925. Neste momento é convocada a tripulação. Como copiloto seguirá o capitão de artilharia do exército Julio Ruiz de Alda Miqueléiz, de Estella (Navarra), como terceiro piloto e navegador, o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles, professor da Escola Naval de Barcelona, natural de Jerez de la Frontera (Cadíz) e como mecânico, o soldado Pablo Rada Ustarroz, de Caparroso (Navarra).

Tripulação principal do “Plus Ultra” – No alto, a esquerda está Ramon Franco, a direita vemos Julio Ruiz de Alda Miqueléiz. Abaixo a esquerda está Pablo Rada Ustárroz e a sua direita Juan Manuel Durán González.

Foi escolhido para o voo o hidroavião Dornier Do J Wal, planejado e construído pela fábrica Dornier Flugzeugwerke, de Friedrichshafen, Alemanha. Por esta época, devido às restrições existentes no Tratado de Versailles, os alemães não podiam fabricar este tipo de aeronave, por esta razão o comandante Ramon Franco foi buscar o seu exemplar na Itália, onde era fabricado pela a Construzioni Meccaniche Aeronautiche S.A. (CMASA), na Marina de Pisa.

O hidroavião era um dos melhores produtos existentes no seu tempo, possuía um casco central, era de construção totalmente metálica, tripulação de cinco pessoas, com piloto e copiloto sentados lado a lado em cabine aberta. Era motorizado por dois motores Napier Lion, montados em tandem e com potência de 450 hp cada um. Seu peso normal era de 2.500 kg e peso total carregado de 7.500 kg. Tinha uma envergadura de 23,20 metros, comprimento total de 18,20 metros, alcance de 1.080 km, altitude máxima de 3.600 metros, velocidade de 180 km/h, quantidade de combustível de 400 litros de gasolina. Especificamente para este voo a aeronave foi equipada com um sistema de radiotelegrafia com alcance de 600 km, bússolas, derivômetro (Instrumento de voo, usado para indicar o ângulo de deriva), material salva-vidas, uma máquina de destilação de água, sextante, mapas e, visando o apoio no transporte de gasolina de reserva, o comandante Franco solicitou a Marinha Espanhola o apoio de dois navios de guerra, sendo designados o cruzador “Blas de Lezo” e o destroier “Alsedo”. 

Plus Ultra 

Fonte – elladooscurodelahistoria.blogspot.com

Estando tudo pronto, o comandante Franco recebe a ordem de voo no dia 18 de janeiro de 1926, mas faltava um detalhe, o nome da aeronave. Foi escolhido o termo latino “Plus Ultra”, que significa “mais além”. Sua origem vem da antiguidade, quando a Espanha era a terra mais ocidental que havia no mundo antigo, pois se considerava que após o estreito de Gibraltar, não haveria mais nada, só um grande abismo povoado por monstros terríveis. Reza a lenda que o herói mitológico Hércules colocou duas colunas no estreito, eram as conhecidas Colunas de Hércules, sendo uma na Espanha (no monte Calpe) e outra na África (monte Abile), com uma inscrição latina que advertia aos navegantes que não deveriam ir mais adiante “Non Plus Ultra” (não mais além). Mais tarde, com o descobrimento da América por Colombo, o povo passou designar somente “Plus Ultra” (mais além).

A rota escolhida teria início na cidade de Palos de la Frontera, na província de Huelva. A escolha era antes de tudo baseada em fatores históricos e sentimentais para o povo espanhol. Pois foi do porto de Palos que Cristóvão Colombo iniciou a sua épica viagem ao novo mundo 1492. Os aviadores participaram de uma missa solene na igreja de São Jorge, a mesma utilizada por Colombo e seus homens antes da sua viagem.

No dia 22 de janeiro de 1926, às 07:55 da manhã, o “Plus Ultra” decolava do Muelle de La Calzadilla, no porto de Palos, diante de uma grande multidão. A aeronave seguiu sem maiores problemas em direção as Ilhas Canárias, mais precisamente ao seu principal porto, também conhecido como Puerto de la Luz. Chegaram ás 15:03, tendo percorrido o trajeto de 1.315 km, em oito horas e oito minutos, com uma velocidade média de 163 km/h (velocidade esta comum a modernos automóveis com motorização 1.6).

No Puerto de la Luz foi realizada uma minuciosa revisão, mas, pelas condições do mar, o hidroavião foi transferido para a Baía de Gando. Neste local, devido ao pequeno espaço para decolagem, destinaram 400 kg de cargas em um navio holandês para a Argentina.

No dia 26, às 07:35, decola o “Plus Ultra” em direção as ilhas da então colônia portuguesa de Cabo Verde, a 500 km da costa de Senegal. Este trajeto seria monitorado por diversas estações de rádio e navios, que ajudaram o hidroavião Dornier Do J Wal a seguir a melhor rota. Depois de nove horas de voo, avistam a ilha de São Tiago e a cidade de Porto Praia, em uma etapa de 1.670 km, com uma velocidade média de 185 km/h. Em Porto Praia encontram os dois navios de guerra espanhóis que darão apoio na travessia Atlântica. Neste ponto, o alferes Duran, para diminuir o peso, é transferido para o destroier “Alsedo”, que zarpa no dia 27 de janeiro em direção ao Arquipélago de Fernando de Noronha.

A partir daquele ponto teria início a fase considerada mais difícil pelos aviadores – a travessia do Atlântico Sul. 

Sobre o Atlântico Sul 

No dia 30 de janeiro, o hidroavião decola as 06:10 para o “salto”. Durante uma hora mantém contato com Cabo Verde e os navios, depois só o silêncio.

Fernando de Noronha visto pelos aviadores espanhóis.

Voam a 300 metros de altitude, sobre um mar agitado e fortes ventos. Apesar desta situação, o voo transcorreu sem maiores problemas. O moral estava extremamente elevado e as máquinas respondiam aos comandos perfeitamente. Depois de mais de doze horas de voo, quando o sol já estava se pondo, avistam as ilhas brasileiras e as suas luzes.

Sendo impossível o pouso noturno, amerissam a vinte milhas de Fernando de Noronha, recebendo apoio de um navio inglês que reboca a aeronave até as proximidades do porto da Vila dos Remédios (alguns historiadores afirmam que a aeronave amerissou de forma equivocada, mas sem maiores consequências e a tripulação foi socorrida pelo navio).

Quando ancoram definitivamente recebem a visita do tenente Queiroz, comandante interino do presidio que existia no arquipélago, no lugar do Diretor Manoel Pinheiro de Menezes Filho. O militar chega em uma grande balsa e informa que naquele momento as condições do mar não ajudariam ao desembarque da tripulação no porto. Passaram então à noite no “Plus Ultra” e no outro dia chega o destroier “Alsedo”. Os espanhóis finalmente desembarcam em Fernando de Noronha, tendo percorrido 2.305 km, em 12:40 de voo.

Mesmo sem amerissarem no Rio Potengi, em Natal, a expectativa na capital potiguar com uma possível chegada do “Plus Ultra” era intensa. Até mesmo grandes propagandas de marcas de gasolina que abasteceram a aeronave eram vistas nos jornais natalenses da época.

No dia seguinte, 31 de janeiro de 1926, o hidroavião decola as 12:10, com destino a Recife. Estações de radiotelegrafia em Natal, Cidade da Paraíba (atual João Pessoa), Recife e Fernando de Noronha acompanham o trajeto do “Plus Ultra”.

Após a decolagem ouve o problema mais sério de todo o trajeto – a hélice do motor traseiro rompeu-se e houve um princípio de incêndio em pleno voo, debelado pelo mecânico Rada com suas próprias roupas. Neste momento todo material dispensável foi lançado no mar, com o intuito de tornar a aeronave mais leve e poder seguir com apenas um motor.

Este desenho mostra a expectativa da chegada do “Plus Ultra” ao Rio de Janeiro, na época a Capital Federal

No meio de toda tensão, segundo os tripulantes, houve momentos em que o casco do hidroavião Dornier Do J Wal roçou nas ondas, sendo necessário muito esforço e forte tensão para mantê-lo no ar.

Finalmente avistam as praias, provavelmente em algum ponto do litoral paraibano, pois teriam que voar mais 100 km em direção sul para chegarem a Recife. Durante todo este trecho os espanhóis seguiram perigosamente na altura dos coqueiros e já avistavam as pessoas nas praias acenando.

As 16:48, depois de quatro horas e trinta e oito minutos de voo, amerissam em Recife, após realizarem um rasante entre Olinda e o porto da cidade. 

Chegada em Recife

Houve uma grande concentração de pessoas, que começou a se reunir desde as duas da tarde, os aguardava no cais do porto, próximo ao atual bairro do Recife Antigo. A cidade, que em 1922 já havia recebido os pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, repetia a calorosa recepção a um novo hidroavião que atravessara o Atlântico Sul, adicionado pela grande expectativa gerada pela Rádio Clube do Recife, que a todo o momento irradiava boletins sobre a chegada do aeroplano espanhol.

Notícias sobre a chegada do hidroavião espanhol ao Nordeste brasileiro.

Luiz Amador Sanchez, cônsul espanhol na cidade (futuro escritor, professor da USP e pai do recentemente falecido ator global Luiz Gustavo, que interpretou personagens como “Beto Rockfeller” e “Mário Fofoca”), junto com mais de 500 espanhóis residentes na cidade recepcionam os pilotos. Os tripulantes estavam cansados e a imprensa notou que todos traziam medalhas de Nossa Senhora do Carmo. Ramon Franco esteve no Palácio do Campo das Princesas, onde foi saudado pelo então governador pernambucano Sergio Loreto e foi cumprimentado pela oficialidade do contratorpedeiro Piauí (CT-3), comandados pelo capitão Jorge Dodsworth Martins, futuro ministro da marinha brasileira.

Em meio a pouco descanso no Palace Hotel e muitas solenidades em vários locais, a tripulação do “Plus Ultra” esteve presente no Casino Boa Viagem para uma festa na noite de 2 de fevereiro, onde os tripulantes encaram a pista de dança. E parece que a noite foi muito positiva, pois no outro dia, as nove da manhã, Ramon Franco, na companhia de Pablo Rada, realizou um voo de testes de 20 minutos sobre Recife. Além dos dois tripulantes, acompanharam os espanhóis o cônsul Sanchez, o comandante Dodsworth Martins e duas beldades pernambucanas, Carolina Burle e Dolores Salgado. 

A Caminho do Rio de Janeiro 

Contudo, a jornada não estava encerrada, pois havia mais de 2.100 km de distância até o Rio de Janeiro, que até então nunca haviam sido percorridas sem escalas. No dia 04 de fevereiro, o “Plus Ultra” decolava do Rio Capibaribe as cinco da manhã, seguindo em direção sul. Depois de doze horas e dezesseis minutos de voo sem alterações, chegavam a Baía da Guanabara, o pouso inclusive teve alguma dificuldade, devido a grande quantidade de barcos que aguardavam o hidroavião Dornier Do J Wal.

Ramon Franco e o então presidente brasileiro Artur da Silva Bernardes, em recepção no Rio.

Ramon Franco e seus amigos foram recepcionados pelo Presidente Arthur Bernardes e outras autoridades. Como em Recife, grandes festividades aguardavam os espanhóis, sendo o comandante do hidroavião homenageado com seu nome batizando uma rua no bairro da Urca. Esta rua conserva até hoje o seu nome.

Placa da Rua Ramón Franco, no bairro da Urca, Rio de Janeiro.

Depois de cinco dias de eventos e festas, no dia 09 de fevereiro decolam rumo a Buenos Aires. Os tripulantes estão com sorte, pois um vento francamente favorável ajuda-os a percorrerem 2.600 km sem escalas, em doze horas e cinco minutos. Apesar disto, o sol já está se pondo, o que dificultaria a amerissagem no Rio da Plata. Os espanhóis decidem amerissar em Montevidéu, Uruguai, escala não prevista.

A rota do “Plus Ultra” em 1926.

No dia 10 de fevereiro de 1926, decolam para Buenos Aires, chegando depois de uma hora e doze minutos de voo. O hidroavião evolui três vezes sobre a capital Argentina e, após amerissar no Rio de La Plata, ocorre uma estrondosa recepção da população local.

Neste momento ocorre uma situação que poderia ter ampliado muito mais a conquista dos tripulantes do “Plus Ultra” e poderia tê-los trazido a Natal. O comandante Franco prontamente telegrafou ao Rei Afonso XIII, informando a finalização do voo e solicitando a permissão de continuar seguindo viagem pela costa sul americana do Oceano Pacifico, até Cuba. Depois continuariam voando até o norte do Brasil, até Natal e cruzariam pela segunda vez o Atlântico sul. Mas, a resposta foi não.

O Rei e as autoridades aeronáuticas espanholas decidiram encerrar a missão na Argentina, pois já estavam imensamente satisfeitos com o feito e não tinham total confiança de que o “Plus Ultra” poderia concluir o trajeto. Seria melhor ovacionar quatro heróis vivos, do que chorar por quatro mártires. Mais uma vez Natal não poderia ser palco da passagem do hidroavião espanhol.

Grande recepção aos aviadores espanhóis em Buenos Aires.

A distância total percorrida do trajeto Palos/Buenos Aires foi de 10.270 km, com um tempo estimado de cinquenta e nove horas e trinta e nove minutos de voo, em dezenove dias. Atualmente este trajeto é realizado em uma média de doze horas e meia de voo em um moderno Airbus, ou em um Boeing.

O “Plus Ultra” original, preservado em Lujan, Buenos Aires, Argentina – Fonte – https://www.laprensalatina.com/first-plane-to-fly-from-europe-to-latam-still-gleams-95-years-on/

O grande compositor argentino Carlos Gardel não deixou escapar a oportunidade e gravou o tango “La gloria del aguila”, narrando a epopeia dos espanhóis.

A aeronave deveria ser doada a nação Argentina, e lá ela ficou prestando serviços à aviação naval até sua retirada de serviço. Hoje está em exposição no Complexo Museógrafo Enrique Udaondo, de Luján, cidade localizada no extremo oeste da grande Buenos Aires. Uma cópia fiel do hidroavião está exposta no Museo Del Aire, em Madri, Espanha.

Os aviadores espanhóis retornam ao seu país no cruzador argentino “Buenos Aires”, chegando a 5 de abril de 1926. Foram cobertos de glórias e receberam do Rei Afonso XIII medalhas alusivas ao feito.

Esta viagem foi considerada na época, um grande salto na modernização do estado espanhol. Depois o país acompanharia mais dois “raids” aéreos com sucesso, um para as Filipinas e o outro a Guiné Equatorial, com outros aviões e tripulantes. Ramon Franco e Alda tentariam mais uma empreitada aérea, mais sem sucesso (ler mais adiante). 

Caminhos Distintos 

O destino final dos aviadores seria muito diferente, em meio a situações político-sociais extremas na Espanha e na Europa.

Como resultado da crise da bolsa de valores de Nova York agravou-se a situação social e econômica da Espanha, levando a deposição do General Primo de Rivera e, em seguida, caiu também a monarquia. O Rei Afonso XIII foi obrigado a buscar o exílio e a República foi proclamada em 1931.

Havia com a proclamação da república a intenção da Espanha buscar uma maior aproximação com os seus vizinhos europeus, realizando uma reforma social que iria retirar a nação do oásis tradicionalista no qual vivia. Existiam projetos para a separação da igreja e do estado (No Brasil, este fato ocorreu em 1889), introdução de conquistas sociais, liberdade eleitoral, liberdade de expressão e organização sindical.

Contudo, a profunda depressão econômica provocou uma enorme frustração generalizada na sociedade espanhola, que apoiada em forte radicalismo de determinados setores, terminou levando o país a conhecer um violento enfrentamento de classes. O mais dramático e sangrento ocorrido na Europa antes da Segunda Guerra Mundial.

Em meio a esta situação política o alferes da marinha Juan Manuel Duran Gonzáles viria a falecer cinco meses depois do voo, em um acidente de aviação. Já os outros três tripulantes estariam presentes na tragédia quer foi a Guerra Civil Espanhola.

Julio Ruiz de Alda torna-se em 1927, membro do Conselho Superior de Aviação e Automobilismo e representante espanhol para a Federação Internacional de Aeronáutica. Em 1928 é nomeado chefe de um grupo de aviação. Foi neste período que ele tenta, juntamente com Ramon Franco, realizar uma volta ao mundo em um avião Dornier 16, mas sem sucesso. Logo após solicita baixa do exército. Torna-se empresário e, com o fim da ditadura, aproxima-se da política. Tanto que em 1932, já é considerado por alguns setores políticos espanhóis chefe do fascismo na Espanha. Em 29 de outubro de 1933, funda com José Antonio Primo Rivera (filho do ex-ditador Primo Rivera), a Falange Espanhola. Este grupo seria conhecido como tradicionalista, fascista, paramilitar, que participaria da guerra civil junto ao futuro ditador Francisco Franco. Por suas atividades, Alda seria preso pelo governo republicano em 14 de março de 1936 e fuzilado em 23 de agosto do mesmo ano.

O soldado mecânico Pablo Rada Ustarroz, depois de agraciado pelo Rei Afonso XIII, inicia estudos e obtém o brevê de piloto. Por sua forte amizade a Ramon Franco participa, em 1930, de um fracassado movimento de ação política (ver mais adiante).

Dedicou-se a política durante a república, tornando-se militante de esquerda. Participou da queima de conventos católicos durante a Guerra Civil. Com o desfecho do conflito, foi obrigado a exilar-se na Colômbia, aonde se dedica a indústria de automóveis. Retornou em abril de 1969, para falecer na Espanha, com uma grave enfermidade hepática, tinha 67 anos. 

O Último Voo de Franco 

Contudo, a figura com a biografia mais intensa após o vôo do “Plus Ultra”, seria o próprio comandante Ramon franco. Se já seria muito comentar que o mesmo era irmão caçula do próprio general e futuro ditador Francisco Franco, mais interessante é saber que o aviador, durante um período, foi opositor do poderoso irmão e posteriormente seu aliado, para depois de sua morte ser esquecido durante muito tempo pelo governo espanhol.

Depois do vôo do “Plus Ultra”, Ramon Franco torna-se da noite para o dia uma figura muito popular na Espanha, mais que qualquer artista ou toureiro, tal era a admiração da população pela aviação e pelo seu glorioso “raid”, chegando a escreve em 1926, o livro “De Palos a Plata”, narrando o voo.

Tenta juntamente com Alda, em 1928, à volta ao mundo em um Dornier 16, mas o avião cai no mar. Eles passam alguns dias à deriva, sendo enfim resgatados por um porta aviões britânico. Ramon é fortemente criticado pelo fracasso da missão, torna-se um forte opositor e conspirador contra a monarquia e a ditadura.

Devido a sua popularidade era considerado um adversário muito perigoso. Seria preso e, posteriormente, conseguiria fugir com a ajuda de Rada. Em 15 de dezembro de 1930, junto com o mesmo Pablo Rada, Queipo de Llano e outros aviadores que apoiavam a república, apoderam-se de alguns aviões no aeroporto de “Quatro Vientos”, com a intenção de bombardear o Palácio Real, em Madri. Não conseguiram realizar a ação, fugindo para Portugal. Deste episódio, Franco escreveria em 1931, o livro “Madrid bajo las bombas”.

Após a sua fuga da Espanha, Ramon só retornaria com a proclamação da república. No regresso foi nomeado Diretor Geral da Aeronáutica, sendo destituído por participar de uma revolta anarquista na Andaluzia. Foi depois eleito para o parlamento por grupos republicanos de Sevilha e Barcelona, declarava-se um tanto estranhamente “republicano de esquerda, mas não comunista”. Retirou-se do exército, que por esta época era uma instituição que cada dia mais se tornava antirrepublicana. Não foi um grande parlamentar e seus biógrafos consideram o maior erro de sua vida a sua entrada na política.

Quando estourou a Guerra Civil, Ramon encontrava-se nos Estados Unidos como membro agregado do adido aeronáutico espanhol. Ao retornar a sua nação, mostrando a sua inconsistência ideológica, não mais apoia os republicanos e segue as ideias do irmão, “El Generalíssimo Franco”. Foi nomeado tenente-coronel e chefe da Base Aérea de Barcelona, a mesma Barcelona que o elegera deputado republicano. O comandante Ramon Franco sempre foi considerado um homem de ação, mais de poucas ideias políticas concretas.

Em outubro de 1938, seu hidroavião italiano caiu nas proximidades da Ilha de Maiorca, quando pretendia bombardear a zona republicana. Existe até hoje na Espanha uma discussão se o comandante Franco caiu com seu hidroavião, suicidou-se ou se a aeronave caiu por um ato de sabotagem. Nada ficou totalmente esclarecido. Seu irmão, que na época combatia em Elbro, não foi ao seu enterro em Maiorca. 

Conclusão 

Durante o terrível regime franquista, talvez por ter sido muito contraditório, o comandante Ramon Franco se converteu em um personagem muito incômodo, sendo ele praticamente esquecido do panteão dos heróis nacionais.

Mas a Espanha mudou, Francisco Franco se tornou passado e um novo país surgiu no sul da Europa.

Em 30 de janeiro de 2001, com a presença do então Príncipe de Astúrias, atual Rei Felipe VI, decolou da mesma Palos de La Fronteira, um hidroavião de combate a incêndio, buscas e salvamento Canadair CL-215T, do Grupo 43, da Força Aérea Espanhola, acompanhado de um Hércules C-130. As duas aeronaves realizavam a mesma rota, ponto a ponto, percorrida por Ramon Franco e seus companheiros do “Plus Ultra”. 

O voo do “Plus Ultra”, não veio a Natal e nem sequer sobrevoo terras potiguares. Entretanto, na sua época, seu “raid” teve uma repercussão enorme no cenário da aviação mundial. Os espanhóis mostrariam que com o aparelho certo, tecnologia de ponta e correto apoio, estava pronto o cenário para a realização de grandes viagens aéreas sobre o Atlântico Sul.

LAMPIÃO NO RIO GRANDE DO NORTE – A HISTÓRIA DO ESCONDERIJO DA CAVERNA DA CARRAPATEIRA

Rostand Medeiros – IHGRN

A zona rural do município de Felipe Guerra impressiona tanto os espeleólogos como os habitantes locais. No tocante a quantidade e a qualidade das cavernas. Há tempos que esse município se mostra como uma das mais promissoras áreas no estado do Rio Grande do Norte e com ótimas possibilidades para o desenvolvimento do turismo espeleológico.

Entrda da caverna da Carrapateira, zona rural de Felipe Guerra, Rio Grande do Norte – Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Mas além do seu conjunto de belas cavidades naturais, a região de Felipe Guerra mantém, mesmo passados quase 95 anos, as memórias e as lembranças das agruras sofridas com a passagem do bando do cangaceiro Lampião, em seu ataque a cidade de Mossoró.

Dessas lembranças ficou o registro do medo e as mudanças que os mais antigos sofreram em suas vidas, com os acontecimentos ocorridos em junho de 1927. Uma época em que o trabuco falava mais alto que a força da justiça. Até hoje a tradição oral é transmitida dos que ouviram dos seus familiares, trazendo para os mais jovens os acontecimentos de um momento triste da história do sertão potiguar e o interessante em Felipe Guerra é que muitos possuem uma ou mais história sobre esses acontecimentos.

E a maioria da sua população sabe da existência destas cavernas através dos acontecimentos da época do cangaço, pois foi em uma destas cavidades que alguns habitantes conseguiram um abrigo prático para os terríveis eventos que ocorriam nas proximidades das suas casas e deixou na lembrança das pessoas do lugar um respeito muito grande por este tipo de ambientes natural.

Lampião em seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução – Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/brutal-lampiao.phtml#.WWwJ3ojyvXP

Esta é a história daqueles dias incertos e da caverna que ajudou os moradores do lugar.

A Pedra de Abelha

Em 1927 Felipe Guerra era um pequeno arruado conhecido como Pedra de Abelha, fincado às margens do Rio Apodi, onde a vida seguia tranquila, para seus pouco menos de 1.000 habitantes. Eles sobreviviam da cera de carnaúba, da pequena agricultura e da pecuária. Na época dos invernos mais fortes, a pequena vila sofria as enchentes provocadas pelo Rio Apodi, como foi o caso das cheias de 1912, 1917 e a de 1924.

Por esta época Pedra de Abelha era um ponto de passagem de viajantes, tropas de burros, vendedores, vaqueiros e outros andarilhos que seguiam a estrada entre a pulsante e rica cidade de Mossoró e a progressista Apodi.

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Havia uma pequena feira que crescia a cada ano, sempre em ordem e em paz, pronunciando uma tendência de progresso para o pequeno lugar. Outra lembrança de boas perspectivas foi a passagem de alguns homens, de língua enrolada, que se diziam engenheiros, faziam medições e coletavam pedras no lajedo do Rosário, na região da Passagem Funda, um lugarejo a oito quilômetros de Pedra de Abelha. Logo se espalhou a notícia que o lugar seria transformado em uma grande barragem, que haveria muitos empregos, que seria maior que a barragem de Pau dos Ferros e que a vida em Pedra de Abelha iria mudar para melhor. Mas a barragem não veio e a vida seguiu tranquila.

Junto com os primeiros dias de maio de 1927 chegaram notícias de que a região oeste do estado do Rio Grande do Norte iria conhecer e sofrer.

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

No dia 10, pela madrugada, o cangaceiro paraibano Massilon Leite e mais vinte bandidos atacaram Apodi, depois seguiram para Gavião (atual Umarizal) e na sequência, pilharam a pequena vila de Itaú. Os relatos comentavam que apenas um cangaceiro foi preso próximo à cidade serrana de Martins.

Para a ordeira população de Pedra de Abelha, ficou o pensamento de que, se os cangaceiros haviam atacado Itaú, uma vila praticamente do mesmo tamanho do seu lugar, por que não atacariam o pequeno povoado à beira do Rio Apodi?

Passou então a existir no seio da população uma forte intranquilidade.

Não que os moradores de Pedra de Abelha não soubessem o que era violência. Já haviam ocorrido casos de criminosos assaltando viajantes, pistoleiros contratados por coronéis para impor suas ordens, a realização de tocaias e o flagelo da vingança. Um dever sagrado entre os sertanejos. Um dever que filhos de qualquer pai assassinado herdaram. E seria vergonhoso, seria desonra inominável em uma família enlutada pelo homicídio, se não aparecesse um vingador um “cabra macho” para cumprir a sina.

Realmente violência não era novidade naquele recanto perdido do sertão, mas um grande grupo de cangaceiros era um problema novo por aqueles lados.

Lampião – Fonte – lounge.obviousmag.org

No Cangaço

Os nomes de cangaceiros antigos como Lucas da Feira e Jesuíno Brilhante, e de facínoras mais novos (para 1927) como Antônio Silvino, Sinhô Pereira e Luís Padre, eram muito comentados pelos habitantes mais idosos e pelos viajantes que procediam da Paraíba, Ceará e Pernambuco. Mas nos últimos tempos o nome mais comentado, temido e respeitado era o do famoso Lampião.

O Pernambucano natural de Vila Bela, atual Serra Talhada, com pouco menos de 30 anos em 1927, já era uma lenda e o seu nome impunha respeito e terror em grande parte do Nordeste.

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Nascido em 4 de junho de 1898, Virgulino Ferreira da Silva vinha de uma família humilde, mais proprietária de uma pequena fazenda. Seu pai, José Ferreira, trabalhava como condutor de tropas de burros que transportavam mercadorias pelos sertões de Pernambuco e Alagoas. Nessas viagens, Virgulino e seus irmãos passaram a conhecer aqueles caminhos e mantiveram contatos que seriam preciosos no futuro.

Em 1915, inicia-se um problema com o vizinho José Saturnino, envolvendo o desaparecimento de animais de criação. Estas desavenças dariam início à metamorfose de Virgulino em Lampião.

Devido a perseguições, em um prazo de três anos, a família Ferreira vê-se na contingência de realizar várias mudanças, sendo obrigados a vender as suas terras e a viver como empregados pelas pressões sofridas. Devido aos fatos, a mãe de Virgulino acabou falecendo, aparentemente de um ataque cardíaco. Já seu pai foi assassinado por uma tropa da polícia alagoana que perseguia os irmãos Ferreira.

Lampião

É impossível não observar que uma das razões da entrada dos irmãos Ferreira no cangaço, foi à falta de justiça pelas contínuas perseguições sofridas, criando uma reação armada que abalou o Nordeste do Brasil ao longo de vinte anos.

No início, a atuação de Lampião foi em outros bandos, finalmente assumiu o comando de seus “cabras” em 1922, nesse mesmo ano assaltaram o casarão da Baronesa de Água Branca, em Alagoas, fazendo aumentar a sua terrível fama. Em 1924, seus cangaceiros, em conjunto com o paraibano Francisco Pereira Dantas, o conhecido Chico Pereira, atacam a progressista cidade de Sousa, no oeste da Paraíba. Em 25 de maio de 1925 Lampião e seu bando

Lampião

Lampião era um guerrilheiro nato, produto de um meio quase selvagem e atrasado. Possuía a capacidade de articular ataques, fugas mirabolantes, alianças escusas e uma perícia na manivela e no gatilho do rifle que parecia “alumiar” à noite, daí o seu famoso apelido.

Em 1926 uma coluna de homens que percorriam o país com a intenção de derrubar o governo do presidente Arthur Bernardes, comandados por Miguel Costa e Luís Carlos Prestes, se aproximou e entrou em território cearense, Para fazer frente a essa situação foi criada uma frente de defesa contra os chamados Revoltosos na cidade de Juazeiro do Norte, onde o principal líder político e religioso do lugar, o Padre Cícero, mandou convocar o chefe cangaceiro que aterrorizava o sertão nordestino para combater aquele grupo, que entraria para a História do Brasil conhecido como Coluna Prestes.

Foto dos líderes do grupo insurgente conhecido como Coluna Prestes. Esse grupo foi liderado pelo coronel da Polícia do Estado de São Paulo Miguel Costa e pelo capitão do Exército brasileiro Luís Carlos Prestes, que lutou contra a estrutura de governo que existia no Brasil na segunda metade da década de 1920 – Fonte – http://rotadosolce.blogspot.com.br

No dia 5 de março, Lampião, à frente de 50 cangaceiros, entra em Juazeiro. Ele se encontra com o Padre Cícero, recebe uniformes, armamentos modernos e a sua propalada patente de capitão dos Batalhões Patrióticos. Ao sair de Juazeiro e seguir para Pernambuco, Lampião é perseguido pela polícia local. Desapontado, aparentemente decide voltar para Juazeiro para falar com o Padre Cícero, mas este não o recebe e Lampião encerra a sua breve carreira de defensor público.

Passagem dos Cangaceiros

Voltando à pacata Pedra de Abelha na metade de 1927.

Os habitantes do singelo lugar ficaram bem apavorados quando chega a notícia que em 10 de junho, incentivado por Massilon Leite, Lampião cruzou a fronteira da Paraíba e entrou no estado Potiguar com cerca de 60 cangaceiros (número que gera muita polêmica até hoje) montados em cavalos e burros, todos seguindo em direção a Mossoró.

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Avançando para o norte, promoveram um verdadeiro bacanal de destruição, rapinagem e terror. Roubaram, tocaram fogo em diversas fazendas, assassinaram os que reagiam, entraram em confronto com a polícia e fizeram alguns prisioneiros, do qual só libertaram mediante resgate. Lampião e seus cangaceiros realizam os primeiros sequestros conhecidos no Rio Grande do Norte. A passagem de Lampião e seu bando durou apenas cinco dias, mas a região oeste potiguar nunca esqueceu este episódio.

O bando passou ao lado da povoação de Gavião (atual Umarizal) e continuou depredando as propriedades como Campos, Arção, Xique-Xique e Apanha Peixe e nesta última propriedade, para a sorte da população de Pedra de Abelha, o bando foi dividido.

Às sete da noite de 12 de junho de 1927 seguiu o cangaceiro Massilon Leite para assaltar pela segunda vez a cidade de Apodi, enquanto Lampião seguia para Mossoró. Em Apodi houve resistência da população, obrigando Massilon a fugir. Devido a esta divisão, Lampião seguiu adiante por outra estrada, passando paralelo ao povoado de Pedra de Abelha. Realmente foi por pouco que a pequena comunidade não foi invadida. 

Na zona rural do município de Umarizal visitamos uma das mais belas e bem preservadas propriedades rurais existentes no trajeto da passagem do bando de Lampião no Rio Grande do Norte, a Fazenda Campos, que foi invadida na manhã de 12 de junho de 1927 – Foto – Rostand Medeiros.

Mas se não foi invadida, esse caminho fez o bando cruzar com o comerciante e fazendeiro Antônio Gurgel do Amaral, proprietário de uma moderna fazenda em Pedra de Abelha, às margens do Rio Apodi, no atual Distrito do Brejo. Nesta propriedade foram empregadas muitas pessoas.

Até recentemente o local possuía uma estrutura muito moderna para a época, inclusive com eletricidade e mecanização. Antônio Gurgel havia acabado de chegar de uma viagem da Europa, onde buscava trazer matrizes de novas raças bovinas para desenvolverem-se na sua região.

Assim que soube do avanço dos cangaceiros, seguiu de Mossoró para a sua fazenda e proteger seus familiares e seus bens. No meio do caminho, na localidade chamada Santana, foi preso por membros do bando. Era o dia 12 de junho e somente no dia 25, Gurgel seria libertado no Ceará, juntamente com outra refém. Por ser Gurgel um homem inteligente, de boa conversa, índole calma e que sempre procurou a tranquilidade junto aos bandidos, ele nada sofreu.

Durante sua convivência forçada, escreveu um diário que é tido como o mais completo documento sobre a vida e o dia a dia entre estes cangaceiros. Lampião lhe deu duas moedas de ouro para serem presenteadas a sua neta e, como pagamento de uma promessa feita pela sua liberdade, sua mulher construiu uma capela na Fazenda Santana, que infelizmente foi demolida, bem como a sede de sua fazenda em Felipe Guerra.

Antônio Gurgel do Amaral – Fonte – http://www.blogdogemaia.com/detalhes.php?not=1032

A Caverna da Carrapateira 

Antes até da prisão do coronel Gurgel, com a chegada das notícias cada vez mais assustadoras, a população de Pedra de Abelha tratou de procurar refúgio onde houvesse condições. Muitos seguiram para a fronteira do Ceará, outros foram para propriedades de parentes mais distantes e outros que conheciam melhor a região, buscaram o abrigo das cavernas.

É bem verdade que a população do sertão possui um medo respeitoso em relação às cavernas, mais naquele momento, este medo foi deixado de lado e a escuridão da caverna passou a ser um abrigo mais acolhedor do que a incerteza da luz do dia e a presença de cangaceiros na região.

A caverna da Carrapateira fica localizada no Lajedo do Rosário, próximo ao atual distrito de Passagem Funda e a pouco mais de mil metros da margem esquerda do Rio Apodi. Entre as várias cavernas deste lajedo, essa é a que apresenta a maior facilidade de penetração.

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Sua entrada tem formato oval, com quatro metros de altura e possui desenvolvimento horizontal, no seu início encontram-se alguns blocos caídos e deslocados, também presentes localmente no interior da caverna.

Chama a atenção a forma como a natureza moldou o túnel principal, sendo muito largo e alto para os padrões das cavernas nas proximidades. Sua sinuosidade apresenta contornos de fluxo d’água, marcados nas paredes bastante lisas, lavradas, de rocha calcária limpa e de cor amarelada, com níveis de sedimentação à mostra. Os espeleotemas, as famosas formações rochosas que ocorrem tipicamente no interior de cavernas como resultado da sedimentação e cristalização de minerais dissolvidos na água, criando muitas vezes materiais de rara beleza, são encontrados nessa cavidade. São escorrimentos de calcita, cortinas, algumas estalactites e estalagmites. Na parte posterior do corredor principal, aparecem outros tipos de espeleotema muito comum nas cavidades da região: o couve-flor.

Conforme adentramos a caverna da Carrapateira, o chão vai apresentando uma menor continuidade, mostrando reentrâncias, blocos rolados, até desembocar em uma bifurcação, de onde a caverna segue para salões mais apertados, seguindo por condutos menores. Neste setor, tem-se uma clarabóia de poucos metros de altura, aproximadamente três metros. Por ela pode-se sair do interior com facilidade.

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Pelas dimensões do seu interior, pela proximidade com o rio e como na região encontram-se diversas provas da passagem de grupos de caçadores e de coletores, entre 5.000 e 2.000 anos atrás, essa caverna é a que melhor poderia sugerir a possibilidade de algum indício arqueológico. Contudo, não foram vistos pinturas ou evidências nesse sentido. Sua litologia é o calcário e até anos recentes não apresenta nenhuma depredação.

Durante nossas visitas à caverna da Carrapateira não foram encontrados vestígios da ocupação dos habitantes de Pedra de Abelha na caverna.

Quando das nossas visitas à região, ouvimos repetidas vezes relatos de pessoas cujos avós e outros familiares buscaram abrigo nesse local. Entretanto o tempo, o Senhor de tudo e de todos, chegou à nossa frente, pois aqueles que buscaram esse local como abrigo já não estavam mais nesse plano. Mas percebi que o número de pessoas que buscaram esse abrigo foi pequeno. Além disso, foi possível observar que, diferentemente de outras pessoas que guardam na memória relatos daqueles que tiveram experiências com cangaceiros na região, os poucos parentes daqueles que buscaram abrigo na caverna da Carrapateira, pouco tem a comentar. 

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Como, para a sorte dos refugiados escondidos na caverna da Carrapateira, não houve nenhum tipo de contato com os cangaceiros e quase certamente os que buscaram esse abrigo em 1927 foram poucos, ao longo do tempo esse tema caiu no esquecimento. Pois no final das contas, sobreviver naquela região é parte da rotina diária.

Fim Do Ato

Lampião seguiu seu caminho.

Foto – Solón Rodrigues Almeida Netto.

Na Segunda-feira, 13 de junho de 1927, dia de São Francisco, às 16:30 da tarde, com o céu nublado, os cangaceiros, divididos em três colunas, atacaram a maior cidade do interior do Rio Grande do Norte. O seu Prefeito, Rodolfo Fernandes, sem ajuda do governo do estado, conseguiu reunir desde advogados, dentistas, comerciantes, padres e pessoas comuns, entrincheirando-os em vários locais.

Os cangaceiros foram derrotados depois de uma hora de combate, não mataram ninguém e perderam um cangaceiro na hora e outro, o temível Jararaca, foi ferido e capturado no outro dia. Acabou assassinado pela polícia local no dia 20 de junho e o mais incrível é que seu túmulo se tornou um local de peregrinação religiosa popular.

Lampião sofreu a sua mais terrível derrota, comentou que “Cidade com mais de quatro torres de igreja não é para cangaceiro”. Sem conhecer o seu tamanho e a sua capacidade de defesa, acabou enganado pela promessa de Massilon de pouca resistência e muito dinheiro.

O seu ataque a Mossoró causou repercussão em todo país, sendo noticiado em muitos jornais. Foi um verdadeiro choque, que impulsionou ainda mais a sua fama. Foi a partir deste episódio que o seu nome ficou muito conhecido no sul do país.

Após fugir do Rio Grande do Norte, para onde nunca mais voltou, o bando seguiu para o Ceará, onde pensavam que estariam protegidos e foram implacavelmente perseguidos. O mesmo ocorreu na Paraíba e em Pernambuco. Em 1928 cruzou o Rio São Francisco e conseguiu uma sobrevida de mais dez anos, praticando atrocidades na Bahia, Alagoas e Sergipe, onde foi morto, com a sua companheira Maria Bonita, na Grota do Angico.

Para a população de Pedra de Abelha, sempre que as notícias sobre Lampião surgiam, voltava as lembranças dos medos e aflições de junho de 1927. Com a sua morte (1938) e o desbaratamento do cangaço (1940), passa a existir um alívio. Com o passar dos anos, ocorre o natural desaparecimento das vítimas sobreviventes dos atos cruéis dos cangaceiros e muitos dos descendentes destas vítimas deixam a região, emigrando para grandes centros. Falar sobre os fatos da época do cangaço deixou de ser um tabu.

A partir dos anos 1960, o mito deste cangaceiro o torna um dos personagens históricos mais famosos da cultura popular brasileira, onde em muitos lugares do país a figura de Lampião é encarada como símbolo de nacionalidade e o Cangaço como um expoente da luta da cultura e do povo nordestino.

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Bibliografia:

FERNANDES, Raul, A MARCHA DE LAMPIÃO, ASSALTO A MOSSORÓ. 3 ed. Natal, Editora Universitária, 1985.

NONATO, Raimundo, LAMPIÃO EM MOSSORÓ. 5 ed. Mossoró, Coleção Mossoroense, Fundação Vingt-Un-Rosado, 1998.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira, HISTÓRIA DO CANGAÇO, 4 ed. São Paulo, Global Editora, 1991.

CHANDLER, Billy Jaynes, LAMPIÃO, O REI DOS CANGACEIROS, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980.

FACÓ Rui, CANGACEIROS E FANÁTICOS, GÊNESE E LUTAS, 7 Ed. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1983.

PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico, QUEM FOI LAMPIÃO, Recife, Editora Stahli, 1993.

DELLA CAVA, Ralph, MILAGRE EM JUAZEIRO, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1976. 

O FAMOSO DEBATE ENTRE O ESCRITOR JAMES BALDWIN E O INTELECTUAL WILLIAM F. BUCKLEY NA UNIVERSIDADE CAMBRIDGE

Em breve completará 60 anos do dia que dois grandes intelectuais norte-americanos se enfrentaram em um debate histórico, sobre a tensa situação das divisões raciais dos Estados Unidos. Passadas tantas décadas, o evento não perdeu sua relevância e a fala do escritor negro James Baldwin continua marcante.

Fonte – Baseado no texto de Gabrielle Bello, em The American – Fonte – https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/12/james-baldwin-william-f-buckley-debate/602695/

Existe na Inglaterra uma sociedade de debate e liberdade de expressão chamada Cambridge Union Society, também conhecida como Cambridge Union, sendo essa a maior sociedade de alunos da Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Brasão da Cambridge Union – Fonte – Wikipédia

Fundada em 1815, a Cambridge Union é a mais antiga sociedade de debates em funcionamento contínuo no mundo. É legalmente uma instituição de caridade autofinanciada, que possui e tem controle total sobre sua propriedade privada e edifícios no centro da cidade de Cambridge. Essa sociedade igualmente arrecada fundos para despesas de eventos e manutenção de seus edifícios por meio de taxas de associação e patrocínio, além de gozar de fortes relações com a famosa universidade, uma instituição acadêmica cuja fundação remonta ao ano de 1209.

Depois de mais de 200 anos, a Cambridge Union é mais conhecida por seus debates, que recebem atenção da mídia nacional e internacional. Em 18 de fevereiro de 1965, no seu principal auditório, completamente lotado na ocasião, houve um desses debates. E o que ali foi dito reverbera até hoje!

James Baldwin (esquerda) e William F. Buckley (direita) – Fonte – Dave Pickoff / AP / Bettmann / Getty / The Atlantic – Via – https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/12/james-baldwin-william-f-buckley-debate/602695/

Choque de Titãs

“O sonho americano está às custas do negro americano”, declarou James Arthur Baldwin (Nova Iorque, 2 de agosto de 1924 — Saint-Paul de Vence, 1 de dezembro de 1987)[1] em seu debate com William Frank Buckley Junior (Nova Iorque, 24 de novembro de 1925 – Stamford, 27 de fevereiro de 2008)[2]. Baldwin estava ecoando a moção do debate – que o sonho americano estava às custas dos negros americanos, com Baldwin a favor, Buckley contra.

A ênfase na palavra de Baldwin deixa seu ponto de vista claro. “Eu colhi o algodão e o levei para o mercado, e construí as ferrovias sob o chicote de outra pessoa para nada”, disse ele, sua voz subindo com a cadência do púlpito. “Por nada.” O auditório lotado ficou em silêncio. 

Prédio da Cambridge Union – Fonte – Wikipédia.

Aqui estava um choque de titãs diametralmente opostos: em um canto estava Baldwin, baixo, esguio, quase andrógino com seu rosto ainda jovem, a voz carregando as inflexões levemente cosmopolitas que ele tinha há anos. Ele era o radical do debate, um escritor estimado sem medo de condenar vulcanicamente a supremacia branca e o racismo antinegro de norte-americanos conservadores e liberais. No outro canto estava Buckley, alto, de pele clara, cabelo bem penteado e mandíbula rígida, suas palavras esculpidas com seu sotaque transatlântico característico, quase britânico. 

Se Baldwin – o virtuoso verbal que escreveu retratos comoventes da América negra e sobre a vida como um expatriado na Europa – defendeu a necessidade de mudança dos Estados Unidos, Buckley se posicionou como o moderado razoável que resistiu às transformações sociais que os líderes dos direitos civis pediam. principalmente o fim da segregação racial. Alguns dos alunos na plateia o conheciam como nada menos que o pai do conservadorismo americano moderno.

Um recente debate na Cambridge Union, com a presença do ator inglês Stephen Fry. Nesse mesmo local debateram Baldwin e Buckley em 1965 – Fonte – Wikipédia.

O apoio de Buckley ao direito do Sul à segregação e as condenações de Baldwin à América branca ocorreram contra o pano de fundo onde os Estados Unidos se encontrava profundamente dividido em 1965, tal como em 2022.

Mundos Diferentes

Uma pedra fundamental para o entendimento desse debate está nas diferenças marcantes em como Baldwin e Buckley foram criados. 

Enquanto Baldwin cresceu pobre no bairro do Harlem, Nova York, com predominância de residentes negros e pobres, Buckley foi cercado por privilégios. Sua mãe, Alöise Steiner Buckley, encheu sua casa com criados e tutores para seus dez filhos. Ela era profundamente católica, a semente das rígidas visões religiosas maniqueístas que seu filho adotaria. Ao longo de sua vida, Buckley se tornaria conhecido pela estrita divisão de “bem” e “mal” em sua visão de mundo, segundo a qual o catolicismo e o capitalismo eram bons, e o ateísmo e o socialismo exemplificavam o mal.

Também ficou claro para a descendência de Alöise o que ela pensava sobre quem deveria servir a quem na sociedade americana. Ela era “racista”, segundo lembrou o irmão de Buckley, o escritor e educador Fergus Reid Buckley, porque “assumia que os brancos eram intelectualmente superiores aos negros”. Mas ele acrescentou que “ela realmente amava os negros e se sentia seguramente confortável com eles desde a suposição de sua superioridade em intelecto, caráter e posição.”

Essa dinâmica peculiar e paternalista pressagiava a própria ideologia de William, em que mãe e filho acreditavam em manter as barreiras entre negros e brancos americanos como parte da cultura sulista. Quando adulto, Buckley costumava escrever que a segregação era uma necessidade, porque os americanos negros “ainda não” eram avançados o suficiente para serem iguais aos brancos, o que implica, com uma condescendência que ele talvez considerasse edificante, que eles poderiam um dia estar no mesmo nível.

Baldwin no debate de 18 de fevereiro de 1965.

Baldwin, ao contrário de Buckley, sofreu muito antes de alcançar a fama como autor. Ele deixou Nova York em 1948, quase sem um tostão, para a França, depois de decidir que não poderia mais sobreviver ao traumatizante racismo dos Estados Unidos — tanto nos estados do norte quanto do sul. Embora tenha encontrado algum descanso em Paris, ele ainda quase cometeu suicídio lá depois de ser preso pela polícia por suspeita de ter roubado o lençol de um hotel (o que não aconteceu). E ele continuou voltando para a seu país, tanto em seus livros quanto em suas viagens. Baldwin nunca se escondeu; em vez disso se colocou na linha de frente de uma batalha pelos direitos civis por nada menos que a alma dos Estados Unidos.

Pedra de Torque

Se não fosse o debate de 1965, Baldwin poderia nunca ter conhecido Buckley. Na verdade, Baldwin quase teve outro oponente. Antes de a Cambridge Union convidar Buckley, ela havia procurado políticos firmemente segregacionistas, que recusaram. Buckley parecia uma alternativa ideal: um crítico sociopolítico articulado e proeminente que evitava os epítetos racistas dos supremacistas brancos mais vocais do conservadorismo, mas que, no entanto, apoiava a segregação. Buckley viu o debate como uma chance de derrotar um de seus arqui-inimigos ideológicos em um palco público.

William F. Buckley no debate.

Para irritação de Buckley, embora não totalmente para sua surpresa, Baldwin fez uma performance empolgante. 

Baldwin declarou durante o debate que era “um grande choque por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você jurou lealdade, junto com todos os outros, não prometeu lealdade a você.” Baldwin argumentou que os males da escravidão dificilmente haviam sido exorcizados após a abolição, mas que, em vez disso, o país ainda era essencialmente o mesmo para os negros americanos como era durante os dias da escravidão legal. 

Depois que Baldwin encerrou, ele foi aplaudido de pé, em uma rara manifestação da Cambridge Union. Nas imagens desse debate no YouTube, é nítido como James Baldwin fica até mesmo desconcertado diante da plateia.

Apresentação dos debatedores.

Quando chegou a sua vez, Buckley argumentou que Baldwin estava sendo tratado com luvas de pelica, por assim dizer, porque alegava ser uma vítima. “O fato de sua pele ser negra”, ele asseverou, “é totalmente irrelevante para os argumentos que você levanta”. Baldwin, disse ele lentamente e cheio de uma raiva silenciosa, era um inimigo violento do modo de vida sulista que proferiu “flagelações de nossa civilização” e da América como um todo. Forçar o sul americano a abandonar seu modo de vida e aceitar a integração imposta pelo governo, insistiu, seria imoral. 

Em última análise, o público discordou e Baldwin venceu o debate por 540 a 160 votos.

É difícil falar sobre Baldwin ou Buckley sem fazer referência a este encontro; tornou-se uma pedra de toque na vida de ambos os homens.

Segue a transcrição da fala de James Baldwin.

Auditório lotado.

Boa noite,

Encontro-me, não pela primeira vez, na posição de uma espécie de Jeremias. Por exemplo, não discordo do Sr. Burford de que a desigualdade sofrida pela população negra americana dos Estados Unidos atrapalhou o sonho americano. Na verdade, tem. 

Discordo com algumas outras coisas que ele tem a dizer. O outro elemento, mais profundo, de uma certa estranheza que sinto tem a ver com o ponto de vista de alguém. Tenho que colocar dessa maneira – o sentido, o sistema de realidade de alguém. Parece-me que a proposição perante a Câmara, e eu colocaria dessa forma, é o sonho americano às custas do negro americano, ou o sonho americano * é* às custas do negro americano. 

A questão está terrivelmente carregada, e então a resposta de alguém a essa questão – a reação de alguém a essa questão – tem que depender do efeito e, com efeito, de onde você se encontra no mundo, qual é o seu senso de realidade, qual é o seu sistema de realidade é. Isto é, depende de suposições que sustentamos tão profundamente que mal temos consciência delas.

Sejam brancos sul-africanos ou meeiros do Mississippi, ou xerifes do Mississippi, ou um francês expulso da Argélia, todos têm, no fundo, um sistema de realidade que os obriga a, por exemplo, no caso do exílio francês da Argélia, ofender razões francesas para ter governado a Argélia. 

O xerife do Mississippi ou do Alabama, que realmente acredita, quando se depara com um menino ou uma menina negra, que essa mulher, esse homem, essa criança devem ser loucos para atacar o sistema ao qual ele deve toda a sua identidade. Claro, para tal pessoa, a proposição que estamos tentando discutir aqui esta noite não existe. 

E, por outro lado, devo falar como uma das pessoas mais atacadas pelo que agora devemos chamar de sistema de realidade ocidental ou europeu. Que pessoas brancas no mundo, o que chamamos de supremacia branca – odeio dizer isso aqui – vem da Europa. Foi assim que chegou à América. Abaixo, então, qualquer que seja a reação de alguém a esta proposição, tem que ser a questão de se as civilizações podem ou não ser consideradas, como tais, iguais, ou se a civilização de alguém tem o direito de dominar e subjugar, e, de fato, de destruir outra. 

John F. Kennedy e sua esposa Jackie desfilando na Broadway em carro aberto em Nova York. Quando foi Presidente dos Estados Unidos e até a sua morte em 1963, John Kennedy desejava que a pauta dos direitos civis e do direito ao voto livre se tornasse realidade.

Agora, o que acontece quando isso acontece. Deixando de lado todos os fatos físicos que se podem citar. Deixando de lado estupro ou assassinato. Deixando de lado o catálogo sangrento da opressão, com o qual de certa forma já estamos familiarizados, o que isso faz ao subjugado, o mais privado, a coisa mais séria que isso faz ao subjugado, é destruir seu senso de realidade. Isso destrói, por exemplo, a autoridade de seu pai sobre ele. Seu pai não pode mais dizer nada a ele, porque o passado desapareceu, e seu pai não tem poder no mundo. Isso significa, no caso de um negro americano, nascido naquela república resplandecente, e no momento em que você nasce, já que não conhece nada melhor, todo pau e pedra e todo rosto são brancos.

E como você ainda não viu um espelho, supõe que também o é. É um grande choque, por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade, descobrir que a bandeira à qual você jurou fidelidade, junto com todas as outras pessoas, não jurou fidelidade a você. É um grande choque descobrir que Gary Cooper matou os índios, quando você estava torcendo por Gary Cooper, que os índios eram você. É um grande choque descobrir que o país que é o seu lugar de nascimento e ao qual você deve sua vida e sua identidade, não evoluiu, em todo o seu sistema de realidade, nenhum lugar para você. 

O descontentamento, a desmoralização e a distância entre uma pessoa e outra apenas com base na cor de sua pele, começa aí e acelera – acelera ao longo de uma vida inteira – até o presente quando você percebe que tem trinta anos e está passando por maus bocados para confiar em seus conterrâneos. Quando você tem trinta anos, já passou por um certo tipo de moinho. E o efeito mais sério do moinho pelo qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os policiais, os motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o que significa que você é um ser humano sem valor. Não é isso. 

É nessa época que você começa a ver isso acontecendo, em sua filha ou em seu filho, ou em sua sobrinha ou sobrinho. E o efeito mais sério do moinho pelo qual você passou é, de novo, não o catálogo do desastre, os policiais, os motoristas de táxi, os garçons, a senhoria, o senhorio, os bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, o que significa que você é um ser humano sem valor. 

Você já tem trinta anos e nada do que fez ajudou a escapar da armadilha. Mas o que é pior do que isso, é que nada do que você fez e, pelo que você pode dizer, nada do que você pode fazer, salvará seu filho ou sua filha de enfrentar o mesmo desastre e não impossivelmente chegar ao mesmo fim. 

Agora, estamos falando sobre despesas. Suponho que haja várias maneiras de nos dirigirmos a alguma tentativa de descobrir o que essa palavra significa aqui. Deixe-me colocar desta forma, que de um ponto de vista muito literal, os portos e os portos e as ferrovias do país – a economia, especialmente dos estados do Sul – não poderiam ser o que se tornou, se tivessem não teve, e ainda não tem, na verdade por muito tempo, por muitas gerações, mão de obra barata. Estou afirmando muito a sério, e isso não é um exagero: * Eu* colhi o algodão, * eu * levei-o para o mercado e * eu * construí as ferrovias sob o chicote de outra pessoa por nada. Por nada.

A oligarquia do Sul, que ainda hoje tem tanto poder em Washington, e, portanto, algum poder no mundo, foi criada pelo meu trabalho e meu suor, e pela violação de minhas mulheres e o assassinato de meus filhos. Isso, na terra dos livres e na casa dos bravos. E ninguém pode contestar essa afirmação. É uma questão de registro histórico.

De outra forma, esse sonho, e vamos chegar ao sonho em um momento, está às custas do negro americano. Você assistiu a isso no Deep South[3] com grande alívio. Mas não apenas no Deep South. No Deep South, você está lidando com um xerife ou um senhorio, ou uma senhoria ou uma garota do balcão da Western Union, e ela não sabe exatamente com quem está lidando, com isso quero dizer, se você não uma parte da cidade, e se você é um negro do norte, isso se mostra de milhões de maneiras. Então ela simplesmente sabe que é uma quantidade desconhecida, e ela não quer ter nada a ver com isso porque ela não quer falar com você, você tem que esperar um pouco para receber o seu telegrama. OK, todos nós sabemos disso. Todos nós já passamos por isso e, quando você se torna um homem, é muito fácil de lidar. Mas o que está acontecendo com a pobre mulher, a mente do pobre é o seguinte:

Bem, sugiro que, de todas as coisas terríveis que podem acontecer a um ser humano, essa é uma das piores. Eu sugiro que o que aconteceu com os sulistas brancos é, de certa forma, afinal, muito pior do que o que aconteceu com os negros lá porque o xerife Clark em Selma, Alabama, não pode ser considerado – você sabe, ninguém pode ser considerado um monstro total[4]. Tenho certeza que ele ama sua esposa, seus filhos. Tenho certeza, você sabe, ele gosta de ficar bêbado. Afinal, é preciso presumir que ele é visivelmente um homem como eu. 

Xerife Jim Clark – Fonte – Wikipédia.

Mas ele não sabe o que o leva a usar o porrete, a ameaçar com a arma e a usar o aguilhão. Algo terrível deve ter acontecido a um ser humano para poder colocar um aguilhão no peito de uma mulher, por exemplo. O que acontece com a mulher é horrível. O que acontece ao homem que o faz é, de certa forma, muito pior. Afinal, isso está sendo feito não há cem anos, mas em 1965, em um país que é abençoado com o que chamamos de prosperidade, uma palavra que não examinaremos muito de perto; com um certo tipo de coerência social, que se autodenomina uma nação civilizada e que defende a noção da liberdade do mundo. E é perfeitamente verdade do ponto de vista agora simplesmente de um negro americano. 

Qualquer negro americano que assista a isso, não importa onde esteja, do ponto de vista do Harlem, que é outro lugar terrível, tem que dizer a si mesmo, apesar do que o governo diz – o governo diz que não podemos fazer nada a respeito – mas se aquelas pessoas fossem brancas sendo assassinadas nas fazendas de trabalho do Mississippi, sendo levadas para a prisão, se aquelas fossem crianças brancas correndo para cima e para baixo nas ruas, o governo encontraria alguma maneira de fazer algo a respeito. 

Temos um projeto de lei de direitos civis agora em que uma emenda, a décima quinta emenda, quase cem anos atrás – odeio soar novamente como um profeta do Velho Testamento – mas se a emenda não fosse honrada então, eu teria qualquer razão para acreditar no projeto de lei de direitos civis será honrado agora. E depois de todos estarem lá, desde antes, sabe, muitas outras pessoas chegaram lá. Se é preciso provar o título de propriedade da terra, quatrocentos anos não bastam? Quatrocentos anos? Pelo menos três guerras? O solo americano está cheio de cadáveres de meus ancestrais. Por que é minha liberdade ou minha cidadania, ou meu direito de viver lá, como isso é concebivelmente uma questão agora? E eu sugiro ainda, e da mesma forma, a vida moral dos xerifes do Alabama e das pobres senhoras do Alabama – senhoras brancas – suas vidas morais foram destruídas pela praga chamada cor.

Correndo o risco de soar excessivo, o que sempre senti, quando finalmente deixei o país, e me encontrei no exterior, em outros lugares, e observei os americanos no exterior – e esses são meus compatriotas – e me preocupo com eles, e até mesmo se eu não fiz, há algo entre nós. Temos a mesma abreviatura, eu sei, se eu olhar para um menino ou uma menina do Tennessee, de onde eles vieram no Tennessee e o que isso significa. 

Nenhum inglês sabe disso. Nenhum francês, ninguém no mundo sabe disso, exceto outro homem negro que vem do mesmo lugar. Observamos essas pessoas solitárias negando o único parente que possuem. Falamos sobre integração na América como se fosse um grande enigma novo. 

O problema na América é que estamos integrados há muito tempo. Coloque-me ao lado de qualquer africano e você verá o que quero dizer. Minha avó não era uma estupradora. O que não enfrentamos é o resultado do que fizemos. O que se leva o povo americano a fazer por todos nós é simplesmente aceitar nossa história. Eu estava lá não apenas como escrava, mas também como concubina. Afinal, conhece-se o poder que pode ser usado contra outra pessoa se você tiver poder absoluto sobre essa pessoa.

Ao observar os americanos na Europa, pareceu-me que o que eles não sabiam sobre os europeus era o que não sabiam sobre mim. Eles não estavam tentando, por exemplo, ser desagradáveis ​​com a garota francesa ou rudes com o garçom francês. Eles não sabiam que feriam seus sentimentos. Eles não tinham nenhum senso de que essa mulher em particular, este homem em particular, embora falassem outra língua e tivessem maneiras e maneiras diferentes, era um ser humano. 

E eles andaram por cima deles, o mesmo tipo de ignorância branda, condescendência, charme e alegria com que sempre me deram tapinhas na cabeça e me chamaram de Shine e ficavam chateados quando eu ficava chateado. O que é relevante nisso é que enquanto há quarenta anos, quando nasci, a questão de ter que lidar com o que não é dito pelo subjugado, o que nunca é dito ao mestre, de ter que lidar com essa realidade era uma possibilidade muito remota. Não estava na mente de ninguém. 

Quando eu era criança, aprendi nos livros de história americanos que a África não tinha história, nem eu. Que eu era um selvagem de quem quanto menos falava melhor, que fora salvo pela Europa e trazido para a América. E, claro, eu acreditei. Eu não tive muita escolha. Esses eram os únicos livros que existiam. Todos os outros pareciam concordar.

Se você sair do Harlem, sair do Harlem, no centro da cidade, o mundo concorda que o que você vê é muito maior, mais limpo, mais branco, mais rico e mais seguro do que onde você está. Eles recolhem o lixo. Obviamente, as pessoas podem pagar seu seguro de vida. Seus filhos parecem felizes e seguros. Você não é. E você volta para casa, e parece que, é claro, que é um ato de Deus que isso seja verdade! Que você pertence ao lugar onde os brancos o colocaram.

Somente a partir da Segunda Guerra Mundial que existe uma contra imagem no mundo. E essa imagem não surgiu por meio de qualquer legislação ou parte de qualquer governo americano, mas pelo fato de que a África de repente estava no palco do mundo, e os africanos tinham que ser tratados de uma forma que nunca haviam sido tratados antes. Isso deu a um negro americano, pela primeira vez, uma sensação de si mesmo além do selvagem ou do palhaço. Ele criou e criará muitos enigmas. 

Uma das grandes coisas que o mundo branco não sabe, mas acho que sei, é que os negros são como todo mundo. Utilizou-se o mito do negro e o mito da cor para fingir e supor que se tratava, essencialmente, de algo exótico, bizarro e praticamente, segundo as leis humanas, desconhecido. Infelizmente, isso não é verdade. Também somos mercenários, ditadores, assassinos, mentirosos. Nós também somos humanos.

O que é crucial aqui é que, a menos que consigamos aceitar, estabelecer algum tipo de diálogo entre aquelas pessoas que eu finjo que pagaram pelo sonho americano e aquelas outras pessoas que não o realizaram, estaremos em apuros terríveis. 

Quero dizer, enfim, o último, é isso que mais me preocupa. Estamos sentados nesta sala, e todos nós somos, pelo menos eu gostaria de pensar que somos relativamente civilizados, e podemos conversar uns com os outros. Pelo menos em certos níveis para que possamos sair daqui presumindo que a medida de nossa iluminação, ou pelo menos, nossa polidez, tem algum efeito no mundo. Pode não ser.

Foto da visita de Bobby Kennedy a Natal, junto a com a sua esposa Ethel, em 1965.

Lembro-me, por exemplo, quando o ex-procurador-geral, senhor Robert Kennedy, disse que era concebível que em quarenta anos, na América, pudéssemos ter um presidente negro. Isso soou como uma declaração muito emancipada, suponho, para os brancos. Eles não estavam no Harlem quando essa declaração foi ouvida pela primeira vez. E eles não estão aqui, e possivelmente nunca ouvirão as risadas e a amargura e o desprezo com que esta declaração foi saudada. 

Do ponto de vista do homem da barbearia do Harlem, Bobby Kennedy[5] só chegou aqui ontem e já está a caminho da presidência. Estamos aqui há quatrocentos anos e agora ele nos diz que talvez daqui a quarenta anos, se você for bom, podemos deixá-lo se tornar presidente.

O que é perigoso aqui é se afastar de – se afastar de – qualquer coisa que qualquer americano branco diga. O motivo da hesitação política, apesar do deslizamento de terra de Johnson, é que um foi traído por políticos americanos por muito tempo. E eu sou um homem adulto e talvez eu possa argumentar com isso. Eu certamente espero que possa ser. 

Martin Luther King em Washington – Fonte – Wikipédia.

Mas eu não sei, e nem Martin Luther King[6], nenhum de nós sabe como lidar com aquelas outras pessoas que o mundo branco ignorou por tanto tempo, que não acreditam em nada que o mundo branco diz e não acreditam inteiramente qualquer coisa que eu ou Martin estivermos dizendo. E não se pode culpá-los. Você observa o que aconteceu com eles em menos de vinte anos.

Parece-me que a cidade de Nova York, por exemplo – este é o meu último ponto – há muito tempo tem negros nela. Se a cidade de Nova York foi capaz, como de fato tem sido capaz, nos últimos quinze anos de se reconstruir, demolir prédios e levantar outros novos, no centro da cidade e por dinheiro, e não fez nada exceto construir conjuntos habitacionais no gueto para os negros. E, claro, os negros odeiam. 

Atualmente, a propriedade realmente se deteriora porque as crianças não podem suportá-la. Eles querem sair do gueto. Se as pretensões americanas estivessem baseadas em uma avaliação mais sólida e honesta da vida e de si mesmos, não significaria para os negros quando alguém disser “renovação urbana” que os negros podem simplesmente ser jogados na rua. Isso é exatamente o que significa agora. Este não é um ato de Deus. 

Estamos lidando com uma sociedade feita e governada por homens. Se o negro americano não estivesse presente na América, estou convencido de que a história do movimento operário americano seria muito mais edificante do que é. É uma coisa terrível para um povo inteiro se render à noção de que um nono de sua população está abaixo deles. 

E até aquele momento, até que chegue o momento em que nós, os americanos, nós, o povo americano, possamos aceitar o fato, que eu tenho que aceitar, por exemplo, que meus ancestrais são brancos e negros. Que naquele continente estamos tentando forjar uma nova identidade para a qual precisamos uns dos outros e que não estou sob a tutela da América. 

Não sou objeto de caridade missionária. Eu sou uma das pessoas que construiu o país – até o momento, quase não há esperança para o sonho americano, porque as pessoas a quem é negada a participação nele, por sua própria presença, irão destruí-lo. E se isso acontecer, é um momento muito grave para o Ocidente.

Obrigado.

NOTAS

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[1] Escritor e dramaturgo, é considerado um dos maiores escritores nascido nos Estados Unidos no século XX, Baldwin abriu novos caminhos literários com a exploração de questões raciais e sociais em suas muitas obras. Ele era especialmente conhecido por seus ensaios sobre a experiência negra na América.

[2] Escritor, intelectual e comentarista político americano. Fundou a revista National Review em 1955, tendo grande impacto no estímulo ao pensamento conservador nos Estados Unidos. Ele apresentou 1.429 edições do programa de televisão “Firing Line” entre 1966 e 1999, onde ficou conhecido por seu sotaque distinto e amplo vocabulário. Ele escreveu colunas para vários jornais e vários romances de espionagem. Seu estilo de escrita era conhecido pela eloquência e sagacidade.

[3] O Deep South é uma sub-região cultural e geográfica no sul dos Estados Unidos. O termo foi usado pela primeira vez para descrever os estados daquele país mais dependentes de plantações e escravidão durante o período inicial da história dos Estados Unidos. A região sofreu dificuldades econômicas após a Guerra Civil Americana e foi (e ainda é) um importante local de tensão racial. O Movimento dos Direitos Civis nas décadas de 1950 e 1960 ajudou a inaugurar uma nova era, às vezes chamada de Novo Sul.

[4] Baldwin se refere ao xerife Jim Clark, da cidade de Selma, Alabama, que entre 7 e 25 de março de 1965 usou de extrema violência contra os participantes de três marchas pacíficas, organizadas pelos manifestantes pelos direitos civis, na Estrada 54, que liga a cidade de Selma a Montgomery, capital do Alabama. Após as cenas das ações por ele comandada terem sido divulgadas em cadeia nacional de TV, Lyndon B. Johnson, o então presidente dos Estados Unidos, emitiu uma declaração imediata “deplorando a brutalidade com que vários cidadãos negros do Alabama foram tratados”.

[5] Robert Francis Kennedy, apelidado de Bobby e também RFK, foi procurador-geral dos Estados Unidos de 1961 até 1964 tendo sido um dos primeiros a combater a Máfia, e Senador por Nova Iorque de 1965 até seu assassinato em junho de 1968. Ele foi um dos dois irmãos mais novos do presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy.

[6] Martin Luther King Jr. foi um pastor batista e ativista político estadunidense que se tornou a figura mais proeminente e líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos de 1955 até seu assassinato em 1968.

CEGO ADERALDO – O CANTO SOLITÁRIO DO NORDESTE

Os cantadores violeiros e repentistas do Nordeste são a maior, mais espontânea, mais pura e mais apaixonante reserva da poesia do Brasil. Cego Aderaldo, o mais famoso patriarca de todos eles, atualmente com 92 anos de idade está morrendo mais de solidão do quê de velhice.

Aderaldo Ferreira de Araújo completa agora 74 anos de escuridão. Nasceu no Crato, Ceará, entre os Canaviais do Cariri, entre caboclos beliciosos e ágeis. Como diria o poeta Jáder de Carvalho.

Aos 18 anos quando trabalhava de folguista no motor de descaroçar algodão tomou um copo d’água com corpo quente e seus olhos explodiram no mesmo instante. Três meses depois morria ali a mãe, um ano depois o pai e ele ficou só no mundo.

Sua família passou a ser a escuridão porque ainda hoje dialoga na eternidade de sua noite. Com vergonha de pedir esmola tornou-se cantador.

Cheguei aos 18 anos

perdendo a vista a clareza

não posso enxergar os campos

os quadros da natureza

até de vista tocou-me

esse quinhão de pobreza!

Hoje, não vejo os refolhos

dois lindos cravos azuis,

não vejo o mar cheio de escolhos

mas tenho fé que meus olhos

um dia enxergam Jesus!

Peleja com Zé Pretinho

Ídolo do povo nordestino, mobilizador de auditórios, centralizador das atenções da massa nas feiras e ajuntamentos, alvo de curiosidade e estima nas grandes cidades, inclusive Rio e São Paulo: enfim, uma figura quase lendária pela sua fama de mais de meio século varando fronteiras, sempre esteve cercado de carinho e de afeto  de alegria e de loquacidade, de risos e gargalhadas, de prestígio e de glória, escancarando a alma dura e rude, simples e boa, em constante sintonia com a sensibilidade de milhares de brasileiros que se criaram ouvindo o nome, as histórias, os versos, principalmente aqueles de sua peleja com Zé Pretinho do Tucum, quem foi publicada em primeira mão pela Tipografia Guajarina, de Belém do Pará, em 1916.

Material de jornal publicado em 1921, sobre uma palestra do cearense Leonardo Mota no Rio de Janeiro.

Zé Pretinho:

“Cala-te, cego ruim,

Cego aqui não faz figura;

Cego quando abre a boca

É uma mentira pura;

O cego quanto mais mente,

Ainda mais sustenta e jura.”

Cego Aderaldo:

“Esse negro foi escravo,

Por isso é tão positivo;

Quer ser na sala de branco

Exagerado e Altivo:

Nego de canela seca,

Todo ele já foi cativo.”

Zé Pretinho:

“No sertão eu peguei,

Um cego mal criado,

Danei-lhe o machado,

Caiu, eu sangrei,

O couro eu tirei, 

Em regra de escala,

Espichei na sala,

Puxei para um beco,

Depois de bem seco,

Fiz mais de uma mala.”

 Cego Aderaldo:

 “Negro é monturo,

 Mulambo rasgado,

 Cachimbo apagado,

 Recanto de muro,

 Negro sem futuro,

 Perna de tição,

 Boca de pilão,

 Beiço de gamela,

 Venta de moela,

 Moleque ladrão.”

A certa altura da Peleja, o cego puxou um trava-língua, o que foi a derrota de Zé Pretinho:

“Amigo José pretinho,

Eu não sei o que será,

De você no fim da luta,

Porque vencido já está:

Quem a paca cara compra,

Paca cara pagará.”

Zé Pretinho:

“Cego, eu estou apertado,

Que só um pinto no ovo.

Estás cantando aprumado,

E satisfazendo ao povo;

Esse teu tema de paca

Por favor diga de novo.”

Cego Aderaldo:

“Diga uma vez, digo dez,

No cantar não tenho pompa,

Presentemente não acho,

Quem este meu mapa roupa;

Paca cara pagará

Quem a paca cara comprar“.

Zé Pretinho:

“Cego teu peito é de aço,

Foi bom Ferreiro que fez, 

Pensei que o cego não tinha

No verso tal rapidez,

Segue, se não for maçada,

Repita a paca outra vez”.

Cego Aderaldo:

“Arre com tanta pergunta 

Desse nego capivara!

Não há quem cuspa pra cima 

Que não lhe caía na cara;

Quem a paca cara compra,

Pagará a paca cara”.

Zé Pretinho:

Agora cego me ouça,

Cantarei a paca já,

Tema assim é um cabrito,

No bico do Carcará,

Quem a cara, cara compra

Caca… caca… Carcará”.

Houve um trovão de risadas,

Com verso do Pretinho,  

O capitão Duda disse

-Arreda para lá Negrinho,

O Cego canta sozinho”.

Poucos meses após conceder essa entrevista a Rogaciano leite, o velho poeta descansou e certamente viu a luz.

Essa peleja, largamente difundida nos livros de Leonardo Mota, levou o nome do Cego Aderaldo para aos quatro cantos do Brasil, projetando-o além-fronteiras e em diversas línguas. Ano passado (1966), o escritor Robert Lewis, da Universidade de Cambridge, veio diretamente de Londres para o entrevistar no Quixadá. Recentemente, a estudante francesa Anne Arnichand, bolsista da Universidade de São Paulo, esteve em Fortaleza com a finalidade exclusiva de conhecê-lo e fazer um estudo sobre a Literatura de Cordel como um elemento de formação cultural do Nordeste.

Não está na miséria

Ao contrário do que foi noticiado, o Cego Aderaldo não está na miséria nem passando qualquer privação. Em reconhecimento ao seu valor e a projeção que têm dado ao Nordeste e ao Brasil como uma das maiores figuras do nosso folclore, o velho cantador do povo, que é, por assim dizer, o maior patrimônio humano do Ceará, vem recebendo há já vários anos uma pensão da União, do Estado e da Prefeitura de Fortaleza, de sorte que sua velhice não sofre nenhum dissabor de ordem financeira. Além disso, conta com um “pai rico”, na figura do seu amigo Francisco Pinto, industrial cearense em São Paulo, que não lhe deixa faltar nada, inclusive médico à cabeceira. Atacado, ultimamente, de diabetes, Aderaldo perdeu quase vinte quilos, porém já se encontra em fase de restabelecimento, com vontade de entrar na casa dos cem anos. Só não se conforma com a dieta e com a solidão, pois só gosta de estar “onde tem barulho de gente”. Por ocasião de nossa visita, improvisou;

“Vivo aqui nesse silêncio,

Contra minha natureza,

Sem falar com os amigos, 

Sem ver do mundo a beleza, 

Além de cego sozinho, 

Eu vou morrer de tristeza.”

As três maiores figuras do Nordeste

Padre Cícero, Lampião e cego Aderaldo são as três figuras marcadamente típicas e legendárias, que por muito tempo ainda viverão na lembrança e no amor das gentes sertanejas. Virgulino Ferreira, o terrível dínamo de energias bárbaras, a espalhar o terror e calafrios na zona de caatinga, marcou, ao longo de sua sinistra carreira de crimes e violências, toda uma fase da vida do Nordeste, que a Sociologia do Cangaço, há despeito da exploração desenfreada e quase abusiva do tema, Ainda não conseguiu caracterizar definitivamente em suas múltiplas facetas.

Padre Cícero, o grande carismático, o grande taumaturgo de rosário e punhal, o santo que andava meio metros acima do chão, continua a exercer poderosa influência na fé e devoção de milhares de romeiros ou fanáticos que se deslocam dos mais longínquos recantos do Nordeste, muitas vezes a pé, esmolambados e famintos, para pagar ao meu padim, em Juazeiro do Norte, comovidas promessas por milagres e graças alcançadas. É uma figura cada vez mais viva no misticismo de gerações sucessivas. 

Aderaldo é solteiro, porém, criou e educou 26 filhos. Numa estrofe sentida, confessa:

“Quis casar me, oh, que loucura,

Quando pensei em casar, 

Deixei e fui meditar, 

Fui pensar na vida escura, 

Nesse cálice de amargura,

Que recebo dia a dia,

Ouço apenas melodia,

Acostei-me à flor de um goivo, 

De repente fiquei noivo,

Me casei com a poesia”. 

É pena que a Comissão Nacional do Folclore nunca se tenha dado ao trabalho de documentar em disco, ou mesmo fita, ao menos uma pequena parte de sua obra.

Texto e fotos de Rogaciano Leite – Jornal do Brasil quarta-feira 14 de junho de 1967, Caderno B, página 5.

CASO PARASAR – O “NÃO” DO CAPITÃO SÉRGIO CARVALHO!

A Indisciplina do Capitão Sérgio Carvalho, o Conhecido “Sérgio Macaco”, Ao Negar Cumprir Uma Ordem de Um Superior Hierárquico, Lhe Custou Muito Caro. Mas Certamente Evitou Muitas Mortes no Rio de Janeiro Durante o Período da Ditadura Militar.

1968 foi sobretudo o ano em que o Brasil constatou definitivamente que a radicalização e o terrorismo de esquerda e de direita criavam um cenário que afligiria a nação nos anos seguintes e resultaria numa crescente onda de violência política.

Corpo do estudante secundarista paraense Edson Luís de Lima Souto, morto no Rio de Janeiro em 28 de março de 1968, quando a Polícia militar carioca invadiu o restaurante Calabouço. Durante a invasão, o comandante da tropa da PM, aspirante Aloísio Raposo, atirou e matou o secundarista Edson Luís com um tiro a queima roupa no peit0 – Foto – Arquivo Nacional.

No começo de abril daquele ano, o Rio de Janeiro ainda amargava o impacto da morte do estudante paraense Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, foi baleado num confronto entre manifestantes e policiais nas imediações do restaurante do Calabouço. Na sequência o enterro do estudante foi um acontecimento que parou a cidade. Mais de 60 mil pessoas acompanharam o cortejo desde a Cinelândia até o Cemitério de São João Batista. Quando a multidão chegou à Praia do Flamengo, um veículo da Força Aérea Brasileira foi virado e incendiado.

Em meio a toda essa manifestação, um grupo de militares altamente especializados acompanhavam discretamente a movimentação que cortava as ruas do Centro do Rio.

Cortejo fúnebre do estudante Edson Luís. Os homens do PARA-SAR acompanharam essa movimentação – Foto – Arquivo Nacional.

Naquele dia tenso aqueles homens foram recrutados para uma ação repressiva, onde teriam de infiltrar-se no meio do povão em grupos localizados no Largo da Carioca, Cinelândia e Candelária. Todos estavam vestidos à paisana, tinham ordens para colaborar com o pessoal do Exército na prisão de manifestantes, vigiar o alto dos edifícios e atirar para matar contra quem arremessasse objetos sobre os policiais. Isso tudo utilizando identidades falsas, armas com os números de identificação raspados, granadas defensivas e punhais.

O problema é que nessa época a missão primária desses militares estava muto distante dos brutais esquemas repressivos existentes na Ditadura Militar brasileira. Eles eram os membros da 1ª Esquadrilha Aeroterrestre de Salvamento (EAS), mais conhecido como PARA-SAR (“PARA” de paraquedistas, “SAR” do inglês Search and Rescue, “busca e salvamento”), um esquadrão de elite formado por paraquedistas altamente treinados para a realização de buscas e resgates aéreos.

Repressão policial no Rio de janeiro. Essa não era a missão dos homens do PARA-SAR da Força Aérea Brasileira – Foto – Arquivo Nacional.

Os homens do PARA-SAR efetivamente agiram durante os distúrbios ocorridos a 4 de abril, mas o grupo deliberadamente decidiu nada fazer e não se envolveu em prisões, ou mortes.

Mas a participação daquele pessoal naquela manifestação, como comumente se diz dentro dos quartéis no Brasil, “só podia dar m#%&@”.

E deu!

Mudança de doutrina

Exatamente no dia da missão, o capitão intendente Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido na Força Aérea Brasileira como “Sérgio Macaco”, estava de férias em Manaus e o capitão-médico Rubens Marques dos Santos, conhecido como “Doc”, estava em uma missão na região do Xingu.

Sérgio e “Doc” eram dois dos oficiais mais respeitados no PARA-SAR, dividindo essa respeitabilidade com o capitão Roberto Câmara Lima Ipiranga dos Guaranys, o único dos três a testemunhar os incidentes de 4 de abril.

Um helicóptero SH-1D faz evoluções sobre um hidroavião Grumman SA-16A Albatroz, ambos utilizados pela Força Aérea Brasileira para buscas e salvamentos – Fonte – Arquivo Nacional.

O capitão Sérgio soube do fato através do major Gil Lessa de Carvalho, então comandante do PARA-SAR, que, segundo a reportagem da revista Veja (edição de 26 de junho de 1985, págs. 50 a 59), estava de acordo com as ordens recebidas e a mudança de doutrina que aparentemente estava sendo imposta ao PARA-SAR.

Ao tomar conhecimento do caso, o capitão Sérgio se apresentou ao brigadeiro Geraldo Labarte Labre, então comandante da Escola de Aeronáutica, no Campo dos Afonsos, em Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, onde ficava a sede do PARA-SAR.

Depois de conversar com o comandante dos Afonsos, o capitão Sérgio foi à subdiretoria deProteção ao Voo, na época dirigido pelo brigadeiro Mário Paglioli de Lucena, onde informou o que ocorrera. Lucena então se comunicou com o coronel Pedro Vercílio, chefe do Estado-Maior da 3ª Zona Aérea (atual 3º Comando Aéreo Regional), pedindo informações sobre como o PARA-SAR tinha sido empregado naquele tipo de atividade, sem o conhecimento da Diretoria de Rotas Aéreas, ao qual a unidade de elite estava diretamente vinculada. Vercílio informou que havia atendido a um pedido do major Nereu Peixoto, da 2ª Seção de Informações da 3ª Zona Aérea, ou seja, os “agentes secretos” daquele setor da Força Aérea Brasileira

O brigadeiro Burnier – Foto – Arquivo Nacional.

Nessa mesma época voltou de uma missão no Panamá o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, que assumiu interinamente o cargo de chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica. Vale ressaltar que nesse tempo não havia um Comandante da Aeronáutica, que respondia a um Ministro da Defesa, que nem sequer existia. O comandante da Força Aérea Brasileira era o ministro da Aeronáutica, com amplos poderes sobre tudo que voava no Brasil e muito mais. Em 1968 estava comandando esse segmento das Forças Armadas o marechal-do-ar Márcio de Sousa Mello, que era muito próximo ao brigadeiro Burnier.

“Costa e Silva, não. Bosta e Silva”

Na matéria da revista Veja de 1985, Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho afirmou que após chegar ao Rio o brigadeiro Burnier não só aprovou a missão de repressão confiada ao PARA-SAR, como resolveu ampliá-la.

Ao saber da posição contrária do capitão Sérgio, Burnier promoveu a partir de junho, três encontros que o subordinado definiu como “sessões de doutrinação”.

Um helicóptero Sikorsky H-19D, utilizado em missões de busca e salvamento (SAR) e evacuação aeromédica, em uma praia carioca e sendo sobrevoado por dois aviões Noth American T-6 – Foto – Arquivo Nacional.

Nessas reuniões o brigadeiro Burnier afirmou que o PARA-SAR seria “a peça-chave para salvar o Brasil do comunismo”. A missão seria entregue aquela unidade militar de elite por eles terem “vastíssimo poder de fogo — toneladas de explosivos plásticos — e extraordinário grau de capacidade operacional”.

O oficial general teria então sugerido a execução de uma escalada de atos terroristas, que seriam atribuídos aos extremistas de esquerda.

Os homens do PARA-SAR fariam o papel de detonadores de um processo histórico. Inicialmente seriam realizados pequenos atentados à extinta loja de departamento Sears, no bairro de Botafogo. Logo o outro alvo seria a embaixada norte-americana no Rio e depois uma agência do Citibank na capital carioca. Tudo com a utilização de pequenas cargas de explosivas e — segundo Burnier — com “reduzido número de vítimas fatais”.

A operação teria um teor de escalada. Cada ato seguinte seria mais forte e desembocaria na explosão do Gasômetro de São Cristóvão, um formidável complexo de três reservatórios de gás, com capacidade total para 235.000 metros cúbicos, destinados a abastecer toda a cidade.

Modelo Bell SH-1D, de busca e salvamento – Foto – Arquivo Nacional.

Localizado a curta distância da estação rodoviária, de um depósito de combustível e próximo à zona portuária, as explosões do Gasômetro certamente iriam gerar incêndios em série, com elevado nível de destruição e mortos. Além desse ataque um outro alvo a ser destruído no mesmo dia seria a hidrelétrica de Ribeirão das Lages — localizada a 78 quilômetros do centro do Rio.

Esses dois atentados deixariam a cidade sem luz e sem água, às voltas com milhares de mortos e feridos, em meio a um caos total.

Então, teria dito Burnier, “seria dado um basta aos comunistas”. Para ele a cidade do Rio exigiria “a caçada dos comunistas a pauladas e eles seriam eliminados em no máximo seis meses.”

Em outra reunião Burnier teria detalhado com maior ênfase e convicção as suas ideias, além de ter exposto um plano para a eliminação de “quarenta líderes políticos ou militares”. Segundo o capitão Sérgio, Burnier revelou que a lista seria anunciada aos encarregados dos assassinatos em lotes de cinco nomes, sempre verbalmente.

A bordo de um helicóptero Sikorsky H-19D, em trajes civis, podemos ver a esquerda Jânio Quadros e a direita Juscelino Kubitscheck, ladeados por dois oficiais generais. Em 1968 ambos eram ex-presidentes e estavam marcados para morrer na pretensa operação que desejava utilizar o PARA-SAR para assassinatos de políticos – Foto – Arquivo Nacional.

Os primeiros seriam os ex-presidentes Juscelino Kubitscheck e Jânio Quadros, o ex-governador Carlos Lacerda, o então arcebispo de Olinda eRecife, dom Hélder Câmara, além do general Olímpio Mourão Filho, um dos líderes do movimento militar de 1964.

Na revista Fatos (edição de 1º de julho de 1985, págs. 38 a 45), existe a informação que o brigadeiro Burnier revelou um plano suplementar ao capitão Sérgio.

O brigadeiro pegaria alguns militares considerados de esquerda, colocaria todos eles dentro de um avião, que seria pilotado pessoalmente por ele e pelo brigadeiro Roberto Hipólito da Costa, e “os comunistas da Aeronáutica seriam lançados ao mar”. Burnier disse: “Vamos pegar os comunistas da Força Aérea Brasileira, o Teixeira, o Anísio, o Malta, e jogar no mar.” Ele chegou a perguntar ao capitão Sérgio se “a pessoa atirada de um avião morria durante a queda, ou só quando o corpo batesse contra a água”.

O general Artur da Costa e Silva – Foto – Arquivo Nacional.

Ainda na reportagem da revista Fatos o capitão Sérgio ponderou em 1968 que o chefe do governo era um marechal do Exército, o marechal Costa e Silva. Mas Burnier de pronto o corrigiu: “Costa e Silva, não. Bosta e Silva.” Segundo o brigadeiro, o presidente era um homem fraco no trato com os comunistas. Disse que já estava tudo planejado. Os comunistas não teriam fronteiras de apoio e os americanos dominariam o Atlântico Sul.

De acordo com Burnier, mesmo que os comunistas reagissem desesperadamente, a luta teria duração de no máximo seis meses. Em compensação ”nós ficaríamos eternamente livres dos comunistas”. Respondi ao brigadeiro Burnier dizendo que “a condução para um estado de guerra quentenão parecia um ato de sabedoria, um ato patriótico, ou de interesse nacional”.

Como em todo mundo, as missões de busca e salvamento aéreo sempre foram vistas de maneira muito positiva pela população brasileira – Foto – Arquivo Nacional.

Sérgio decidiu comentar o caso com os capitães “Doc” Santos e Guaranys, além do brigadeiro Mário Pagliole de Lucena, pedindo-lhe que ele retransmitisse seu relato ao brigadeiro Itamar Rocha, diretor geral da Diretoria de Rotas Aéreas, à qual o PARA-SAR estava diretamente subordinado.

O capitão Sérgio afirmou a Veja em 1985 que no terceiro encontro com Burnier, este fez “o elogio do método de lotar um avião com comunistas e jogá-los no mar”. No final da conversa, ainda segundo o capitão, ao constatar que não conquistara o interlocutor para suas teses, o brigadeiro Burnier teria se irritado.

Consta que Burnier não poderia realizar aquelas reuniões sem consultar o brigadeiro Itamar Rocha, que além de chefiar o órgão ao qual estava subordinado o PARA-SAR, era um oficial general de três estrelas, enquanto Burnier só tinha duas.

A direita vemos o brigadeiro Burnier e o marechal do ar Souza e Mello (de óculos) – Foto – Arquivo Nacional.

A questão é que por trás de Burnier estava o marechal-do-ar de cinco estrelas Márcio de Sousa Mello, o ministro da Aeronáutica e o homem que mandava em toda a Força Aérea Brasileira.

Mas não parou por aí!!!

“Quem aqui já matou gente?”

Diante da resistência tácita do capitão Sérgio, o brigadeiro Burnier ordenou que no dia 14 de junho de 1968, uma quarta feira, fosse realizada uma derradeira reunião no seu gabinete e com a presença de todos os homens do PARASAR.

Dela participaram 36 dos 41 homens da 1ª Esquadrilha Aeroterrestre de Salvamento. Um ônibus da Aeronáutica estacionou no Campo dos Afonsos para recolher os integrantes do grupo de elite, onde seguiram desde oficiais, sargentos e cabos. Eles foram levados ao antigo prédio do Ministério da Aeronáutica, na Avenida Marechal Câmara, 233, Centro do Rio de Janeiro.

Foto – Arquivo Nacional.

Para muitos dos integrantes da comitiva, a reunião serviria para definir quem iria representar a Força Aérea Brasileira em um evento de paraquedismo que logo se realizaria em Portugal. Mas não foi nada disso!

O então terceiro sargento Gilson Tardivo Gonçalves contou a reportagem da Veja em 1985 que “a reunião começou de maneira muito estranha, com o brigadeiro dando voltas pela sala e dando socos na mão, sem dizer nada”. Depois de alguns minutos de silêncio, Burnier ponderou que achava “muito difícil começar certos assuntos”. Enfim, inaugurou a sessão com uma pergunta “Quem aqui já matou gente?”.

Depois desse início um tanto bombástico, o brigadeiro Burnier começou um monólogo verdadeiramente aterrorizante – “Ninguém, não é? E quem aqui garante que será capaz dematar alguém? Ninguém, não é? E, claro que, para matar em tempo de guerra, é preciso ter treinamento para matar em tempo de paz. A pessoa precisa ter certeza de que a mão não vai tremer na hora da verdade. Há anecessidade de sentir na boca o gosto de sangue.” Os oficiais e sargentos, assustados, ouviram em silêncio.

Missão digna e honrada a do PARA-SAR – Foto – Arquivo Nacional.

Em seguida, o brigadeiro sustentou que alguns políticos, a começar por Carlos Lacerda, “deveriam estar mortos há muito tempo”. Enfim, Burnier defendeu explicitamente a execução de assassinatos políticos por parte dos integrantes do PARA-SAR.

Afirmou que ele próprio daria as ordens e exigiria que fossem aplicadamente cumpridas. No princípio, admitiu, haveria constrangimentos. “Mas uma vez cumprida a primeira ordem”, argumentou, “as demais seriam banalidades.”

Encerrada a exposição, o anfitrião quis saber o que pensava cada um dos convidados. Três homens disseram que estavam de acordo — o major Lessa (apesar de anteriormente afirmar para o capitão Sérgio que seu superior estava “louco”), o capitão Loris Areias Cordovil e, para espanto e decepção de Sérgio, o capitão Guaranys, seu amigo, confidente e defensor entusiasmado da pureza do PARA-SAR. Aquele posicionamento foi o fim de uma velha amizade!

Segundo a reportagem da revista Veja (edição de 26 de junho de 1985, págs. 50 a 59), quem primeiro disse “não” foi o capitão Sérgio de Carvalho.

Foto – Arquivo Nacional.

— E o senhor, concorda ou não? — perguntou Burnier, num tom de voz mais elevado.

— Não — disse Sérgio no mesmo tom.

Em seguida, o capitão afirmou que a tese do brigadeiro lhe parecia imoral e indigna de um militar de carreira.

— Cale-se! — berrou Burnier — Não se estenda em considerações!

— Não, não me calo! — berrou também o capitão Sérgio — E isso não acontecerá enquanto eu for vivo. O ministro ficará sabendo do que houve aqui.

Testemunha da tensa reunião, o sargento Alédio de Souza Gago afirma que um quarto homem concordou com Burnier antes do nãodo capitão Sérgio: o tenente João Batista Magalhães. Mas em 1985 esse oficial negou até mesmo ter comparecido ao encontro.

Foto – Arquivo Nacional.

Alédio também informou ter ouvido a ameaça que Burnier fez ao capitão que o desafiara, antes de voltar as costas ao grupo e deixar a sala – “o Burnier disse ao Sérgio Macaco que, dali em diante, ele sentiria todo o peso de suas duas estrelas”.

Em 1985 o sargento Gilson Tardivo Gonçalves confessou ter ficado estarrecido com a cena que presenciou. “Eu me perguntei como é que um brigadeiro podia ter dito tudo aquilo numa reunião formal e com tanta gente?”. Gonçalves concluiu que “que aquele homem era uma besta.”

Após a reunião, o capitão Sérgio determinou que os homens do PARA-SAR não esperassem o elevador. Estavam no 11° andar do antigo prédio do Ministério da Aeronáutica e todos desceram pela escada.

“O Funcionamento Básico Dessa Esquadrilha é Salvar e Não Matar”

O pequeno e versátil Bell H-13 foi também utilizado em missões de salvamento pela Força Aérea Brasileira – Fonte – Arquivo Nacional.

A Veja de 1985 afirmou que o capitão Sérgio tinha muita coisa para conversar com o marechal Souza Mello, mas o ministro estava em Portugal. Já o brigadeiro Itamar Rocha se encontrava em Tóquio. Também estavam fora do Rio no dia 14 de junho o capitão “Doc” Santos, o cabo enfermeiro Herly Cabral, conhecido como Cabralzinho, e o Sargento Pedro Klein. Logo os três saberiam do problema.

Klein comentou em 1985 que o major Gil Lessa informou que “o chefe de gabinete do ministro, em reunião com quase toda a esquadrilha, havia dado ordens para fazermos missões especiais, inclusive matar, sem deixar a mão tremer e com gosto de sangue na boca”. E completou dizendo que o major Lessa ameaçou – “quem não estivesse satisfeito, deve entregar oboné.” Cabralzinho estava presente nessa reunião e confirmou que “Doc” Santos tratou de deixar claro de que lado estava e que “ofuncionamento básico dessa esquadrilha é salvar e não matar”.

Em outra reunião, testemunhada por Cabralzinho, o comandante Lessa e vários integrantes do PARA-SAR bateram boca.

Lessa foi contestado abertamente pelo sargento Gilson Tardivo Gonçalves, que apartir daí passou aser considerado “líder dos sargentos rebelados” por seus superiores fiéis a Burnier. “Viemos para cá com ideais humanitários”, ponderou Gonçalves, “se for para ficar aqui e ser usado como polícia, ou agente secreto, vou entregar meu boné.”

O capitão “Doc” Santos entendeu que chegara a hora de deixar o PARA-SAR e pediu transferência para o Hospital Geral da Aeronáutica. Ele afirmou em 1985 que “fui com o Sérgio ao hospital para uma conversa com o diretor, que era o Brigadeiro Georges Guimarães, a quem contamos toda a história”. Mas para a surpresa dos dois capitães, esse oficial superior começou a esbravejar, de dedo em riste, dizendo que “Burnier tinha razão e que comunista tinha mesmo de ser metralhado”. Os dois saíram do lugar estupefatos.

Esse Senhor idoso nessa foto, desde muito tempo compreendeu muito bem o que significava “Sacrifício pela Pátria”, principalmente quando lembramos das areias da praia de Copacabana, sujas de sangue em 5 de julho de 1922. Eduardo Gomes era uma verdadeira lenda viva dentro da Força Aérea Brasileira e abraçou a causa em busca de justiça contra o descalabro que o capitão Sérgio e seus amigos sofreram no caso PARA-SAR. Mas seus apelos foram deliberadamnente ignorados por um grupo de oficiais generais que distorceram profundamente o significado de dever e honra na sua amada Força Aérea Brasileira. Até hoje, e no futuro, o nome de Eduardo Gomes vai nos lembrar sempre de valores positivos e preciosos. Já aos oficiais generais que participaram desse caso, só restara o esgoto da História – Fonte – Arquivo Nacional.

O capitão Sérgio decidiu então recorrer ao , um dos principais líderes da Aeronáutica e futuro ministro no governo João Figueiredo. Délio, depois de ouvir seu relato, concluiu: “Só há um homem capaz de segurar este abacaxi: o brigadeiro Eduardo Gomes”.

Um dos dois sobreviventes, junto com Siqueira Campos, do massacre dos “18 do Forte de Copacabana” em 1922, Eduardo Gomes era uma verdadeira lenda viva dentro da Força Aérea Brasileira, uma espécie de patriarca da Aeronáutica, criador do Correio Aéreo Nacional e duas vezes candidato à Presidência da República pela UDN, a opinião do velho e respeitado brigadeiro tinha muito peso.

Informado do ocorrido por Délio e Sérgio naquele mesmo dia, Eduardo Gomes ficou perplexo. Teve ter sido muito difícil para aquele homem de uma vida tão honrosamente dedicada a Força Aérea Brasileira, tomar conhecimento do nível complicado que o oficialato daquela instituição militar tinha chagado em 1968!

Folha de uma das consultas que o brigadeiro Itamar Rocha fez aos homens do PARA-SAR, que estiveram na missão de rua na época da morte do estudante Edson Luís e na reunião do gabinete do brigadeiro Bournier. No caso da foto é sobre a atuação do tenente tenente João Batista Magalhães na missão nas ruas do Rio – Fonte – Arquivo Nacional.

O brigadeiro pediu que os dois voltassem na manhã seguinte, acompanhados do brigadeiro Itamar Rocha. Nessa reunião, Eduardo Gomes recomendou que Itamar promovesse uma “sindicância rigorosa”. Este por sua vez endereçou consultas rigorosas aos integrantes do PARA-SAR sobre como se deu a reunião de 14 de junho. Apenas quatro deles, precisamente os oficiais que haviam dito sim a Burnier, negaram veracidade à história contada por Sérgio — todos os outros a confirmaram.

Semanas mais tarde, Itamar encaminhou um minucioso relatório ao ministro, descrevendo o que ocorrera. O relatório provocou reação oposta à que se esperava. Em 11 de setembro de 1968 o ministro Souza Mello respondeu ao brigadeiro Itamar com um documento que fazia largos elogios aBurnier e atacava asperamente seus críticos. Dias depois, as represálias se intensificaram. E, enquanto se sucediam transferências arbitrárias e prisões, oficiais fiéis a Burnier, como Lessa e Guaranys, pressionavam sargentos para que modificassem os depoimentos que haviam concedido a Itamar Rocha.

O episódio do caso PARA-SAR foi uma vergonha para História da Força Aérea Brasileira, que apenas 23 anos antes se cobriu de glória nos céus da Itália. Na foto vemos o Presidente Vargas recebendo os orgulhosos aviadores do 1º Grupo de Aviação de Caça, após o fim da Segunda Guerra Mundial Foto – Arquivo Nacional.

Tudo isso se transformou em uma verdadeira palhaçada, uma esculhambação e um grandioso escárnio para com a História de uma instituição chamada Força Aérea Brasileira, que se cobriu de glórias durante a Segunda Guerra Mundial, com a atuação da 1ª Grupo de Aviação de Caça nos céus da Itália!

“É a palavra de cabos e sargentos contra a de oficiais”

Mas nada do que aconteceu adiantou e as perseguições só cresceram!

Sérgio de Carvalho foi transferido para o Recife, “Doc” Santos para Campo Grande, Gilson Tardivo Gonçalves para Lagoa Santa, em Minas Gerais. Todos sofreram penas de prisão, aplicadas também a outros sete sargentos. Nenhum membro do grupo que se opôs a Burnier escapou a algum tipo de sanção. Até o brigadeiro Itamar Rocha foi afastado da Diretoria de Rotas Aéreas e submetido a quatro dias de prisão domiciliar.

Foto – Arquivo Nacional.

O brigadeiro Itamar comentou de maneira correta na revista Fatos (edição de 1º de julho de 1985, págs. 38 a 45), que “os homens do PARA-SAR sofreram demais”. Foram humilhados e mostrados come se fossem criminosos, quando eram homens imbuídos do espírito de salvar vidas.

Mas ninguém, entretanto, sofreria de maneira tão brutal quanto o capitão Sérgio de Carvalho. Ele foi reformado pelo Ato Institucional Número 5, o famigerado AI-5, perdendo a patente e o meio de vida.

Apaixonado pela profissão que exercia na Força Aérea Brasileira, ele viajava em média 240 dias por ano e aos 37 anos, quando foi colhido pela guilhotina do AI-5, realizara centenas de missões e mais de 800 saltos. Era o que sabia fazer, era o que gostava de fazer — mas nunca mais voltaria a exercer essa atividade. Na mesma época, o capitão Sérgio foi processado por falsidade ideológica, sendo absolvido em primeira instância por quatro votos a um e, no Superior Tribunal Militar, por quinze votos a zero. 

O capitão intendente Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho – Fonte – http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R04927.pdf

Empurrado para a vida civil, foi convidado a assumir a presidência de honra de um aeroclube do Recife — mas ele não tardou a constatar que não poderia ser instrutor de salto, nem mesmo saltar. O convite colidiu com uma portaria reservada do Ministério da Aeronáutica, segundo a qual militares cassados “não podem manter adestramento aeroterrestre”.

Um emprego que conseguiu na revista Manchete durou o tempo suficiente para que Burnier soubesse de onde vinha seu salário e logo foi demitido dali também. Depois, Sérgio escreveu roteiros para um programa de televisão. Em 1971, os ventos afinal pareceram soprar a favor, pois ele fez 13 pontos na Loteria Esportiva e, com o dinheiro do prêmio, fundou uma empresa de propaganda, a Podium. Dois anos mais tarde, assolada pela alta dos preços do papel, a empresa sucumbiu, e Sérgio tornou-se vendedor.

Documento que mostra a vigilância do Serviço Nacional de Informações, o SNI, sobre a vida do capitão-médico Rubens Marques dos Santos, conhecido como “Doc” – Fonte – Arquivo Nacional.

Em 1979, à luta pela sobrevivência financeira somou-se a luta pela vida. Vítima de leishmaniose visceral, uma doença tropical que contraíra em consequência de suas missões na selva e que ficara incubada por dez anos em seu organismo, agora o afetava severamente a sua circulação linfática. Sérgio permaneceu 130 dias internado no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. Seu peso desceu a 49 quilos, inquietantes para um homem de 1,76 metro de altura. Mas salvou-se.

O capitão Sérgio de Carvalho realizou uma luta solitária e obstinada para sua reintegração a Força Aérea Brasileira. Contou com a ajuda de dois grandes aliados — o brigadeiro Eduardo Gomes e o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias. Pouco antes de morrer, em 1981, Eduardo Gomes repetia a amigos que levaria para o túmulo o desgosto de não ter obtido a reparação da injustiça sofrida pelo jovem amigo.

Eduardo Gomes visitando Sérgio Carvalho no hospital – Fonte – http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R04928.pdf.

Em maio de 1974, numa carta ao então presidente Ernesto Geisel, Gomes fez uma ardente defesa do capitão Sérgio. “Se ele não tivesse procedido como procedeu”, argumentou o brigadeiro, “a revolução ter-se-ia perdido, irremissivelmente desmoralizada, chafurdada em ignomínia,afogada num turbilhão de sangue de pessoas inocentes.” Em dezembro de 1977, Eduardo Gomes redigiu outra carta de teor semelhante, mas não chegou a remetê-la ao presidente.

Durante a permanência de Sérgio no Hospital Samaritano, o velho e respeitado brigadeiro Eduardo Gomes o visitou e fez questão de posar a seu lado para os fotógrafos. Para o grande herói da História da Força Aérea Brasileira, o problema envolvendo o capitão Sérgio se tornou uma das grandes frustrações da vida do legendário aviador.

Outro que procurou ajudar o capitão Sérgio e seus amigos, foi o marechal Oswaldo Cordeiro de Farias. Outra grande figura história do Brasil, Cordeiro de Farias participou de lutas e episódios que vão desde a Coluna Prestes a ser o comandante da artilharia da Força Expedicionária Brasileira, passando por governar o Rio Grande do Sul e Pernambuco. Mas como aconteceu com Eduardo Gomes, foi ignorado. Na foto ele presta homenagem aos pracinhas mortos no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Rio – Fonte – O Globo.

Mesmo após o escândalo, o brigadeiro Burnier permaneceu à frente de operações secretas da Aeronáutica. Em 1970, já no governo Médici, é premiado com o comando da 3ª Zona Aérea, área de chefia que abrangia a Base Aérea do Galeão e onde no ano seguinte ele se envolveu no episódio da tortura e morte do guerrilheiro Stuart Angel Jones. A pressão pública exercida por Zuzu Angel em razão do assassinato de seu filho, acabaria por provocar a queda do ministro Souza Mello. Seu sucessor foi o brigadeiro Joelmir de Araripe Macedo, que removeu Burnier do comando da 3ª Zona, transferindo-o para um cargo burocrático na Diretoria de Documentação Histórica da Aeronáutica. Logo foi afastado da lista de promoções em 1972, sendo obrigado a passar para a reserva. 

Até a sua morte, ocorrida em 13 de junho de 2000, Burnier negou o envolvimento no caso PARA-SAR, protestando contra sua divulgação na imprensa e solicitando diversas vezes que o processo militar fosse reaberto, não obtendo sucesso. Apesar disso, o passar dos anos não arrefeceu o apoio que recebera de Souza Mello; ao ser entrevistado em 1988 por Zuenir Ventura para seu livro 1968: o Ano que Não Terminou, o ex-ministro declarou que o capitão Sérgio, “ele sim, é que tinha esse plano” – posição que manteve mesmo confrontado com a evidência da confirmação feita por mais de 30 testemunhas militares. Diante dessa situação, Souza Mello preferiu fazer uso de um argumento muito utilizado por oficiais militares, quando se veem diante de questões problemáticas no âmbito de suas instituições – hierarquizar o debate: “É a palavra de cabos e sargentos contra a de oficiais”.

O capitão Sérgio quando falou sobre o caso em Campinas, São Paulo – Fonte – Arquivo Nacional.

Herói

Em 1985 o antigo capitão “Doc” Santos afirmou que a resistência dos integrantes do PARA-SAR mudou o curso da história do Brasil. “Se não tivéssemos reagido, este país teria virado uma republiqueta. Onde já se viu combater terrorismo com ações de super terrorismo?”, pergunta o antigo militar. “Seria uma coisa de louco, sem paradeiro.”

Somente em 12 de junho de 1985, Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho recebeu a primeira homenagem pública desde que foi cassado, sendo-lhe outorgado o título de “Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro”. Ele envolveu-se na política, tendo assumido como suplente o mandato de deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro durante três ocasiões da legislatura de 1987 a 1991.

Sérgio Carvalho e sua esposa – Foto – Arquivo Nacional.

Em 1992, o Supremo Tribunal Federal reconheceu os direitos do capitão Sérgio, estabelecendo que ele deveria ser promovido a brigadeiro – posto que teria alcançado se tivesse permanecido na Força Aérea Brasileira. O então ministro da Aeronáutica, o brigadeiro Lélio Viana Lobo, ignorou a decisão da corte, sendo o STF obrigado a mandar um ofício exigindo o cumprimento da lei. Lobo novamente se recusou a cumprir a determinação judicial, transferindo o problema para o presidente Itamar Franco.

Esse político, que ocupou o cargo de maneira interina e não queria problemas com a classe fardada, protelou a decisão até cinco dias após a morte de Sérgio Carvalho, ocorrida em 5 de fevereiro de 1994, devido a um câncer no estomago. O valente capitão morreu no Rio de Janeiro, não viu sua patente ser restabelecida, ou receber a promoção a que tinha direito. Somente em 1997, o governo federal, baseado na decisão do STF, indenizou a família de Sérgio com o valor relativo às vantagens e soldos que ele deixou de receber entre os anos de 1969 e 1994.

Sempre que comento essa história com outras pessoas, eu acho interessante como a figura histórica de Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho consegue criar discursões acaloradas, intermináveis e estéreis…

Foto – Arquivo Nacional.

Para os seguidores da direita brasileira e dos saudosistas da Ditadura Militar, o capitão Sérgio é no mínimo um “traidor”, um homem que “se virou contra o sistema”, que “cuspiu no prato que comeu” e que “não ajudou a acabar de vez com a esquerda no Brasil”. Já para a esquerda, que muitas vezes consegue ser tão sectária em certos pontos de vista que fica difícil entendê-los, Sérgio Carvalho não merece nenhum tipo de elogio, de reconhecimento e consideração, pois foi um “golpista de 31 de março de 1964”, que “apoiou o sistema repressor”, “vestia farda” e “desfilava no 7 de setembro”.

Tudo isso é muito triste, pois ao dizer “não”, Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho se tornou um grande herói!

Ele teve coragem de dizer “não” a um superior, em um sistema baseado na ordem hierárquica e pagou um preço muito alto por isso.

Seu exemplo foi seguido por outros companheiros, tão honrados como ele. Diferentemente de outros colegas de carreira, que desejosos de conquistarem as benesses do superior hierárquico e do sistema, mostraram que poderiam executar ações terroristas horríveis, que ocasionaria uma série de catástrofes inigualáveis na cidade maravilhosa, resultando na morte de sei lá quantas mil pessoas.  

Eu sempre me pergunto onde iria parar a Ditadura Militar no Brasil se Sérgio Carvalho tivesse aceitado o que queria seu superior e executasse a planejada hecatombe no Rio de Janeiro?

Quantos mais iriam morrer no Brasil se isso tivesse acontecido? E quanto tempo mais a Ditadura iria permanecer no poder?

Não tenho todas as respostas. Mas de saída creio que aqui teriam morrido muito mais pessoas que na ditadura da vizinha Argentina, cujo número de por lá teria sido de 30.000 vítimas. Também acredito que a nossa Ditadura teria permanecido mais uns 20 anos no poder, só terminando em 2005. E, mesmo que em algum momento voltássemos a respirar a liberdade, diante de qualquer alteração política que não agradasse os fardados, certamente os tanques rolariam pelas ruas com uma facilidade imensa e o terror recomeçaria.

Por isso repito – ao dizer “não”, Sérgio Miranda Ribeiro Carvalho se tornou um herói!

1964 – A REVOLTA DOS MARINHEIROS E FUZILEIROS NAVAIS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Marinheiros e fuzileiros navais sublevados no interior do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, sendo cercados por tropas do Exército Brasileiro. Essa manifestação militar foi um dos estopins da Revolução de 1964, que implantou o regime ditatorial no Brasil por vários anos.

A Revolta dos Marinheiros ocorreu entre os dias 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro e foi um conflito entre as altas autoridades da Marinha do Brasil e a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB).

Momento em que os fuzileiros navais foram enviados para desalojar seus colegas de farda. Mas…

No Brasil, a primeira metade na década de 1960 foi um período de grande mobilização de grupos como “estudantes, sindicalistas, políticos, artistas, camponeses organizados, comunistas e outros. Como parte dessa agitação social e vinculados às demais forças, surgiram movimentos nos membros formadores dos grupos de baixa patente nas Forças Armadas, como sargentos, cabos e soldados. Eles eram tipicamente esquerdistas, com ideologia nacionalista e reformista. Foram organizados em associações de classe, incluindo a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil,

vários deles aderiram ao movimentro e largaram suas armas!

A AMFNB fez parte dos movimentos dos militares de baixa patente no início da década de 1960, onde também figura a revolta dos sargentos do Exército e da Marinha em 1963, da qual participaram muitos de seus integrantes. Era uma associação de classe para uma categoria pobre, com condições de trabalho difíceis, privada de direitos como o voto e o casamento, e marcada pela extrema diferença social em relação aos oficiais das Forças Armadas, situação que inclusive perdura até hoje!

A AMFNB foi fundada 25 de março de 1962 por marinheiros e fuzileiros navais e em 1964 seu presidente era José Anselmo dos Santos, o conhecido “Cabo Anselmo”.

Plenária dos marinheiros e fuzileiros navais durante o movimento. Ao microfone uma das principais lideranças, o marinheiro José Anselmo dos Santos.

Nesses dois anos essa associação conquistou milhares de membros e uma liderança mais combativa, aproximando-se do presidente João Melchior Marques Goulart, o Jango, e de organizações de esquerda, além de se interessar por questões externas à corporação, como as reformas de base.

A entidade encontrou hostilidade por parte dos oficiais da Marinha sobre a questão da indisciplina militar. Sua politização não foi tolerada, ao contrário das atividades políticas do funcionalismo.

Ocupação da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro pelos marinheiros e fuzileiros navais.

O aniversário de dois anos da Associação, no dia 25, foi comemorado no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, na Rua Ana Neri, 152, bairro de Benfica. Cerca de dois mil marinheiros estavam no local, quando o então ministro da Marinha, Sílvio Mota, ordenou a prisão dos 40 organizadores do evento, por declaração proferida no dia 20. Em reação, os marinheiros se recusaram a abandonar o local até o cumprimento de uma série de demandas.

O ministro da Marinha, Silvio Mota, decretou prontidão estrita, o que exigia a presença de marinheiros em suas unidades, mas eles desobedeceram e ficaram na sede do Sindicato.

Tropas da Polícia do Exército na hora do almoço, ou rancho, agaurdando o desfecho das negociações.

Essa desobediência não constituiu um movimento armado. No dia 26, o ministro queria invadir o sindicato com fuzileiros navais reforçados por tropas do exército.

Vinte e cinco soldados da tropa enviada pelo ministro para desmobilizar o protesto resolveram depor as armas e aderir ao motim. O comandante dos fuzileiros navais, almirante Cândido Aragão, foi exonerado por sua recusa de realizar o ataque. Vale ressaltar que a esquerda em geral era a favor dos rebeldes, enquanto a oficialidade era contra. Uma segunda operação de retirada dos amotinados, mas foi cancelada.

As mulheres dos amotinados apoiaram intensamente seus companheiros, até porque uma das reivindicações desses militares era a possibilidade dos praças das Forças Armadas contrairem matrimônio.

O presidente João Goulart voltou às pressas de São Borja para o Rio de Janeiro, nomeou Paulo Mário da Cunha Rodrigues como novo ministro no lugar de Sílvio Mota, e assumiu as negociações. Na manhã do dia 27, ele acertou a saída dos amotinados e, à tarde, declarou a anistia dos marujos.

O motim saía vitorioso e as Forças Armadas afrontadas. A ação de Goulart foi duramente criticada pela oposição e visto pelas autoridades como conivente com a quebra da disciplina militar.

Na rua outras tropas bem armadas aguardam o desfecho da situação.

Além disso a revolta dos marinheiros unificou muitos militares contra Goulart, fragilizou o governo e forneceu às lideranças que conspiravam contra Jango o pretexto para sustentarem a denúncia de ilegalidade do presidente. Enquanto isso, o horizonte do golpe ficava perigosamente mais próximo e no final do mês de março os militares derrubaram Jango.

Fim do movimento e a retirada dos marinheiros e fuzileiros em viaturas do Exército.

O episódio da revolta dos marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro está relacionado com a Revolta de Chibata de 1910, como se sentiu na época, e foi seguida da punição dos envolvidos. Outras consequências foi que muitos dos punidos participaram da luta armada contra a ditadura militar. Entretanto, a longo prazo, ocorreu o aperfeiçoamento das condições dos praças da Marinha.

Poucos dias depois do fim do movimento dos marinheiros e fuzileiros navais, novamente as viaturas militares deixaram os quartéis para ajudarem na deflagração do Golpe de Estado de 31 de março de 1964.

A revolta é frequentemente acusada de ser obra de agentes provocadores (especialmente o “Cabo Anselmo”) a serviço dos golpistas que derrubaram Goulart, o que tem sido contestado por historiadores.

José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, é ainda hoje o mais conhecido informante a serviço da Marinha e da CIA durante a Ditadura Militar.

Fonte – https://riomemorias.com.br/memoria/revolta-dos-marinheiros/

UM POUCO DA HISTÓRIA E DO SIMBOLISMO DA FESTA DE NATAL

O Natal é um feriado cristão que nasceu para celebrar o nascimento de Jesus Cristo, que aconteceu em Belém, na Judéia (hoje Palestina), entre 2006 e 2013 anos atrás.

Todos os anos, no dia 25 de dezembro em todo o mundo, o nascimento do Menino Jesus é celebrado com uma evocativa Missa da Meia-Noite, preparando o presépio, enfeitando a árvore de Natal, trocando presentes, cantando canções, preparando doces e comidas especiais para serem consumidas em família e repetindo cerimônias e ritos diferentes para cada país da terra.

25 de dezembro é uma data simbólica que está ligada ao solstício de inverno e a um festival pagão romano introduzido pelo Imperador Aureliano em 274 DC: o “Natal do Convite”, que não era outro senão o “Sol Invictus”, divindade solar de Emesa, ou o “dia do novo sol”.

Na Itália, o Natal está ligado à preparação do presépio, que se constrói em muitas casas, em todas as igrejas, praças e lugares públicos. A tradição remonta ao primeiro presépio vivo de São Francisco de Assis que em 1223, em Greccio, quis reviver o nascimento de Jesus na véspera de Natal em um ambiente natural. As primeiras estatuetas, algumas das quais estão preservadas em Santa Maria Maggiore, em Roma, sendo esculpidos em madeira por Arnolfo di Cambio em 1280.

Já os cristãos ortodoxos celebram o Natal em 6 de janeiro.

Além do presépio e do São Nicolau (e das adaptações do santo que foram feitas em todas as partes do mundo e ao longo do tempo), não há símbolo mais representativo da árvore para as festas de Natal.

A história da árvore de Natal (ou árvores de Natal, já que são utilizadas diferentes espécies) segue de perto a história da mesma Natividade e a necessidade do Cristianismo de construir sua própria simbologia, assimilando as tradições e símbolos das religiões pré-pagãs, existentes por toda parte Europa (sincretismo). 

Tradições e símbolos a serem eclipsados. Como aqueles relacionados ao culto de Saturno, deus da agricultura, ou ao de Mitras. Ambos, em épocas diferentes, celebrados na mesma época do ano, no solstício de inverno. Este é um dos motivos pelos quais se decidiu, apenas no século IV, celebrar o nascimento de Cristo no dia 25 de dezembro, ainda que na época não fosse costume celebrar-se o aniversário de nascimento de alguém. Então, que metáfora melhor do que uma árvore, que germina, cria raízes, cresce, ramifica e gera sementes para se reproduzir? 

E nada melhor do que uma árvore “perene”, capaz de transmitir a mensagem de renovação e imortalidade?

Presenças e sinais nas origens de nossas árvores de Natal podem ser encontrados nas mais antigas culturas pagãs. Os romanos decoraram suas casas com ramos de pinheiro e outras sempre-vivas nos Kalends de janeiro. 

Entre os celtas, sacerdotes e sacerdotisas druidas (do duir gaélico, ou seja, carvalho) usados ​​para decorar suas árvores perenes, abetos e pinheiros vermelhos, para as celebrações do dia mais curto do ano. 

Entre os vikings do extremo norte da Europa, onde o sol “desaparecia” durante semanas em pleno inverno, na semana anterior e posterior ao dia da noite mais longa, eram celebradas solenidades para desejar o retorno do sol e da vida. O abeto, tão difundido nessas latitudes, era considerado capaz de expressar poderes mágicos, pois, ao contrário das bétulas e da sorveira-brava e das poucas outras árvores decíduas capazes de resistir à rigidez boreal, não perdia as folhas nas geadas do inverno.

Os abetos foram cortados e trazidos para casa, enfeitados com frutas, lembrando-nos a fertilidade que a primavera iria devolver às árvores. E quando os primeiros missionários chegaram às regiões escandinavas, o uso da árvore de Natal também começou a se espalhar como um símbolo cristão. No início da Idade Média, as primeiras árvores de Natal eram chamadas de “árvores do Paraíso” e eram decoradas com maçãs (clara alusão ao pecado original) e hóstias (fragmentos do corpo de Cristo sacrificados para pagar pelo pecado original). Com o tempo, os anfitriões foram substituídos por velas, nozes, castanhas, doces e biscoitos, como símbolos da redenção de Cristo.

Uma lenda diz que São Bonifácio de Crediton, uma vila inglesa em Devon, que veio para a Alemanha em 716 para pregar às tribos germânicas pagãs e convertê-las ao cristianismo, encontrou um grupo de pagãos dispostos a sacrificar um menino enquanto adoravam um carvalho. No ímpeto e para interromper o sacrifício, São Bonifácio atirou-se com um machado contra o carvalho e quando o derrubou, para seu espanto, viu um magnífico pinheiro surgir do toco do carvalho. São Bonifácio leu este acontecimento como um sinal da fé cristã e desde então os seus seguidores começaram a decorar aquela árvore com velas, para que o Santo pudesse pregar aos pagãos ainda à noite.

A primeira utilização, documentada por textos, da árvore como símbolo do Natal e do Ano Novo remonta ao século XVI. A Irmandade dos Blackheads, uma associação de comerciantes locais solteiros e armadores, deu vida em 1510 ao ritual de colocar uma árvore no centro da praça principal de Riga (Letônia) e, em seguida, atear fogo na véspera de Ano Novo. Na praça, entre a igreja de San Pietro e o prédio da Confraria, existe hoje uma placa comemorativa da primeira árvore de Natal e Ano Novo ( www.firstchristmastree.com ).

O historiador Balthasar Russow em 1584 descreveu a tradição de um abeto decorado na praça onde os jovens “vêm com uma multidão de meninas e mulheres, cantam, dançam e depois colocam fogo no pinheiro”.

Talvez essa lenda explique porque em tempos mais recentes é creditado a Alemanha como sendo a pátria da árvore de Natal.

Os alemães desenvolveram uma versão própria: um pinheiro para ser instalado dentro de casa e decorado com velas e presentes, o Tannenbaum. A tradição se consolidou no século XIX quando a família real britânica, de descendência alemã, fez a primeira árvore de Natal, dando início a uma tradição que se tornaria global.

Igualmente no final do século XIX na Itália foi introduzido o costume de decorar árvores de Natal. Com o tempo, fitas e velas foram adicionadas às guirlandas, até o século XIX, quando alguns artesãos suíços e alemães criaram decorações de vidro soprado.Em todos os países do mundo, pratos tradicionais são oferecidos na ceia de Natal ou no almoço de Natal.

Na Itália a tradição da ceia de Natal é muito viva, à base de enguia ou outro tipo de peixe, linguiça de porco ou zampone com lentilha ou peru recheado com castanhas.

Na Alemanha, a tradição natalícia começa a partir de 11 de novembro, vai até 6 de dezembro, quando São Nicolau traz para as crianças chocolates, casas feitas com pão apimentado e outras iguarias para terminar na véspera de Natal com pratos de porco gigantescos, saladas de macarrão, linguiças brancas e outros especialidades regionais.

Após a Missa da Meia-noite, os franceses sentam-se em torno de mesas ricamente dispostas chamadas “le reveillon”. O cardápio, que varia de acordo com a região, é composto por pato, macarrão feito com farinha de trigo sarraceno e creme de leite, peru com castanhas, enquanto para os parisienses, ostras e foie gras.

Sugestiva é a ceia de Natal na Rússiaque se comemora no dia 6 de janeiro, onde não se come carne, mas Kutya, uma espécie de sopa de trigo e mel, símbolo de esperança e felicidade. O kutya é comido no mesmo prato colocado no centro da mesa e representa a unidade da família.

Mesmo na Polônia, apenas alimentos magros são consumidos: peixes ou vegetais. Gorduras como manteiga ou óleo não são usadas para fazer sobremesas.

A véspera de Natal é chamada de “Festa da Estrela”, e a tradição diz que a ceia de Natal começa apenas quando a primeira estrela aparece no céu.

A véspera de Natal na Dinamarca é passada com a família, decorando a árvore com bolas e bandeiras dinamarquesas e preparando o tradicional almoço que inclui ganso assado com repolho e batata preta.

Nos dias atuais me parece que muitos procuram de todas as maneiras erradicar e esquecer o Natal e sua simbologia.

Pessoalmente eu creio que, mesmo agora, qualquer religião ou coisa inventada pela mente ou mão humana é imperfeita.

Mas creio que não podemos esquecer a nossa história, mostrar-nos hipócritas ou surdos para o que foi, o que fomos e talvez, no fundo, ainda sejamos. 

Talvez melhor seja você conceder um dia para estar perto de quem se gosta!

Reserve um momento para colocar sua vida em perspectiva, colocando suas prioridades em ordem. Encontre tempo para pensar nos outros, sejam eles amigos ou familiares. Sendo forçado a fazer uma pausa, emergindo à força do frenesi do mundo consumista. 

Encontrar descanso de uma vida de labuta e sacrifício. Encontrar pessoas distantes ou simplesmente poder parar e respirar fundo. Esses são alguns dos temas seculares que dão sentido ao Natal, indo além dos rituais e costumes religiosos, muitos dos quais se originaram bem antes do cristianismo.

Nesta louca dança dos séculos, deve-se ter em mente que, como dizia o grande Lavoisier, “tudo se transforma, mas nada se destrói”.

Feliz Natal a todos!!!

O BRADO DA CASERNA

Flagrante da rebelião dos sargentos da Marinha e da Aeronáutica, Brasília, setembro de 1963.

REVOLTAS DE MARINHEIROS, SOLDADOS E SARGENTOS FORAM COMUNS NA NOSSA HISTÓRIA: DAS REBELIÕES CONTRA OS CASTIGOS CRUÉIS ÀS LUTAS PELO DIREITO À ORGANIZAÇÃO

Em 1910, um relatório do Ministério da Marinha afirmava que a maior fonte de alistamento de seu pessoal era encontrada “nos xadrezes da polícia”. No Exército, a situação não era muito diferente, pois nossas Forças Armadas se constituíram inicialmente segundo o modelo europeu de recrutamento: os oficiais eram escolhidos na nobreza e as praças nas classes baixas. Assim se pretendia garantir a lealdade dos oficiais ao governo e às classes dirigentes e dificultar a integração do Exército como uma instituição que pudesse assumir o seu próprio papel político.

Com esse tipo de recrutamento, o clima nos quartéis e navios era formado por uma grande indisciplina e constantes ameaças de deserção, combatidas com castigos cruéis. As surras, abolidas por lei de 1874, continuavam. A espada

sem corte apenas foi substituída pela vara de marmelo no Exército e pela chibata na Marinha.

É por isso que o protesto contra os castigos fazia parte das duas revoltas de subalternos da Marinha que explodiram no início do governo Floriano Peixoto (1891-1894). A Revolta do Encouraçado 1º de Março, ocorrida em 13 de dezembro de 1891, teve como motivo declarado a exigência de substituição de alguns oficiais por causa de seu “excessivo rigor”. Em 19 de janeiro de 1892, o sargento Silvino Honório de Macedo lidera outra rebelião, que leva à tomada da Fortaleza de Santa Cruz, prisão militar onde estavam 60 marinheiros presos na revolta anterior. A Fortaleza de Lage aderiu à revolta, mas navios de guerra e tropas do Exército cercaram as fortalezas e, depois de choques armados, os amotinados se renderam.

João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata.

A Marinha brasileira, nos primeiros anos do século 20, contava com embarcações que exigiam técnicas sofisticadas de navegação. Mas nos modernos encouraçados, comprados aos ingleses, ainda reinava a chibata. Em 22 de novembro de 1910, depois de assistirem à aplicação de um castigo particularmente cruel, os marinheiros do encouraçado Minas Gerais (um dos maiores do mundo), comandados pelo marinheiro negro João Cândido (80% dos tripulantes da Armada eram negros e mulatos), rebelaram-se e tomaram a embarcação. Aderiram mais dois encouraçados (São Paulo e Deodoro) e um cruzador (Bahia), todos na baia da Guanabara.

Devido ao poder de fogo dos navios rebelados, o governo resolveu negociar e prometeu uma anistia. Mais tarde, porém, depois que os marinheiros entregaram os navios e depuseram as armas, o governo prendeu os líderes do levante. Muitos morreram nas prisões ou na Amazônia, para onde foram enviados. João Cândido foi um dos sobreviventes. Ele trabalhou até os 70 anos na estiva do Rio de Janeiro, morrendo em 1969, na miséria.

A Rebelião dos Sargentos de 1915 foi a primeira que apresentou reivindicações específicas do grupo, pretendiam acabar com as diferentes classes de sargentos no quadro do Exército para unificar os vencimentos e a estabilidade nos postos. Duas novas tentativas de rebelião de sargentos foram reprimidas em janeiro e março de 1916.

O Movimento de 1935 Marcou a Vida do País

Nesse mesmo ano, depois de intensa campanha, entrou em vigor uma lei de 1908 estabelecendo o recrutamento universal. Como consequência, foi extinta a Guarda Nacional, até então reservada às classes altas, e encerrada a dualidade de serviço militar. Mas, no interior das Forças Armadas, continuava a haver duas carreiras distintas. Entre oficiais e praças há um ponto de ruptura na linha hierárquica vertical, não podendo os sargentos e praças ascender ao campo dos oficiais.

Notícia da rebelião dos srgentos, de 1915.

Esse é o limite da carreira profissional para aqueles que vêm de baixo. E são os sargentos que estão no ponto de quebra. Para eles ficava claro o caráter ilusório da retórica que falava na igualdade e em um destino comum. A modernização do Exército, que se seguiu à Revolução de 1930, passava pela profissionalização dos oficiais, mas mantinha a exclusão dos sargentos da carreira superior. Assim, não é de surpreender que as revoltas se multiplicassem de Norte a Sul. As pesquisadoras Lúcia Lahmeyer e Vanda Maria Ribeiro da Costa estudaram 88 movimentos militares entre outubro de 1930 e 1939. Destes, 33 tiveram participação principal de praças.

Em todo o País, aqueles foram anos de intensa agitação política e social, que se refletia nos quartéis. Tanto a Ação Integralista Brasileira (AIB) quanto a Aliança Nacional Libertadora (ANL), organizada pelo Partido Comunista do Brasil, encontravam neles fértil campo de atuação. A primeira conseguiu seus adeptos principalmente entre a oficialidade. As praças eram atraídas pela esquerda,

que a elas se dirigiam denunciando suas condições de vida e prometendo um novo Exército, mais democrático.

Intentona Comunista de Natal de 23 de novembro de 1935 foi notícia em todo mundo, como neste material publicado em um jornal dos Estados Unidos.

De todos os movimentos, foram os que eclodiram em Natal, Recife e Rio de Janeiro, em novembro de 1935, que marcaram mais profundamente a história do País. Liderados pela ANL, constituíram uma tentativa insurrecional e, depois de derrotados, serviram de pretexto para o golpe de Estado que gerou o Estado Novo (1937) e para destilar um anticomunismo doentio nas Forças Armadas. Neles, além de tenentes e capitães, tiveram participação destacada o cabo Giocondo Dias, em Natal, o sargento Gregório Bezerra, em Recife, e o cabo David Capistrano, no Rio de Janeiro.

Como consequência da repressão que se seguiu, o Exército terminou a década de 1930 sólido e coeso como nunca estivera. Entre 1940 e 1945 ocorreram apenas seis movimentos militares e só um de praças. Mas, nas novas condições políticas surgidas com o fim do Estado Novo, em 1945, o movimento dos sargentos renasceu e sua organização aumentou, espalhando-se pelos quartéis de todo o País. Datam dessa época os clubes de sargentos, formados em vários Estados.

Na luta pela posse do vice-presidente João Goulart, em agosto de 1961, chegaram a tomar duas bases aéreas (Belém e Porto Alegre), prendendo os oficiais e imobilizando os aviões.

Setores Mais Radicalizados Fundam o MNR

No clima de polarização política e de conflito social aberto que marcou o governo Goulart, ocorreram vários movimentos de praças, mas dois se destacaram. Em 12 de setembro de 1963, cerca de 600 sargentos das três Armas cercaram os principais edifícios do governo, em Brasília, protestando contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal que mantinha a inelegibilidade dos sargentos e cassava os eleitos em 1962.

Blindado do Exército diante do prédio do extinto Ministério da Marinha, durante a rebelião dos sargentos. Brasília, setembro de 1963.

O segundo iniciou-se em 25 de março de 1964, quando, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, reuniu-se uma assembleia comemorativa do segundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, que lutava por reivindicações tais como o direito de casar, a permissão para vestir roupas civis fora do serviço e melhoria dos soldos. O almirante Sílvio Mota, ministro da Marinha mandou prender os marinheiros e dissolver a assembleia. Mas os fuzileiros navais enviados aderiram ao movimento. A crise provocou a queda do ministro e Goulart não puniu os revoltosos.

Os dois episódios foram utilizados pelos militares golpistas para convencer oficiais legalistas da necessidade de derrubar um governo que, segundo eles, ameaçava destruir a hierarquia das Forças Armadas. Depois do golpe, os setores mais radicalizados do movimento de sargentos e marinheiros, excluídos das Forças Armadas, deram origem ao MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), a primeira organização a tentar a luta armada contra o Regime Militar.

Para os que permaneceram nas corporações, os problemas continuavam, mas só quando a sociedade reconquistou um espaço mais livre para manifestar seu descontentamento os movimentos reivindicatórios dos soldados puderam aflorar.

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Militares da Polícia Militar da Bahia, na saída de uma missa em Salvador, ocorrida para honrar um colega morto durante a greve de outubro de 1981.

A greve da Polícia Militar de Salvador, Bahia, em março de 1981, envolvendo 10.500 oficiais e soldados que exigiam equiparação salarial com o Exército, e diversas manifestações ocorridas depois da posse dos governadores da oposição, em 1983, foram definidos naquela época como os sinais de uma nova fase de movimentação e organização dos sargentos, soldados e marinheiros de nossas Forças Armadas.

FONTE – Retratos do Brasil (Da Monarquia ao Regime Militar), 1985, Editora Três / Editora Política.  

CEGA. E CARA E LENTA – A JUSTIÇA BRASILEIRA TEM SIDO INACESSÍVEL E SOBRETUDO MOROSA…

UM TEXTO DE HÉLIO BICUDO DE 1985, QUE NÃO ESTÁ DESATUALIZADO…

FONTE – Retratos do Brasil (Da Monarquia ao Regime Militar), 1985, Editora Três / Editora Política.

AUTOR – Hélio Pereira Bicudo (Mogi das Cruzes, 5 de julho de 1922 — São Paulo, 31 de julho de 2018) foi um jurista e político brasileiro, militante de direitos humanos, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, turma de 1947.

Da Colônia ao Regime Militar, o Poder Judiciário brasileiro sempre sofreu modificações de acordo com as prioridades estabelecidas pelo poder dominante, deixando em segundo plano as suas necessidades de modernização efetiva. E este é, essencialmente, o fator determinante da crise secular da nossa Justiça.

Inacessível à imensa maioria da população, quase sempre tardia, a Justiça sofre hoje, mais do que nunca, o impacto arbitrário do poder. Durante a Monarquia, a estrutura do sistema judiciário brasileiro foi basicamente a herdada do período colonial. Em 1822, ano da independência do País, uma “Casa de Suplicação”, sediada no Rio de Janeiro, funcionava como um Tribunal Superior nacional. Apenas as Províncias da Bahia, Maranhão e Pernambuco tinham “relações”. Ou seja, tribunais de segunda instância, que julgavam as causas que, de alguma forma, não se resolviam pelos juízes inferiores ou juízes de paz, todos nomeados diretamente pelo poder central e escolhidos entre os “homens bons”.

CEGA. E CARA E LENTA - A JUSTIÇA BRASILEIRA TEM SIDO INACESSÍVEL, CARA E SOBRETUDO MOROSA...
Hélio Bicudo – Fonte – Hélio_Bicudo-.wikimedia.orgwikipediacommons888Hélio_Bicudo.png

Após 1930, surgem a Justiça Eleitoral e a Trabalhista

A Constituição de 1824 modificou essa estrutura criando “relações” em quase todas as Províncias. No Rio, além de uma “relação”, criou-se também um Supremo Tribunal de Justiça. Ao Supremo Tribunal competia conceder ou negara revisão de sentenças, conhecer os delitos e erros que poderiam ser cometidos pelos juízes e “relações”, ou pelos empregados do corpo diplomático e presidentes da Província. E, também, decidir sobre a competência das “relações” provinciais.

Em 1822, também já existia a Justiça Militar. Mas não fazia parte do Poder Judiciário e julgava apenas os crimes cometidos nos quartéis. Com a proclamação da República, em 1889, o Judiciário ganhou prestígio e força muito superiores que à época do regime monárquico, O Supremo Tribunal Federal recebeu a atribuição de proferir a última palavra sobre a constitucionalidade das leis votadas pelo Congresso e dos atos do Executivo.

Concentrou ainda em suas mãos a defesa legal de todos os direitos, civis e políticos, do povo brasileiro. Os juízes de paz foram mantidos. Os Estados foram divididos em Comarcas, com juízes de primeira instância. Prevaleceu o princípio da autonomia dos Estados na estruturação do Judiciário, e os juízes nomeados pelos governadores passaram a ser escolhidos apenas entre os bacharéis em Direito.

Após a revolução de 1930, talvez a mais significativa, foi a da criação das Justiça Eleitoral.

A partir de 1930 foi instituído o concurso público para o preenchimento dos cargos jurídicos. Com a Constituição de 1934, os juízes e tribunais militares passaram a ser órgãos do Poder Judiciário, com a competência de julgar os militares nos delitos de natureza estritamente militar, ou civis nos casos de crimes contra a segurança externa do País ou contra instituições militares.

Outra grande transformação do Judiciário decorrente das mudanças políticas após a revolução de 1930, talvez a mais significativa, foi a da criação das Justiça Eleitoral e Trabalhista. Pela Constituição de 1946, o Poder Judiciário passou a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Tribunal Federal de Recursos, por juízes e tribunais militares, por juízes e tribunais eleitorais e por juízes e tribunais de trabalho.

O golpe militar de 1964 trouxe substancial reforma na estrutura do Poder Judiciário. O Ato Institucional no 2, de 27 de outubro de 1965, suspendeu as garantias constitucionais ou legais de vitalicidade, inamovibilidade e estabilidade dos juízes, submetendo-os, desta forma, às pressões ditadas por interesses políticos. A Constituição de 1967 viria restabelecer tais garantias, mas por pouco tempo. As restrições voltaram, e ainda maiores, com o Ato Institucional no 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968. O habeas-corpus foi suspenso nos casos de crimes políticos ou contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Além disso, o AI-5 excluiu de qualquer apreciação do Poder Judiciário todos os atos praticados de acordo com suas determinações.

Fonte – httpsjurinews.com.bradvocaciamorosidade-da-justica-e-o-entrave-que-mais-afeta-a-profissao-dizem-advogados

Proposta de ex-ministro não resolveria o elitismo da Justiça

O Ato Institucional no 6, de 10 de fevereiro de 1969, ampliou a competência da Justiça Militar, fazendo-a abranger também os civis nos casos de crimes contra a segurança nacional ou instituições militares.

Em 1974, quando os ministros do Supremo Tribunal Federal clamaram por uma “reforma ampla e global” na Justiça brasileira, o presidente Ernesto Geisel respondeu atribuindo-lhes a tarefa de fazer um “diagnóstico das necessidades da Justiça”. Foi com este nome que chegou às mãos do presidente um extenso relatório com as propostas do Supremo.

O conteúdo do documento, entretanto, ficou muito longe do que sugeria seu nome, O “diagnóstico” assinalou o óbvio: a Justiça brasileira é cara e morosa. E nada mais. Na verdade, as reformas necessárias para que a estrutura jurídica e judiciária do País permitam maior desenvoltura na distribuição da Justiça, tornando-a mais barata, rápida e eficiente, ainda estão por acontecer.

As reformas patrocinadas pelos governos do Regime Militar não passaram de pretextos para a recomposição das cúpulas do Poder Judiciário nacional, tornando-o mais centralizado, desfigurando um regime que, de federativo, só tem o nome.

A Lei Orgânica da Magistratura, que adveio com o “pacote de abril” de 1977, ou seja, uma série de medidas arbitrárias impostas pelo presidente Geisel depois de fechar o Congresso, destruiu a autonomia dos Judiciários estaduais, exacerbou a fiscalização de Brasília sobre juízes, agigantou os tribunais de segunda instância e complicou suas constituições.

Não trouxe nenhuma solução para o problema mais grave, o de estrangulamento da Justiça de primeira instância. Em outras palavras, manteve a Justiça longe do povo, inacessível, afogada num mar de processos de pequenas causas sem solução. Além disso, carente de recursos materiais e financeiros.

Diagnóstico do STF assinala o óbvio da Justiça brasileira

A crise é evidente na Justiça brasileira. Mas o desconhecimento das reais necessidades da população tem determinado falsas propostas de solução. O ex-ministro da Desburocratização, Hélio Beltrão, por exemplo, pouco antes de deixar o cargo, divulgou um anteprojeto em que propôs um juizado especial para pequenas causas civis, elaborado com a colaboração de magistrados. Em princípio, a proposta teve o objetivo de atender a gente humilde, a mais marginalizada que não dispõe de recursos para enfrentar a lentidão e o custo dos litígios. Esses juizados poderiam funcionar em horário noturno, as partes não precisariam de advogados para representá-las e as causas julgadas seriam aquelas que não excedessem um certo valor em dinheiro. Ora, o mecanismo proposto aceita a concepção de que a Justiça é um privilégio das classes mais ricas.

Ao limitar as causas a um certo limite, essa justiça mais ágil não irá alcançar determinados segmentos da sociedade, mas voltar-se, justamente, contra os de menor posse, criando departamentos estanques para a distribuição da Justiça. Não busca uma Justiça igual, mas insiste na desigualdade. Não resolveria o problema central da Justiça brasileira: o elitismo.

O prestígio da Justiça, cuja restauração é da maior importância numa democracia, só poderá ser atingido quando os juízes se aproximarem dos cidadãos, abandonando a redoma em que, hoje, se encontram fechados.

A estrutura atual do Judiciário não permite, sequer, a fixação do juiz na comunidade onde ele deve distribuir a Justiça. No interior do País, existem casos de juízes que são nomeados para uma Comarca e nem sequer chegam a assumir o cargo, sendo transferidos para outra, onde suas permanências podem não ultrapassar dias ou meses. Ora, de um juiz não se requer apenas uma rigorosa formação tecno jurídica. Para julgar bem, ele precisa participar e sentir a vida da sua comunidade.

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A HISTÓRIA DO BOEING 314 CLIPPER – O GRANDE HIDROAVIÃO QUE TROUXE O PRESIDENTE ROOSEVELT PARA NATAL

Rostand Medeiros – IHGRN

Quem testemunhou a era dos grandes hidroaviões nos céus ou nas águas, certamente nunca esqueceu a imponência e o brilho prateado do Boeing B-314 Clipper. Era uma aeronave de fuselagem maciça, que se estreitava em direção à cauda. Nas asas estavam presos seus motores e abaixo deles um par de flutuadores reforçados que serviam para estabilizar a aeronave quando se encontrava na água.

Aquela grande aeronave era uma máquina enorme para a época, imponente, muito luxuosa, onde alguns as comparavam aos fabulosos transatlânticos daquele período. E tinham de ser confortáveis, pois como seus voos transoceânicos demoravam mais de 24 horas, todos a bordo almoçavam, jantavam, tomavam café da manhã e dormiam em seus assentos convertidos em beliches.

Seguramente para os viajantes de hoje, tanto tempo dentro de uma aeronave é um verdadeiro sacrifício, mas há oitenta anos esse tempo de viagem era um grande avanço, pois os navios de passageiros poderiam levar vários dias e semanas em suas travessias.

No final da década de 1930 os jornais de todo mundo não deixavam de trazer novas manchetes sobre aquele colosso aéreo.

Construção e Parte Técnica

Após um período de forte recessão econômica mundial que ficou conhecido como Grande Depressão, o transporte aéreo voltou a se desenvolver paulatinamente em todo mundo. A empresa aérea Pan American Airways necessitava então de hidroaviões com capacidade de transportar passageiros em viagens de longo alcance, com segurança e todo o conforto possível.

A Boeing Airplane Company venceu a competição de design e assinou um contrato com a Pan American em 21 de julho de 1936. Foi feito um pedido inicial de seis modelos, que foram designados Boeing 314. Coube ao engenheiro aeronáutico Wellwood Edmetson Beall, com apenas 29 anos, desenhar um enorme e novo hidroavião, com linhas baseadas em uma baleia. Ele concebeu essa aeronave com dois conveses, o superior para tripulação e bagagem e um inferior para passageiros, configurado como o equivalente a um “transatlântico aéreo”.

Aquele hidroavião superou todos os rivais em tamanho, sendo considerado no seu tempo o melhor do seu tipo a entrar em serviço comercial regular, com capacidade de enfrentar os severos ventos marinhos contrários. Por essa razão a Boeing o batizou como Clipper, uma homenagem aos clássicos veleiros que marcaram a navegação marítima durante o Século XIX, de grande porte e velozes.

Na época, o Boeing 314 Clipper era o maior avião comercial em serviço. Tinha 32,33 metros de comprimento, 46,36 metros de largura, quase sete de altura. Vazia a aeronave pesava mais de 22 toneladas e totalmente carregada saltava para um peso superior a 38 toneladas.

Para atravessar os oceanos e fazer voar as quase 40 toneladas do Boeing 314 Clipper carregado, eles foram equipados com quatro grandes motores radiais do tipo Wright Cyclone R-2600, de 1.500 cavalos, com 14 cilindros superalimentados, refrigerados a ar e estes foram os primeiros motores a utilizar combustível de 100 octanas que ficavam em seis tanques localizados nos hidros estabilizadores. Esses motores eram tão bons que apenas três deles faziam aquela máquina voar.

O custo do Boeing 314 Clipper ficou na época em US$ 550.000 por aeronave e o primeiro modelo voou em 7 de junho de 1938. Ao final, até 1941, a empresa Boeing construiu doze modelos, seis de um primeiro modelo e outros seis de uma versão um pouco modificada. A Pan American Airways utilizou nove aeronaves e os três restantes seguiram para a Inglaterra, onde prestaram serviço a empresa British Overseas Airways Corporation, também conhecida pela sigla BOAC.

Interior Amplo e Luxuoso

Como a Pan American adotou as viagens oceânicas de luxo, seus voos começavam com uma cerimônia digna de um verdadeiro transatlântico, com a tripulação, de dez homens, resplandecente em uniformes completos, marchando pela prancha de embarque com antecedência aos passageiros. As tripulações dos Clippers da Pan American e da BOAC eram os melhores homens dessas empresas, uma verdadeira elite, pois os voos realizados por esses hidroaviões eram os de maior prestígio em todo mundo.

Viajar no Boeing 314 Clipper era algo bastante exótico. Todo seu interior possuía uma sutil decoração em Art Déco, bem atapetado, à prova de som, com paredes na cor verde-clara e assentos de couro marrom, tratava-se do mais luxuoso convés de voo do mundo.

Consta que tinha até setenta e quatro assentos confortavelmente equipados e à noite havia alguns beliches com cortinas. Mas as considerações de peso geralmente mantinham a contagem de passageiros entre vinte e cinco a trinta. Isso deixava um amplo espaço para circularem, conversar ou acomodar-se para ler livros selecionados na biblioteca do Clipper.

Na hora das refeições, o salão central se transformava em uma sala de jantar para catorze pessoas e assentos divididos por compartimentos, onde mordomos atenciosos serviam refeições desenvolvidas por hotéis cinco estrelas e preparados a bordo por chefs. Linhos finos, porcelana da mais renomada origem, talheres resplandecentes e cristais de extrema qualidade completavam a elegante atmosfera. Na parte traseira havia uma cabine especial chamada de suíte nupcial.

Tudo isso era estritamente para os viajantes mais ricos, bem como os executivos de alto coturno, cujas corporações priorizavam a velocidade entre os destinos. Era algo diferente, destinto, praticamente sem relação com as viagens aéreas como entendemos hoje em dia.

O comandante e o copiloto sentavam-se em bancos elevados e entre eles havia um alçapão com acesso ao compartimento de proa, no nariz da aeronave. O piso superior igualmente proporcionava a tripulação um amplo espaço para circularem, com o maior cockpit de qualquer aeronave do seu tempo. Atrás do piloto e do copiloto havia uma grande área onde existiam estações para o operador de rádio, um navegador e um engenheiro de voo. Havia uma mesa de reuniões para almoço, descanso, ou onde o comandante podia se sentar quando não estava pilotando. Mas essa não era maior mesa do recinto.

Em uma época anterior ao radar, satélites e GPS, para evitar que se perdessem nos oceanos durante os voos, o trabalho dos navegadores era da mais alta importância em um hidroavião daqueles. A navegação aérea utilizava grandes mapas e para trabalhar com eles com conforto e conseguir maior precisão nos voos transoceânicos, os navegadores dispunham de uma mesa com mais de dois metros de comprimento. Eles também realizavam observações do sol e das estralas com um sextante, realizando cálculos das posições e corrigindo eventuais erros nas rotas aéreas.

À noite, cortinas opacas isolavam os pilotos do resto da área da tripulação, de modo que as luzes da cabine de popa não comprometessem a visão. Como se isso não bastasse, uma porta na parte traseira dava para os dormitórios dos tripulantes.

Voo de Quase 700 dólares por Passageiros

O primeiro voo comercial dos Boeing 314 da Pan American ocorreu entre os dias 20 e 21 de maio de 1939, sendo a aeronave utilizada batizada como Yankee Clipper, que partiu da região de Nova York para a cidade de Marselha, França, levando quase uma tonelada de correspondência. O hidroavião quadrimotor cobriu a distância após quase 30 horas de voo, com uma parada para reabastecimento no Arquipélago dos Açores e outra em Lisboa, Portugal.

Logo depois, em 28 de junho, o Boeing 314 batizado como Dixie Clipper, matrícula NC 18605 abriu a rota de passageiros entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Na ocasião a decolagem do Dixie Clipper, estalando de novo, decolou da baía de Manhasset, em Long Island, diante de 5.000 pessoas. Transportou 22 passageiros com a tarifa de 375 dólares só de ida, ou 675 dólares no caso de alguém ter comprado ida e volta. Uma verdadeira fábula na época. Na atualidade esse valor gira em torno de 11.922 dólares, que convertidos para reais no dia 24/03/2021, alcança R$ 66.525,00. Quase quatro anos depois esse mesmo Dixie Clipper trouxe o presidente americano Franklin Roosevelt para seu encontro com o presidente brasileiro Getúlio Vargas em Natal. 

O fator crucial para os pilotos dos Clippers manterem uma boa viagem era a força do vento. Partindo dos Estados Unidos, atravessando o Atlântico Norte em direção oeste, a viagem era uma contínua batalha contra o vento. Os pilotos mudavam de altitude constantemente em busca das condições mais favoráveis. As correntes mais leves eram encontradas, em geral, nas altitudes inferiores, mas, abaixo de um determinado ponto, o grande hidroavião sem radares corria o risco de colidir com navios ou, o mais provável, com icebergs.

O vento forte exigia mais combustível e, às vezes, as correntes e tempestades eram intensas demais para que o Clipper resistisse sem riscos aos mais de 3.200 quilômetros entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Aí o jeito era adiar o voo e os passageiros eram levados a um hotel nos pontos de abastecimento para aguardar o tempo melhorar. Em Natal as acomodações desses abonados passageiros eram nos apartamentos do Grande Hotel, na Ribeira, cujo arrendatário era Teodorico Bezerra, o inesquecível “major”.

Em quaisquer rotas utilizadas pelos Clippers, o mar encapelado era o pior local para uma amerissagem. Já em condições ideais, com o movimento de pouso num mar sereno, como normalmente sempre se encontravam as águas do nosso Rio Potengi, a fuselagem do Clipper mergulhava com tranquilidade. Nessas condições positivas as janelas do convés de voo, no nível superior, praticamente não eram respingadas.

O piloto então desacelerava a velocidade e o Clipper voltava a ser um barco e a ancoragem era responsabilidade do engenheiro de voo e do pessoal de terra.

Segunda Guerra Mundial

A eclosão da Segunda Guerra Mundial na Europa em 3 de setembro de 1939 reduziu a oportunidade da Pan American no crescimento dos voos transoceânicos com os Boeing 314 Clipper. Em 3 de outubro a Pan American encerrou a rota do norte para a Inglaterra. Mas os Clippers dessa empresa continuaram voando por todo o globo, mantendo especialmente a travessia do Atlântico por uma rota central, via Brasil e África Ocidental. Nessa época as principais bases da Pan American no Brasil estavam no Rio de Janeiro, Natal e Belém.

Em meados de dezembro de 1941, quando os Estados Unidos entraram na guerra, seus estrategistas aéreos procuravam desesperadamente expandir sua força de aeronaves de transporte de longo alcance. Nessa época os únicos aviões usados ​​pelo Comando de Transporte eram onze quadrimotores B-24 e um hidroavião Boeing 314 Clipper, comprado da Pan American em agosto. Os outros grandes transportes com quatro motores em serviço nas companhias aéreas civis disponíveis eram oito Clippers da Pan American e dois hidroaviões Martin M-130 Flying Boat. A empresa aérea Trans World Airlines, ou TWA, possuía cinco aviões Boeing 307 Stratoliners, a primeira aeronave de transporte comercial com uma cabine pressurizada, tornando-o um dos os transportes mais avançados da época. Sob um decreto nacional de emergência, o governo americano comprou todos eles. Mas os aviadores civis originais dessas aeronaves executaram as missões militares. 

Os dois Martin M-130 e cinco Clippers foram para a Marinha dos Estados Unidos (US Navy) e a Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (USAAF – United States Army Air Force) recebeu os três Clippers restantes, junto com os cinco Stratoliners da TWA. Isso deu à USAAF um total de vinte aeronaves de quatro motores. Muito poucos para lutar uma guerra de dimensões mundiais.

Elas fizeram muitos voos importantes durante o conflito, em apoio de operações militares tão distantes quanto o sudeste da Ásia. Naqueles anos complicados, mais precisamente em janeiro de 1942, um outro Boeing 314, batizado como Pacific Clipper, em um momento de máxima expansão militar dos países do Eixo, fez um percurso de voo ao redor do mundo.

Tempos depois, em 22 de fevereiro de 1943, o Yankee Clipper sofreu um acidente de pouso na Base de Hidroaviões de Cabo Ruivo, em Lisboa, provocando 24 mortes – o único desastre na história dos hidroaviões Boeing 314 Clipper com vítimas mortais. A causa provável deste acidente foi um contato inadvertido da ponta da asa esquerda da aeronave com a água durante a curva de descida preparatória para o pouso[1].

Fim da Guerra e o Fim dos Clippers

Após a guerra, vários Clippers foram devolvidos às mãos da Pan-americana. No entanto, mesmo antes do fim das hostilidades, essa aeronave se tornou obsoleto. A vantagem do hidroavião era que não exigia longas pistas de pouso de concreto, mas durante a guerra muitas dessas pistas foram construídas para bombardeiros pesados. Além disso, novos aviões comerciais de longo alcance foram desenvolvidos, como o Lockheed Constellation e Douglas DC-4. 

Os novos aviões terrestres eram relativamente fáceis de voar e não exigiam os extensos programas de treinamento de pilotos que havia para as operações de hidroaviões.

O Boeing 314 da Pan-Am. O último Boeing 314 a ser aposentado, o California Clipper, foi retirado do serviço regular em 1946, após haver acumulado mais de um milhão de quilômetros de voo. Os Boeing 314 da britânica BOAC foram retirados da rota Baltimore-Bermuda em janeiro de 1948, substituídos por Lockheed Constellations voando de Nova York e Baltimore para as Bermudas. Sete Boeings 314 em serviço foram adquiridos pela companhia aérea New World Airways. Estes ficaram no Lindbergh Field de San Diego por um longo tempo antes de todos serem eventualmente vendidos para sucata em 1950.


[1] Sobre esse acidente ver – https://www.baaa-acro.com/crash/crash-boeing-314a-clipper-lisbon-24-killed

O MISTÉRIO NÃO RESOLVIDO DO DESAPARECIMENTO DO NAVIO USS CYCLOPS

Mais de um século depois, permanece sem solução o mistério do USS Cyclops, um desaparecimento que ocasionou uma das maiores perdas de vidas humanas na Marinha dos Estados Unidos. O que aconteceu com esse navio? Para onde ele foi?

Autora – Hannah Hirzel

Fonte – https://www.usni.org/magazines/naval-history-magazine/2021/october/uss-cyclops-deadliest-unsolved-mystery-navy

Quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha e seus aliados em abril de 1917, navios de apoio como o Ciclope ficaram sob o comando da Marinha. A mudança administrativa afetou fortemente a tripulação dessas embarcações de apoio. Em vez de serem comandados por civis, os oficiais agora eram membros da Força de Reserva Naval.

O USS Cyclops foi construído na Filadélfia, tinha 150 metros de comprimento e 20 metros de largura. O navio era um carvoeiro da classe Proteus e podia transportar 12.500 toneladas de carvão, a uma velocidade de 15 nós com seus dois motores. 

A missão final do Ciclope era transportar 9.960 toneladas de carvão de seu porto de origem em Norfolk, Virgínia, para o Rio de Janeiro, Brasil, e trazer de volta 11.000 toneladas de minério de manganês. 

A nave partiu em 9 de janeiro de 1918 e chegou ao Rio em 28 de janeiro, onde permaneceu por duas semanas descarregando e carregando cargas. Em 15 de fevereiro, 309 almas partiram para a Bahia, Brasil, a única parada programada antes do porto de Baltimore, Maryland. 

Dois dias depois, às 18h00 de 22 de fevereiro, o navio partiu, onde deveria chegar nos Estados Unidos em 13 de março. A última localização conhecida do Ciclope foi uma parada não planejada feita em Barbados em 3 de março.

Após a partida de Barbados, os passageiros e a tripulação nunca mais foram vistos. A causa ainda é um mistério. Mesmo depois de mais de 100 anos, o destino dessas pessoas permanece desconhecido.

Independentemente das evidências, as pessoas estão sempre dispostas a especular. Cinquenta e um anos após o incidente, um oficial, Conrad A. Nervig, que foi transferido do navio no Rio, contou sua experiência no Ciclope

O desaparecimento desse navio foi notícia em todo Brasil.

Nervig escreveu em 1969 um artigo para o US Naval Institute Proceedings sobre o navio problemático e sua tripulação igualmente preocupante. Ele descreveu o comandante George W. Worley como um “sujeito rude e excêntrico da velha escola, dado a carregar uma bengala, muito indiferente e um navegador excessivamente cauteloso. Antipático e taciturno, ele geralmente não era apreciado por seus oficiais e marinheiros”. 

Nervig relatou um incidente em que um dos motores foi ligado enquanto um marinheiro estava em um pequeno barco realizando um serviço fora do navio. A força da hélice atraiu o barquinho e jogou o marinheiro ao mar, e ele se afogou. Conrad A. Nervig atribuiu essa tragédia a um capitão que criou uma tripulação “completamente desmoralizada e desorganizada” por causa de seus “métodos irracionais de comando”1 .   

Ancorado no rio Hudson, próximo à cidade de Nova York, em 3 de outubro de 1911.
(Naval History and Heritage Command)

O maior mistério do desaparecimento do Ciclope é a causa. Mesmo um mau comandante e uma tripulação com baixo moral geralmente podem transitar em uma viagem padrão por águas pacíficas, mas algo fez esse navio sumir.

Nervig teorizou que o Ciclope foi dividido ao meio e afundou rapidamente. Ele acredita que o minério de manganês poderia ter sido armazenado apenas nos porões a meia nau, acentuando, portanto, a fraqueza inerente da embarcação. 

O armazenamento incorreto provavelmente ocorreu porque o único oficial a bordo com experiência para armazenar corretamente o minério de manganês era o oficial executivo, que havia sido colocado sob prisão e confinado em seu quarto devido a um “desentendimento trivial” com o capitão2.

Nervig explicou como o estresse no mar poderia quebrar o casco navio em dois, enchendo rapidamente os espaços com água enquanto o navio ficava vertical. Ele acreditava que isso aconteceu rápido demais para que os botes salva-vidas pudessem ser acionados. A teoria de Nervig é uma entre muitas a respeito dessa tragédia.

Outra camada especulativa aponta que o navio teria sido perdido no Triângulo das Bermudas. 

Richard Winer investigou o desaparecimento do Ciclope para seu documentário de 1973, The Devil’s Triangle. Ele sugeriu um motim fracassado e deu a entender que havia problemas no navio, apoiando as afirmações de Nervig. 

Os tripulantes do Cyclops aproveitaram o carnaval de 1918 no Rio de Janeiro, antes de começar a triste e famosa “Gripe Espanhola”.

Outras teorias vão desde a explosão do manganês, ao naufrágio, até um polvo gigante surgindo do mar e arrastando o navio para baixo3 .

Igualmente especulam que o USS Cyclops foi afundado por um submarino alemão, mas os registros do pós-guerra indicam que não havia submarinos na área na época4 .

Existe a teoria que acredita que o navio estava operando com um único motor e isso tornaria o navio mais suscetível a outros problemas de engenharia, que poderiam teoricamente levar ao afundamento. Também houve relatos de danos no casco e separação de tubos que não foram resolvidos prontamente pelo capitão5 . Algumas dessas teorias são mais prováveis ​​do que outras, mas a verdadeira causa do desaparecimento do USS Cyclops permanece desconhecida.

O mundo pode nunca descobrir a verdade. O navio estava fadado à tragédia por causa de uma liderança horrível, ou ela era apenas mais uma vítima misteriosa do Triângulo do Diabo? 

NOTAS

1. Conrad A. Nervig, “The Cyclops Mystery” Proceedings , julho de 1969.

2. Nervig, “The Cyclops Mystery”.

3. Howard L. Rosenberg, “Exorcizing the Devil’s Triangle”.

4. Nervig, “The Cyclops Mystery”,

5. CAPT Lawrence B. Brennan, USN (aposentado), “The Unanswered Loss of USS Cyclops- March 1918.”

ENTRE REZAS E BACAMARTES

O CEHM comunicou nessa segunda-feira 11 de outubro a publicação do já esperado livro de seu associado Valdir Nogueira, cujo título: ENTRE REZAS E BACAMARTES, possui prefácio do historiador e membro da Academia Pernambucana de Letras Frederico Pernambucano de Mello, e integra a Coleção Tempo Municipal do referido Centro de Estudos de História Municipal – CEHM/Agência Condepe/Fidem.

A obra traz um recorte sobre a atuação do Monsenhor Afonso Pequeno e a tradicional desavença entre as famílias Pereira e Carvalho sob a ótica da alternância de poder na lendária região do Pajeú do sertão pernambucano.  Numa terra em que imperava a lei do punhal e do bacamarte, essas duas famílias espargiram sangue em ódios feudais, numa luta que esbarrou num famigerado banditismo.

O polêmico Monsenhor Afonso Pequeno, pároco das freguesias de Vila Bela e Belmonte em princípios do século passado.

Sobre o livro de Valdir Nogueira comentou o professor Yony Sampaio, professor da Universidade Federal de Pernambuco e Consultor do Banco Mundial:

“Muitos livros tem tratado da lendária briga entre os Pereira e os Carvalho. De modo geral exploram os confrontos armados, as sucessivas emboscadas e ataques, culminando com o período de Sebastião Pereira e Luís Padre. Este fantástico relato de Valdir Nogueira, Entre Rezas e Bacamartes, no entanto, é o primeiro a analisar em detalhe as intrigas politicas, a alternância de poder local, que vem a se constituir no cenário onde a questão se desenvolve.

Geograficamente, amplia o centro da questão para os municípios de Belmonte e Vila Bela, de onde se irradia pelo Pajeú e pelo sul do Ceará, relacionando movimentos do Cariri a incidentes no Pajeú. Indo aos fundamentos da questão, antepõe o Monsenhor Afonso Pequeno ao coronel Antônio Andrelino Pereira da Silva, filho do Barão do Pajeú.

Na vila de Belmonte se estendeu o conflito entre as duas tradicionais famílias do Pajeú.

De um lado, um padre guerreiro, politico, mas defensor da religião, a exemplo de muitos, como o Monsenhor Arruda Câmara, na revolução de trinta. De outro, um coronel tentando manter a estatura e autoridade do pai, porém sem possuir as mesmas qualidades de sobriedade e equilíbrio. Os novos perfis que traça, revelam faces escondidas da questão. Para iluminar tantas questões, Valdir divulga correspondências inéditas, comunicações em jornais da época, e corrige interpretações equivocadas. O livro de Valdir já nasce um clássico, essencial para melhor entendimento da história e da formação social daquele sertão.

A antiga Vila Vila Bela, cenário da luta de Carvalho e Pereira.

O autor nasceu e foi criado em Belmonte e já nos brindou com um belo livro sobre São José do Belmonte. Conhece quase cada palmo de terra, discorre sobre as fazendas, locais de emboscada e convive com descendentes das famílias envolvidas, hoje bastante entrelaçadas, como sempre ocorre na sociedade sertaneja. Assim, possui a autoridade necessária para tal empreitada. Simples, de fala mansa, em outras épocas poderia ter tomado o bacamarte e entrado catinga adentro. Porém tem sido mais afeito aos estudos e ao conhecimento e preservação do passado da região. Excelente pesquisador, minucioso, reverencia nosso passado e tem sido o esteio da hoje famosa cavalhada do Belmonte que homenageia e relembra os incidentes da Pedra Bonita, então Serra Talhada e hoje Belmonte, que incendiou a imaginação de Ariano Suassuna no Romance da Pedra do Reino.

Ao leitor, tenho certeza que embarca em aventura prazerosa e educativa. Do autor, espero que continue a perscrutar nosso passado e revelar aspectos pouco conhecidos da nossa formação histórica e social”.

(Publicação do Centro de Estudos de História Municipal – CEHM/Agência Condepe/Fidem).

UM TESOURO DE AVIÕES HISTÓRICOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ESCONDIDOS EM UMA FAZENDA

Por mais de 60 anos, uma verdadeira “Caverna de Aladim” de aviões históricos da época da Segunda Guerra Mundial, incluindo um dos 30 aviões de combate Mosquito restantes no mundo, permaneceu praticamente fora da vista de todos, em uma propriedade rural próxima a cidade neozelandesa de Nelson.

Mas agora esses raros aviões estão sendo restaurados no Omaka Aviation Heritage Centre (OAHC) para serem exibidos, ou voar novamente. Este é um museu localizado próximo ao campo de pouso do Aeroclube de Omaka, a cinco quilômetros do centro da cidade de Blenheim, região de Marlborough, na ilha sul da Nova Zelândia. Um dos principais colaboradores dessa instituição é o diretor de cinema neozelandês Sir Peter Jackson, ganhador do prêmio Oscar em 2004, que ficou mundialmente conhecido por dirigir a trilogia épica O Senhor dos Anéis.

Mas Quem Guardou Esses Aviões?

Esses aviões pertenceram ao fazendeiro John R. Smith, que viveu na pequena localidade de Mapua, a oeste da cidade de Nelson, na costa da Baía de Tasmânia, onde iniciou sua coleção particular de aeronaves ainda jovem, na década de 1950.

Rob Smith, sobrinho do recluso colecionador de aeronaves histórico John Smith, abre o galpão onde seu tio acumulou um tesouro de aviões, incluindo um raro avião de combate Mosquito da Segunda Guerra Mundial – Fonte – https://www.stuff.co.nz/national/121990112/treasure-trove-of-hidden-historic-planes-including-rare-wwii-mosquito-to-see-the-light

John dedicou uma vida inteira a caçar e salvar antigas aeronaves na Nova Zelândia. Além do Mosquito a sua coleção incluiu um P-51D Mustang, um biplano Tiger Moth, dois caças Curtiss P40 Kittyhawk, fuselagens de jatos de combate Vampire, além de uma grande quantidade de peças.

Sua própria família não tem muita certeza sobre o que motivou essa sua paixão. Mas segundo George Smith, com 89 anos e irmão de John, antes de emigrar para a Nova Zelândia a sua família viveu perto de uma base aérea chamada Finningley, que pertencia a RAF – Royal Air Force (Real Força Aérea). Essa base ficava nas imediações da cidade de Doncaster, no sul da região de Yorkshire, Grã-Bretanha, e os Smiths viveram naquele lugar em pleno período da Segunda Guerra Mundial.

George Smith, 88, com o caça P-51D Mustang da coleção de seu irmão que está sendo vendido– Fonte – https://www.stuff.co.nz/national/121990112/treasure-trove-of-hidden-historic-planes-including-rare-wwii-mosquito-to-see-the-light

É provável que essa situação, associado ao simples desejo de resgatar pedaços da história da aviação do ferro-velho, tenham motivado John a adquirir essas velhas aeronaves junto a RNZAF – Royal New Zealand Air Force (Força Aera Real da Nova Zelândia).  

Ao longo das décadas seguintes essas aeronaves ficaram protegidas em um grande galpão de ferro corrugado. Não demorou para que colecionadores, entusiastas e historiadores de aviação da Nova Zelândia e do exterior realizassem várias peregrinações a Mapua para ver os aviões cada vez mais raros. Mas John Smith permaneceu um personagem recluso e arredio, deixando potenciais compradores desapontados.

George Smith, 88, compartilha memórias de seu falecido irmão John e sua coleção da Segunda Guerra Mundial e outras aeronaves históricas – Fonte – https://www.stuff.co.nz/national/121990112/treasure-trove-of-hidden-historic-planes-including-rare-wwii-mosquito-to-see-the-light

Quando ele morreu em agosto de 2020, aos 84 anos, ele deixou seu tesouro no grande galpão e um enorme trabalho para sua família resolver. Os Smiths, hoje liderados por George e seu filho Rob, tinham que tomar uma decisão.

Entrar no galpão dessa propriedade rural era o mesmo que entrar em uma espécie de cemitério de aviões totalmente indisciplinado. Em frente a uma modesta casa de madeira encontravam-se as carcaças de metal do motor – chamadas nacelas – do caça-bombardeiro Mosquito. Perto dali asas do jato de combate Vampire repousavam na grama alta, em outro canto peças dos P-40 e do Mustang.

O galpão está cheio de peças de uma grande variedade de aeronaves antigas – Fonte – https://www.stuff.co.nz/national/121990112/treasure-trove-of-hidden-historic-planes-including-rare-wwii-mosquito-to-see-the-light

Rob Smith disse que quando eles começaram a lidar com o enorme trabalho de seleção, era difícil até mesmo entrar no galpão por causa do grande número de peças, desde fuselagens e asas, até caixas cheias de componentes de motores.

“Estimamos que levasse cerca de três anos para arrumar e limpar tudo”.

O Mosquito

O item mais importante que havia no galpão era um avião de combate bimotor, multifuncional, modelo Mosquito, que foi utilizado pela RAF e outras forças aliadas na Segunda Guerra Mundial. 

Um dos poucos aviões do tipo Mosquito em condições de voo – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Wiki

Esses versáteis caças-bombardeiros eram incomuns, porque suas estruturas eram feitas principalmente de madeira, o que os tornavam relativamente rápidos para construir e principalmente voar. Em 1942 os Mosquitos foram considerados as aeronaves operacionais mais rápidas no conflito, tornando-se uma verdadeira lenda da Segunda Guerra e 7.781 modelos foram construídos.

Especificamente sobre esse avião sabemos que ele deixou a fábrica em 19 de novembro de 1945, sendo um modelo Mosquito FB MK. VI FB e não lutou na Segunda Guerra. Na RNZAF serviu até 22 de abril 1952, como parte do No. 75 Squadron (Esquadrão Nº 75), na Base Aérea Ohakea, localizada na ilha do norte da Nova Zelândia. Foi então armazenado na Base Aérea de Woodbourne e em 30 de junho de 1955 o fazendeiro John Smith comprou o bombardeiro excedente em um leilão. O interessante é que esse Mosquito voou pela RNZAF apenas 80 horas e 35 minutos.

John Smith coletou aviões e peças de toda a Nova Zelândia, muitas vezes rebocando-os de volta para Mapua, perto de Nelson – Fonte – https://www.stuff.co.nz/national/121990112/treasure-trove-of-hidden-historic-planes-including-rare-wwii-mosquito-to-see-the-light

Depois de desmontar as asas do Mosquito, Smith o rebocou para Mapua na parte de trás de um trailer. A Força Aérea havia removido as armas e itens da cabine, mas ele conseguiu encontrar peças de reposição autênticas, incluindo uma mira de bomba e um rádio.

Durante os anos vindouros, segundo George Smith, de vez em quando seu irmão colocava os enormes motores Rolls Royce Merlin para funcionar, gerando um som ensurdecedor que podia ser ouvido na comunidade de Mapua, a vários quilômetros de distância.

O Mosquito de Woodbourne na década de 1950, onde John Smith o comprou, desmontou suas asas e o levou de volta para Nelson – Fonte – https://www.stuff.co.nz/national/121990112/treasure-trove-of-hidden-historic-planes-including-rare-wwii-mosquito-to-see-the-light

O trabalho de preparação do Mosquito para seu novo destino em Omaka começou com a delicada e especializada tarefa de desmontá-lo. Que no final das contas será uma espécie de volta ao lar, pois o local de armazenamento dessa aeronave fica a poucos quilômetros de Blenheim e não muito distante de Omaka.

No museu o Mosquito será exibido ao lado de outros aviões que pertenceram a John Smith. Um deles é um modelo Tiger Moth e um dos Kittyhawks, este último apelidado de Gloria Lyons.

Homenagens

Curtiss Kittyhawk, batizado como “Gloria Lyons”, diante do sol, pela primeira vez em muitos anos. Ainda resplandecente em sua camuflagem da Segunda Guerra Mundial, esse avião foi enviado para o Omaka Aviation Heritage Center para fins de conservação. (imagem de Graham Orphan via Omaka Aviation Heritage Centre) – Fonte – https://warbirdsnews.com/aviation-museum-news/omaka-aviation-heritage-center-receives-rare-warbirds-for-display.html

Graham Orphan, membro do conselho do OAHC, prestou homenagem à visão de John Smith de preservar esses aviões históricos e aos esforços de sua família para honrar seu legado. Ele disse que visitar a coleção de John Smith era um privilégio e um teste.

“John era apenas cauteloso. Mas se você falasse por muito tempo e ele percebesse que você era um entusiasta genuíno, ele o receberia de braços abertos. Todos nós queríamos que ele vivesse para sempre, porque enquanto John estivesse vivo, os tesouros da Caverna de Aladim da Segunda Guerra Mundial permaneceriam assim.”

No entanto, Orphan ficou maravilhado com o fato do público futuramente ter a chance de ver esse bimotor Mosquito restaurado em Omaka, além de outros aviões que pertenceram a Smith.

Mas um avião que pertenceu a John já está em exibição nessa instituição há algum tempo. Quando ainda era vivo, John presenteou um piloto de helicópteros da região com um bimotor de fabricação americana Lockheed Hudson. Por razões que desconheço esse piloto não reformou esse avião e acabou entregando-o para o OAHC. Por sua vez o museu criou com essa aeronave um belo cenário para seu acervo, representando um avião perdido no meio da selva tropical.

Já o destino da aeronave P-51D Mustang, que ficava no galpão sob a asa do Mosquito, ainda não foi decidido. Ao contrário do bimotor que vai para o museu, que precisaria ser totalmente reconstruído para voar novamente, esse Mustang poderia se tornar aeronavegável, embora a um alto custo, pois as asas foram cortadas e teriam que ser reconstruídas.

O Mosquito dentro do galpão em Mapua, Nova Zelândia, com uma miríade de outros materiais relacionadas à aviação. Logo atrás da fuselagem do Mosquito é possível ver o P-51D Mustang. essa aeronave é um candidato a restauração em condições de aeronavegabilidade e foi colocado à venda – esperançosamente para alguém na Nova Zelândia. (imagem de Graham Orphan via Omaka Aviation Heritage Centre) – Fonte – https://warbirdsnews.com/aviation-museum-news/omaka-aviation-heritage-center-receives-rare-warbirds-for-display.html

Mesmo desmontado, esse avião foi avaliado em cerca de um milhão de dólares. Rob Smith disse que houve interesse por esse avião vindo de potenciais compradores da Nova Zelândia e de outros lugares. Mas a família gostaria que ele permanecesse no seu país, preferencialmente na ilha sul.

Brian Weir, um entusiasta da aviação de Nelson que conhecia John Smith, disse que estava tentando levantar dinheiro suficiente para manter esse avião na região. Essa aeronave foi um dos trinta Mustangs recebidos pela RNZAF em 1945, com a maioria sendo retirada de serviço em 1955 e vendida como sucata em 1958. Weir disse que manter o Mustang na Nova Zelândia seria uma homenagem ao legado de John Smith.

Página principal na internet do Omaka Aviation Heritage Centre (OAHC). Vale a pena a visita – Fonte – https://www.omaka.org.nz/

Realmente o fato de John Smith ser uma criança que vivia na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial e sua família morar próximo a uma base aérea, poderia facilmente explicar essa sua louca paixão por essas aeronaves. Mas acredito que muito disso se deve também a memória extremante ativa da intensa participação da Nova Zelândia e seu povo na Segunda Guerra Mundial.  

A Nova Zelândia entrou nesse conflito no dia 3 de setembro de 1939, no mesmo dia que a Grã-Bretanha declarou guerra a Alemanha Nazista. Para a maioria do povo dessa nação, a associação com a Grã-Bretanha em uma época de crise era natural e necessária. Como um firme oponente do apaziguamento, a Nova Zelândia há muito defendia uma posição forte contra as ditaduras fascistas.

Um Mosquito sobrevivente em manutenção – Fonte http://www.aeronews.com

Apesar de possuir em 1940 uma população com apenas 1.600.000 habitantes, cerca de 194.000 homens – 67% daqueles com idades entre 18 e 45 anos – e 10.000 mulheres serviram nas forças armadas. Esse país dedicou uma proporção muito alta de seus recursos ao esforço de guerra: cerca de 30% da renda nacional geral foi utilizada nesse objetivo, com a cifra aumentando para 50% durante os anos críticos de 1942-44. O saldo negativo foi que 11.928 neozelandeses foram mortos.

As duas grandes ilhas que compõem a Nova Zelândia não foram atingidas diretamente durante a guerra, mas os neozelandeses estiveram envolvidos em combates em terra, mar e ar, sendo estes travados globalmente. Desde o Egito a Itália, passando pela Grécia e chegando ao Japão e ao Oceano Pacífico. Consta que a natureza da Segunda Guerra Mundial não só deu muito ímpeto ao desenvolvimento do senso de identidade dos neozelandeses, mas também aumentou muito a confiança dos membros dessa nação em relação ao seu papel no mundo.

Fontes

https://www.stuff.co.nz/national/121990112/treasure-trove-of-hidden-historic-planes-including-rare-wwii-mosquito-to-see-the-light

https://www.omaka.org.nz/index.html

http://www.adf-serials.com.au/nz-serials/nzmosquito.htm

A FOTO DO GOVERNO POTIGUAR EM 1937  

Rostand Medeiros – IHGRN

O Governador, ou Interventor, era Rafael Fernandes Gurjão, cuja foto aparece bastante destacada.

Nascido no dia 24 de outubro de 1891, em Pau dos Ferros, extremo oeste do Rio Grande do Norte. Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, mas completou o curso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1912. Entre outros cargos que ocupou na vida pública ele foi prefeito de Mossoró e deputado estadual.

Rafael Fernandes governou o Rio Grande do Norte por oito anos, entre 1935 e 1943. Sobreviveu no poder quando da criação do regime totalitário do Estado Novo. Foi o governador potiguar que esteve à frente do executivo potiguar por mais tempo e de forma ininterrupta.

Retornando a foto que abre esse artigo, vemos que o primeiro a esquerda da foto do governador é o Secretário de Estado Aldo Fernandes Raposo de Melo, a segunda maior autoridade do governo potiguar na época.

Abaixo de Aldo Fernandes temos o então Cônego Amâncio Ramalho Cavalcanti, Diretor do Departamento de Educação. Abaixo dele está a foto do Dr. Boanerges Leitão de Almeida, Diretor do Departamento de Fazenda.

Abaixo da foto do governador temos três colunas e a primeira figura comentada, com roupa de formatura, é o então Oficial de Gabinete Jocelin Villar de Mello. A pessoa com óculos redondos era o Prefeito de Natal, Gentil Ferreira de Souza. A direita da foto de Gentil está a imagem do advogado e jornalista Paulo Pinheiro de Viveiros, então Chefe de Gabinete do Governo.

A coluna final da direita, de cima para baixo, temos primeiramente o retrato do juiz Oscar Homem de Siqueira, com o cargo de Chefe de Polícia, o que seria hoje Secretário de Segurança. Abaixo dele, de terno branco, Armando Nogueira China, então Diretor do Departamento de Saúde Pública. Finalmente temos o Diretor da Imprensa Oficial, ou seja, o diretor do jornal A República, o Professor Edgar Ferreira Barbosa.

Rafael Fernandes foi casado com Leonila Fernandes Gurjão e faleceu no Rio de Janeiro em 11 de junho de 1952.

Rafael Fernandes

O ATAQUE DE LAMPIÃO E SEU BANDO DE CANGACEIROS A FAZENDA MORADA NOVA, EM PAU DOS FERROS, RIO GRANDE DO NORTE

Rostand Medeiros – Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

No ano de 2010 soube do desenvolvimento do “Projeto Território Sertão do Apodi – Nas Pegadas de Lampião”, pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Micro e Pequenas Empresas do Rio Grande do Norte – SEBRAE/RN, do qual a gestora era a competente consultora Kátia Lopes. Fui ao seu encontro soube que Kátia planejava criar um grupo para percorrer o mesmo caminho palmilhado por Lampião e seus cangaceiros, como parte de um amplo reconhecimento histórico. Ali estava uma oportunidade imperdível de conhecer esse caminho e o que restava de sua memória.

Foi realmente um momento muito especial e um trabalho maravilhoso. Depois de 2010 eu tive a oportunidade de percorrer esse caminho em mais outras quatro ocasiões. As duas primeiras oportunidades, em 2012 e 2014, foram com pessoas que me contrataram para conhecer trechos no Rio Grande do Norte, com foco nas áreas da Serra de Martins e de Mossoró. Já em 2015 estive percorrendo esse antigo caminho dos cangaceiros durante dezessete dias.

Desta vez partindo da cidade cearense de Aurora, adentrando depois em território paraibano, percorrendo na sequência todo trecho potiguar e encerrando na cidade cearense de Limoeiro do Norte. O objetivo da jornada de 2015 foi à realização da película Chapéu Estrelado, um documentário de longa metragem da Locomotiva Produções Cinematográficas, do Rio de Janeiro, sendo dirigido pelo mineiro Silvio Coutinho, com roteiro de Iaperi Araújo e produção de Valério Andrade e o autor desse texto, esses últimos potiguares. Apesar de filmado com esmero em sistema 4K, com interessantes depoimentos, esse documentário nunca esteve no circuito de festivais e, afora algumas exibições em rede nacional através da TV Brasil, ele foi pouco visto pelo grande público. A razão principal foi o falecimento precoce do diretor Sílvio Coutinho, ocorrido no ano de 2018, em decorrência de um ataque cardíaco fulminante, ocorrido no Rio de Janeiro.

Trajeto dos cangaceiros em 1927, em um mapa do Exército Brasileiro, em escada de 1:100.00, com as propriedades invadidas marcadas. Existe um erro no mapa, pois um dos locais atacados foi denominado como “Carícia”, quando o certo é “Caricé”.

A última oportunidade se deu em 2017, quando uma grande parte do trajeto com o artista plástico e fotógrafo Sérgio Azol. Potiguar de nascimento, mas radicado há muitos anos na capital paulista, Azol me chamou para percorremos esse caminho visando o desenvolvimento de uma exposição fotográfica a ser realizada em São Paulo. Ele clicou as paisagens, as vivendas e as pessoas de forma magistral. Aquela era a segunda oportunidade que percorria o sertão nordestino com Sérgio Azol, tendo tido oportunidade em 2016 de visitar importantes locais ligados a história do Cangaço na Paraíba, Pernambuco e Alagoas.

Em 2020 essa jornada foi transformada em livro – 1927 – O Caminho de Lampião no Rio Grande do Norte. – Ver –  https://tokdehistoria.com.br/2020/08/26/autor-natalense-refaz-caminho-de-lampiao-pelo-rio-grande-do-norte/

Agora apresento um pouco do que vi!

Os Caminhos a Seguir

Essa memória se inicia em um sábado, dia 11 de junho de 1927, o segundo dia de Lampião e seus cangaceiros em solo potiguar.

Antiga casa do Sítio Cascavel, zona rural de Pilões – Foto – Rostand Medeiros

Em meio a um grande lajedo ao norte da atual cidade potiguar de Marcelino Vieira, os cangaceiros vão acordando e se preparando para seguir a sua jornada em direção a Mossoró. Após acordarem parte em direção aos Sítios Cascavel e São Bento, cujas terras em dias atuais são parte do município potiguar de Pilões. Depois atacam os Sítios Poço Verde, Poço de Pedra e a Fazenda Caricé, do prestigiado pecuarista Marcelino Vieira da Costa. Sobre o assalto ao Caricé vejam esse texto que escrevi, onde trago alguns detalhes do episódio – https://tokdehistoria.com.br/2019/02/10/marcos-de-religiosidade-no-caminho-de-lampiao-no-rio-grande-do-norte/  

Punhal de um cangaceiro deixado no Sítio Poço de Pedra, zona rural de Pilões-RN – Foto – Rostand Medeiros

A partir da velha Fazenda Caricé, mesmo a distância, já é possível visualizar o grande maciço rochoso que formam as Serras de Martins e de Portalegre, onde se encontram alguns dos pontos de maior altitude do Rio Grande do Norte, com locais que ultrapassam os 800 metros. Essas duas grandes elevações se interpunham diante daqueles viajantes que seguiam em direção a Mossoró vindos do extremo oeste da Paraíba. Para os cangaceiros continuarem em busca do seu alvo principal, vários caminhos se colocavam a disposição. O matreiro Lampião, certamente secundado por Massilon, o mais experiente de todos aqueles bandoleiros em relação aos caminhos potiguares, perceberam que teriam de optar por um desses caminhos.

O primeiro trajeto poderia ser: subir a Serra de Martins, passar pela cidade homônima e descer do outro lado da elevação. Bastava seguir pelo antigo caminho que ligava essa cidade até a Vila de Alexandria. Segundo as pessoas da região, partes do antigo trecho dessa estrada ainda existem, fazendo parte da atual rodovia estadual RN-075.

Aspecto dos caminhos dessa região – Foto – Rostand Medeiros.

O segundo caminho, caso o grupo desejasse seguir em direção a Mossoró sem passar pela cidade de Martins, poderia ser feito do seguinte modo: cavalgar até a extremidade oeste do grande maciço rochoso. Nesse caso, os cangaceiros fatalmente chegariam próximo de Pau dos Ferros. Então, depois de passar ao lado da serra, eles percorreriam a antiga estrada que seguia pela cidade de Apodi e, depois de vários quilômetros, chegariam a Mossoró.

Teoricamente, esses dois caminhos não trariam maiores problemas para um viajante comum. Entretanto, aquele estranho grupo de homens armados poderia ser classificado de tudo, menos de “viajantes comuns”.

Desde a saída do bando no Ceará, os celerados deixaram de lado a discrição, passando para a prática aberta de toda sorte de delitos, chamando a atenção das autoridades potiguares. Inclusive, essas autoridades já tinham entrado em contato e combatido o grupo na Caiçara. Mesmo com a derrota da polícia estadual naquele entrevero, Lampião sabia que a qualquer momento as forças do governo potiguar poderiam dar o devido revide. Se decidissem subir a serra, poderiam facilmente esbarrar em um piquete de homens armados, já previamente alertados. Como o bando tinha poucos recursos humanos e bélicos para realizar combates contínuos, esse possível confronto poderia infringir sérios problemas aos cangaceiros na tentativa de galgar a grande serra.

Rostand Medeiros diante da capela da Fazenda Caricé, zona rural de Marcelino Vieira – RN em 2015 – Foto – Silvio Coutinho.

Se o bando seguisse próximo da cidade de Pau dos Ferros, a maior e a mais policiada da região, para depois trotarem em direção a Apodi (uma cidade invadida por Massilon apenas um mês antes), fatalmente homens armados poderiam estar aguardando o grupo em um desses locais, ou nos dois. Aí os resultados desses novos tiroteios poderiam ser extremamente negativos. Deve-se levar em consideração que, além da polícia potiguar, Lampião se preocupava igualmente com a polícia de outros estados no seu encalço, principalmente a paraibana.

Lampião na Fazenda Morada Nova

Havia outra alternativa: era possível contornar o grande maciço através da extremidade mais a leste dessas elevações, passando por um caminho que os levariam para a Vila de Boa Esperança, atual município de Antônio Martins.

O grupo de bandoleiros então se afastaria de áreas onde presumivelmente haveria mais atividade policial, poderiam então alcançar zonas teoricamente mais desprotegidas e possivelmente ainda não alertadas da presença deles na região. Esse caminho se mostrava mais promissor!

Casa da Fazenda Morada Nova, zona rural de Pau dos Ferros – RN – Foto – Rostand Medeiros.

Contudo, aparentemente, essa decisão não deve ter ocorrido antes ou durante a passagem pela Fazenda Caricé, pois, logo depois da saída da propriedade do fazendeiro Marcelino Vieira, os cangaceiros seguiram primeiramente na direção sudoeste, apontando para a cidade de Pau dos Ferros. Após rápida cavalgada, surgiu o próximo alvo daquela jornada insana – A Fazenda Morada Nova.

Quando visitei essa propriedade pela primeira vez em 2010, ali encontrei a senhora Firmina Aquino de Oliveira, então com 95 anos de idade, e sua nora Maria Ivaneide de Aquino. Ivaneide era neta de Antônio Januário de Aquino, antigo dono do lugar, que teve a difícil missão de receber Lampião em 11 de junho de 1927.

Lampião

Elas me informaram que não tinham conhecimento se o parente já falecido possuía laços de amizade, ou de inimizade, com o cangaceiro Massilon. Igualmente não souberam comentar se a chegada do bando se deu a uma indicação desse celerado, ou se a casa dos seus antepassados foi atacada simplesmente por ter sido um alvo que surgiu à frente do grupo.

Entretanto, essas senhoras relataram que antes do bando chegar à casa de Aquino, que não mais existia em 2010, eles arrombaram uma residência onde vivia um trabalhador da propriedade, que juntamente com sua família fugiu para o mato. Logo os bandidos pararam diante da casa grande da Fazenda Morada Nova.

Além do proprietário, na casa estavam sua mulher Raimunda Nonato de Aquino, seu filho Cosme e suas três belas e jovens filhas, Raimunda, Arcanja e Maria. Segundo Sérgio Augusto de Souza Dantas (Lampião no Rio Grande do Norte – A História da Grande Jornada, 1ª edição, págs. 119 e 120), foi exigido alimentos e dinheiro ao dono da Fazenda. Antônio Aquino era um produtor próspero, sendo apontado inclusive como dono de um engenho de açúcar e aguardente.

Diante da beleza das moças, alguns cangaceiros logo se mostraram interessados nas meninas. Sérgio Dantas relatou que Aquino pediu proteção a Lampião, que prontamente refreou os ânimos da cabroeira e o próprio chefe chegou a pedir desculpas ao pai das jovens pela falta cometida pelos seus homens. Após varejarem toda a casa e retirarem o que os interessava, a malta de bandidos seguiu viagem.

A Foto

As senhoras Firmina e Maria Ivaneide comentaram que a passagem do bando causou extrema comoção entre os membros da família Aquino. Todavia, Antônio Januário se sentiu até mesmo com “sorte”, pois, apesar de ter havido perda material com o saque praticado, o fato das suas filhas não haverem sofrido qualquer tipo de violência, principalmente sexual, foi considerado um resultado extremamente fortuito diante da extrema gravidade do problema.

No dia 11 de novembro de 1928, um domingo, quase um ano e meio depois da passagem dos cangaceiros, Antônio Januário reuniu sua família em um estúdio fotográfico de Pau dos Ferros para a realização de um interessante instantâneo. Essa fotografia, que trago com exclusividade e conseguida a partir do material original, possui no verso a seguinte frase “Uma pequena lembrança que ficará para sempre”.

Bando de Lampião, após o ataque a cidade de Mossoró em 1927.

Nela é possível ver Antônio e sua esposa Raimunda sentados em um pequeno sofá de madeira e vime, em uma posse de tranquilo comando de suas vidas e de sua prole familiar, que se encontravam todos presentes. De pé, logo atrás do móvel é possível ver Cosme, tendo a sua direita suas irmãs Maria e Arcanja e ao seu lado esquerdo Raimunda. Essa última e Arcanja trazem dois objetos que escaparam das mãos dos cangaceiros – são dois belos crucifixos com corrente e pedras.

Depois de observar milhares de fotos antigas, ao longo de vários anos de pesquisas, posso comentar que, a exceção de Dona Firmina, todos os outros participantes do instantâneo se vestem com roupas modernas para os padrões sertanejos do interior potiguar da década de 1920. Inclusive suas filhas, onde é possível ver Maria e Arcanja utilizando saias acima do joelho, apesar de estarem com meias. Antônio e Cosme igualmente seguem um padrão de vestimenta masculina bem moderna para a época. Ao olhar detidamente essa foto, vejo o registro de uma família que aparentemente superou o susto causado pelo bando de Lampião.

Violeiros Cantam a História do Assalto

A senhora Ivaneide me comentou em 2010 que nessa propriedade era comum a apresentação de cantadores de viola afamados da região e até de outros estados. Mesmo com o crescimento das bandas de forró eletrônicas, da televisão e outros meios de entretenimento, na época essas cantorias de viola possuíam público cativo na comunidade.

Casa da Fazenda Morada Nova em 2010. Reparem os bancos feitos de troncos de carnaúba, utilizados para a comunidade assistir duelo de cantadores de viola. Ao fundo o maçiço da Serra de Martins – Foto – Rostand Medeiros.

Ela narrou que era praxe as pessoas do lugar transmitirem para os violeiros visitantes os acontecimentos testemunhados pela família Aquino em 1927 e o que eles sabiam do ataque do grupo de cangaceiros a Mossoró. Com isso, solicitava-se que esses artistas transformassem as histórias ouvidas em uma cantoria tipicamente nordestina.

Já as estradas existentes entre as propriedades Caricé e a Fazenda Morada Nova foram sem nenhuma dúvida o pior trecho percorrido para a realização deste trabalho. As maiores dificuldades se encontravam na já rotineira falta de sinalização, mas principalmente no péssimo estado de conservação desses caminhos.

A Fazenda Morada Nova está localizada em um ponto extremamente afastado de áreas urbanas. A cidade de Pau dos Ferros fica a cerca de 24 quilômetros de distância, já a zona urbana de Pilões se encontra a 16 quilômetros e a cidade de Antônio Martins a 19. Entretanto, o melhor acesso utilizado é a partir de Antônio Martins, onde o motorista percorre oito quilômetros de asfalto da rodovia federal BR-226 e depois segue por mais 11 quilômetros de estradas vicinais. Contudo, nesse caso, existe a imprescindível necessidade de contar com a ajuda de uma pessoa da região que conheça o trajeto. Nesse caso eu contei com o apoio do amigo Chagas Cristóvão, da cidade de Antônio Martins.

Junto a Chagas Cristóvão, da cidade de Antônio Martins, na Fazenda Morada Nova.

Atualmente, Pau dos Ferros é a principal cidade da Região do Alto Oeste Potiguar, com uma população acima de 30.000 habitantes, estando a 389 quilômetros de distância de Natal, ocupando uma área de aproximadamente 260 km² e possuindo uma história bem antiga.

Acredita-se que a toponímia Pau dos Ferros foi criada a partir de uma determinada árvore. Essa árvore certamente devia ser um excelente local para repouso e com ótima sombra, onde vaqueiros viajantes, utilizando ferro em brasa, deixavam marcado no seu tronco as marcas do gado sob sua responsabilidade. Em uma época onde as fazendas não tinham arames farpados e o gado era criado solto, essa prática serviu para esses trabalhadores conhecerem as marcas de outras propriedades. Isso tornava mais fácil a identificação dos animais perdidos nos pastos e a realização de troca das reses encontradas. Não é difícil imaginar como essa árvore ficou bem conhecida na região. Logo ao seu redor se fixaram pessoas e isso deu início a uma pequena comunidade. Já sobre a questão da posse da terra, consta que no ano de 1733, por ocasião da morte do Coronel Antônio da Rocha Pita, foi doada a sesmaria de Pau dos Ferros a seus filhos e herdeiros. Um deles, Francisco Marçal, foi a pessoa que mobilizou os que ali viviam para erguer uma capela em 1738. Somente através da Resolução Provincial nº 344, de 4 de setembro de 1856, Pau dos Ferros tornou-se um município, sendo desmembrada da cidade serrana de Portalegre.

Foto – Rostand Medeiros.

Na trajetória do bando em direção a Mossoró, ao se aproximar dos contrafortes da Serra de Martins, o caminho percorrido por Lampião passou onde atualmente estão localizadas as áreas territoriais das cidades de Serrinha dos Pintos, Antônio Martins, Frutuoso Gomes, Lucrécia e Umarizal.

A GUERRA DA LAGOSTA – O QUE FOI, COMO ACONTECEU, A ATUAÇÃO E OS PROBLEMAS DA MARINHA DO BRASIL

Essa Esquecida Crise Entre o Brasil e a França, Que se Prolongou de 1961 a 1963 e Cujo Palco Foi Próximo ao Litoral Nordestino, É Mais um Exemplo, Dentre Vários Existentes na História Brasileira, de Como o Nosso País é Dependente de Suas Forças Armadas Para Garantir Sua Soberania e Defender os Seus Interesses. Isto Era Uma Verdade Naquela Época. No Mundo Atual é Mais do Que a Garantia da Sobrevivência.

Fontes – Artigo publicado originalmente na revista impressa Forças de Defesa número oito e dos sítios https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/ https://www.fotosdefatos.com/2019/12/a-guerra-da-lagosta.html

O navio de guerra da Marinha Francesa Tartu é sobrevoado por um obsoleto RB-17G da FAB – Fonte – Wikipedia

O céu, meio encoberto, tornava aquela noite ainda mais escura. Com a brisa que soprava sobre a superestrutura, graças ao vento relativo, a temperatura era agradável para os atentos vigias noturnos. Contrastando com a plácida noite, o “clima” esquentava no interior do Centro de Informações de Combate (CIC) do contratorpedeiro Paraná da Marinha do Brasil (MB), com muita tensão. Focados nas telas repetidoras dos radares, os operadores acompanhavam cada irradiação das antenas com o propósito de identificar um alvo em específico: escorteur d’escadre anti-aerien (escolta de esquadra antiaéreo) Tartu (D636), da Marine Nationale, a Marinha Francesa, também conhecida como “La Royale”.

O indesejado navio rumava para a costa do Nordeste do Brasil para defender pescadores franceses que atuavam ilegalmente na plataforma continental brasileira. Ei vinham por ordem direta do presidente francês da época, o mítico general Charles de Gaulle, o herói máximo da França na Segunda Guerra.

O mítico general Charles de Gaulle, o herói máximo da França na Segunda Guerra – Fonte – BN..

Sozinho, o Tartu não era uma grande ameaça, mas bastava uma atitude precipitada que toda uma frota de navios de combate franceses, que estava na Costa Oeste da África com o poderoso porta-aviões Clemenceau, que, atingiria o litoral do Nordeste brasileiro em aproximadamente três dias.

Às quatro horas da madrugada o pessoal do “quarto d’alva” assumiu o serviço e aqueles que estavam em seus postos, desde a meia noite, foram descansar. Ou pelo menos tentaram. Todos a bordo do Paraná tinham ciência de suas limitações, tanto materiais como de adestramento. Mas o que mais tirava o sono dos homens era a quantidade de munição a bordo, suficiente para apenas meia hora de combate. Mesmo com todas essas dificuldades, eles procurariam defender um recurso natural de propriedade nacional – a lagosta da plataforma continental.

Era o prenúncio do que ficaria conhecido como a Guerra da Lagosta. Naquele momento a diplomacia falhou e a situação teve que ser decidida por uma exibição de força naval.

Surge o interesse pela lagosta

Pescadores de Lagosta do Rio Grande do Norte – Fonte – BN.

Foi no início da década de 1960 que surgiu um maior interesse de armadores e pescadores do porto pesqueiro de Camaret, na costa francesa da Bretanha, pela lagosta existente na costa do Nordeste brasileiro. Uma delegação foi enviada a Recife para negociar a vinda de barcos de pesca com o intuito de realizar pesquisas sobre viveiros de lagosta. A autorização de pesquisa foi emitida em março 1961, válida por 180 dias. Esta licença contemplava apenas três embarcações, conforme solicitação francesa.

No entanto, autoridades brasileiras já estavam preocupadas quanto à real intenção daqueles pescadores. Foi decidido que representantes da Marinha do Brasil embarcariam nos pesqueiros para atuar como fiscais. Após alguns embarques, os militares constataram que os navios estavam realmente capturando lagosta em larga escala e realizando pesca predatória com arrasto. Além disso, a licença de pesquisa emitida limitava-se a três barcos e foram enviados quatro. A partir do relatório dos militares embarcados, decidiu-se pelo cancelamento da licença e o último pesqueiro partiu de volta à França no final de abril de 1961.

Em novembro, foi solicitada uma nova licença para pesquisas e experiências no litoral nordestino. Desta vez foi argumentado que esse trabalho seria realizado na plataforma continental, fora das águas territoriais brasileiras. Assim, uma nova leva de pesqueiros franceses chegou ao litoral nordestino no final de 1961.

O “inimigo” – Pescadores franceses da Bretanha – Fonte – BN.

A Captura, Ou Apresamento, de Navios Franceses Realizados Pela Marinha do Brasil


Os desentendimentos começaram logo no início de 1962. No dia 2 de janeiro a corveta Ipiranga da apresou o pesqueiro Cassiopée, a cerca de dez milhas da costa, por estar capturando lagosta sem autorização do Governo Brasileiro. Pouco tempo depois, a corveta Purus avistou dois pesqueiros (Françoise Christine e Lonk Ael) próximos à costa do Rio Grande do Norte, mas por determinação do Estado Maior da Armada (EMA), os navios não foram apresados.

Com o apresamento do Cassiopée, a questão antes mais restrita aos interesses de pescadores franceses passou a envolver mais o próprio Governo Francês, gerando uma batalha diplomática com o Governo Brasileiro que se estendeu por todo o ano de 1962. O Brasil sustentava a tese de que a lagosta era recurso econômico de sua plataforma continental, cabendo somente aos brasileiros a emissão de autorização de captura do crustáceo. A França, por seu lado, contestava o posicionamento brasileiro baseando-se na Convenção de Genebra de 1958, que estabelecia as bases para pesca em alto mar. É importante destacar que nenhum dos dois países tinha assinado tal convenção.

Navio de guerra próximo a barco de pesca – Fonte – BN

Durante as negociações para se estabelecer uma forma de “modus vivendi” sobre o crustáceo, a França argumentava que a lagosta se deslocava de um lado para o outro dando saltos e, portanto, deveria ser considerada como peixe e não um recurso da plataforma continental. Segundo o comandante Paulo de Castro Moreira da Silva da Marinha do Brasil a argumentação era fraca e, ironicamente, ele disse: “por analogia, se lagosta é peixe porque se desloca dando saltos então o canguru é uma ave.”

A batalha diplomática não intimidou os pesqueiros franceses, e muito menos reduziu a ação dos navios da nossa Marinha. O contratorpedeiro Babitonga apresou o pesqueiro Plomarch no dia 14 de junho e o Lonk Ael no dia 10 de julho ao longo do litoral do Rio Grande do Norte e a corveta Ipiranga os pesqueiros Folgor e Françoise Christine em agosto do mesmo ano no litoral cearense. Os capitães dos barcos eram orientados quanto à irregularidade cometida e “convidados” a assinar um termo de compromisso para não mais voltar à costa brasileira (embora muitos retornassem).

As corvetas da classe “Imperial Marinheiro” tiveram papel de destaque durante as capturas ocorridas em 1962. Na foto a Ipiranga (V17), responsável pelo primeiro apresamento em 2 de janeiro de 1962 – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

No início de 1963, uma missão francesa chegou ao Brasil com o intuito de negociar a questão da pesca da lagosta, bem como estabelecer as bases comerciais de um possível acordo binacional. Esta mesma missão informou que dois barcos de pesca já se dirigiam para o litoral brasileiro. Por meio do Ministério das Relações Exteriores, o Brasil respondeu que a permissão não seria dada aos barcos, solicitando que o Governo Francês não permitisse a vinda destes para não prejudicar as negociações em curso. A França não só confirmou a vinda dos dois barcos, como também anunciou a partida de outros, independentemente da ameaça de serem apresados.

Sabendo da vinda de pesqueiros franceses para o litoral nordestino (sem a devida autorização), a Marinha do Brasil colocou em alerta os seus navios que executavam patrulha na área. No dia 30 de janeiro, a corveta Forte de Coimbra detectou a presença de três pesqueiros estrangeiros e solicitou que os comandantes dos mesmos rumassem para Natal. Após a resposta negativa, a corveta recebeu instruções de terra para usar a “força na medida do necessário”. Possivelmente os franceses não entendiam português, mas o soar do alarme de “postos de combate” e a visão da tripulação da corveta guarnecendo as peças de artilharia fez os comandantes mudarem de ideia.

Navio de pesca de lagosta francês no litoral nordestino – Fonte – BN

No dia 5 de fevereiro os barcos e suas respectivas cargas foram liberados e, por intervenção do presidente do Brasil, João Goulart, uma autorização para captura da lagosta foi emitida para os pesqueiros no dia 8. Porém, por força da opinião pública e de pressões políticas (principalmente vindas no Nordeste), o Governo Brasileiro teve que voltar atrás e cancelar a autorização. Essa mudança de atitude despertou a ira de Charles de Gaulle. Alguns atribuem a este episódio a origem da frase:

“LE BRÉSIL N’EST PAS UN PAYS SERIEUX” (O BRASIL NÃO É UM PAÍS SÉRIO)

Já numa outra versão dessa história o embaixador brasileiro em Paris, Carlos Alves de Souza Filho, afirmou em seu livro de memórias que a frase foi dita por ele numa entrevista a um repórter brasileiro.

De qualquer forma, as relações com o Governo Francês, que já não eram boas, degradaram-se rapidamente após a notícia da suspensão da autorização. A reação foi enérgica e desproporcional à situação. Por ordem do presidente de Gaulle, um navio de guerra francês seria enviado para proteger os barcos pesqueiros. A diplomacia estava em xeque e uma escalada militar começava a tomar forma.

A Força Naval Francesa

A força naval francesa envolvida nessa crise. Dessas naves apenas duas efetivamente se aproximaram da costa nordestina e o resto ficou na costa ocidental africana, pronta para intervir se fosse necessário – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

No dia 11 de fevereiro de 1963, partiu de Toulon (França) uma Força-Tarefa capitaneada pelo porta-aviões Clemenceau. Juntamente com ele estavam o cruzador De Grasse, os contratorpedeiros Cassard, Jaureguiberry e Tartu, as corvetas Le Picard, Le Gascon, L’Agenais, Le Béarnais, Le Vendéen, o navio-tanque La Baise e o Aviso Paul Goffeny. A princípio, deveria ser somente mais uma missão pela Costa Oeste da África para mostrar a bandeira tricolor e realizar exercícios de rotina.

A bordo do Clemenceau estavam aeronaves Alizé da esquadrilha 4F, jatos Aquilon da 16F e alguns helicópteros S58. Naquela época a força aérea da Marinha da França, a chamada “Aeronavale”, ainda não tinha adquirido os caças F-8 Crusader, embora testes com uma aeronave proveniente do porta-aviões norte-americano USS Saratoga tivessem ocorrido no primeiro semestre de 1962. O papel de caça da frota era exercido pelos velhos Aquilon (versão do Sea Venom fabricada sob licença na França), num de seus últimos embarques operacionais com a “Aeronavale”. Os Etendard IV não estavam plenamente operacionais nas atividades embarcadas e o primeiro exercício com estes jatos estava programado para maio daquele ano.

O De Grasse era o primeiro de uma classe homônima de três cruzadores. Esta classe era formada por escoltas antiaéreas que deslocavam pouco mais de 9.000 toneladas. Possuíam oito reparos duplos de canhões de 127 mm e 10 reparos duplos de canhões de 57 mm. Já os contratorpedeiros eram da classe T47/T53, também com ênfase na defesa antiaérea. As cinco escoltas menores eram compostas por fragatas leves (denominadas “escorteur rapide” na Marinha Francesa) da classe E52 especializadas em ações antissubmarino.

Do outro lado do Oceano Atlântico, a Força-Tarefa francesa realizava exercícios navais. No seu comando estava o porta-aviões Clemenceau (irmão do Foch, que décadas depois seria adquirido pelo Brasil e renomeado São Paulo) equipado com jatos Sud-Est Aquilon 202/203 (versão francesa do De Havilland Sea Venom) – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Em 21 de fevereiro, estes navios chegaram a cidade de Dakar, no Senegal e, posteriormente, seguiram para a cidade de Abidjan, na Costa do Marfim. Ambos os países africanos eram ex-colônias francesas. Porém, uma das escoltas do Clemenceau tomou rumo diferente. Era o Tartu, que solitariamente seguiu para a costa brasileira conforme instruções do Governo Francês.

Essas instruções eram: Controlar o movimento dos pesqueiros a fim de que não se aproximassem do limite de 12 milhas e assegurar aos mesmos pesqueiros a continuação da pesca de lagosta além daquele limite.

Estas informações foram transmitidas ao embaixador brasileiro em Paris no próprio dia 21, quinta-feira. Outra informação, sem confirmação, indicava também o deslocamento do cruzador De Grasse na companhia do Tartu. De qualquer forma, as demais unidades francesas na costa ocidental da África estavam tão perto do local da crise, que não seria necessário mais do que três dias de navegação para chegarem à Natal. No caso das aeronaves embarcadas, apenas algumas horas de voo.

O Tartu – Fonte – Marine Nationale

Do outro lado do Oceano Atlântico, a Força-Tarefa francesa realizava exercícios navais. No seu comando estava o porta-aviões Clemenceau (irmão do Foch, que décadas depois seria adquirido pelo Brasil e renomeado São Paulo) equipado com jatos Sud-Est Aquilon 202/203 (versão francesa do De Havilland Sea Venom)

Começa a Mobilização

Na noite de 21 de fevereiro (quinta-feira), o presidente João Goulart reuniu-se com os ministros da Marinha do Brasil e da Força Aérea Brasileira (FAB) em Brasília. Naquela época, as duas forças militares não possuíam um bom relacionamento, pois a disputa pela operação de aeronaves a bordo do porta aviões Minas Gerais ainda existia. Posta de lado, esta questão não atrapalhou a elaboração de um plano que visava o reforço das unidades militares do Nordeste com o envio de pessoal e equipamento a partir de bases do Rio de Janeiro. Esquadrões da FAB e unidades de superfície da Marinha deveriam ser deslocadas para a região o mais breve possível.

A mobilização efetiva ocorreu no dia 22, uma sexta-feira, véspera de Carnaval. O ministro da Marinha determinou a preparação de um Grupo-Tarefa (GT) composto por um cruzador e quatro contratorpedeiros. Este GT deveria seguir imediatamente para Recife. Outro grupo composto por um cruzador, alguns contratorpedeiros e submarinos, deveria seguir viagem para o Nordeste também, assim que os navios estivessem preparados. Para Salvador, deveriam partir o navio-oficina Belmonte e o dique flutuante Ceará. A mobilização seguiria em frente sob sigilo máximo. No caso de indagações, a resposta deveria ser “exercício programado”.

No dia 23 (sábado de Carnaval) o Conselho de Segurança Nacional reuniu-se no Palácio do Itamaraty. O ministro das Relações Exteriores presidiu a reunião na ausência do presidente (então em São Borja/RS). Após tomarem conhecimento dos últimos movimentos diplomáticos, os participantes passaram a discutir as medidas a implementar. Dentre elas, a divulgação de declarações à imprensa com o intuito de mobilizar a opinião nacional para a grave situação enfrentada.

Desde a primeira hora em que o Estado Maior da Armada (EMA) soube do deslocamento de um navio de guerra francês para a costa brasileira, as Estações Radiogoniométricas de Alta Frequência (ERGAF) do Pina (Recife) e de Salinas da Margarida (Bahia) passaram a rastrear as emissões eletromagnéticas de todos os navios franceses navegando no Atlântico.

Essa crise aconteceu em pleno Carnaval de 1963 e, como não poderia deixar de ser, houve muita ironia nos bailes de carnaval em todo o país com esse tema – Fonte – BN

Os preparativos da Marinha

Inicialmente foi necessário convocar, o mais breve possível, oficiais e praças para guarnecerem os navios, pois a maioria estava de férias. Havia também necessidade de adquirir sobressalentes e até material de uso comum. Para piorar a logística, um tanque arrendado junto à companhia Esso em Recife tinha capacidade para apenas 6.000 toneladas de combustível, quantidade insuficiente para atender todo o GT que se deslocaria para lá. Como se não bastasse, a Esquadra naquela época não contava com um navio-tanque e foi necessário arrendar às pressas um da Petrobras (o Navio Tanque Mato Grosso, com capacidade de 7.000 toneladas).

Em relação ao material flutuante, quanto aos contratorpedeiros (CT), os navios em melhores condições eram os quatro da classe “Pará” (exceção feita ao Paraíba, cujas caldeiras estavam em manutenção), originariamente da classe “Fletcher” norte-americana da II Guerra Mundial, recebidos poucos anos antes por acordo militar com os Estados Unidos. Estes poderiam iniciar a viagem de imediato, assim como um dos três classe “M” construídos no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ) vinte anos antes, o Greenhalgh.

Os quatro contratorpedeiros da classe Fletcher, como o Pará (D27), eram os melhores navios da MB em 1963. Eles foram adquiridos por empréstimo junto aos Estados Unidos e o contrato proibia o uso desses navios contra aliados dos Estados Unidos – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Alguns dos seis contratorpedeiros da classe “A” (construídos no AMRJ e incorporados entre 1949 e 1960) também poderiam ser usados, caso fosse necessário. Porém, a situação era crítica para os oito contratorpedeiros de escolta da classe “Bertioga” (construídos nos Estados unidos na Segunda Guerra e recebidos pelo Brasil durante o conflito). Três dessas naves, o Bracuí, Beberibe e Bocaina, estavam docados, ou seja, sofrendo reparos fora da água, em docas secas. Enquanto outros dois, o Babitonga e o Bauru, preparavam-se para entrar no Período Normal de Reparos (PNR). Dos restantes, o Benevente e o Bertioga tinham problemas nos eixos e o Baependi possuía restrições de velocidade.

A situação dos submarinos não era muito melhor. O Humaitá foi descartado de imediato, pois não tinha condições de se mover. Já o Riachuelo necessitava de substituição total da sua rede de pressão, mas era possível colocá-lo em movimento em dez dias (de acordo com as primeiras análises). Ambos eram veteranos da Marinha dos Estados Unidos, ainda da época da Segunda Guerra Mundial e transferidos em 1957 para o Brasil.

O estado dos dois cruzadores, também de origem norte-americana e veteranos da Segunda Guerra, era preocupante. Os principais problemas com o Tamandaré estavam associados aos grupos destilatórios, para utilização de água doce. Estimava-se que o mesmo não poderia ser reparado em menos de 15 dias. O Barroso poderia navegar, mas somente com quatro das suas oito caldeiras (o mínimo necessário para colocá-lo em movimento eram três.

Dois contratorpedeiros brasileiros envolvidos na crise – Fonte – BN

O quadro operativo dos navios da esquadra, bem como do armamento e munição, foram expostos na reunião do Almirantado realizada a portas fechadas na tarde do dia 22.

A situação era a seguinte: Munição – Situação dramática. A dotação dos navios da Esquadra (dotação de paz) poderia ser consumida em menos de trinta minutos durante um engajamento. Nos depósitos do Centro de Munição da Marinha não existia munição suficiente para recomplementar a dotação de paz de todos os navios (exceção feita aos projéteis de 20 mm). Para completar todos os navios com dotação de guerra, seria necessário o dispêndio de aproximadamente um milhão de dólares. Mesmo que a munição estivesse disponível, os barcos utilizados para a sua distribuição, conhecidos como “batelões”, estavam em péssimo estado e não existiam em número suficiente para um atendimento de urgência.

Equipamentos de abandono de navios em caso de afundamento e salvamento – Eram itens extremamente críticos, geralmente com período de validade, e que deviam ser repostos periodicamente. Em função da crônica falta de verbas, muitos itens não atendiam ao número mínimo estipulado em acordos internacionais ou já estavam fora do período de validade. Foram liberadas, em caráter emergencial, verbas para a aquisição de 800 coletes salva-vidas, 49 balsas e 1.200 conjuntos de alimentação de sobrevivência, o que atenuou o problema.

Lanchas dos navios – Situação lastimável. Dos oito contratorpedeiros de escolta (uma lancha por navio), só a lancha do Babitonga funcionava. Das dezesseis lanchas existentes nos outros treze contratorpedeiros, apenas sete estavam em condições operacionais. Somando as lanchas dos dois cruzadores, somente três das dez estavam em bom estado. O recém-adquirido porta aviões Minas Gerais possuía duas lanchas operando de um total de seis.

Os P-15 Neptune ainda eram bons aviões de esclarecimento marítimo em 1963. Eles eram operados pelo 1º/7º GAV, baseado em Salvador – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Controle de Avarias de combate e estanqueidade de compartimentos – Somente os navios da classe “Pará” resistiriam a uma inspeção ligeira por possuírem equipamento completo e em bom estado. Os demais, principalmente os de construção nacional (classes “M” e “A”), seriam condenados operativamente e impedidos de se movimentar por não possuírem condições de segurança para navegar.

Esquadrões da FAB em alerta

Coube à FAB realizar missões de patrulha naval (esclarecimento marítimo) com aeronaves de longo alcance P-15 Neptune do 1º/7º Grupo de Aviação (1º/7º GAv). A unidade passou a realizar missões de patrulha com alcance de 500 milhas náuticas (cerca de 900km) a leste do arquipélago de Fernando de Noronha.

No Nordeste, a FAB ainda contava com os veteranos aviões B-17. Eram quadrimotores de fabricação norte-americana da época da Segunda Guerra, construídos originalmente como bombardeiros estratégicos de longo alcance e modificados para aviões de busca e salvamento nas versões SB-17G e RB-17G. A função dos B-17 era auxiliar as tarefas dos P-15 Neptune. Tinha base em Recife, Pernambuco e pertenciam ao 6º Grupo de Aviação (6º GAv). Não dispunham de equipamento especial para patrulhas marítimas, sendo o reconhecimento realizado visualmente. Por serem aviões ultrapassados, sua aposentadoria na FAB não demoraria muito.

O grande reforço viria da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, onde estava baseado o 1º Esquadrão do 1º Grupo de Aviação Embarcada (1º/1º GAE) e seus treze P-16 Tracker, aeronaves bimotoras recentemente incorporados. O Tracker entrou em atividade na Marinha dos Estados Unidos em 1954 e, no início da década de 1960, ainda era a aeronave de guerra antissubmarino embarcada mais moderna do mundo. Os aviões contavam com uma aparelhagem eletrônica bastante complexa para a época, incluindo radar de busca, radar do tipo Doppler, radar-altímetro de baixa altitude, sensor de detectação de anomalias magnéticas e sistema de contramedidas eletrônicas.

P-16 Tracker da FAB, do 1º Esquadrão do 1º Grupo de Aviação Embarcada (1º/1º GAE) – Fonte AE

A formação do Grupo-Tarefa

Sob a denominação “Operação Lagosta”, um GT deveria ser formado e enviado o mais breve possível para Recife. A ideia inicial de constituir o GT Vermelho 12.2 com o cruzador Tamandaré, quatro contratorpedeiros e, posteriormente, enviar outro cruzador e mais escoltas tão logo estivessem prontos, começou a se desfazer quando o estado dos navios foi apresentado.

Com diversos problemas nas caldeiras e nos grupos destilatórios, o Tamandaré foi descartado de imediato. O Pará, com problemas na bomba de alimentação principal e falta de pessoal para guarnecer o navio, teve sua saída adiada para a tarde do dia 24. Já o Greenhalgh, com avarias na maquinaria, só deixou o Rio de Janeiro na noite do dia seguinte (chegando a Recife na tarde do dia 28). Desta forma, o GT 12.2 partiu para a cidade de Recife às 3h27 da madrugada do dia 24 somente com os contratorpedeiros Paraná (onde seguia o Comandante do GT, contra-almirante Norton Demaria Boiteux) e Pernambuco.

Enquanto a Marinha do Brasil se mobilizava em pleno feriado, na embaixada dos Estados Unidos a movimentação era atípica para uma noite de Carnaval. Durante a madrugada, o adido naval dos Estados Unidos telefonou ao Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), solicitando uma audiência urgente. A contragosto e em companhia do seu ajudantes-de-ordens, o CEMA recebeu o militar norte-americano numa audiência curta e pouco amistosa.

Cruzador Tamandaré escoltado por quatro contratorpedeiros da classe “Pará” – Fonte Wikipedia

O adido naval foi logo indagado sobre o real motivo de uma audiência no meio da madrugada. O adido trazia uma mensagem do embaixador dos Estados Unidos. Este recebeu ordens diretas do Departamento de Estado para que os dois contratorpedeiros que partiram do Rio de Janeiro com destino ao Nordeste regressassem imediatamente. Segundo ele, a lei do Senado norte-americano que concedeu o empréstimo desses navios proibia o uso dos mesmos contra qualquer aliado dos Estados Unidos como a França.

Realmente, não só o Pernambuco e o Paraná, mas os outros dois contratorpedeiros da classe “Fletcher” (Pará e Paraíba) foram transferidos por empréstimo de cinco anos e, naquela época, ainda constavam na lista de unidades pertencentes à Marinha dos Estados Unidos. Esta era uma das facetas negativas dos acordos de transferência de material bélico daquele país para as Forças Armadas brasileiras.

Esquadra brasileira a caminho do Nordeste em 1963 – Fonte – BN

A resposta do CEMA foi a seguinte:

Peço ao ‘capitain’ para solicitar ao Exmo. Sr. Embaixador dos Estados Unidos que comunique ao seu Governo, em Washington, que, inspirado nos fundamentos do pan-americanismo, que tem como uma das principais fontes a Doutrina Monroe, formulada por um presidente dos Estados Unidos há 140 anos, o Brasil cortou relações diplomáticas, e depois, manteve o estado de beligerância com o Japão, em virtude da agressão ao território americano sofrido com o ataque a Pearl Harbor. O Brasil honrou o seu compromisso assumido por ocasião da Conferência de Havana em 1940, onde se declarou que um ataque por um Estado não americano contra qualquer Estado americano é considerado como ataque contra todos os Estados americanos. Sabemos que os Estados Unidos têm compromissos políticos e militares com a França em virtude do Tratado do Atlântico Norte, firmado em 1949. Entretanto, antes desse Tratado, os Estados Unidos em 1947, nesta cidade do Rio de Janeiro, lideraram a assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que teve como propósito prevenir e reprimir as ameaças e os atos de agressão a qualquer dos países da América, baseado nos princípios de solidariedade e cooperação interamericanas. Assim sendo, configurando a agressão francesa, como anunciado em Paris, o Brasil espera que os Estados Unidos honrem os seus compromissos na defesa coletiva do continente americano declarando guerra contra a França, como o Brasil honrou seus compromissos declarando guerra contra os japoneses na II Guerra Mundial, sem nunca ter sido agredido por eles. E está dispensado … e pode se retirar.

O Tartu é localizado e acompanhado pela FAB

Enquanto o GT 12.2 seguia para Recife, os aviões da FAB procuravam pelos navios franceses. Quando quatro P-16 chegaram a Recife no dia 24, os P-15 já realizavam missões de patrulha a partir de Salvador. Conforme planejado, os aviões do 1º GAE passaram então a realizar voos de patrulha armado em rotas paralelas. Logo na manhã do dia 25, dois pesqueiros foram localizados próximos a Macau, Rio Grande do Norte. Com esta descoberta os P-16 deslocaram-se de Recife para Natal.

A cerca de 250 milhas náuticas (aproximadamente 450 km) a Noroeste de Natal, foi localizado um “grande navio escuro” que atuava como frigorífico, onde os pesqueiros desovavam sua pesca. Ao seu lado encontrava-se um navio tender para serviços de manutenção. Mas a grande descoberta ocorreu no dia 26 de janeiro. Patrulhando distante da costa, um P-15 detectou no radar um navio rumando para Fernando de Noronha. No dia seguinte, um B-17 do 6º GAv fez o reconhecimento fotográfico do navio Tartu da Marinha Francesa.

O navio de guerra francês passou a receber vigilância aérea constante e uma das missões foi a primeira de caráter noturno para os P-16 da FAB. Duas aeronaves voaram em formação aberta e a baixa altitude com todas as luzes apagadas e silêncio total no rádio. Para a aproximação do alvo, utilizaram seus equipamentos passivos de guerra eletrônica, que detectavam as emissões do radar de busca aérea do Tartu. Próximos ao navio, os aviões cerraram formação e baixaram para 100 pés de altitude (cerca de 30 metros) até que, praticamente sobre o navio francês, acionaram tudo que pudesse iluminá-lo. Foi uma surpresa total, e homens puderam ser vistos correndo pelo convés, como se estivessem assumindo postos de combate.

Dois P-16 da FAB sobre navios, durante a crise de 1963 – Fonte BN

Porém, normalmente a cobertura aérea era realizada a uma altura média de 1.000 pés (3.000 metros). Algumas vezes a tripulação do navio francês realizava exercícios de tiro, possivelmente tentando inibir as aeronaves brasileiras. Como resposta, os P-16 deixavam a área voando baixo e passando ao lado do Tartu, exibindo claramente seus foguetes.

Ainda no dia 26, o Pará juntou-se ao GT 12.2 e os contratorpedeiros atracaram no porto do Recife. Durante a travessia Rio a Recife as tripulações dos navios realizaram diversos exercícios com o propósito de aprimorar o treinamento. Também no mesmo dia, a estação radiogoniométrica de Pina interceptou uma mensagem do Tartu para os lagosteiros franceses, marcando um ponto de encontro na manhã do dia 28. O ponto ficava a aproximadamente 100 milhas de distância de Recife. Em função da possível antecipação do Tartu, um avião da FAB sobrevoou o local já no dia 27. O navio foi localizado às 22h55 entre o litoral brasileiro e o arquipélago de Fernando de Noronha e a situação ficou tensa com o passar das horas.

A informação da aeronave da FAB antecipou a saída do GT 12.2. Passava da meia-noite quando os contratorpedeiros Paraná e Pará deixaram o porto do Recife rumo ao ponto de encontro marcado pelo Tartu. O Pernambuco, com problemas, ficou no porto. A missão do GT era “vigiar os navios franceses, informando os seus movimentos através do acompanhamento radar, fora do alcance visual”.

Foi uma madrugada de muitas expectativas. Na sede da 2ª Zona Aérea o movimento de oficiais superiores era intenso e, logo na manhã do dia 28, as emissoras de rádio já divulgavam os acontecimentos das últimas horas para a população apreensiva. O governo também acompanhava os acontecimentos de perto. Pairavam muitas dúvidas sobre a atitude do navio francês quando encontrasse os navios da Marinha do Brasil.

Outra fotografia do Tartu feita pela FAB – Fonte – BN

Encontro em alto-mar

As atenções estavam voltadas para o possível encontro do Paraná com o Tartu, que em muitos aspectos eram equivalentes. Os armamentos possuíam similaridades, a força propulsora (duas turbinas a vapor, quatro caldeiras e dois eixos), as potências desenvolvidas e a velocidade máxima eram semelhantes. Em relação aos sensores, o radar de busca combinada DRBV22A francês era equivalente ao SPS-6 dos classe “Pará”, mas o grande diferencial do navio francês era a combinação deste último com o radar DRBI, fornecendo um quadro tridimensional das ameaças aéreas.

A bordo do Paraná a tensão era grande. O navio navegava às escuras. Os operadores dos radares mantinham atenção total às telas repetidoras e os vigias noturnos redobravam a vigilância.

O contratorpedeiro Paraná (D29) foi o primeiro navio da Marinha do Brasil a fazer contato com o navio de guerra francês Tartu. O encontro ocorreu no dia 28 de fevereiro de 1963. – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

O dia raiou com forte neblina. Passava das dez da manhã quando o Paraná estabeleceu contato radar com um alvo na superfície, a 36.000 jardas, marcação 330º. Tinha que ser o Tartu. As condições climáticas não permitiram identificação visual à distância. O Paraná, que navegava no rumo 000º, manobrou 20º para bombordo e aproximou-se do alvo. Antes de atingir a distância de 30.000 jardas (cerca de 27.500 metros), o navio passou a se comunicar por holofote. Depois dos cerimoniais marítimos, o Paraná aproximou-se a 27 nós (o Pará vinha logo atrás em velocidade reduzida) e, à distância de 14.400 jardas (cerca de 13 quilômetros), identificou o contato como o D636 Tartu, além de seis lagosteiros praticamente parados. Os contratorpedeiros brasileiros acompanharam os navios franceses por algum tempo e monitoraram as frequências de rádio, depois se afastaram. Do alto, um P-15 da FAB também acompanhava os movimentos.

Deste dia em diante, foi estabelecida uma escala de patrulha com o propósito de manter sempre um navio próximo dos pesqueiros e outro à distância, podendo intervir quando necessário.

O cruzador Barroso (C11) era uma unidade de respeito numa época em que os mísseis navais ainda estavam em desenvolvimento. Embora seus quinze canhões de 6 polegadas representassem grande ameaça a outras unidades navais, durante a crise de 1963 o navio não dispunha de munição deste calibre. Além disso, ele sofria problemas de propulsão, geração de energia elétrica, racionamento de água potável e entupimento da rede de esgoto – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

A Marinha do Brasil envia mais navios

Antes do Paraná detectar o Tartu, o contratorpedeiro Araguari havia partido do Rio de Janeiro na madrugada do dia 27, rumo a Recife. Às 9h45 sofreu uma avaria no leme e um problema nas máquinas na altura de Cabo Frio, Rio de Janeiro, o que só foi resolvido às 14h. O navio chegou a Recife em 1º de março.

O cruzador Barroso partiu do AMRJ no Rio de Janeiro em 28 de fevereiro, após alguns reparos emergenciais, mas não estava preparado para uma missão como a que se impunha. A viagem começou com as caldeiras nº1, 2, 3 e 4 em funcionamento, permitindo 15 nós de velocidade (quase 28 km/h). Porém, a caldeira nº4, que tinha sido emergencialmente reparada no dia 26, apresentou um tubo perfurado e a velocidade foi reduzida para pouco mais de 10 nós (18,5 km/h). Técnicos do AMRJ estavam a bordo para auxiliar no reparo das demais caldeiras, mas ainda assim o navio participou de toda a comissão com apenas três em pleno funcionamento, o mínimo necessário para o navio se “arrastar” sobre o mar.

A situação dos armamentos e munições não era mais animadora. O Barroso não dispunha de munição para seus canhões principais (quinze armas de 6 polegadas, em cinco torres triplas) e, ainda que tivesse, a torre nº3 estava inoperante desde 1958, e as outras duas estavam sem o controle automático. Somente duas das seis diretoras de tiro funcionavam (que realizavam a mira dos canhões) e os canhões de 5 polegadas da bateria secundária estavam sem o controle automático da diretora.

Outro navio da Marinha do Brasil seguindo para a área da crise de 1963 – Fonte – BN

Para completar, outros problemas se acumulavam e tornavam a vida difícil no interior do navio. Um tanque de óleo combustível não era utilizado por apresentar vazamentos, dois tanques de água potável também estavam com furos para o mar, o que obrigou a tripulação a economizar água. O turbo gerador nº4 estava no AMRJ sofrendo reparos, o que reduzia a capacidade de geração de energia elétrica a bordo em 25%. Com todos estes problemas, incluindo o entupimento frequente das redes de esgoto e de combate a incêndio, o Barroso só foi capaz de chegar a Recife em 6 de março, após quase uma semana de viagem!

Na noite de 1º de março, o submarino Riachuelo, em companhia da corveta Imperial Marinheiro, transformada em navio de socorro e salvamento, zarparam para Recife e Natal respectivamente. Embora o Riachuelo estivesse equipado com torpedos Mk.23, nenhum deles possuía cabeça de combate, ou material para detonação. Coube à FTM (Fábrica de Torpedos da Marinha) encher nove cabeças de exercício com trotil (um tipo de explosivo), para que o submarino as recebesse em Recife, e rezar para que as mesmas funcionassem em combate.

Em 1963 a Flotilha de Submarinos resumia-se a dois navios (Humaitá e Riachuelo) empregados como unidades auxiliares de adestramento das unidades de superfície. A Marinha do Brasil não possuía torpedos com cabeça de combate e teve que improvisar durante a crise da lagosta. Mas após o episódio a Flotilha foi completamente remodelada – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Antes mesmo do submarino Riachuelo fazer-se ao mar, o contratorpedeiro Marcílio Dias desatracou do AMRJ, levando uma carga preciosa de torpedos Mk.15 para os navios classe “Pará”. Sua viagem a Recife foi cheia de percalços. No cair da noite de 2 de março teve uma avaria de máquinas, que foi reparada. Em 3 de março, o navio “apagou” e ficou sem propulsão por cinco horas. Reparos de emergência permitiram rumar para Ilhéus a fim de aguardar reboque. O Barroso veio ao seu socorro e decidiu-se aguardar a chegada da corveta Imperial Marinheiro para rebocá-lo.

No dia seguinte, 2 de março, foi a vez do cruzador Tamandaré partir do Rio de Janeiro. Mesmo com as caldeiras nº1, 2 e 4 necessitando de retubulação e as demais com vazamentos, o navio seguiu rumo ao Nordeste. No dia 3, suspenderam os contratorpedeiros Apa e Acre que, juntamente com o Marcílio Dias e o cruzador Tamandaré, constituíram o GT 12.4. Os navios ficaram provisoriamente baseados em Salvador devido ao congestionamento do porto do Recife e ao pequeno calado e a pouca infraestrutura dos portos de Natal e Cabedelo, na Paraíba.

Ponte de comando do contratorpedeiro Greenhalgh – Fonte – AN

Por ordem do EMA, a Força de Minagem e Varredura, composta pelos navios Javari, Juruá, Juruena e Jutaí, também foi deslocada para o Nordeste, chegando a Recife em 1º de março. Os contratorpedeiros de escolta Bertioga e Baependi, então executando pesquisas oceanográficas no Maranhão (Operação Equalant) para a Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN), também foram solicitados para apoiar a Operação Lagosta. Como pode se ver, tudo que flutuasse e atirasse estava se deslocando para o Nordeste.

O Tartu é substituído

A França resolveu enviar o Tartu de forma solitária. Mais cedo ou mais tarde, um navio-tanque teria que abastecê-lo ou outra unidade de combate seria enviada para substituí-lo. Caso o navio-tanque Baise deixasse o grupo do Clemenceau, este e os outros nove navios que o acompanhavam ficariam sem apoio. Sobrava então a opção de substituir o Tartu por outro navio equivalente, mas o substituto surpreendeu os brasileiros e até mesmo muitos franceses: foi enviado o aviso Paul Goffeny, reconhecidamente um navio muito menos capaz em termos militares que o Tartu.

As estações radiogoniométricas passaram a rastrear as emissões eletromagnéticas do Paul Goffeny e descobriu-se que o encontro entre o Tartu e o aviso francês ocorreria em 2 de março. O comandante do GT 12.2 ordenou que o contratorpedeiro Pará se dirigisse ao local provável do encontro. Às 9h15 um avião da FAB comunicou ao Pará que já orbitava sobre os navios franceses e repassou a posição. O contato visual do contratorpedeiro da Marinha do Brasil com os navios franceses, que incluíam seis pesqueiros, ocorreu às 10h34. O Pará passou a acompanhá-los de longe e, às 12h59, o Tartu adotou o rumo 032º, em direção à África. Mesmo assim, o Pará permaneceu na região acompanhando a movimentação dos navios. No dia seguinte foi substituído pelo contratorpedeiro Pernambuco.

Uma mensagem do Tartu para Dakar solicitando o seu reabastecimento foi interceptada, indicando que o mesmo realmente se retirava da área. Para confirmar a informação, os P-15 acompanharam a viagem de retorno do Tartu por um longo tempo.

O contratorpedeiro Acre (D10) sendo reabastecido em alto mar pelo porta aviões Minas Gerais. A situação de alguns navios da classe “A” em 1963 era crítica. À época, a Marinha do Brasil privilegiava a manutenção da classe “Pará”, mais capaz que as classes “A” e “M” construídas no Brasil nas décadas anteriores.

A troca do Tartu pelo Paul Goffeny foi um grande alívio para os brasileiros, indicando que o Governo Francês havia recuado, mas não capitulado. O assunto perdeu destaque na imprensa, diminuindo de interesse para o povo francês. Somente entre os armadores e pescadores de Camaret houve uma revolta contra a atitude de seu governo.

Chegada dos reforços

O contratorpedeiro Marcílio Dias, rebocado pela corveta Imperial Marinheiro, fundeou em Salvador na noite de 5 de março, quando também atracaram em Salvador os contratorpedeiros Acre e Apa. Ambos deveriam receber os torpedos transportados pelo Marcílio Dias e levá-los a Recife, com o propósito de repassá-los aos navios da classe “Pará”.

Após uma longa e tumultuada viagem, o cruzador Tamandaré chegou ao porto de Salvador no dia 7. O cruzador trazia a bordo ferramental necessário para o reparo das caldeiras do Barroso, então atracado em Recife. No entanto, os itens só foram encaminhados para Recife (via aérea) uma semana depois!

Barco de pesca francês fotografado pela FAB – Fonte – BN

Também no dia 7 o Acre e o Apa partiram para Recife com a carga de torpedos. Os dois contratorpedeiros chegaram ao porto de destino no dia seguinte, mas o Apa entrou em emergência. Além de estar com seus geradores elétricos (a diesel) inoperantes, também possuía pouca água de reserva, pois o maquinário utilizado para destilar água salgada não funcionou corretamente. Atracou ao lado do Pernambuco e teve início a transferência dos torpedos.

O complicado e difícil trabalho ocorreu durante a noite e sob o olhar de uma multidão de civis aglomerados numa praça em frente ao cais. Num certo momento, um dos torpedos caiu na água, atrasando a conclusão da operação. Em outro, a válvula de segurança da caldeira do Paraná liberou vapor, com um forte ruído que assustou a “plateia”.

Quadro geral da chamada Guerra da Lagosta – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Enquanto parte dos navios da Marinha na zona de operação sofria reparos de emergência, as unidades do GT 12.2 continuavam monitorando os pesqueiros franceses e o Paul Goffeny.

Ainda em 7 de março um dos seis pesqueiros retirou-se da área. O que parecia ser mais um alívio, transformou-se em tensão quando surgiram notícias desencontradas sobre o navio de guerra Jaureguiberry (da mesma classe do Tartu) estar navegando rumo à costa brasileira. Porém, o navio tomou o rumo de Dakar e, no dia 8, mais um lagosteiro afastou-se do litoral brasileiro.

Prosseguia o revezamento dos navios brasileiros que monitoravam a área: no final da tarde do dia 9 o Araguari rendeu o Pará, que retornou a Recife. Na manhã do dia 10, o Paul Goffeny e os quatro lagosteiros restantes afastaram-se do Atol das Rocas, no rumo de Dakar. A informação foi confirmada por uma aeronave da FAB. Parecia ser o fim de um período de muita tensão.

Marinheiros brasileiros sinalizando opticamente – Fonte – BN

Posteriormente, soube-se que a decisão francesa de deixar a área foi mais econômica do que política. Por ficarem fora da plataforma continental, os navios de pesca ficaram sem pescar por mais de um mês, acarretando grande prejuízo aos armadores.

Difícil Retorno

Na noite de 9 de março o EMA encaminhou ordem ao Comando-em-Chefe da Esquadra (ComenCh) para manter na área apenas um GT composto pelo cruzador Barroso e os contratorpedeiros Pará, Paraná, Greenhalgh e Marcílio Dias. O Baependi e o Bertioga seriam devolvidos à DHN para dar continuidade à Operação Equalant. Os demais navios deveriam retornar ao Rio de Janeiro.

Na manhã de 13 de março, partiram o Pernambuco (como nau capitânia, ou navio de comando da flotilha), o Apa, o Acre e o Araguari. No final da tarde o Acre, com sérios problemas, desincorporou-se do grupo com destino ao porto de Maceió, Alagoas.

E a Lagosta ficou – Fonte – BN

O Tamandaré e o Riachuelo partiram de Salvador e se juntaram ao grupo no final da tarde do dia 14. Na madrugada do dia seguinte, ao sul do Arquipélago de Abrolhos, o Apa apagou – antes de partir para o Nordeste, o navio havia sido retirado com urgência do dique Ceará e o reparo de solda nas costuras da chapa do tanque de reserva não foi bem executado, permitindo a entrada de água do mar. O Pernambuco foi prestar socorro, enquanto o Araguari e o Tamandaré seguiram viagem. A corveta Imperial Marinheiro, que partiu de Natal no dia 13, foi chamada para rebocar o Apa, mas este conseguiu restabelecer a propulsão e rumar para o porto de Vitória, Espirito Santo, antes da chegada da corveta.

No dia 16 de março, já próximo de Cabo Frio, foi a vez do Araguari apagar. O navio ficou sem propulsão por três horas, ao sabor da maré e envolto por denso nevoeiro. O problema foi posteriormente resolvido e o contratorpedeiro seguiu para o AMRJ, onde chegou no início daquela tarde. Naquele mesmo dia partiram do Recife os navios Barroso, Paraná e Pará, constituindo o GT 21.1.

Realmente era uma competição muito desigual entre os pescadores de lagosta da Bretanha e os das praias nordestinas, como esses da praia de Rio do Fogo, Rio Grande do Norte – Fonte – BN

Os últimos navios a deixar o Nordeste foram o Greenhalgh e o Marcílio Dias, que constituíram o GT 12.5, no dia 28 de março. Novamente a viagem teve percalços: ambos aportaram em Salvador no dia 29 por problemas de “água de alimentação”.

Em relação às aeronaves, o destacamento de sete P-16 do 1º GAE foi desmobilizado em 12 de março, permanecendo apenas dois exemplares em Natal. O retorno do último P-16 ocorreu no dia 18. Ao final da mobilização, o grupo realizou um total de quarenta missões, oito delas de caráter noturno, com um total de 254 horas e 20 minutos de voo.

Considerações finais

A Operação Lagosta foi mais um exemplo, dentre vários existentes na história brasileira, de como o Brasil é dependente de suas Forças Armadas para garantir sua soberania e defender os seus interesses. Pode-se, e deve-se, trabalhar com hipóteses de conflitos mais prováveis e enumerar potenciais agressores, mas as Forças Armadas devem sempre estar prontas para o pior e para o improvável, independentemente de como e de onde venha a ameaça. Isto já era uma verdade naquela época. No mundo atual é mais do que a garantia da sobrevivência.

Pesca artesanal de lagosta no Nordeste do Brasil – Fonte – BN

Pode-se dizer que foi um caso esporádico ou mesmo um evento solitário dentro de um amplo histórico de amizade entre Brasil e França, numa situação que dificilmente se repetiria. Para o desencanto dos defensores desta ideia, a situação praticamente se repetiu. No final de 1978, na chamada “Guerra do Camarão”, ambos os países chegaram a posicionar unidades militares nas proximidades do Cabo Orange, junto à fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa. Naquela ocasião a mobilização foi menor e somente o contratorpedeiro Rio Grande do Norte foi deslocado do Rio de Janeiro. No referido evento, quatro pesqueiros de bandeira norte-americana foram metralhados por navios da Marinha do Brasil e posteriormente apreendidos. Um deles, na época denominado Night Hawk, foi incorporado à nossa Armada.

Se a atitude belicosa da França foi uma surpresa, o que dizer da reação do Governo dos Estados Unidos em relação aos contratorpedeiros arrendados à época da Operação Lagosta?

Países aliados, e até mesmo parceiros em acordos de defesa mútua, podem assumir posições, se não neutras, diametralmente contrárias. Foi uma dura lição (e a história está cheia delas) de que não existem países amigos, mas sim países com interesses comuns. Quando estes interesses perdem o sentido ou são suplantados por outros maiores, os países “amigos” afastam-se. A propósito, durante toda a crise nenhum país, formal ou informalmente, apoiou ou sustentou a tese brasileira (da lagosta como recurso econômico de sua plataforma continental).

Quando irrompeu a crise da lagosta o contratorpedeiro de escolta Babitonga (D17) preparava-se para entrar em período de reparos. Dois anos depois ele foi convertido em aviso oceânico e seu armamento antissubmarino foi removido. Na foto, o Babitonga sendo reabastecido pelo porta aviões Minas Gerais – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Aprendeu-se muito com o episódio. A mobilização tempestuosa das unidades mostrou que uma marinha precisa estar devidamente equipada e seus homens perfeitamente adestrados durante o período de paz, para garantir um mínimo de unidades sempre prontas para situações emergenciais. Depender de verbas contingenciadas e ficar no aguardo de promessas de novas alocações orçamentárias, que vagam ao sabor de congressistas desinformados, não é a forma mais correta de se ter uma marinha digna.

Uma avaliação posterior mostrou que a mobilização e o envio de um grande número de navios de combate foram desnecessários. Porém, naquele momento, era difícil saber se a reação francesa ficaria limitada a um contratorpedeiro (depois substituído por um aviso), pois na costa africana havia uma Força-Tarefa tão ou mais poderosa que toda a Marinha do Brasil. Um ponto positivo deve ser bastante destacado: a movimentação dos navios brasileiros mostrou a determinação do Brasil em manter a sua posição e passou a impressão de que todos os meios estavam plenamente operantes e em estado de alerta. Na dúvida, o oponente resolveu não apostar no pior. Esse aspecto positivo não ameniza os problemas levantados. Pelo contrário, os realça. Determinação é fundamental, mas quando combinada a meios realmente efetivos, o resultado é muito melhor.

Pescadores nordestinos de lagosta na época da crise – Fonte – BN

O episódio mostrou também a importância de aeronaves de esclarecimento marítimo com grande raio de ação e dotadas de equipamentos modernos e sofisticados. Melhor ainda teria sido empregá-las (no caso dos P-16A) a partir do porta aviões Minas Gerais. Por um breve período o EMA não teve certeza de quantas e quais unidades estavam a caminho da costa nordestina, e com um grupamento aéreo embarcado seria possível monitorar todos os passos da Força-Tarefa francesa antes mesmo que esta deixasse a costa africana, revelando com antecipação a movimentação, número, tipo de unidades navais e estado de prontidão.

O fato é que, durante a crise, o único porta aviões da nossa Marinha esteve incapaz de navegar e assim permaneceu, atracado ao AMRJ. Possuir navio-aeródromo é uma capacidade para poucas marinhas no mundo, mas contar com apenas uma unidade desse tipo é jogar com a sorte, pois o navio pode não estar disponível quando necessário.

Em relação ao acompanhamento dos navios franceses, merece destaque o excelente trabalho realizado pelas estações ERGAF no monitoramento das emissões eletromagnéticas, de grande utilidade para o serviço de inteligência da Marinha. Utilizando apenas duas estações e uma infraestrutura modesta, o EMA permaneceu atualizado constantemente sobre as trocas de mensagens entre os navios franceses.

Fonte – BN

Relegada praticamente ao papel de uma unidade auxiliar de adestramento, a Flotilha de Submarinos pouco poderia fazer naquela ação.

Eram apenas duas embarcações, com tecnologia da II Guerra Mundial. Além de serem unidades “pré-snorquel” numa era onde já navegavam submarinos nucleares, não possuíam armamento para um engajamento (torpedos com cabeça de combate), pois na nossa Marinha cumpriam mais o papel de ameaças submarinas para exercícios das unidades de superfície. Deve-se ressaltar o louvável esforço da Fábrica de Torpedos da Marinha em encher nove cabeças de exercício com trotil e transformá-las em cabeças de combate.

Depois da Operação Lagosta, a Marinha do Brasil começou a remodelar a Flotilha de Submarinos nos aspectos doutrinário e material. Em maio de 1963, ou seja, alguns meses após os acontecimentos narrados aqui, a designação foi modificada para Força de Submarinos (ForS).

Preparação da lagosta após sua captura – Fonte – BN

Naquele mesmo ano foi criada a Escola de Submarinos e outras duas unidades de versão um pouco aperfeiçoada, provenientes dos Estados Unidos (Bahia e Rio Grande do Sul) foram incorporadas. Ambos ajudaram no adestramento das tripulações, numa época em que a Marinha do Brasil passou a estudar a aquisição de um tipo de submarino moderno. Foi quando surgiram os primeiros estudos que depois definiram a aquisição de três submarinos novos, de origem britânica, da classe “Oberon” (aprovados no Programa de Construção Naval de 1968).

Um caso histórico como este, obviamente, merece uma reflexão mais profunda. Porém, o episódio é um bom exemplo da importância de manter em boas condições as Forças Armadas, em especial a Marinha. Não se improvisa uma esquadra do dia para a noite. Construir uma marinha efetiva custa dinheiro e leva tempo, mas é fundamental para países como o Brasil, cujas interações com as demais nações do mundo, das mais modestas às mais poderosas, se dão predominantemente pelo mar.

Fontes consultadas e recomendações de leitura:

SILVA, Oscar Moreira da. A Guerra da Lagosta vista por um tenente 40 anos após. Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v.124, n. 1-3, p. 97-107, jan-mar. 2004.

BRAGA, Cláudio da Costa. A Guerra da Lagosta. Rio de Janeiro: SDM, 2004.

BECKER, Laércio. O P-16 Tracker e a Aviação Embarcada. Rio de Janeiro: INCAER, 2009.

LESSA, Antonio Carlos. “É o Brasil um país sério? A história da mais longeva anedota da política exterior do Brasil”. In: MARTINS, Estevão Chaves de Rezende (org) Relações Internacionais: visão do Brasil e da América Latina. Brasília: IBRI, 2003. p. 187 – 222.

LESSA, Antonio Carlos. A Parceria Bloqueada. As relações entre França e Brasil 1945-2000. Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília, 2000.

COMO UM AZARADO SUBMARINO NAZISTA FOI PARAR EM UM MUSEU?

Mais de 1.150 formidáveis submarinos foram construídos na Alemanha durante a Segunda Guerra, sendo conduzidos por valentes marinheiros, que fizeram essas naves singrarem os sete mares levando o terror da sua presença. Hoje restam apenas cinco dessas máquinas e é uma delas, que está exposta em um museu em Chicago, que vamos comentar no TOK DE HISTÓRIA – O U-505 não alcançou grandes êxitos bélicos, foi sabotado, experimentou situações extremas e o azar fez parte quase que permanente de sua carreira. Mas a história de sua captura em alto mar é uma das páginas mais intensas e interessantes de toda Segunda Guerra. Além do formidável esforço para sua preservação.

Rostand Medeiros – IHGRN

Houve um momento durante a Segunda Guerra Mundial que o povo dessa grande nação tropical chamada Brasil ficou possuído de muito medo e muita raiva de tudo que significasse Alemanha. Isso aconteceu principalmente na segunda metade do mês de agosto de 1942, quando o submarino alemão U-507 torpedeou vários navios brasileiros no litoral da Bahia e Sergipe e suas ações mataram mais de 500 pessoas.

O Primeiro Ministro Britânico Winston Churchill comentou que a arma inimiga que mais temeu durante aquele conflito foram os submarinos. Diante dos milhares de afundamentos de cargueiros britânicos, Churchill compreendeu que se algo não fosse feito de maneira eficiente, os recursos vitais que os britânicos necessitavam para continuar a luta deixariam de chegar aos seus portos e faria com que aquele povo caísse de joelhos pela fome.

Submarinos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.

Mais de 1.150 formidáveis submarinos foram construídos na Alemanha durante a Segunda Guerra, sendo conduzidos por valentes marinheiros, singraram os sete mares levando o terror da sua presença em todas as partes. Hoje restam apenas cinco dessas máquinas e quatro delas são abertas ao público na Alemanha (2), Grã-Bretanha (1) e nos Estados Unidos (1). E é sobre o submarino que está na terra do Tio Sam que vamos comentar!

Ele é o antigo U-505, uma nave de guerra que comparativamente a outros submarinos na época, não alcançou grandes êxitos bélicos. Consta que foi sabotada, experimentou situações extremas e parece que o azar fez parte quase que permanente de sua carreira. Mas a história de sua captura em alto mar é uma das páginas mais intensas e interessantes de toda Segunda Guerra. Além do formidável esforço para sua preservação.

Visita Do Próprio BdU

O U-505 era um submarino alemão do Tipo IX-C, tendo sua construção se iniciado em 1940 na cidade de Hamburgo. O U-505 foi lançado ao mar em 25 de maio de 1941 e logo passou a fazer parte da marinha de Hitler. Oito meses depois sua tripulação concluiu seu treinamento de combate.

Kapitänleutnant Axel-Olaf Löwe – Fonte – https://uboat.net/

Foi designado como seu comandante o Kapitänleutnant Axel-Olaf Löwe (ou Loewe como querem alguns). Tinha 31 anos de idade, era natural da cidade portuária de Kiel, havia entrado na Marinha alemã em 1928, começou o treinamento em submarinos no final de 1940 e era considerado um líder nato, calmo e justo.

Aquele submarino começou sua primeira patrulha no final de janeiro de 1943, quando partiu do porto de Kiel e seguiu para sua base de operações no porto de Lorient, na França ocupada. Por 16 dias sua tripulação circundou ao norte das Ilhas Britânicas e depois tomaram rumo em direção sul. Atracaram no destino no dia 3 de fevereiro e se uniram à 2ª Flotilha de Submarinos.

O almirante alemão Karl Dönitz – Fonte – https://uboat.net/

Na sexta-feira, 6 de fevereiro de 1942, o almirante alemão Karl Dönitz se encontrava no porto de Lorient para inspecionar o submarino U-505 e todos os seus tripulantes, que ficaram em rígida formação no convés superior para saudar Dönitz, o Befehlshaber der Unterseeboote, ou BdU, o comandante supremo da arma de submarinos da Marinha alemã. 

Cinco dias após essa cerimônia, o comandante ordenou soltar os cabos de amarração, enquanto a ponte de comando se encontrava adornada com guirlandas de flores. Uma banda naval começou a tocar marchas militares e o público nas docas aplaudiu o U-505 e sua tripulação.

Bunkers de proteção de submarinos alemães, existentes até hoje na cidade francesa de Lorient – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Base_de_submarinos_de_Lorient

A nave de guerra seguiu para alto mar percorrendo o calmo Rio Blavet, acompanhado do submarino U-64 e de um caça minas como escolta. Aquele pequeno grupo de embarcações navegaram juntos até a altura da cidadela de Port-Louis, onde os dois submarinos tomaram rumo sul, para realizarem patrulhas de busca e destruição de navios mercantes Aliados na região da costa ocidental africana.

Após deixarem para trás Lorient, o comandante Löwe ordenou a Herbert Nollau, primeiro oficial de vigia, que as guirlandas de flores fossem jogadas na água, pois na tradição marítima, pelo menos na tradição marítima alemã, dava azar carregar flores em um barco.

Mal sabia Löwe e seus tripulantes que ao longo de sua trajetória, a falta de sorte seria uma constante no U-505!

Vitórias Em Alto Mar

Quando o U-505 passou pelo arquipélago português dos Açores, Löwe autorizou uma “ponte livre”, o que significava que os homens poderiam subir até o convés para bater papo, tomar banho de mar, sol e fumar. Na sequência, depois de passarem pelas Ilhas Canárias, o comandante ordenou “desligaram um motor e correram a meia velocidade para economizar combustível” e não chamar atenção. Chegaram à área de operações em 1º de março de 1942. Löwe tinha um comando independente em um submarino novo em folha, com dezenove torpedos a bordo e logo começaria a utilizá-los.

O SS Benmohr – Fonte – https://uboat.net/

Na noite de 5 de março o SS Benmohr, um navio a vapor britânico de 6.000 toneladas, que seguia sem escolta a caminho da Escócia, foi torpedeado e afundou a cerca de 210 milhas náuticas a sul-sudoeste de Freetown, capital de Serra Leoa. Toda a tripulação de 56 pessoas sobreviveu e foram resgatados por um hidroavião quadrimotor britânico Sunderland do 95 Squadron da RAF (Royal Air Force).

No dia seguinte, quase ao meio-dia, o MV Sydhav, um navio-tanque norueguês de 7.600 toneladas que também se encontrava a sudoeste de Freetown, foi atingido a estibordo por dois torpedos. O navio afundou rapidamente pela popa e alguns membros da tripulação, entre eles o comandante Nils O. Helgesen, saltaram no mar e foram puxados para baixo pela sucção. Um outro foi atacado por tubarões e desapareceu. O resto dos sobreviventes se amontoaram em duas jangadas e avistaram o submarino a cerca de 250 metros de distância. Os náufragos viram que o mensageiro chinês do Sydhav, que se agarrava a destroços na água, foi interrogado. Então os alemães partiram sem terem se aproximado das jangadas. Mais tarde os sobreviventes conseguiram resgatar o mensageiro, mas ele morreu em decorrência dos ferimentos. Löwe e alguns de seus tripulantes afirmaram que pretendiam ajudar os náufragos, mas surgiu um avião inimigo e eles submergiram. Dos 35 tripulantes do Sydhav, 12 morreram.

MV Sydhav – Fonte – https://uboat.net/

Mais tarde, em 28 de março, Löwe teve que mergulhar duas vezes para escapar de uma aeronave e de uma corveta que estavam escoltando um navio a vapor. O U-505 foi atacado com cargas de profundidade por quatro longas horas, mas Löwe escapou com um mergulho profundo de 600 pés (183 metros). O comandante observou durante o batismo de fogo do U-505 “a tripulação se comportou de maneira excelente”.

Löwe manteve o moral elevado por meio do seu estilo de comando, mantendo a tripulação informada de suas intenções, exercendo uma liderança leve em lugar de utilizar de aspereza para remediar os lapsos dos marinheiros e respeitando as tradições e superstições marítimas. Incluindo a tradicional e elaborada cerimônia do cruzamento da Linha do Equador, que o U-505 realizou pela primeira vez na terça-feira, 31 de março de 1942.

A festa ao cruzar a Linha do Equador é uma tradição muito antiga no meio naval – Fonte – https://theleansubmariner.com/2019/02/07/get-in-line-you-useless-pollywog-prepare-to-meet-king-neptune/

Mesmo no meio de uma guerra total, a tradição marítima exigia que a deferência adequada fosse dada a Netuno, o deus romano do mar, que deveria embarcar em todos os navios que cruzam a linha imaginária, na busca de desafortunados marinheiros que ainda não haviam “lhe pedido permissão para estar no seu oceano”. Um dos marinheiros mais experientes se fantasiava de Netuno e realizava suas “obrigações”, normalmente brincadeiras de terrível mal gosto contra os recrutas mais jovens, mas que deleitavam os veteranos. Tal como ocorreu com outros submersíveis alemães, essa festa aconteceu no convés do U-505, a luz do dia, mas com os vigilantes bem atentos na torre.

Em 3 de abril, o U-505 afundou o SS West Irmo e na noite seguinte foi a vez do SS Alphacca, ambos próximo ao litoral da Costa do Marfim.

O West Irmo era um navio a vapor americano escoltado pela corveta britânica HMS Corpinsay, que viajava de Lagos, na Nigéria, com destino a cidade de Nova York, Estados Unidos. O U-505 seguiu esse navio por 29 extenuantes horas, antes de atacá-lo por volta das 21:30. Os dois primeiros torpedos que ele disparou o contornaram inofensivamente, sem chamar a atenção de sua tripulação ou dos militares da corveta que o escoltava. Horas depois fizeram uma nova tentativa e obtiveram sucesso. O West Irmo só afundou no dia seguinte e dos 109 tripulantes, dez morreram.

Já o Alphacca era um navio mercante holandês sem escolta, de 6.000 toneladas, que Löwe afundou à noite com um torpedo G7a, em um ataque de superfície. O fato se deu depois dos alemães perseguirem esse navio por mais de sete horas, a cerca de 154 milhas ao sul de Cabo Palmas, Costa do Marfim. A maioria dos tripulantes e todos os passageiros abandonaram o navio em quatro botes salva-vidas, sem enviar um sinal de socorro e 14 membros da tripulação foram perdidos. O submarino emergiu depois e se aproximou para questionar os sobreviventes e fizeram perguntas sobre o nome, nacionalidade, carga e rota da embarcação. Mas também questionaram se eles tinham abastecimento e água suficientes? Depois de ajudar os sobreviventes do Alphacca, estes foram informados o curso e a distância para o Cabo Palmas e mutuamente desejaram boa sorte e boa viagem. Os botes salva-vidas então navegaram em direção à costa, mas um bombeiro morreu no dia seguinte e seu corpo foi entregue ao mar. Em 9 de abril, todos os quatro pequenos barcos com os náufragos desembarcaram a leste do Cabo Palmas. Löwe observou no Diário de Guerra do U-505 “Barcos bem equipados e abastecidos. A tripulação falava alemão. Ironia da guerra, lutamos contra homens que falam a nossa própria língua”.

SS Alphacca – Fonte – https://uboat.net/

Depois das quatro vitórias, o U-505 passou a ser bastante perseguido pela aviação antissubmarino britânica e em 21 de abril de 1942 Löwe anunciou que eles estavam voltando para Lorient. Chegaram no dia 7 de maio, depois de várias perseguições infrutíferas dos ingleses. Nessa patrulha o submarino afundou um total de 26.000 toneladas de naves inimigas, ao custo de 14 torpedos, dos quais oito atingiram seus alvos.

Retorno festivo de um submarino ao porto de Lorient – Fonte – Bundesarchiv – https://pt.wikipedia.org/wiki/Base_de_submarinos_de_Lorient

No Mar do Caribe

O terceiro cruzeiro operacional do U-505 (e o segundo cruzeiro de combate) começou em um domingo, 7 de junho de 1942, e seu destino foi o cálido Mar do Caribe.

Uma bússola quebrada nesta viagem causou problemas de navegação, mesmo assim, antes de chegar em sua área operacional, o U-505 afundou dois navios mercantes ao norte das ilhas Leeward, ou Ilhas de Sotavento. Eles foram o SS Sea Thrush, em 28 de junho, e o SS Thomas McKean um dia depois.

O Sea Thrush – Fonte – https://uboat.net/

Sea Thrush era um cargueiro americano de 6.900 toneladas, que realizava sua viagem com carga geral e material de guerra, incluindo munições e aeronaves. Partiu da Filadélfia para a Cidade do Cabo, a capital da África do Sul, via a ilha de Trinidad. No começo da noite Löwe o atingiu com dois torpedos a cerca de 425 milhas a nordeste de San Juan, Porto Rico. Uma hora depois a tripulação evacuou e o comandante alemão acabou com o navio utilizando um terceiro torpedo. Todos os quarenta e um tripulantes, quatorze passageiros do Exército dos Estados Unidos e onze membros da Marinha americana sobreviveram em quatro botes salva-vidas.

Thomas McKean em chamas, fotografado pela tripulação do U-505 – Fonte – https://uboat.net/

Já o Thomas McKean era outro navio americano, de 7.400 toneladas e recém lançado ao mar. Partiu de Nova York para sua viagem inaugural até o Golfo Pérsico levando uma carga de aviões, tanques e outros suprimentos de guerra para a União Soviética. Foi atingido por dois torpedos e depois que a tripulação baixou os botes salva-vidas, Löwe terminou o serviço no Thomas McKean com 72 disparos do canhão de quatro polegadas do convés do U-505. A tripulação alemã tirou fotos do navio em chamas, de um barco salva-vidas e deu aos náufragos suprimentos médicos e instruções para navegarem para terra, a 360 milhas náuticas de distância. Quatro, dos 59 tripulantes, morreram quando o Thomas McKean afundou e, dos quatro botes salva-vidas que deixaram a área do sinistro, dois foram resgatados em quatro dias, um chegou à costa após sete dias e o último alcançou as praias após nove dias.

Náufragos do Thomas McKean, igualmente fotografados pelo pessoal do U-505 – Fonte – https://uboat.net/

Pelos próximos 23 dias o U-505 circulou por uma grande área do Mar do Caribe em busca de presas. Passou ao sul da Colômbia, Panamá, ao sul das belas ilhas de Bonnaire, Curaçao e Aruba. Depois se aproximou do litoral venezuelano, bem como do litoral da Colômbia, Panamá e Nicarágua. Em outros momentos adentrou mais o Mar do Caribe, sempre vasculhando atrás de vítimas. Então, as três da tarde de 22 de julho de 1942, algo surgiu no horizonte a 12 graus, 24 minutos de latitude norte e 81 graus, 28 minutos de longitude oeste.

Destruindo Um Veleiro

Era uma escuna de três mastros chamada Urios, mas que recentemente havia sido rebatizada de Roamar (o que causa confusão entre os pesquisadores) e deslocava 400 toneladas. Era registrada na cidade de Barranquilla, Colômbia e foi visualizada a doze milhas náuticas a noroeste de Cayo Bolivar, na ilha colombiana de San Andréas.

Löwe ordenou que o segundo oficial de vigia Gottfried Stolzenburg desse um tiro de advertência sobre a proa, porque o veleiro não tinha bandeira e se movia em ziguezague, tal como um navio que estava tentando evitar torpedos. O problema foi que o primeiro tiro do U-505 destruiu o mastro principal da escuna, que estava desarmada. O pânico se instalou, com seu mastro e velas caindo sobre seus decks elegantes como uma tenda gigante.

Interior da sala de torpedos do U-505.

Mas a escuna não parava, então Löwe ordenou outro par de tiros de advertência, momento em que a tripulação içou uma bandeira identificada como sendo da Colômbia. Mesmo assim a escuna não parava. Löwe manobrou o U-505 para interceptar o veleiro, mas em vez de chegar próximo, ele mudou de curso e de ideia e ordenou que afundassem aquele barco.

Segundo narrativas da tripulação do U-505, o primeiro tiro direto no casco do veleiro foi todo o convencimento de que a tripulação de língua espanhola precisava para abandonar seu barco. Os alemães afirmaram que esperaram até que a tripulação, “quase histérica” na opinião dos submarinistas, estivesse bem longe da escuna e voltaram a abrir fogo. Deram mais de vinte disparos e não demorou para que o canhão de convés transformasse aquele barco de 400 toneladas em palitos de fósforo. 

Consta que a tripulação alemã se “divertiu muito com o ataque”, mas prontamente Löwe percebeu que aquilo foi um grande erro. O comandante ordenou imediatamente saírem daquela área, presumindo que o veleiro tivesse tido tempo de sobra para comunicar a presença do submarino pelo rádio.

Enfermaria do U-505.

E os problemas realmente iriam começar para o U-505. E de várias maneiras!

Primeiramente a Colômbia não era uma nação que havia declarado guerra à Alemanha e, para piorar a situação, o veleiro era propriedade de um diplomata colombiano. Seu afundamento, embora pudesse ser considerado em tempo de guerra perfeitamente legal, forneceu a base política para a Colômbia declarar guerra contra a Alemanha! 

Some a isso o fato dos tripulantes jamais serem vistos novamente. Sobre essas vítimas consta que haveria quatro mulheres entre os desaparecidos e, dependendo das fontes pesquisadas, o número final de pessoas que estavam a bordo e sumiram para sempre após o ataque, varia de uma dúzia a 24.

O certo é que, coincidência ou não, a partir desse momento a situação do U-505 nas mãos dos alemães jamais foi positiva.

Material de detectação do submarino U-505.

Parece até que Netuno, o Rei dos Oceanos, se irritou profundamente com o fato daquele moderno submarino atacar um veleiro indefeso, com a alegria dos submarinistas com aquela ação e com o desaparecimento dos tripulantes. Supersticiosos como só os marinheiros podem ser, para muitos tripulantes do U-505 os infortúnios posteriores do submarino foram atribuídos ao afundamento daquela escuna.

Começo Do Azar

Logo após o ataque ao barco colombiano o comandante Axel-Olaf Löwe ficou gravemente doente. Sua condição física piorou dramaticamente nos dias seguintes e começou a afetar seu desempenho. E para piorar o quadro o comandante Löwe não conseguia afastar a sensação de que havia cometido um erro tremendo.

Na sexta-feira, 31 de julho de 1942, Löwe solicitou permissão para interromper seu cruzeiro de guerra e retornar ao porto devido à sua doença. Um dia depois o comando alemão ordenou a volta do U-505 a Lorient, mas antes ele entregou parte do combustível e suprimentos a outro submarino. Demoraram quase um mês para completar o trajeto e quase não chegaram, pois ataques de aviões britânicos ao U-505 aumentaram quando ele se aproximou do Golfo da Biscaia.

Interior do U-505 nos dias atuais.

Dois dias depois que voltou à base, Löwe foi submetido a uma apendicectomia. O atendimento médico aliviou a ameaça à sua vida, mas a dor física que ele suportou não era nada comparado à angústia emocional que ele viveu com o naufrágio daquela maldita escuna de três mastros. Por alguma razão alguém nas altas esferas do Reich alemão, que não descobri quem era, não gostou nem um pouco da atitude de Löwe em relação ao naufrágio do veleiro colombiano. Ele foi sumariamente dispensado do comando do U-505 e designado para o serviço em terra.

A situação de Löwe só não se transformou em uma catástrofe total, porque o próprio almirante Dönitz reconheceu os talentos do capitão e providenciou para que ele fosse incluído em sua equipe. Depois, entre julho de 1944 a abril de 1945, Löwe foi designado como um elemento de ligação naval no Ministério de Armamentos e Produção em Berlim, sob o comando de Albert Speer. Ele terminou a guerra na região de Schleswig-Holstein, servindo em um regimento naval antitanque próximo a Kiel, sua cidade natal. Sobreviveu e foi detido após a rendição, sendo libertado em 30 de dezembro de 1945. Faleceu no final do ano de 1984.

Já o que aconteceu depois com o U-505, foi bem mais estranho!

Oberleutnant zur See Peter Zschec – Fonte – https://uboat.net/

Após a exoneração de Löwe, assumiu o comando no dia 6 de setembro de 1942 o Oberleutnant zur See Peter Zschec. Ele tinha 25 anos de idade, começou o treinamento de submarinos em outubro de 1940 e foi designado para o U-124, comandado por Johann Mohr. Durante sua permanência na nave de Mohr, o jovem Zschec presenciou o afundamento de 22 navios inimigos e três outros foram danificados. Com toda essa bagagem e experiência, o jovem oficial foi enviado para a escola de comandantes de submarinos e o alto comando acreditava que grandes coisas seriam realizadas por Peter Zschech. 

Mas ele não correspondeu a essas altas expectativas e, de acordo com muitos relatos, não era querido por sua tripulação. Consta que Zschech foi descrito como um comandante duro, ambicioso em seu primeiro comando, indiferente ao moral dos seus homens e muito mal-humorado.

A sua primeira patrulha, de 69 dias, transcorreu em parte sem incidentes e Zschech conseguiu afundar seu único navio, o mercante britânico Ocean Justice, de 7.173 toneladas. Esse navio transportava 600 toneladas de minério de manganês como lastro e fazia a rota Karachi (Paquistão), Durban (África do Sul), ilha de Trinidad e Nova York, sendo destruído ao largo da l. Toda tripulação de 56 pessoas foi salva por barcos Aliados. 

Um Lockheed Hudson da RAF. O Brasil também utilizou modelos dessa aeronave.

Na sequência, em 11 de novembro de 1942, o submarino foi fortemente danificado por um ataque aéreo no Mar do Caribe. O impacto direto no convés de proa de uma bomba de 250 libras, lançada por um avião bombardeiro bimotor Lockheed Hudson vindo de Trinidad, arrancou o canhão do barco e rompeu gravemente o casco. O impacto foi tão estupidamente forte que o avião atacante, pilotado pelo sargento de voo australiano Ronald Rashleigh Sillcock, do 53 Squadron do Comando Costeiro da RAF, simplesmente caiu no mar. Sillcock e outros quatro tripulantes morreram diante dos atônitos marinheiros do U-505.

O sargento de voo australiano Ronald Rashleigh Sillcock, que quase afundou o U-505, mas morreu no ataque – Fonte – https://www.awm.gov.au/collection/C1277868

Zschech ordenou que seus homens abandonassem o navio, mas seus oficiais recusaram a ordem e conseguiram manter a nave à tona. A após uma verdadeira maratona, o U-505 voltou mancando para Lorient, onde chegou em 12 de dezembro, dando a nave a honra mista de ser o submarino mais danificado em combate a retornar com sucesso ao seu porto durante a guerra. A paulada levada pelo submarino foi tão grande, que os reparos demoraram seis meses. 

Sabotagens e Suicídio a Bordo

Quando Zschech novamente tentou levar o U-505 para o mar, repetidas falhas mecânicas o forçaram a voltar para reparos depois de apenas alguns dias de navegação. Isso aconteceu seis vezes consecutivas, geralmente devido à sabotagem dos trabalhadores do estaleiro francês.

Como o U-505 ficou após o ataque do sargento Sillcook.

Mesmo assim essa situação fez com que o U-505 se tornasse alvo de inúmeras piadas por sua ineficácia no combate. Diziam que enquanto alguns submarinos estavam acumulando totais de tonelagem impressionantes e outros estavam sendo afundados com toda sua tripulação, o U-505 nem tinha conseguido deixar o Golfo de Biscaia em quase um ano. Durante quase 14 meses no comando, Zschech passou apenas 96 dias no mar durante seis patrulhas. A principal piada sobre o comandante do U-505 era que, enquanto muitos outros submarinos estavam sendo afundados… “há um capitão que sempre voltará para casa … Zschech”. O U-505 também ficou conhecido como um Werftbock (cabra de doca seca). Naturalmente, isso teve um impacto deletério no moral de Zschech e de sua tripulação.

Para piorar o clima geral, mesmo sabendo que os fracassos do U-505 foram obras de sabotagem, para muitos marinheiros alemães em Lorient, o azar havia impregnado o casco daquele submarino e nada mais poria aquela nave nos eixos. O certo é que os membros da tripulação do U-505 começaram a comentar com colegas de outros submarinos seus infortúnios e mostravam o temor do que poderia acontecer.

Com cada mau funcionamento, o comportamento do comandante Zschech tornou-se mais errático, alternando entre introversão taciturna e explosões sádicas de agressão.

O comandante Zschech na torre do U-505 em Lorient

Mas o pior estava por vir!

Em 10 de outubro de 1943, o U-505 finalmente conseguiu deixar Lorient com sucesso. Depois de apenas 14 dias, o submarino chamou a atenção de um par de contratorpedeiros Aliados enquanto emergia a leste dos Açores. O U-505 sofreu um forte ataque de cargas de profundidade concentrada, um procedimento muito comum para tripulações de submarinos alemães neste ponto da guerra. Mesmo assim Peter Zschech desabou de vez, sofreu um colapso nervoso e tirou a própria vida na sala de controle do barco com um tiro na cabeça de uma pistola Luger (alguns afirmam que a pistola era uma Walter PPK). 

O certo é que Zschech ganhou notoriedade como primeiro (e até agora único) comandante de submarino a cometer suicídio enquanto estava no comando ativo de uma embarcação debaixo d’água. O oficial Paul Mayer, com 26 anos de idade, assumiu o comando, evitou os perseguidores e devolveu o barco a Lorient em 7 de novembro de 1943.

O suicídio do seu comandante devastou o moral dos tripulantes do U-505. Mas o almirante Dönitz não dispersou a tripulação por outros submarinos, temendo que a boataria sobre esse episódio logo se espalhasse e gerasse um forte efeito negativo no moral da frota.

Dönitz chamou então um velho lobo do mar para colocar ordem naquela verdadeira zona que havia se tornado o U-505.

“Irmão Mais Velho”

O Oberleutnant zur See Harald Lange tinha 40 anos de idade quando assumiu esse comando, sendo na época um dos oficiais mais velhos na Unterseebootswaffe (Frota de Submarinos). 

Oberleutnant zur See Harald Lange .

Lange era um homem fisicamente imponente, que tinha quase dois metros de altura e possuía uma voz de barítono. O novo comandante do U-505 nasceu em Hamburgo no dia 23 de dezembro de 1903 e antes da Segunda Guerra era capitão de um navio da Linha Hamburgo-Americana. Continuou a trabalhar na marinha mercante até ser chamado para o serviço ativo em 1939. Seu primeiro comando foi um barco caça minas, depois assumiu um barco patrulha no Mar Báltico, onde danificou um submarino inglês em um combate noturno. No final de 1941 se juntou a frota de submarinos.

Lange era um homem mais maduro do que a maioria dos comandantes de submarinos alemães, que na sua atividade em navios mercantes aprendeu a lidar com marinheiros, ganhando confiança e exercendo liderança. Não sendo um oficial naval profissional, talvez fosse mais tolerante com as fragilidades humanas do que um rígido oficial da Marinha alemã, embora não mimasse seus homens e insistisse que coisas importantes fossem feitas exatamente da maneira certa. Mas ele entendia o que a tripulação do U-505 havia passado, era informal em seus tratos com eles e fazia concessões nas pequenas coisas. Lange se tornou um tipo de “irmão mais velho”, que era exatamente o que essa equipe precisava se quisesse se manter unida.

O comandante Lange, de quepe branco, junto a tripulação do U-505 – Fonte – https://www.msichicago.org/

A primeira experiência de Lange a bordo de um submarino foi como oficial de guarda do U-180, que tinha como comandante o Korvettenkapitän Werner Musenberg. Neste submarino Lange participou de uma missão bastante diferente para a maioria dos submarinos alemães na Segunda Guerra.

O U-180 era um modelo quase único, um submarino de longo alcance, com parte de sua estrutura interna removida para criar um compartimento para carga extra. Nesta missão, essa nave partiu da Alemanha com correio diplomático para a embaixada alemã em Tóquio, projetos de motores a jato, materiais técnicos para os militares japoneses, duas toneladas de ouro e dois passageiros indianos. Um deles era Subhas Chandra Bose, um ativista que lutava pela liberdade da Índia do julgo britânico e contava com o apoio dos nazistas. Bose deu meia volta no mundo a bordo do U-180 para retornar secretamente a sua terra e buscar insuflar a revolta do povo hindu contra os britânicos e conseguir a independência. Em 27 de abril de 1943 o U-180 realizou um encontro no Oceano Índico com o submarino japonês I-29, que recebeu os ativistas para levá-los a Sumatra e os preciosos materiais para o Japão. Aquela missão foi altamente secreta, tendo sido cumprida de forma excepcional e o U-180 ainda afundou dois navios de carga aliados no seu trajeto para a França.

Última Patrulha

Logo o U-505 foi para o mar!

Exemplo de um submarino partindo para o Oceano Atlântico – Fonte – Bundesarchiv – https://pt.wikipedia.org/wiki/U-108#/media/Ficheiro:Bundesarchiv_Bild_101II-MW-3956-05A,_Frankreich,_Lorient,_U-107.jpg

Entre o dia 20 e 21 de dezembro de 1943, aquele complicado submarino partiu em um novo cruzeiro de guerra, mas tal como nas outras vezes, retornou a Lorient por causa de um vazamento em seu primeiro mergulho prático. Parecia que nada dava certo naquela nave!

Finalmente no sábado, 25 de dezembro de 1943, em pleno dia de Natal, o U-505 deixou novamente Lorient, apenas para no dia 28 seguir para resgatar sobreviventes do barco torpedeiro alemão T-25, que tinha sido afundado na Baía de Biscaia durante uma batalha entre torpedeiros alemães e destroieres britânicos. Depois de emergir para conduzir uma busca de cinco horas de duração, o U-505 recolheu 34 sobreviventes, de nove botes salva-vidas. O submarino então se dirigiu para o porto francês de Brest, quando na manhã do dia 30 de dezembro foi atacado por um avião inglês que lançou duas bombas. O ataque alarmou e sacudiu os homens da frota de superfície, mas a tripulação do U-505 levou a coisa toda na maior indiferença. Mas o ataque atingiu o eixo de uma das hélices, o que dificultou a navegação.

Quando chegaram a Brest uma barcaça cheia de correspondentes de guerra veio até o submarino para cobrir a história do resgate. Aí do nada, enquanto os jornalistas estavam a bordo do U-505, ocorreu um incêndio elétrico!

Fogo em um submarino alemão – Fonte – https://en.wikipedia.org/wiki/German_submarine_U-515

Os jornalistas estavam obtendo algumas imagens internas do submarino, quando inesperadamente um clarão cegante, semelhante a um relâmpago, irrompeu da sala do motor elétrico. Um enorme raio branco-azulado de eletricidade estava saindo e uma grande nuvem de fumaça branca, que se transformou em uma fumaça negra e malcheirosa, exalava do motor. Essa dramática exibição elétrica causou pânico imediato entre os jornalistas, que correram como um rebanho de gado assustado em direção à sala de controle. Os sobreviventes do barco de patrulha T-25 juntaram-se a eles quando a nuvem de fumaça sufocante começou a invadir o barco. O fogo foi logo controlado e o submarino foi para o estaleiro.

Somente em 16 de março de 1944, depois de dez semanas em Brest, o U-505 partiu para a sua décima segunda e última patrulha! 

Para essa saída ao mar a tripulação do U-505 era composta de 59 homens, sendo cinco oficiais, 17 suboficiais e 37 recrutas não qualificados. Sua área operacional deveria ser ao largo da costa oeste da África, na região da cidade portuária de Freetown. Mas devido a ação dos aviões britânicos de caça de submarinos, o U-505 levou doze dias para atravessar o Golfo da Biscaia.

Visão a partir de um periscópio de um submarino – Fonte – http://www.spiegel.de/

Na sua área de patrulha o submarino não encontrou alvos durante um mês inteiro e o único barco que visualizou foi um navio de passageiros de 9.000 toneladas do neutro Portugal. Nesse meio tempo, como era normal com aquela nave, vários sistemas mecânicos quebraram e Lange poderia ter retornado à base, mas preferiu mandar consertá-los no mar. Os tripulantes do U-505 não tinham mais certeza se aqueles fatos eram exemplos de sabotagem, sinais de queda na qualidade do material de guerra, ou definitivamente aquele barco estava amaldiçoado.

Em 30 de maio de 1944 Lange definiu o curso para leste, em direção à África Ocidental Francesa. Percorreu 84 milhas em 42 horas, antes de mudar o curso de volta para o norte. Na manhã do dia 4 de junho, o U-505, continuava cruzando os mares da África Ocidental em busca de oportunidades para enviar navios aliados para o fundo do oceano. Em dado momento, de forma inesperada, cargas de profundidade vindas do navio da Marinha dos Estados Unidos USS Chatelain explodiram.

O Submarino Está Subindo!

Embora acertar o submarino com cargas de profundidade tenha sido um golpe de sorte, nessa época os serviços de inteligência dos Aliados já haviam conseguido decifrar mensagens e informações que permitiram à Marinha dos Estados Unidos aprimorar-se na caça dos submarinos inimigos.

O Uss Pillsbury, um dos navios que atacou o U-505 – Fonte – US Navy

Foi descoberto que um grupo de submarinos alemães estavam conduzindo uma operação de caça e destruição de navios mercantes Aliados próximo as ilhas de Cabo Verde. A Marinha americana então enviou um grupo de navios para capturar e destruir esses submarinos. O grupo era comandado pelo comandante Daniel V. Gallery, a bordo do porta-aviões USS Guadalcanal. Ele estava acompanhado por cinco destroieres, que operavam sob o comando do capitão Frederick S. Hall. Esses navios eram o USS Pope, USS Jenks, USS Pillsbury, USS Flaherty e o já comentado destroier Chatelain. Esse grupo de navios foi denominado United States Navy Task Group 22.3 (TG 22.3). 

Os membros dessa flotilha embarcaram do porto de Norfolk, na Virgínia, em 15 de maio de 1944 e no final do mês suas tripulações começaram a missão de localizar e destruir os submarinos inimigos na costa ocidental africana. Eles estavam equipados com tecnologia de sonar de localização de alta frequência chamado “Huff Duff” e foram auxiliados pelo reconhecimento aéreo proporcionado por duas esquadrilhas do Guadalcanal, sendo uma formada por aeronaves Grumman F4F Wildcat e outra de Grumman TBF Avenger.

O USS Guadalcanal sendo sobrevboado por um Grumman TBF Avenger – Fonte – https://www.navsource.org/archives/03/0306014.jpg

Pouco antes de meio-dia de 4 de junho, através do contato de sonar o grupo de destroieres encontrou um alvo. Estavam à aproximadamente 150 milhas (280 km) de distância da costa da antiga colônia espanhola de Rio de Oro, que atualmente corresponde ao Saara Ocidental.

Logo a nave nazista ficou a apenas 800 jardas (700 metros) a estibordo da proa do destroier Chatelain. Toda a força naval americana respondeu rapidamente ao chamado de ação e se moveram em direção ao submarino. O Guadalcanal lançou um F4F Wildcat para se juntar a outro F4F e um TBF Avenger que já estavam patrulhando. Surpreendentemente quando o Chatelain partiu para atacar o submarino, ele estava tão perto que suas cargas de profundidade não puderam cair com rapidez suficiente para atingir o submersível. Felizmente aqueles caçadores de submarinos sabiam exatamente o que fazer.

Ao passar sobre o U-505 a tripulação disparou morteiros antissubmarino “Hedgehog” e retornaram para realizar um ataque de acompanhamento. Enquanto o Chatelain se posicionava, uma aeronave avistou a nave alemã e marcou sua posição. O Chatelain novamente lançou suas cargas de profundidade, atingindo o submarino e fazendo com que ele vazasse óleo combustível abundantemente. Um dos pilotos na área transmitiu pelo rádio a seguinte informação para a tripulação do destroier – “Você descobriu petróleo! O submarino está subindo!”. 

Corrida Para Salvar o Submarino

O ataque foi rápido e produtivo. O tempo total necessário para forçar o submarino subir à superfície foi de pouco menos de sete minutos. O U-505 emergiu a cerca de 700 jardas (640 metros) do Chatelain, fortemente danificado e sem opções de defesa. Nesse momento tudo que pertencia a Marinha dos Estados Unidos e estava na água e no ar abriu fogo com todas as suas armas contra o submarino.

U-505 estava com pouca eletricidade e sendo destruído. O comandante Lange acreditava que não havia como o submarino sobreviver ao ataque e então ordenou que sua tripulação abandonasse a nave. Mas quando sua ordem foi dada, seus homens não seguiram o protocolo adequado de destruírem a embarcação ao abandoná-la. Algumas das válvulas foram deixadas abertas para entrar água do mar, mas não foi o suficiente para o submarino afundar e, para cúmulo do azar e piorar a situação, os alemães deixaram os motores funcionando em marcha lenta. 

O U-505 navegando em círculos e abandonado – Fonte – https://uboat.net/

O resultado foi que o U-505, que teve o leme danificado pelas cargas de profundidade, começou a circular lentamente no sentido horário a velocidade de aproximadamente 7 nós (13 km/h). Nesse meio tempo o comandante do Chatelain viu o submarino virando para seu navio e pensou que ela estava prestes a atacar, então ordenou que um único torpedo fosse disparado. Por sorte a tripulação do Chatelain errou o U-505 vazio. Depois desse erro, os caçadores perceberam que o submarino havia sido abandonado e o Chatelain e o Jenks começaram a resgatar os sobreviventes.

O comandante Daniel V. Gallery ordenou que um grupo de embarque de oito homens do destroier Pillsbury, comandados pelo tenente Albert Leroy David, buscassem evitar que o submarino afundasse, garantindo sua captura para os serviços de inteligência dos Estados Unidos, que assim poderia descobrir os segredos dos temidos submarinos alemães.

O grupo de tenente Albert invadindo o submarino

Leroy David e seu grupo conseguiram abordar o submarino em uma corrida no meio do oceano e subiram na torre de comando. No convés eles encontraram o corpo do sinaleiro de primeira classe Gottfried Fischer, a única fatalidade do combate, e o U-505 completamente vazio de gente. 

A tripulação americana que se infiltrou no U-505, interrompeu os vazamentos fechando as válvulas de escape e mantiveram o submarino flutuando, mesmo com uma boa quantidade de água no seu interior. Eles também desligaram os motores e começaram a trabalhar para proteger o que havia dentro e fosse útil para o pessoal da inteligência. O grupo descobriu gráficos, livros de códigos difíceis de encontrar e desarmou as cargas de demolição que haviam sido plantadas pelos submarinistas em fuga, mas que, outro azar dos germânicos, não funcionaram!

A esquerda vemos o comandante Daniel V. Gallery, junto ao tenente Albert L. David, fotografados a bordo do USS Guadalcanal em junho de 1944. O tenente Albert foi condecorado postumamente com a Medalha de Honra do Congresso, a mais alta condecoração militar dos Estados Unidos, por ter liderado o grupo de abordagem que invadiu o U-505. Ao final da Guerra, pouco antes de ocorrer a cerimônia de entrega da medalha na Casa Branca, em Washington, o tenente Albert morreu de um ataque cardíaco. Sua esposa recebeu a comenda das mãos do presidente Harry S. Truman – Fonte – US Navy.

O próximo passo do comandante do Pillsbury foi tentar rebocar o submarino de volta para as proximidades do porta aviões Guadalcanal, o maior navio daquela pequena frota. Infelizmente o U-505 colidiu com o destroier repetidamente e o Pillsbury teve que se afastar com três compartimentos inundados. 

O U-505 ao lado do USS Pillsbury – Fonte – https://uboat.net/

Depois que o reboque inicial falhou, um segundo grupo de embarque foi enviado do Guadalcanal pelo comandante Gallery e conseguiram colocar um cabo de reboque do porta-aviões para o submarino e começaram a arrastar a nave alemã até um local seguro. 

O engenheiro chefe do Guadalcanal, comandante Earl Trosino, encontrou uma forma para que as hélices do U-505 girassem através do deslocamento da água proporcionado pelo reboque e isso regenerou as baterias do submarino. Consequentemente foi possível bombear para fora a água do mar e os compressores de ar começaram a encher os tanques de lastro. O resultado final foi o submarino totalmente emerso na superfície.

O U-505 sendo atado ao porta aviões Guadalcanal – Fonte – https://uboat.net/

Depois de ser rebocado por três dias, o comandante Gallery ordenou que o submarino fosse transferido para o rebocador da frota USS Abnaki, onde conseguiu chegar no dia 19 de junho a Port Royal Bay, nas Bermudas, após ter percorrido 1.700 milhas náuticas (3.150 km). O U-505 era a primeira captura da Marinha dos Estados Unidos em mais de um século, tendo a última ocorrido durante a guerra de 1812. Além disso esse submarino inimigo foi um dos seis que foram capturados pelas forças Aliadas durante toda Segunda Guerra Mundial.

Benefícios e Uma Quase Punição

Junto com o submarino, quase 60 prisioneiros foram entregues nas Bermudas. Depois esses homens foram internados em Camp Ruston, na Louisiana. 

Quando ainda estavam detidos, alguns dos prisioneiros alemães aprenderam a jogar beisebol com os guardas americanos, que eram membros de um time de beisebol da Marinha. Enquanto os prisioneiros nazistas estavam aprendendo um esporte americano, a Marinha dos Estados Unidos estava aprendendo os segredos internos do U-505

Material capturado do U-505, no hangar do USS Guadalcanal – Fonte – https://uboat.net/

Além dos mapas, livros atualizados de códigos de coordenadas, um livro de códigos curtos e, o maior dos prêmios, os americanos conseguiram capturar intacta uma máquina decifradora conhecida como “Enigma”. Todas as informações conseguidas nessa abordagem foram divididas com os britânicos e uma equipe de criptografia começou a trabalhar no material recém capturado.

Aquele material forneceu uma vantagem perfeita para os Aliados. Usando documentos recuperados do submarino, a Marinha dos Estados Unidos despachou navios para as localizações dos submersíveis e navios de guerra da Marinha alemã e assim destruí-los. Além disso as rotas de transporte de suprimentos foram cuidadosamente planejadas para minimizar os danos que os alemães poderiam causar aos barcos Aliados.

Prisioneiros do U-505, no USS Guadalcanal – Fonte – https://uboat.net/

Embora os benefícios de curto prazo fossem cruciais, a captura do submarino em si trouxe capacidades de longo prazo para defender adequadamente os navios de guerra contra os submarinos nazistas. Os torpedos do U-505 eram do tipo acústicos e foram dissecados e testados. Isso permitiu a criação de um sistema de contra-ataque capaz de combater mais eficazmente as naves submersíveis alemãs.

Surpreendentemente, mesmo com a captura do submarino, chegou-se a cogitar uma punição ao comandante Gallery! 

O controverso almirante Ernest J. King, Chefe de Operações Navais dos Estados Unidos, considerou uma corte marcial ao comandante Gallery, porque ele rebocou o U-505,em vez de afundá-lo após capturar os livros de código e a máquina “Enigma”. King acreditava que o reboque tenha levado a possíveis vazamentos de informações e isso poderia ocasionar sabotagens dos nazistas.

Ernest J. King

Ernest King serviu 55 anos na ativa na Marinha dos Estados Unidos, uma das carreiras mais longas já registradas para esse serviço. Foi o único homem que já ocupou simultaneamente os cargos de Chefe de Operações Navais e Comandante-em-chefe da Frota daquele país, tornando-o um dos oficiais mais poderosos na história daquela força naval. King era altamente inteligente e extremamente capaz, mas controverso e difícil. A sua propalada franca honestidade e seu temperamento explosivo, fizeram com que ele angariasse vários inimigos, deixando um legado misto. Por exemplo, o general Dwight D. Eisenhower, Comandante em Chefe das Forças Aliadas na Europa, reclamou em seu diário particular que o almirante King era “um tipo arbitrário e teimoso, com pouco cérebro e uma tendência a intimidar os mais novos”. Era amplamente respeitado por sua habilidade, mas não era apreciado por muitos dos oficiais que comandava. Existem insinuações que King chegou mesmo a utilizar do seu poder para tentar conquistar mulheres de seus oficiais inferiores. Ainda sobre essa figura, Franklin D. Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos durante maior parte da Segunda Guerra, certa vez descreveu King como “um homem que faz a barba todas as manhãs com um maçarico”.

Jornal americano da época noticiando a captura.

A ideia maluca de punição do almirante King não prosperou e a iniciativa de salvar o submarino foi muito elogiada, abrindo o caminho para o competente comandante Daniel V. Gallery receber uma promoção de almirante.

Salvo Em Um Museu

Para garantir ainda mais o segredo, a tripulação do U-505 foi completamente isolada. Eles não viram nenhum outro prisioneiro durante seu tempo de cativeiro e até mesmo a Cruz Vermelha teve o acesso negado a eles. Mas a aposta valeu a pena, pois a Alemanha declarou a morte da tripulação do submarino e informou as famílias. Os prisioneiros só seriam libertados e voltariam para casa em 1947.

O U-505 junto a um navio da Marinha americana.

O U-505 ficou na Base Operacional Naval dos Estados Unidos nas Bermudas e os oficiais e engenheiros da inteligência da Marinha o estudaram intensamente. Para manter a ilusão de que a nave alemã havia sido afundada, em vez de capturada, ela foi pintada para se parecer com um submarino americano e rebatizado como USS Nemo. A marinha removeu o periscópio da nave alemã e o colocou em um tanque de água usado para pesquisas em um laboratório em San Diego, na Califórnia.

Após as análises, o U-505 foi utilizado como máquina de propaganda e promoveu entre a população americana a venda de bônus de guerra. Em junho de 1945 o submarino visitou as cidades de Nova York, Filadélfia, Baltimore e foi até a capital Washington. Qualquer cidadão que comprasse um bônus de guerra, tinha direito a embarcar e conhecer o submarino. 

Após o fim do conflito a marinha fez pouco uso do submarino e ele ficou esquecido no Estaleiro Naval de Portsmouth, New Hampshire. Então ficou decido utilizá-lo como alvo de seus navios de guerra, até que afundasse. Mas o agora contra almirante Daniel V. Gallery se opôs aos planos sobre o destino do U-505. Ele comentou o caso com um irmão, um religioso influente, que conhecia Lenox Riley Lohr, o diretor do prestigioso MSI – Museum of Science and Industry (Museu de Ciência e Indústria) de Chicago. Lohr foi contatado para saber se a instituição que dirigia, gostaria de receber o famoso U-505. A resposta foi um eloquente “sim”!

Em setembro de 1946 decidiu-se que o governo dos Estados Unidos doaria o submarino ao museu e logo começou uma campanha junto aos habitantes de Chicago para arrecadar dinheiro para transportar o submarino e preparar o museu para recebê-lo. Conseguiram 250.000 dólares.

O U-505 nos Estados Unidos na década de 1950 – Fonte – https://uboat.net/

Em Chicago o pessoal do MSI descobriu que quase todas as partes removíveis haviam sido arrancadas do interior do U-505 e ele não estava em condições de servir para uma exposição. O diretor Lohr então contactou as empresas alemães que originalmente forneceram peças para a fabricação da nave e solicitou aos fabricantes que fornecessem os mesmos componentes e peças originais do submarino. Consta que todas as empresas não negaram apoio e forneceram as peças solicitadas gratuitamente. Desejavam assim que aquelas peças e o submarino servissem para mostrar a capacidade da tecnologia alemã.

O U-505 nos dias atuais. Reparem no buraco de um disparo de canhão na torre, ocasionado no dia de sua captura – Fonte – https://www.msichicago.org/

Em 25 de setembro de 1954, o submersível capturado tornou-se uma exposição permanente no MSI e foi criado um memorial para todos os marinheiros que perderam suas vidas na Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Vinte anos após a captura do U-505, em meio a uma reunião realizada no museu que uniu antigos inimigos, o almirante Daniel Gallery devolveu ao comandante Harald Lange um par de binóculos que lhe pertencera. Lange faleceu em 1967 e Gallery dez anos depois.

Recordam do periscópio que foi removido do U-505 e levado para San Diego? Pois bem, ele ficou esquecido por lá durante décadas, mas em 2003 foi reencontrado e a Marinha o doou ao museu para ser exibido junto com o submarino.

Torre do U-505 nos dias atuais – Fonte – https://www.msichicago.org/

Em 2004, o exterior do U-505 havia sofrido danos perceptíveis pelo tempo. O museu então o mudou para um novo local climatizado em abril de 2004. Eles o restauraram e reabriram ao público em 5 de junho de 2005.

Em 2019, o Museu da Ciência e Indústria reformou a antiga nave, restaurando-o para ficar mais próximo de sua condição original e uma exposição especial com muitos artefatos adicionais foi aberta.

E o submarino U-505 está lá no MSI, tendo voltado a receber visitantes em 2021, após grande parte do público americano já ter sido vacinados contra o Covid-19.

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FONTES

https://www.thevintagenews.com/2016/01/31/50264/?fbclid=IwAR20jMvads0WpMU0ctv0dG4hgPmcRnWnSGxYsPllx2kbq-kFdvaBwds8H-

https://deanoinamerica.wordpress.com/2014/03/22/u-505-das-booot

https://deanoinamerica.wordpress.com/2014/03/22/u-505-das-boot/https://en.wikipedia.org/wiki/German_submarine_U-505

https://inthegardencity.com/2018/08/29/the-u-505s-service-history-before-capture-the-war-patrols-of-axel-olaf-lowe-by-s-m-oconnor

https://uboat.net/allies/merchants/ship/1953.html

https://uboat.net/boats/u505.htm

A NOVA GUERRA DE CANUDOS

Texto e Fotos – Audálio Dantas

Fonte – Revista O Cruzeiro, Edição de 05 de dezembro de 1964, págs. 28 a 33.

Esse material que transcrevemos foi produzido em 1964 pelo falecido jornalista Audálio Dantas, quatro anos antes da finalização da construção do açude Cocorobó, uma obra do Governo Federal que cobriu a antiga Canudos. Audálio foi até o sertão baiano para conhecer aspectos e fatos do lugar antes da obra ficar pronta e percebeu que aquela barragem não conseguiria apagar a História de um dos maiores e mais sangrentos conflitos brasileiros. Quando ele lá chegou haviam se passados 67 anos do final da Guerra de Canudos, mas o jornalista Audálio conseguiu interessantes relatos de poucos sobreviventes ainda vivos e até mesmo de um ex-combatente, um menino na época da guerra, chamado Antônio Bruega. Realmente um relato muito interessante.

No ano 1896, meados de novembro, o Governo, que morava e dava presença somente nas “terras grandes” de perto do mar, chegou pela primeira vez às terras do sertão de Canudos, num ranger de dentes, para combater o povo de lá, que andava de cabeça virada por causa de um certo Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como “O Conselheiro”.

O governo era a República, há pouco nascida; e, até então, como no “tempo do Rei”, o sertão vivia ignorado. Foi preciso que um homem de longos cabelos desgrenhados, vestido num camisolão azul atado à cintura por um cordão de frade franciscano, gritasse por todo o sertão o seu grito louco de “enviado de Deus”, a anunciar terríveis profecias e depois amaldiçoar a República — a “Lei do Cão” — para que o Governo desse presença no sertão de Canudos, síntese de muitos sertões.

Antigo cruzeiro de Canudos na década de 1940.

Só que aquele sertão estava em pé de guerra “de nação contra a mesma nação” — a guerra mais terrível que já se travou em terras do Brasil. Tenente Pires Ferreira, com 104 soldados, foi quem primeiro chegou lá, em nome da República, para dar combate ao grupo de “fanáticos monarquistas” de Antônio Conselheiro, gente que do rei só ouvira falar. Chegar a Canudos, que ficava, com seus cinco mil casebres, no meio do sertão mais brabo da Bahia, os soldados não chegaram. Voltaram de Uauá, depois de uma batalha terrível; a tropa fora assaltada de surpresa por um bando de jagunços que até ali chegara de madrugada, numa fantástica procissão em que se misturavam aos estandartes religiosos as espingardas, os facões, os chuços de vaqueiros, as foices — as armas que possuíam para enfrentar a “força do governo”, bem aparelhada com armas de repetição. Foi uma luta desigual, muita gente do sertão caiu, dez soldados também. O chão do Uauá ficou encharcado de sangue — o primeiro sangue que correu na guerra fratricida. E muito mais sangue correria, do ano 1896 ao 1897, mês de outubro, quando Canudos — Jerusalém cabocla, tapera mártir — foi arrasada a ferro e fogo sem se render, porque homem nenhum de lá ficou de pé. Lutando por um Deus vingativo que lhes anunciava Antônio Conselheiro e vagamente por um regime de governo que para eles fora sempre uma abstração, aqueles sertanejos broncos escreveram páginas incomparáveis de heroísmo. Durante quase um ano, a guerra ensanguentou o chão seco do sertão, para onde convergiram forças militares de todo o país. E, depois de sucessivos reveses sofridos pela “força do governo”, que os jagunços, diante de suas vitórias, já chamavam de “fraqueza do governo”, houve o grande cerco final, a fulminante investida de milhares de soldados contra a fortaleza de Canudos. E não restou pedra sobre pedra: ficaram “muitos chapéus e poucas cabeças”, conforme anunciara muitas vezes, em suas delirantes profecias, Antônio Conselheiro.

Foto de Audálio Dantas em Canudos, cujas edificações e ruínas aqui mostradas se encontram cobertas pelas águas do Açude de Cocorobó. O que as fotos desse texto mostram é na verdade a segunda vila de Canudos, pois a primeira foi arrasada pelo Exército Brasileiro após a vitória sobre os seguidores de Conselheiro.

A República, que ignorava aquele povo e não soubera julgar as verdadeiras razões de sua loucura coletiva, cometera o que Euclides da Cunha, o grande intérprete dos sertões, tão bem classificou de “crime da nacionalidade”. Mas a honra da República fora salva. Canudos, a imensa tapera que se erguera à beira do rio Vaza-Barris como uma cidade sagrada, para acolher o “povo escolhido de Deus”, transformou-se num montão de ruínas e de cadáveres insepultos. Os “monarquistas fanáticos” haviam finalmente sido exterminados. Mas um dia, poucos anos depois da tragédia, gente daquele mesmo povo voltou e ergueu no mesmo local — o imenso cemitério em que se transformou Canudos — outro povoado. De gente pacata, talvez a mais pacata desta nossa vasta República.

Canudos viveu, desde o seu ressurgimento, por volta de 1907, até 1951, a sua vida “sem muita vida”, a modorrar sob a soalheira que faz o mundo tremer. Vida igualzinha à de centenas de outros povoados dos sertões. Continuava esquecida pelo governo da República.

Gente de lá só era lembrada de vez em quando, após a passagem de um repórter ou de um turista mais contemplativo. Ainda se encontrava jagunço brigador com nome bem grande gravado na História, como Pedrão e Manuel Ciríaco, que saíram antes do extermínio. E poetas sertanejos, contando e cantando em versos as histórias dos Belos Montes do Conselheiro e das lutas ferozes que se travaram nas caatingas. Gente de lá, basicamente a mesma dos tempos do Conselheiro, só não sabia era explicar aquelas histórias. Os mais velhos, no seu jeito desconfiado, ainda evocavam a figura do grande místico com uma simpatia mal disfarçada. Alguns deles até se lembravam de frases pronunciadas pelo Conselheiro nos sermões pregados na igreja nova, que também foi fortaleza e terminou sendo destruída por balaços de canhão. Palavras que têm também assentamento fiel na História, como aquela profecia, que escreveu assim: “Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão, então o certão viverá praia, e a praia viverá certão”.

Foto de Audálio Dantas em Canudos.

O sertão do Conselheiro, pregador inculto que se abeberara nuns poucos livros litúrgicos, como Horas marianas e Missão abreviada, era ainda mais sertão, assim escrito: “certão”. Um sertão que seria redimido no dia em que o rebanho de gente das “terras grandes” de perto do mar visse a grande transformação e corresse para lá, terra que deixaria de ser “certão”.

Pois o povo mais velho de Canudos contava essas histórias, a olhar para os lados do Vaza-Barris, rio que corre por lá, quando o governo da República chegou pela segunda vez e anunciou: “Canudos será destruída”. Acreditaram uns, não acreditaram outros: só se fosse ainda por castigo. Mas a sorte de Canudos estava selada, escrita nuns papéis trazidos por um doutor engenheiro — o projeto de uma barragem para represar as águas do Vaza-Barris, na garganta de Cocorobó, e sepultar sob as águas todo aquele trágico pedaço de chão.

Canudos na década de 1940.

Quase certo, gente mais velha de lá deve ter pensado que a profecia do Conselheiro estava por se cumprir e que chegada estava a hora de o sertão virar praia. Um poeta sertanejo logo escreveu versos saudando as águas que viriam, purificadoras, para matar a sede e criar vida e para fazer praias enfeitadas com muita fartura de legumes nos lugares onde só há mandacaru e xiquexique. As águas que chegariam “procurando dar aos sertanejos agasalho e dos mortos de Canudos apagando o pó”. E outros versos compôs o poeta, chamado José Aras, enquanto os engenheiros faziam os primeiros estudos no local destinado à barragem:

O vasto cemitério de Canudos

Coberto d’água será um dia

A lua melancólica e os astros mudos

Glorificarão os mortos em harmonia.

Foto Audálio Dantas.

Foi assim, em alvoroço sertanejo, que o povo do sertão de Canudos recebeu os homens do governo que lá chegaram com a missão de destruir pela segunda vez o arraial. A República se fizera novamente presente, só que agora a missão era de paz. Em lugar de canhões e das “manulichas”, vieram máquinas de escavar terra, que logo começaram, como enormes e estranhos bichos, a roncar nas margens do Vaza-Barris, na garganta do Cocorobó, exato lugar onde os jagunços comandados por Pedrão lutaram uma luta terrível contra cinco batalhões comandados pelo General Savaget. Pedrão, a quem Euclides da Cunha chamou de “o terrível defensor de Cocorobó”, ainda estava vivo (morreu em 1958) e foi muitas vezes assistir àquela invasão. Olhava, com admiração quase infantil, o trabalho daquelas máquinas — a nova “força do governo” — que roncavam na beira do Vaza-Barris, cujas águas vira muitas vezes tintas de sangue.

Pedrão morreu e não viu o açude, as águas claras da paz a fazer o sertão virar mar.

Porque a missão de paz do governo em Canudos foi, aos poucos, transformando-se numa guerra contra o povo de lá. Dessa vez, apenas uma irritante guerra burocrática, de marchas e contramarchas, enquanto se joga dinheiro na garganta do Cocorobó e — diz o povo, voz de Deus — também em gargantas muito maiores, de gente que manobra com ele.

Foto Audálio Dantas.

Em 1954, três anos depois de iniciadas as obras da barragem, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas — Dnocs — já promovia desapropriações de casas e roças no povoado de Canudos e em toda a área prevista para ser inundada (26 quilômetros quadrados). Pela casa de Maria Mendes, irmã de Manuel Ciríaco, sobrevivente da guerra anterior, deram 2.600 cruzeiros, que terminaram se reduzindo a 1.900, porque um tal de procurador que foi receber o dinheiro em Salvador cobrou 700 pelo trabalho. Quem tinha roça de beira de rio, com muito legume crescendo, também recebeu seus “poucos contos de réis” e ficou desorientado, sem saber se continuava ou não, pois, enquanto uns diziam que “o açude vai ficar pronto no ano que vem”, o pessoal do governo não informava nada com precisão. Muitos abandonaram casas e roças, antes que um dia vissem a inundação. Em muitos casos o dinheiro recebido a título de indenização não deu nem para as despesas da mudança. Desse jeito, em verdade, o açude de fazer o sertão virar mar não era construído para o povo de Canudos, indiretamente expulso do seu pedaço de chão — o chão seco e triste da caatinga, mas o chão amado de sempre.

Há os que ficaram, à espera da água (Canudos ficará sob 11 metros de água), e há os que vieram ocupar casas vazias, gente retirante de outros sertões. Enquanto isso, a barragem subia, a barragem descia, porque primeiro ia ser uma barragem em curva, mas depois os técnicos descobriram que era melhor uma barragem reta. E recomeçaram tudo, entra engenheiro, sai engenheiro, obras param e obras recomeçam, até hoje, treze anos depois daquele dia em que o governo da República chegou a Canudos em missão de paz.

Ruínas de casas de Canudos na década de 1940.

Nem um engenheiro nascido nas mesmas terras de Canudos, chamado Accioly, conseguiu levantar a barragem. Saiu de lá em julho deste ano e foi responder a um inquérito, acusado de desvio de verbas e material. Agora, lá estão dois novos engenheiros — Waldemar Correia Lopes e Antônio Carlos de Mello — em nome do governo atual. São moços e estão com vontade de trabalhar. Mas não sabem — nem podem dizer — quando o açude estará terminado. Tudo dependerá, naturalmente, da boa vontade (e das verbas) do pessoal das “terras grandes” de perto do mar e agora também das terras de outro sertão — Brasília.

O açude que o povo de Canudos espera será possível quando estiver concluída a barragem reta, a última a ser projetada, de 1.300 metros de extensão, 32 metros de altura e 196 metros de largura (na base). Os dois novos engenheiros encontraram as obras na seguinte situação: prontas as fundações e iniciados os trabalhos de construção de um enrocamento de sustentação da barragem, que será de terra. Atualmente se processa também o tratamento de rocha das fundações, por meio de injeção de cimento. Isso feito, a barragem poderá ser erguida acima do nível do rio. Se houver os recursos necessários, será possível barrar as águas do Vaza-Barris no próximo ano, aproveitando-se o período entre duas enchentes (o rio é seco praticamente durante dez meses). Se isso for conseguido, em janeiro de 1966, quando se comemora o centenário de nascimento de Euclides da Cunha, as terras de Canudos começarão a ser cobertas pelas águas que apagarão, simbolicamente, uma imensa nódoa em nossa História. Os senhores das verbas poderão prestar essa homenagem ao nosso grande escritor, ao mesmo tempo que acabarão com a angústia do povo que tão bem ele soube interpretar. Depois, o açude não será só “um mar no meio do sertão”; será, principalmente, fator de melhoria para o povo de lá. A Várzea do Canché, de terras planas e boas a se estenderem até os limites de Jeremoabo, está incluída no plano de irrigação (10.000 hectares) que empregará as águas represadas. Não se destruirá Canudos em vão.

Construção do Açude de Cococrobó em 1964 – Foto – Audálio Dantas.

A Canudos da espera, do sai não sai, é uma cidade que morre aos poucos, por causa desse açude que o governo mandou fazer em Cocorobó. Uma agonia que se prolonga há treze anos. Gente de lá, hoje, vive como o próprio lugar: bocejando à espera do último dia, que poderá ser daqui a um ano, ou dois, ou dez, quem sabe?

São umas noventa casas, a maioria em ruínas. Umas vinte e poucas famílias têm morada lá, umas vivendo de plantar em tempo de chuva e criar bode; outras, do trabalho na estrada que passa perto ou nas obras do açude (em Cocorobó moram umas 2.000 pessoas, gente dos trabalhadores nas obras); e outras, “do que Deus for servido”. Ao sol, presença constante de todos os dias, Canudos é já uma cidade morta. A paradeira, o mormaço a tudo encobrem — casas e gentes. Vez ou outra, uma velha de xale negro à cabeça atravessa a praça, em pleno tremer do sol sobre o chão avermelhado e seco. Mas passa como uma sombra, quase irreal, e logo desaparece, engolida por uma porta qualquer.

Sinal de vida, vida, que ainda há são os meninos que aparecem quando o sol se faz menos presente, nos fins de tarde, a brincar no vazio da praça ou por entre as ruínas do que já foi casa de moradia. Esses meninos, que se misturam aos bodes saltadores em seus brinquedos, ignoram a agonia de Canudos, como ignoram o drama terrível que ali se desenrolou. Essas casas que restam intactas e as ruínas em meio às quais eles brincam foram edificadas com o barro embebido de sangue e sobre os ossos dos que tombaram, indomáveis. Essas crianças e esses bodes pulam, alegres, no chão do maior cemitério nacional. Um cemitério que se fez um povoado e agora agoniza. Até o dia de ser sepultado para sempre sob as águas.

Memória de Antônio Bruega, que dá testemunho de tudo

E disse Antônio Bruega, que foi menino de olhos e ouvidos abertos para tudo o que aconteceu:

Tudo aquilo foi uma “ordem”, muito alta, que tinha de ser cumprida, uma profecia que corria o Mundo dando o aviso: neste sertão vai ter uma guerra de irmão contra irmão.

E disse mais Antônio Bruega, ao começar a dar seu testemunho, na sala de chão batido de sua casa, no meio da caatinga, três léguas distante de Canudos:

A verdade eu falo; gosto da verdade e não piso nela, senão escorrego e caio.

Do apóstolo Antônio Conselheiro e do que veio depois por via dele, nos espantos do sertão, é que Antônio Bruega, de nome verdadeiro Antônio Ferreira Mattos, dá testemunho de muito valimento, porque dele nunca antes se ocupou repórter perguntador nenhum. Não foi ele nenhum jagunço brigador, que idade para isso não tinha nos tempos da guerra. Mas viu e sentiu tudo — o desenrolar daquele drama sem paralelo na História.

Antônio Bruega, ex-combatente da Guerra de Canudos, clicado por Audálio Dantas.

Só sei que eu tinha treze anos em 1897, porque assim falou meu pai dentro dum piquete, uns dias antes do fim de tudo. Agora, o senhor faça a conta e confira: já vou entrando nos oitenta. Mas memória boa eu tenho e vou contar tudo, exato como foi. No princípio, pelos 1893, quando o Conselheiro chegou nos Canudos, já foi por via de um destempero que houve no lugar Bom Conselho, onde ele se revoltou e disse pro povo não pagar os impostos pra Lei da República. Saiu de lá já sabendo que vinha força atrás dele. E levou muita gente, no rumo de Canudos, mas parou no Massetê, e lá a força o alcançou, e houve briga, e houve sangue. Era a “ordem” que principiava a ter cumprimento, vigie o senhor.

Contar esse pedaço de história, de que não foi testemunha de vista, Antônio Bruega conta porque ouvia tudo da boca dos mais velhos, “dentro do Canudo”, antes e durante a guerra que lhe matou pai, mãe e seis irmãos. Dentro de Canudos, mesmo, ele viveu e sobreviveu para contar tudo. Foi no tempo que durou a guerra. O pai tinha roça ali perto, nos lados do Angico, uma légua retirada. A gente dele ia quase todo dia ouvir sermão do Conselheiro e, quando começou a chegar tropa do governo, foi toda morar “dentro da rua”, onde havia mais proteção.

Como era o Conselheiro?

Ah! Era ver um dos apóstolos. O trajamento era comprido, batendo nos pés, e o cabelo batia no ombro. E dizia pra ninguém aceitar a Lei da República, que de Deus não era. Quem estava do lado de Deus Bom Jesus não morria; só fazia se mudar pro céu.

Antônio Bruega.

O menino Bruega, como toda a gente que lá vivia, acreditava em verdade que o Conselheiro era santo mesmo. E hoje, pelo sim, pelo não, há a dúvida, Bruega nega e afirma. E a justifica:

Naquele tempo todo mundo dizia que ele era santo, e eu também acreditava.

Não era o Santo Conselheiro figura que se mostrasse a toda hora, não senhor. Vivia quase sempre dentro da casa dele, com guardas e beatos. Bruega o viu nos sermões e quando, já a guerra tomando conta do sertão, mandava fazer fogueira com o dinheiro maldito da República. E quando, um dia, uma tropa tomando chegada, os homens foram ouvi-lo sobre o que fazer. Quem mandar para receber a “fraqueza do governo”? E respondeu-lhes o Conselheiro:

João Abade ou qualquer outro desses homens de vergonha.

Canudos no final da década de 1960, próximo do momento que o local seria coberto pelas águas do Cocorobó.

Menino Bruega viu muito e ouviu muito, da igreja nova, na beira do Vaza-Barris, na Rua da Caridade, num dos extremos da cidadela de Canudos. E muitos foram os seus espantos, nesse ver e ouvir. Um foi no dia em que as tropas do Major “Febrone” (Febrônio de Brito) chegaram à serra do Cambaio, já esperadas pelos jagunços entrincheirados. Bruega faz um parêntese na sua história e diz que “na obra deles (a história escrita fora do sertão) escreveram que era 8 mil jagunços, mas não era, não”. Pois naquele dia, bem cedinho, o pai mandou-o à roça, no Angico, a ver se a chuva (caíra trovoadão na véspera) não enchera demais o riacho das Umburanas e invadira as plantações. Foi e voltou, numa carreira. Quando estava numa baixada, perto do Alto do Mário, ouviu o estrondo de um trovão. Olhou pro céu, estava limpo, sem nuvem nem jeito nenhum de chuva. Houve o segundo estrondo, e “então eu conheci que não era trovão, era o fogo da tropa, era o fogo da ‘peça’ (canhão) de que tanto o povo falava na rua”. Quando chegou a Canudos, viu o alvoroço, que um aviso tinha vindo do Cambaio — “morreu muita gente nossa”. O irmão mais velho dele estava lá, e o menino pensou com mais intensidade na morte. Mandaram um reforço — “uns 50 homens, que não mandavam de muitos, não”. João Abade era quem escolhia os combatentes e dizia: “Vão vocês, se tiver precisão, vai mais”.

Naquele fogo morreu gente muita, gente da Rua do Canudo, no combate que se deu na Lagoa do Cipó, lugar de acampamento do Major “Febrone”. Água da lagoa, depois, ficou uma vermelhidão e ficou sendo aquele lugar chamado a Lagoa do Sangue.

O mesmo local da foto anterior no ano de 1964 – Foto – Audálio Dantas.

Bruega dá testemunho, bem dado, e tudo confere com a História, com pequenas diferenças, principalmente de pontos de vista, que o dele é o do povo de Canudos, já se vê. Major “Febrone”, militar de muita correção, viu que a luta, naquelas condições encontradas na caatinga, que seus soldados não conheciam, com gente braba como aqueles jagunços, seria um inútil derramamento de sangue. E ordenou a retirada. Arma de soldado, ficou por lá, na caatinga, e serviu para os combates que vieram depois. Como o de Moreira César, que chegou “num cavalo pampa do tamanho desta casa”, querendo acabar com Canudos num instante e terminou se acabando ele, quando já ia entrando na rua. Foi um tiro que um jagunço deu, e o comandante ferido foi a desgraça da tropa, que terminou numa debandada de fazer dó, a correr pela caatinga, “os macacos na frente, os jagunços atrás deles”. Na debandada deixaram até o corpo do comandante ferido no caminho.

E disse Bruega:

Foi muita gente fidalga correndo de pé no chão!

E veio o fim, depois, quando chegaram forças de tudo que era lugar, mais de 5 mil soldados, para acabar tudo de uma vez, cercando Canudos por todos os lados. Quem tinha saído antes, muito bem; quem não, jeito nenhum tinha mais “nem que a gente voasse, mesmo assim era derrubado; quanto mais andando no chão”. O cerco durou muitos dias, pra deixar o pessoal sem remissão de comida e de água. E quem não morreu de fome e de sede morreu no grande incêndio final. Restavam poucos homens para a luta, assim mesmo com fome e sem munição. Nem respondiam a tiro de soldado, pra não ficar sem bala na hora de uma precisão maior. E o bombardeio era de manhã a noite, sem paradeiro. Mulher e menino ficavam dentro da igreja toda de pedra ou não davam presença na rua.

Foi em Canudos que o gênio de Euclides da Cunha criou a frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. E é mesmo!

No dia do fim de tudo, o menino Bruega estava num piquete, junto com o pai. Quem comandava era um Antônio Félix do Campo Alegre, morador na rua que lhe dava o nome. A força foi apertando o cerco, assim “como quem fecha a boca de uma mochila”. Do piquete, o menino via “o mundo fervendo”. O tiroteio era tão grande “que tomava as oiças da gente e estremecia a terra”. Assim ele considerava quando veio um portador, com aviso:

Vamos socorrer a igreja, que os soldados estão entrando!

Os que estavam na Rua do Campo Alegre eram os últimos defensores de Canudos. E desceram na direção da igreja-fortaleza, mas não tiveram valia, que os soldados já a haviam tomado. Gente de Canudos brigava como podia, no ferro frio, que munição já não tinha.

Canudos na década de 1940.

Antônio Félix do Campo Alegre descobrira uma trincheira, buraco no chão, e lá ficou. Foi quando um beato do Conselheiro levantou uma bandeira branca e desceu na direção da igreja, para pedir paz. Depois voltou dizendo que todos se entregassem, mas ninguém quis isso, não. Antônio Félix do Campo Alegre disse, o menino Bruega ouviu e agora dá testemunho:

Se esse beato vier aqui, o primeiro a atirar nele sou eu!

Antônio Félix do Campo Alegre morreu no seu buraco, com outros companheiros, a ferro frio. O irmão do menino Bruega, Evaristo, foi apanhado vivo naquele dia, mas morreu no outro, degolado, como todos que escaparam do fogo vingativo da República. A mãe morreu sob os escombros da igreja nova, e ele ficou na casa de uma tia, de nome Rufina, até que a fome e a sede o levaram aos vencedores. Queria se entregar de noite, mas a tia disse que não, porque soldado, embriagado pela vitória, andava abusando de mulher que pegava de noite na rua. Por isso, muitas delas se jogavam nos incêndios dos casebres, com os filhos, para não sofrerem a afronta.

Foto Audálio Dantas.

Com Antônio ficara o irmão menor, chamado Pedro, de 6 anos. E foram, junto com as mulheres e outros meninos, para um campo de prisioneiros no riacho do Papagaio. Deitaram-se na areia, exaustos, mas soldado não deixava ninguém dormir, não, senhor. Obrigavam a gente jagunça a dar vivas à República vitoriosa.

Viu soldado procurar arma enfiando a mão em seio de mulher. E pensou, lembrando os sermões do Conselheiro, que aquilo era a Lei da República, “Lei do Cão”!

Depois foi a marcha dos prisioneiros — só mulheres e crianças, que os homens morreram todos — no rumo de Monte Santo. E a ordem era matar quem parasse no caminho. Dividiram os prisioneiros em grupos, cada qual vigiado — aqueles infelizes rotos e mortos de fome — por 10 ou mais soldados.

Como se encontrava na década de 1940 o canhão inglês Withworth de 32 libras, a famosa “Matadeira”, utilizado pelo Exército em Canudos e destruído corajosamente pelos seguidores de Antônio Conselheiro.

No grupo que ia ele, uma mulher ferida na perna, de nome Juana, não aguentou, apesar de todo o esforço. Foi quando pararam para beber água no Calumbi que Juana disse: “Não aguento mais, valha-me Nossa Senhora”, mas as companheiras a animaram, e ela conseguiu ir até o lugar chamado Boa Esperança e lá caiu. E então três soldados descarregaram as carabinas nela. Menino Bruega olhou pra trás, mandaram que ele olhasse para a frente. Ele mesmo tinha ferimentos (nas mãos e na clavícula), cujas marcas tem até hoje, mas olhou sempre para a frente. Até chegar a Monte Santo, prisioneiro da República.

Logo a República perdoou àquele menino o crime de haver nascido em sertão de tão longe. E ele voltou ao chão de Canudos, para ser pastor de bodes. Hoje, sem querer e sem dizer, é ainda jagunço — na paz de sua caatinga. Quando dava o seu testemunho, dividia bem o seu povo (“nós”) e os de fora (“eles”).

— Quando os “macacos” vieram aqui…

— No tempo da guerra?

— Não, senhor, outro dia mesmo.

Velho Bruega falava de uma comissão militar que estivera há poucos dias em Canudos.

E COMO FICARÁ O LEGADO HISTÓRICO DA RAMPA NESSE NOVO COMPLEXO?

Fotos: Ricardo Morais – @imagemepoesia.

Vamos Ter Algo Que Realmente Valorize e Democratize Com a População Natalense a Sua Rica História, Ou Uma Mera “Exposição de Banners”?

Rostand Medeiros

Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Tenho acompanhado através da imprensa as idas e vinda relativas ao destino do prédio e da área histórica da RAMPA, um dos locais mais representativos da história da aviação e da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Norte.

Fotos: Ricardo Morais – @imagemepoesia.

O Governo do Estado informa através da imprensa que o Complexo Cultural da Rampa terá 2.800 m² de área construída, salas para exposições, bar, café, loja de lembranças e souvenires, banheiros, mirante, píeres, deck e etc.

Tenho igualmente lido, ouvido e visto muita preocupação, justíssima por sinal, sobre a destinação financeira dos recursos para a transformação da velha RAMPA, no bairro de Santos Reis, em Natal. Leio muito sobre a questão da participação limitada dos artistas locais, sobre um possível favorecimento de artistas de fora, com a aquisição de obras caríssimas, sem ligação com o significado do local.

Todas as informações e preocupações sobre aquele espaço são relevantes e interessantes para o debate. Mas não tenho visto maiores referências, sobre algo muito relevante – COMO FICARÁ A DEMOCRATIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO HISTÓRICA DAQUELE QUE SEGURAMENTE É UM DOS LOCAIS MAIS REPRESENTATIVOS DA HISTÓRIA DA AVIAÇÃO E DA SEGUNDA GUERRA NESSE ESTADO?

Fotos: Ricardo Morais – @imagemepoesia.

Percebo que o tema da aviação histórica e da participação de Natal na Segunda Guerra Mundial é um dos (poucos) momentos históricos mais comentados e referenciados pelos natalenses, independentemente de sua condição social e nível de escolaridade.

Talvez muitos imaginam que os temas referentes a história da aviação no Rio Grande do Norte sejam restritos a um segmento limitado e abonado da população de Natal. Isso para mim é puro engano.

Nunca deixei de conseguir em minhas pesquisas, principalmente nas áreas de Santos Reis e Rocas, ótimas entrevistas com pessoas que testemunharam a chegada e passagem dos “mais pesados que o ar”.

A área histórica da RAMPA, assim como as áreas históricas da Base de Parnamirim, são os locais mais representativos desses momentos tão intensos e importantes na história potiguar. É imprescindível e fundamental que essa história não fique relegada a algo sem profundidade e qualidade. Tenho medo que a informação histórica sobre a RAMPA fique restrita a uma mera “exposição de banners”.

Fotos: Ricardo Morais – @imagemepoesia.

E logo, em dezembro de 2022, vai acontecer o centenário da chegada da primeira aeronave ao Rio Grande do Norte, quando amerissou nas águas tranquilas do Potengi o hidroavião de Pinto Martins. Como isso será lembrado?

Como serão lembrados os voos históricos e heroicos que utilizaram Natal como local de destino, ou ponto de apoio. Voos realizados por homens e mulheres de dezenas de nações, onde em todas seus nomes e seus feitos são lembrados e rememorados com veneração e respeito?

Fotos: Ricardo Morais – @imagemepoesia.

Se houve algo durante a primeira metade do Século XX que colocou o nome de Natal em destaque a nível mundial, foi a sua ligação com a aviação mundial, proporcionada pela sua invejável posição estratégica na área do “Cinturão do Atlântico”.

Por essa história e por essa memória, tem que existir nesse novo complexo da RAMPA elementos concretos claros que valorizem esse momento e estejam à altura de sua história!

Fotos: Ricardo Morais – @imagemepoesia

BARREIRA DO INFERNO – QUANDO NATAL ERA A CAPITAL ESPACIAL DO BRASIL

A Boa Localização Para Disparar Foguetes – A Doação de 2.000 Hectares na beira da Praia – O Início da Construção – Primeiro Disparo – O Foguetório – O Dia Que os Russos Espionaram a Barreira do Inferno – Futuro Incerto – Memórias Inesquecíveis Para o Povo de Natal

Rostand Medeiros – IHGRN

Efetivamente a ideia galgar o espaço exterior se inicia com o desenvolvimento dos processos tecnológicos de lançamento de foguetes pelos países vencedores da Segunda Guerra Mundial. Com a ideia de não perder o “bonde da história” e diante das perspectivas altamente estratégicas que a conquista do espaço criava para uma nação com dimensões continentais como o Brasil, apontou para a necessidade do desenvolvimento de um projeto de programa espacial nacional. Logo a criação de instituições como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em 1950, e o surgimento do Centro Técnico de Aeronáutica, hoje o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), como órgão científico e técnico do Ministério da Aeronáutica, apontou os caminhos a serem seguidos.

Preparação de um foguete para disparo na Barreira do Inferno na década de 1970 – Fonte – Biblioteca Nacional.

Nesse desejo da nação brasileira de alçar o espaço sideral ficou evidente que um dos caminhos a ser seguido era a criação da primeira base de lançamento de foguetes no país. E foi no Rio Grande do Norte que o Governo Brasileiro decidiu desenvolver esse local.

E porque razão fomos escolhidos?

Primeiramente o fator posição geográfica foi decisivo para que a terra potiguar participasse desse projeto de alto interesse para a nação. Natal está distante apenas 5 graus da linha do Equador e essa proximidade muito facilita o lançamento de foguetes ao espaço, pois quanto mais próximo desse marco geográfico, utiliza-se uma menor quantidade de combustível para a ascensão desses equipamentos. De certa forma repetiu-se o mesmo que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando militares norte-americanos construíram a base aérea que eles denominaram de Parnamirim Field, pela excepcional posição estratégica de Natal para o desenvolvimento do transporte aéreo militar dos Aliados durante o conflito.

Desenvolvimento de foguetes nos Estados Unidos – Fonte – NASA

Outro fator estava na existência de um tipo de “anomalia magnética” sobre o Rio Grande do Norte e outros estados nordestinos. Ocorre que nessa região as linhas do campo magnético da Terra formam uma espécie de “funil” e essa situação facilita as medições espaciais com foguetes, que não necessitam se elevar a grandes altitudes para cumprir suas missões, diminuindo o custo dos lançamentos.

Outros fatores que pesaram favoravelmente na decisão de construção dessa base de lançamento de foguetes na área metropolitana de Natal foram o clima estável da nossa região, a proximidade com a capital potiguar, proximidade do porto no Rio Potengi e a pouca distância da Base Aérea de Parnamirim.

A Doação do Terreno de Fernando Pedroza

Ficou decidido que o local para implantação da base ocorreria em um terreno de quase 2.000 hectares, localizado as margens do Oceano Atlântico, próximo a praia de Ponta Negra. Era um lugar abandonado, cercado de altas dunas de areia, aquinze quilômetros do centro de Natal, no caminho para a região das praias do litoral sul e conhecida como Barreira do Inferno.

Falésias da Barreira do Inferno – Fonte – https://www.praiasdenatal.com.br/barreira-do-inferno/

Para alguns a denominação nativa evocava a coloração avermelhada das altas falésias de arenito ali existentes. Para outros o nome era uma lembrança das trágicas mortes de jangadeiros nas águas turbulentas daquela região, provocadas pelas fortes correntezas marinhas e rochas que dificultavam a navegação. O certo é que essas condições sempre limitaram a ocupação da área por populações de pescadores.

O terreno pertencia a Fernando Gomes Pedroza, que morava no Rio de Janeiro mas era membro de uma tradicional família potiguar. Logo, em 7 de agosto de 1964, os quase 2.000 hectares foram integralmente doados para o então Ministério da Aeronáutica.

Aos olhos de hoje, diante da intensa especulação imobiliária existente no belo litoral potiguar, pode parecer estranho alguém doar um terreno daquelas dimensões ao Governo Federal. Mas alguns fatores talvez possam explicar essa decisão.

Instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Como comentamos anteriormente Pedroza morava no Rio, onde ele certamente tinha seus interesses, objetivos e investimentos e naquele início da década de 1960, dentro da realidade do paupérrimo Rio Grande do Norte, dificilmente Fernando Pedroza poderia usufruir pecuniariamente daquele local a curto prazo. Consta que Aluízio Alves, então governador potiguar e com ligações pessoais com Pedroza, intercedeu para a doação da área, mostrando o quanto seria proveitoso para o Estado a implantação daquela base. Não sei se também pesou na decisão de Fernando Pedroza o fato de ser complicado para ele se colocar contrário aos objetivos estratégicos da classe fardada naquele período, poucos meses após os militares deflagrarem a revolução de 31 de março de 1964.

Em todo caso o terreno foi entregue e tempos depois, certamente pelos seus “sentimentos de brasilidade e patriotismo”, o antigo proprietário foi agraciado pela Força Aérea Brasileira (FAB) com a medalha do Mérito Aeronáutico.

Instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Início das Obras e Primeiros Lançamentos

As obras foram iniciadas em 5 de outubro de 1964, com parte delas sendo executadas pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, que na época tinha recrutado quinze presidiários para trabalharem no desmatamento da área, em troca de benefícios nas penas. Consta que sem o apoio do governo Aluízio Alves para o desenvolvimento da Barreira do Inferno, a base de lançamento de foguetes poderia ter ido para Aracati, no Ceará, ou para o Arquipélago de Fernando de Noronha, administrado por Pernambuco.

Quem primeiro noticiou a construção da nova base foi o jornalista Paulo Macedo, recentemente falecido, em sua coluna da segunda página do Diário de Natal (Ed. 09/10/1964).

Casamata blindada da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Em meio as dunas logo surgiu todo um complexo de estradas pavimentadas, garagens, prédios, abrigos, depósitos, rampas, antenas e radares. Foram construídas a casamata blindada para os técnicos acompanharem os lançamentos de foguetes a curta distância e as várias rampas de disparo. Estradas pavimentadas ligavam estas rampas aos depósitos e hangares onde ficam abrigados os foguetes, antes de serem preparados para ir aos céus. Outras estradas interligavam esses depósitos aos centros de rastreio e telemetria, instalados em prédios próprios, e aos prédios administrativos.

Nascia assim o CLFBI – Centro de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno, um local que sem dúvida alguma encheu de orgulho os potiguares, ao ponto dos radialistas locais designarem Natal como “Capital Espacial do Brasil”.

Instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Nos jornais natalenses da época existe a informação que alguns foguetes de teste foram disparados em abril, ou junho, de 1965. Mas oficialmente o primeiro lançamento de um foguete aconteceu em dezembro daquele ano, em um evento que contou com a presença do brigadeiro Eduardo Gomes, então Ministro da Aeronáutica. Nessa ocasião foi disparado um foguete de dois estágios denominado Nike-Apache, utilizado para sondagens, de fabricação norte-americana e capaz de atingir quase 200 km de altitude. O foguete subiu ao espaço exatamente as 16 horas e 28 minutos de 15 de dezembro de 1965.

Em tempo – A Barreira do Inferno não é a primeira base de lançamento de foguetes da América Latina. A honra cabe a Base de Santo Tomás, em Pampa de Achala, Província de Córdoba, Argentina, onde em fevereiro de 1961 foi lançado um foguete tipo Apex A1-02 Alfa-Centauro, que alcançou 2.170 metros de altitude. Esse foi o primeiro artefato desse tipo lançado nessa parte do Planeta. Inclusive alguns acreditam, mesmo sem apresentar provas, que muito do desenvolvimento da Barreira do Inferno por parte do Governo Brasileiro se deveu ao positivo andamento do programa espacial argentino.

Atividade dos técnicos nas instalações da Barreira do Inferno – Fonte – Arquivo Nacional.

Desenvolvimento

Bem antes da Barreira do Inferno lançar seus primeiros foguetes, o pessoal do Grupo Executivo de Trabalho e Estudos de Projetos Espaciais (GETEPE), do Ministério da Aeronáutica, providenciava junto a NASA, nos Estados Unidos, o treinamento do pessoal técnico necessário às operações de lançamento e para se familiarizarem com esses artefatos. Logo, cerca de dez norte-americanos desembarcaram em Natal para instruir a equipe da Barreira do Inferno no uso de uma série de equipamentos cedidos ao Brasil.

Nos anos seguintes a Barreira do Inferno foi palco do lançamento de centenas de foguetes.

Disparo de foguete – Fonte – Arquivo Nacional.

Aquilo visto nos céus potiguares foi um verdadeiro foguetório de fazer inveja em festa de São João no interior. Chegou um momento que de tão comuns, os rastros dos foguetes já nem chamavam mais a atenção das pessoas na cidade. De toda maneira o espetáculo enchia de orgulho o povo de nossa terra, sendo referência no Brasil. Até o grande sanfoneiro Luiz Gonzaga colocou na sua música “Nordeste prá frente“ o seguinte refrão;

“Caruaru tem sua universidade

Campina Grande tem até televisão

Jaboatão fabrica jipe à vontade

Lá de Natal já tá subindo foguetão…”

Fonte – Arquivo Nacional.

Desde os brasileiríssimos Sondas I, II e III, onde esse último alcançava mais de 500 quilômetros de altitude, a foguetes estrangeiros como os Nike Tomahawk, Nike Cajun, Aerobee, Black Brant, Javelin, Arcas e Hasp, foram disparados da Barreira do Inferno. Alguns foguetes superaram os 1.000 quilómetros de altitude e outros foram lançados como parte de importantes programas de pesquisas nacionais e estrangeiros.

Além de técnicos norte-americanos, passaram pela Barreira do Inferno técnicos franceses, canadenses e alemães. E a presença desses últimos por aqui, vindos do Max Planck Institute, acabou gerando um incidente internacional.

Preparação para disparo na década de 1970 – Fonte – Arquivo Nacional.

Foguetório Teuto-Brasileiro

De dezembro de 1965 a março de 1972 a Barreira do Inferno já havia disparado um total de 381 foguetes. O lançamento de número 382 estava previsto para ocorrer no dia 7 de março de 1972 e este seria um modelo Black Brant 5C, fabricado pela empresa canadense Bristol Aerospace e vendido para os alemães desenvolverem seus projetos de pesquisa espacial.

Esta operação era parte do Projeto Aeros, onde o custo de um milhão de dólares do disparo era totalmente financiado pelo estado germânico e trazia algumas novidades em relação aos lançamentos anteriores. A sua carga útil de componentes eletrônicos de medição, pesando 98 quilos, seria recuperada a cerca de 145 milhas náuticas (268 km) de distância da base, o Black Brant 5C atingiria a altitude máxima de 230 km e após o fim do combustível cairia livremente até 4.500 metros de altitude, quando seria acionado seus paraquedas e a carga desceria tranquilamente no oceano. Essa carga seria recuperada com o trabalho conjunto de uma corveta do Grupamento Naval do Nordeste da Marinha do Brasil e dois helicópteros SAR (do inglês: Search And Rescue – busca e salvamento) da Força Aérea Brasileira.

Fonte – Arquivo Nacional.

Até então normalmente eram disparados foguetes cuja área de recuperação de sua carga útil atingia em média de 40 milhas náuticas (74 km) e metade da altitude do Black Brant alemão. Diante da situação a FAB e a Marinha criaram uma área de exclusão ao redor da Barreira do Inferno de 60 milhas náuticas (111 km), onde todo o tráfego aéreo e marítimo foi expressamente proibido por razões de segurança. 

Durante a operação a corveta da Marinha ficaria permanentemente em alto mar e caberia também a sua tripulação a missão de informar a Barreira do Inferno, cinco horas antes do lançamento, as condições do tempo, velocidade do vento, visibilidade e cobertura das nuvens.

Fonte – Arquivo Nacional.

Ainda em relação a meteorologia o monitoramento também era realizado pelo então Centro Meteorológico do Instituto de Atividades Espaciais, com sede em São José dos Campos, São Paulo, que utilizava informações vindas do satélite meteorológico americano ESSA-8. Todo este cuidado era importante, pois naquele início de março de 1972 estava ocorrendo chuvas na costa potiguar.

O evento era coberto de extrema segurança e contava com a presença do então Ministro da Aeronáutica, o brigadeiro José Campos de Araripe Macedo, toda a cúpula da FAB, do setor técnico aeroespacial brasileiro e do pessoal diplomático e técnico alemão.

Para manter a cobertura aérea segura a FAB disponibilizou duas aeronaves de patrulha Lockheed P-15 Neptune, pertencentes ao Primeiro Esquadrão do Sétimo Grupo de Aviação (1º/7º GAv), o conhecido Esquadrão Orungan, sediado em Salvador, na Bahia.

E foram os membros deste esquadrão que localizaram em alto mar, às dez horas da manhã do dia 1 de março, um penetra no foguetório teuto-brasileiro.

O Intruso Vermelho

As aeronaves de patrulha da FAB eram equipadas com radares de busca, podiam voar horas sobre o mar e segundo os jornais da época teriam detectado um forte sinal que aparentava ser de um navio de grande porte e agindo de maneira suspeita em águas territoriais brasileiras. Prontamente eles foram investigar.

Os tripulantes se depararam com um grande navio pintado em cor clara, equipado com enormes antenas parabólicas, navegando lentamente a cerca de 144 milhas náuticas (266 km) da costa de Natal. Os dados mostraram que o tal navio estava 56 milhas náuticas (103 km) dentro de águas territoriais brasileiras, em clara violação das nossas leis. Não demorou e os tripulantes viram a bandeira vermelha, com a foice e o martelo estampados em dourado, mostrando que aquele era um navio da União das Repúblicas Socialista Soviética.

O Iuri Gagarin e sua inconfundível silhueta – Fonte – Wikipédia

Vale frisar que nesta época a União Soviética, atual Federação Russa, não reconhecia o mar territorial brasileiro como tendo 200 milhas náuticas. O decreto ampliando a nossa faixa marítima havia sido instituído apenas em 1970 e, além dos soviéticos, os arquivos do Itamaraty registraram notas de protesto, ou de não reconhecimento, ou de reservas quanto ao ato unilateral de ampliação do nosso mar territorial, vindos de países como a Bélgica, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Japão, Noruega, Reino Unido, República Federal da Alemanha e Suécia.

Mas para os aviadores do P-15 Neptune os soviéticos e seu grande navio estavam sim em nossas águas territoriais e ou caíam fora, ou poderiam sofrer alguma consequência. E lá embaixo não estava um “barquinho” qualquer, era o grande e recém-lançado navio soviético de monitoramento espacial Cosmonauta Iuri Gagarin.

Desenho do P-15 da FAB – Fonte – wp.scn.ru

Um verdadeiro monstro com 230 metros de comprimento, autonomia de 24.000 milhas náuticas (44.448 km) e uma tripulação de 180 pessoas, onde entre estes se encontravam alguns dos mais especializados técnicos de monitoramento e rastreamento eletrônico da extinta União Soviética. Em operação desde dezembro de 1971, a silhueta do navio Cosmonauta Iuri Gagarin se caracterizava pela existência de quatro grandes antenas parabólicas e elas serviam para monitorar tudo que fosse interessante e relativo a área espacial produzida pelos países ocidentais.

Apesar de vivermos um período de extrema censura jornalística durante a ditadura militar brasileira, o interessante neste caso foi que os militares não negaram aos jornais praticamente nenhuma informação sobre a presença em nossas águas deste “intruso vermelho”. Desejavam mostrar que as nossas Forças Armadas estavam atentas a movimentação daquele barco carregado de alta tecnologia russa e em clara missão de espionagem tecnológica.

Navio Cosmonauta Iuri Gagarin – Fonte – Wikipédia

Raspando as Antenas e o Mastro do Navio Soviético

E não podemos negar que o pessoal do Esquadrão Orungan estava realizando corretamente seu trabalho. Segundo o então comandante da operação de lançamento do foguete Black Brant 5C, o coronel aviador Paulo Henrique Correia do Amarante, não havia dúvidas que o navio Cosmonauta Iuri Gagarin estava no mar territorial brasileiro para monitorar e rastrear o lançamento do foguete adquirido pelos alemães.

Ele afirmou que após a localização visual do navio, ocorreu uma primeira passagem para fotografias e depois os P-15 Neptune da FAB realizaram voos rasantes “raspando as antenas e o mastro do navio soviético”. A tripulação do Iuri Gagarin prontamente acelerou as máquinas e deslocou a nave para fora de nossas águas territoriais, em uma direção que o conduzia a região do Arquipélago de Fernando de Noronha. O coronel Paulo Henrique chegou mesmo a apresentar fotografias do navio espião à imprensa.

Foi divulgado que no dia 6 de março os P-15 Neptune retornaram a missão de buscas ao navio Cosmonauta Iuri Gagarin, em uma operação que durou mais de cinco horas, alcançando uma área de 900 milhas náuticas de patrulha, incluindo Fernando de Noronha. Foi utilizado constante busca por radar, seguiram a bordo cinegrafistas para registar a presença da nave, mas o grande navio não voltou a ser localizado.

Para os militares brasileiros o lançamento do foguete Black Brant 5C e a parceria teuto-brasileira não tinha nada de secreto. Tanto que as atividades na Barreira do Inferno eram amplamente divulgadas, até como forma de mostrar que o governo militar era atuante e tecnologicamente moderno. Deduziu-se que a presença do navio Cosmonauta Iuri Gagarin, violando as novas águas territoriais brasileiras e arriscando um possível problema diplomático, era um claro aviso aos alemães que os soviéticos estavam plenamente atentos as suas atividades aeroespaciais, ocorressem elas onde ocorressem.

Fonte – Arquivo Nacional.

Esta situação de bisbilhotagem eletrônica entre a extinta União Soviética e os países ocidentais eram ações mais do que corriqueiras durante a chamada Guerra Fria. Eles se xeretavam mutuamente na tentativa de descobrir os avanços tecnológicos dos inimigos e muitas vezes estas ações serviam para mostrar ao adversário que o outro lado estava atento e alerta.

Nós brasileiros é que não estávamos acostumados com este tipo de coisa.

A Visita das Baleias

Serguei Mikhailov, o então embaixador soviético no Brasil na época, negou qualquer declaração à imprensa por parte daquela representação diplomática e não sei se o Itamaraty chegou a emitir alguma nota de desagravo. Desconheço se o caso teve maiores desdobramentos diplomáticos.

Apesar de alguns atrasos devido à chuva, exatamente as 7h32m53s da manhã do dia 8 de março de 1972, o foguete Black Brant 5C foi lançado da Barreira do Inferno em direção ao sol.

O artefato alcançou 230 km de altitude e precisamente 10 minutos e 15 segundos após o lançamento, a sua carga útil de equipamentos eletrônicos de medição tocou o Oceano Atlântico a 15 milhas náuticas (28 km) da corveta da Marinha. Já os P-15 Neptune da FAB localizaram visualmente a cápsula no mar e apoiaram a chegada do navio da marinha brasileira.

Fonte – Arquivo Nacional.

Os militares da FAB não avistaram o navio Cosmonauta Iuri Gagarin novamente, mas informaram que foram visualizadas duas graciosas e grandes baleias próximas ao artefato aeroespacial. Consta que os cetáceos se mostraram completamente indiferentes com a presença humana no seu território, com as tolas diferenças ideológicas dos homens e com seus brinquedinhos tecnológicos.

Dias Atuais

Ao longo dos anos a Barreira do Inferno continuou a exercer com dignidade a sua missão, mas o crescimento de Natal ligou o sinal de alerta para os militares brasileiros. Um acidente com um foguete que por ventura caísse na área urbana da capital potiguar, carregado de combustível altamente inflamável, seria uma catástrofe. Nesse sentido os militares passaram a desenvolver uma base de lançamento na região do município maranhense de Alcântara, onde continuam as pesquisas espaciais do nosso país.

Fonte – Arquivo Nacional.

Já faz tempo que o povo de Natal não olha mais para o céu e observa interessantes rastros espiralados de fumaça branca, que muitas vezes marcavam grandes extensões do firmamento, as rádios locais já não transmitem o bordão “Capital Espacial do Brasil” e tudo isso ficou na memória dos natalenses. Hoje é tudo tão ligado a memória, que até um museu foi criado próximo a entrada da Barreira do Inferno.

As últimas notícias que tive em relação a essa base informam que muito do pessoal ali lotado foi transferido para a Base Aérea de Parnamirim e não se sabe o que exatamente a FAB fará com aquele local.

Mas uma coisa é certa, seja lá o destino que a Barreira do Inferno venha a ter, esse local jamais vai deixar de fazer parte da história potiguar e quem viu aqueles foguetes nos céus de Natal jamais esquecerá aqueles momentos.

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A HISTÓRIA DE UM CARIOCA DE CORAÇÃO, QUE COMBATEU NOS CÉUS DA EUROPA PILOTANDO UM BOMBARDEIRO B-17 E CUJA A FILHA SE TORNOU ATRIZ DE HOLYWOOD

Rostand Medeiros

Em relação à participação de brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial, a primeira lembrança que surge para nós que vivemos neste imenso país tropical é a da atuação da nossa heroica Força Expedicionária Brasileira e a luta dos nossos pracinhas nos campos de batalha da Itália.

Sabemos que muitos dos que envergaram os uniformes do nosso exército na Europa eram filhos de imigrantes e honraram suas famílias e tradições.

Existiram outros filhos de imigrantes nascidos no Brasil, que deixaram nossa nação e lutaram ao lado das forças do Eixo. Outros tantos entraram nas fileiras dos exércitos de nações Aliadas.

Mas houve, por assim dizer, outra categoria de combatentes oriunda de nosso país durante aquele conflito. É a dos filhos de pais estrangeiros, que nasceram, ou não, no Brasil, mas criaram fortes vínculos com nossa nação.

Normalmente estes jovens eram filhos de pessoas que representavam empresas com filiais em nosso país, ou de profissionais liberais estrangeiros que aqui abriram negócios nesta nossa bela terra tropical. Mas que não perderam totalmente seus vínculos com as suas respectivas pátrias.

Paisagem do Rio de Janeiro na década de 1940

Muitos destes jovens estudaram em por aqui, ou tinham mães brasileiras, o que aumentavam enormemente suas ligações pessoais com o nosso país. Tecnicamente eu não sei informar se estes jovens seriam enquadrados como “brasileiros natos”. Mas é certo que viveram entre nós, absolveram nossos costumes, nosso idioma, nosso jeito de ser e levavam para fora muito do nosso jeito tropical.

Nos antigos jornais cariocas temos a história de um deles.

A CAMINHO DA GUERRA

Oscar O’Neill Jr.

Este é o caso de Oscar Delgado O’Neill Junior, um jovem que certamente gostava muito do Rio de Janeiro.

Salvo informação em contrário, sabemos que seu pai, Oscar D. O’Neill, era oriundo de Porto Rico e casado com a Ada Lee O’Neill, sendo este casal bastante conceituado na sociedade carioca da época. Temos a informação que o Sr. O’Neill foi dirigente de uma instituição bancária e que aparentemente sua família morava na Rua Caning, número 31, no bairro de Ipanema, a cerca de 300 metros do mar.

Já sobre a juventude de Oscar Delgado O’Neill Junior, local onde estudou e outras informações, não temos maiores detalhes. Mas sabemos que após a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, o jovem Oscar, então com 25 anos, se alistou na United States Army Air force – USAAF.

Seguiu para o treinamento na terra do Tio Sam, onde se tornou piloto de B-17, o famoso bombardeiro quadrimotor que ficou conhecido como Fortaleza Voadora.

Católico praticante, aqui vemos o cap. O’Neill (com o capacete de voo), ao lado de uma autoridade eclesiástica católica. Abaixo o texto do verso desta foto – Fonte – NARA

Após a fase de aprendizado O’Neill foi encaminhado para servir na 8º Air Force, a grandiosa força de bombardeiros pesados da USAAF que ficava baseada na Inglaterra, de onde atacavam impiedosamente o coração do Reich alemão e todos os locais de importância estratégica para os nazistas.

No conjunto das unidades aéreas da 8º Air Force, O’Neill foi então designado para o 91th Bomb Group, com base na cidade de Bassingbourn, região de East Anglia, Leste da Inglaterra. No 91 th, O’Neill foi encaminhado para o Esquadrão Operacional 401, cujas as letras de identificação pintadas nas fuselagens dos B-17 eram “LL”.

O 91th Bomb Group foi um dos primeiros grupos de bombardeiros B-17 da USAAF a se instalar na Inglaterra. Começou a seguir para aquele país em 25 de outubro de 1942 e já em 4 de novembro realizou seu primeiro ataque. O alvo foi uma base de submarinos na cidade de Brest, na França.

A B-17 Memphis Belle original – Fonte – NARA – ENGLAND: AIRPLANES, MEMPHIS BELLE The Boeing B-17 “The Memphis Belle” is pictured on her way back to the United States after completing 25 missions from an airbase in England. 9 June 1943.

Do 91th Bomb Group fazia parte a B-17 modelo F-10-BO, com número de série 41-24485, que ficaria mundialmente conhecida como “Memphis Belle”. Esta aeronave foi uma das primeiras Fortalezas Voadoras a completar 25 missões de combate com sua equipe intacta. O avião e sua tripulação então retornam aos Estados Unidos, realizando visitas em várias cidades do país para aumentar a venda de Bônus de Guerra com a sua história, Este B-17 também serviu de tema para dois filmes. O primeiro, rodado em 1944, era um documentário intitulado “The Memphis Belle: A Story of a Flying Fortress” e o segundo uma obra dramática de Hollywood de 1990, com o título “Memphis Belle”.

EM COMBATE

Cada missão é uma prova de fogo. A expectativa de retornar para a base não é elevada. As taxas de perdas em missões de combate sobre o continente são exorbitantes. Cerca de um em cada três tripulantes não sobrevivem, ou não completam a quota de 25 missões para retornar aos Estados Unidos.

O capitão Oscar O’Neill recebendo uma condecoração e o texto que existe no verso desta foto – Fonte – NARA

O’Neill vai demonstrando extrema capacidade como comandante de B-17. Em 30 de dezembro de 1942, após lançar suas bombas sobre Lorient, França, o seu avião sofreu uma tremenda ação de combate realizada pelos caças da força aérea de Hitler, a famosa Luftwaffe.

O estrago no quadrimotor é grande, o motor número 4 havia sido arrancado da asa, os instrumentos e o sistema elétrico deixaram de funcionar. Mesmo em condições tão extremas, O’Neill conseguiu atravessar o Canal da Mancha e aterrissar na Inglaterra.

Em 4 de março de 1943 o capitão O’Neill realizou uma missão de combate onde novamente os caças da Luftwaffe atacaram com toda força. Em dado momento uma B-17 de sua esquadrilha se encontrava bastante avariada e na eminência de cair. O capitão O’Neill então manobrou seu avião, trocando de lugar com a aeronave avariada, colocando-a em uma posição mais defensiva. Pelo sangue frio e capacidade de comando, O’Neill foi condecorado com a DFC-Distinguished Flying Cross. Depois vieram as condecorações Air Medal e Oak Leaf Cluster.

Notícia da cerimônia de entrega de condecorações a família do capitão O’Neill no Rio de Janeiro

Algumas destas condecorações foram entregues a sua família pelo adido aeronáutico militar dos Estados Unidos no Brasil, o coronel J. C. Selzer, em uma cerimônia ocorrida no Rio de Janeiro, no dia 26 de outubro de 1943. Estavam presentes a solenidade o embaixador Jefferson Caffery e várias autoridades brasileiras.

A razão da entregue destas medalhas a família do capitão O’Neill, foi pelo fato dele se encontrar prisioneiro dos alemães. O fato ocorreu em 17 de abril de 1943, durante um ataque a fábrica de aviões Focke-Wulf, na cidade de Bremen, Alemanha.

VOLTA A CIDADE MARAVILHOSA

O retorno de Oscar do campo de prisioneiros para o Rio de Janeiro ocorreu no dia 8 de agosto de 1945, onde desembarcou de um hidroavião “Clipper” da empresa Pan American World Airways. Junto ao aviador vinha a sua esposa Irene, uma inglesa com quem ele havia casado na cidade de Londres, após a sua libertação. Chamou a atenção do repórter do jornal carioca Diário da Noite, na edição de 8 de agosto de 1945, como o capitão O’Neill dominava fluentemente a língua portuguesa.

Descobrimos que após a guerra Oscar O’Neill Jr. teve participação em empresas controladas pelo seu pai no Brasil, como a O’Neill Ltda e a Perfumaria Vibour. Outro trabalho realizado por O’Neill no Rio de Janeiro foi na Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, no setor de cultura desta representação diplomática.

Jennifer O’Neill

Ainda no Rio de Janeiro, em 20 de fevereiro de 1948, nascia a sua filha Jennifer.

Em 1962 na família O’Neill decide se mudar para os Estados Unidos. Naquele mesmo ano a sua bela filha foi descoberta pela agência de modelos Ford e colocada sob contrato. Aos 15 anos, a jovem Jennifer O’Neill estava na capa das revistas Vogue, Cosmopolitan e Seventeen e ganhando US$ 80.000,00 somente em 1962. Logo a garota estava trabalhando como modelo em Nova York e Paris.

Diante de sua beleza, em 1968 a indústria do cinema chamou Jennifer para seu primeiro papel. Este foi no filme “For Love of Ivy”. Apesar de sua pequena participação, ela atraiu a atenção do diretor Howard Hanks, que em 1970 a contratou para estrelar “Rio Lobo”, onde Jennifer O’Neill contracenou com John Wayne. Seu grande momento foi no filme “Summer of ‘42”, que a tornou extremamente conhecida nos Estados Unidos.

Junto a sua aeronave e sua tripulação, vemos o capitão O’Neill, o terceiro agachado, da esquerda para a direita – Fonte – NARA

Não sei se em sua biografia, “Surviving Myself”, a bela atriz Jennifer O’Neill comenta o fato de ter nascido no Brasil, ou alguma informação sobre a sua relação com nosso país. Mas nesta história me chamou a atenção o fato do seu pai, mesmo sem ter nascido no Rio de Janeiro, sempre fazia questão de apontar em documentos oficiais que esta era a sua cidade.

VEJA TAMBÉM A HISTÓRIA DE UM HERÓI DA RAF DURANTE O CERCO DE MALTA E QUE VIVEU MUITOS ANOS EM RECIFE

– https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/12/08/um-heroi-da-raf-em-malta-que-cresceu-em-recife/

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QUANDO KIRK DOUGLAS BRINCOU O CARNAVAL COM UM CHAPÉU DE VAQUEIRO E DORMIU EM UMA REDE POTIGUAR

Durante o Carnaval de 1963, Kirk Douglas, Um dos Maiores Astros de Hollywood, Conheceu e Descansou em Uma Típica Rede de Dormir Feita no Rio Grande do Norte, Usou um Chapéu de Couro e Conheceu a Cultura Nordestina Através do Natalense Sylvio Piza Pedroza, Ex-Prefeito de Natal e Ex-Governador Potiguar, Um Político Que Muito Valorizou a História da Sua Terra.

Rostand Medeiros – IHGRN

No início do ano de 1963 o Brasil era um país que vivia sob o signo da intranquilidade, principalmente no campo político. O gaúcho João Goulart, o Jango, era o Presidente do Brasil e ele ocupava o Palácio do Planalto há um ano e cinco meses, depois da nação ficar assombrada com a intempestiva renúncia do paulista Jânio Quadros.

Já a maioria da população brasileira ainda não possuía em suas residências os serviços básicos necessários para uma boa qualidade de vida, havia uma pesada crise econômica e a insatisfação de setores da sociedade com os rumos do governo Goulart fazia com que nuvens negras surgissem no horizonte político de Brasília.

Brasília, a nova capital brasileira – Fonte – https://conhecimentocientifico.r7.com/

Se dentro do país a situação se tornava complicada e seu povo vivia em meio a muitos problemas, a visão do Brasil no exterior até que não era das piores. No ano anterior a nossa seleção havia conquistado o bicampeonato de futebol no Chile, a Bossa Nova era cantada e elogiada em várias partes do mundo, o Cinema Novo começava a chamar atenção fora do país e Brasília encantava os estrangeiros com o arrojo de sua construção e sua bela arquitetura.

É nesse cenário que desembarcaram em Brasília o ator de cinema norte-americano Kirk Douglas e sua esposa Anne, que nascera na Bélgica e era produtora cinematográfica. 

Carnaval Em Brasília e Com Um Chapéu De Vaqueiro Nordestino

Esse astro de Hollywood, nessa época vivendo o auge de sua carreira, havia sido convidado para conhecer o nosso país e aproveitar os principais bailes de carnaval da novíssima capital federal e do Rio de Janeiro. O casal desembarcou na madrugada de sexta para o sábado de carnaval, dia 22 de fevereiro de 1963, no avião da Pan American Airways. Entre as figuras que aguardavam Kirk Douglas estava Luiz Severiano Ribeiro Junior, dono da maior rede de salas de cinema do país, e José Tjurs, proprietário do Hotel Nacional de Brasília. 

Kirk Douglas no Palácio do Planalto – Fonte – http://www.memoriascinematograficas.com.br

Na tarde de sábado o casal se encontrou com o prefeito Ivo de Magalhães e passearam por Brasília na companhia de Israel Pinheiro da Silva, o primeiro prefeito da cidade. Foram até mesmo ao Palácio do Planalto, mas o presidente João Goulart havia viajado para o Rio Grande do Sul (Correio Braziliense, 23/09/1963, págs. 3 e 8). Kirk Douglas se impressionou com a capital brasileira e comentou que “Para fazer isto tem que ter peito”. Vale ressaltar que o cargo de prefeito em Brasília foi extinto em outubro de 1969, passando os governadores do Distrito Federal a atuarem na prática como dirigentes da capital.

Capa da revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963)

À noite o casal Douglas foi para o II Baile da Cidade, no Hotel Nacional, onde o carnaval rolou solto. O astro hollywoodiano, talvez por se encontrar na capital do país, foi vestido para o baile de maneira muito formal, envergando um bem talhado smoking. Mas na cabeça estava com um típico chapéu de couro do vaqueiro nordestino. Inclusive o astro foi fotografado com a indumentária sertaneja, beijando sua mulher Anne e a foto foi capa da revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963), uma das principais do Brasil naquela época.

Dormindo Em Uma Tradicional Rede Potiguar, Mais Macia Que Sua Cama em Beverly Hills

No outro dia Kirk Douglas e Anne foram para uma casa alpendrada, feita de tábuas de madeira, as margens do Lago Paranoá, onde o ator de Hollywood foi fotografado tranquilamente dormindo em uma tradicional rede confeccionada no Rio Grande do Norte.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Em outras fotos ele aparece sorrindo e abraçado a sua esposa Anne. Algumas pessoas estão sentadas em cadeiras e observam o casal. Na época essas fotos foram creditadas a Henri Ballot, mas na edição seguinte da revista houve uma retificação e o crédito passou ao jovem paraibano Roberto Franca Stuckert, então com 19 anos.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

A casa, pelo menos nas fotos, parece bem simples e rústica e segundo o crítico de cinema Ely Azeredo, que assinou o pequeno texto existente na revista O Cruzeiro (Ed. 16/03/1963, págs. 108 a 111), Kirk Douglas “experimentou pela primeira vez as delícias de uma rede no alpendre da casa de campo do Comodoro do Iate Clube Silvio Pedroso”. 

Mas o texto de Ely Azeredo possui um pequeno erro, pois o então Comodoro do Iate Clube de Brasília não era “Silvio Pedroso”, mas o ex-prefeito de Natal e ex-governador do Rio Grande do Norte Sylvio Piza Pedroza.

O PresiPresidente Juscdente Juscelino visitando o Iate Clube de Brasília em 1961, próximo ao final do seu mandato. Sylvio Pedroza está a sua esquerda – Fonte – www6.iateclubedebrasilia.com.br

Sylvio tinha então 45 anos de idade, era subchefe da Casa Civil da Presidência da República, cargo que assumiu ainda no governo Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), passou pelo curto período de Jânio Quadros (1961) e continuava na função no governo João Goulart.

Provavelmente pela natureza do seu cargo e, quem sabe, pela sua fluência no idioma inglês foi que Sylvio Pedrosa se aproximou de Kirk Douglas e eles acabaram nas margens do Lago Paranoá.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Talvez essa proximidade explique o chapéu de vaqueiro usado pelo astro de Hollywood no baile de carnaval no Hotel Nacional. Isso é bem possível, já que Sylvio Pedroza ficou conhecido no Rio Grande do Norte por sempre valorizar suas tradições e principalmente a história de sua terra.

E Kirk Douglas parecia bem à vontade naquela tradicional rede potiguar e naquela casa de aparência rústica e simples. O que não seria nenhuma novidade para um filho de imigrantes pobres nos Estados Unidos, que fugiram das perseguições e dos pogroms contra os judeus no Império Russo.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

O ator nasceu na cidade de Amsterdam, no estado de Nova York, em 9 de dezembro de 1916 e foi batizado como Issur Danielovitch. Aprendeu iídiche antes do inglês e conviveu com um pai alcoólatra e fisicamente abusivo, que bebia o pouco dinheiro que ganhava recolhendo lixo e deixava sua mãe e suas seis irmãs na miséria. Mesmo assim Douglas avançou nos estudos e conseguiu entrar na universidade, onde se formou em Direito em 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial foi tenente a bordo de um pequeno caça submarinos no Pacífico, um tipo de barco que ficou conhecido na Marinha do Brasil como “Caça ferro”. Após ser dispensado devido a um acidente na sua embarcação, Kirk Douglas voltou para Nova York e começou a trabalhar no rádio, teatro e comerciais. Em 1946, fez sua estreia nas telas em The Strange Love of Martha Ivers e teve uma carreira de enorme sucesso no cinema, ganhando três indicações ao Oscar e um Oscar pelo conjunto de sua obra. Em 1960 atuou no papel principal do elogiado filme Spartacus, dirigido por Stanley Kubrick e ganhador de quatro Oscars, E foi pelo seu papel em Spartacus que Kirk Douglas foi bastante referenciado nessa visita ao Brasil.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Antes que esqueça!

Kirk Douglas gostou tanto da rede de dormir fabricada em terras potiguares, que em um texto que escreveu para a revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963, pág. 9) comentou…

“Pela primeira vez experimentei uma rede brasileira, mais confortável e macia do que minha cama em Beverly Hills”.

Tradição Potiguar

Para Sylvio Pedroza também não houve nenhum problema em oferecer ao astro de Hollywood uma típica rede potiguar, um hábito comum no Rio Grande do Norte, principalmente nos alpendres das casas existentes nas nossas belas praias.

Sylvio Pedroza, quando Prefeito de Natal, em uma solenidade na Escola Doméstica em homenagem ao Presidente da República João Café Filho, p único potiguar a chegar a esse cargo.

Nascido em Natal no dia 18 de março de 1918, Sylvio Piza Pedroza era filho de Fernando Gomes Pedroza e Dona Branca Toledo Piza Pedroza. Seu pai foi um agropecuarista e tido como um dos mais abastados comerciantes do Rio Grande do Norte. Sylvio estudou na Inglaterra e no Rio de Janeiro, onde se formou em Direito e ali morou por vários anos. Durante a Segunda Guerra retornou para Natal e em abril de 1945 foi nomeado membro do Conselho Administrativo do Estado do Rio Grande do Norte. No ano seguinte, quando tinha apenas 26 anos, foi indicado prefeito de Natal e foi sendo empossado pelo interventor federal Ubaldo Bezerra de Melo em abril de 1946. Ficou no cargo até fevereiro de 1950.

Posse de Sylvio Pedroza na Prefeitura de Natal

Durante as eleições de outubro de 1950 elegeu-se vice-governador do Rio Grande do Norte, assumindo a chefia do governo quando o então mandatário potiguar Jerônimo Dix-Sept Rosado Maia faleceu em um trágico acidente aéreo em Sergipe. Ficou no cargo até 1956, quando assumiu funções no Banco do Nordeste e depois tentou uma vaga ao Senado Federal, mas não se elegeu.

Ouvi de velhos políticos que Sylvio Pedroza atuou com simplicidade, sem pedantismo e que sabia ouvir os mais simples de sua terra. Além disso, incentivou o desenvolvimento de obras que trataram sobre a história potiguar, principalmente através de uma parceria com Câmara Cascudo.

Em 7 de março de 1947 Cascudo entregava ao jovem prefeito os primeiros exemplares do livro História da Cidade do Natal, até hoje uma referência sobre o tema (A Ordem, o9/03/1947, pág. 3). A parceria seria repetida em 1955, quando Sylvio Pedroza era governador potiguar e conseguiu com o Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura a impressão dos exemplares do livro História do Rio Grande do Norte. Uma obra com 524 páginas e cujos primeiros exemplares foram entregues ao governador em abril de 1956 (O Poti, 17/04/1956, pág. 16).

Para seus críticos Sylvio Pedroza utilizou esse apoio a Cascudo apenas como um estratagema para consolidar seu nome e torná-lo mais conhecido no Estado. Pelo fato dele ser considerado como alguém “de fora”, por apenas ter nascido em Natal e morado por muitos anos distante da terra potiguar, Pedroza não era conhecido da população local e nem do meio político e por isso a aproximação. Ouvi de velhos políticos que, se isso realmente aconteceu quem ganhou foi o povo potiguar com a qualidade do material produzido por Cascudo. Para esses homens Sylvio Pedroza atuou politicamente com simplicidade, sem pedantismo e que sabia ouvir os mais simples de sua terra.

Sylvio Pedroza e Getúlio Vargas em 1954

Câmara Cascudo, em seu livro Rede de Dormir: Uma pesquisa etnográfica (MEC, 1957, 1ª Ed. págs. 31 e 32), comentou que essa relação dos políticos do Rio Grande do Norte com as redes de dormir é coisa bem antiga.

“Muita rede foi enviada de presente aos companheiros do Sul. E era lembrança local apreciada, ”souvenir” dos deputados gerais e senadores do Império aos seus colegas meridionais. O Visconde de Mauá possuiu uma grande e confortável rede, dada pelo deputado pelo Rio Grande do Norte, Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti, Amaro Bezerra, o “Tintureira” bonachão e violento nas últimas décadas imperiais. Na República, o deputado Augusto Severo, que morreu na explosão do dirigível Pax em Paris (12 de maio de 1902), voltava do Natal para a Câmara levando um carregamento de redes de dormir e queijos de manteiga do Seridó, ofertas disputadas pelos seus amigos do Parlamento. O senador Pedro Velho obrigava a instalação de sua rede inseparável nos hotéis onde morava no Rio de Janeiro, rede em que Rui Barbosa se deitou, sorridente, e Pinheiro Machado balançava-se, enrolando palha de milho com fumo negro de Goiás.”

Sylvio Pedroza

E De Que Cidade Veio a Rede?

No início desse texto imaginava que essas redes que existiam na “casa de campo” de Sylvio Pedroza as margens do Lago Paranoá eram oriundas de Caicó. Pois na minha meninice dormi em ótimas redes vindas dessa cidade seridoense e ouvia falar da fama que esses materiais produzidas por lá tinham em relação a qualidade.

Mas recorrendo aos conhecimentos e a experiência do meu amigo Adauto Guerra Filho, para mim o maior historiador vivo do Seridó Potiguar e morador de Caicó, na época do episódio em Brasília realmente existiam boas redes, com ótima qualidade e sendo produzidas na Capital do Seridó. Mas eram em pequeno número e a produção estava em crise.

Mestre Adauto Guerra Filho, o maior historiador vivo do Seridó Potiguar, autor de quinze livros, grande conhecedor da história de sua região. É um homem humilde, solicito e amigo. Faz tempo que é merecedor de reconhecimento maior.

A informação de Mestre Adauto encontra respaldo em Câmara Cascudo, no livro Rede de Dormir: Uma pesquisa etnográfica, de 1957.

Cascudo informou que através do apoio do seu amigo Aderbal de França, que trabalhava na Inspetoria Regional de Estatística Municipal no Rio Grande do Norte, em 1950 existiam por aqui 42 fábricas de redes e em 1956 o número se reduziu a somente 4, sendo três em Mossoró e apenas uma em Currais Novos. No último período uma das fábricas mossoroenses produziu 20.000 e outra 6.304 redes.   

Dos tempos áureos da produção de redes no Rio Grande do Norte, segundo descobri pesquisando no site da Biblioteca Nacional, as indústrias nessa área que mais se destacaram no Rio Grande do Norte foram a Fábrica de Redes Potiguar, de J. Oliveira & Cia., de Natal e localizada no bairro da Ribeira, próximo ao Teatro Alberto Maranhão (A Ordem, 29/10/1938, pág. 1). Já em Mossoró se destacou a Fábrica de Redes São Vicente, de Osmídio & Cia. Ltda., que ficava na Rua Coronel Saboia (Almanak Laemmert, edição 1937, pág. 1.606). No final da década de 1940 mereceu registro a Fábrica de Redes e Tecidos Santa Maria, de José Dhalia da Silveira, com sede na Rua dos Pajeús, 1.713, bairro do Alecrim, em Natal (A Ordem, 21/06/1948, pág. 3).

Kirk “Spartacus” Douglas sendo “atacado” no Baile do Municipal do carnaval de 1963 no Rio de Janeiro

Independente da cidade potiguar que fabricou a rede que Kirk Douglas dormiu em Brasília, aparentemente ele descansou bastante. Aliás, ele precisou descansar, pois no domingo de carnaval partiu com na sua esposa para o Rio de Janeiro, onde participou, juntamente com mais de 5.000 foliões, no famoso Baile do Municipal. O ator foi fantasiado de Spartacus e caiu na farra. Apesar do “ataque” das cariocas ao astro de Hollywood, ele não desgrudou de Anne e chamou atenção no Rio pelo comportamento positivo e atencioso ao lado da esposa.

Kirk e Anne Douglas – Fonte – G1

Caso raro em Hollywood, o casal Douglas mantiveram-se unidos até a morte de Kirk, que ocorreu em fevereiro de 2020, quando ele estava com a idade de 103 anos. Já sua esposa Anne faleceu em sua casa em Beverly Hills, dias após seu 102º aniversário, em abril de 2020.  

O RÁDIO FAROL DA PRAIA DA LIMPA

Antenas e estruturas do Rádio Farol da Limpa, atualmente na área do 17° GAC – Arquivo Nacional.

Antes da Segunda Guerra a Marinha do Brasil Construiu em Natal uma Moderna Estação de Rádio Comunicação e Navegação. Um Investimento Que Apontava a Importância Estratégica da Capital Potiguar. E o Que Restou Desse Local??

Rostand Medeiros – IHGRN

Nos primeiros tempos da aviação, um grande problema para os pilotos que buscavam cruzar os oceanos era a questão do direcionamento sobre imensas massas d’água. Qualquer erro de localização e navegação aérea resultaria na queda da aeronave sem combustível no meio do mar.

Para sanar esse problema, a incipiente indústria aeronáutica criou sistemas que utilizavam a recepção de ondas de rádio, com a finalidade de determinar a direção através da localização de uma estação de transmissão instalada em uma posição geográfica fixa e conhecida. As aeronaves passaram a utilizar antenas de rádio direcional que determinavam a localização dessas estações e essas, por sua vez, transmitiam sinais em Código Morse com o prefixo designador do local. Esse sistema era chamado radiogoniometria.

Entre o final da década de 1920 e 1930, sabemos que a Marinha do Brasil possuía uma estação de radiotelegrafia na região de Refóles. Essa estação atuou, por exemplo, no contato com o navio cargueiro inglês Phidias em 1927, para que a sua tripulação informasse se haviam visualizado o hidroavião português Argos, que se dirigia para Natal. Já no carioca Jornal da Manhã, edição de 02 de novembro de 1928, na página 11, encontramos a inauguração na região do bairro de Petrópolis de uma estação de rádio de ondas curtas, de propriedade do Telegrapho Nacional. Havia outra estação ligada à empresa exportadora de algodão S.A. Wharton Pedroza, mas desconhecemos a natureza de suas operações.

Essas estações radiotelegráficas tiveram papel importante na radiocomunicação potiguar, mas, como Natal se tornou um importante centro de movimentação aérea, era natural a criação de uma estação radiogoniométrica de localização e direcionamento aeronáutico. O local escolhido foi próximo ao estuário do Rio Potengi, e da Fortaleza do Reis Magos, em uma área de dunas elevadas, não muito distante das margens do rio, em um setor conhecido como Praia da Limpa. Ali próximo ficavam as bases de hidroaviões do Sindicato Condor e PANAIR[1].

O Rádio Farol da Limpa visto do Rio Potengi.

O projeto foi levado adiante pela Diretoria-Geral de Navegação da Marinha do Brasil, cujos técnicos chegaram a Natal em 06 de julho de 1936. Com recursos oriundos do Ministério da Fazenda, a estação foi erguida sob as ordens do Capitão de fragata Guilherme Bastos Pereira das Neves, que trouxe do Rio de Janeiro vários profissionais especializados para construir aquilo que ficou conhecido em Natal como Rádio Farol da Limpa.

Esses homens trabalharam principalmente para erguer duas torres de 62 metros de altura cada uma, afastadas uma da outra por 100 metros, sendo pintadas de vermelho e branco e possuindo no topo iluminação para evitar colisão com aeronaves. Já a aparelhagem instalada para emitir os sinais era toda alemã, da empresa Telefunken Gesellschaft für drahtlose Telegraphie mbH, que transmita sinais de rádio em código Morse, na frequência de 1.050 metros.

O prefixo que partia de Natal era P.X.N., sendo transmitido a cada cinco minutos, que podia se “escutado desde a África”. Além do aparelho de radiogoniômetro, havia, no Rádio Farol da Limpa, um aparelho de rádio com grande alcance, que podia fazer “transmissão e recepção por telegrafia e telephonia”. Existia igualmente no local uma estação de rádio de ondas curtas “com capacidade de 100 volts” e um gerador elétrico à gasolina.

Mesmo existindo rede elétrica no local, a colocação desse gerador servia para que a estação não deixasse de transmitir em nenhum momento. No local foram erguidas quatro construções: duas casas para os radiotelegrafistas, uma casa para os equipamentos de rádio e a última que servia para abrigar o gerador e como depósito.

No dia 27 de janeiro de 1937, uma quarta-feira, aconteceu a inauguração como Rádio Farol da Limpa.

Segundo reportagem publicada no jornal A República, um dia após a solenidade, na sua página 10, aquela estrutura era a terceira do gênero construída no país, sendo a primeira edificada na praia do farol de São Tomé, em Campo dos Goytacazes, Rio de Janeiro, e a segunda na Barra do Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Na inauguração esteve presente o então Governador Rafael Fernandes e vários políticos potiguares. Fernandes foi convidado pelo Capitão Pereira Neves a ligar os aparelhos e realizar a primeira transmissão.

O Governador Rafael Fernandes e o Capitão de fragata Guilherme Bastos Pereira das Neves, na inauguração do Rádio Farol da Limpa.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Rádio Farol da Limpa aparentemente continuou a funcionar, pois, no dia 04 de julho de 1944, recebeu a visita de Dom Marcolino Dantas, então Bispo de Natal, e do Vigário Capitular de Mossoró Júlio Bezerra. No local, as autoridades eclesiásticas foram recebidas por Antônio José Caldas, Primeiro sargento da Marinha, potiguar da cidade de Portalegre.[2]

Em 2019, por solicitação do Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte, estive visitando esse local, que atualmente, se encontra na área interna do 17º Grupamento de Artilharia de Campanha.

Casas do antigo Rádio Farol da Limpa, na área do atual 17° GAC.

Nesse aquartelamento do Exército Brasileiro contamos com todo apoio do seu comandante, o Tenente-coronel Haryan Gonçalves Dias, bem como do Capitão Renato Esteves Costa, que nos acompanhou na visita ao local.

Mesmo não mais existindo as antigas torres de comunicação, ali encontramos todas as casas construídas em 1936 ainda muito bem preservadas, com poucas alterações nas estruturas e sendo utilizadas como moradia por militares e seus familiares.

NOTAS

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[1] Atualmente, esse local é ocupado pelas dependências do 17º Grupamento de Artilharia de Campanha, do Iate Clube de Natal, do Comando do Terceiro Distrito Naval e pelo prédio histórico da Rampa. Já a toponímia Praia da Limpa, hoje, é conhecida apenas pelos moradores mais idosos dos bairros das Rocas e Santos Reis e pelos historiadores.

[2] Ver A Ordem, Natal, 04 de julho de 1944, pág. 6.

A HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA DE JUDEUS QUE FUGIU DAS PERSEGUIÇÕES EM SUA TERRA E VIERAM PARA A CIDADE DE NATAL PARA VIVER EM PAZ

E A ESTRANHA SITUAÇÃO DOS NATALENSES NO SÉCULO XXI, QUE BUSCAM AS SUAS ANTIGAS RAÍZES JUDAICAS PARA FUGIR DA ATUAL E CRESCENTE VIOLÊNCIA EM SUA TERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Nos últimos anos no Rio Grande do Norte é notório que várias pessoas buscam ardentemente nas histórias dos seus antepassados uma pretensa ligação com a fé judaica.

Isso é bem interessante para quem vive no Rio Grande do Norte.

Pois esse é um Estado onde é perceptível que a sua classe dirigente (de todas as orientações ideológicas) pouco se importa com os temas ligados à nossa cultura e a nossa própria história. São dirigentes que pouco sabem e pouco utilizam como ferramentas positivas para o crescimento da cidadania potiguar as nossas interessantes e ricas manifestações culturais, ou dos fatos ligados ao nosso passado. Dito isso, é inegável que essas buscas individuais por uma pretensa “Raiz judaica” chamam a minha atenção.

Percebi que esse movimento de potiguares em busca da “Estrela de Davi” se tornou tão intenso, que ao publicar algumas postagens relacionadas com esse tema no “TOK DE HISTÓRIA”, todas tiveram muita procura e intensa visibilidade.

A Estrela de Davi na mais antiga cópia completa sobrevivente do texto massorético, o Códice de Leningrado, datado de 1008 – Fonte – https://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/788679/jewish/Star-of-David-The-Mystical-Significance.htm

Busca Da Fé?

Tal como o autor desse texto, cujos antepassados imigraram do Velho Mundo para viver em solo potiguar no início do século XVIII, muitas das pessoas que buscam suas “Raízes judaicas” possuem histórias semelhantes em relação aos seus antepassados.

Soldados romanos carregando os despojos das guerras judaicas – Fonte – http://www.bible-history.com/archaeology/rome/arch-titus-menorah-1.html.

Mesmo que já tenha se passado quase três séculos que essas pessoas aqui chegaram para povoar as terras potiguares, mesmo que não exista nenhuma ligação com terra de onde esses antigos vieram, mesmo tendo avós, bisavós e tataravós que nasceram em nosso sertão e debaixo do credo cristão, nos dias atuais muitos insistem e persistem arduamente nessa busca por essa “Estrela Perdida”.

Levado unicamente pela curiosidade, sempre que me encontro com aqueles que desejam se ligar (ou já se ligaram) ao judaísmo através das histórias dos seus antepassados, eu não perco a oportunidade de questionar a razão desse esforço e dessa busca.

Nos diálogos que tive percebi que alguns realmente acreditam nessa antiga ligação religiosa, que levam o tema a sério, estudam e pesquisam bastante os fatos. São pessoas que possuem informes orais que, segundo eles, provam essa ligação de maneira concreta e afirmam que seus antepassados realizavam em datas determinadas certos atos e ações que apontam para essa ligação com a fé judaica. Em meio a certos critérios, percebi que eles possuem pura e simplesmente a fé nessas teses. E sobre fé eu nada comento, apenas respeito!

Mas outros com quem dialoguei, vários inseridos nos setores sociais mais privilegiados da sociedade potiguar, essa busca pouco tem relação com a vontade de realmente se ligar a uma religiosidade praticada pelos antigos. Observei que para essas pessoas, a pretensa descoberta dessas ligações antigas se resume unicamente em conseguir determinados mecanismos que lhes facilitem a conquista de um passaporte estrangeiro para imigrar para outro país.

Pude notar que para esses que buscam suas “Raízes judaicas” como forma de facilitar sua saída do Brasil, várias são as razões pessoais para realizar esse tipo de projeto. Entretanto houve uma unanimidade nesses diálogos – A existência da violência urbana em Natal como principal motivador dessa mudança.

Ouvi repetidamente que “Natal está muito violenta”, que tem “Muito medo de viver em Natal”, ou medo de “Criar filhos em um lugar tão violento” e um até me disse que “Valia a pena até virar judeu para ir embora”.

E é verdade. Faz tempo que a capital potiguar deixou de ser o lugar idílico, calmo e tranquilo que conheci na minha juventude.

Protesto na Praia de Ponta Negra, em Natal, em 2017. O belo cartão postal da capital potiguar virou um “cemitério” em protesto por número de homicídios no Rio Grande do Norte naquele ano – Fonte – Reprodução/Inter TV Cabugi – https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2019/06/05/rio-grande-do-norte-tem-a-maior-taxa-de-homicidios-de-jovens-do-brasil-diz-atlas-da-violencia.ghtml

A nossa violência urbana, igualmente comum em outras grandes cidades brasileiras, por aqui avançou (e avança) de forma contundente e intensa. Muitas são as razões para esse fenômeno, sendo claro que as fortes desigualdades econômicas e sociais amplificadas nas últimas décadas, muito contribuíram para essa terrível mudança. Mas foi (e ainda é) algo tão forte, tão avassalador, que mudou totalmente nossos hábitos de convivência e de agir no dia a dia. E não posso esquecer que nas nossas periferias continuam a ser assoladas por uma matança incrível e cotidiana, onde os maiores atingidos são principalmente os jovens pobres e negros.

Pastores judeus da Bessarábia – Fonte – https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00279.html

Foi quando percebi que essa situação contemporânea envolvendo potiguares, possui uma certa relação com os judeus membros das famílias Mandel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, que devido a violência contra a fé judaica na Bessarábia, deixaram a sua terra na primeira metade do Século XX para encontrar na cidade de Natal aquilo que muitos atualmente sentem que perderam – Paz e tranquilidade para viver e crescer.   

Uma Região Intensa e Complicada

Possuindo uma área de 45.630 km², pouco menor que o estado do Espírito Santo, a Bessarábia fica localizada na Europa Oriental e na atualidade dois terços dessa região se encontram na República da Moldávia e uma pequena parte na República da Ucrânia. Mas no início do século XIX sua área era um principado vassalo aos turcos otomanos, que passou ao Império Russo através de negociações.

Em 1856, após a Guerra da Criméia, a Bessarábia fez parte de uma Moldávia independente, causando a perda do Império Russo acesso ao rio Danúbio, situação a qual não se conformaram. Através de negociações e ameaças, a região voltou para o domínio dos Czares em 1878. Mas em 1917, em meio a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, a Bessarábia passou a fazer parte do então Reino da Romênia, cujas tropas invadiram a região em troca da passagem livre das tropas alemãs para a Ucrânia. O governa da recém criada União Soviética não se conformou com a situação e passou a considerar essa área como sua, além de se colocava politicamente favorável a retomá-la, a força se necessário. 

Até esse período, pelas idas e vindas em sua história, dá para perceber que a Bessarábia viu muita coisa acontecer, principalmente o sangue da sua gente derramado em várias guerras. E os judeus que lá viviam estavam sempre propensos a sofrerem com essa volatilidade política, mesmo vivendo nessa região ha séculos.

Os Judeus se estabeleceram na Bessarábia no século XV, formando comunidades mais ou menos numerosas. Com o tempo começaram a participar ativamente do comércio local, tornando-se conhecidos pela fabricação de bebidas alcoólicas. Um censo realizado em 1900 apontou que viviam na Bessarábia 1.935.000 pessoas, sendo 219.000 judeus. Eles dividiam esse espaço com romenos, russos, ucranianos, búlgaros, povos de origem turcas e minorias de origem grega e alemã. Provavelmente nesse período ali viviam os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband.

Segundo um conjunto de fichas que classificaram os estrangeiros residentes em Natal, produzidas pelo Departamento de Segurança Pública em 1937 e atualmente guardada no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte, descobri que dezesseis judeus, dessas seis famílias comentadas, vieram da Bessarábia e desembarcaram no Brasil entre 1912 e 1935. A maioria dessas pessoas inicialmente desembarcou em outras capitais brasileiras, para depois seguirem em momentos distintos para Natal. Eram homens e mulheres com idades variando de 61 a 19 anos, vindos das cidades de Secureni e Ataki, localizadas a nordeste da Bessarábia e distantes apenas 28 quilômetros uma da outra.

Historicamente os judeus que viviam na região de Secureni, onde consegui melhores informações, viviam do pequeno comércio, plantavam tabaco e beterraba, derrubavam e vendiam madeira, tinham moinhos de farinha e negociavam com cavalos, ovelhas, frutas e vegetais. Entre eles também haviam carpinteiros, sapateiros, peleteiros, serralheiros e outros profissionais.

Se no início do século XX essas duas cidades faziam parte da Romênia, atualmente Secureni, hoje chamada Sokyryany, fica no Condado de Chernivsti, na Ucrânia, ao lado da fronteira da República da Moldávia, onde a poucos quilômetros se encontra a antiga Ataki, atual Otaci.

Perseguições

Na primeira metade do século XIX, os judeus que viviam na Bessarábia não estavam sujeitos a perseguições dos russos. Mas em 1835, quando essa região estava gradualmente começando a perder sua autonomia e as ações de maior fortalecimento da população russa se multiplicaram, as leis antijudaicas começaram a ser aplicadas na Bessarábia, com a criação de vários decretos que tornaram a vida deles bastante complicada.

Judeus começaram a ser segregados nas grandes cidades, proibidos de estudar, impedidos de possuir propriedades e ainda exilados e isolados em pequenas aldeias espalhadas pela Europa Oriental.

As sociedades europeias da época possuíam um grande número de judeus integrados, participando até mesmo das esferas políticas, militares, econômicas e intelectuais. Apesar disso existiam fortes correntes antissemitas, de raízes religiosas ou não, na opinião pública europeia da época. Entre os cristãos europeus mais devotos, os judeus eram considerados como os “Algozes de Jesus” e outro tipo de preconceito bastante forte era o de ordem econômica. Diante desse quadro, não demorou para à situação dos judeus na Bessarábia piorar.

Macabro resultado do Primeiro Progrom de Chisinau em 1903.

Em 6 a 7 de abril de 1903, na cidade de Chisinau, atual capital da Moldávia, durante o Pessach, a Páscoa judaica, habitantes locais foram incentivados por autoridades do Império Russo para organizarem um “pogrom”, ou seja, uma série de ataques massivos, espontâneos contra os judeus, caracterizado por assassinatos, espancamentos, assédio, destruição de casas, de negócios, templos religiosos e outros ataques violentos. 

O chamado Primeiro Pogrom de Chisinau deixou 49 judeus assassinados, entre estas várias crianças. Cerca de 500 pessoas ficaram feridas, 1.500 casas e lojas judias foram parcialmente ou totalmente destruídas e 2.000 famílias judias ficaram desabrigadas.

Este pogrom abalou a população judia do Império Czarista e marcou uma virada na opinião pública judaica e mundial. Isso foi seguido por um novo aumento nas ondas de emigração de judeus da Europa Oriental para os Estados Unidos e para à Palestina.

O Presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt chama a atenção do Czar da Rússia Nicolau II para o massacre de Chisinau.

Uma das consequências desse ataque foi a vinda de 267 judeus da Bessarábia, distribuídos em 37 famílias, para formar uma colônia agrícola no Brasil, que ficou conhecida como Colônia Philippson. Eles chegaram em 18 de outubro de 1904 para ocupar uma área de 4.472 hectares, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. 

Mas não demorou e os judeus da Bessarábia levaram uma segunda dose de violência. Entre 19 e 20 de outubro, novamente em Chisinau, ocorreu um segundo progrom, com 19 mortos. Dessa vez o número de vítimas foi menor porque os judeus resistiram em algumas áreas e chegaram a matar alguns atacantes. Já na área das cidades de Secureni e Ataki não ocorreram ataques dos russos, mas o medo passou a ser a tônica do dia a dia desses judeus, que poucos anos depois começariam a imigrar para Natal.

Monumento na Moldávia em honra aos que morreram nos progroms realizados na Bessarábia.

Logo a região da Bessarábia, conforme comentamos anteriormente, passou a ser dirigida por autoridades do atualmente extinto Reino da Romênia. Isso criou a ideia que as perseguições diminuiriam, mas não foi assim que aconteceu.

Os judeus que viviam na cidade de Secureni tinham relações estáveis ​​com seus vizinhos, mas sofriam com a atitude dos agentes do governo. No final de 1921, na véspera do Yom Kippur, judeus andando nas ruas foram presos, muitos homens, mulheres e crianças foram retirados à força de suas casas e levados para um campo fora da aldeia, onde foram vigiados por guardas armados e montados em cavalos. Depois da meia-noite, em meio a muito frio, o Chefe da Polícia, outros policiais e um médico indicado pelo governo vieram ao campo. Queriam prender dois refugiados que haviam cruzado um rio das proximidades e seriam espiões russos. Ameaçaram que no caso de não encontrar os dois homens, eles deportariam todos da aldeia. Os soldados abusaram dos judeus, mas como não encontraram os dois elementos desistiram da ação e todos voltaram para casa.

Parece que com essa perseguição (e talvez outras mais), associado a notícia da mudança de judeus da Bessarábia para o Brasil, tornou atrativa a ideia de alguns judeus das cidades de Secureni e Ataki mudarem para o nosso país. Pois a maioria dos judeus que vieram dessa região para viver em Natal, partem da Bessarábia na primeira metade da década de 1920.

Chegada ao Novo Mundo

Ao tentarmos cruzar informações disponíveis na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, com os dados que possuímos sobre os membros das famílias Mendel, Schor, Ribenboim, Genes, Weinstein e Axelband, são poucas as informações conseguidas. Mas foi possível traçar o caminho de uma dessas famílias através do tempo e perceber, mesmo limitadamente, como se desenvolveu sua mudança para Natal e sua vida posterior.

RMS Andes – Fonte – http://www.naval-history.net

No dia 21 de junho de 1926, ao meio dia, o vapor inglês RMS Andes, da Royal Mail Steam Packet Company, conhecida no Brasil como Mala Real Inglesa, lançou âncora em frente ao farol da barra do porto de Recife. Havia zarpado 15 dias antes do porto de Southampton (Inglaterra), com escalas em Cherbourg (França), Vigo (Espanha) e Lisboa (Portugal).

Em Recife desembarcaram 22 passageiros, entre eles o jovem casal Samuel e Bertha Axelband, ele com 24 e ela com 19 anos de idade e sem filhos. Mas os tramites burocráticos do casal na alfandega só foram resolvidos um dia depois, uma terça-feira. A razão provável foi um grande bafafá ocorrido na repartição, inclusive noticiado nos jornais, em decorrência da prisão do comerciante judeu Alexander Gurewitz. Este pretendia embarcar no mesmo RMS Andes para o Rio de Janeiro, mas teve a sua partida sustada por dois oficiais de justiça e policiais, que cumpriram um mandato expedido pelo juiz Adolpho Cyriaco, a pedido da Sra. Sophia Goldel, também judia e sua credora. (Diário de Pernambuco, 22/06/1926, págs. 2 e 4).

Certamente na capital pernambucana o casal recebeu apoio da comunidade judaica, que era relativamente numerosa e atuante. Mas, por alguma razão, eles não permaneceram em Recife. Provavelmente Samuel deve ter trabalhado como mascate, profissão que abria contatos e horizontes e era a atividade muito comum entre os judeus desembarcados Brasil vindos da Europa Oriental.

Uma situação normal para todos estrangeiros e imigrantes no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial – Todos seus deslocamentos em aeronaves eram monitorados pelo DOPS. Isso ocorria independentemente de raça, origem, credo, etc. O interessante é que esse material normalmente traz boas informações de pessoas que são alvo de pesquisas históricas.

Talvez como fruto de suas andanças, vamos ter notícias dos Axelband sete anos depois de desembarcarem em Recife. Uma nota afirma que Samuel Axelband era um comerciante em São Luís, no Maranhão, e divulgava o aniversário do seu filho Aron (O Imparcial, 07/03/1933, pág. 2). Mas seja lá o tipo de comércio que Samuel tinha nessa cidade, aparentemente ele não durou muito, pois quatro anos depois seu nome consta no prestigiado Almanak Laemmert (Ed. 1937, pág. 1.376) como sendo proprietário da alfaiataria “A Carioca”, na Rua Simplício Mendes, no Centro de Teresina, Piauí, uma rua com várias alfaiatarias. Nesse negócio Samuel aparentemente tinha uma sociedade com uma pessoa de sobrenome “Luz”, mas não obtive maiores informações.

É provável que essa informação não seja totalmente correta. Não no sentido que Samuel Axelband e sua família viveram em Teresina, mas na data. Pois é conhecido que os nomes listados no Almanak Laemmert perduravam por anos nas novas edições desse almanaque, gerando informações equivocadas. Até porque a família Axelband já vivia em Natal em janeiro de 1938.

Imigrante de Sucesso

O Censo demográfico de 1940 apontou Natal com 109 judeus e, segundo Câmara Cascudo (Ver o livro História da Cidade do Natal, 1999, IHGRN, pág. 389) sua sinagoga havia sido fundada em 12 de janeiro de 1919, um domingo, quando a pandemia de Gripe Espanhola se encaminhava para seu final. É provável que a existência dessa comunidade judaica e o fato de prováveis parentes de sua esposa, cujo sobrenome de solteira era Mandel, já viverem e comerciarem em Natal, tenha influenciado Samuel Axelband a viver nessa parte do Brasil.

Não sabemos como seu deu a chegada dessa família em Natal, qual negócio Samuel montou primeiramente e nem como se deu sua relação com a comunidade judaica e com a população local. Mas sabemos que quem se destacou em sua família na cidade por essa época, foi a sua filha Riva Axelband, que começou a chamar atenção do maestro Waldemar de Almeida como exímia pianista e logo a jovem realizava apresentações para a sociedade local. Como na 19ª audição do “Curso Waldemar de Almeida”, ocorrida em 31 de janeiro de 1938 no Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão. No seu piano marca Albert Schmölz, Riva tocou a “Mazurca” opus 24 n. 1, do polonês Frederic Chopin e nos anos seguintes outros recitais se repetiriam.

Temos a informação que Samuel Axelband fundou, em data desconhecida, uma loja chamada “Casa Glória”, especializada em artigos masculinos, no bairro da Ribeira, na Rua Dr. Barata, número 205. Ao lado da sua loja havia o comércio de um outro judeu, era a “J. Mandel & Cia”, um parente de sua esposa.

Bairro da Ribeira, em Natal, na época da Segunda Guerra.

Provavelmente Samuel percebeu claramente a grande possibilidade de negócios que ocorreria com a Segunda Guerra Mundial e a presença de tropas americanas na capital potiguar em Natal. Logo seu negócio prosperou enormemente, ao ponto de fundar na Rua Chile, número 240, em frente a atual Capitania dos Portos, uma movelaria chamada “Progresso”.

Segundo o livro Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff (Pág. 53, Rio de Janeiro, 1984), 30 dias após a morte de Franklin Delano Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos, houve na sede do Centro Israelita de Natal (CEN), no centro da cidade a cerimônia dos trinta dias de falecimento, que na fé judaica se denomina Shloshim. O ato foi realizado pelo Rabino Baum e contou com a presença de militares americanos judeus. Também estiveram presentes vários judeus que moravam em Natal, entre eles Samuel Axelband. 

Após o fim da guerra, como fizeram quase todos os judeus que viviam em Natal, os Axelband partiram da cidade nordestina que lhes deu tranquilidade para viver, mas que depois da Segunda Guerra e da partida das tropas estrangeiras, tinha pouco em termos econômicos a oferecer. Samuel foi viver em Recife, onde manteve uma representação de relógios.

Não sabemos quando sua existência findou nesse plano existencial e nem o que ocorreu com a sua família, mas sua trajetória e sua história no Brasil, especialmente em Natal, apontam para uma história de sucesso de um imigrante judeu da Europa Oriental que, mesmo recebendo apoios de pessoas da mesma religião, claramente mostra como essas pessoas desse grupo minoritário podiam viver tranquilos em Natal e no Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX, sem o perigo dos progoms e das perseguições religiosas.

Cada um tem o direito acreditar na religião que quiser. Isso é uma situação de foto íntimo. Mas não deixa de ser um tanto irônico que em Natal, na segunda década do século XXI, na era do “futuro”, vários de seus cidadãos que não nasceram judeus, se voltem para suas pretensas “Raízes judaicas” para migrar de uma violência que anualmente crescer no número de assassinatos.

JHJHJHKJKH

Livros – História da Cidade do Natal, Câmara Cascudo, 1999, IHGRN, pág. 389.

Natal, Uma comunidade singular, Egon e Frieda Wolff, 1984.

Internet – https://kehilalinks.jewishgen.org/philippson/index.html

https://www.apusm.com.br/2014/09/fazenda-phillipson-os-114-anos-da-imigracao-judaica-em-santa-maria/

https://www.jewishgen.org/yizkor/pinkas_romania/rom2_00382.html

https://en.wikipedia.org/wiki/Bessarabia

https://ro.wikipedia.org/wiki/Istoria_evreilor_din_Republica_Moldova

NO TOK DE HISTÓRIA PODEM SER ENCONTRADOS ESSES TEXTOS SOBRE ASSUNTOS LIGADOS A JUDEUS.

PARA NUNCA SER ESQUECIDO – AUSCHWITZ: IMAGENS DE ONTEM E DE HOJE

O MITO SOBRE A ORIGEM DE SOBRENOMES DE JUDEUS CONVERTIDOS

OS CRIPTO JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS EM NATAL – A SAGA DOS PALATNIK

A HISTÓRIA DOS JUDEUS NO BRASIL

JUDEUS SEM SABER

LEI PODE DAR CIDADANIA A BRASILEIROS DESCENDENTES DE JUDEUS

DIÁSPORA: DESCUBRA COMO OS JUDEUS SE ESPALHARAM PELO MUNDO

https://tokdehistoria.com.br/2014/03/23/sobrenomes-de-judeus-expulsos-da-espanha-em-1492-veja-se-o-seu-esta-na-lista/

A EXPULSÃO DOS JUDEUS DE PORTUGAL

1937 – O DIA EM QUE UM VIOLINISTA RUSSO E UM FORD V8 ESTIVERAM NO PALCO DO PRINCIPAL TEATRO DE NATAL

Dizem que Natal é uma cidade onde seu povo tem uma adoração intensa pelos veículos motorizados. Se observarmos nos dias atuais o número de carros de passeio bastante novos circulando pelas nossas atravancadas ruas, provavelmente deve ser verdade. Fala-se que por mês mais de 2.000 veículos novos, 0 km, são desovados nas congestionadas vias de circulação da capital potiguar.

Harry Brounstein, gerente da Ford no Rio, no palco do Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, abrindo o recital ao lado de um Ford V 8.

Ainda se comenta que este gosto surgiu durante a Segunda Guerra Mundial, com a presença de tropas estadunidenses em nossas terras.

Existe a ideia que após o conflito, as tropas de Tio Sam despejaram nas nossas ruas potentes e reluzentes Lincons e Studebakers que não quiseram levar de volta para casa e isso ficou nas mentes dos natalenses. Até já tratei disso em nosso TOK DE HISTÓRIA (Ver em – https://tokdehistoria.com.br/2013/11/30/o-prazer-nosso-pelo-carro-novo-sao-os-militares-americanos-os-responsaveis-por-isso/ ).

Na época da visita da trupe, Natal tinha uma população com pouco mais de 30.000 habitantes. Na foto vemos o então Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Coleção TOK DE HISTÓRIA

Provavelmente a intensa adoração dos natalenses por veículos movidos a gasolina surgiu bem antes da Segunda Guerra e tudo aponta que se deveu muito mais a bem planejadas ações de propaganda desenvolvidas pelos fabricantes de veículos, do que uma pretensa ação das tropas americanas por aqui. 

Nova Forma de Propagandas 

Na segunda metade da década de 1930 os dois principais agentes que vendiam veículos em Natal eram a M. Martins & Cia., pela Ford, cujo um dos seus sócios era José Alves dos Santos e pela Chevrolet a empresa de Severino Alves Bila.

José Alves dos Santos, da M. Martins e Cia.

Como a Natal daquele tempo tinha pouco mais de 50.000 habitantes, onde praticamente toda elite se conhecia, é provável que os proprietários destas firmas tivessem amizade (ou quem sabe até parentesco pelo sobrenome comum). Mas nas páginas amareladas dos velhos periódicos temos uma verdadeira “guerra” de propagandas destes fabricantes de veículos sendo apresentada ao público natalense.

Não é incomum encontrarmos anúncios de página inteira, que eram publicadas por semanas, com maravilhosos desenhos de novos e potentes veículos. E vale ressaltar que a propaganda de carros nos jornais era bem diferente das atuais. Enquanto hoje não faltam produções suntuosas para gerar fotos fantásticas, muita imagem trabalhada no computador, participação de modelos fenomenais e pouca informação prática (normalmente só umas letrinhas miudinhas no final da propaganda), naquelas priscas eras a coisa era muito mais informativa.

Mas em 1937 houve uma mudança nesta estratégia de propaganda que chamou muita atenção em Natal.

The Cherniavsky Trio 

Em fins de 1936 o experiente violinista Leo Cherniavsky estava realizando concertos em Nova York, no prestigiado Carnegie Hall, quando foi contratado pela Ford Motors Company para se apresentar no início de abril de 1937 em Fortaleza, Natal, Recife e Salvador. A ideia destes recitais era comemorar 25 milhões de veículos da marca Ford manufaturados.

Leo Cherniavsky teria durante suas apresentações na região a companhia do pianista pernambucano Alberto Figueiredo, do Conservatório de Recife. Já quem comandava o grupo era Harry Brounstein, da Associação Comercial do Rio de Janeiro, membro do Touring Club do Brasil e gerente da Ford no Rio.

Leo Cherniavsky nasceu em 1890, na grande comunidade judaica da cidade de Odessa, na época parte do Império Russo (atualmente pertencente à Ucrânia). Sua família possuía uma grande tradição musical e junto com seus irmãos Jan (piano) e Mischel (violoncelo) formaram um trio de jovens músicos e realizaram sua primeira apresentação em 1901, quando o mais jovem do grupo tinha apenas dez anos de idade.

Mischel, Jan e Leo, “The Cherniavsky Trio”.

O primeiro show fora da Rússia foi realizado três anos depois em Berlim, Alemanha, onde os garotos receberam críticas mistas. Ainda naquele ano, sob o patrocínio das abastardas famílias judaicas Rothchild e Sassoon, o trio fez sua estreia britânica no Aeolian Hall, em Londres, onde as opiniões dos críticos foram mais animadoras. Chegaram a realizar uma turnê por outros países da Europa com relativo sucesso e tiveram proveitosos encontros com personalidades musicais famosas e respeitadas da época (além de serem pessoas bem mais velhas que os três garotos) – incluindo o russo Misha Elman, o francês Eugène Ysaÿe, o tcheco David Popper e o húngaro Joseph Joachim.

Em 1905, diante das tensões contra os judeus em Odessa, que levou a realização de uma perseguição que resultou na morte de 400 pessoas, a família Cherniavsky se mudou para a Áustria e de lá os jovens seguiram para o Canadá, onde conseguiram a cidadania neste país. Depois começaram a atuar nos Estados Unidos, onde o grupo ficou conhecido como “The Cherniavsky Trio”.

Os jovens músicos ganharam experiência, desenvolveram um conjunto musical de primeira classe e se apresentaram em cinco continentes. Continuaram realizando apresentações e produzindo discos até 1934, quando cada um seguiu seu rumo. Assim Leo Cherniavsky chegou a Natal em abril de 1937. 

Um Gringo Tocar Rabeca 

O paquete “Pará” veio de Fortaleza trazendo a Caravana Ford para a Natal. Na capital cearense o músico estrangeiro e o pianista pernambucano se apresentaram no Teatro José de Alencar. Cherniavsky foi recebido no desembarque no cais da Tavares de Lira pelo maestro Valdemar de Almeida, diretor do Instituto de Música, Edgar Barbosa, então diretor da Imprensa Oficial, José Alves dos Santos, da M. Martins e Cia., Moyses Wanistain, representando a comunidade judaica que então existia em Natal, Carlos Lamas, Cônsul do Chile na cidade, além de Luís da Câmara Cascudo, Sérgio Severo e outros membros da comunidade natalense.

Propagando sobre o recita de Lei Cherniavsky publicado em jornais natalenses.

Como era comum na época, apesar de existirem hotéis, algumas pessoas ilustres que visitavam Natal, principalmente estrangeiros, normalmente ficavam hospedados no palacete da rica comerciante Amélia Duarte Machado, a conhecida Viúva Machado. Com Leo Cherniavsky não foi diferente e ele estava ali acomodado junto com os outros membros da Caravana Ford.

O palco escolhido foi o melhor que Natal poderia oferecer – o Teatro Carlos Gomes, no bairro da Ribeira e atual Teatro Alberto Maranhão. Os jornais da época informam que desde o momento do anúncio do recital do violinista de Odessa, a elite local buscou avidamente a agência M. Martins e Cia. atrás dos 300 ingressos postos a disposição dos futuros compradores de carros novos.

Certamente deve ter chamado atenção dos trabalhadores braçais do cais do porto, dos comerciários da Ribeira, dos que trabalhavam nos depósitos de algodão da Rua Chile, dos pescadores das Rocas e outras pessoas do povo, a intensa movimentação na Rua Frei Miguelinho, nº 133, sede da M. Martins e Cia. Eram muitas “pessoas gradas”, da mais fina flor da sociedade potiguar, com sobrenomes consagrados, agitados atrás de conseguirem um ingresso para ver “um gringo tocar rabeca”. 

Quem Não foi ao Recital Não Era Gente em Natal! 

E o tradicional teatro ficou lotado na noite de 2 de abril de 1937, uma sexta-feira. Natal, por não possuir uma rádio ativa na época, foi a única das capitais nordestinas que não transmitiu o recital pelas ondas do éter.

Leo Cherniavsky, Alberto Figueiredo e o Ford V 8, modelo Tudor sedam de luxo, de quatro portas no palco do principal teatro de Natal.

Uma situação interessante e peculiar ocorreu nesta apresentação – eu não sei como foi feito, mas as fotos aqui apresentadas (apesar da baixa qualidade) provam que, de alguma forma, os organizadores colocaram no palco do tradicional Carlos Gomes um veículo Ford V 8, modelo Tudor sedam de luxo, de quatro portas. Os músicos teriam de tocar ao lado da possante máquina e não foram registrados problemas no teatro. Mas eu duvido que hoje isso acontecesse novamente!

Quando foi exatamente as 21:00, quem subiu ao palco foi Harry Brounstein, seguido de várias personalidades locais com seus longos discursos, situação essa que nunca deixava de acontecer nestes eventos. Depois o violinista nascido em Odessa e o pianista pernambucano subiram no palco do Teatro Carlos Gomes e iniciaram a sessão musical.

Público natalense no recital de 2 de abril de 1937

Infelizmente os jornais da época aos quais tive acesso, tanto o A República de Natal, quanto o Diário de Pernambuco de Recife, nada informaram do que foi apresentado nos recitais apresentados no Teatro Alberto Maranhão e nem no principal teatro da capital pernambucana, o Santa Izabel.

Mas é inegável o evento foi um grande sucesso. Vamos encontrar varias referências sobre o recital de Leo Cherniavsky e de Alberto Figueiredo no jornal A República durante vários dias. Causou enorme impressão a versatilidade dos músicos, da participação da sociedade no evento e, evidentemente, da beleza do novo Ford V 8 no palco.

Foto de um modelo Ford V 8 de 1937 e preservado na Alemanha

O burburinho foi tanto que parece até que quem não foi ao recital não era gente em Natal!

Pessoalmente nunca acreditei que esta dita “adoração por carros” seja uma exclusividade dos natalenses. Como o texto e as fotos apontam, certamente foram as ações de propaganda como as apresentadas em 2 de abril de 1937 que ajudaram a criar na mente da maioria dos brasileiros o gosto pelo carro.

E é um gosto bem estranho e um prazer bem esquisito. Já que até hoje a maioria dos brasileiros não se importa de pagar financiamentos exorbitantes e nem reclamam de impostos gigantescos que são cobrados por um bem que se desvaloriza em até 30% após sair da loja.

DITADOS POPULARES E SEUS SIGNIFICADOS – SEGUNDO CASCUDO

Luís da Câmara Cascudo

Muitas vezes usamos certas expressões, mas não temos ideia do que elas significam.

São ditados ou termos populares que através dos anos permaneceram sempre iguais, significando exemplos morais, filosóficos e religiosos.

Tanto os provérbios quanto os ditados populares constituem uma parte importante de cada cultura.

Historiadores e escritores sempre tentaram descobrir a origem dessa riqueza cultural, mas essa tarefa nunca foi nada fácil.

O grande escritor Luís da Câmara Cascudo já dizia que: “os ditados populares sempre estiveram presentes ao longo de toda a História da humanidade”. No Brasil isso não é nenhuma novidade. Muitas vezes ocorrem expressões tão estranhas e sem sentido, mas que são muito importantes para a nossa cultura popular.

Veja aqui algumas dessas expressões ou ditados populares:

Bicho-de-sete-cabeças

Tem origem na mitologia grega, mais precisamente na lenda da Hidra de Lerna, monstro de sete cabeças que, ao serem cortadas, renasciam. Matar este animal foi uma das doze proezas realizadas por Hércules. A expressão ficou popularmente conhecida, no entanto, por representar a atitude exagerada de alguém que, diante de uma dificuldade, coloca limites à realização da tarefa, até mesmo por falta de disposição para enfrentá-la.

Com o rei na barriga

A expressão provém do tempo da monarquia em que as rainhas, quando grávidas do soberano, passavam a ser tratadas com deferência especial, pois iriam aumentar a prole real e, por vezes, dar herdeiros ao trono, mesmo quando bastardos. Em nossos dias refere-se a uma pessoa que dá muita importância a si mesma.

Ver (ou adivinhar) passarinho verde (MAS PODE SER AZUL, AMARELO, VERMELHO, ROXO E POR AÍ VAI!)

Significa estar apaixonado. O passarinho em questão é uma espécie de periquito verde. Conta uma lenda que alguns românticos rapazes do século passado adestravam o bichinho para que ele levasse no bico uma carta de amor para a namorada. Assim, o casal de apaixonados tinha grandes chances de burlar a vigilância de um paizão ranzinza.

Com a corda toda

Antigamente, os brinquedos que possuíam movimento eram acionados torcendo um mecanismo em forma de mola ou um elástico, que ao ser distendido, fazia o brinquedo se mexer. Ambos os mecanismos eram chamados de “corda”. Logo, quando se dava “corda” totalmente num brinquedo, ele movia-se de forma mais agitada e frenética. Daí a origem da expressão.

Favas contadas

De acordo com Câmara Cascudo, antigamente, votavam-se com as favas brancas e pretas, significando sim ou não. Cada votante colocava o voto, ou seja, a fava, na urna. Depois vinha a apuração pela contagem dos grãos, sendo que quem tivesse o maior número de favas brancas estaria eleito. Atualmente, significa coisa certa, negócio seguro.

Fazer ouvidos de mercador

Orlando Neves, autor do Dicionário das Origens das Frases Feitas, diz que a palavra mercador é uma corruptela de marcador, nome que se dava ao carrasco que marcava os ladrões com ferro em brasa, indiferente aos seus gritos de dor. No caso, fazer ouvidos de mercador é uma alusão a atitude desse algoz, sempre surdo às súplicas de suas vítimas.

Tapar o sol com a peneira

Peneira é um instrumento circular de madeira com o fundo em trama de metal, seda ou crina, por onde passa a farinha ou outra substância moída. Qualquer tentativa de tapar o sol com a peneira é inglória, uma vez que o objecto é permeável à luz. A expressão teria nascido dessa constatação, significando atualmente um esforço mal sucedido para ocultar uma asneira ou negar uma evidência.

O pomo da discórdia

A lendária Guerra de Tróia começou numa festa dos deuses do Olimpo: Éris, a deusa da Discórdia, que naturalmente não tinha sido convidada, resolveu acabar com a alegria reinante e lançou por sobre o muro uma linda maçã, toda de ouro, com a inscrição “à mais bela”.

Como as três deusas mais poderosas: Hera, Afrodite e Atena disputavam o troféu, Zeus passou a espinhosa função de julgar para Páris, filho do rei de Tróia  O príncipe concedeu o título a Afrodite em troca do amor de Helena, casada com o rei de Esparta.

A rainha fugiu com Páris para Tróia, os gregos marcharam contra os troianos e a famosa maçã passou a ser conhecida como “o pomo da discórdia” – que hoje indica qualquer coisa que leve as pessoas a brigar entre si.

Afogar o ganso

No passado, os chineses costumavam satisfazer as suas necessidades sexuais com gansos. Pouco antes de ejacularem, os homens afundavam a cabeça da ave na água, para poderem sentir os espasmos anais da vítima. Daí a origem da expressão, que se refere a um homem que está precisando fazer sexo.

Ave de mau agouro

Diz-se de pessoa portadora de más notícias ou que, com a sua presença, anuncia desgraças. O conhecimento do futuro é uma das preocupações inerentes ao ser humano. Quase tudo servia para, de maneiras diversas, se tentar obter esse conhecimento. As aves eram um dos recursos que se utilizava. Na antiga Roma, a predição dos bons ou maus acontecimentos (Avis spicium, em Latim) era feita através da leitura do voo ou canto das aves. Os pássaros mais usado para isso eram a águia, a coruja, o corvo e a gralha. Ainda hoje perdura, popularmente, a conotação funesta com qualquer destas aves.

Santa do pau oco

Expressão que se refere à pessoa que se faz de boazinha, mas não é. Nos século XVIII e XIX os contrabandistas de ouro em pó, moedas e pedras preciosas utilizavam estátuas de santos ocas por dentro. O santo era “recheado” com preciosidades roubadas e enviado para Portugal.

Mais vale um pássaro na mão que dois voando

Significa que é melhor ter pouco que ambicionar muito e perder tudo. É tradição de antigos caçadores. Eles achavam melhor apanhar logo a ave que tinham atingido de raspão, antes que ela fugisse, do que tentar atirar nas que estavam voando e errar o alvo.

Apressado come cru

Quando não existia o forno microondas, era preciso muito tempo para a comida ficar pronta, ou então comê-la crua. Nessa época, a culinária japonesa ainda não estava na moda e comida crua era vista com maus olhos. Assim, a expressão passou a ser usada para significar afobamento, precipitação.

Chorar as pitangas

Pitangas são deliciosas frutinhas cultivadas e apreciadas em todo o país, especialmente nas regiões norte e nordeste do país. A palavra deriva de pyrang, que, em tupi-guarani, significa vermelho. Sendo assim, a provável relação da fruta com lágrimas, vem do fato de os olhos ficarem vermelhos, parecendo duas pitangas, quando se chora muito.

Farinha do mesmo saco

“Homines sunt ejusdem farinae” esta frase em latim (homens da mesma farinha) é a origem dessa expressão, utilizada para generalizar um comportamento reprovável. Como a farinha boa é posta em sacos diferentes da farinha ruim, faz-se essa comparação para insinuar que os bons andam com os bons enquanto os maus preferem os maus.

Aquela que matou o guarda

Tratava-se de uma mulher que trabalhava para Dom João VI e se chamava Canjebrina, que, como informam os dicionários, significa pinga, cachaça. Ela teria matado um dos principais guardas da corte do Rei. O fato não foi provado. Mas está no livro “Inconfidências da Real Família no Brasil”, de Alberto Campos de Moraes.

Sangria desatada

Diz-se de qualquer coisa que requer uma solução ou realização imediata. Esta expressão teve origem nas guerras, onde se verificava a necessidade de cuidados especiais com os soldados feridos. É que, se por qualquer motivo, se desprendesse a atadura posta sobre as feridas, o soldado morreria, por perder muito sangue.

Colocar panos quentes

Significa favorecer ou acobertar coisa errada feita por outro. Em termos terapêuticos, colocar panos quentes é uma receita, embora paliativa, prescrita pela medicina popular desde tempos remotos. Recomenda-se sobretudo nos estados febris, pois a temperatura muito elevada pode levar a convulsões e a problemas daí decorrentes. Nesses casos, compressas de panos encharcados com água quente são um santo remédio. A sudorese resultante faz baixar a febre.

Cor de burro quando foge

A frase original era “Corra do burro quando ele foge”. Tem sentido porque, o burro enraivecido, é muito perigoso. A tradição oral foi modificando a frase e “corra” acabou virando “cor”.

Pagar o pato

A expressão deriva de um antigo jogo praticado em Portugal. Amarrava-se um pato a um poste e o jogador (em um cavalo) deveria passar rapidamente e arrancá-lo de uma só vez do poste. Quem perdia era que pagava pelo animal sacrificado. Sendo assim, passou-se a empregar a expressão para representar situações onde se paga por algo sem ter qualquer benefício em troca.

De pequenino é que se torce o pepino

Os agricultores que cultivam os pepinos precisam de dar a melhor forma a estas plantas. Retiram uns “olhinhos” para que os pepinos se desenvolvam. Se não for feita esta pequena poda, os pepinos não crescem da melhor maneira porque criam uma rama sem valor e adquirem um gosto desagradável. Assim como é necessário dar a melhor forma aos pepinos, também é preciso moldar o caráter das crianças o mais cedo possível.

Salvo pelo gongo

O ditado tem origem na Inglaterra. Lá, antigamente, não havia espaço para enterrar todos os mortos. Então, os caixões eram abertos, os ossos tirados e encaminhados para o ossuário e o túmulo era utilizado para outro infeliz. Só que, às vezes, ao abrir os caixões, os coveiros percebiam que havia arranhões nas tampas, do lado de dentro, o que indicava que aquele morto, na verdade, tinha sido enterrado vivo (catalepsia – muito comum na época).

Assim, surgiu a idéia de, ao fechar os caixões, amarrar uma tira no pulso do defunto, tira essa que passava por um buraco no caixão e ficava amarrada num sino. Após o enterro, alguém ficava de plantão ao lado do túmulo durante uns dias. Se o indivíduo acordasse, o movimento do braço faria o sino tocar. Desse modo, ele seria salvo pelo gongo. Atualmente, a expressão significa escapar de se meter numa encrenca por uma fração de segundos.

Elefante branco

A expressão vem de um costume do antigo reino de Sião, situado na atual Tailândia, que consistia no gesto do rei de dar um elefante branco aos cortesões que caíam em desgraça. Sendo um animal sagrado, não podia ser posto a trabalhar. Como presente do próprio rei, não podia ser vendido. Matá-lo, então, nem pensar. Não podendo também ser recusado, restava ao infeliz agraciado alimentá-lo, acomodá-lo e criá-lo com luxo, sem nada obter de todos esses cuidados e despesas. Daí o ditado significar algo que se tem ou que se construiu, mas que não serva para nada.

Comer com os olhos

Soberanos da África Ocidental não consentiam testemunhas às suas refeições. Comiam sozinhos. Na Roma Antiga, uma cerimônia religiosa fúnebre consistia num banquete oferecido aos deuses em que ninguém tocava na comida. Apenas olhavam, “comendo com os olhos”. A propósito, o pesquisador Câmara Cascudo diz que certos olhares absorvem a substância vital dos alimentos. Hoje o ditado significa apreciar de longe, sem tocar.

Amigo da onça

Segundo estudiosos da língua portuguesa, este termo surgiu a partir de uma história curiosa. Conta-se que um caçador mentiroso, ao ser surpreendido, sem armas, por uma onça, deu um grito tão forte que o animal fugiu apavorado. Como quem o ouvia não acreditou, dizendo que , se assim fosse, ele teria sido devorado, o caçador, indignado, perguntou se, afinal, o interlpcutor era seu amigo ou amigo da onça. Atualmente, o ditado significa amigo falso, hipócrita.

Estar com a corda no pescoço

O enforcamento foi, e ainda é em alguns países, um meio de aplicação da pena de morte. A metáfora nasceu de anistias ou comutações de pena chegadas à última hora, quando o condenado já estava prestes a ser executado e o carrasco já lhe tinha posto a corda no pescoço, situação que, de fato, é um sufoco. Hoje, o ditado significa estar ameaçado, sob pressão ou com problemas financeiros.

Como sardinha em lata

A palavra sardinha vem do latim sardina. Designa o peixe abundante na Sardenha, conhecida região da Itália. É um alimento apreciado e nutritivo, de sabor bem peculiar. As sardinhas, quando enlatadas em óleo ou em outro molho, vêm coladas umas às outras. Por analogia, usa-se a expressão popular sardinha em lata para designar a superlotação de veículos de transporte público.

O pior cego é o que não quer ver

Em 1647, em Nimes, na França, na universidade local, o doutor Vicent de Paul D’Argenrt fez o primeiro transplante de córnea em um aldeão de nome Angel.

Foi um sucesso da medicina da época, menos para Angel, que assim que passou a enxergar ficou horrorizado com o mundo que via. Disse que o mundo que ele imagina era muito melhor. Pediu ao cirurgião que arrancasse seus olhos.

O caso foi acabar no tribunal de Paris e no Vaticano. Angel ganhou a causa e entrou para a história como o cego que não quis ver. Atualmente, o ditado se refere a a alguém que se nega a admitir um fato verdadeiro.

Andar à toa

Toa é a corda com que uma embarcação reboca a outra. Um navio que está “à toa” é o que não tem leme nem rumo, indo para onde o navio que o reboca determinar. Uma mulher à toa, por exemplo, é aquela que é comandada pelos outros. Jorge Ferreira de Vasconcelos já escrevia, em 1619: Cuidou de levar à toa sua dama. Hoje, o ditado significa andar sem destino, despreocupado, passando o tempo.

Casa de Mãe Joana

Este dito popular tem origem na Itália. Joana, rainha de Nápoles e condessa de Provença (1326-1382), liberou os bordéis em Avignon, onde estava refugiada, e mandou escrever nos estatutos: “Que tenha uma porta por onde todos entrarão”.

O lugar ficou conhecido como Paço de Mãe Joana, em Portugal. Ao vir para o Brasil a expressão virou “Casa da Mãe Joana”. A outra expressão envolvendo Mãe Joana, um tanto chula, tem a mesma origem, naturalmente.

Onde judas perdeu as botas

Como todos sabem, depois de trair Jesus e receber 30 dinheiros, Judas caiu em depressão e culpa, vindo a se suicidar enforcando-se numa árvore.

Acontece que ele se matou sem as botas. E os 30 dinheiros não foram encontrados com ele. Logo os soldados partiram em busca as botas de Judas, onde, provavelmente, estaria o dinheiro.

A história é omissa daí pra frente. Nunca saberemos se acharam ou não as botas e o dinheiro. Mas a expressão atravessou vinte séculos. Atualmente, o ditado significa lugar distante, inacessível.

Quem não tem cão caça com gato

Se você não pode fazer algo de uma maneira, se vira e faz de outra. Na verdade, a expressão, com o passar dos anos, se adulterou. Inicialmente se dizia “quem não tem cão caça como gato”, ou seja, se esgueirando, astutamente, traiçoeiramente, como fazem os gatos.

De pá virada

Um sujeito da pá virada pode tanto ser um aventureiro corajoso como um vadio.

A origem da palavra é em relação ao instrumento, a pá. Quando ela está virada para baixo, é inútil não serve para nada. Hoje em dia, “pá virada” tem outro sentido. Refere-se a uma pessoa de maus instintos e criadora de casos ou a um aventureiro.

Deixar de Nhenhenhém

Conversa interminável em tom de lamúria, irritante, monótona. Resmungo, rezinga.

Nheë, em tupi, quer dizer falar. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, eles não entendiam aquela falação estranha e diziam que os portugueses ficavam a dizer “nhen-nhen-nhen”.

Estar de paquete

Situação das mulheres quando estão menstruadas. Paquete, já nos ensina o Aurélio, é um das denominações de navio. A partir de 1810, chegava um paquete mensalmente, no mesmo dia, no Rio de Janeiro. E a bandeira vermelha da Inglaterra tremulava. Daí logo se vulgarizou a expressão sobre o ciclo menstrual das mulheres. Foi até escrita uma “Convenção Sobre o Estabelecimento dos Paquetes”, referindo-se, é claro, aos navios mensais.

Pensando na morte da bezerra

Estar distante, pensativo, alheio a tudo.

Esta é bíblica. Como vocês sabem, o bezerro era adorado pelos hebreus e sacrificados para Deus num altar. Quando Absalão, por não ter mais bezerros, resolveu sacrificar uma bezerra, seu filho menor, que tinha grande carinho pelo animal, se opôs. Em vão. A bezerra foi oferecida aos céus e o garoto passou o resto da vida sentado do lado do altar “pensando na morte da bezerra”. Consta que meses depois veio a falecer.

Não entender patavina

Não saber nada sobre determinado assunto. Nada mesmo.

Tito Lívio, natural de Patavium (hoje Pádova, na Itália), usava um latim horroroso, originário de sua região. Nem todos entendiam. Daí surgiu o Patavinismo, que originariamente significava não entender Tito Lívio, não entender patavina.

Jurar de pés junto

A expressão surgiu das torturas executadas pela Santa Inquisição, nas quais o acusado de heresias tinha as mãos e os pés amarrados (juntos) e era torturado para confessar seus crimes.

Emanuele Filiberto di Savoia

Testa de ferro

O Duque Emanuele Filiberto di Savoia, conhecido como Testa di Ferro, foi rei de Chipre e Jerusalém. Mas tinha somente o título e nenhum poder verdadeiro. Daí a expressão ser atribuída a alguém que aparece como responsável por um por um negócio ou empresa sem que o seja efetivamente.

Erro crasso

Na Roma antiga havia o Triunvirato: o poder dos generais era dividido por três pessoas. No primeiro destes Triunviratos, tínhamos: Caio Júlio, Pompeu e Crasso. Este último foi incumbido de atacar um pequeno povo chamado Partos. Confiante na vitória, resolveu abandonar todas as formações e técnicas romanas e simplesmente atacar. Ainda por cima, escolheu um caminho estreito e de pouca visibilidade. Os Partos, mesmo em menor número, conseguiram vencer os romanos, sendo o general que liderava as tropas um dos primeiros a cair. Desde então, sempre que alguém tem tudo para acertar, mas comete um erro estúpido, dizemos tratar-se de um “erro crasso“.

Lágrimas de crocodilo

O crocodilo, quando ingere um alimento, faz forte pressão contra o céu da boca, comprimindo as glândulas lacrimais. Assim, ele chora enquanto devora a vítima. Daí a expressão significar choro fingido.

Fila indiana

Tem origem na forma de caminhar dos índios americanos, que, desse modo, encobriam as pegadas dos que iam na frente.

Passar a mão pela cabeça

Significa perdoar, e vem do costume judaico de abençoar cristãos-novos, passando a mão pela cabeça e descendo pela face, enquanto se pronuncia a bênção.

Gatos pingados

Esta expressão remonta a uma tortura procedente do Japão que consistia em pingar óleo fervente em cima de pessoas ou animais, especialmente gatos.

Existem várias narrativas ambientais na Ásia que mostram pessoas com os pés mergulhados num caldeirão de óleo quente. Como o suplício tinha uma assistência reduzida, tal era a crueldade, a expressão “gatos pingados” passou a significar pequena assistência sem entusiasmo ou curiosidade para qualquer evento.

Queimar as pestanas

Antes do aparecimento da eletricidade, recorria-se a uma lamparina ou uma vela para iluminação. A luz era fraca e, por isso, era necessário colocá-las muito perto do texto quando se pretendia ler o que podia dar num momento de descuido queimar as pestanas. Por essa razão, aplica-se àqueles que estudam muito.

Sem papas na língua

Significa ser franco, dizer o que sabe, sem rodeios. A expressão vem da frase castelhana “no tener pepitas em la lengua”. Pepitas, diminutivo de papas, são partículas que surgem na língua de algumas galinhas, é uma espécie de tumor que lhes obstrui o cacarejo. Quando não há pepitas (papas), a língua fica livre.

A toque de caixa

A caixa é o corpo oco do tambor que foi levado para a a Europa pelos árabes. Como os exercícios militares eram acompanhados pelo som de tambores, dizia-se que os soldados marchavam a toque de caixa. Atualmente, refere-se a uma tarefa que se tem de fazer rapidamente, eventualmente a mando de alguém ou mesmo à força.

Maria vai com as outras

Dona Maria I, mãe de D. João VI (avó de D. Pedro I e bisavó de D. Pedro II), enlouqueceu de um dia para o outro . Declarada incapaz de governar, foi afastada do trono. Passou a viver recolhida e só era vista quando saía para caminhar a pé, escoltada por numerosas damas de companhia. Quando o povo via a rainha levada pelas damas nesse cortejo, costumava comentar: “Lá vai D. Maria com as outras”. Atualmente aplica-se a expressão a uma pessoa que não tem opinião e se deixa convencer com a maior facilidade.

Fonte: CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções Tradicionais no Brasil. São Paulo, Editora Global/2008.

Fonte internet – http://saibahistoria.blogspot.com.br/2010/07/blog-post.html

VEJA UMA SEGUNDA PARTE SOBRE ESTE TEMA EM NOSSO TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.wordpress.com/2013/10/03/ditados-populares-e-seus-significados-ii/

A HISTÓRIA DE VILMAR GAIA – VINGADOR, OU PISTOLEIRO A PREÇO FIXO?

Rostand Medeiros – IHGRN

1970 foi um ano de seca muito forte, onde pouco sobrou para o homem do sertão nordestino conseguir sobreviver. Na época, o Governo Federal procurou minimizar os impactos sociais decorrentes dessa estiagem e atender as grandes levas de flagelados. Em anos anteriores haviam sido criados programas que consistiam na utilização de trabalhadores rurais em obras de pequeno e médio porte, as chamadas “Frentes de Emergência”. Normalmente executadas em grandes propriedades privadas de lideranças políticas, a criação desses subempregos fomentou entre os pequenos agricultores do sertão do Nordeste brasileiro uma forte dependência política e financeira. Mas para muitos, em certos momentos, foi a principal fonte de sobrevivência.

Uma dessas “emergências”, como o sertanejo denominavam os locais onde ocorriam as obras desse programa, ficava localizada a cerca de trinta quilômetros ao norte da sede do município pernambucano de Serra Talhada, na região do Pajeú (412 km de Recife e então com 65 mil habitantes).

No final de dezembro de 1970 ali foi realizada a obra de melhoramento da estrada carroçável que seguia até o povoado de Santa Rita, passando pela comunidade de São João dos Gaia e o sítio Serrote Branco.

A maioria dos trabalhadores rurais alistados naquele setor eram membros da família Magalhães, cujos os integrantes eram considerados um clã familiar tradicional, tidos como pessoas honestas, trabalhadoras, com muitos deles possuindo pequenas propriedades rurais, mas recursos financeiros limitados. Até hoje na região são conhecidos como a família Gaia, ou simplesmente os Gaia. Mesmo sem comprovação, é possível que essa denominação exista por eles possuírem um antepassado oriundo do município de Vila Nova de Gaia, norte de Portugal.

Foto ilustrativa de uma Frente de Emergência no sertão nordestino.

O certo é que no dia 30 de dezembro de 1970, uma quarta-feira, esses trabalhadores estavam reunidos para receber de um funcionário da extinta SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) o pagamento pela semana trabalhada na Frente de Emergência. Fazendo a segurança desse funcionário estavam dois soldados da Polícia Militar do Estado de Pernambuco (PMPE), que se chamavam Adalberto Clementino de Moura e Alberto Alves de Oliveira, este último conhecido como Alberto Cipriano. O pagamento ocorreu na comunidade de São João dos Gaia, em um local onde hoje existe um Grupo Escolar.

Segundo a reportagem de primeira página do Diário de Pernambuco (edição de 17/01/1971), na hora de entregar o miserável salário, o funcionário público da SUDENE buscou organizar uma fila e houve algum tipo de alteração entre ele e Edmundo Gaia, tido como chefe da família e da turma de trabalhadores, pois na sequência o pagador mandou que o soldado Adalberto revistasse Edmundo para ver se ele trazia alguma arma de fogo e em caso positivo, que fosse preso.

A Serra Talhada.

O material do jornal informa, sem trazer detalhes, que o soldado Adalberto não gostava de Edmundo e para impor autoridade empurrou o rapaz, que reagiu empurrando o militar de volta. O soldado então revidou com um violento murro na cara do trabalhador rural.

Aí a coisa desandou!

Cícero Batista Gaia tentou apartar a briga entre Edmundo e o soldado Adalberto, quando o outro soldado baleou Cícero. Na época uma das testemunhas do fato foi uma mulher conhecida como Maria Barraqueira, que tinha montado no local uma banquinha e vendia algumas peças de roupas. Ela contou que no momento do tiro atendia Antônio, irmão de Edmundo, que ao ouvir o disparo disse “Valha-me Nossa Senhora… Briga com meus irmãos! Corra Enoque (outro irmão)”. Maria Barraqueira contou ao repórter do Diário de Pernambuco que “A essa altura eu me vali das pernas e me fiz no mato, de onde ouvia, somente, a saraivada de balas pelo ar”.

Outra testemunha do conflito, um trabalhador rural local, narrou que “Nossa Senhora valeu os irmãos Gaia, pois aguentar uma chuva de balas daquelas, foi um verdadeiro milagre”. Ainda segundo essa testemunha os Gaia, ao verem Cícero baleado, “lutaram como leões”. Um deles partiu para cima do soldado Alberto Cipriano, conseguiu tomar seu revólver e matá-lo. O soldado Adalberto também tombou sem vida. Uma versão aponta que Cícero, Edmundo, Tozinho, Antônio e Enoque Gaia reagiram apenas com facões e punhais aos dois policiais armados de revólveres. O menor Luiz Ferreira da Silva testemunhou tudo e afirmou à imprensa que também havia sido agredido por um dos policiais, cujo nome não sabia. Comentou também que os Gaia reagiram às arbitrariedades “como um homem deve fazer” e que os soldados “estavam pagando para morrer”.

Após as mortes, os membros da família Gaia envolvidos no conflito desapareceram.

Covardia

Em março de 1975, quando o caso Vilmar Gaia estava no auge, o então capitão da PMPE Jorge Luiz de Moura, que nessa época era o Assistente Policial Militar Adjunto a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, produziu um interessante relatório de onze páginas sobre o caso. Uma cópia foi entregue ao extinto DOPS (Delegacia de Ordem Política Social) de Recife e se encontra no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, cujo conteúdo utilizei para produzir esse artigo.

Neste material o capitão Jorge afirmou que a morte daqueles dois policiais “gerou a inimizade entre alguns elementos da Polícia Militar, destacados nesta cidade (Serra Talhada), que ficaram solidários com as famílias dos soldados assassinados”. O problema dessa “inimizade” foi a forma como os policiais agiram contra os membros da família Gaia que não fugiram. Um grupo formado basicamente de velhos, mulheres e crianças.

Um funcionário municipal de Serra Talhada, cuja identidade não foi revelada, comentou aos jornalistas do Diário de Pernambuco (edição de 17/01/1971) que “as sevícias”, que os familiares dos assassinos dos soldados sofreram da polícia, a fim de descobrirem o paradeiro dos mesmos, foi um “procedimento reprovável sob todos os pontos de vista”.

Francisca Maria Alves, seus filhos. Membros da família Gaia, atacados por policiais.

Os repórteres recifenses estiveram no casebre de Antônio Paes de Lima, sogro de Edmundo, onde viram as portas arrombadas pelos policiais ao iniciar as diligências para capturar os criminosos e ouviram do dono da casa que os soldados chegaram por volta da meia noite do dia 31 de dezembro de 1970. Antônio começou o Ano Novo “recebendo murros, pontapés, pancadas nos peitos com a coronha de um fuzil e empurrões”. O mesmo aconteceu com seu filho Joaquim Paes, que foi arrastado pelos cabelos e jogado em cima de um caminhão. Já a Senhora Virginal Vieira Alves, esposa de Edmundo, tentou fugir com os seus filhos, mas foi obrigada a retornar para sua casa em meio a muitas ameaças dos soldados, que mantiveram fuzis apontados para ela e suas crianças.

Já as jovens Maria José Paes de Lima, Lucinda Francisca Alves e Maria Ginave Alves, tiveram as mãos e os pescoços amarrados e foram violentamente açoitadas com cordas para revelarem o paradeiro dos parentes.

Mas não ficou só nisso!

A mãe de Edmundo, a Senhora Manuela Maria Cordeiro de Magalhães, então com 72 anos de idade, foi arrastada pelo chão, teve fuzis apontados para sua cabeça e foi ameaçada com sabres no pescoço. Nem o motorista da viatura policial aguentou ver o sofrimento daquela mulher e clamou pela sua defesa. Ainda segundo a reportagem do Diário de Pernambuco a tentativa de proteção não adiantou, pois seus companheiros de farda jogaram Dona Manuela em cima de um banco de madeira e, em janeiro de 1971, ela se encontrava entre a vida e a morte.

Já Francisca Maria Alves, mãe de dez filhos e que estava grávida na época dessa tragédia, foi ameaçada de ser sangrada se não informasse o paradeiro do seu marido Antônio Gaia. A experiência de Dona Francisca foi verdadeiramente terrível, pois sofreu violências na frente dos filhos e nada falou sobre o esposo.

No outro dia, por pura necessidade, essa mulher foi buscar água em uma cacimba nas proximidades. Nesse meio tempo seus filhos, já massacrados de tanto terror acontecido na noite anterior, ao escutarem um carro circulando pelas imediações de sua casa, correram desesperados para o meio do mato. Pensavam que a polícia retornava para uma nova seção de violências.

Ocorre que as crianças se perderam na caatinga e só foram encontrados já à noite. O mais novo dos filhos de Dona Francisca se achava doente e acabou morrendo por falta de assistência.

A Morte do Velho Batista Gaia

Aparentemente as notícias das arbitrariedades policias contra idosos, mulheres e crianças da família Gaia obtiveram certo nível de repercussão em Recife. Mas isso não significou o fim das violências.

Segundo uma reportagem da Revista Manchete, assinada por Laércio Vasconcelos (Edição 1568, 08/05/1982, págs. 118 a 121), quem passou a ajudar os membros da família Gaia envolvidos no conflito da “Frente de Emergência” foi um tio chamado João Batista de Magalhães, mais conhecido como João Batista Gaia. Ocorre que esse cidadão, guarda aposentado da Coletoria Estadual, era amigo de José Cipriano, pai do falecido soldado Alberto Alves de Oliveira, o Alberto Cipriano. Segundo o jornalista Laércio Vasconcelos, nas décadas de 1920 e 30 eles haviam participado de volantes que haviam caçado Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seu bando de cangaceiros. Quando José Cipriano soube que seu velho amigo de correrias contra Lampião estava ajudando na defesa dos assassinos do seu filho, evidentemente que não gostou nem um pouco daquela situação.

Em 06 de julho de 1971, seis meses após os acontecimentos em São João dos Gaia, o velho Batista Gaia foi assassinado em Serra Talhada com cinco tiros, duas facadas e uma forte cacetada na cabeça. O fato se deu quando ele estava no quarto de uma prostituta, aparentemente denominada “Ina” e seu corpo foi então jogado ao lado da caixa d’agua da cidade, em um lugar conhecido como Alto do urubu, ou simplesmente Urubu.

O então delegado de Serra Talhada, o capitão João Virgílio Oliveira de Morais, instaurou um inquérito para saber quem matou João Batista Gaia. Este solicitou a Secretaria de Segurança Pública um Delegado Especial e quem assumiu a função foi o Bacharel Fernando José Pereira de Albuquerque. Essa autoridade afirmou, e consta do relatório do capitão Jorge (Pág. 02), que “dada as inimizades da vítima, neste município, as pessoas conhecedoras dos detalhes, se furtaram a prestar informações”.  

Ainda segundo esse relatório de 1975, logo surgiram três versões acerca da morte de Batista Gaia na cidade de Serra Talhada. A primeira dizia que os autores foram soldados da 17ª Companhia de Polícia Militar; a segunda que o autor foi José Cipriano; e a última versão era que o velho Batista Gaia desempenhara a função de guarda da Coletoria Estadual (atual Secretaria da Fazenda), onde conseguiu muitos inimigos e foi assassinado pelas suas ações como funcionário público. O relatório também informou que na época desse homicídio João Batista Gaia tinha 75 anos, mas era um homem que frequentava cabarés, bebia e arranjava confusões nesses ambientes.

Igreja de Nossa Senhora da Penha, em Serra Talhada.

Mesmo sem apontar autores, o inquérito foi então remetido à justiça. Durante a instrução criminal o promotor público de Serra Talhada, cujo nome não é informado, solicitou o arquivamento do processo, mas o pedido foi negado pelo juiz Ítalo José de Miranda Fonseca. Aí o processo foi encaminhado para o Procurador Geral, que acatou as alegações do juiz Ítalo Fonseca e mandou que o promotor público da cidade de Triunfo, distante 33 quilômetros de Serra Talhada, oferecesse denúncia.

O processo foi em seguida remetido para a Secretaria de Segurança Pública, para diligências complementares. Estas foram realizadas pelo Delegado de Homicídios da época, que concluiu pela participação do soldado da PMPE Natalício Nunes Nogueira. Ainda segundo o relatório do capitão Jorge em decorrência dessa conclusão, o soldado Natalício foi denunciado pelo promotor público (não é informado se foi o de Triunfo, ou de Serra Talhada) e enquadrado no crime de homicídio qualificado. Mas o soldado foi impronunciado pelo próprio promotor, alegando falta de provas.

O leitor deve levar em consideração que naqueles primeiros anos da década de 1970, a situação de violência na região de Serra Talhada alcançou um tal nível, que em 1975 existia naquela comarca 102 processos de homicídio, sendo que em dez constava o uso de tocaias para perpetrar os crimes e outros dez envolviam nada menos que quinze policiais (Revista Manchete, edição 1220, 06/09/1975, página 23). Já o relatório do capitão Jorge (Relatório, pág. 11), através de informações fornecidas pelo juiz Ítalo, nos três cartórios criminais de Serra Talhada havia 150 processos criminais em andamento, sendo 80 abertos entre abril de 1974 e março do ano seguinte. 

Foto antiga de Serra Talhada.

Ou seja, o caso da morte do velho Batista Gaia era mais um entre tantos.

Independentemente dessa questão, o certo é que os membros da família Gaia não viram ninguém ser preso, julgado e condenado pela morte de João Batista Gaia. Enquanto isso, alguns integrantes dessa família envolvidos no conflito da “Frente de Emergência” estavam detidos na Delegacia de Serra Talhada.

“Se Fosse Vivo Eu o Mataria Novamente”

Vilmar Alves Magalhães, o Vilmar Gaia, nasceu em 15 de maio de 1949 e era filho do velho Batista Gaia e de Dona Francisca Alves de Lima, que faleceu quando Vilmar tinha oito anos de idade. Esse rapaz era uma figura típica do meio rural da região do Pajeú. Nasceu na povoação de Santa Rita, estudou até o segundo ano primário, gostava de gado e jogar pião, trabalhou na roça e, na ausência de sua mãe, foi criado pela irmã mais velha, Maria de Lourdes. Esta enviuvou cedo e, sem filhos, deu todo carinho possível ao irmão mais novo. Não era uma criança de chorar por besteiras e cedo ganhava alguns trocados tangendo o gado de Seu Luís Inácio. Segundo a maioria das fontes, Vilmar Gaia se encontrava em São Paulo e após saber do assassinato do pai voltou para o Pajeú (Diário de Pernambuco, 22/08/1975).

Vilmar Gaia

Segundo o relatório do capitão Jorge Luiz de Moura, até a época do assassinato do seu pai, Vilmar Gaia não tivera problemas com a justiça. Inclusive o capitão Jorge descobriu que ele havia tentado ingressar na polícia em julho de 1970, no quartel do 5º Batalhão de Polícia Militar, quando este era sediado na cidade pernambucana de Salgueiro. Em uma reportagem assinada pelo jornalista Ricardo Noblat, na Revista Manchete (edição 1220, 06/09/1975, páginas 22 e 23), existe a informação que quando mataram seu pai, mesmo tendo ido para São Paulo, Vilmar estava inscrito em um novo exame de admissão na polícia do seu estado.

Mas agora, de volta ao sertão pernambucano e cheio de ódio, ele iria mostrar que era melhor com uma arma na mão do que com um lápis!

Novamente na Revista Manchete, Vilmar deu uma declaração a Ricardo Noblat onde buscou resumir sua vingança – “O processo não andava, nunca andou direito. A gente ia, pedia ao delegado, capitão Virgílio, comandante da 17ª Companhia de Polícia Militar, e não adiantava, e não fazia nada. E o que era pior: ainda passava os domingos na casa de José Cipriano, o homem que mandou matar meu pai. Aí compreendi que a justiça tinha que ser feita pela gente mesmo”.  

Evidentemente que Vilmar desejava colocar os assassinos do seu pai na alça de mira de sua arma. Para ele seus alvos prioritários eram José Cipriano, seus familiares e os policiais que ajudaram na morte do velho Batista Gaia.

Em uma entrevista o tenente reformado da polícia pernambucana David Gomes Jurubeba, ex-integrante das “volantes” que combateram o cangaceiro Lampião e seu bando na década de 1930, comentou que Vilmar Gaia descobriu que os soldados Natalício Nunes Nogueira e Luís Gonzaga Mendes estavam envolvidos na morte do velho Batista Gaia. Estes possuíam laços de parentesco com a família Ferraz e este clã foi acusado por Vilmar de protegê-los (Diário de Pernambuco, edição de 17/11/1975). Uma outra versão aponta que Vilmar soube que a prostituta que estava com seu pai no dia de sua morte e se chamaria “Ina”, teria traído seu cliente por CR$ 500,00, pagos pelos assassinos. Ela então teria se arrependido do que fez e narrou tudo ao filho de Batista Gaia.

Policiamento em Serra Talhada.

Somente em 13 de janeiro de 1973, um ano e meio depois da morte de seu pai, foi que Vilmar Gaia conseguiu matar com um tiro na testa Arnaldo Alves de Oliveira, o Arnaldo Cipriano, em um bar na cidade de Salgueiro, quando a vítima jogava bilhar. Este era filho de José Cipriano e irmão do soldado Alberto, o mesmo que morreu no penúltimo dia de 1970.

Vilmar nunca negou a autoria desse crime. Quando foi preso em 1975 ele afirmou para o juiz de Salgueiro, o Dr. Enéas Bezerra de Barros, que “Se Arnaldo Cipriano fosse vivo eu o mataria novamente. Ele foi um dos assassinos de papai e eu o escolhi para mandá-lo para o inferno em primeiro lugar” (Diário de Pernambuco, edição de 14/11/1975).

Logo Vilmar focava em outros alvos e angariava novos inimigos e amigos.

Se havia militares que Vilmar Gaia desejava ver diante da mira do seu revólver, outros lhe protegiam com “o braço forte” e estendiam a “mão amiga”.

Seu parente Lindauro Gaia comentou em um documentário com direção de Eduardo Coutinho e intitulado “O Pistoleiro de Serra Talhada”, que após a morte de Arnaldo Cipriano, Vilmar passou a circular livremente ao lado de policiais. Comentou que seu parente “ficou dentro da cidade, com a polícia com a mão por cima dele e até bebendo”.

Mas logo essa aproximação traria problemas.

Mais Problemas

Sentindo-se protegido, Vilmar Gaia foi a uma festa na comunidade do Jardim, próximo a São João dos Gaia. Era uma noite de sábado, 22 de junho de 1974, bem no período de festas juninas e ele foi acompanhado de amigos policiais e algumas mulheres.

Vilmar começou a dançar com uma dessas damas, considerada “de vida fácil” pelo povo da região. Seja pela forma de vestir, ou de agir, a dança de Vilmar e da parceira começou a incomodar os presentes. Estes foram até Pedro Inácio dos Santos, suplente de Comissário de Polícia, pedir que ele tomasse providências. Sem outro jeito, Pedro foi até Vilmar e mandou que ele e seus amigos se comportassem, ou fossem embora do ambiente.

Com o que aconteceu depois, teria sido melhor ter deixado o casal dançar do jeito que bem entendessem.

Logo estourou uma discursão, que gerou um tiroteio pesado, onde foram disparados mais de 40 tiros. O resultado foi a morte de Pedro Inácio, ferimento em três homens e duas mulheres. Segundo o relatório do capitão Jorge (Relatório, págs. 03 e 04), embora não conste nos autos do processo aberto sobre esse episódio, Vilmar Gaia também saiu ferido e recebeu tratamento médico no Hospital Barão de Lucena, em Recife.

Ao ler esse relatório, acredito que para o capitão Jorge o mais incrível desse episódio ocorreu cerca de quinze dias depois, na delegacia de Serra Talhada.

Vilmar Gaia esteve neste local para prestar depoimento sobre o tiroteio em Jardim. Ele foi acompanhado de outras pessoas, alguns de sua família, todos armados até os dentes. Ocorre que na hora do depoimento chegou de Salgueiro um cabo, três soldados e um motorista, com ordens do tenente Almir Ferreira de Morais, delegado daquela cidade, para levar Vilmar até sua presença, onde ele deveria prestar depoimento sobre a morte de Arnaldo Cipriano.

Mas o delegado de Serra Talhada, um subtenente, negou ao cabo que Vilmar Gaia estivesse naquele momento em sua delegacia, o que era mentira. Um soldado de Salgueiro sabia quem era Vilmar, o reconheceu e informou ao cabo. Este por sua vez, vendo a atitude de seu superior e a presença de pessoas armadas em favor de Vilmar Gaia, decidiu recuar.

Vilmar Gaia na Delegacia de Serra Talhada.

O capitão Jorge descreveu em seu relatório oficial que a atitude do militar que respondia pela delegacia de Serra Talhada foi classificada como “omissão”, além de “pura falta no cumprimento do dever” e “covardia”.

Com esse tipo de ação por parte das autoridades policiais junto a Vilmar Gaia, o que reservava o futuro?

Mais Mortes

Três meses depois, em 13 de outubro de 1974, por volta das sete ou oito da manhã de um domingo, mesmo estando respondendo ao processo sobre a morte de Pedro Inácio dos Santos, que tinha o número 2.746 e corria no 2º Cartório da Comarca de Serra Talhada, Vilmar circulava livre e solto em um carro, na povoação de Santa Rita. Então ocorreu na estrada a colisão do seu veículo com o do primo Antônio Augusto Batista. Ao invés de procurarem resolver o problema na conversa, logo surgiu uma discursão e o clima esquentou. Existe uma versão que durante a troca de palavras ásperas, Antônio Augusto teria ido até o seu carro pegar uma arma e por isso o “Vingador do sertão” atirou nele, matando-o na hora.

Vilmar, certamente buscando um fiapo de justificativa, comentou em uma entrevista para o Diário de Pernambuco (14/11/1975) que seu primo Antônio Augusto lhe protegia após o início dos problemas com seus inimigos, mas depois, com medo, passou para o lado da família de José Cipriano. Muita gente em Serra Talhada afirma que isso era mentira.

E quase que Vilmar Gaia mata outro primo nesse mesmo dia!

José Augusto Batista, irmão da vítima, se dirigiu para o local e foi recebido a tiros por Vilmar Gaia. Só não morreu por que entrou no seu carro e fugiu.

José Augusto veio até o quartel da 17ª Companhia de Polícia Militar e pediu auxílio. Foi organizada uma patrulha composta de um cabo e seis soldados a fim de capturar Vilmar Gaia, que descaradamente ainda se encontrava em Santa Rita. Consta que o cabo levou uma submetralhadora calibre 45, completamente municiada.

O pistoleiro estava no interior de uma casa, quando por volta das nove ou dez horas da manhã (algumas fontes apontam que foi a tarde) a polícia chegou. Ao Diário de Pernambuco Vilmar Gaia afirmou (14/11/1975) que “ao invés de lhe darem voz de prisão, começaram a atirar e, para não morrer, me defendi”.

O soldado Natalício Nunes Nogueira, seu inimigo implicado na morte de seu pai, entrou pela porta traseira e Vilmar o matou a tiros. Após isso tratou de fugir. Já o cabo armado com a submetralhadora continuou com a mesma nas mãos e não disparou um único tiro.

Vaqueiros do sertão do Pajeú – Foto Rostand Medeiros

Com esses homicídios, os ânimos se acirraram em Serra Talhada e a situação de Vilmar Gaia começou a se complicar. Depois de matar um primo e tentar contra a vida de outro, houve um rompimento na família Gaia, com uma parte querendo a cabeça do pistoleiro e outra o protegendo.

Com a morte do soldado Natalício a polícia novamente voltou a circular na região da família Gaia, agora com violência redobrada. Houve invasão de casas, pessoas apanharam e outras foram presas. Zuleide Alves de Magalhães, irmã de Vilmar, ficou detida nas dependências da 17ª Companhia de Polícia Militar.

Lindauro Gaia comentou ao diretor Eduardo Coutinho em 1977 que, a partir da morte do soldado Natalício, a perseguição contra Vilmar Gaia só fez crescer e ele deixou de circular por São José dos Gaia e Santa Rita.

Luta entre Famílias

Enquanto a polícia perseguia os integrantes da família Gaia e corria atrás de Vilmar, as violências se sucediam.

Consta que ainda em 1974, Vilmar Gaia participou da morte de um homem chamado Luiz Desidério, ou Luiz de Izidério, na cidade de Irecê, Bahia. Esse cidadão, quase octogenário, havia praticado um assassinato em Serra Talhada no ano de 1926 e, mesmo passados tantos anos, seu filho, conhecido como Baiãozinho, desejava a vingança. Esse era amigo de Vilmar Gaia e ele teria supostamente participado desse crime por amizade. Para outros a motivação foi apenas dinheiro. Vilmar afirmou apenas testemunhou a morte. O certo é que Baiãozinho assumiu toda a culpa, foi a julgamento e acabou absolvido pelo júri.

Em meio aos conflitos, não demorou para que outros membros da família Gaia pagassem com a vida pelo parentesco com Vilmar.

Em janeiro de 1975 foi assassinado o motorista de taxi Francisco Gaia Filho, o conhecido Batinha. Uma noite ele estava estacionado com seu fusca na porta do Cabaré de Nivalda, quando seus assassinos chegaram e o mataram. Quem socorreu Batinha para o hospital foram as prostitutas, mas nada pôde ser feito. Na Revista Manchete (edição 1220, de 1975) existe a informação que no dia de sua morte Batinha foi revistado três vezes pela polícia antes de ser assassinado.

Policiamento em Serra Talhada.

Vilmar não demorou para responder essa morte e partiu para ação.

Mais ou menos às cinco da tarde do dia 19 de março de 1975, o soldado Luiz Gonzaga Mendes, outro implicado na morte do pai de Vilmar, ao voltar de um roçado pertencente ao seu pai na fazenda São José, Distrito de Tauapiranga, foi inesperadamente alvejado no coração com um tiro de um rifle calibre 44. Ele caiu ferido, mas faleceu no outro dia. Segundo a documentação existente, o soldado Gonzaga era casado com Neomar de Araújo Ferraz Mendes, filha do comerciante serra-talhadense Irineu Gregório Ferraz, que prestou depoimento juntos as autoridades pelo assassinato do genro. Irineu afirmou que Antônio de Souza Mendes, irmão de Gonzaga, testemunhou o crime e apontou como autores da emboscada Vilmar e um soldado reformado da PMPE, que tinha o apelido de “Brucutu”. Vale frisar que além de sogro do soldado Gonzaga, Irineu Ferraz era primo do soldado Natalício Nunes Nogueira.

Um dia depois da morte do soldado Gonzaga, o comerciante Álvaro Batista Gaia, irmão de Batinha e casado com uma irmã de Vilmar Gaia, foi brutalmente assassinado em sua casa de comércio chamada “Aliança de Ouro”. O comerciante tombou ao lado da caixa registradora, após receber disparos de revólveres e rifles, desfechados por cinco ou seis homens armados. Segundo o escritor e pesquisador Valdir Nogueira, essa loja ficava no Alto de Bom Jesus, em Serra Talhada.

Na época suspeitou-se que os assassinos seriam comandados por Irineu Ferraz, acompanhado de vaqueiros, ou de colegas do soldado Gonzaga. Mas não consegui maiores informações sobre esse processo, ou se alguém foi preso.

Vilmar sendo entrevistado após sua prisão.

Famoso e Sendo Reconhecido

As notícias desses crimes ecoaram por toda parte. Eram difundidas pelas emissoras de rádio e logo circulavam por todo Nordeste. Segundo o relatório do capitão Jorge, essas mortes causaram impacto na opinião pública de Pernambuco, sendo bastante divulgados pela imprensa da capital e do sul do país. Consta que até repórteres da Rede Globo e do jornal O Estado de São Paulo estiveram na região (Relatório, pág. 06).

Vilmar, a quem as mulheres chamavam de “galã”, teve seu ABC cantado nas feiras sertanejas pelos poetas e violeiros, ou exposta através de folhetos de cordel. Em Recife seu nome era comentado desde o Mercado de São José, nas esquinas da Rua do Imperador, ou da Avenida Guararapes. Já o poeta popular Olegário Fernandes, da cidade pernambucana de Caruaru, produziu o folheto de cordel intitulado “Vilmar Gaia, o cangaceiro de Serra Talhada” e assim escreveu:

“Agora peguei a pena

Com divina inspiração

Para escrever uma história

Sobre o cavalo negro

Da Caatinga e do sertão.

Vira-se em cavalo preto

Corre-se dentro da campina

Vira-se em pau, ou pedra

Para cumprir sua sina

Come lagarta e besouro

Como ave de rapina”.

Mas essa exposição nos cordéis e na mídia, mesmo a televisiva ainda sendo limitada no sertão nordestino na primeira metade da década de 1970, trouxe um lado bastante negativo para Vilmar Gaia, pois ele foi visto e seu rastro seguido em vários locais. Essas informações chegaram aos policiais e após investigações o capitão Jorge listou em seu relatório onde ele se escondia e recebia abrigo.

Inicialmente Vilmar se homiziava em áreas onde predominavam membros de sua família, como Santa Rita, São João dos Gaia e Serrote Branco. Mas com o rompimento ele se afastou dessas áreas e passou a frequentar uma propriedade rural a 15 quilômetros de Serra Talhada, na altura onde se inicia a estrada que dá acesso ao Distrito de Bernardo Vieira e ao Estado da Paraíba.

Conforme a perseguição crescia ele passou a frequentar mais as terras paraibanas. Tinha “coitos”, esconderijo no linguajar sertanejo, em uma fazenda no município de Princesa Isabel (de um político local), uma casa de uma mulher afastada do centro da cidade de Teixeira, em uma fazenda de um ex-deputado estadual próximo a cidade de Piancó e em um sítio em Itaporanga, onde receberia apoio de um ex-policial.

Em Pernambuco foi visto circulando com os pistoleiros conhecidos como “Nunes” e “Pitu”, sendo o primeiro o ex-policial José Nunes da Silva. Vilmar também recebia apoios nas cidades de Salgueiro, Floresta, Tacaratu (onde um rico do lugar lhe fornecia dinheiro quando necessitava). Andou também por Serrita, Calumbi (na fazenda de um político local) e em Recife (na casa de amigos no bairro do Cordeiro). Segundo o capitão Jorge havia notícias que Vilmar estivera circulando em Alagoas, na cidade baiana de Feira de Santana, na cidade cearense de Juazeiro do Norte e até mesmo em Caxias, no Maranhão (Relatório, pag. 09).

A existência desses apoios, esconderijos e o fato de Vilmar andar com matadores conhecidos, foi visto por muitos em Serra Talhada e região que de “Vingador do Sertão” Vilmar Gaia não tinha nada. Ele seria apenas mais um pistoleiro que vagava pelo Nordeste destruindo vidas humanas em troca de dinheiro e já teria matado, dependendo das fontes, de 27, 32 e chega a até 35 pessoas.

Vilmar Gaia sempre negou essa situação. Diante das câmeras afirmou que matou o soldado Natalício Nunes Nogueira, seu primo Antônio Augusto Batista e o Comissário de Polícia Pedro Inácio dos Santos. Além deles, conforme ele narrou ao juiz Enéas Bezerra de Barros e está registrado no Diário de Pernambuco, edição de 14/11/1975, matou Arnaldo Alves de Oliveira, o Arnaldo Cipriano, na cidade de Salgueiro.

A Lei se Impõem

Em meio a tantas mortes em sequência, o aparato jurídico e policial do Estado de Pernambuco começou a agir. E a ação se incrementou por ordem direta do então governador pernambucano José Francisco de Moura Cavalcanti, certamente pressionado pela opinião pública.

De Recife veio o capitão Jorge Luiz de Moura, com a missão de “Oficial Observador”. Após inspecionar o setor e tomar conhecimento pormenorizado dos fatos, transferiu de Serra Talhada para a cidade de Petrolina os policiais suspeitos de estarem envolvidos nos crimes anteriormente narrados e os que tinham processos abertos. De Petrolina vieram militares para manter a ordem em Serra Talhada e o policiamento ostensivo foi intensificado.

Vilmar Gaia após sua prisão.

Outra ação do capitão Jorge que é digna de nota, é que após a sua chegada ele buscou os líderes da comunidade de Serra Talhada e chamou todos para uma reunião. Estavam presentes o prefeito, o delegado, comerciantes, profissionais liberais e outros. Nela o militar expôs as ordens recebidas, a forma de atuação do seu trabalho e ouviu as reclamações das lideranças locais. Nesse diálogo o capitão Jorge sentiu “certa falta de confiança na ação policial local, oriunda de acontecimentos anteriores” (Relatório, pág. 10).   

Em seu comentado relatório o capitão Jorge apontou para seus superiores a necessidade de se trazer para Serra Talhada um Delegado Especial, que fosse “imparcial e experiente e com total apoio da SSP e do Comando da PMPE”. Em abril de 1975 foi nomeado o capitão José Ferreira dos Anjos, um oficial tido como valente, operacional e campeão de tiro da polícia pernambucana na época.

O capitão Ferreira veio para a região conflituosa e trouxe uma equipe de 38 policiais. Consta que esse oficial arrochou geral para cima da família Gaia, sendo dez dos seus membros presos e houve denúncias de arbitrariedades por parte desse oficial. Em uma nota publicada no jornal carioca A Luta Democrática (18/04/1975, pág. 02), o capitão Ferreira foi acusado de deixar todos os integrantes da família Gaia detidos em uma única cela, algemados e passando fome. A ideia era forçar os membros da família a “abrir o bico”, como se diz no jargão policial, e informar o paradeiro de Vilmar para prendê-lo.

Vilmar preso e recebendo a visita de parentes.

Meses depois o capitão Ferreira recebeu a informação que Vilmar Gaia estava em uma fazenda chamada Quiterno, ou Quitéria, na cidade cearense de Ipaumirim, a 215 km de Fortaleza e a 27 da fronteira com a Paraíba. Vilmar foi encontrado trabalhando como um empregado da fazenda, era conhecido por “Tonho”, foi preso com apenas um revólver e cinco balas. Aceitou se render ao capitão Ferreira e sua equipe sem maiores problemas, pois para o fugitivo o oficial militar o “tratou muito bem e o respeitou como homem” (Diário de Pernambuco, 22/08/1975).

Vilmar Gaia se tornou notícia em todo país e era centro de atenções na Delegacia de Serra Talhada, onde muitas fãs iam lhe levar comida e carinho. Mas ele gostava mesmo de receber uma moça jovem, de boa família sertaneja, funcionária de um tribunal federal, que a tempos mantinha um relacionamento íntimo com Vilmar e que tinha gerado uma bela menina.

Uma noite, menos de três meses após sua prisão, Vilmar soube que o capitão Ferreira seria exonerado de suas funções em Serra Talhada e sairia da cidade. Então, utilizando uma vitrola que lhe foi presenteada por uma prima colocou um disco e abriu o volume no máximo com músicas de Waldick Soriano e Raul Sampaio. O prisioneiro aproveitou o barulho, abriu um buraco de 50 cm na parede da prisão e fugiu.

Três dias depois foi novamente capturado. Estava na fazenda Altinho, do primo Lindauro Gaia e não tinha armas de fogo. Se entregou ao capitão Ferreira e sua escolta com 30 soldados e lhe afirmou que não queria fugir, mas temeu que com a saída desse militar em pouco tempo seria trucidado pelos inimigos. Ficou decidido que Vilmar Gaia seria levado para a cadeia de Caruaru, onde acreditavam que ele poderia cumprir sua pena com segurança.

Vilmar e sua filha.

Reviravolta

Quase dois anos depois, no dia 8 de março de 1977, um veículo do tipo Chevette, cor azul, estava estacionado com quatro homens a somente 100 metros da cadeia de Caruaru. A polícia desconfiou daquela gente e um grupo deles foi até o carro de arma em punho. Descobriram que os ocupantes daquele carro estavam com dois rifles calibre 44, quatro revólveres, muita munição e quatro placas frias. Eles vieram de Serra Talhada e tinham uma missão – Matar Vilmar Gaia (Diário de Pernambuco, 09/03/1977).

Poucos dias antes o “Vingador do sertão”, depois de um ano e sete meses preso pelos quatro homicídios que havia confessado, estava prestes a deixar o cárcere. O fato havia sido bastante divulgado e isso motivou a vinda daqueles quatro homens para tentar liquidar Vilmar.

O advogado Juarez Viera da Cunha, que representava Vilmar Gaia, entrou com um habeas corpus em favor do seu cliente, alegando excesso de prazo durante o sumário de culpa. Cinco desembargadores do Tribunal de Justiça de Pernambuco concederam o habeas corpus por unanimidade, mas se pronunciaram afirmando que aquilo era um “desprestígio para a justiça pernambucana, que se demonstrou incapaz de cumprir os prazos mais elementares para o desenrolar dos processos” (O Fluminense, Rio de Janeiro, 04/03/1977).  

Após a saída de Vilmar Gaia da cadeia de Caruaru eu não encontrei mais nada referente a essa figura e nem o que aconteceu com ele. Sob todos os aspetos ele sumiu. Talvez em sua mente aquele ano e sete meses de cadeia já estavam de bom tamanho, ou ele soube de algo que o fez sumir.

Bem, com Vilmar solto pelo mundo, para quem quisesse eliminá-lo era só encontrá-lo e liquidá-lo. Mas encontrar Vilmar Gaia não era algo tão simples assim. Homem criado e vivido no sofrido sertão nordestino, sem os confortos da capital, ele poderia se esconder desde o Oiapoque ao Chuí, em qualquer vilazinha, recanto distante, ou pequeno sítio. O que sei é que entre 1977 e 1982, afora memórias esparsas sobre os acontecimentos ocorridos na primeira metade da década de 1970, Vilmar Gaia some dos jornais.

Mas algo aconteceu que mudou completamente toda a situação e, no meu entendimento, favoreceu enormemente essa figura!

Necessidade de Mitos

Assassinato do procurador da república Pedro Jorge, em 1982.

No dia 3 de março de 1982, na Padaria Panjá, no Jardim Atlântico, na cidade de Olinda, foi assassinado com seis tiros, três dos quais à queima-roupa, o procurador federal Pedro Jorge de Melo e Silva.

Três meses antes essa autoridade ofereceu denúncia contra dois oficiais da Polícia Militar de Pernambuco, um deputado estadual e outras 21 pessoas envolvidas no desvio de recursos federais para financiamento agrícola do Banco do Brasil da cidade de Floresta, no rumoroso caso que ficou conhecido nacionalmente como o Escândalo da Mandioca.

Entre os anos de 1979 e 1981, mais de 300 empréstimos foram feitos na  agência do Banco do Brasil daquela cidade pernambucana, onde os criminosos fraudaram empréstimos do PROAGRO (Programa de Crédito Agrícola Federal), com cadastros falsos de pequenos agricultores da região, que simulavam plantio de várias culturas, principalmente mandioca. Além de não plantarem o que foi acertado, os controladores do esquema declaravam as safras como perdidas por causa da seca e ainda recebiam o dinheiro do seguro. O desvio alcançou mais de Cr$ 1,5 bilhão de cruzeiros (quase R$ 68 milhões de reais em valores atualizados), configurando um dos maiores casos de corrupção daquele período. A maracutaia foi denunciada por um agricultor, investigada pela Polícia Federal e o procurador Pedro Jorge recebeu o inquérito e, mesmo tendo sido ameaçado, denunciou vários envolvidos, entre eles o militar José Ferreira dos Anjos, o homem que prendeu Vilmar Gaia e que tinha a patente de major em 1982.

Foi Ferreira quem contratou Elias Nunes Nogueira, o atirador que acabou com a vida de Pedro Jorge na Padaria Panjé. Elias era irmão do soldado Natalício Nunes Nogueira e um dos quatro homens que estiveram em Caruaru para tentar exterminar Vilmar Gaia em um Chevette azul no dia 8 de março de 1977. (Diário de Pernambuco, 06/05/1982). Vale frisar que no Chevette estava um outro irmão de Natalício, de nome Pedro Afonso da Silva, que, apesar dos sobrenomes distintos, eram dois dos sete filhos de Afonso Nunes da Silva, o Afonso Terto, e de Vitalina Nogueira da Silva.

E onde estes acontecimentos favoreceram Vilmar?

Simples, a partir do Escândalo da Mandioca as atenções e preocupações de muita gente em Serra Talhada e região focaram nas investigações da Polícia Federal e os problemas ligados a esse escândalo de proporções nacionais. Como vários inimigos de Vilmar estavam no meio desse problema todo e, se muitos ainda tinham a intenção de matá-lo, ela se tornou algo secundária.

O povo do Nordeste – Se não são as secas, a ação nefasta dos políticos, é a violência que aflige o povo dessa região a séculos.

Não sei se Vilmar Gaia está vivo? Ou se ele morreu? Mas percebi que sua história marcou muitos na região do Pajeú, principalmente diante da repercussão nacional do caso.

Sobre toda essa situação eu acredito que a pessoa que melhor definiu esse caso foi o Padre Afonso de Carvalho Sobrinho, de Serra Talhada, que comentou com Ricardo Noblat, em uma entrevista para a Revista Manchete sobre o caso – “O machismo expresso no desejo de vingança pela morte de parentes, na sua aparente infalibilidade no manejo das armas, na capacidade de escapar à prisão, identificava-se plenamente com uma linha de pensamento popular necessitada de mitos e heróis profundamente enraizada, principalmente no sertão”.

Uma última nota – Passados mais de 50 anos desde as primeiras mortes nesse conflito, me chamou atenção como alguns membros da família Gaia relembram esses episódios. Vários deles abraçaram a religião evangélica e alguns deles são até pastores que utilizam em seus processos de evangelização os problemas sofridos pelos mais velhos da família, as perseguições e como eles conseguiram, através da fé em Jesus Cristo, de alguma forma conviver com os traumas sofridos.

O “CINE JORNAL” DE 1924

O PRIMEIRO LONGA-METRAGEM REALIZADO NO RIO GRANDE DO NORTE FOI UM DOCUMENTÁRIO

Rostand Medeiros – IHGRN

Sou um entusiasta pela sétima arte, onde, obrigatoriamente, busquei no excelente livro do jornalista potiguar Anchieta Fernandes, “Écran Natalense”, conhecer a história do cinema no Rio Grande do Norte.

Desejava que uma curiosidade fosse satisfeita ao ler este livro; qual foi o primeiro longa-metragem produzido em terras potiguares?

Em uma das páginas, uma pequena nota apontava para um documentário produzido pelo governo do estado, no início dos anos de 1920. Busquei maiores detalhes sobre este projeto cinematográfico e encontrei uma interessante história: Em uma edição do jornal “A Republica”, de 25 de julho de 1924, temos uma reportagem sobre a criação de um “film” que mostrava a “vida actual” e “as possibilidades econômicas do Rio Grande do Norte”. Informava “que o Dr. Amphilóquio Carlos Soares da Câmara estava com a missão de dirigir, e naquele momento, acompanhava no Rio de Janeiro a conclusão do material para posterior exibição”.

Ligação com um Livro

Lendo a reportagem detalhada sobre a película, me recordei que já tinha tido oportunidade de ler um livro chamado “Scenarios Norte-Riograndenses”, de 1923, de autoria do mesmo Amphilóquio Câmara, que mostrava as diversas regiões, os potenciais econômicos, as cidades, as características e particularidades do Rio Grande do Norte dos anos 20 do século passado. Este livro fora preparado visando mostrar aos potiguares o que o estado possuía e como as nossas riquezas foram vistas na Exposição Nacional do Centenário da Independência, em 1922, quando o próprio Amphilóquio havia sido designado delegado do Rio Grande do Norte para este evento.

Palácio do Governo e Praça 7 de setembro. A imagem foi captada do primeiro andar do Palácio Felipe Camarão, sede da Prefeitura Municipal de Natal, onde acredito que o cinegrafista Junqueira filmou o mesmo cenário em 1924.

Comparando a descrição e as fotos existentes no livro, e lendo a reportagem sobre o documentário existente em “A República”, pude perceber que o livro e a película tinham ligação concreta. Mostrando como os conhecimentos de Amphilóquio Câmara estavam sendo utilizados na execução deste projeto cinematográfico.

Governador José Augusto Bezerra de Medeiros.

O então governador José Augusto Bezerra de Medeiros apoiou a ideia de Amphilóquio, que buscou contratar um dos melhores cinegrafistas existentes no país, o mineiro Aristides Junqueira, autor do curta-metragem “Reminiscências”, hoje considerado o filme brasileiro mais antigo (1909) ainda disponível. Ficou decidido que o título da película seria, “Cine-Jornal do Rio Grande do Norte”.

Iniciam as Filmagens

Junqueira e Amphilóquio iniciaram o trabalho no final de 1923, tendo sido rodados quatro mil metros de película. Foram feitas, segundo o relato existente no jornal, imagens da capital com seus bairros, avenidas principais, igrejas, praças, a vida cotidiana, vistas do mar e imagens do dia-a-dia. Um dos exemplos foi uma panorâmica em 360° da cidade, feita a partir da torre da Igreja Matriz, na Praça André de Albuquerque, então o ponto mais elevado de uma Natal que possuía uma população em torno de 25.000 pessoas.

Foto da antiga igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação, na Praça André de Albuquerque, centro de Natal. No início do século XX era normal que escoteiros ficassem no alto da torre e desfraldassem bandeiras quando um barco era visto se dirigindo para o porto da cidade. Estas bandeiras possuíam cores distintas para diferenciar se os barcos vinham do norte, ou do sul. Durante anos este foi o local mais elevado da cidade, de onde fotógrafos registraram a evolução da cidade. Certamente no alto dessa torre Junqueira deve ter colocado sua câmara.

Como a principal área urbanizada da cidade, praticamente se restringia ao Centro e a Ribeira, provavelmente nesta tomada, Junqueira filmou toda a área da capital potiguar. Igualmente foram filmados ações de governo, prédios públicos, escolas, obras de saneamento da cidade, hospitais, sanatórios e outros.

Fatos sociais foram mostrados, um deles foi o desembarque de José Augusto em Natal, na manhã de 24 de dezembro de 1923. Foi um evento concorrido, onde várias autoridades e figuras sociais estavam presentes no cais da Tavares de Lyra.

José Augusto chegava do Rio de Janeiro, então Capital Federal, para tomar posse como governador. Toda a solenidade foi filmada tanto fora, como dentro do palácio de governo. Outro evento mostrado foi à inauguração da sede da Associação dos Escoteiros de Natal.

O governador decidiu que seriam realizadas filmagens no interior do estado. Para esta empreitada, além de Amphilóquio e Junqueira, uniu-se ao grupo o advogado Dioclécio Duarte. Estes seguiram visitando e filmando aspectos sociais e econômicos de Macaíba, Ceará-Mirim, a praia de Muriú, Macau, Mossoró, Areia Branca e Grossos. Em Macaíba, as lentes de Junqueira apontaram para o então Campo de Demonstração Agrícola.

Em Ceará-Mirim, o alvo foi a produção de cana-de-açúcar, onde uma das tomadas foi realizada em um ponto elevado do engenho “Villa Bella”. No engenho “União” foi realizada cenas da moagem da cana, do trabalho tradicional e da casa do seu proprietário, o “coronel” Felismino Dantas.

Em Muriú, a saída dos pescadores em tradicionais jangadas, foi apresentada para o grupo que realizava o documentário.

A cidade de Macau na década de 1920.

Em Macau foram filmadas solenidades na cidade, os aspectos da indústria salineira, com imagens da salina “Conde Pereira Carneiro” e o transporte do sal para os barcos salineiros impulsionados pela força dos ventos. Na povoação de “Independência” (atual Pendências), foi apresentado ao grupo à cultura da carnaúba e alguns vastos carnaubais.

Mossoró era apresentado como o “maior empório comercial do estado, com sua população de 20.000 habitantes”. Foi realizada uma panorâmica da cidade, feita a partir da torre da igreja de São Vicente. Praças, igrejas, ruas, prédios públicos, com destaque para a Escola Normal, foram capturados pela lente de Junqueira.

Já Grossos e Areia Branca tiveram destaques pelas salinas e o porto. Segundo as notícias, as fortes chuvas ocorridas no primeiro semestre de 1924, impossibilitaram que fossem filmadas outras cidades do interior do Estado.

Escola Normal de Mossoró, na década de 1920. Quando governador do Rio Grande do Norte, José Augusto Bezerra de Medeiros valorizou muito a educação. É possível que em sua visita a Capital do Oeste o cinegrafista Junqueira tenha filmado esse local.

Além das notícias publicadas no jornal “A Republica”, uma referência sobre este filme pode ser lida na própria mensagem governamental de José Augusto, no ano de 1924, onde nas páginas 67 e 68, no tópico “Museu Agrícola e Commercial”, o governador afirmava a necessidade de se fazer propaganda dos recursos do Estado, utilizando esta película, neste museu que estava sendo criado pelo Governo Federal.

Outros Trabalhos de Junqueira

O trabalho do cinegrafista Aristides Junqueira parece ter-se prolongado mais tempo no Rio Grande do Norte. Na edição de 12 de novembro de 2000 da “Tribuna do Norte”, em uma reportagem sobre pesquisas e catalogação do material relativo a Intentona Comunista, existente no próprio Arquivo Público do Estado, existem cartas de Junqueira comentando sobre o levante de 1935. Na reportagem, a então diretora do Arquivo, Vanilde de Souza Rêgo, comenta que o cineasta fez relatos de como ocorreu o movimento comunista na região salineira, algo então desconhecido para muitos. Em uma das cartas, Junqueira afirmava estar “cavando com a machina cinematographica o pão nosso de cada dia…”, onde ele filmaria “as salinas para os meus jornalecos quando estourou o movimento comunista em Natal”.

Teria o cinegrafista Junqueira continuado trabalhando frequentemente com filmagens no Rio Grande do Norte?

Cine Royal.

Ou este cineasta mineiro teria retornado ao estado, apenas para uma nova refilmagem da região salineira e, coincidentemente, estava na área quando ocorreu a Intentona Comunista? Haveria outros antigos documentários sobre o Rio Grande do Norte?

Esta película é certamente o primeiro trabalho cinematográfico, em longa-metragem, no formato de um documentário, realizado de forma profissional no Rio Grande do Norte e desenvolvido por um dos melhores cinegrafistas existentes no Brasil da década de 1920. Foi um projeto executado como uma ação de governo, apresentando a nossa realidade social e econômica, em meio a um país eminentemente agrícola.

È difícil, mas é possível acreditar na possibilidade de que existam alguns fotogramas desta película, talvez algo mais completo do filme, bastando para isto pesquisar de forma correta e trabalhar sério.

Praça Augusto Severo, seguramente um dos locais filmados por Junqueira em Natal.

Encontrar o que sobrou deste material é rever uma Natal e um Rio Grande do Norte que não existem mais.

Não é necessário muito esforço para imaginar a importância que a descoberta material desta película teria para a história iconográfica do Rio Grande do Norte e para nossa história de maneira geral.

Apresentações

Após as filmagens, foi realizada a preparação das imagens no Rio de Janeiro, onde houve uma primeira exibição do “Cine-Jornal do Rio Grande do Norte” e a película volta ao estado. No dia 18 de outubro de 1924, o documentário começou a ser anunciado nos jornais locais. Era informado que este seria um “filme que interessa a todo riograndense do norte”.

Motivo de orgulho de um Rio Grande do Norte pobre e esquecido no sul do país na década de 1920, acredito que as alunas da Escola Doméstica de Natal foram focadas por Junqueira. Na foto as jovens aparecem em uma aula na horta do educandário – Fonte – http://www.skyscrapercity.com

A exibição ocorreu nas duas principais salas de exibição existentes em Natal, o Royal e o Polytheama, onde o material cinematográfico foi dividido em duas exibições, em 13 partes distintas. Na primeira apresentação foram expostas seis partes, no dia posterior, outras sete partes foram exibidas, tendo sido a película repetida por mais uma semana e de forma contínua.

Na primeira exibição o valor da entrada foi de 1$100 (um mil e cem réis), na segunda exibição o valor foi de 2$000 (dois mil réis).

Ainda segundo a opinião dos redatores de “A Republica”, o filme causou uma boa impressão na cidade. Entretanto, Américo Gentile, o proprietário das duas salas de projeção, baixou o preço da entrada para 1$000 réis.

Após estas apresentações, não se encontram notícias sobre outras exibições do documentário nos jornais e ele é esquecido.

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ALIADOS? – A ESPIONAGEM BRITÂNICA NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA

Rostand Medeiros – IHGRN

Sabemos que durante a Segunda Guerra Mundial inúmeros navios brasileiros foram afundados por submarinos e essas ações bélicas levaram o Brasil a declarar formalmente o Estado de Guerra contra a Alemanha Nazista e a Itália Fascista no dia 22 de agosto de 1942.

Com isso o Brasil tornou-se um dos países que lutaram ao lado dos Aliados e em nosso território forças militares norte-americanas construíram estratégicas bases aéreas e navais que ajudaram na defesa do nosso território, na ação contra os submarinos nazifascistas, bem como no transporte aéreo para as áreas de combate na África, Ásia e Europa.

Igualmente sabemos que antes mesmo dessa declaração de guerra o Brasil foi alvo de espiões dos países do Eixo, que atuaram com o apoio de colaboradores brasileiros, a maioria deles antigos participantes da Ação Integralista Brasileira (AIB). Esse foi um movimento político de extrema-direita surgido em nosso país em 1932, cujos integrantes eram jocosamente chamados de “Galinhas Verdes”, por utilizarem uniformes nesse padrão de cor.

Ao longo do conflito mundial as autoridades brasileiras, apoiados por americanos, prenderam vários espiões estrangeiros e seus colaboradores tupiniquins. Muitos deles foram julgados e condenados, alguns até mesmo a pena de morte, mas nunca foram executados.

Instrumentos de trabalho de um espião na Segunda Guerra.

A história sobre a espionagem nazifascista no Brasil durante a Segunda Guerra é bem conhecida e propalada. Mas são poucas as informações sobre a atuação de espiões dos países Aliados agindo em território brasileiro.

Mas ela existiu!

Um dos casos mais conhecidos é uma ação orquestrada pelos britânicos, que criaram uma carta idêntica à de uma empresa aérea italiana, em cujo conteúdo o presidente Getúlio Vargas era chamado de “Gordinho” e os brasileiros de “macacos”. A carta foi tão séria que acabou com uma importante brecha no esquema de segurança dos Aliados na América do Sul. Isso tudo logo após uma séria crise diplomática entre brasileiros e britânicos.

Comecemos por essa crise!

O Caso do Navio Siqueira Campos

Logo após o início das hostilidades, a Grã-Bretanha e sua marinha, a maior e mais poderosa do mundo naquela época, iniciou um bloqueio naval à Alemanha e a Itália, buscando cortar os suprimentos militares e civis vitais a essas nações.

Ocorre que em 1938 o Governo do Brasil assinou um acordo de oito milhões de libras esterlinas com a fábrica de armamentos alemã Friedrich Krupp AG, cuja finalização dos artefatos só ocorreu no segundo semestre de 1940, após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1 de setembro de 1939.

O navio Siqueira Campos – Fonte – 1.bp.blogspot.com

Quando o material bélico ficou pronto, os alemães despacharam tudo até Lisboa em trens, onde os caixotes seriam embarcados no navio de cargas e passageiros Siqueira Campos, da empresa de navegação Lloyd Brasileiro. Em 19 de novembro daquele ano esse navio estava pronto para partir rumo ao Rio de Janeiro, com o lote de armas acondicionadas no seu porão.

Após o Siqueira Campos içar âncora, deixar Lisboa para trás e alcançar águas internacionais, navios de guerra da Marinha Britânica surgiram no horizonte e ordenaram a parada do navio brasileiro. Este foi abordado por oficiais e marinheiros impecavelmente uniformizados com bermudas e meiões brancos.

Destroier britânico na época da Segunda Guerra.

Na sequência a tripulação do Siqueira Campos foi obrigada a seguir com seu navio para a colônia britânica de Gibraltar, aonde chegou em 22 de novembro de 1940, ancorando próximo ao porto e tendo a bordo 145 tripulantes e 250 passageiros. Esse pessoal não pode desembarcar e só partiram quando a crise se encerrou, quando a situação a bordo era alarmante.

No Brasil, o gaúcho Oswaldo Euclides de Souza Aranha, então Ministro das Relações Exteriores, recebeu a notícia e comunicou o fato ao presidente Vargas. Na sequência Aranha manteve contato com Geoffrey George Knox, Embaixador Britânico no Brasil, que estava de mãos atadas esperando instruções do seu governo. Depois Oswaldo Aranha correu em busca do auxílio da diplomacia dos Estados Unidos para ajudar a resolver o imbróglio. Os americanos logo se deram conta que a atitude britânica em relação ao Siqueira Campos poderia comprometer toda sua “Política de Boa Vizinhança” com o Brasil e os países latino-americanos.

Enquanto a diplomacia buscava uma solução, a notícia da apreensão do Siqueira Campos em Gibraltar deixou os brasileiros furiosos com o Governo Britânico. Em relação a esse caso muitos brasileiros tinham a percepção que a Grã-Bretanha agia com uma clara atitude imperialista. Nas ruas do Rio comentavam que os britânicos tomariam as armas do navio, compradas e pagas aos alemães ainda em 1938, para utilizá-las contra seus fabricantes e não receberíamos nada em troca.

O Embaixador Britânico no Brasil Geoffrey George Knox cumprimenta com um aperto de mão “diplomático” o Presidente Getúlio Vargas, diante do olhar atento do Ministro Oswaldo Aranha – Fonte Agência Nacional.

Em meio a todo esse rolo do Siqueira Campos, quem ria abertamente da truculenta bobagem britânica eram os alemães e seus colaboradores. Enquanto a influência da Alemanha crescia positivamente em nosso belo país tropical, os alemães mostravam aos brasileiros o tipo de “Aliado” complicado que os britânicos podiam ser.

Finalmente os dois países chegaram a um acordo para liberar o Siqueira Campos, que partiu para o Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1940. Mas essa crise diplomática, uma das mais sérias entre brasileiros e britânicos no Século XX, marcou negativamente a visão do governo Vargas e do povo brasileiro em relação aquele país.

Perigo Real

Avião da LATI com suas cores e marcações características – Fonte http://www.spmodelismo.com.br

Em 1941 os britânicos mantinham em Nova Iorque uma agência de informações, cuja finalidade era proporcionar estreita ligação com os serviços de informações norte-americanos em seu próprio país, facilitando as manobras dos dois grandes aliados na guerra contra o Eixo. O Chefe dessa Agência era o cidadão inglês William Samuel Stephenson, cujo codinome era “Intrépido”.

Nessa época aeronaves da companhia aérea italiana LATI (Linee Aeree Transcontinentali Italiane) realizavam voos regulares entre o Brasil e a Europa, onde transportavam importantes figuras nacionais e estrangeiras, além de correios especiais dos diplomatas alemães e italianos, que não podiam ser violados. Vale ressaltar que muitos desses diplomatas eram na verdade espiões nazifascistas disfarçados. Nesses voos seguiram para a Europa diamantes, platina, mica, substâncias químicas, livros e filmes de propaganda dos Aliados. Um verdadeiro “buraco” no bloqueio militar e econômico efetuado pelos ingleses contra a Alemanha e a Itália.

Um submarino nazista em mar agitado. Esse foi o verdadeiro flagelo do Brasil na Segunda Guerra.

Stanley E. Hilton, em seu livro Hitler’s Secret War In South America, 1939-1945: German Military Espionage and Allied Counterespionage in Brazil informou que membros da embaixada americana no Brasil transmitiram aos britânicos que durante as travessias no Oceano Atlântico, os pilotos da LATI estavam visualizando navios britânicos, marcando suas posições em mapas e informando os alemães para enviar seus submarinos e afundá-los (pág. 205).

Hilton também comentou sobre uma carta de Jefferson Caffery, Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, de 29 de novembro de 1941, endereçada ao Ministro Oswaldo Aranha e atualmente guardada no Arquivo Histórico do Itamaraty. Nela Caffery informou que provavelmente foram os tripulantes da companhia aérea italiana, os responsáveis ​​por transmitirem informações que levaram ao afundamento de navios britânicos perto das Ilhas de Cabo Verde, nessa época uma colônia portuguesa. (pág. 207).

Cruzando essa informação com dados sobre a movimentação e ação de submarinos alemães e de aviões da LATI nesse período, descobri na página 5, da edição de 10/10/1941 do Diário de Pernambuco, que no dia 9 de outubro havia partido de Roma o aparelho da LATI modelo Savoia-Marchetti SM.82, número de fabricação MM.60326 e matrícula I-BENI. Essa aeronave trimotor fez escalas em Sevilha (Espanha), Villa Cisneiros (atual Dakhla, na região do Saara Ocidental) e Ilha do Sal (Cabo Verde), onde pernoitou. No outro dia, 10 de outubro, decolou para atravessar o Atlântico Sul, tendo pousado por volta das 15h20min da tarde em Recife, no Campo do Ibura. Estranhamente essa aeronave trouxe um único passageiro que vinha de Berlim – o jornalista chileno Ernesto Samhaber.   

O cargueiro britânico SS Nailsea Manor – Fonte – http://www.sixtant.net

Ocorre que nesse mesmo dia pela manhã, na posição 18° 45’ N e 21° 18” W, a cerca de 180 milhas náuticas a nordeste das Ilhas de Cabo Verde, o cargueiro britânico SS Nailsea Manor foi torpedeado pelo submarino alemão U-126, comandado pelo capitão-tenente (Kapitänleutnant) Ernest Bauer. Esse navio transportava uma preciosa carga de 6.000 toneladas de armas, munições e no seu convés estava até um LCT, ou Landing Craft Tank, um barco de desembarque de veículos blindados. Devido uma tempestade o Nailsea Manor estava desgarrado de um comboio e seguia acompanhado de dois outros navios de carga. Esse pequeno grupo estava sendo escoltado pela corveta HMS Violet (K-35), comandada pelo Tenente Frank Clarin Reynolds, que não pode fazer nada em relação ao torpedeamento. O capitão John Herbert Hewitt, comandante do Nailsea Manor, conseguiu retirar do barco toda a sua tripulação de 41 pessoas, que foram recolhidos pelo pessoal do Violet (Ver http://www.sixtant.net/2011/index.php).

O kapitänleutnant Ernest Bauer na torre do submarino U-126 – Foto de Ariane Krause, através de http://www.uboat.net

Apesar da carta do Embaixador Caffery comentar com o Ministro Oswaldo Aranha sobre o torpedeamento de “navios britânicos” perto das Ilhas de Cabo Verde, não encontrei outra informação sobre ataques de submarinos nazistas nessa área entre outubro e novembro de 1941. Acredito que o torpedeamento do cargueiro britânico SS Nailsea Manor, é o caso comentado por Caffery a Aranha.

O Savoia-Marchetti SM.82, I-BENI, realizou durante sua operação no Brasil um total de 25 travessias transatlânticas e foi o avião da LATI que mais percorreu o trajeto entre a Itália e o Brasil.

Espiões Britânicos em Ação no Brasil, Antes de 007

Mas é que os britânicos, depois do verdadeiro banzé que foi o caso do Siqueira Campos, poderiam convencer o governo brasileiro a barrar essa brecha no seu bloqueio aos países do Eixo?

Avião da LATI aterrissando no Campo de Parnamirim, Natal, Rio Grande do Norte, em 1940. No solo estão trabalhadores potiguares realizado os serviços bancados pelo governo americano para a construção da base de Parnamirim Field – Foto Hart Preston – LIFE.

Para piorar o meio de campo, consta que o governo brasileiro não desejava obstruir esse fluxo aéreo. Um dos genros do presidente Getúlio Vargas era um dos diretores técnicos dessa linha aérea e havia muitos brasileiros influentes interessados em preservar os direitos da LATI em nosso território. Além disso, era a Standard Oil, companhia de petróleo norte-americana, que abastecia os aviões da LATI com o combustível necessário para os voos intercontinentais. Detalhe – Uma das bases da LATI no Brasil era em Natal, no antigo Campo dos Franceses, que nessa época já começava a se transformar em uma grande base aérea construída pelos norte-americanos e seria conhecida como Parnamirim Field.

O Chefe das Operações Especiais em Londres estava ansioso para que algo drástico fosse realizado no sentido de eliminar esse grave inconveniente para os interesses britânicos, mas sem criar problemas com o Brasil e, por tabela, com os norte-americanos. Instruções foram remetidas a William Stephenson em Nova Iorque, informando sobre o fato, das consequências para o bloqueio inglês e ordenando que algo deveria ser feito para tapar a brecha inconveniente.

Stephenson e seus assessores conceberam então um plano que consistia em fazer chegar ao governo brasileiro uma carta comprometedora, cujo teor teria sido supostamente escrito por alguém importante, da alta administração da LATI na Itália, e endereçada a um diretor da companhia no Brasil. O texto da missiva deveria conter elementos tão graves, que pudessem resultar no cancelamento da concessão da companhia italiana para operar a rota transatlântica.

William Stephenson, o “Intrépido”

Os agentes de Stephenson no Brasil imediatamente puseram mãos à obra e, depois de algumas semanas, conseguiram obter uma carta genuína escrita pelo presidente da LATI, o General Aurélio Liotta, e remetida da sede central da companhia em Roma. Encaminharam-na para Nova Iorque sugerindo que a carta falsa deveria ser endereçada ao diretor geral da LATI no Brasil, o Comandante Vicenzo Coppola, que morava no Rio de Janeiro.

Os técnicos em Nova Iorque teriam que simular exatamente o tipo de papel empregado, o timbre existente e aforma dos caracteres da máquina de escrever usada pelo General Liotta.

Por sorte, foi conseguida uma pequena quantidade papel de polpa da palha do tipo necessário e que constituía um detalhe essencial na operação proposta. O relevo do timbre foi copiado com detalhes microscópicos, uma máquina de escrever foi especialmente reconstruída a fim de reproduzir as imperfeições mecânicas daquela usada pela secretária do General para datilografar a carta original e um falsificador copiou a assinatura de Liotta.

Uma verdadeira obra-prima da falsificação.

A Carta do “Gordinho”

A carta falsa foi então preparada em italiano, microfotografada e o microfilme remetido para o principal agente de Stephenson no Rio de Janeiro.

Traduzida, continha o seguinte teor:

Linne Aeree Transcontinentale Italiano S.A.

Roma, 30 de outubro de 1941.

Prezado Camarada:

Recebi seu relatório que chegou cinco dias depois de ter sido despachado.

Este relatório foi levado ao conhecimento dos interessados que o consideraram de suma importância. O comparamos com um outro recebido de Praça Del Prete. Os dois relatórios apresentaram o mesmo quadro da situação que ali existe, mas o seu é mais detalhado. Quero lhe dar os meus parabéns, O fato de que, obtivemos desta vez informações mais completas com o Sr. e seus homens, me proporciona grande satisfação.

Não resta dúvida que o “gordinho” está cedendo ante os lisonjeios dos Americanos, e que somente uma intervenção violenta por parte de nossos amigos verdes poderá salvar o país. Os nossos colaboradores de Berlim, depois de entendimentos que tiveram com o representante em Lisboa, decidiram que tal intervenção deverá se realizar o mais breve possível. Porém você está a par da situação. No dia em que se der a mudança, os nossos colaboradores não se interessarão de maneira alguma pelos nossos interesses e a Lufthansa colherá todas as vantagens.

Para evitar que isto aconteça, precisamos procurar amigos de influência dentre os “verdes” o mais cedo possível. Faça-o sem demora.

Avião da Lati no Rio de Janeiro – Fonte – LIFE.

Deixarei a seu critério a escolha das pessoas mais apropriadas: talvez Padilha ou E. P. de Andrade seriam de mais utilidade do que o Q.B. o qual, apesar de ativo, não vale muito.

A importância que você necessitar será posta a sua disposição, não importa o fato dos camisas verdes precisarem de somas consideráveis. Eles as terão. O ponto importante é que nosso serviço deverá tirar proveito de uma mudança de regime. Procure saber quem é que deseja nomear para Ministro da Aeronáutica e tente captar a sua simpatia. O Senhor precisará ficar a par do que suceder, porém já concordamos em que as negociações ficarão em mãos da LATI, que atuará na sua capacidade de empresa brasileira procurando a extensão a melhoramento de seus próprios serviços.

Espero a máxima discrição de sua parte. Como disse no seu relatório a respeito da Standard Oil, os ingleses e americanos se interessam em tudo e em todos. E se for também verdade – como você afirma com justiça que o Brasil é um país de macacos, não nos devemos esquecer que são macacos dispostos a servir a quem tem as rédeas na mão.

Saudações Fascistas

(a) General P. Liotta

Comandante

Vicenzo COPPOLA

Linee Aeree Transcontinentale Italiana S.A.

RIO DE JANEIRO (BRASIL)

Coppola Preso e a LATI Impedida de Voar

O tal “gordinho”, ou “il grassoccio” em italiano, foi imediatamente identificado como sendo o Presidente Getúlio Vargas, e os “amigos verdes”, ou simplesmente “verdes”, eram os integralistas. Como vimos, a carta continha um insulto pessoal ao Presidente da República, abuso de hospitalidade, críticas à sua política externa e sugeria o encorajamento de seus inimigos políticos. Os agentes secretos ingleses esperavam que essa combinação de apreciações negativas fizesse com que o Presidente Vargas reagisse vigorosamente. Imediatamente após ter recebido o microfilme da carta, o agente de Stephenson no Rio de Janeiro providenciou para que fosse executado um “roubo” à casa do Comandante Coppola, situada na Avenida Vieira Souto, 442, Ipanema, no qual um relógio de cabeceira e outros artigos foram roubados. Atualmente nesse endereço se encontra o Condomínio Ker Franer.

Coppola então chamou a polícia e o “caso” teve alguma publicidade – exatamente o que esperava o agente britânico no Rio – pois tornava patente para as autoridades brasileiras e o público em geral, que se tratava de um roubo real.

Ficha de imigração de Vicenzo Coppola – Fonte – Arquivo Nacional.

Em seguida um brasileiro ligado ao agente secreto inglês procurou um repórter da agência noticiosa americana “Associated Press”. Após obter do mesmo a promessa de que guardaria segredo absoluto, confessou ter tomado parte no assalto à casa de Coppola e entre os seus pertences encontrara um documento microfotografado, que parecia ser muito interessante. Quando o repórter leu seu conteúdo percebeu que era uma carta do presidente da LATI e chegou à conclusão que o original havia sido considerado muito perigoso para ser remetido pelo correio aéreo normal. Concluiu também que aquela missiva tinha sido enviada de forma clandestina para evitar uma possível interceptação. Com aquele tesouro nas mãos, o repórter dirigiu-se à Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, e mostrou-a ao Embaixador Jefferson Caffery. Este diplomata determinou que fossem feitas investigações para ampliação e constatação de sua possível veracidade.

Ao receber o resultado dessas investigações, Caffery concluiu que a carta microfotografada era verdadeira e imediatamente enviou para o Presidente Vargas o microfilme e os resultados obtidos com as investigações em meados de novembro. Para Caffery o Presidente do Brasil pareceu “muito impressionado” com a missiva em italiano e reagiu exatamente como Stephenson esperava. Cancelou imediatamente todos os direitos da LATI no território nacional e ordenou a prisão do seu diretor geral.

Notícia sobre Coppola na época de sua fuga para a Argentina.

Vicenzo Coppola tentou fugir do país, tendo previamente retirado um milhão de dólares de um banco, mas foi preso quando procurou cruzar a fronteira com a Argentina. Mais tarde foi sentenciado a sete anos de prisão e teve seus bens confiscados. Foi posto em liberdade no dia 14 de agosto de 1944, em consequência de um habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Faleceu no Rio de Janeiro, em 27 de maio de 1963.

Por infração às leis brasileiras a empresa aérea LATI foi multada em CrS 85.000,00 (oitenta e cinco mil cruzeiros), além de ter seus aviões, campos de pouso e equipamentos de manutenção confiscados pelas autoridades, enquanto suas tripulações e o pessoal de origem italiana foram internados.

Para os integrantes da representação diplomática dos Estados Unidos no Brasil, a opinião dominante na época foi que a carta do General Liotta havia sido o principal fator que levara o Presidente Vargas a se voltar contra o inimigo.

Espião preso por militares americanos.

Consta que os norte-americanos generosamente decidiram repartir o segredo com o representante do serviço de inteligência na Embaixada Britânica no Rio. Um membro do corpo diplomático americano reproduziu a carta e o agente de Stephenson fingiu mostrar grande interesse e admiração pelo fato e até cumprimentou efusivamente seu colega por esse trabalho.

Conclusão

Nesse tipo de negócio, o bem mais valioso que existe e que todos buscam avidamente são as informações estratégicas vindas de fontes privilegiadas, com conteúdos valiosos, principalmente ligados a assuntos de defesa de uma nação.

Esse tipo de informação é tão importante quanto o poderio bélico, sendo algo que pode definir conflitos entre países e esse tipo de atividade sempre esteve presente em praticamente todos os períodos da historia.

Henry John Temple, o 3º Visconde de Palmerston, mentor da política externa britânica durante grande parte do século XIX, declarou no Parlamento Britânico “Não temos aliados eternos e não temos inimigos perpétuos. Nossos interesses são eternos e perpétuos, e é nosso dever seguir esses interesses”.

Não é novidade que nações amigas realizam espionagem entre si, o chamado “conhecimento comum”. Muitas vezes essas ações se realizam focados na ideia, bem real, que “um amigo de hoje, pode não ser um amigo amanhã”. Além disso, como bem apontou Palmerston, nações não possuem amigos, apenas interesses.